GERALDO VITALI NETO
QUANDO AS FRONTEIRAS POLÍTICAS NÃO COINCIDEM COM AS FRONTEIRAS CULTURAIS:
A TERRITORIALIZAÇÃO DA CULTURA E OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS
Londrina 2006
GERALDO VITALI NETO
QUANDO AS FRONTEIRAS POLÍTICAS NÃO COINCIDEM COM AS FRONTEIRAS CULTURAIS:
A TERRITORIALIZAÇÃO DA CULTURA E OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS
Monografia apresentada ao curso de Geografia da Universidade Estadual de Londrina como requisito à obtenção do título de bacharel em Geografia
Londrina 2006
COMISSÃO EXAMINADORA ______________________________________
Orientadora: Profª Drª Ideni Terezinha Antonello
______________________________________
Profª Drª Maria del Carmen Matilde Huertas Calvente
______________________________________
Profª Drª Rosana Figueiredo Salvi
Londrina, 1º de dezembro de 2006
Dedico este trabalho a quem,
em algum momento,
me quis bem.
AGRADECIMENTO
Agradeço à minha orientadora e amiga Ideni que, com paciência e sabedoria,
soube conduzir a elaboração deste trabalho.
LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Setor Público nos Países do G7 .............................................................................. 30
Tabela 2 – Indicadores dos Reagrupamentos Transnacionais da União Européia ................... 91
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – A Territorialização das Civilizações Contemporâneas ........................................... 49
Figura 2 – A Forma Territorial Francesa: Compacta................................................................ 73
Figura 3 – A Forma Territorial Italiana: Alongada................................................................... 73
Figura 4 – A Forma Territorial Norueguesa: Recortada........................................................... 74
Figura 5 – A Forma Territorial Japonesa: Fragmentada........................................................... 74
Figura 6 – As Fronteiras Políticas Européias Antes da Primeira Grande Guerra (1914) ......... 77
Figura 7 – As Fronteiras Políticas Européias Após a Primeira Grande Guerra (1921) ............ 78
Figura 8 – A Fronteira Oriental da Civilização Ocidental...................................................... 100
Figura 9 – O Território Ucraniano Cindido Pela Fronteira Cultural Entre o Ocidente e a
Ortodoxia ........................................................................................................................ 101
Figura 10 – A Divisão Cultural e Territorial Bósnia .............................................................. 111
Figura 11 – A Divisão Cultural e Territorial Sudanesa .......................................................... 115
LISTA DE SIGLAS APEC Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico
ASEAN Associação de Nações do Sudeste Asiático
CECA Comunidade Européia do Carvão e do Aço
EUA Estados Unidos da América
FMI Fundo Monetário Internacional
G7 Grupo dos Sete
MERCOSUL Mercado Comum do Sul
NAFTA Tratado Norte-Americano de Livre Comércio
OMC Organização Mundial do Comércio
ONU Organização das Nações Unidas
OTAN Organização do Tratado do Atlântico-Norte
PIB Produto Interno Bruto
SUMÁRIO
1. OS CONCEITOS-CHAVE ................................................................................................ 12
1.1. A GLOBALIZAÇÃO..................................................................................................... 12 1.2. O ESTADO .................................................................................................................... 20 1.3. A CULTURA, A CIVILIZAÇÃO, A IDENTIDADE E AS CIVILIZAÇÕES .............. 34
1.3.1. AS CIVILIZAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ............................................................ 49 1.3.1.1. A Civilização Ocidental................................................................................... 50 1.3.1.2. A Civilização Ortodoxa ................................................................................... 54 1.3.1.3. A Civilização Africana .................................................................................... 55 1.3.1.4. A Civilização Hindu ........................................................................................ 55 1.3.1.5. A Civilização Sínica ........................................................................................ 56 1.3.1.6. A Civilização Japonesa.................................................................................... 56 1.3.1.7. A Civilização Islâmica..................................................................................... 57
2. AS FRONTEIRAS .............................................................................................................. 59
2.1. OS TIPOS DE TERRITÓRIO........................................................................................ 70 2.2. A EVOLUÇÃO DAS FRONTEIRAS............................................................................ 76
3. A TERRITORIALIZAÇÃO DA CULTURA NA ORDEM MUNDIAL DO PÓS-GUERRA FRIA ...................................................................................................................... 84
3.1. A CULTURA E OS BLOCOS ECONÔMICOS ............................................................ 86 3.2. A CULTURA, OS IDIOMAS E OS ALFABETOS ....................................................... 93 3.3. OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS EUROPEUS................................ 96
3.3.1. OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS NA UCRÂNIA ....................... 101 3.3.2. OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS NOS BÁLCÃS ....................... 105
3.4. UM CASO ESPECIAL: O SUDÃO............................................................................. 112
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................... 116
5. BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................. 121
VITALI NETO, Geraldo. Quando as Fronteiras Políticas Não Coincidem Com as Fronteiras Culturais: a Territorialização da Cultura e os Conflitos Territoriais e Culturais. Monografia (Bacharelado em Geografia) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2006.
RESUMO Esta pesquisa, ao realizar o estudo de conceitos essenciais ao seu desenvolvimento, como Estado, globalização, cultura, civilização, civilizações e fronteira, analisa a ascensão da cultura na ordem mundial do pós-Guerra Fria e os conflitos que surgem da incongruência entre as fronteiras políticas e as fronteiras culturais, sobretudo na Europa. O exame de cada um desses conceitos e sua justaposição formam a base teórica para a análise da ordem mundial que ascendeu após a desintegração da União Soviética e da extinção da Guerra Fria e dos conflitos subseqüentes. Dessa forma, constata-se o vigor adquirido pela cultura, sem que essa proeminência, entretanto, ofuscasse completamente os outros componentes que engendram a ordem mundial do pós-Guerra Fria: a economia, a política e a ideologia. Assim, efetua-se análise dos conflitos territoriais e culturais na Ucrânia, nos Bálcãs e, embora africano, no Sudão, por ser um caso emblemático. Infere-se, então, que a territorialização da cultura é forma salutar para compreender a ordem mundial emersa da extinção da Guerra Fria. Palavras-chave: cultura; fronteiras; territorialização da cultura; conflitos territoriais e culturais; incongruência entre as fronteiras políticas e as fronteiras culturais.
VITALI NETO, Geraldo. Cuando las Fronteras Políticas No Coinciden Con las Fronteras Culturales: la Territorialización de la Cultura y los Conflictos Territoriales y Culturales. Monografía (Bachillerato en Geografía) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2006.
RESUMEN
Esta pesquisa, al realizar el análisis de conceptos esenciales a su desarrollo, como Estado, globalización, cultura, civilización, civilizaciones y fronteras, analiza la ascención de la cultura en el orden mundial de la post-Guerra Fría y los conflictos que surgen de la incongruencia entre las fronteras políticas y las fronteras culturales, especialmente en Europa. El examen de cada uno de esos conceptos y su yuxtaposición forman el fundamento teórico para el análisis del orden mundial que ha ascendido después de la desintegración de la Unión Soviética y de la extinción de la Guerra Fría y de los conflictos subsiguientes. De esa forma, se constata el vigor adquirido por la cultura, sin que esa prominencia, sin embargo, ofuscara completamente los otros componentes que engendran el orden mundial de la post-Guerra Fría: la economía, la política y la ideología. Así, se efectúa análisis de los conflictos territoriales y culturales en la Ucrania, en los Balcanes y, aunque africano, en Sudán, por ser un caso significativo. Se infiere, entonces, que la territorialización de la cultura es forma buenísima para comprender el orden mundial emergido de la disolución de la Guerra Fría. Palabras clave: cultura; fronteras; territorialización de la cultura; conflictos territoriales y culturales; incongruencia entre las fronteras políticas y las fronteras culturales.
INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta uma maneira de compreender a ordem mundial do pós-Guerra Fria.
Assim, analisa-se a nova ordem mundial sob a óptica cultural e da perspectiva da
territorialização da cultura, o que envolve a questão das fronteiras políticas e das fronteiras
culturais e da incongruência entre elas.
Discutem-se alguns conceitos essenciais ao tema da pesquisa para, então, empreender exame
de alguns conflitos territoriais e culturais: dois europeus, o caso ucraniano e o caso balcânico,
e um africano, o caso sudanês. O centro da pesquisa é a Europa, por tratar-se do continente em
que os conflitos territoriais e culturais revelam-se mais fortemente. Há, entretanto, um conflito
muito significativo na África e, por este motivo, sua inclusão neste estudo.
Assim, a territorialização da cultura produz a incongruência entre as fronteiras políticas e as
fronteiras culturais, um dos principais motores dos conflitos mundiais contemporâneos.
12
1. OS CONCEITOS-CHAVE
Para que se realize um estudo acerca de determinado tema faz-se necessário,
antes de tudo, empreender exame de alguns conceitos que com ele se relacionam intimamente
e, partindo desse feito, tecer argumentação coerente que os una e estabeleça entre eles relações
efetivas. Dessa maneira, para que se possa discorrer sobre a incongruência entre as fronteiras
políticas e as fronteiras culturais e os conflitos advindos desse fato e esquadrinhá-los, faz-se
imprescindível efetuar análise dos vários conceitos que são análogos à temática da pesquisa.
1.1. A GLOBALIZAÇÃO
Ao contrário de algumas das idéias acerca da globalização, notadamente
aquelas que propugnam o fim do Estado-nação e a ascensão de uma cultura mundial, tecer-se-
ão algumas asserções a respeito delas. Tem-se, primeiramente, que examinar o âmago do
significado de globalização. Pode-se, assim, falar de duas acepções principais. A primeira é
uma fábula que se sustenta sobre a ideologia dominante. Vê-se a globalização como um
processo recente, que se materializa sobretudo no livre mercado e na sociedade informacional.
Divulga-se exaustivamente o fim do Estado-nação, o enfraquecimento das fronteiras e o
surgimento da cultura mundial e da pretensa aldeia global, em que os benefícios de um mundo
moderno alcançariam a todos, em todas as partes. Faz-se crer na existência da cidadania
planetária, sustentada pela universalização dos valores e da democracia ocidentais pelo orbe
terrestre.
13
A segunda acepção aniquila a primeira, ao revelá-la um conceito leviano, que
se presta, primordialmente, à dissimulação da internacionalização do capital. Desde que
surgiu, na década de 1990, a palavra globalização tem se posto cada vez mais em evidência.
Tornou-se palavra da moda, com grande poder de persuasão, ela “está na ordem do dia; uma
palavra da moda que se transforma rapidamente em lema, uma encarnação mágica, uma senha
capaz de abrir as portas de todos os mistérios presentes e futuros”1. Complexo conceito, por
fluido que ainda é e por vulgar que o tornam, a despeito de análises múltiplas, não possui
“uma caracterização coerente ou simples. [...] Nenhuma explicação singular da globalização
atingiu o status de uma ortodoxia. Ao contrário, as avaliações rivais continuam a ordenar a
discussão”2. Provida de notável imprecisão conceitual, não é, todavia, somente esse fato que
torna a discussão acerca da globalização intrincada.
Há hesitação até mesmo para denominar o fenômeno. O vocábulo inglês é
globalization. Tem origem nele o termo usado pelos países lusófonos: globalização. Seguem o
mesmo raciocínio os que falam alemão, que utilizam Globalisierung e os que falam espanhol,
que dizem globalización. Os franceses, no entanto, relutam em realizar a tradução literal do
inglês, que seria globalisation, e, para referirem-se ao mesmo fenômeno, utilizam o termo
mondialisation. Com efeito, “esses termos [global e globalização], [...] não são neutros. Eles
invadiram o discurso político e econômico cotidiano, com tanto maior facilidade pelo fato de
serem termos cheios de conotações [...] e, ao mesmo tempo, vagos”3. É possível, contudo,
tecer algumas críticas ao termo mundialização. Se é verdade que globalização é passível de
1 BAUMAN apud SENE, Eustáquio de. Globalização e Espaço Geográfico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 15. 2 HELD e MCGREW apud SENE, Eustáquio de. Globalização e Espaço Geográfico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 16. 3 CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital. São Paulo: Xamã, 1996, p. 24.
14
distorções ideológicas intencionais, nada garante que mundialização se mantenha a salvo
dessas maquinações.
Outrossim, a controvérsia parece ganhar ares semânticos, condição que pouco
contribui para clarificá-la. Há autores que realizam distinção entre globalização, vocábulo
ligado a aspectos econômicos, e mundialização, vinculado à cultura. Outros não forjam
distinção nenhuma, e somente utilizam globalização, tanto para fatos econômicos como para
culturais. Outros, ainda, utilizam indistintamente globalização e mundialização para aludirem
a aspectos econômicos e culturais.
Porventura, uma tal distinção, se fosse exeqüível e útil, seria tal que a palavra
globalização fosse reservada para referir-se à “capacidade estratégica de todo grande grupo
oligopolista, voltado para a produção manufatureira ou para as principais atividades de
serviços, de adotar, por conta própria, um enfoque e conduta ‘globais’”4 e a todas as
conseqüências produzidas por essa estratégia, bem como à arma ideológica do poder
monetário internacional, que planeia dissimular tal estratégia, materializado pelas empresas
transnacionais; e que o vocábulo mundialização fosse utilizado como instrumento de
contraposição, em outras palavras, para que se expusesse peremptoriamente que a
globalização é, em verdade, um processo que produz benefícios aos que a comandam, e
somente a eles, e é também a arma ideológica que intenta dissimular os desígnios do poder
monetário internacional.
Contudo, forjar diferenças semânticas nunca foi uma atitude digna de elogio ou
que obtivesse grande êxito, por artificiais que resultam. Veja-se o caso de história e estória.
Tomando como modelo a língua inglesa, que estabelece diferença entre history e story,
4 CHESNAIS, ibid., p. 17.
15
propôs-se que estória designasse, no campo do folclore, a narrativa popular, o conto
tradicional. Alguns intelectuais afeiçoaram-se à idéia e consideraram por bem instituir tal
diferença na língua portuguesa escrita utilizada no Brasil. Cometeram um equívoco. Primeiro
porque essa distinção é inútil, é uma estupidez, porquanto até agora nunca se confundiram os
vários significados de história. O contexto e a situação têm sido mais do que suficientes para
que se distingam os vários significados; segundo porque não é grande feito para a língua
inglesa ter estabelecido distinção entre history e story e a língua portuguesa não a ter criado.
Ao contrário, a língua portuguesa estabeleceu diferença muito mais essencial, entre ser e estar,
distinção fundamental na vida e na Filosofia, diferenciação que a língua inglesa não pôde
igualar e por isso tem de se contentar com um parco to be; e terceiro que essa distinção
estabelecida por intelectuais nunca se tornou de uso popular e, onde alcançou sê-lo, somente
provocou confusão. Destarte, é necessário ter consciência de que não se pode tentar impor
diferenciações semânticas entre os vocábulos. As diferenciações formam-se espontaneamente,
pelo uso popular.
Há, ademais, estudiosos que simplesmente negam a existência da globalização.
Para eles o capitalismo não passou por nenhuma significativa mudança nas últimas décadas
que justificasse a adoção de novo termo para designar realidade que não passa das já
conhecidas noções de internacionalização do capital e de imperialismo. Crêem que a
globalização seja simplesmente uma nova aparência para o imperialismo, tal como foi descrito
por autores de inspiração marxista. Deveras, chegou-se a afirmar que “caberia até indagar se a
chamada globalização não seria a continuação da colonização por outros meios”5. Há também
outros que vêem a globalização como um projeto hegemônico dos Estados Unidos para lograr
5 BATISTA JR. apud SENE, Eustáquio de. Globalização e Espaço Geográfico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 30.
16
mais eficiente domínio mundial. Seja como for, é importante evidenciar que essas concepções
que preconizam a inexistência da globalização possuem todas cunho economicista, que
despreza ou ignora outros aspectos da realidade, como a cultura, a política e o
desenvolvimento das técnicas. Apesar dessa negligência, devem ser analisadas, mas, por causa
também dessa desatenção, não devem ser levadas tão a sério.
Pode-se, contudo, compreender a globalização como o ápice de um processo
que teve origem na própria formação do capitalismo. Ela é, então, um processo histórico que é
resultado de “dois” movimentos conjuntos, estreitamente interligados, mas
“distintos”. O primeiro pode ser caracterizado como a mais longa fase de acumulação
ininterrupta do capital que o capitalismo conheceu desde 1914. O segundo diz respeito
às políticas de liberalização, de privatização, de desregulamentação e de
desmantelamento de conquistas sociais e democráticas, que foram aplicadas desde o
início da década de 19806.
Durante os mais intensos debates, na década de 1990, opuseram-se duas
vertentes principais, os que viam a globalização com bons olhos e a celebravam e os que a
enxergavam com desconfiança e a rejeitavam. Com o advento das agudas crises econômicas
da década de 1990 e do início da década de 2000 ficou mais claro que a globalização possuía
mais aspectos negativos que positivos, principalmente nos países que executavam cegamente
políticas neoliberais e que foram acertados em cheio pela crise. Assim,
tornou-se cada vez mais claro, não só para cidadãos comuns, mas também para aqueles
que formulam as políticas, não só para os que vivem nos países desenvolvidos, que a
globalização, da maneira como tem sido praticada, não satisfez as expectativas 6 CHESNAIS, op. cit., p. 34.
17
conforme seus defensores prometeram que iria satisfazer – nem realizou o que pode e
deve realizar. Em alguns casos não resultou nem mesmo em crescimento, mas quando
isso aconteceu, não trouxe benefícios para todos; o efeito líquido das políticas
estabelecidas pelo Consenso de Washington tem sido, com relativa freqüência,
beneficiar alguns à custa de muitos, os ricos à custa dos pobres. Em muitos casos,
interesses e valores comerciais têm substituído a preocupação com o ambiente, a
democracia, os direitos humanos e a justiça social7.
O tão cultuado livre mercado é, verdadeiramente, “o domínio de grandes
oligopólios e de blocos econômicos protecionistas, concentrando entre seus parceiros a maior
parte do comércio mundial, deixando à margem uma imensa periferia e provocando com isso
uma desigualdade social inédita na história”8. De fato, não pode haver livre mercado e
desregulamentação econômica quando se verifica a formação de grandes oligopólios e de
blocos econômicos com legislações protecionistas.
Assim, a lógica do mercado, que tudo transforma em mercadoria ao atomizar as
sociedades e a suposta cultura mundial que, ao contrário de fazer surgir efetivamente a
cidadania e a consciência planetárias, engendra a percepção das diferenças, tanto econômicas
quanto culturais, prestam-se, sobretudo, a proporcionar condições para que renasça a cultura
como fator identitário. Com efeito, vêem-se cada vez mais demonstrações de reafirmação
cultural e de retorno às tradições, em um devir que faz com que os indivíduos se espelhem e se
reconheçam na identidade mais ampla de um povo: as civilizações. Esse devir é produto da
própria globalização. Dela é indissociável, nasce de dentro dela porque ela o carrega em sua
essência e porque ela o engendra. E é ela mesma que, em um movimento de reflexão, intenta
7 STIGLITZ apud SENE, Eustáquio de. Globalização e Espaço Geográfico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 33. 8 HAESBAERT, Rogério. Questões e Mitos sobre a Globalização. In: STROHAECKER, Tânia Marques et al., Org. Fronteiras e Espaço Global. Porto Alegre: Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Porto Alegre, 1998, p. 11.
18
encobrir o que já foi revelado, propagando a idéia traiçoeira do relativismo cultural. Com
efeito, ele é “uma maneira cômoda de se evitar o drama da desigualdade”9.
Faz-se salutar, então, compor breves asseverações a respeito da ideologia.
Modernamente, o conceito de ideologia tornou-se conceito impregnado de impressões
negativas. Foi a concepção marxista de ideologia que contribuiu enormemente para que assim
fosse. Segundo essa concepção, ela é a maneira pela qual a classe dominante de uma
sociedade representa a si mesma, ou seja, a idéia que ela projeta a respeito de si, que se torna a
maneira pela qual todos os membros dessa dada sociedade deverão pensar. A idéia que a
classe dominante projeta para as outras classes não é necessariamente a idéia verdadeira que
ela tem de si, como se simplesmente se vislumbrasse em um espelho e reproduzisse o que lhe
aparece. Ao contrário, essa idéia pode conter ardis para dominar o restante da sociedade.
Assim, “a ideologia é o processo pelo qual as idéias da classe dominante se tornam idéias de
todas as classes sociais, se tornam idéias dominantes”10. Essas idéias são a expressão ideal das
relações materiais, são, em suma, as relações materiais dominantes concebidas como idéias.
A ideologia “consiste precisamente na transformação das idéias da classe
dominante em idéias dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que
domina no plano material (econômico, social e político) também domina no plano
espiritual”11. Ela é, então, segundo a teoria marxista, um mascaramento da realidade, uma
ilusão, uma imagem invertida, que somente se sustém porque separa os indivíduos dominantes
das idéias dominantes, fazendo com que pareça verossímil a separação entre eles e porque cria
a ilusão de que a realidade sempre foi como é, a deprimente ilusão de que desde sempre houve
9 ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 97. 10 CHAUI, Marilena. O que É Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 92. 11 CHAUI, ibid. p. 93.
19
dominantes e dominados e que, por conseguinte, é inútil lutar contra ela. Destarte, com o véu
da ideologia, também a globalização é vista como um processo inexorável, inelutável e não-
histórico quando, na verdade, é um processo histórico-econômico, criado pelas mãos humanas.
Quando “processos são retratados como coisas, ou como acontecimentos de um tipo quase
natural, de tal modo que o seu caráter social e histórico é eclipsado”12 tem-se sua reificação. É
exatamente o que se dá com a globalização quando se enxerga nela nada mais que um
processo natural e implacável.
Com o fito de proporcionar lucros cada vez maiores, a internacionalização do
capital, com seus mecanismos arrasadores, que transformam as relações sociais e as relações
de produção, acaba por exacerbar as diferenças. A tecnologia produzida para dar
exeqüibilidade à internacionalização do capital urde a percepção das diferenças quando
possibilita que a opulência e a penúria apareçam próximas uma da outra. É a gana do capital,
que é “um valor [...] cujo objetivo é a auto-valorização, a obtenção de lucro”13, que concebe o
poder monetário internacional, exercido pelas empresas transnacionais.
Desse modo, pode-se verificar quão vigorosa apresenta-se a internacionalização
do capital e como é a nova infra-estrutura, propiciada pela tecnologia produzida pelos Estados
de capitalismo avançado, que engendra o ardil da perceptibilidade das diferenças e,
conseqüentemente, do outro. É então que se fortalece o sentimento de alteridade e o que era
simplesmente diferente passa a afrontar e a ameaçar, constituindo-se, muitas vezes, no
deflagrador de um movimento migratório, nacional ou internacional, ou no irrompimento de
lutas por mais liberdade. Prova de que a informação e a alteridade são bens valiosos é a
12 THOMPSON, apud SENE, Eustáquio de. Globalização e Espaço Geográfico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 54. 13 CHESNAIS, op. cit., p. 81.
20
anacrônica proibição aos iranianos, por parte do regime de Teerã, da posse de antenas
parabólicas ou o abjeto controle que a China tenciona exercer sobre a rede mundial de
computadores dentro de seu território.
1.2. O ESTADO
Propugna-se, igualmente, o fim das fronteiras e do Estado-nação. O Estado
teria sido engendrado, segundo uma dada teoria, pela divisão do trabalho entre o homem e a
mulher. Essa divisão é “a primeira divisão do trabalho [...] a que se fez entre o homem e a
mulher para a procriação dos filhos”14. Ulteriormente a essa divisão do trabalho teria emergido
a monogamia. Outrora ela não era praticada. A filiação dentro dos clãs realizava-se segundo a
linha materna e somente por ela, pois não era possível determiná-la segundo a linha paterna. A
relativa liberdade sexual de que homens e mulheres gozavam, então, impossibilitava que se
reconhecesse a paternidade exclusiva.
A concentração de riqueza nas mãos de um homem e o desejo de transmiti-la,
por herança, aos seus próprios filhos, excluídos os filhos de qualquer outro homem, produziu a
monogamia. A riqueza passou a ser
valorizada e respeitada como bem supremo e as antigas instituições da gens (sic) são
pervertidas para justificar-se a aquisição de riquezas pelo roubo e pela violência.
Faltava apenas uma coisa: uma instituição que não só assegurasse as novas riquezas
individuais contra as tradições comunistas da constituição gentílica, que não só
consagrasse a propriedade privada, antes tão pouco estimada, e fizesse dessa
14 ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 70.
21
consagração santificadora o objetivo mais elevado da comunidade humana, mas
também imprimisse o selo geral do reconhecimento da sociedade às novas formas de
aquisição da propriedade, que se desenvolviam umas sobre as outras – a acumulação,
portanto, cada vez mais acelerada, das riquezas – ; uma instituição que, em uma
palavra, não só perpetuasse a nascente divisão da sociedade em classes, mas também o
direito de a classe possuidora explorar a não-possuidora e o domínio da primeira sobre
a segunda15.
Essa instituição era o Estado. Segundo outra teoria, o Estado “existe em virtude
de suas finalidades, entre as quais figura o desejo de sobrevivência e liberdade de ação –
estratégia; de autoridade e legitimidade – direito; de identidade – história. Em outras palavras,
não há Estado sem estratégia, direito e história [...]”16. Ainda, segundo ela, o Estado moderno
teria surgido mais como uma reação, como uma resposta à guerra e a suas conseqüências do
que por razões filosóficas ou sociais. As novas técnicas de guerra, que propiciaram a expansão
dos exércitos e das esquadras e o melhoramento das dispendiosas fortificações teriam incitado
os inúmeros pequenos Estados principescos europeus, por volta de 1450, a gastar mais
dinheiro e a desenvolver estruturas mais eficientes para obter aumento da receita. Por
intermédio do Estado que se incrementava, os príncipes puderam desenvolver equipamentos
de segurança mais modernos e, atrelados a ele, puderam legitimar seus atos. Efetivamente, a
estrutura do Estado europeu “surgiu basicamente como um subproduto dos esforços dos
governantes para adquirir meios de travar guerras”17.
15 ENGELS, ibid., p. 119. 16 BOBBITT, Philip. A Guerra e a Paz na História Moderna: o impacto dos grandes conflitos na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 4. 17 TILLY apud BOBBITT, Philip. A Guerra e a Paz na História Moderna: o impacto dos grandes conflitos na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 89.
22
Por volta de 1500 havia na Europa aproximadamente 500 Estados
principescos18. Entretanto, muitos deles já exibiam indícios do que seria a nova forma
constitucional dos Estados europeus: o Estado régio. Suécia, França e Inglaterra
personificavam o potencial sucessor do Estado principesco, pois já haviam expandido em alto
grau a burocracia permanente, haviam introduzido e mantido exércitos fixos e haviam
centralizado a tributação voltada para o financiamento da guerra. Nota-se, e esta é a essência
desta teoria, que o desenvolvimento de novos formatos constitucionais ocorre paralelamente a
uma revolução na tática militar. Infere-se, por isto, que uma das diferenças entre o Estado
principesco e o Estado régio é a diferença de escala, uma vez que o Estado régio exalta os
desígnios do Estado principesco e exacerba os meios para realizá-los. Aliás, é essa também a
grande vantagem do Estado régio sobre o Estado principesco, pois a forma constitucional que
não logra adaptar-se é arrasada pela forma vindoura, que se ergue sobre a base de sua
predecessora.
Deveras, outra importantíssima diferença entre essas duas formas
constitucionais é a admirável transição política engendrada por cada uma delas com relação ao
status anterior. No Estado principesco, a grande transição é a do príncipe como pessoa excelsa
e suprema que governa com um aparato burocrático muito débil, para o príncipe associado a
uma estrutura administrativa que se vinha fortalecendo, o Estado. A trajetória do Estado
principesco para o Estado régio reverte essa associação entre o monarca e o Estado, que então
já se objetivara, e o transforma na deificação do Estado. Assim, “o Estado principesco separou
a pessoa do príncipe de sua estrutura burocrática e militar, criando, assim, um Estado com
atributos até então reservados a seres humanos; o Estado régio volta a unir os dois elementos,
18 BOBBITT, op. cit., p. 88.
23
monarca e Estado, e transforma o rei no próprio Estado [...]”19. Em torno do rei constroem-se
relações sociais, e a partir dele constrói-se o território da soberania. Assim, a soberania do
Estado régio é uma soberania compreendida socialmente, em outras palavras, expressa-se a
soberania do Estado por meio dos súditos, que seriam uma extensão imaginária do corpo do
soberano. Infere-se, então, que para o Estado régio, o território não era um território nacional,
mas apenas um território dominado20. Já consolidado, o Estado régio, caracterizava-se por
cinco estruturas institucionais: um exército permanente; uma burocracia centralizada; um
sistema de tributação regular, vigente em todo o Estado; representações diplomáticas
permanentes no estrangeiro; políticas de Estado sistemáticas para a promoção do comércio e
da prosperidade econômica. O Estado régio, por fim, graças à Guerra dos Trinta Anos,
consolidar-se-á, mas, ao mesmo tempo, preparará o caminho ao seu sucessor, o Estado
territorial.
A Guerra dos Trinta Anos, que se estendeu de 1618 a 1648, constituiu-se de
uma série de conflitos religiosos e políticos ocorridos especialmente nos domínios germânicos,
nos quais rivalidades entre católicos e protestantes e assuntos constitucionais germânicos
foram gradualmente transformados em uma luta européia. Apesar de os conflitos religiosos
serem a causa direta do conflito, ele envolveu grande esforço político da Suécia e da França
para procurar diminuir a força da dinastia dos Habsburgo, que governava a Áustria. A guerra
causou sérios problemas econômicos e demográficos à Europa. Encerrou-se a guerra com uma
série de tratados conhecidos como a Paz de Vestfália.
O Estado territorial possuía características próprias, diferentes das
características do Estado régio. Enquanto o Estado régio estruturava-se em torno de um
19 BOBBITT, ibid., p. 94. 20 ESCOLAR, Marcelo. Crítica do Discurso Geográfico. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 142.
24
indivíduo, que era a encarnação do próprio Estado, o Estado territorial definia-se por sua
indivisão e, por isso, nutria um profundo zelo por suas fronteiras. Elas eram tudo para ele: a
legitimidade, o perímetro defensivo, a base tributária. Esses Estados necessitavam objetivar
seu território, quer dando sentido jurídico às possessões, quer delineando seus contornos e
seus detalhes21, pois somente assim poderiam realmente empreender tanto a ação política
quanto a ação econômica em seus domínios. Visavam ainda à racionalidade das fronteiras, à
liberdade de navegação e à abertura dos mercados. Começava a sobrevir o consenso
internacional de que nenhum Estado poderia ingerir-se em assuntos de outros Estados. Os
Estados territoriais passaram a depender, então, de uma sociedade internacional que, embora
não fosse uma organização formal, definiria a legitimidade dos constantes ajustes territoriais
imprescindíveis ao equilíbrio de poder europeu. Assim, tem-se no Tratado de Utrecht, que pôs
fim à Guerra de Sucessão Espanhola, o primeiro tratado europeu a assumir explicitamente o
equilíbrio de poder como objetivo.
A Guerra de Sucessão Espanhola foi disputada entre 1702 e 1713 pelo direito
de sucessão da coroa espanhola depois da morte do último monarca da casa de Habsburgo,
Carlos II. Filipe de Bourbon, neto do rei Luís XIV, da França, fora nomeado herdeiro do trono
espanhol, mas uma aliança anglo-germânica insurgiu-se para evitar a união dinástica da
França e da Espanha. O Tratado de Utrecht permitia que ajustes marginais fossem executados,
mas não consentia a anexação de um Estado por outro, nem a divisão de um Estado por outros
e a conseqüente partilha entre eles; nesse momento, tornara-se importante se os habitantes de
um dado território eram franceses, alemães ou austríacos. O Estado régio formara-se, em
grande medida, para sustentar e aprimorar o esforço de guerra constante que havia na Europa.
21 ESCOLAR, ibid., p. 133.
25
Era mais vigoroso e especializado que o Estado principesco. Ainda assim, não era capaz de
sustentar por longo período o esforço de guerra. Embora dispusesse de exército permanente,
com grande contingente e pago com o produto da tributação regular, grande parte dos soldados
era composta por mercenários, que somente se dispunham a batalhar e a arriscar a vida pelo
dinheiro. Não havia, para esses mercenários, sentimento nenhum de identidade que os unisse
ao Estado pelo qual lutavam. Sua única paixão era o dinheiro. Ao contrário, o Estado
territorial passou a ser capaz de manter o esforço de guerra por longo período, pois dispunha
de “forças coesas em termos sociais, originárias de um mesmo território, recrutadas para lutar
‘por seu país’”22. O Estado territorial, portanto, fazia coincidir “o Estado com o país, a terra”23,
e substituiu o monarca como personificação da soberania pelo monarca como ministro da
soberania.
Ao Estado territorial sucedeu-lhe a nação-Estado, que é “um Estado que
mobiliza uma nação – um grupo nacional ou étnico-cultural – para agir em benefício do
Estado”24. Assim, a nação-Estado não serve aos interesses da nação, mas apropria-se de seus
talentos humanos e de suas receitas tributárias em seu próprio benefício, mobiliza e explora
todo e qualquer recurso nacional de que se vê encarregada. Não é responsável perante a nação,
mas é, mais exatamente, por ela responsável. É essencial, então, estabelecer distinção entre
Estado e nação. O Estado é a
máquina político-administrativa, instituição que detém o monopólio da violência sobre
um território determinado. [...] Possui uma origem remota. A novidade está na nação
como sendo um espaço integrado a um poder central, mas, [...] articulando uma
22 BOBBITT, op. cit., p. 121. 23 BOBBITT, ibid., p. 126. 24 BOBBITT, ibid., p. 136.
26
‘unidade mental e cultural’ de seus habitantes. Neste caso não é a violência ou a
coerção administrativa do poder que importa, mas a existência de um ideal comum
partilhado por todos25.
O Estado que elevou ao mais alto grau a nação-Estado foi a França
napoleônica: assenhoreou-se de todos os recursos disponíveis, tanto humanos como
financeiros dentro das fronteiras francesas e das fronteiras dos territórios conquistados e os
mobilizou em favor do Estado. Concomitantemente à mobilização nacional, deu-se a
supressão dos nacionalismos, à exceção do nacionalismo francês, presumivelmente.
A transição da nação-Estado para o Estado-nação não deve, contudo, ser vista
como uma transição em seu sentido lato; antes, deve ser compreendida como uma mudança
constitucional, uma alteração interna. Com efeito, o Estado-nação deriva sua legitimidade do
fato de o Estado ser posto a serviço da nação; a nação-Estado, por sua vez, exige que a nação
sirva ao Estado. A nação-Estado fornece uma nova base constitucional para a colonização,
idéia que se choca violentamente contra os preceitos do Estado-nação, segundo os quais todas
as nações têm direito ao seu próprio Estado. Com a realização do Congresso de Viena, de 1º
de outubro de 1814 a nove de junho de 1815, as potências européias intentaram conter os
vários nacionalismos que iam surgindo e tomando força na Europa, bem como buscaram frear
o liberalismo. Entretanto, foi o duro golpe que a França, com a anuência da Inglaterra,
desfechou contra o sistema vienense, em 1870, quando determinou que a Áustria não se
ingerisse mais nos interesses da Itália, ainda em processo de unificação, que abriu caminho
para o estabelecimento do Estado-nação. Ao enfraquecer a Áustria, a França permitiu que a
Prússia empreendesse seu ideal de unificação germânica. Dessa forma,
25 ORTIZ, op. cit., p. 43.
27
o tigre do Estado-nação, todavia, exigia uma alimentação generosa. Províncias e povo
não podiam mais ser tratados com casualidade, como as fichas do jogo da política
dinástica; eram os filhos da nação. Assim, à medida que a guerra crescia em eficiência,
liberando o poder de todo o povo, também a paz tornava-se mais difícil26.
Pôde-se, então, engendrar “um Estado-nação moderno, definido pela etnicidade
de sua gente”27. Um Estado-nação que estenderia sua influência e sua responsabilidade por
todos os âmbitos da vida da sociedade, prometendo melhorar as condições de vida em todos os
aspectos e em que a “posse e a defesa do território nacional tornam-se imperativas”28. Dessa
forma o Estado-nação fortalecer-se-ia e atravessaria incólume quase todo o século XX.
Entretanto, o fim da Guerra Fria não teria feito somente desvanecer ideologias poderosas que
produziam o mundo bipolar, mas teria engendrado também uma nova ordem constitucional.
Ter-se-ia começado a esboçar as formas do Estado-mercado. Enquanto o Estado-nação,
com sua educação pública gratuita de massa, voto universal e políticas de previdência
social, propunha-se a garantir o bem-estar da nação, o Estado-mercado promete, por
sua vez, maximizar as oportunidades do povo; assim, tende a privatizar diversas
atividades estatais, bem como a restringir a influência do voto e do governo
representativo, tornando-os mais sensíveis ao mercado29.
Divisar-se-iam, assim, os Estados Unidos como o Estado que mais tem inovado
e avançado na construção do Estado-mercado. De fato, o governo dos Estados Unidos
conseguiu não somente que os estado-unidenses aceitassem a introdução de algumas medidas
26 DOYLE, apud BOBBITT, Philip. A Guerra e a Paz na História Moderna: o impacto dos grandes conflitos na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 171. 27 BOBBITT, op. cit., p. 190. 28 MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Teoria de Fronteiras: Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990, p. 15. 29 BOBBITT, op. cit., p. 199.
28
neoliberais na década de 1980, como também logrou impor essa tendência a vários outros
Estados sob sua influência. É notório, entretanto, que, se para alguns Estados de capitalismo
avançado o neoliberalismo e a globalização produziram alguns resultados satisfatórios, para a
imensa maioria dos Estados de capitalismo tardio as “reformas neoliberais fracassaram de
forma retumbante”30. Não obstante a hipótese do surgimento do Estado-mercado, considerar-
se-á, nesta investigação, o Estado-nação como, por enquanto, o último estágio do
desenvolvimento do Estado.
É significativo, ainda, constatar que o Estado, assim como todas as associações
políticas precedentes, é uma relação de dominação de homens sobre homens. Política
significaria então “a tentativa de participar no poder ou de influenciar a distribuição do poder,
seja entre vários Estados, seja dentro de um Estado entre os grupos de pessoas que este
abrange”31. Dessa forma, não se poderia definir um Estado por aquilo que ele executa, uma
vez que suas atribuições, em algum momento qualquer, já foram assumidas por alguma
associação política. Por outro lado, não há nenhuma atribuição que tenha sido própria ao
Estado em todos os momentos e exclusivamente. Somente se pode definir o Estado, tal qual é
contemporaneamente, por uma característica que lhe é peculiar: a coação física. De fato, “se
existissem apenas complexos sociais que desconhecessem o meio da coação, teria sido
dispensado o conceito de ‘Estado’; ter-se-ia produzido aquilo a que caberia o nome de
‘anarquia’”32. Assim, o Estado caracteriza-se por ser uma comunidade humana que dispõe de
um território e que reclama para si o monopólio da coação física legítima. Apenas ao Estado
cabe exercer a coação física, uma vez que a todas as demais associações ou indivíduos
30 SENE, Eustáquio de. Globalização e Espaço Geográfico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 33. 31 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos de sociologia compreensiva. Brasília: Universidade de Brasília, 1999, p. 526. 32 WEBER, ibid. p. 525.
29
somente se lhes atribui o direito de exercer a coação física na medida em que o Estado o
permita.
O anúncio da morte do Estado surgiu na década de 1990, sobrevindo-lhe, então,
“a pressão das grandes potências e do capital financeiro a favor da abertura das economias e
desregulação (sic) dos mercados periféricos”33. Além disso, quando se observa o século XX,
constata-se que ocorreu a universalização, e não a morte do Estado-nação. O mundo nunca
teve tantos Estados e, conseqüentemente, problemas por definição e redefinição de fronteiras.
Durante o século XX houve três fases de aumento expressivo do número de Estados: o fim da
Primeira Grande Guerra, com o esfacelamento do Império Austro-Húngaro e do Império
Otomano; o fim da Segunda Grande Guerra, com a destruição dos impérios coloniais europeus
na África e na Ásia; e a desintegração da União Soviética depois de 1991. Outrossim, divulga-
se que alguns Estados estejam restringindo seu papel econômico. Esta afirmação pode até ser
verdadeira para os países em declínio econômico, mas é completamente falsa com relação aos
Estados de capitalismo avançado. Na maioria desses países a atuação do Estado na economia
aumentou, em plena época do suposto triunfo do neoliberalismo, o que é possível observar na
tabela 1:
33 FIORI, José Luís. Brasil no Espaço. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 65.
30
Tabela 1 – Setor Público* nos Países do G7 (Médias dos períodos em % do PIB nominal)
Países Período Gasto Público** Carga Tributária***
EUA 1978-1982 1991-1995
31,2 33,6
30,1 30,5
Japão 1978-1982 1991-1995
31,8 33,2
27,4 32,7
Alemanha 1978-1982 1991-1995
48,0 48,9
45,0 45,7
França 1978-1982 1991-1995
46,9 53,0
45,4 48,6
Itália 1978-1982 1991-1995
44,0 54,1
33,7 45,0
Reino Unido 1978-1982 1991-1995
42,8 42,7
39,6 36,9
Canadá 1978-1982 1991-1995
39,9 48,5
33,5 42,2
G7 1978-1982 1991-1995
36,3 39,4
33,5 35,9
Fonte: BATISTA JR., Paulo Nogueira. Mitos da “Globalização”. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da USP, 1997, p. 27-A * Inclui governos centrais, estaduais e locais. ** Despesas correntes mais despesas líquidas de capital. *** Receitas correntes. Exclui receitas de capital.
Pode-se comparar os dados médios do período que marca o início do domínio
neoliberal, 1978-1982, com os dados mais recentes, do período 1991-1995. Assim, vê-se que o
gasto público, como proporção do PIB, nos Estados Unidos e no Japão aumentou. Na
Alemanha permaneceu mais ou menos estável e na França, na Itália e no Canadá o aumento
foi considerável. Somente no Reino Unido o gasto público diminuiu, mesmo assim, somente
0,1%. Na média do G7 o gasto público em relação ao PIB aumentou de 36,3% para 39,4%. Ou
seja, esses países, em conjunto e, contradizendo o que amplamente se faz divulgar, passaram a
gastar mais. Difunde-se, também, que os países estão sendo obrigados a recuar em matéria de
tributação, que têm de aceitar uma diminuição dos encargos tributários. Não é, todavia, o que
31
explicita a tabela. A carga tributária macroeconômica, definida como a relação entre as
receitas correntes do setor público e o PIB não diminuiu no período recente. Aumentou
consideravelmente em todos os países do G7, menos no Reino Unido. No conjunto do G7,
teve aumento de 2,4%.
Realmente, é significativo constatar que nem todos os Estados são afetados da
mesma maneira pela globalização. A vaga modernizante, face bela e traiçoeira da
globalização, tende a atingir com mais força os Estados de capitalismo tardio que alcançaram
certo grau de desenvolvimento econômico e, concomitantemente, puderam ser cooptados,
ainda que perifericamente, pelo poder monetário internacional. Os Estados que assumiram
cegamente as políticas neoliberais prescritas pelos Estados de capitalismo avançado e pelos
organismos intergovernamentais como o FMI e a OMC, viram, sim, o poder do Estado
diminuir, obviamente porque o próprio Estado abriu mão de algumas de suas prerrogativas.
Entretanto, basta examinar minuciosamente alguns Estados de capitalismo avançado, como já
se fez na área econômica, para verificar, novamente, que o Estado não está esmorecendo. Ao
contrário, dá demonstrações de poder. Os Estados Unidos, em 2003, decidiram
unilateralmente atacar o Iraque, mesmo tendo sido censurados pelo Conselho de Segurança da
ONU. O Estado japonês, desde o início da industrialização do Japão, sempre interferiu na
economia, e o Ministério da Indústria e do Comércio Internacional constantemente era visto
como órgão de planejamento central. A França, outrossim, não depositou muita confiança nos
preceitos neoliberais, e o Estado francês não desmantelou seu sistema de bem-estar social e
continuou freqüentemente a intervir na economia.
Todavia, há que se fazer outra observação com relação à maneira pela qual
alguns Estados são afetados pela globalização, pois ela é um processo espacial e temporal
32
desigual, que se dá por meio de redes e de fluxos. Muitos desses Estados, localizados
sobretudo na África e na Ásia, são tão fracos economicamente e dispõem de tão parca infra-
estrutura que, ao fim e ao cabo, praticamente não sentem os efeitos da globalização. Isto
significa que, devido à debilidade econômica, à exaustão dos recursos naturais
comercialmente exploráveis, à inexistência de infra-estrutura adequada e ao reduzido mercado
interno, esses Estados correm o risco de serem sumariamente esquecidos pelo poder monetário
internacional. Em outras palavras, não se verá neles nenhuma utilidade, não haverá por que
investir neles ou fazer com que sejam enredados pela globalização porque “sua [da
globalização] operação e estrutura reais dizem respeito só a segmentos de estruturas
econômicas, países e regiões, em proporções que variam conforme a posição particular de um
pais ou região na divisão internacional do trabalho”34.
A hegemonia que se exerce por meio das redes e dos fluxos se instala nos
locais em que há maior densidade de objetos técnicos. Não se deve estranhar, então, que os
Estados de capitalismo avançado, que desenvolvem a ciência, que criam e mantêm os avanços
técnicos, comandem a globalização e que os Estados de capitalismo tardio localizados na
África e na Ásia praticamente não participem das redes e não sejam atingidos pelos fluxos
hegemônicos. São as cidades globais, plenas de objetos técnicos e localizadas nos Estados de
capitalismo avançado, que comandam as redes e os fluxos. O poder da globalização cumpre-se
sobremaneira, mas não de forma exclusiva, nas megalópoles da América do Norte, na do
Nordeste e na da Califórnia, na megalópole do Japão, comandada por Tóquio e na megalópole
da Europa Ocidental, que se estende da planície do Pó até Londres, passando pela ilha
parisiense. Constata-se que “o poderio mundial se exerce numa concentração geográfica dos
34 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 120.
33
poderes”35. Assim, verifica-se que não há espaço global, mas espaços da globalização, que são
ligados por redes, cujos nós principais são as cidades globais36.
Faz-se salutar, aqui, realizar uma distinção. Cidade global não é o mesmo que
megacidade. A ONU considera megacidade a aglomeração de mais de dez milhões de
habitantes. Assim, Zurique, na Suíça, com aproximadamente um milhão de habitantes,
desempenha papel importante na rede de fluxos da globalização; é, portanto, uma cidade
global, mas não é uma megacidade. Ao contrário, Daca, capital de Bangladexe37, com cerca de
doze milhões de habitantes, dispõe de escassos objetos técnicos, por isso desempenha papel
pouco expressivo em termos de serviços globais, sejam financeiros, comerciais ou turísticos, e
não é considerada uma cidade global. Verifica-se, portanto, que cidade global é um conceito
qualitativo e megacidade, um conceito quantitativo. Mesmo entre as cidades globais há uma
hierarquia. Há as cidades globais de nível beta: São Paulo, Zurique, Madri, Cidade do México
e Bruxelas, para citar algumas delas; e as cidades globais de nível alfa, que são em menor
número: Nova Iorque, Tóquio, Paris, Londres, Milão, Chicago, Los Angeles, Frankfurt,
Hongue Congue e Cingapura, que são os nós principais da rede de cidades globais.
35 DOLLFUS apud SENE, Eustáquio de. Globalização e Espaço Geográfico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 134. 36 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2004, p. 261-279 passim. 37 Optou-se, sempre que houvesse amparo em documentos impressos ou na rede mundial de computadores, pelo aportuguesamento dos nomes estrangeiros.
34
1.3. A CULTURA, A CIVILIZAÇÃO, A IDENTIDADE E AS CIVILIZAÇÕES
Cultura, assim como sua congênere globalização, padece do mesmo mal: o de
estar na moda. Por si só cultura é termo complexo. Os dicionários, para tentar defini-la,
apresentam, em média, quinze acepções. Pesquisadores já chegaram a transcrever, classificar e
comentar 164 definições diferentes para cultura: descritivas, normativas, psicológicas,
estruturais e histórias38. Esta admirável abundância demonstra quão importante e estratégico é
o papel do conceito. Não obstante sua já nebulosa origem, passou a ser utilizada
indistintamente, como se fosse um curinga que a tudo pode representar. Cultura procede da
língua latina, e tinha por significado lavoura ou cultivo agrícola. Vinculado ao substantivo
cultura havia o verbo colo, colere39, que significava cultivar, habitar, adorar, proteger. Pode-
se, então, vislumbrar o longo caminho que o vocábulo percorreu para abandonar os antigos
significados e atingir as outras noções que contemporaneamente se lhe atribuem.
De um processo completamente material, o cultivo, passou a designar também
o intangível, as questões do espírito. Passou-se a compreendê-la como todo o conhecimento
que uma sociedade tem de si mesma e de outras sociedades, como o conhecimento do
ambiente em que tal sociedade se desenvolve e como o conhecimento de sua própria
existência. Esse processo é, da mesma maneira, a imagem da transição da humanidade da
existência rural para a existência urbana40. Tampouco é lícito ignorar que cultura, em sua
acepção etérea, é sempre social e histórica, e nunca natural. Entretanto, se não é natural como
38 VELHO, Gilberto; CASTRO, Eduardo Viveiros de. O Conceito de Cultura e o Estudo de Sociedades Complexas: uma perspectiva antropológica. Artefato, Rio de Janeiro, n. 1, p. 1-18, jun. 1978. 39 Os verbos latinos devem, primeiro, ser enunciados em sua forma flexionada, sempre na primeira pessoa do singular do tempo presente do modo indicativo, e somente então deve-se expor o infinitivo do verbo. 40 EAGLETON, Terry. A Idéia de Cultura. São Paulo: UNESP, 2005, p. 10.
35
produto, o é na essência, pois é construída pela incessante interação da humanidade com a
natureza: o trabalho. Assim, na ação recíproca entre natureza e cultura, evidencia-se o caráter
dialético entre o natural e o artificial, porquanto é necessário enxergar “o que fazemos ao
mundo e o que o mundo nos faz. [...] Trata-se menos de uma questão de desconstruir a
oposição entre cultura e natureza do que de reconhecer que o termo ‘cultura’ já é uma tal
desconstrução”41.
A humanidade não é mero produto do ambiente. Nem o ambiente é massa
informe que pode ser moldada ao bel-prazer da humanidade. Se a cultura transforma a
natureza é somente a duras penas que o logra, pois vários obstáculos lhe são impostos. A
cultura, entretanto, não é uma potência que somente a humanidade, de forma coletiva e
imediata, pode exercer. Ela também pode ser exercida pelo Estado. Assim é que o Estado
encarna a cultura, tornando-a uma
espécie de pedagogia ética que nos torna aptos para a cidadania política ao liberar o eu
ideal ou coletivo escondido dentro de cada um de nós, um eu que encontra sua
representação suprema no âmbito universal do Estado. [...] O Estado encarna a cultura,
a qual, por sua vez, corporifica nossa humanidade comum42.
Esta é, certamente, ação empreendida pela nação-Estado, no seu intento de
fazer tudo e todos convergirem a si mesma. Igualmente, o Estado-nação vale-se da potência da
cultura ao institucionalizá-la. Há instituições públicas encarregadas de defini-la, de
compreendê-la e de controlá-la. No século XVIII cultura começou a ser utilizada como
sinônimo de civilização, no sentido de um processo geral de progresso intelectual, espiritual e
41 EAGLETON, ibid., p. 11. 42 EAGLETON, ibid., p. 16.
36
material. Essa idéia de civilização equipara costumes e moral, uma vez que, para ser
civilizado, não se permitia comer com as mãos nem decapitar os prisioneiros de guerra.
Assim, cultura e civilização, tomadas indistintamente uma pela outra, estavam plenas do
espírito do Iluminismo e de seu culto ao desenvolvimento secular e progressivo. Todavia,
civilização era em grande medida uma noção francesa que incluía a vida política, econômica e
técnica e também os modos das classes superiores e as conquistas tecnológicas do Ocidente; e
cultura era uma noção germânica que se relacionava mais à vida religiosa, artística e
intelectual. No início do século XIX cultura começa a disjungir-se de civilização e passa a ser
seu antônimo. Como
“cultura”, a palavra “civilização” é em parte descritiva e em parte normativa: ela pode
tanto designar neutramente uma forma de vida (“civilização inca”) como recomendar
implicitamente uma forma de vida por sua humanidade, esclarecimento e refinamento.
O adjetivo “civilizado” faz isso hoje em dia da maneira mais óbvia. Se civilização
significa as artes, a vida urbana, política cívica, tecnologias complexas [...], e se isso é
considerado um avanço em relação ao que havia antes, então “civilização” é
inseparavelmente descritiva e normativa. Significa a vida como a conhecemos, mas
também sugere que ela é superior ao barbarismo. E se civilização não é apenas um
estágio de desenvolvimento em si, mas um estágio que está constantemente evoluindo
dentro de si mesmo, então a palavra mais uma vez unifica fato e valor. Qualquer
estado de coisas existente implica um juízo de valor, já que deve ser logicamente uma
melhora em relação ao que havia antes. Aquilo que é não apenas é correto, mas muito
melhor do que aquilo que era43.
Desenvolvendo-se sob o signo da dualidade, cultura e civilização atravessarão
todo o século XIX imiscuindo-se na disputa entre a tradição e a modernidade. No início do
43 EAGLETON, ibid., p. 20.
37
século XX, ver-se-á a civilização como “abstrata, alienada, fragmentada, mecanicista,
utilitária, escrava de uma crença obtusa no progresso material”44, e tomar-se-á a cultura por
“holística, orgânica, sensível, autotélica, recordável”45. É surpreendente verificar, então, que
cultura se tenha tornado quase o oposto de civilização. Ironicamente, cultura converteu-se em
modo de descrever a forma de vida de povos quase desconhecidos pelos antropólogos. Assim,
poder-se-ia asseverar que os selvagens eram cultos, e os civilizados, não. A cultura passou,
doravante, a ser um “livre e autodeleitante jogo do espírito no qual todas as capacidades
humanas podem ser desinteressadamente estimuladas e desenvolvidas”46. A cultura passaria,
assim, a negar o partidarismo, pois estar comprometido com alguma posição é ser inculto.
Pode-se, então, tomar cultura por diversos aspectos. Ela pode ser compreendida
como modo de vida e como cosmovisão, como arte, como civilidade, como erudição, como
ideal de perfeição. Enfim, pode-se enxergar nela várias faces e não se pode restringi-la a um
único conceito, pois a evolução do vocábulo dá provas de que ela foi compreendida de
diversas maneiras outrora e ainda atualmente o é. Tem-se, entretanto, que evidenciar uma
outra proposição sobre a cultura: segundo essa idéia, não pode haver cultura separada de
religião. Com efeito, “nenhuma cultura apareceu ou se desenvolveu a não ser em conjunto
com uma religião; segundo o ponto de vista do observador, a cultura parecerá ser o produto da
religião; ou a religião, o produto da cultura”47.
Faz-se digna de atenção tal asseveração. Realmente, e assumindo-se como
verdadeira a primeira declaração contida no excerto, é admirável como cultura e religião se
entrelaçam e influenciam-se mutuamente. Dessa forma, a “religião não é efetiva porque diz
44 EAGLETON, ibid., p. 23. 45 EAGLETON, ibid. 46 EAGLETON, ibid., p. 30. 47 ELIOT, T. S. Notas para uma Definição de Cultura. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 26.
38
respeito ao outro mundo, mas porque encarna esse caráter de além-mundo numa forma de vida
prática. Ela pode, assim, fornecer uma ligação entre [...] valores absolutos e vida prática”48.
Basta lançar um breve olhar para a Europa para constatar tal afirmação. A Europa, sob muitos
aspectos, é uma terra singular. Essa singularidade se faz evidente no seu status de continente,
uma vez que, em termos físicos, não passa de uma enorme península da Ásia. Entretanto, Ásia
e Europa tomaram rumos diferentes; cada qual constituiu culturas distintas. Assim, “a Europa
é uma herança ou, mais precisamente, um conjunto de heranças superpostas, formadas pela
atividade das sociedades e pelas idéias inventadas pelos homens”49. Entre as heranças culturais
sobre as quais se erige a Europa, duas, neste momento, chamam mais a atenção: a primeira
delas, coluna sobre a qual desenvolveu-se toda a cultura ocidental, é a cultura greco-romana.
A segunda herança que constitui o âmago da Europa é o cristianismo. A Igreja de Cristo,
estabelecida desde muito cedo na capital do império, sobreviveria não só à queda de Roma,
mas também a todas as convulsões sociais, políticas e econômicas que se sucederiam no
tempo para chegar ao século XXI como a mais longeva de todas as instituições. Foi a
conversão dos bárbaros que lançou o cristianismo no futuro europeu e reforçou o sentido de
unidade dos povos do continente.
Assim, é inegável que a cultura européia seja uma cultura cristã. Incontestável,
igualmente, é a íntima relação entre elas, de tal modo forte que, quando a União Européia
preparava o projeto de seu tratado constitucional, o papa João Paulo II defendeu a herança
religiosa do continente. Em outras palavras, ele exigiu que se reconhecesse o cristianismo
como componente essencial da Europa. Com efeito, a candidatura da Turquia à União
Européia lança um enorme desafio à Europa e à sua cultura cristã, a saber: fazer com que um
48 EAGLETON, op. cit., p. 103. 49 MAGNOLI, Demétrio. União Européia. História e Geopolítica. São Paulo: Moderna, 1994, p. 5.
39
Estado-nação muçulmano integre-se plenamente a uma instituição que, desde a assinatura do
Tratado de Roma vem reafirmando sua identidade cristã. A religião, além de um poderoso
meio de identidade é também um meio eficaz de resistência. Foi na cultura islâmica que os
indonésios buscaram, antes do século XX, força para resistir à dominação holandesa50.
Outrossim, afirmou-se que a cultura é “incapaz, de certo modo, de dizer uma
coisa sem dizer qualquer coisa, a cultura não diz o que quer que seja, eloqüente a ponto
extremo de ser muda”51. Dessa forma, para afastar esse impasse conceitual assumir-se-á
apenas um dentre os conceitos de cultura e com ele trabalhar-se-á daqui por diante. Admite-se,
então, que cultura seja a soma de atitudes, de costumes e de crenças que distingue um grupo
de pessoas, que pode ser uma civilização, uma nação ou uma pequena comunidade, dos
demais grupos.
A cultura, compreendida como soma de atitudes, de costumes e de crenças
constitui um processo social, da existência de uma sociedade que é “um conjunto de
subgrupos cujos modos particulares se distinguem no interior de um modelo comum52”. Ela
“não diz respeito apenas a um conjunto de práticas e concepções, como por exemplo se
poderia dizer da arte. Não é apenas uma parte da vida social como por exemplo se poderia
falar da religião”53. Assim, cultura é uma construção histórica, independente de leis físicas ou
de leis biológicas. É resultado de processos seculares de trabalho e de produção, de lutas
sociais, conseqüência do modo como o Estado-nação construiu-se. A cultura é, então, mais do
que a língua, do que os costumes e do que as tradições de um grupo. É uma construção
histórica, dinâmica e coletiva. Tão histórica que é por meio do processo histórico de um
50 RAFFESTIN, Claude. Por Uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993, p. 126. 51 EAGLETON, op. cit., p. 33. 52 ORTIZ, op. cit., p. 32. 53 SANTOS, José Luiz dos. O Que É Cultura. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 44.
40
Estado-nação que se pode compreender as particularidades de sua cultura, e tão coletiva que
somente ganha força quando é coletivamente reconhecida e assumida. Com efeito, a cultura
inerente a um dado grupo que compõe, com outros grupos, um Estado-nação, nunca será
assumida pelo Estado-nação integralmente porque os outros grupos se recusarão a fazê-lo.
Para compreender melhor a noção de cultura nacional, tem-se que introduzir a idéia da
dominância. Assim, no caso de coexistência, dentro de um mesmo território, politicamente
delimitado, de culturas distintas, mas com algum grau de similitude, é primordial admitir que
inexiste homogeneidade e examinar as relações entre essas culturas. Faz-se necessário ainda
especular se há predomínio de uma sobre as outras e como e quando se dá essa
preponderância. Por conseguinte, mesmo dentro de um único Estado-nação, há divergências e
contradições, mas a cultura nacional, que é uma comunidade imaginada, contribui para unir as
diferenças em uma única identidade.
A cultura, entretanto, é incompleta no sentido de proporcionar uma identidade
nacional, uma vez que necessita do Estado para realizar seu potencial. Ela necessita da força
política unificadora do Estado para realizar-se plenamente. É por isso que, para o
nacionalismo romântico, apoiado no princípio tacanho da autodeterminação dos povos, toda
população étnica, arrogando a si o status de nação, teria direito ao seu próprio Estado.
Segundo esse princípio, então, a Espanha deveria desmembrar-se em Galícia, Catalunha e
Andaluzia; os bascos tomariam território tanto da Espanha quanto da França, que teria de
ceder ainda a Córsega, a Bretanha e talvez a Provença; a Bélgica dividir-se-ia entre Flandres e
Valônia; a Itália e a Alemanha espatifar-se-iam. É verdade, no entanto, que grande parte dos
conflitos e da destruição modernos advêm do fato de dois ou mais grupos culturais muito
41
distintos estarem reunidos sob um único Estado, o que os faz disputarem tenazmente a
soberania sobre o território.
Mesmo sendo a cultura um devir, um processo histórico, ela não se realiza
separada de um território, que é
um produto socialmente produzido, um resultado histórico da relação de um grupo
humano com o espaço que o abriga. Tal característica diferencia esse conceito em
comparação com outros comumente utilizados pela geografia (sic) (como região ou
paisagem), que podem manifestar-se adjetivados por fenômenos naturais. O território
é, portanto, uma expressão da relação sociedade/espaço, sendo impossível de ser
pensado sem o recurso aos processos sociais54.
Infere-se, então, que espaço e território não são termos equivalentes. Mesmo
assim, os geógrafos, durante muito tempo, utilizaram-nos sem critério nenhum, criando
grandes confusões em suas análises e privando-se de distinções úteis e necessárias55.
Efetivamente, não há cultura sem território. As culturas se materializam em
suas territorialidades56. Neste momento faz-se imprescindível realizar análise acerca de Israel.
Os judeus consideram a região em que atualmente situa-se Israel como sua terra santa há
aproximadamente 3000 anos. Houve ali uma série de reinos judaicos por mais de 1000 anos,
até que os judeus sucumbissem aos persas e depois, sucessivamente, passassem ao domínio
dos gregos, dos romanos, dos bizantinos e, finalmente, dos turcos. Foi em 638 da era cristã
que os muçulmanos dominaram definitivamente a área, e em 1517 incorporaram-na ao
Império Otomano. Com o fim da Primeira Grande Guerra e a desintegração do Império
54 MORAES, Antonio Carlos Robert. Bases da Formação Territorial do Brasil: o território colonial brasileiro no “longo” século XVI. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 18. 55 RAFFESTIN, op. cit., p. 143. 56 ORTIZ, op. cit., p. 72.
42
Otomano, a província da Palestina, que compreendia então o território que pertencera a Israel,
passou a ser administrada pelo Reino Unido.
Em 1896 inicia-se o movimento sionista. Esse movimento propugnava a
criação de um Estado judaico como única forma de fazer cessar o anti-semitismo existente.
Assim, em 1917, Londres promulga a Declaração Balfour, em que o Reino Unido se
comprometia a ceder uma parte do território da Palestina para a instituição de um Estado
judaico. França, Itália e Estados Unidos, aliados do Reino Unido na ocasião, ratificaram a
declaração. Ao longo de toda a Segunda Grande Guerra, o número de imigrantes judeus
aumentou consideravelmente na Palestina, embora as determinações britânicas impusessem
limites a essa imigração. Ao término da Segunda Grande Guerra havia inúmeros refugiados e
sobreviventes judeus que desejavam estabelecer-se na Palestina. Com os crescentes conflitos
entre árabes, judeus e britânicos, a ONU decidiu votar projeto de partilha da Palestina. O
projeto foi aprovado e determinou-se a divisão do território entre árabes e judeus. Então, em
14 de maio de 1948, com intensa oposição árabe, David Ben Gurion assinou a Declaração de
Independência do Estado de Israel.
Poder-se-ia indagar, então, como foi possível para os judeus não somente
manter sua cultura, mas fazê-la florescer mesmo alijados do território pelo qual nutriam
profundo zelo. A resposta deve ser encontrada na religião e na cultura judaicas, que se
entrelaçam e se confundem constituindo, muitas vezes, um todo indivisível que fundamenta a
identidade dos judeus. Dessa maneira, ainda que não pudessem controlar o território que
consideravam seu, os judeus já haviam criado sua cultura com base nele quando ainda o
controlavam, e obtiveram êxito ao não permitir que ela esmorecesse. Ademais, eles sempre
sustentaram uma forte relação com a cidade de Jerusalém, para eles uma cidade santa, plena
43
de importância e de significado religioso e cultural. Também os muçulmanos mantêm uma
relação desse tipo, que se pode denominar extraterritorial, com a cidade de Meca, situada na
Arábia Saudita. Mesmo espalhados ao redor do globo e detendo grande extensão territorial, os
muçulmanos necessitam de um território comum, simbolizado por Meca. Há, entretanto, uma
diferença entre a extraterritorialidade judaica e a extraterritorialidade muçulmana. Os judeus,
por um longo período, perderam o controle sobre Jerusalém, ao passo que os muçulmanos
sempre controlaram Meca. Ainda que esteja sob domínio muçulmano, Meca desempenha o
papel proeminente que a extraterritorialidade lhe proporciona ao fazer convergir a si
muçulmanos do mundo inteiro e ao simbolizar a união deles. Jerusalém está para os judeus
assim como Meca está para os muçulmanos. As duas cidades, embora com a diferença já
explicitada, exercem a mesma função extraterritorial. Vê-se, desse modo, que a cultura e a
identidade são conceitos e idéias poderosos. A tal ponto responsáveis pela manutenção da
unidade judaica e pela extraterritorialidade tanto judaica quanto muçulmana.
Dessa forma é possível relacionar cultura e nação. Se os Estados-nação são
invenções políticas da história moderna e se cultura é um processo social, pode-se falar em
cultura nacional, que é produto e dimensão de um processo histórico singular. A cultura
nacional, então, é composta
não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma
cultura nacional é um “discurso” – um modo de construir sentidos que influencia e
organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos [...]. As
culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais
podemos nos “identificar”, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas
44
estórias (sic) que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente
com seu passado e imagens que dela são construídas57.
A identidade, entretanto, é ainda conceito demasiadamente complexo, pouco
desenvolvido e pouco compreendido pela ciência social contemporânea58. Sabe-se que ela é
verdadeiramente forjada, ou seja, é construída ao longo do tempo, por meio de processos
inconscientes. Isto significa que ela não é inata, que ela inexiste na consciência no momento
do nascimento do indivíduo. Está aí seu vínculo com a cultura como processo histórico. Dessa
forma, a identidade não é algo acabado, mas igualmente à cultura, é um processo. Os
significados coletivos compostos por cores, imagens, sons, frases axiomáticas e outros
símbolos importantes se vão construindo ao longo de várias gerações. São as disputas em
torno da criação do hino, da criação da bandeira, da seleção dos heróis da pátria, da defesa das
fronteiras que configuram o processo identitário. Assim é que “a identidade surge não tanto da
plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de ‘uma falta’ de
inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso ‘exterior’, pelas formas através das quais nós
imaginamos ser vistos por ‘outros’”59.
A construção da identidade, sempre dominada pela idéia da comparação, pela
busca incessante da diferença, depende de um paradigma de valores que vai revelar quem é
melhor e quem é pior, pois somente assim pode-se estabelecer uma relação qualitativa, que
muitas vezes possui um componente quantitativo, de superioridade ou de inferioridade. A
comparação entre as culturas nacionais, então, somente pode haver mundialmente, uma vez
que devem comparar-se a identidade de um Estado-nação com a identidade de outros,
57 HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 5. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 51. 58 HALL, ibid., p. 8. 59 HALL, ibid., p. 38.
45
localizados em outros territórios e que, comumente, possuem outros idiomas. Realmente, a
identidade que tem dominado a contemporaneidade é a identidade nacional, calcada na cultura
nacional. A identidade nacional tende a sobrepor-se a outras formas, mais particulares, de
identificação cultural. Politicamente tende a ser insignificante ser inglês ou mexicano ou
tailandês, mas culturalmente isso faz toda a diferença. Pertencer a uma nação é sumamente
importante, tanto que “as pessoas muitas vezes estão preparadas para matar ou morrer por
essa questão60”. Essa preferência por uma identidade cultural a outra é arracional61, ao passo
que escolher entre pertencer a uma ditadura ou a uma democracia não o é62.
Assim, se a identidade é constantemente assediada pela torpe idéia da
comparação, as novas tecnologias que engendram meios de comunicação cada vez mais
sofisticados e velozes são, seguramente, o meio que possibilita a comparação. Cada “povo
concentra-se agora em si mesmo, posicionando-se contra os outros em sua linguagem, suas
artes, sua literatura, sua filosofia, sua civilização, sua ‘cultura’”63. Os meios de comunicação,
entretanto, possuem outra especificidade, qual seja, a de engendrar identidades. Com efeito,
primeiramente a imprensa escrita e depois o rádio e a televisão infundem a idéia de todo entre
os habitantes de um Estado-nação. Com a comunicação possibilitada, facilitada e imediata,
torna-se possível aos indivíduos compreender a real dimensão do seu Estado, bem como
possuírem a sensação de que estão unidos uns aos outros, uma vez que os fatos que sucedem
em um dado lugar logo se fazem conhecer em todos os outros.
É mediante os meios de comunicação também que se poderia construir a idéia
do patrimônio público comum. Bens que pertenceriam a todos os grupos constituintes do
60 EAGLETON, op. cit., p. 89. 61 Termo forjado por EAGLETON para significar aquilo que não é nem a favor nem contra a racionalidade. 62 EAGLETON, ibid. 63 BENDA apud EAGLETON, Terry. A Idéia de Cultura. São Paulo: UNESP, 2005, p. 60.
46
Estado-nação, independentemente de classe social ou de raça64. Há, amplamente disseminada,
uma idéia que se julga indefectível e inerentemente boa, a idéia do relativismo cultural.
Realmente, uma vez que a construção da identidade se faz mediante a diferença e a
comparação, não é abstendo-se de realizar um juízo de valor acerca do outro que um indivíduo
pode compreendê-lo, pois então não haveria o que comparar.
Tem-se, então, não somente a comparação cultural, que coteja símbolos,
cosmovisão e modos diferentes de realizar o mesmo intento, mas também a comparação que
trama a percepção da opulência e da penúria. Faz-se importante evidenciar que as identidades
não são mutuamente excludentes. Um indivíduo pode possuir várias identidades, mas uma
hierarquia entre elas estabelecer-se-á, necessariamente. Assim, a identidade que tem
predominado contemporaneamente é a identidade nacional, a despeito de tantas outras que a
um indivíduo são inerentes. Com a emersão da nação-Estado e com sua ulterior transformação
no Estado-nação, a identidade nacional tornou-se a mais poderosa identidade a nortear os
indivíduos. Pode-se afirmar, então, que a identidade nacional é a fidelidade pessoal que se
torna lealdade coletiva e que são territorialmente determinadas.
Prova cabal da força com que surge a identidade nacional foi a infrutífera
tentativa da Internacional Socialista de fazer emergir o internacionalismo operário, uma
identidade baseada no simples condição de operário e desprovida de território, que se
colocaria acima da identidade nacional. Contudo, e embora o internacionalismo operário tenha
atraído milhares de pessoas, o apego à nação e à tradição foi maior. Efetivamente, instituir o
internacionalismo operário não seria tarefa simples, principalmente porque era eivado de um
cosmopolitismo ingênuo que dava mais importância aos problemas internacionais do que aos
64 WASSERMAN, Claudia. Identidade: Conceito, Teoria e História. Ágora, Santa Cruz do Sul, v. 7, n. 2, p. 7-19, jul./dez. 2001.
47
problemas locais e específicos do operariado. O internacionalismo operário falhou
retumbantemente durante a Primeira Grande Guerra, quando os operários alemães foram
conclamados a não aderirem ao esforço de guerra alemão e, mesmo assim, lançaram-se à
guerra65. Foi a vitória da identidade nacional e de tudo o que ela assume para si e representa: a
nação, o povo, o território, as glórias passadas e as conquistas futuras, sobre uma identidade
incipiente e débil que acabou por ser relegada.
Contemporaneamente tem ganhado força uma outra identidade. Pode-se
enxergá-la como uma continuação da identidade nacional, como um seu prolongamento: é a
identidade civilizacional. Já se expôs que civilização, modernamente, é a crença no progresso
social, político, artístico, econômico e científico, no desenvolvimento mecanicista
desenfreado, nos hábitos requintados e polidos. É, então, o oposto de barbárie, equipara
costumes e moral e pode, como de fato o é, ser utilizada como pretexto para segregar: os que
pertencem à civilização e, portanto, são civilizados e os que não pertencem à civilização e, por
conseguinte, são bárbaros. Entretanto, civilizações, no plural, ganha um significado distinto
desse que se atribui a civilização. As civilizações seriam, então, grandes grupamentos
humanos com cultura comum. É preciso levar em consideração o conceito de cultura que se
assumiu previamente. Assim, a identidade civilizacional tem a potência de ultrapassar a
identidade nacional, fazendo convergirem a um único grupamento vários Estados-nação.
No devir de sua existência, a cultura não engendra a identidade somente dentro
das fronteiras políticas de um Estado-nação. Ela extravasa essas fronteiras e colige todos os
Estados-nação que compartilhem dessa cultura comum. As sociedades integrantes desse
grande território cultural, embora tenham suas particularidades, espelham-se e reconhecem-se
65 WASSERMAN, ibid.
48
em uma entidade maior, superior, que é o último limite identitário aquém do considerar-se
humano: as civilizações. Engendradas durante toda a história humana, as civilizações
sucederam-se umas às outras, nascendo, desenvolvendo-se e morrendo. Legaram, no entanto,
suas marcas, suas singularidades às outras que as sucederam no tempo e no espaço. É
impossível pensar no desenvolvimento da humanidade sem considerar as civilizações66.
Na contemporaneidade consideram-se, em um relativo consenso entre
pesquisadores, oito civilizações: a ocidental, a ortodoxa, a islâmica, a africana, a sínica, a
japonesa, a hindu e a latino-americana. Entretanto, considerar-se-ão, neste trabalho, apenas
sete civilizações, pois a civilização latino-americana será incorporada à civilização ocidental,
da qual se originou e hauriu sua base e com a qual mantém admirável singularidade, que não
se dobra ao peso do argumento contrário, qual seja, o de que a América Latina não conheceu o
protestantismo como o conheceram as outras partes da civilização ocidental. Efetivamente,
engana-se quem concebe “a América Latina como uma cultura à parte do Ocidente e, dessa
forma, como um inimigo em potencial”67. Faz-se necessário esclarecer ainda que as
civilizações não são organizações políticas. Elas não possuem um comando único, um poder
central. São um conjunto de Estados-nação que compartilham de uma cultura comum e que
tendem a unir-se. Dessa forma, pode-se observar a territorialização das civilizações
contemporâneas:
66 HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997, p. 44. 67 SCHELP, Diogo. Choque de Culturas. Veja, São Paulo, v. 1942, n. 5, p. 64-70, fev. 2006.
49
50
1.3.1. AS CIVILIZAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
De acordo com o que já se expôs, sete são as civilizações contemporâneas. É
preciso, no entanto, refletir sobre a possível civilização judaica. A maioria dos estudiosos nem
sequer menciona uma civilização judaica68. Em termos populacionais a civilização judaica não
seria, obviamente, importante. Historicamente os judeus estiveram associados tanto ao
cristianismo quanto ao islamismo, e preservaram sua identidade no seio da civilização
ocidental, da civilização ortodoxa e da civilização islâmica. Há judeus que se identificam
totalmente com o judaísmo e com Israel, e há aqueles que se identificam apenas nominalmente
com ele, identificando-se muito mais com a civilização no interior da qual vivem,
principalmente se for a civilização ocidental69. Proceder-se-á, então, ao estudo mais detalhado
das sete civilizações contemporâneas:
1.3.1.1. A Civilização Ocidental
A civilização ocidental possui características particulares que a distinguem de
todas as outras civilizações. Essas características são:
• O legado clássico: o Ocidente tem por base a cultura greco-romana, também
denominada clássica. A filosofia grega, originária da vida contemplativa dos gregos, o
direito romano, surgido dos aspectos práticos em que se detinham os romanos, o latim
e o cristianismo formaram o alicerce sobre o qual erigiu-se o Ocidente. A civilização
68 HUNTINGTON, op. cit., p. 54 69 HUNTINGTON, ibid. p. 55.
51
islâmica e a civilização ortodoxa também herdaram a cultura greco-romana, mas em
grau muito menor do que o Ocidente70.
• O cristianismo: o cristianismo, primeiramente catolicismo e ulteriormente catolicismo
e protestantismo conferiram senso de unidade e de identidade à civilização ocidental.
Com efeito, durante todo o primeiro milênio houve somente uma religião cristã, o
catolicismo. Com o Grande Cisma de 1054, quando, por disputas envolvendo a
natureza do Espírito Santo, a Igreja de Constantinopla separou-se da Igreja de Roma, a
cristandade cindiu-se profundamente pela primeira vez. Posteriormente
Constantinopla, dominada pelos muçulmanos, perderia a primazia política para a
Rússia, que constituiria, assim, o núcleo da civilização ortodoxa. Mesmo com a perda
da primazia política, o chefe espiritual de todas as igrejas ortodoxas, uma vez que há
14 igrejas ortodoxas autocéfalas, continuou sendo o patriarca ecumênico de
Constantinopla, a atual Istambul, localizada na Turquia. Ainda, foi pelo ouro e pela
prata, mas também por Deus que a civilização ocidental lançou-se, no século XVI, à
conquista do mundo. A Reforma Protestante, movimento que se iniciou no século XVI
com uma série de tentativas de reformar a Igreja Católica, mas que acabou por dividi-
la e por fazer surgir várias seitas protestantes provocou uma reação católica conhecida
como Contra-Reforma, movimento de reafirmação dos princípios, da doutrina e da
estrutura da Igreja Católica e de combate à expansão do protestantismo. É nesse
contexto de conflito religioso que tanto católicos quanto protestantes empenham-se por
garantir cada qual seu domínio nas terras que iam sendo descobertas.
70 HUNTINGTON, ibid., p. 83.
52
• A separação entre a autoridade espiritual e a autoridade temporal: durante toda a
história do Ocidente, a religião se manteve separada do Estado. É verdade que nem
sempre de forma muito nítida, mas nunca houve a instituição de uma teocracia.
Excetuando-se a civilização ocidental, a única outra civilização em que religião e
Estado estiveram sempre separados é a civilização hindu. Assim, “no Islã, Deus é
César; na China e no Japão, César é Deus; na Ortodoxia, Deus é o sócio menor de
César”71. No Ocidente, a divisão da autoridade contribuiu enormemente para o
desenvolvimento da liberdade.
• O império da lei: a noção de que a lei é um elemento essencial para a vida em
sociedade adveio dos romanos. Mesmo durante o Absolutismo, quando o império da
lei foi mais violado do que respeitado, prevaleceu a idéia de que todos deveriam
subordinar-se a algum controle externo. Nas demais civilizações, o império da lei,
quando houve, não se constituiu de maneira vigorosa ou por um longo período.
• O pluralismo social: na civilização ocidental, já no século VI, mas principalmente no
século VII, ocorreu a ascensão de diversos grupos autônomos que não estavam
baseados em relações de sangue ou em relações de casamento. Eram as associações,
particularmente de caráter religioso; essas associações posteriormente expandiram-se e
diversificaram-se. Ao pluralismo associativo sucedeu-lhe o pluralismo de classe. Em
todo o Ocidente, havia uma aristocracia relativamente forte e autônoma, um
campesinato considerável e uma pequena, mas importante, classe de comerciantes e de
mercadores. Esse pluralismo ocidental contrasta fortemente com a pobreza da
71 HUNTINGTON, ibid., p. 84.
53
sociedade civil, com a debilidade da aristocracia e com a força dos impérios
burocráticos centralizados que dominaram a Rússia, a China e a Turquia.
• Os corpos representativos: o pluralismo social logo fez surgirem no Ocidente
assembléias, parlamentos ou outras instituições que representassem os interesses da
aristocracia, do clero, dos mercadores e dos comerciantes ou de outros grupos. Foram
essas instituições que evoluíram e deram origem às formas de representação da
democracia moderna. O mais antigo parlamento do mundo ainda a funcionar é o
Althing, o parlamento da Islândia, fundado em 910. Nenhuma outra civilização
contemporânea possui um legado de corpos representativos que contem, em média,
1000 anos.
• O individualismo: foi também no Ocidente que a noção de individualismo mais
fortemente surgiu. Seguiu-se a ela uma tradição de direitos e de liberdades individuais
única entre as civilizações. O individualismo desenvolveu-se durante o século XIV e o
século XV, e a aceitação do direito de escolha individual impôs-se no Ocidente no
século XVII. Em algumas civilizações a noção de coletivismo ainda prepondera sobre
a idéia de individualismo.
É importante esclarecer que essas características ora apresentadas não foram
exclusivas da civilização ocidental. Elas estiveram presentes também em outras civilizações e
algumas delas não fizeram sempre parte do Ocidente, havendo períodos, por exemplo, em que
o império da lei não foi respeitado. Contudo, o que as torna peculiares ao Ocidente e o que fez
com que o Ocidente se constituísse tal qual é, foi a combinação delas. Essas concepções,
54
práticas e instituições estiveram mais presentes na civilização ocidental do que em qualquer
outra.
1.3.1.2. A Civilização Ortodoxa A civilização ortodoxa tem a Rússia como centro. Desde há muito tempo as
terras orientais da Europa distinguiam-se do restante do continente por motivos políticos e
religiosos. Efetivamente, a civilização ortodoxa construiu um aparato político burocrático e
despótico e expôs-se limitadamente ao Renascimento e ao Iluminismo. Com relação à religião,
os ritos orientais diferenciaram-se do rito latino já nos primeiros séculos do cristianismo,
contudo, ainda perdurava a submissão ao bispo de Roma. Com o advento do Grande Cisma de
1054, porém, constituíram-se duas igrejas separadas: a Igreja Católica Apostólica Romana,
centrada em Roma, de rito latino majoritário, mas também reunindo vários ritos orientais cujos
patriarcas mantiveram-se fiéis ao papa, e a Igreja Católica Apostólica Ortodoxa,
espiritualmente conduzida pelo patriarca ecumênico de Constantinopla mas, de fato,
governada pelo patriarca de Moscou e com liturgia oriental. A primazia política do patriarcado
de Moscou, embora os próprios ortodoxos neguem que haja realmente tal primazia, deve-se ao
fato de Constantinopla, conhecida como a Segunda Roma, ter caído nas mãos dos
muçulmanos. Os russos, então, passaram a chamar Moscou de Terceira Roma, porque,
segundo a crença, manteria intactas a sagrada tradição e a pureza da fé.
À primeira vista, entre as razões que engendraram a civilização ortodoxa,
sobressaem as de feição política. Evidentemente que elas foram decisivas na constituição da
civilização ortodoxa. Contudo, seria negligência menosprezar a força que a religião deteve
sobre a Rússia e as demais regiões que abraçaram a ortodoxia. Com efeito, a Igreja Ortodoxa
55
influenciaria as artes e a literatura. Se, no Ocidente, grandes obras de arte foram realizadas
tendo como fonte de inspiração a religião, do mesmo modo aconteceu nos domínios
ortodoxos, em que se desenvolveram uma belíssima liturgia e uma fantástica iconografia.
1.3.1.3. A Civilização Africana Poder-se-ia imaginar, ao vislumbrar a fragmentada África, que ela não constitui
uma civilização. É verdade que o norte da África faz parte da civilização islâmica e que ela foi
retalhada e posteriormente reorganizada ao bel-prazer dos colonizadores europeus que nela
introduziram características da civilização ocidental. Apesar de o cristianismo ter sido
introduzido e de ter se disseminado por toda a África subsaariana, o animismo72 ainda
permanece forte em muitos países. É importante considerar que os africanos estão
desenvolvendo cada vez mais a noção de uma identidade africana73, e o núcleo dessa
civilização que vem ganhando força é a África do Sul.
1.3.1.4. A Civilização Hindu Sabe-se que houve, no subcontinente indiano, sucessivas civilizações que datam
de pelo menos 1500 antes da era cristã. A mais recente delas chama-se civilização hindu. Nela
o hinduísmo ocupa posição central. Com efeito, “mais do que uma religião ou um sistema
social, ele é o núcleo da civilização indiana (sic)74. Seria desatenção relevar a importância do
hinduísmo como sistema social. Deveras, com suas castas e subcastas, o hinduísmo marcou
72 O animismo é uma manifestação religiosa em que se atribuem aos astros, aos fenômenos meteorológicos, aos animais, às plantas e até mesmo a acidentes geográficos, como montanhas e rios, um princípio vital e pessoal. Assim, todos esses elementos teriam emoções, desejos e inteligência. 73 HUNTINGTON, ibid., p. 54. 74 BRAUDEL, apud HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997, p. 51.
56
indelevelmente a civilização hindu, centrada na Índia, e, embora desde muito cedo estivesse
apartado da política, engendrou uma sociedade em que a mobilidade social é praticamente
nula. Apesar das várias leis criadas na tentativa de eliminar ou amenizar os problemas que o
sistema de castas acarreta, tudo demonstrou-se impotente diante do peso da tradição do
hinduísmo, e assim o sistema de castas subsiste.
1.3.1.5. A Civilização Sínica A existência da civilização sínica remonta a pelo menos 1500 anos antes da era
cristã. A civilização sínica, cujo centro é a China, baseia-se amplamente no confucionismo.
Ele não é propriamente uma religião, mas um sistema filosófico criado pelo filósofo e teórico
político Confúcio. Entre as preocupações do confucionismo estão a moral, a política, a
pedagogia e a própria religião. Esse sistema filosófico, desde antanho, obteve êxito entre os
imperadores chineses e logrou estabelecer-se na corte. O passo seguinte, expandir-se e seduzir
o restante da sociedade, não tardou a cumprir-se. Entretanto, embora o confucionismo seja um
dos principais componentes da civilização sínica, ela é mais do que ele, e transcende as
fronteiras do Estado chinês, seja por haver comunidades chinesas grandes e atuantes em vários
Estados do Sudeste Asiático, seja por esses mesmos Estados haverem, há muito tempo,
assimilado a cultura emanada da China.
1.3.1.6. A Civilização Japonesa A civilização japonesa foi fruto da civilização sínica e emergiu no período
compreendido entre 100 e 400 da era cristã. Da civilização sínica ela recebeu, principalmente,
o budismo e os ideogramas, símbolos gráficos utilizados para representar uma palavra ou um
57
conceito abstrato. Contudo, o confucionismo, que tão fortemente influenciou a civilização
sínica, não logrou estabelecer-se definitivamente no Japão. É interessante notar também que a
civilização japonesa é a única das civilizações contemporâneas que possui somente um
Estado. Em outras palavras, a civilização japonesa coincide totalmente com as fronteiras do
Estado japonês. Essa particularidade confere ao Japão um certo grau de isolamento quando
surgem questões de alinhamento civilizacional, uma vez que, por não haver outros Estados
pertencentes à civilização japonesa, o Japão não possui a quem coligar-se.
1.3.1.7. A Civilização Islâmica A civilização islâmica originou-se na península Arábica, durante o século VII
da era cristã. Disseminou-se rapidamente para o norte da África, para a península Ibérica, para
a Ásia Central, para o subcontinente Indiano e até mesmo para o Sudeste Asiático. De todas
essas áreas, a única em que a civilização islâmica não exerce mais influência é a península
Ibérica, pois espanhóis e portugueses reconquistaram-na totalmente dos muçulmanos, em uma
série de conflitos armados que tiveram início em 718 e encerraram-se em 1492 com a
expulsão dos muçulmanos. Essa luta secular recebe o nome de Reconquista. O grande fator de
aglutinação da civilização islâmica é o islamismo. Pode-se notar que a civilização islâmica e o
islamismo surgem ambos no século VII, e que a partir de então ele influenciaria sobremaneira
a nascente civilização.
O islamismo se relaciona com todos os aspectos da atividade humana, sejam
políticos, econômicos, sociais, legais, militares e até mesmo interpessoais. A consagrada
separação ocidental entre o Estado e a religião é simplesmente alheia ao islamismo.
Efetivamente, a maior teocracia do mundo é o Irã, em que a religião dita os caminhos do
58
Estado. Contudo, não se deve imaginar que o islamismo, embora seja uma poderosa força
aglutinadora, seja também homogeneizador. Ou que todos os árabes sejam muçulmanos. Com
efeito, há árabes que não são muçulmanos e há muçulmanos que não são árabes. Muitos
libaneses, que são árabes, são cristãos, e a maioria dos iranianos, que são persas, é
muçulmana.
Uma importante característica da civilização islâmica é o fato de não possuir
um centro. Haveria três possíveis centros para ela: a Arábia Saudita, o Irã e a Turquia. Porém,
os três padecem de problemas que atrapalhariam uma eventual liderança. A Arábia Saudita,
embora riquíssima em petróleo e protetora da cidade sagrada de Meca não é suficientemente
populosa e está muito ligada ao Ocidente por motivos econômicos e políticos. Tanto o Irã
quanto a Turquia atendem aos principais requisitos para ser o centro de uma civilização.
Possuem grande território, são populosos e dispõem de poderosas forças militares. Contudo, o
Irã é xiita75, e a imensa maioria dos muçulmanos, em torno de 90% deles, é composta por
sunitas, o que tornaria problemática a liderança iraniana. A Turquia, ao contrário, é sunita,
mas iniciou, nas primeiras décadas do século XX, um processo de ocidentalização que acabou
por desviar sua atenção para a civilização ocidental, mais precisamente para a Europa, em
detrimento da civilização islâmica. Prova disto são as constantes tentativas realizadas por
Ancara para tornar a Turquia membro da União Européia.
75 O islamismo possui dois grandes ramos, mas não apenas, o ramo xiita e o ramo sunita. A dissensão ocorreu quando Maomé morreu e não deixou claro quem o deveria suceder. Depois de Maomé houve três califas, Abu Becre, Omar e Otomão, sem que a autoridade de nenhum deles fosse contestada. Com a morte de Otomão iniciou-se a disputa pela sucessão: havia os que desejavam que Ali, primo e genro de Maomé, pois era casado com sua filha Fátima, fosse o novo califa e havia os que queriam que um primo de Otomão assumisse o califado. Os xiitas são os partidários de Ali (em transcrição do árabe, shiat Ali). Os sunitas (sunna significa a prática exercida por Maomé) são os que adotam posição menos radical do que a dos xiitas.
59
2. AS FRONTEIRAS
Desde outrora as fronteiras evoluíram consideravelmente sem, no entanto,
nunca desaparecerem. É verdade que sua popularidade tem oscilado constantemente, pois é
possível verificar fases em que enfrenta relativo esquecimento, e outras em que parece
definitivamente estar em voga. O Estado territorial guindou pela primeira vez o termo
fronteira, e junto com ele a categoria fronteira, a uma posição de real importância, pois
fundamentava-se inteiramente em suas próprias fronteiras, uma vez que era delas que extraia
sua soberania. De fato, o que há verdadeiramente são as fronteiras, e praticamente nunca a
fronteira, porquanto não se pode conceber uma fronteira isolada, mas umas em relação às
outras. Evidentemente que antes do surgimento do Estado territorial já havia a preocupação
com as fronteiras. Basta pensar no Império Chinês que, tencionando conter o avanço das
hordas vindas das estepes do norte, erigiu uma muralha. Primeiramente utilizaram-se barro e
terra. Mas esse material revelou-se incapaz de deter os invasores. Muito tempo depois os
governantes chineses consideraram por bem iniciar a construção de outra muralha, desta vez
construída de alvenaria. É essa segunda muralha que se conhece modernamente, mas que
tampouco revelou-se capaz de impedir a invasão nômade.
Desses acontecimentos é possível constatar dois fatos: o primeiro evidencia que
as fronteiras também são construídas, que elas também podem ser artificiais. Para os chineses
uma obra de engenharia militar passou a confundir-se com a própria noção de fronteira. As
muralhas construídas por eles serviram muito bem a um dos propósitos pelos quais foram
erguidas, o de dividir, de estabelecer uma segmentação: ao norte as estepes dominadas pelos
bárbaros, e ao sul o território controlado pelos soberanos chineses. Contudo, não eram
60
inexpugnáveis e, conseqüentemente, não cumpriram o outro propósito, o de conter o inimigo.
Surge então o segundo fato relacionado à ineficiência das muralhas chinesas: a superioridade
bélica da mobilidade contra a rigidez. A agilidade e a mobilidade dos ginetes bárbaros revelar-
se-iam superiores à força rígida das muralhas. Modernamente pôde-se verificar novamente a
ineficiência da rigidez frente à mobilidade na Segunda Grande Guerra, em que a Linha
Maginot revelou-se anódina.
A Linha Maginot foi uma linha de fortificações e de defesas construída pela
França ao longo de suas fronteiras com a Alemanha e com a Itália. A construção durou de
1930 a 1936. Embora muitas vezes o termo Linha Maginot designe todo o sistema de
fortificações, as defesas contra a Itália são mais comumente denominadas Linha Alpina. Foi,
entretanto, o planejamento de guerra com relação à linha de defesa e não exatamente ela que
falhou. Os alemães, em vez de atacarem direta e maciçamente a linha, contornaram-na, uma
vez que ela não alcançava o mar do Norte, e invadiram a França. Os poucos pontos da linha
que foram atacados pelos alemães resistiram bem. A neutralidade da Bélgica, que
supostamente seria respeitada pela Alemanha, contribuiu para que o planejamento de guerra
francês falhasse, pois não se acreditava em uma invasão alemã à França por meio do território
belga.
Ainda com relação ao Império Chinês, poder-se-ia argumentar que sem a
construção das muralhas o florescente império ter-se-ia extinguido haveria muito tempo. A
verdadeira virtude das muralhas, no entanto, foi propiciar a unificação do império76. Quando o
Império Chinês sucumbiu aos invasores vindos do norte, previu-se a transitoriedade do
domínio bárbaro sobre o império, dada sua superioridade econômica, cultural e demográfica.
76 MARTIN, André Roberto. Fronteiras e Nações. 4. ed. São Paulo: Contexto, 1998, p. 26.
61
Nota-se a superioridade da agricultura sobre o pastoreio, do sedentarismo sobre o nomadismo,
idéia que contraria a noção bélica da superioridade da mobilidade contra a rigidez.
Modernamente esse tipo de oposição manifesta-se no “conflito entre uma razão defensiva que
procura dificultar o acesso às fronteiras, e outra mercantil que, ao contrário, pretende facilitar
ao máximo os contatos com os vizinhos”77.
Também o Império Romano preocupava-se com suas fronteiras. Mas não eram
elas exatamente que o definiam, uma vez que somente as havia por necessidades militares, ao
marcar o final de uma etapa de invasão ou barrar a penetração inimiga. O Império Romano,
durante muito tempo, expandiu-se indefinidamente, conquistando e incorporando territórios.
Dessa forma compreende-se que as fronteiras do império estavam sempre em mutação,
constantemente sendo deslocadas, na maioria das vezes para além, em um movimento de
expansão; algumas vezes para aquém, em um movimento de retração provocado pelos
inimigos. Um império cujas fronteiras eram tão inconstantes não podia definir-se,
evidentemente, por elas. O que garantia a sobrevivência do império era seu expansionismo e o
domínio que exercia sobre os territórios conquistados. Efetivamente, quando a pressão bárbara
ao norte, no século III, tornou-se forte demais, o império abandonou a Armênia, a Dácia e a
Mesopotâmia, para concentrar-se precisamente nos pontos em que os bárbaros poderiam
ultrapassar as fronteiras e invadir o império. Nem por alterar de maneira significativa suas
fronteiras ele deixou de haver, mas transformou-se. Posteriormente, ainda, o império dividiu-
se em dois, o Império Romano do Ocidente, com capital em Roma e o Império Romano do
Oriente, com capital em Constantinopla. Quando, finalmente, os bárbaros obtiveram sucesso
em suas tentativas de invasão, o Império Romano do Ocidente, já enfraquecido e
77 MARTIN, ibid.
62
desestabilizado internamente, não conseguiu guerrear e sucumbiu aos bárbaros. O Império
Romano do Oriente sobreviveria até 1453, quando cairia sob o ataque dos turcos.
Durante a Idade Média, sem contar com instrumentos adequados nem com
técnicas avançadas para estabelecer com precisão as fronteiras, e dado o caráter fragmentário
dos feudos, elas permaneceriam, de certo modo, como uma ficção. Com efeito, foi a evolução
do Estado, de principesco a régio e depois a territorial, que estabeleceu a necessidade, e o
desejo, por organizar as fronteiras. Com o tempo, as técnicas cartográficas desenvolveram-se
extraordinariamente, e tanto a representação quanto a projeção das fronteiras tornaram-se mais
precisas. A primeira tentativa de estabelecer uma fronteira baseada em uma linha imaginária
deu-se com o Tratado de Tordesilhas, celebrado entre Portugal e Espanha. Segundo o tratado,
um meridiano passaria a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde, as terras a leste desse
meridiano pertenceriam a Portugal, e as terras a oeste, à Espanha. Somente o desenvolvimento
das técnicas cartográficas permitiria tamanho avanço na delimitação das fronteiras. É verdade
que houve alguns problemas cartográficos com relação ao tratado. Por exemplo, nele não se
especificou a partir de que ponto do arquipélago dar-se-ia a contagem das 370 milhas. Mesmo
assim, não se pode negar que a delimitação firmada pelo tratado tenha sido um avanço
cartográfico.
É preciso, então, estabelecer distinção entre delimitação e demarcação. A
delimitação é, primordialmente, objeto de geógrafos, mas também de cientistas políticos, de
economistas, de políticos e de militares. É “o estabelecimento da linha de fronteira [...], a qual
é determinada a partir de um tratado assinado entre as partes envolvidas”78. Ocupam-se da
demarcação, principalmente topógrafos, cartógrafos e até mesmo astrônomos. Ela é a
78 MARTIN, ibid. p. 49.
63
“locação da linha de fronteira no terreno [...] através (sic) do estabelecimento de marcos e
balizas”79. Assim, pelo menos teoricamente, a demarcação deveria subordinar-se à
delimitação, embora muitas vezes não é o que aconteça, devido à facilidade com que se pode
realizar a demarcação, antes da delimitação.
Faz-se necessário também reconhecer que, uma vez surgidas, as fronteiras
demoram a desvanecer. Embora muito se diga que o Tratado de Tordesilhas nunca tenha sido
realmente respeitado, o que em parte comprova-se pelo avanço português em direção ao oeste,
a verdade é que até hoje o Brasil não possui uma saída para o oceano Pacífico, da mesma
forma que a América Espanhola detém pouca influência no oceano Atlântico.
Cumpre, então analisar mais detalhadamente a essência da fronteira. Quando
finalmente consolida-se o Estado territorial e as fronteiras expõem toda a sua importância,
surge um outro conceito, o de limite que, a partir de então, acompanhará, inseparavelmente a
fronteira. O limite é linha, e não pode ser habitado. É a linha que separa dois Estados,
demarcando a extensão da soberania de cada um deles. A fronteira acompanha o limite, mas
ela é faixa, e é habitada. Nela desenvolvem-se normalmente atividades econômicas, culturais e
políticas, tanto de um lado quanto de outro. Assim, “a caracterização jurídica da fronteira é a
linha, a sua realidade cultural ou administrativa (instalação de postos de controle, alfândegas,
elementos de vigilância o defesa) é a faixa”80.
Percebe-se, também, que o limite, embora mais preciso que a fronteira, por
aquele ser linha, e esta, faixa, não passa de uma abstração, a não ser quando tomada
juridicamente, pois pontos, linhas e planos são abstrações geométricas. Então, faz-se
importante constatar que a soberania do Estado não se restringe ao plano. Em outras palavras,
79 MARTIN, ibid. 80 MATTOS, op. cit., p. 34.
64
ela não é plana como sugerem os mapas, mas volumétrica81. Há que explicitar também que um
outro conceito sobrevém à discussão quando se fala de fronteiras e de limites, é o conceito de
divisa. Ela é o aspecto visível do limite, materializando-se principalmente sob a forma de
marcos e de balizas que, alinhados, demarcam o território soberano de um Estado.
As fronteiras não expressam uma realidade imediata. Não foram sempre como
são modernamente. Elas evoluíram no tempo e aprimoraram-se. Pode-se, então, esboçar os
estágios pelos quais passaram as fronteiras:
• Os anecúmenos: caracterizavam a antigüidade, em que a povoação era escassa
e os núcleos populacionais estavam separados por enormes vazios
demográficos. Não havia, então, conflitos tendo como causa principal as
fronteiras.
• As largas zonas fracamente povoadas: não abrigavam nenhum poder político
capaz de ameaçar os interesses dos núcleos populacionais aos quais separavam.
• As faixas relativamente estreitas: caracterizavam as áreas em que o
povoamento das entidades políticas não era capaz de pressionar
demograficamente um ao outro.
• As fronteiras modernas: delimitam o território e a soberania dos Estados e,
portanto, colocam em contato permanente o interesse deles, mesmo em áreas
pouco povoadas.
Sabe-se que “a fronteira é um ato de vontade política”82, as fronteiras culturais,
no entanto, não são um simples ato de vontade política. A questão das fronteiras, então,
81 MARTIN, op. cit., p. 55. 82 RATZEL apud MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Teoria de Fronteiras: Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990, p. 6.
65
confunde-se com a questão das nacionalidades, com a questão da cultura e das civilizações. Os
conflitos religiosos que assolaram toda a Europa durante o século XVI contribuíram, não
somente para fazer aparecer as diferenças entre católicos e protestantes, mas também para
guindar o nacionalismo, quando instituiu-se o culto protestante e abandonou-se o latim em
favor das línguas nacionais. A primeira tradução da bíblia para o alemão foi realizada por
Lutero, tendo por base a Vulgata Latina83, quando a Reforma Protestante já entrara em curso.
E assim, lentamente, a tradução da bíblia foi-se executando na língua de cada um dos
territórios que adotaram o protestantismo, a um só tempo afastando-os de Roma e reforçando a
identidade e o nacionalismo.
Empreender uma taxonomia das fronteiras é tarefa das mais complexas, dada a
enorme variedade de casos individuais, o que faz com que seja difícil agrupá-los
significativamente. Tantas são as tentativas de estabelecer uma taxonomia das fronteiras que
uma multiplicidade de classificações surgiu. Algumas possuem caráter histórico, outras
privilegiam os aspectos naturais. Algumas têm por base o tipo de Estado e outras o tipo de
território. Entretanto, algumas classificações obtiveram mais êxito que outras. Assim, entre os
alemães, apegados às idéias deterministas, obterá notoriedade a tese da fronteira linear, e não a
tese da fronteira natural. Isto se explica por crerem que quanto mais desenvolvida fosse uma
sociedade, mais rígidas e precisas deveriam ser suas fronteiras. Entretanto, o expansionismo
alemão, na busca por seu espaço vital, ignoraria as fronteiras, tornando-as meras linhas
imaginárias.
83 A Vulgata Latina é a tradução do grego para o latim realizada no século IV por São Jerônimo a pedido do papa Dâmaso I. A tradução teve de ser realizada porque o grego vinha perdendo sua proeminência e o latim efetivamente tornava-se a língua da liturgia. A Vulgata Latina também foi produzida para ser mais exata e mais fácil de ser compreendida do que as versões anteriores.
66
Por outro lado, os teóricos franceses sempre consideraram as fronteiras
construções artificiais. Mas são os mesmos teóricos franceses que, talvez percebendo a força
do expansionismo alemão, propugnarão o caráter concreto e não abstrato das fronteiras. Nas
discussões acerca da taxonomia das fronteiras, pode-se perceber a velha rivalidade franco-
alemã manifestando-se. Essa rivalidade ora é puramente teórica, ora materializa-se sob a
forma de guerra, como nas duas guerras mundiais. Mesmo assim, é interessante notar que é a
teoria que acaba fundamentando a prática. Afinal, a expansão alemã não se deu ao léu, mas foi
legitimada pela teoria.
É possível expor, sem, no entanto, esgotar as classificações, alguns tipos de
fronteira dignos de atenção. As fronteiras podem ser, quanto à natureza:
• Fronteiras naturais: compostas por acidentes geográficos como rios, montanhas,
lagos, desertos e mares.
• Fronteiras artificiais: compostas por linhas imaginárias, astronômicas ou geodésicas.
Quanto ao grau de ocupação:
• Fronteiras ocupadas: quando são habitadas.
• Fronteiras vazias: quando são desabitadas.
Quanto à situação jurídica:
• Fronteiras de jure: quando delimitadas de comum acordo entre os Estados.
• Fronteiras em litígio: quando contestadas por um ou por ambos os Estados, mas em
processo de negociação.
67
• Fronteiras em conflito: quando contestadas por um ou por ambos os Estados, mas em
estado de tensão, com a negociação interrompida.
Quanto à origem:
• Fronteiras antecedentes: quando são alheias aos habitantes dos territórios em questão,
ou seja, quando são produto de uma ingerência externa. Caracterizam-se pelas grandes
linhas retas.
• Fronteiras subseqüentes: são conseqüência de um desenvolvimento econômico
anterior.
• Fronteiras superimpostas: são aquelas que cortam territórios em que há unidade
cultural.
• Fronteiras conseqüentes: são aquelas fixadas em territórios escassamente povoados ou
até mesmo desabitados.
É preciso esclarecer ainda que as fronteiras não se estabelecem somente em
terra firme. Basta considerar as questões que envolvem a fronteira marítima para confirmar tal
afirmação. Desde antanho, os Estados sentiram a necessidade de levar a fronteira marítima
para além do litoral. Intentava-se, assim, estabelecer o mar territorial, com o fito de defender
melhor o território. Durante séculos vigorou o uso de estender a soberania do território até
uma faixa de três milhas84 da costa. Assim se deu até a Segunda Grande Guerra, quando os
Estados Unidos passaram a reivindicar o limite de 200 milhas85 para o mar territorial, pois
pretendiam proteger seu território contra as armas de longo alcance. Seguindo os Estados 84 Aproximadamente cinco quilômetros. 85 Aproximadamente 320 quilômetros.
68
Unidos, vários outros Estados americanos também adotaram o critério das 200 milhas de mar
territorial. Entretanto, essa prática mostrou-se inexeqüível para Estados que possuíssem litoral
em mares fechados ou limitados, como é o caso dos Estados que possuem litoral mediterrâneo.
Então, em 1958, a ONU reuniu a Conferência Sobre o Direito do Mar, buscando encontrar
solução harmoniosa para o impasse. Assim, após realizar vários estudos e debater
internacionalmente o tema, convencionou-se adotar mar patrimonial de 200 milhas e mar
territorial de 12 milhas86. Como mar patrimonial entende-se a área em que o Estado tem
direito de exploração exclusiva dos recursos minerais, energéticos e pesqueiros sem, no
entanto, impedir o direito de passagem estrangeiro87. O mar territorial, por outro lado,
incorpora-se efetivamente ao território soberano do Estado, que nele pode exercer sua plena
soberania.
Ao mesmo tempo em que se estudam as fronteiras, um outro conceito há que
deve também ser analisado. É o conceito de Estado-tampão. Ele tem “concepção e criação
moderna, é sempre um instrumento artificial – visando amortecer possíveis choques, evitar
conflitos, oriundos do confronto direito entre Estados rivais”88. O Estado-tampão é um
território ao qual se lhe atribui o status de Estado. Como já se expôs, ele é artificial,
estabelecido entre Estados antagônicos. Assim, dotado de soberania, o Estado-tampão é
reconhecido pelos Estados em conflito e também pela comunidade internacional. Clássico
exemplo de Estado-tampão, o Uruguai foi engendrado para conter a ambição do Brasil e da
Argentina pelo controle do rio da Prata. A independência uruguaia, contudo, era já almejada
86 Aproximadamente 20 quilômetros. 87 MATTOS, op. cit., p. 39. 88 MATTOS, ibid., p. 34.
69
pela população que, unida em torno de Artigas89, anelava a liberdade. Houve também a
influência britânica no surgimento do Uruguai. O Reino Unido desejava garantir a livre
navegação no rio da Prata, e para isso incitou a criação de um Estado pequeno, mas que fosse
capaz de controlar uma das margens do rio da Prata, no caso a margem oriental90, impedindo
efetivamente que os dois maiores Estados da América do Sul, a Argentina e o Brasil,
controlassem a navegação no rio da Prata.
A partir da análise mais abstrata das fronteiras, pode-se reconhecer duas
abordagens fundamentais em sua teoria, uma dialética, que busca perscrutar o fenômeno como
um todo, e outra analítica, que procura isolar e decompor o fenômeno a partir de seus
elementos91. Com base na abordagem dialética surgiu a idéia de fronteiras vivas e de
fronteiras mortas. A diferenciação entre ambas dar-se-ia pela densidade do povoamento e pelo
vigor do intercâmbio entre os dois lados da fronteira. À abordagem analítica correspondem as
tentativas mais detalhadas de classificar as fronteiras. Assim, a taxonomia que se expôs
anteriormente representa a abordagem analítica, uma vez que elege um dos aspectos das
fronteiras e busca examiná-lo minuciosamente para poder classificá-las.
Assim, faz-se imprescindível explicitar e reforçar a idéia de que as fronteiras,
apesar de serem o envoltório do Estado e, por essa razão, sua primeira linha de defesa e a
expressão jurídico-territorial de sua soberania, não se prestam somente à segregação. As
fronteiras entre Estados que estabeleceram relações cordiais entre si prestam-se muito mais à
integração do que à separação. Tal proposição pode ser constatada ao observar quão profícuo é
89 O uruguaio José Gervasio Artigas foi político e militar. Reuniu em torno de si a população uruguaia que desejava a independência, por fim proclamada por ele em 1825 e reconhecida internacionalmente em 1828. Embora independente, o Uruguai surgia como um Estado-tampão, premido entre a Argentina e o Brasil. 90 O nome oficial do Uruguai é República Oriental del Uruguay, e os uruguaios são comumente conhecidos como orientales, por habitarem do lado oriental do rio da Prata. 91 MARTIN, op. cit., p. 57.
70
o intercâmbio cultural e econômico ao longo das fronteiras dos Estados que mantêm relações
amistosas uns com os outros.
2.1. OS TIPOS DE TERRITÓRIO
A fronteira é comumente vista como uma linha periférica que contorna o
território de um Estado ou de uma divisão administrativa como uma província ou um
município. Entretanto, como já se expôs, sua caracterização e sua realidade são muito mais
complexas. Frederico Ratzel e Rodolfo Kjellén, considerados os precursores da Geopolítica,
superestimaram a forma, a extensão e a posição relativa do território. Consideraram que esses
três fatores eram essencialmente determinantes na extensão do poder político e militar de um
Estado. Se é verdade que Ratzel e Kjellén deram valor exagerado a esses fatores, também é
verdade que eles detêm, ainda, importância, embora atualmente ela esteja esvaecendo por
causa do desenvolvimento tecnológico.
Com efeito, desde o século XV, quando a efetivação da máquina de guerra teria
compelido o Estado a engendrar-se, até o início do século XX, a conformação territorial era de
suma importância. Durante todo esse período, a extensão territorial era tida como um
componente essencial no jogo de forças da guerra, uma vez que subjugar um território
pequeno era muito mais fácil do que conquistar um vasto território. Pode-se dizer, então, que
os Estados que detinham grande extensão territorial ofereciam mais dificuldade ao inimigo
para conquistá-los, ao passo que os Estados que possuíam pequena extensão territorial eram
mais facilmente sobrelevados. Dessa forma, vê-se que a Rússia nunca caiu conquistada pelos
inimigos, ao contrário da Bélgica, que por duas vezes foi invadida e ocupada pela Alemanha.
71
Obviamente que não se deve atribuir a incolumidade russa ou a fragilidade belga somente à
extensão do território; deve-se, sim, creditá-las a todo um conjunto de fatores, entre eles a
população e o desenvolvimento bélico.
Ainda com relação à Rússia, é interessante observar que, a despeito de seu
enorme território e de seu considerável litoral, tem extrema dificuldade para atingir o mar
aberto. Pode-se dividir o litoral russo em três partes: a primeira e mais extensa abrange todo o
norte da Rússia, abrindo-se totalmente para o mar Glacial Ártico, até sua porção mais oriental,
a partir da qual volta-se para o oceano Pacífico até encontrar a fronteira com a Coréia do
Norte. É o denominado litoral norte-oriental. A segunda parte, e menor delas, abre-se para o
mar Báltico; é, por essa razão, o litoral báltico. A terceira parte corresponde ao litoral do mar
Negro.
O obstáculo impõe-se à Rússia no inverno, quando o litoral norte-oriental e o
litoral báltico são freqüentemente tomados pelo gelo, restringindo o acesso russo ao oceano.
Assim, a única saída para o oceano permanentemente livre do gelo é o litoral do mar Negro.
Surge, então, um segundo empeço. Para chegar até o mar Mediterrâneo e então ao oceano
Atlântico, é necessário antes atravessar o estreito de Bósforo, o mar de Mármara e o estreito de
Dardanelos, totalmente controlados pela Turquia que, estendendo-se pela Anatólia, na Ásia, e
pela Trácia, na Europa, obteve pleno controle do acesso do mar Negro ao oceano Atlântico.
Esse obstáculo ao acesso russo ao oceano vem desde os tempos da União Soviética e da
Guerra Fria. A União Soviética e os Estados Unidos sabiam muito bem disso e tomaram
medidas, a União Soviética para obter acesso, mesmo que forçado ao oceano, e os Estados
Unidos para dificultar ao máximo a passagem russa. É dessa época o ingresso turco na OTAN
e sua aproximação aos Estados Unidos e ao Ocidente, visto que se fazia necessário constituir a
72
primeira linha de defesa contra a União Soviética no mar Negro, e a Turquia constituiria essa
linha de defesa. Nesse contexto, o governo soviético estabeleceu grande força naval no mar
Negro, que ficou conhecida como Frota do Mar Negro, uma força naval que tinha como
principal objetivo, em caso de guerra, destruir o bloqueio turco e abrir passagem até o oceano
Atlântico.
Retomando a questão da extensão territorial, sua relativa perda de importância
dá-se por causa do desenvolvimento tecnológico a serviço da guerra. O aprimoramento de
aviões, cada vez mais velozes e menos perceptíveis aos radares inimigos, e o desenvolvimento
de mísseis dotados de extrema precisão e, principalmente, de mísseis intercontinentais fizeram
diminuir a influência da extensão territorial em uma guerra. Por outro lado, é errôneo crer que
os fatores geográficos estariam sob o jugo da tecnologia. Ao contrário, o que a tecnologia
criou foi a capacidade de guerrear sem, contudo, estar fisicamente presente, pois as armas são
controladas de longe; em outras palavras, a distância foi vencida, mas não os fatores
geográficos. Com efeito, o clima e a topografia ainda são fatores importantes a serem levados
em consideração em uma guerra. E a eles a tecnologia ainda não dominou completamente.
Estabeleceu-se, tomando como base a conformação territorial, uma
classificação dos Estados92. Eles teriam, então, quatro formas principais:
92 MATTOS, op. cit., p. 26.
73
• Forma compacta: França, Espanha, Austrália, Rússia, Estados Unidos, Brasil.
• Forma alongada: Itália, Portugal, Suécia, Chile.
74
• Forma recortada: Noruega, Grécia, Canadá.
• Forma fragmentada: Japão, Indonésia, Filipinas, Reino Unido.
75
Essa classificação leva em consideração o aspecto predominante do território,
assim, o território brasileiro, apesar de possuir um alongamento para o sul, seu aspecto
predominante é o de compactação. O território chileno, embora apresente forma alongada,
também revela a forma recortada, notadamente em sua porção meridional. É notório que a
forma do território influi na administração e na segurança do Estado93. Dessa maneira, a forma
compacta apresenta grande extensão territorial em relação à extensão das fronteiras. Ademais,
a forma compacta torna difícil a secção do território em caso de guerra. A forma alongada do
território exibe grande extensão de fronteiras em relação à área territorial e torna o território
vulnerável. É mais fácil, assim, seccionar esse tipo de território, não somente em caso de
agressão estrangeira, mas também em caso de grave crise interna, como uma guerra civil.
A forma recortada, repleta de saliências e de reentrâncias em seu território
torna a extensão das fronteiras ainda maior. A defesa do território, neste caso, faz-se mais
complexa e penosa em razão da multiplicidade de pontos vulneráveis. A forma fragmentada
possui o mais complexo traçado de fronteiras e é também a forma territorial que apresenta a
maior vulnerabilidade militar. Assim, o Brasil possui forma compacta, extensão territorial de
8.514.876 quilômetros quadrados e 23.127 quilômetros de fronteiras, dos quais 15.719
quilômetros são de fronteiras terrestres e 7.408 quilômetros de fronteiras marítimas. O Japão,
por sua vez, possui forma fragmentada94, extensão territorial de 377.835 quilômetros
quadrados e fronteira marítima de 29.751 quilômetros. É evidente, então, quão maiores se
tornam as fronteiras quando a forma territorial do Estado é a forma fragmentada.
93 MATTOS, ibid., p. 28. 94 O Japão é formado pelas quatro ilhas maiores, Honshu, Hokkaido, Kyushu e Shikoku e por mais de três mil ilhas menores.
76
2.2. A EVOLUÇÃO DAS FRONTEIRAS
Convencionou-se atribuir a três fatores a evolução das fronteiras95:
• Convencionalidade: estabelece que somente se delimita e, posteriormente, demarca-se
uma fronteira se houver acordo entre os Estados confinantes.
• Instabilidade: as fronteiras são marcos inconsistentes, cuja fixidez depende de um
equilíbrio. Sendo expressão da vontade política, elas não possuem nem nunca
possuíram valor próprio, mas somente refletem a força, a passividade ou a audácia dos
Estados.
• Mutabilidade: a mutabilidade das fronteiras é uma constatação histórica96. Basta
comparar as alterações fronteiriças européias, principalmente a partir da Primeira
Grande Guerra, para comprovar quão significativas elas foram. Observem-se as figuras
6 e 7:
95 MATTOS, ibid., p. 39. 96 MATTOS, ibid., p. 40.
77
Entretanto, “aceitar-se a evidência do ‘caráter extremamente instável e mutável
das fronteiras’ não é suficiente. É mister se examinar suas causas [...]”97. Assim, entrelaçado à
questão das fronteiras surge o expansionismo, que é a política de expansão territorial de um
Estado sobre outros. Há dois tipos de expansionismo, o pacífico, que se opera por amálgama e
anexação natural de territórios desabitados ou fracamente povoados com consentimento da
população e o imperialista, que se processa por imposição de força política e militar mais forte
e poderosa98.
97 MATTOS, ibid. 98 MATTOS, ibid., p. 41.
78
Dessa maneira, houve quem criasse leis que embasassem o expansionismo, na
tentativa de atribuir-lhe caráter científico, como efetivamente o fez Ratzel, que sistematizou as
Sete Leis do Expansionismo, pretendendo legitimar a expansão do Império Alemão. Com
relação às leis estabelecidas por Ratzel, convém analisar a primeira delas, que enuncia que “o
espaço (sic) dos Estados cresce com a expansão de sua cultura”99. Com efeito, a primeira das
leis sobre o expansionismo exprime a proeminência da cultura na expansão territorial de um
Estado. Assim, pode-se verificar que foi a existência de populações de origem germânica na
99 RATZEL apud MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Teoria de Fronteiras: Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990, p. 41.
79
Boêmia e na Morávia, duas regiões administrativas da Checoslováquia, que legitimou a
anexação delas pela Alemanha.
No início do século XX, as populações de origem germânica que habitavam a
Boêmia e a Morávia perfizeram 36% da população das duas regiões administrativas juntas, e
desde antes da formação da Checoslováquia essas populações já anelavam que fossem
anexadas à Alemanha e à Áustria. Assim, apesar das concessões dadas aos alemães dessas
regiões pelo governo de Praga, a Alemanha deu um ultimato à Checoslováquia e exigiu que se
realizasse um plebiscito para decidir sobre a anexação. No entanto, no dia seguinte ao dia em
que se estabeleceu que se realizaria o plebiscito, as tropas alemãs invadiram a Checoslováquia
e anexaram a Boêmia e a Morávia100, retirando, assim, cerca de 30.000 quilômetros quadrados
da Checoslováquia.
Também Arnoldo Toynbee dedicou-se a criar leis acerca do expansionismo.
Ele tomou por base a cultura e a irradiação física da luz. As três leis são101:
• 1ª lei: um raio de cultura integral, como um raio de luz, refrata-se em espectros de seus
elementos componentes ao penetrar no objeto refringente.
• 2ª lei: essa refração pode dar-se sem choque com o outro corpo social se a sociedade
refringente já houver entrado em colapso cultural e caminhar para a desintegração102.
• 3ª lei: a velocidade e o poder do raio de cultura integral é igual à média das diversas
velocidades e poder de penetração que os componentes político, econômico e cultural 100 O nome mais comum que se dá a esse episódio é anexação dos Sudetos. Entretanto, os Sudetos não designam efetivamente uma região administrativa, mas sim uma cadeia montanhosa que serve de fronteira natural entre a Boêmia e a Morávia, pertencentes à República Checa, e a Silésia, pertencente à Polônia. Foi somente a partir do século XX que vingou designar a Boêmia e a Morávia por Sudetos. 101 TOYNBEE apud MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Teoria de Fronteiras: Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990, p. 43. 102 Uma sociedade em colapso cultural é aquela em que a economia, a cultura e a política estão em discordância.
80
desenvolvem quando, em virtude da refração, atuam independentemente. A política e a
economia penetram mais depressa que a cultura.
As leis de Toynbee, embora possam ser, cada uma delas, amparadas por
exemplos históricos, não devem ser encaradas como acabadas ou como leis que possuam valor
nomotético. Mesmo assim, é importante perceber a importância que se atribui à cultura: é por
meio dela, nas leis de Toynbee, que se realiza o expansionismo.
Como já se expôs, as fronteiras são ato de vontade política, excetuando-se as
fronteiras culturais, certamente. Assim, não há problemas de fronteiras, mas problemas entre
Estados. Efetivamente, trata-se de questão política. Levando-se em consideração que o ânimo
humano imprime à questão das fronteiras, Everardo Backheuser criou as seguintes leis103:
• Lei da vontade ou força: a localização da fronteira é um ato de vontade dos dois
Estados envolvidos na questão, ou é um ato de força de um deles ou de outros Estados
suficientemente poderosos para intervir no conflito.
• Lei do equilíbrio dinâmico: por causa das pressões recíprocas, a fronteira é a expressão
de um equilíbrio dinâmico e transitório, resultante das ações que exercem os Estados
confinantes.
• Lei da fricção: a fronteira é sempre uma zona de atrito entre os Estados.
• Lei da pressão: a pressão que se exerce nas fronteiras é função da vitalidade relativa
dos confrontantes e dos elementos de força à sua disposição.
103 BACKHEUSER apud MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Teoria de Fronteiras: Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990, p. 44.
81
Houve também estudiosos que unissem em uma mesma teoria de fronteiras
componentes culturais e componentes demográficos. Assim, F. Supan criou o quociente de
pressão: considerando-se uma fronteira FF entre os Estados A e B e imaginando que haja uma
situação de equilíbrio dinâmico, submeter-se-á essa fronteira à pressão de cada um desses
Estados. Se houver equivalência de forças, a fronteira permanecerá estável. Porém, quando um
dos Estados for mais forte que o outro, romper-se-á o equilíbrio. O Estado mais forte é aquele
que é demograficamente mais vigoroso104 e, portanto, mais robusto militarmente, ou ainda
aquele cuja sociedade não estiver em colapso cultural.
Dessa forma, se o Estado A for o mais forte, a tendência é que a fronteira se
desloque e penetre no território do Estado B, configurando nova fronteira F’F’. Se esse
desequilíbrio de força mantiver-se a favor do Estado A, é provável que nova alteração da
fronteira dê-se, configurando, então, nova fronteira F”F”. Convém, agora, analisar a sétima
das leis do expansionismo de Ratzel, que declara que “a orientação geral até a amálgama
transmite a tendência de crescimento territorial de Estado a Estado e aumenta esta tendência
em processo de transmissão”105. Nesse caso pode-se citar o exemplo dos Estados Unidos que,
das Treze Colônias atlânticas, expandiram-se em sucessivas ondas em direção ao oeste,
penetrando em território indígena, britânico, francês e mexicano, até alcançarem o oceano
Pacífico e o golfo do México.
Primordialmente, o motor do quociente de pressão tem sido o fator político
combinado ao fator militar e ao fator demográfico. Há, entretanto, outros fatores envolvidos,
104 Note-se que esta proposição está muito próxima à idéia de Ratzel, segundo a qual um Estado demograficamente vigoroso seria robusto e assim deveria expandir seu Lebensraum. 105 RATZEL apud MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Teoria de Fronteiras: Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990, p. 41.
82
tais como o fator econômico, o fator cultural e até mesmo o fator religioso. Assim,
normalmente está sempre presente o fator político, unido a um ou a mais dos outros fatores.
Faz-se necessário ainda tecer algumas considerações a respeito do vigor
demográfico. Ele, por si só, não garante que haja vigor militar equivalente. Em outras
palavras, não é porque um dado Estado é populoso e possui altas taxas de crescimento
demográfico que se torna forte militarmente. Observe-se o caso de Israel e dos Estados árabes
em seu entorno. Contando aproximadamente 7 milhões de habitantes, Israel é insignificante
em termos demográficos quando comparado aos seus vizinhos como o Egito, que possui mais
de 70 milhões de habitantes, a Síria, com mais de 17 milhões de habitantes e a Arábia Saudita,
com cerca de 27 milhões de habitantes. O vigor demográfico também diz respeito à taxa de
crescimento populacional mas, ainda nesse quesito, Israel detém taxas menores do que seus
vizinhos. Mesmo territorialmente, Israel é muito menor do que eles. A Síria, que não é um
Estado de grande extensão territorial, tem 185.180 quilômetros quadrados. Israel possui
somente 21.900 quilômetros quadrados. Assim, o que permite a Israel manter suas fronteiras é
a tecnologia, que lhe proporciona armas sofisticadas, até mesmo atômicas.
Para Supan a causa principal do desequilíbrio fronteiriço é o fator demográfico.
Ele criou uma fórmula que determinaria se um Estado poderia ter seu território repartido por
Estados vizinhos. Eis a fórmula106:
106 SUPAN apud MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Teoria de Fronteiras: Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990, p. 51.
83
Assim, QP é o quociente de pressão; P é a população do Estado A; p, p’, p”, p’”
e p”” são a população dos Estados B, C, D, E e F, respectivamente. Se o numerador for
equivalente à soma dos valores do denominador deverá haver equilíbrio fronteiriço, e o Estado
A não será desagregado. Se, no entanto, o denominador for maior que o numerador, a
tendência é que o território do Estado A seja sucessivamente desmembrado. Outrossim, se o
numerador for maior que o denominador, o Estado A deverá iniciar movimento expansionista.
Novamente faz-se necessário lembrar Israel. Como já se revelou,
demograficamente, Israel é inferior aos Estados com que compartilha fronteiras. Todavia,
permanece incólume, quebrando suposta validade geral da teoria de Supan. Criada há várias
décadas107, não levou em consideração o desenvolvimento tecnológico. Assim, embora dotada
de certo valor científico, essa teoria não deve ser totalmente corroborada.
107 MATTOS, op. cit., p. 51.
84
3. A TERRITORIALIZAÇÃO DA CULTURA NA ORDEM
MUNDIAL DO PÓS-GUERRA FRIA
Quando, em 25 de dezembro de 1991, a União Soviética esfacelou-se,
desmoronou com ela a ordem mundial que se engendrara após o término da Segunda Grande
Guerra. A ordem mundial bipolar estabelecera-se opondo o bloco capitalista, liderado pelos
Estados Unidos, ao bloco socialista, comandado pela União Soviética. Durante todo esse
período, ao qual se denominou Guerra Fria, em que se opunham as duas superpotências
mundiais, quais sejam, os Estados Unidos e a União Soviética, havia três formas de
alinhamento a que um Estado poderia submeter-se. Assim, um Estado poderia fazer parte do
bloco capitalista ou do bloco socialista, ou ainda do Movimento Não-Alinhado. Dá-se a esse
conflito o adjetivo fria porque se tratava de um conflito não-deflagrado entre as duas
superpotências, em que havia oposição, mas insuficiente para que se iniciasse uma guerra no
sentido estrito do termo.
O Movimento Não-Alinhado surgiu na década de 1960 por iniciativa de alguns
Estados asiáticos. Reuniram-se, então, na Indonésia, 29 Estados, primordialmente africanos e
asiáticos, cuja finalidade era manter posição neutra com relação à oposição entre as duas
superpotências e a seu conflito. Intimamente unido à lógica da Guerra Fria, o movimento tem
encontrado dificuldade para manter-se relevante após o fim dela. Mesmo assim, continua
reunindo-se periodicamente. Sua última reunião ocorreu em Cuba, em setembro de 2006.
Logo em seguida à desintegração da União Soviética o mundo viveu grande
mutação. Esse acontecimento deu-se em quatro domínios diferentes: no tecnológico, no
econômico, no sociológico e no político. No domínio tecnológico assistiu-se ao esplêndido
85
desenvolvimento da tecnologia. A digitalização do som, da imagem e do texto guindou a
criação, a economia, o trabalho e o lazer à era da comunicação instantânea. Assim, no domínio
econômico, o desenvolvimento da tecnologia propicia, aos que a detêm, a expansão do
controle econômico. Da nova tecnologia vale-se o poder monetário internacional para realizar
seus projetos. No domínio sociológico vislumbrou-se o poder transformar-se. Ele que era
vertical, autoritário e hierárquico tornou-se horizontal, materializado pelas redes e pelos
fluxos. No domínio político presenciou-se o desvanecimento da ordem mundial que até então
vigorara. Com efeito, na década de 1990, após algumas reformas econômicas e atenuação da
censura, a União Soviética entrou em colapso e fragmentou-se. Extinguia-se, assim, a ordem
mundial bipolar e a Guerra Fria. Com o fim do conflito e o conseqüente desaparecimento da
oposição entre as duas superpotências, a força ideológica, econômica e política que
engendrava os dois blocos antagônicos esfacelou-se e deixou em seu lugar uma lacuna. Então,
“desorientadas, as sociedades [...] [lançaram-se] desesperadamente em busca de sentido e de
modelos”108.
Estabelecer-se-ia, inexoravelmente, a ordem mundial multipolar, composta
pelos Estados Unidos, pelo Japão e pela União Européia, a denominada tríade, sem, contudo,
possuir a força política, econômica e ideológica que possuía sua predecessora bipolar. Os
conflitos, então, passariam a ser compreendidos como conflitos culturais, como conflitos que
oporiam civilizações, materializando-se, sobretudo, territorialmente, pois, como já se
evidenciou, a cultura somente se materializa em um território, e o controle dele pode significar
o triunfo ou a decadência dessa cultura. Assim, “é muito apropriado que os conflitos
108 RAMONET, Ignacio. Guerras do Século XXI: novos temores e novas ameaças. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 18.
86
[culturais] [...] sejam denominados ‘guerras de identidade’”109, porque, efetivamente, basear-
se-iam na comparação cultural e no suposto perigo que o outro passaria a representar. A
ordem mundial, a partir de então, territorializar-se-ia, principalmente, segundo critérios
culturais.
3.1. A CULTURA E OS BLOCOS ECONÔMICOS Bloco econômico pode ser definido como união de Estados cujo objetivo é a
integração econômica e a cooperação entre si. A constituição do primeiro grande bloco
econômico moderno data de 1951, quando Alemanha, França, Itália, Países Baixos, Bélgica e
Luxemburgo criaram a CECA. Assim, por intermédio do Tratado de Paris, os signatários do
acordo teriam a exploração e as indústrias nacionais do carvão e do aço integradas e postas sob
o controle direto da Alta Autoridade110, encarregada de elaborar as políticas relativas ao
carvão e ao aço e que concentrava poderes delegados pelos Estados-membro. A reunião dos
recursos sob controle comum introduzia a noção de soberania compartilhada, dissolvendo
parcialmente os nacionalismos europeus. Era um passo que apontava para um horizonte
amplo: a expansão do controle comum para outros campos da economia e da política. A
CECA constituía-se, dessa forma, na precursora da União Européia.
109 HUNTINGTON, op. cit., p. 338. 110 A Alta Autoridade era o órgão central e decisório da CECA e era composta por um número igual de indivíduos por Estado-membro. Cada um dos seis Estados-membro designava diretamente seus representantes. Ela possuía a faculdade de agir com plena independência. Além da Alta Autoridade, completavam a gerência da CECA o Conselho Especial de Ministros, a Assembléia Comum e a Corte de Justiça.
87
Os blocos econômicos possuem, normalmente, quatro níveis de integração
econômica111. Partindo-se da mais elementar forma de associação para a mais complexa tem-
se:
• Área de livre comércio: caracteriza-se pela isenção das tarifas de importação de
mercadorias entre os países-membro do bloco. O NAFTA encontra-se neste estágio.
• União aduaneira: possui objetivos mais amplos do que os da área de livre comércio,
como estabelecer regras comuns de comércio com Estados exteriores ao bloco e criar
tarifa externa comum. O MERCOSUL é um bloco econômico que constituiu uma
união aduaneira.
• Mercado comum: caracteriza-se no bloco econômico em que os países-membro, já
tendo efetivado a união aduaneira, decidem permitir a livre circulação de mão-de-obra
e de capital entre eles.
• União monetária: é o estágio em que alguns ou todos os Estados-membro do bloco
econômico optam por unificar as moedas nacionais ao submeterem-se ao controle de
um banco central supranacional. A União Européia atingiu este estágio.
Assim, faz-se interessante notar que as organizações econômicas internacionais
que prescindem de unidade cultural ou, mais precisamente, dispensam a unidade
civilizacional, defrontam-se com sérios obstáculos à sua viabilização. A ASEAN, composta
por dez Estados do Sudeste Asiático112, é exemplo da limitação com que uma organização
multicivilizacional opera. Ela é formada por Estados pertencentes à civilização ocidental, à
111 HUNTINGTON, ibid., p. 161. 112 Compõem a ASEAN: Birmânia, Brunei, Camboja, Cingapura, Filipinas, Indonésia, Laos, Malásia, Tailândia e Vietnã. Possuem status de observador: Papua Nova Guiné e Timor Oriental.
88
civilização sínica e à civilização islâmica. Freqüentemente mencionam-na como uma
organização eficaz. Porém, conquanto eficaz, é limitada. Fundada em 1967, a ASEAN tem
como principais objetivos acelerar o crescimento econômico e fomentar a paz e a estabilidade
regionais. Entretanto, o que se observa é uma expansão dos orçamentos militares e um
engajamento em programas de rearmamento113, em contraste com os membros da União
Européia e do Mercosul que, salvo exceções, como a Venezuela, têm buscado diminuir os
gastos militares.
Ainda, em 1992 os Estados-membro da ASEAN decidiram transformá-la em
uma área de livre comércio, que se concretizaria somente em 2008. Em outras palavras, a
ASEAN levou 25 anos para decidir-se pela área de livre comércio, e consumiria ainda mais 16
anos para implantá-la. O que ainda não ocorreu. Ao contrário, os Estados que compõem o
MERCOSUL, todos pertencentes à civilização ocidental, criaram-no em 1991, já sob a forma
de área de livre comércio e, em 1995, transformaram-no em união aduaneira. Vê-se, assim,
que se tudo correr bem, a ASEAN multicivilizacional atingirá, em pouco mais de 40 anos, o
que o MERCOSUL unicivilizacional teria alcançado em apenas quatro114.
Atualmente, uma das maiores organizações econômicas do mundo é a APEC.
Ela foi criada em 1989, reunindo 21 Estados115, e era inicialmente apenas um fórum de
discussões entre os Estados da ASEAN e alguns de seus principais parceiros comerciais. No
entanto, em 1993, tornou-se um bloco econômico que congrega Estados da Oceania, da Ásia e
da América, pertencentes à civilização ocidental, à civilização sínica, à civilização islâmica, à
113 HUNTINGTON, ibid., p. 162. 114 O MERCOSUL, embora nominalmente componha uma união aduaneira, na prática vem enfrentando problemas para efetivar os dispositivos dessa forma de união. 115 Fazem parte da APEC: Austrália, Brunei, Canadá, Cingapura, Chile, China, Filipinas, Formosa, Hongue Congue, Indonésia, Japão, Coréia do Sul, Malásia, México, Nova Zelândia, Papua Nova Guiné, Peru, Rússia, Tailândia, Estados Unidos da América e Vietnã.
89
civilização japonesa e à civilização ortodoxa. A APEC decidiu em 1994 transformar-se
também em área de livre comércio. Essa transformação, contudo, não se daria de forma
homogênea. Primeiramente comporiam a área de livre comércio os Estados de capitalismo
avançado, estabelecendo-a em 2010. Posteriormente, em 2020, integrá-la-iam os Estados de
capitalismo tardio116. Alguns dos Estados-membro têm questionado os objetivos da APEC
que, segundo eles, funcionaria como um mecanismo para desregulamentar mercados e
aumentar o lucro dos Estados-membro de capitalismo avançado, sem que a organização
promovesse o desenvolvimento conjunto de todos seus Estados-membro. Dessa forma, é
provável que “só surgirão organizações regionais de peso na Ásia Oriental se houver aspectos
culturais comuns asiático-orientais suficientes para sustentá-las”117.
Com relação à Europa, a situação é menos problemática. A principal
organização do continente europeu, a União Européia, não é somente uma organização
econômica; é também uma organização política, e é referência mundial em questões de
integração regional. Ela atingiu o mais alto nível a que pode ascender uma organização
econômica, ou seja, a união monetária. Compõem-na 27 Estados118, todos da civilização
ocidental, com exceção de quatro, a Grécia, Chipre, que aderiu à união em 2004, e Bulgária e
Romênia, recentemente admitidos. Esses quatro Estados pertencem à civilização ortodoxa, e
116 A APEC, em seu sítio, não informa quais Estados seriam os de capitalismo avançado nem quais seriam os de capitalismo tardio e, para referir-se a eles, utiliza-se, respectivamente, das expressões developed economies e developing economies. Optou-se pelas expressões capitalismo avançado e capitalismo tardio por atualmente serem consideradas mais corretas do que as expressões economias desenvolvidas e economias em desenvolvimento, que fazem lembrar a anacrônica e aparentemente estanque Teoria dos Três Mundos. 117 HUNTINGTON, ibid., p. 163. 118 Fazem parte da União Européia: Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Dinamarca, Espanha, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Checa, Romênia e Suécia.
90
Chipre possui ainda uma minoria turca119 bastante influente. Alguns dos mais importantes
distúrbios diplomáticos por que passou a União Européia foram causados pela Grécia. Assim,
na sua oposição aos turcos, os gregos historicamente se consideraram como os
lanceiros do Cristianismo. Ao contrário dos sérvios, romenos e búlgaros, sua história
está intimamente entrelaçada com a do Ocidente. No entanto, a Grécia também é uma
anomalia, o estranho ortodoxo nas organizações ocidentais. Nunca foi fácil para ela ser
membro quer da UE quer da OTAN, e ela teve dificuldades em se adaptar aos
princípios e costumes de ambas. [...] Seus dirigentes freqüentemente parecem se
esforçar por desviar-se das normas ocidentais e por antagonizar os governos ocidentais.
Ela era mais pobre do que os outros membros da Comunidade e da OTAN [...]. Seu
comportamento na presidência do Conselho da UE, em 1994 exasperou outros
membros, e autoridades européias ocidentais, em privado, consideram um erro tê-la
como membro.
No mundo pós-Guerra Fria, as políticas da Grécia se afastam cada vez mais das do
Ocidente. [...] No contexto de seus conflitos com a ex-Iugoslávia, a Grécia se separou
das políticas adotadas pelas principais potências européias, apoiou ativamente os
sérvios e violou flagrantemente as sanções das Nações Unidas a eles impostas120.
Vê-se que paulatinamente a Grécia tem negligenciado alguns de seus
compromissos firmados com seus aliados ocidentais e se tem voltado para seus pares
ortodoxos. Agora, outros dois Estados pertencentes à civilização ortodoxa aderiram à União
Européia em janeiro de 2007, pois a Comissão Européia121 assim deliberou: a Bulgária e a
Romênia. Assim, são quatro os Estados que não pertencem à civilização ocidental. Dois deles
119 A minoria turca de Chipre concentra-se na autoproclamada República Turca de Chipre do Norte, reconhecida somente pela Turquia, e pertence à civilização islâmica. 120 HUNTINGTON, ibid., p. 203. 121 A Comissão Européia é o motor do sistema institucional comunitário, é seu órgão executivo. Seu presidente é indicado por cada um dos Estados-membro da União Européia e o Parlamento Europeu ratifica a indicação ou não. Os restantes membros da comissão são também indicados pelos Estados-membro mas, além da aprovação do Parlamento Europeu, dependem da aprovação do presidente da comissão. Ela é nomeada por um período de cinco anos e pode ser demitida pelo Parlamento Europeu.
91
emersos de décadas de planificação econômica que minou a base econômica e tornou a infra-
estrutura obsoleta. Ainda atualmente Bulgária e Romênia buscam desvencilhar-se do passado
sob a planificação econômica. Com relação à riqueza dos Estados-membro da União Européia
é ainda possível realizar uma observação de suma importância. Observe-se a tabela 2:
Tabela 2 – Indicadores dos Reagrupamentos Transnacionais da União Européia* (1991)
Região
Superfície
(%)
População
(%)
Densidade (hab/km2)
PIB per capita
(Europa dos 12 = 100)
Desemprego
(%)
Centro das Capitais 11,2 25,9 337 116 7,6
Arco Alpino** 13,6 15,9 184 122 4,6 Diagonal
Continental 18,8 6,0 47 87 10,1
Novos Bundesländer*** 4,7 4,6 242 33 14,1
Arco Latino 12,9 11,0 125 91 15,3 Mediterrâneo
Central 9,8 8,4 126 62 18,9
Arco Atlântico 21,1 13,5 94 80 10,0 Mar do Norte 8,4 13,4 232 99 8,6 Europa dos
Doze**** 100 100 153 100 9,4 Fonte: GURISATTI, Paolo. O Nordeste Italiano: nascimento de um novo modelo de organização industrial. In: COCCO, Giuseppe; URANI, André; GALVÃO, Alexander Patez (Orgs.). Empresários e Empregos nos Novos Territórios Produtivos: o caso da Terceira Itália. Rio de Janeiro: DP&A, 1999, p. 77-99. * A tabela apresenta pequenas incoerências com relação ao somatório das porcentagens da população e da superfície e com relação à taxa de desemprego da Europa dos Doze. Tampouco se especifica claramente a regionalização adotada. ** Áustria e Suíça excluídas. *** Bundesländer é uma palavra alemã, e é também o plural de bundesland, que significa, literalmente, Estado da federação. É o nome que se dá às maiores divisões administrativas da Alemanha. Os Novos Bundesländer são, portanto, aqueles que constituíam a Alemanha Oriental. Há, atualmente, 16 bundesländer. **** Alemanha, França, Itália, Reino Unido, Espanha, Países Baixos, Bélgica, Dinamarca, Portugal, Grécia, Irlanda e Luxemburgo.
92
Dessa forma, tratando-se apenas da Europa dos Doze, antes, portanto, da
adesão da Áustria, da Finlândia e da Suécia, muito se divulga que Portugal, Grécia e Irlanda
são os Estados mais pobres da União Européia. Há uma certa verdade nisso, uma vez que
Portugal, Grécia e Irlanda constituem, juntamente com grande parte da Espanha, com o sul da
Itália, com a Irlanda do Norte e com a Córsega, uma periferia européia. Mas pouco ou nada se
diz que, considerando-se ainda somente a Europa dos Doze, a região mais pobre é a região
correspondente à Alemanha Oriental. Obviamente que esse relativo atraso se deve à
obsolescência econômica e estrutural herdada das décadas sob o regime socialista de economia
planificada, mas é interessante notar que, se a média do PIB per capita da Europa dos Doze
for fixada em 100122, o PIB per capita dos novos bundesländer não passa de 33, enquanto na
região em que se encontra a Grécia, esse valor é de 62. Deste fato deduz-se que há que se fazer
uso de circunspecção quando for necessário discorrer acerca de ricos e de pobres dentro da
União Européia. Infere-se também que a pujança econômica alemã mascara o atraso dos novos
bundesländer.
Observa-se, assim, que no passado, o padrão do comércio internacional tendia a
acompanhar o padrão das alianças estabelecidas segundo a lógica da Guerra Fria, entretanto,
atualmente tem se fortalecido movimento que propende a alterar esse padrão e a estabelecer
outro, que privilegie o comércio internacional entre Estados culturalmente semelhantes123.
Faz-se possível, também, perceber que quanto mais um bloco econômico é culturalmente
homogêneo, tanto mais sua organização e efetivação tornam-se fáceis e proveitosas.
122 Esta cifra é mero quantificador que representa uma média do PIB per capita da União Européia e não se expressa por nenhuma moeda nacional. 123 HUNTINGTON, ibid., p. 166.
93
3.2. A CULTURA, OS IDIOMAS E OS ALFABETOS
Quando a ordem mundial engendrada durante a Guerra Fria ruiu, os Estados
sentiram-se livres para realinhar-se entre si e estabelecer novas parcerias, novos blocos e
novas associações. Ao refletir acerca da identidade que forja as civilizações e as estrutura, é
interessante notar as mudanças lingüísticas proporcionadas pela falência da ordem mundial da
Guerra Fria, pois a escrita e o idioma, então, tornaram-se ainda mais instrumentos de poder e
de identidade cultural.
Durante quase um século, sérvios e croatas, unidos pela federação iugoslava,
denominavam seu idioma comum de servo-croata. O servo-croata era, na verdade, um
diassistema124, mas havia consenso em denominá-lo dessa maneira, e não separadamente:
sérvio e croata. Ainda assim, os croatas o escreviam com o alfabeto latino, e os sérvios com o
alfabeto cirílico. Todavia, essa relativa harmonia acabou quando os dois Estados entraram em
guerra, em 1991. Imediatamente aconteceu a ruptura, e o servo-croata não mais haveria. A
partir de então, haveria dois idiomas separados: o sérvio e o croata. Ainda com relação ao
sérvio e ao croata, é interessante notar que, “essencialmente, é a crença religiosa que decide
quais dos povos que falam eslavo se utilizam do alfabeto cirílico. Os eslavos ortodoxos
escrevem no cirílico e os outros no latino. A linha divisória se faz sentir em uma língua: o
‘servo-croata’”125.
124 Diassistema é o termo da Lingüística que designa um supersistema virtual que há na base de dois sistemas contíguos que compõem as variantes do diassistema. Em outras palavras, um diassistema é o sistema virtual estabelecido na base de dois ou mais idiomas cujo grau de inteligibilidade mútuo é muito grande. Assim, o português e o galego compõem um diassistema, pois o português, de um lado, e o galego, de outro, formam as variantes do diassistema e há, na base de cada um dos idiomas, o sistema virtual que os dota de alta inteligibilidade mútua. Formam outros diassistemas o búlgaro e o macedônio; o catalão e o valenciano; o dinamarquês, o norueguês em sua variante bokmål e o sueco; o hindi e o urdu; o romeno e o moldavo. 125 STÖRIG, Hans Joachim. A Aventura das Línguas: uma história dos idiomas do mundo. 4. ed. São Paulo: Melhoramentos, 2003, p. 53.
94
Vários outros Estados realizaram mudança semelhante, notadamente aqueles
que compunham a União Soviética. Demonstrando conhecer a força subjugadora que detém a
cultura, o governo de Moscou impôs o russo e o alfabeto cirílico a algumas das repúblicas que
faziam parte do Estado soviético. Assim, com a desintegração da União Soviética, não tardou
para que o Azerbaijão, o Turcomenistão e o Uzbequistão126 abandonassem o alfabeto cirílico e
adotassem o alfabeto latino de seu modelo cultural maior, a Turquia. Ela, aliás, em um enorme
esforço, tanto estatal quando humano para aproximar-se da civilização ocidental, deixaria o
alfabeto árabe, com que o turco era escrito, e adotaria o alfabeto latino ainda na década de
1920.
Essa foi apenas uma das mudanças a que a Turquia foi submetida por Mustafá
Kemal Atatürk para ocidentalizá-la. As imposições do Tratado de Sèvres ao Império Otomano
fizeram com que os nacionalistas, liderados por Atatürk, se levantassem e buscassem revogar
o tratado, que fora assinado pelo sultão. Entre outras medidas, o tratado previa a repartição do
império entre a França, o Reino Unido e a Grécia. Assim, em setembro de 1922, os
nacionalistas conseguiram expulsar as forças estrangeiras que já ocupavam o território turco e,
dois meses depois, a Grande Assembléia Nacional Turca proclamou a república ao depor o
sultão e abolir o califado127. Então, em 1923, designou-se Atatürk para a presidência da
república.
Ao ascender, Atatürk deu início a uma série de reformas políticas e culturais
que deveriam modernizar e ocidentalizar a Turquia. Assim, as escolas teológicas foram
126 O turco, o azerbaijano, o turcomeno e o uzbeque são línguas altaicas, mais precisamente do ramo turco. Guardam, por isso, certa similaridade. 127 O califado era a posição de liderança nominal no islamismo, exercida pelos sultões otomanos, quando de sua abolição.
95
fechadas, a xariá128 foi substituída pelo código civil suíço. Adotaram-se também princípios do
código comercial alemão e do código penal italiano. O uso do fez129 pelos homens foi
proibido, bem como o do véu pelas mulheres. Elas, ainda, foram encorajadas a usar roupas de
estilo ocidental e a ingressar no mercado de trabalho. A representação visual de formas
humanas, proibida pelo islã, foi reintroduzida por Atatürk, que abriu escolas de arte, tanto para
homens quanto para mulheres. Revogou-se a proibição islâmica do consumo de álcool.
É nesse contexto que se abandonou o alfabeto árabe e adotou-se o alfabeto
latino. Por causa dessa mudança, todos os cidadãos, dos seis aos 40 anos foram obrigados a
freqüentar a escola para aprender o novo alfabeto. Com o tempo, tornar-se-ia impossível às
novas gerações, que somente haviam sido ensinadas com o alfabeto latino, entrar em contato
com a vasta literatura tradicional. Pouco a pouco a Turquia abandonava seu passado islâmico e
buscaria ser admitida na civilização ocidental.
A Romênia, outrora conhecida como Dácia, permaneceu romana por apenas
dois séculos. Foi, no entanto, tempo suficiente para que o latim dos dominadores romanos se
impusesse e constituísse a base da língua romena. Ao permanecer isolada das outras línguas
latinas até meados do século XVI, conservou vocabulário único. Sua gramática permaneceu
similar à do latim e preservou, ao contrário de suas irmãs ocidentais, um sistema de
declinações, embora ínfimo, e o gênero neutro que, no português, somente é reconhecido nos
pronomes isto, isso, aquilo, al, nada, algo e tudo. Pertencente à civilização ortodoxa, em que o
alfabeto cirílico é de longe o majoritário, a Romênia utilizou-se primeiramente dele para grafar
seu idioma. Entretanto, na segunda metade do século XIX, talvez por deferência a seu passado
128 A xariá é a lei canônica islâmica, ou seja, é um conjunto de preceitos morais presentes no Alcorão que serve de orientação para a vida civil e religiosa dos muçulmanos. 129 O fez é um pequeno chapéu de feltro ou de pano. Tornou-se muito popular no Império Otomano, quando foi incorporado ao traje oficial do governo.
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romano ou buscando timidamente ocidentalizar-se, aboliu o alfabeto cirílico em favor do
alfabeto latino.
Da mesma forma que os Estados da Ásia Central, a Moldávia, vítima de uma
russificação violenta, ao livrar-se do jugo soviético, abandonou o alfabeto cirílico que lhe fora
imposto e adotou o alfabeto latino tal qual fizera a Romênia. É preciso esclarecer ainda que a
região separatista da Transnístria, composta predominantemente por russos e por ucranianos,
não abandonou o alfabeto cirílico, e continua a grafar o moldavo como sempre fora grafado
desde os tempos da União Soviética. Nota-se, assim, o apego à cultura e à identidade que, por
fim, manifesta-se territorialmente, pois a Transnístria declarou unilateralmente a
independência e recusa-se a integrar a Moldávia.
3.3. OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS EUROPEUS Quanto à questão da diversidade civilizacional, o mais diversificado continente
é a Ásia. Nela há fragmentos da civilização ocidental, há grande parte da civilização islâmica e
da civilização ortodoxa e a totalidade da civilização hindu, da civilização japonesa e da
civilização sínica. É na Europa, contudo, que os conflitos territoriais e culturais evidenciam-se
mais fortemente e é principalmente a ela que se voltará a atenção deste trabalho.
A Europa divide-se, primordialmente, entre duas civilizações, quais sejam, a
civilização ocidental e a civilização ortodoxa. Há, no entanto, três Estados da civilização
islâmica na Europa, a Albânia, a Bósnia e a Turquia. Assim, a confluência européia dessas três
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civilizações, dá-se nos Bálcãs130. Os conflitos que marcam os Bálcãs surgiram há séculos. A
região é a tal ponto problemática que apareceram, em diversos idiomas131, um verbo e um
substantivo derivados de seu nome. Em português diz-se: balcanizar e balcanização. Então,
balcanizar, ou levar à balcanização, seria sinônimo de promover conflitos, de exacerbar
rivalidades culturais e de incitar e provocar o separatismo. De outra maneira, balcanização
seria a “confusão de nacionalidades ou etnias, culturas e religiões, consubstanciada na
ocorrência frequente (sic) de litígios fronteiriços”132. Atualmente, sobretudo nos próprios
Bálcãs, tem-se abandonado essa denominação e tem-se adotado uma outra, vista como menos
pejorativa: Europa do Sudeste.
Os dois termos teriam surgido no início do século XX com a deflagração das
Guerras Balcânicas, que se estenderam de 1912 a 1913. Esse conflito consistiu, na verdade,
em duas guerras curtas entre a Bulgária, a Grécia, Montenegro, a Romênia, a Sérvia e o
Império Otomano. Em 1912 configurou-se a Liga Balcânica, aliança entre a Bulgária, a
Grécia, Montenegro e a Sérvia, com o estímulo da Rússia, contra o Império Otomano, que já
estava em evidente declínio político, cultural e econômico. Assim, a Liga Balcânica pôde
vencê-lo sem grandes dificuldades. Entretanto, quando a diplomacia das potências européias
passou a intervir para redesenhar as fronteiras balcânicas em favor da Bulgária e em
detrimento da Sérvia, a liga rompeu-se.
130 A palavra bálcãs, originalmente, designava uma cadeia de montanhas que, freqüentemente é vista como uma extensão dos Cárpatos. Os Bálcãs, entretanto, estão separados dos Cárpatos pelo rio Danúbio. Posteriormente, passou-se a designar grande parte do sudeste da Europa por Bálcãs. Assim, fazem parte dos Bálcãs a Albânia, a Bósnia, a Bulgária, a Croácia, a Grécia, Montenegro, a Macedônia, a Sérvia e a porção européia da Turquia. Alguns estudiosos incluem também a Eslovênia e a Romênia. 131 Em espanhol: balcanizar e balcanización; em inglês: to balkanize e balkanization; em italiano: balcanizzare e balcanizzazione; em francês: balcaniser e balcanisation, para citar alguns exemplos. 132 BOM, João Carreira. Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Balcanização / mexicanização. Lisboa, 2001. Disponível em: <http://ciberduvidas.sapo.pt/php/resposta.php?id=7708>. Acesso em 29 set. 2006.
98
A Bulgária, antevendo que seria alvo da cobiça de Atenas e de Belgrado por
conta de suas conquistas territoriais, pois havia ocupado a Macedônia e a Trácia, lançou-se,
em um ataque preventivo, contra a Grécia e contra a Sérvia. Sua estratégia teria sido bem
sucedida se a Romênia, até então neutra, não a tivesse atacado, ocupado parte de seu território
e ameaçado marchar até Sófia. Dessa forma, em 1913, a Grécia e a Sérvia obtiveram os
ganhos territoriais a que tanto ansiavam, a Romênia tomou uma parte do território búlgaro e a
Albânia, até então subjugada pelo Império Otomano, tornou-se independente.
A Sérvia, por fim, conseguira realizar um de seus maiores intentos, o de
constituir a Grande Sérvia, um Estado que reunisse grande parte das populações eslavas
dispersas pelos Bálcãs. Assim, o Império Austro-Húngaro passou a sentir-se ameaçado pelo
nacionalismo sérvio, que recebia, novamente, o apoio russo. O assassinato do arquiduque
Francisco Fernando, herdeiro do trono austro-húngaro em Saraievo, por um sérvio, tornou-se o
pretexto para que o Império Austro-Húngaro invadisse a Sérvia. Alguns meses depois
irromperia a Primeira Grande Guerra.
Faz-se imprescindível, então, analisar as alianças que se constituíram desde as
Guerras Balcânicas. A Liga Balcânica reuniu quatro Estados ortodoxos contra um Estado
multicivilizacional133 mas predominantemente islâmico. A liga recebeu ainda o apoio da
Rússia, o principal Estado da civilização ortodoxa. Com o apoio dado à liga, os russos
almejavam dois objetivos: o primeiro era enfraquecer o Império Otomano militar e
politicamente, pois, como já se expôs, detinha o controle do acesso russo ao oceano através do
estreito de Bósforo, do mar de Mármara e do estreito de Dardanelos e ainda possuía grande
133 O Império Otomano, no início do século XX, dominava ainda vastos territórios em que se encontravam populações pertencentes à civilização ocidental e à civilização ortodoxa. Por isto considera-se que fosse um Estado multicivilizacional, embora predominantemente islâmico.
99
influência sobre as populações islâmicas do Cáucaso134; o segundo, marcadamente
etnocultural, era livrar as populações ortodoxas dos Bálcãs do jugo otomano e, ao mesmo
tempo, promover sua união em torno da Sérvia, tradicional aliada dos russos.
Esse esforço fazia parte do movimento que buscava a união dos eslavos, o pan-
eslavismo. O movimento surgiu no século XIX e, inicialmente, agregou poloneses, checos,
eslovacos, croatas, sérvios, eslovenos e russos. A Rússia, entretanto, aproveitou-se do
movimento em benefício próprio, anelando expandir sua influência e constituir-se potência. A
partir de então as populações eslavas com identidade ocidental afastaram-se do movimento
que, progressivamente, tornava-se mais ortodoxo, antiocidental e antiturco. Pode-se perceber,
então, que a cultura, para as populações eslavas com identidade ocidental era mais importante
do que a etnicidade135 pois, caso contrário, não teriam abandonado o pan-eslavismo quando
tornou-se exageradamente ortodoxo, antiocidental e antiturco.
Além dos Bálcãs, outra região européia chama a atenção: a Europa Oriental.
Nela os conflitos são menos agudos do que nos Bálcãs, mas os há. Assim, tanto os Bálcãs
como a Europa Oriental possuem conflitos territoriais e culturais dignos de interesse porque a
fronteira entre a civilização ocidental e a civilização ortodoxa e a civilização islâmica os
divide, como se pode observar na figura 8:
134 O Cáucaso é uma cordilheira situada no extremo sudeste da Europa. Por extensão, designa também a região em seu entorno, em que há três Estados: a Armênia e a Geórgia, ortodoxas, e o Azerbaijão, predominantemente islâmico. 135 Cumpre fazer uma breve exposição acerca do uso de cultura e de etnia neste trabalho. O primeiro conceito, como já se expôs, refere-se a atitudes, costumes e crenças que são assumidos por um grupo de pessoas, independentemente de fatores biológicos. A etnia, ao contrário, refere-se a questões biológicas. Em outras palavras, um grupo de pessoas pode escolher a cultura a que queira pertencer, mas não pode escolher sua etnia. Assim, tem-se como exemplo os eslavos. Uma grande parte deles optou por ter identidade ocidental, a despeito de sua etnicidade eslava, enquanto outra parte escolheu ter identidade ortodoxa.
100
A fronteira cultural entre a civilização ocidental e a civilização ortodoxa
coincide, de norte para sul, com as fronteiras políticas entre a Noruega, a Finlândia, a Estônia
e a Letônia, ocidentais, e a Rússia, obviamente ortodoxa. Contudo, a Bielorrússia, a Romênia,
a Sérvia e a Ucrânia têm, cada uma, seu território cindido entre o Ocidente e a ortodoxia. A
Bielorrússia, talvez por sua pequena população136 amplamente russificada, mesmo estando
dividida pela fronteira cultural, parece não apresentar conflitos intensos como apresenta sua
vizinha meridional, a Ucrânia. A situação da Romênia e da Sérvia é similar. A Transilvânia
romena e a Voivodina sérvia possuem expressiva população húngara e católica, e tanto o
governo de Bucareste quanto o governo de Belgrado esforçam-se diplomaticamente com a
136 A Bielorrússia possui pouco mais de dez milhões de habitantes.
101
ajuda do governo de Budapeste para amenizar a tensão latente na Transivânia e na Voivodina.
A Ucrânia constitui assim, dada a intensidade de seus conflitos, um caso emblemático.
3.3.1. OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS NA UCRÂNIA
O território ucraniano, de mais de 600 mil quilômetros quadrados, abriga uma
população de aproximadamente 47 milhões de habitantes e é cindido pela fronteira cultural
entre a civilização ocidental e a civilização ortodoxa quase ao meio, como se pode observar na
figura 9:
Em outras palavras, as fronteiras políticas da Ucrânia não coincidem com as
fronteiras culturais. A porção oriental do território pertence à civilização ortodoxa, sua
população fala predominantemente o russo, submete-se ao patriarcado de Moscou ou ao
patriarcado de Kiev e politicamente alinha-se à Rússia. A porção ocidental da Ucrânia
102
pertence à civilização ocidental, fala ucraniano, pertence à Igreja Católica Ucraniana137, em
plena comunhão com o bispo de Roma, embora conserve a liturgia oriental, e alinha-se ao
Ocidente.
Durante as eleições presidenciais realizadas na Ucrânia em novembro de 2004,
assistiu-se aos efeitos da incongruência entre as fronteiras políticas e as fronteiras culturais. Na
realização do primeiro turno nenhum dos candidatos obteve a maioria necessária para vencer
as eleições. Então elas seriam disputadas em segundo turno pelos dois candidatos mais
votados: Viktor Yanukovich, ligado ao leste da Ucrânia e à Rússia, e Viktor Yushchenko,
ligado ao oeste da Ucrânia e ao Ocidente.
Assim, após a apuração dos votos, a Comissão Central Eleitoral declarou que
Yanukovich recebera 49,46% deles e Yushchenko, 46,61%. Imediatamente observadores
internacionais denunciaram as eleições afirmando que houvera manipulação de votos e
intimidação de eleitores. Ao mesmo tempo, centenas de milhares de pessoas na capital, Kiev, e
no oeste da Ucrânia iniciaram protestos que durariam dias. A União Européia e os Estados
Unidos declararam que não reconheciam o resultado das eleições. A Rada Suprema138, então,
desqualificou-o, alegando que realmente houvera inúmeras fraudes. Essa declaração do
parlamento, no entanto, seria inócua legalmente, pois a ele não cabe julgar processos
eleitorais. A declaração, a despeito de não ter poder legal, seria o prenúncio dos graves
conflitos territoriais e culturais na Ucrânia.
137 Seu nome oficial é, no entanto, Igreja Greco-Católica Ucraniana (em ucraniano: Українська Греко-Католицька Церква). Simplificadamente diz-se apenas Igreja Católica Ucraniana. A designação uniata, que muitas vezes se lhe atribui, é considerada pejorativa e ofensiva pelos católicos ucranianos, pois denotaria oposição à plena comunhão com Roma. 138 A Rada Suprema é o parlamento ucraniano (em ucraniano: Верховна Рада України).
103
Reagindo aos protestos em Kiev e no oeste, a população do leste e, em especial
do sudeste, alertou que não toleraria que tirassem a vitória de Yanukovich. Do mesmo modo,
os governadores de três províncias no sudeste ameaçaram separar-se da Ucrânia caso o
resultado das eleições fosse alterado. Por todo o mundo chegou-se a prever a balcanização da
Ucrânia, ao estilo iugoslavo. O governo de Moscou, que abertamente apoiou Yanukovich,
considerou as eleições transparentes e, devido às declarações do Ocidente, avisou que a crise
eleitoral era um problema interno ucraniano e que o Ocidente deveria abster-se. Ao tomar tal
atitude, a Rússia estava simplesmente reafirmando sua proeminência de Estado mais
importante da civilização ortodoxa e, ao mesmo tempo, demonstrando que ainda considera a
Ucrânia um Estado-satélite que deve permanecer sob sua influência139.
Quatro dias depois das eleições, com os conflitos já deflagrados, Yushchenko
apelou à Suprema Corte que cancelasse oficialmente o resultado das eleições. A Suprema
Corte iniciou o julgamento da apelação e das denúncias de fraude, mas imediatamente impediu
que a Comissão Eleitoral Central promulgasse o resultado140. Uma semana depois de iniciado
o julgamento, a Suprema Corte declarou as eleições inválidas e determinou que novas eleições
fossem realizadas. Novamente há o recrudescimento dos conflitos que, dessa vez, atingem a
Rússia, em que manifestantes saem às ruas para exigir de Moscou que faça confirmar
Yanukovich como presidente.
Assim, depois de realizadas as novas eleições, Yushchenko foi eleito presidente
da Ucrânia, em um pleito eleitoral que foi considerado normal pelos observadores
139 No atual território da Ucrânia, ainda no século IX, constitui-se o Principado de Kiev que, posteriormente, daria origem à Rússia, à Ucrânia e à Bielorrússia. Assim, a Rússia enxerga a Ucrânia, e também a Bielorrússia, como uma extensão de si mesma e procura tutelá-las. 140 A lei ucraniana determina que o candidato eleito tome posse até 30 dias depois da promulgação do resultado das eleições.
104
internacionais. A resistência de Yushchenko e de seus partidários contra o resultado
manipulado das outras eleições ficou conhecida como Revolução Laranja, pois o laranja é
uma das cores da bandeira ucraniana e foi a cor escolhida para representar a luta dos
ucranianos por eleições justas.
É fácil, então, perceber quão presentes estavam os aspectos culturais nos
conflitos ucranianos e como eles se refletiram territorialmente. Tão fortemente presentes que
houve até ameaça de secessão do sudeste da Ucrânia. A exigência de Moscou para que o
Ocidente se mantivesse longe dos conflitos internos ucranianos revelou-se tentativa grosseira
da Rússia de manter a Ucrânia sob sua influência. Com efeito, o Ocidente simplesmente
explicitou que as eleições não foram honestas e que não reconheceria o resultado, mas a
Rússia, mesmo com a grande oposição ucraniana às eleições fraudadas, pressionou o governo
de Leonid Kuchma, então presidente da Ucrânia e aliado de Yanukovich, para que não se
realizassem novas eleições.
É preciso lembrar, ainda, que os conflitos ucranianos não são exclusivamente
culturais, como se somente a dualidade cultural ucraniana, expressada territorialmente, fosse a
responsável pelos conflitos. Praticamente indissociáveis, cultura e política permanecem
próximas uma da outra, alternando-se e mesclando-se, e determinando o rumo dos conflitos.
Seria reducionismo, da mesma forma, creditar os conflitos somente a causas políticas pois, se
assim fosse, a oposição entre a força que ansiava manter o statu quo e a força que o buscava
alterar não teria apresentado o caráter marcadamente territorializado pela cultura que
apresentou.
Ainda, fazem-se necessárias algumas observações a respeito dos conflitos
territoriais e culturais ucranianos. Como já se expusera, cultura e religião sempre estiveram
105
profundamente ligadas. Durante os conflitos, os ortodoxos ucranianos que se submetem ao
patriarcado de Moscou apoiaram Yanukovich, e os católicos solidarizaram-se a Yushchenko.
Sabe-se que na eclesiologia141 oriental os acontecimentos políticos incidem diretamente na
estrutura da igreja. Com a independência ucraniana, muitos passaram a defender a idéia de que
a Igreja Católica Ucraniana deveria constituir-se em patriarcado142, pois consolidar-se-ia assim
mais um dos tantos desligamentos que Kiev teria de realizar em relação a Moscou para
efetivamente fortalecer a identidade nacional ucraniana e impossibilitar que a Rússia se
intrometesse tão facilmente nos assuntos da Ucrânia.
Entretanto, nem o governo russo nem o patriarcado de Moscou vêem com
satisfação a elevação da Igreja Católica Ucraniana à condição de patriarcado e,
conseqüentemente, de seu arcebispo-mor a patriarca, pois enxerga nessa mudança um
desligamento entre os dois Estados e uma afirmação da identidade nacional ucraniana, que
dificultaria ainda mais a ingerência russa na Ucrânia. Assim, a criação do patriarcado, em
essência uma alteração honorífica do status de uma igreja, teria conseqüências políticas e
culturais.
3.3.2. OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS NOS BÁLCÃS
Os Bálcãs, como já se fez notar, dividem-se entre três civilizações: a civilização
ocidental, a civilização ortodoxa e a civilização islâmica. A constituição, em 1918, da
141 Eclesiologia é o ramo da Teologia que trata da doutrina da Igreja sobre si mesma. Em outras palavras, estuda como a Igreja vê a si própria, como entende sua missão e sua presença no mundo, sua estrutura e sua forma de governo. 142 O patriarcado é a circunscrição eclesiástica de um patriarca, que é um título honorífico concedido a um hierarca que possui ascendência jurídica ou honorífica em relação a um território, a um rito ou a uma igreja.
106
Iugoslávia, que reunia sob um mesmo Estado bósnios, sérvios, montenegrinos, macedônios,
eslovenos e croatas, seria o início de alguns dos maiores e mais violentos conflitos territoriais
e culturais não só da Europa, mas de todo o mundo, porquanto, tal como na Ucrânia, as
fronteiras políticas da Iugoslávia não respeitariam as fronteiras culturais.
Em 1941 as forças do Eixo143 invadiram e repartiram entre si algumas partes do
território iugoslavo. Com a expulsão do Eixo, em 1945, a Iugoslávia foi formalmente
restaurada, mas logo a república seria proclamada e o Estado tornar-se-ia socialista. Então
Josip Broz Tito ascenderia ao cargo de primeiro-ministro, posição que manteria até 1953,
quando far-se-ia, por meio de eleições, presidente. Em 1963 seria indicado presidente
vitalício. Durante todo o tempo em que comandou a Iugoslávia, tanto como primeiro-ministro
quanto como presidente, Tito soube mitigar os nacionalismos latentes e controlá-los. É preciso
recordar ainda que os conflitos que fragmentaram a Iugoslávia possuíam todos origem nos
nacionalismos habilmente enfraquecidos por Belgrado, e estes, por seu turno, eram claramente
engendrados pelas fronteiras culturais dos Bálcãs.
Tito proclamava com altivez que a Iugoslávia possuía “seis repúblicas, cinco
nações, quatro línguas, três religiões, dois alfabetos e um só partido”144. Apostando no
abrandamento do rancor e da desconfiança entre as civilizações reunidas sob o Estado
iugoslavo, Tito não vislumbrou que a característica que mais lhe causava orgulho no Estado
que comandava seria o motivo principal dos conflitos territoriais e culturais que o
fragmentariam. Faz-se necessário, ainda, relembrar a importância que possuem os meios de
comunicação na comparação a que as diferentes identidades se lançam e, mais
143 O Eixo era composto por três Estados principais, as Potências do Eixo: Alemanha, Itália e Japão. Outros Estados, entretanto, faziam parte da aliança: Bulgária, Hungria e Romênia, efetivamente combatendo ao lado do Eixo, e Finlândia e Tailândia, cooperando intimamente com ele. 144 RAMONET, op. cit., p. 125.
107
especificamente, na deflagração dos conflitos iugoslavos. Assim, “o vírus da televisão
espalhou, através de toda a Iugoslávia, o ódio interétnico como uma epidemia. Uma geração
inteira de sérvios, bósnios e muçulmanos foi estimulada, pelas imagens da televisão, a detestar
seus vizinhos”145.
Ao unir três civilizações sob um único Estado fez-se com que as fronteiras
políticas fossem incongruentes às fronteiras culturais. Assim, os croatas e os eslovenos,
ocidentais; os sérvios, os montenegrinos e os macedônios, ortodoxos; e os bósnios, islâmicos,
viram-se atrelados uns aos outros sob o poder de um governo central que se esforçava por
anular as diferenças culturais entre eles. Quando, em 1980, Tito morreu, a presidência da
Iugoslávia tornou-se um cargo rotativo que deveria ser ocupado por cada uma das seis
repúblicas componentes da Iugoslávia. Entretanto, sem a personificação da unidade iugoslava
que Tito representava, esse sistema mostrou-se débil, e as diferenças não tardaram a aparecer.
Iniciavam-se, então, os conflitos territoriais e culturais que poriam fim à Iugoslávia e
desestabilizariam novamente os Bálcãs.
No início da década de 1990, com a crise que o socialismo já vivia, a
manutenção da federação iugoslava tornou-se insustentável. Com efeito,
quando a identidade iugoslava, mais genérica, se desfez, [...] o multicomunitarismo se
evaporou e cada grupo se identificou cada vez mais com sua comunidade cultural
ampla, definindo-se em termos religiosos. Os sérvios da Bósnia se tornaram
nacionalistas sérvios extremados, identificando-se com a Grande Sérvia, a Igreja
Ortodoxa Sérvia e toda a comunidade ortodoxa. Os croatas da Bósnia passaram a ser
os mais fervorosos nacionalistas croatas, se consideraram cidadãos da Croácia,
145 ZIMMERMANN apud RAMONET, Ignacio. Guerras do Século XXI: novos temores e novas ameaças. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 126.
108
acentuaram seu Catolicismo e, juntamente com os croatas da Croácia, sua identidade
com o Ocidente católico.
A mudança dos muçulmanos no sentido da consciência civilizacional foi ainda mais
marcada. Até que a guerra começasse, os muçulmanos da Bósnia eram profundamente
seculares em suas concepções, se viam como europeus e eram os mais firmes
defensores de uma sociedade e de um Estado bósnios multiculturais146.
Assim, em junho de 1991 a Croácia declarou independência. A Sérvia não a
aceitou e, intervindo em favor da minoria sérvia que lá residia, cerca de 12% da população,
iniciou uma ofensiva contra a Croácia, que resultou na tomada de aproximadamente 30% do
território croata. A guerra entre a Croácia e a Sérvia, entretanto, só terminaria definitivamente
em 1995, por ocasião da retomada dos territórios perdidos pela Croácia.
A Eslovênia, a exemplo da Croácia, também declarou independência em junho
de 1991. Porém, parte do exército esloveno, fiel à Sérvia, rebelou-se e passou a combater ao
lado do exército sérvio que buscava impedir a separação eslovena. Pouco tempo depois de
iniciada, a guerra entre a Eslovênia e a Sérvia terminou quando os rebeldes do exército
esloveno foram controlados e os sérvios foram expulsos. A Macedônia, ortodoxa, contrariando
a Croácia e a Eslovênia, ocidentais, que já haviam proclamado a independência, fá-lo-ia
apenas em 1992. Sua maior dificuldade não foi desvencilhar-se da Sérvia, que não se opôs
violentamente à independência macedônia, mas obter o reconhecimento internacional de sua
autonomia. Até hoje a Grécia vê com extremo desagrado que haja um Estado denominado
Macedônia, pois a parte setentrional de seu território é homônima dessa ex-república da
146 HUNTINGTON, op. cit., p. 342.
109
federação iugoslava147, e este fato amedronta Atenas, que teme que a Macedônia reivindique a
anexação da Macedônia grega.
Montenegro, outra das repúblicas componentes da Iugoslávia, decidiu manter-
se unido à Sérvia e constituir a República Federal da Iugoslávia. Em 2003, entretanto, o nome
Iugoslávia foi definitivamente abolido, e o Estado passou a denominar-se Sérvia e
Montenegro. Enfim, em 2006, Montenegro decidiu romper a federação e obter independência.
Assim, Montenegro separou-se da Sérvia que, embora não seja mais uma federação, possui
duas províncias autônomas: a Voivodina e o Côssovo.
Contudo, foi na Bósnia que os conflitos territoriais e culturais revelaram-se
plenamente. A Bósnia era uma das mais pobres repúblicas da Iugoslávia. Majoritariamente
islâmica, encontra-se premida entre a civilização ocidental, representada pela Croácia, e a
civilização ortodoxa, representada por Montenegro e pela Sérvia. A população148 é composta
por 48% de bósnios, que são islâmicos; 37,1% de sérvios, que são ortodoxos; e 14,9% de
croatas, que são ocidentais149. Quando a Croácia e a Eslovênia já haviam declarado
independência, realizou-se na Bósnia um referendo em que os bósnios e os croatas decidiram
separar-se da Iugoslávia e constituir um Estado independente. Os sérvios opuseram-se a essa
decisão, pois anelavam manter-se unidos à Iugoslávia e, com ajuda da Sérvia, iniciaram uma
guerra baseada na cultura e no território, que tinha como principal objetivo exterminar os
147 A ONU recomendou à Macedônia que se denominasse, ainda que provisoriamente, Antiga República Iugoslava da Macedônia, para evitar mais atritos com a Grécia. 148 É necessário explicitar que, ao falar sobre a Bósnia, utilizar-se-á o termo bósnios para referir-se aos bósnios que são muçulmanos e que, portanto, pertencem à civilização islâmica; utilizar-se-á o termo croatas para referir-se aos bósnios de origem croata, que são católicos romanos e pertencem à civilização ocidental; utilizar-se-á o termo sérvios para referir-se aos bósnios de origem sérvia, que são católicos ortodoxos e pertencem à civilização ortodoxa. Eventualmente, para afastar peremptoriamente qualquer dúvida, utilizar-se-ão os termos bósnios islâmicos; croatas da Bósnia; sérvios da Bósnia. 149 WIKIPÉDIA. República Sérvia. 2006a. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Rep%C3%BAblica_S%C3%A9rvia&oldid=3606>. Acesso em 15 set. 2006.
110
bósnios e os croatas dos territórios em que eram minoria ou, ainda, torná-los minoria onde
quer que estivessem e, concomitantemente, obter o controle do território da Bósnia.
Assistiu-se, a partir de então, ao genocídio de milhares de bósnios islâmicos e
de croatas da Bósnia pelos sérvios da Bósnia e pelo exército da Sérvia. O conflito seria o
maior e mais violento na Europa desde a Segunda Grande Guerra. Estima-se que morreram
mais de 100.000 pessoas, entre civis e militares, e que em torno de 1.800.000 pessoas
tornaram-se refugiados de guerra150. A pior dessas matanças foi o denominado Massacre de
Zebrenica, em que foram assassinados 8.373 bósnios islâmicos151. O conflito “assimilou cada
vez mais as características de uma luta religiosa, definida [...] [pelas] sobras das crenças
religiosas dos impérios cujas fronteiras colidiram na Bósnia”152. A guerra terminou somente
quando criou-se uma federação e dividiu-se o território bósnio. Dessa maneira, a Bósnia é
atualmente um Estado federal, composto por duas entidades politicamente autônomas, a saber,
a Federação da Bósnia-Herzegovina, formada pelos bósnios e pelos croatas, e a República
Sérvia, dominada pelos sérvios. Há ainda o distrito de Brico que, embora nominalmente
pertença às duas entidades autônomas, está sob a soberania da Federação da Bósnia-
Herzegovina. Brico constitui, na verdade, uma terceira entidade autônoma, pois goza dos
mesmos direitos das outras duas. Saraievo, situada entre o território de cada entidade
autônoma, permanece como capital de facto da Federação da Bósnia-Herzegovina e como
capital de jure da República Sérvia. A capital de facto da República Sérvia é a cidade de Banja
Luca. Procurou-se fazer na Bósnia com que as fronteiras políticas coincidissem com as
150 Ibid. 151 Ibid. 152 MISHA apud HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997, p. 344.
111
fronteiras culturais, segregando os sérvios da Bósnia dos croatas da Bósnia e dos bósnios
islâmicos, como se pode observar na figura 10:
Ainda, é necessário recordar a Guerra do Côssovo. Nessa província
componente da Sérvia, a maioria da população, cerca de 88%, é de origem albanesa, fala
albanês e professa o islamismo. Ao fim das Guerras Balcânicas, o atual território cossovar, em
vez de ser anexado à Albânia e com ela obter independência, foi transferido para a Sérvia e
assim permaneceu até 1941, quando a Itália, ao anexar a Albânia, incorporou também o
Côssovo. Entretanto, em 1944, ele voltaria a pertencer à Sérvia.
Até 1990 o Côssovo gozou de uma autonomia relativamente grande com
relação a Belgrado. A partir de então a autonomia foi suprimida. Assim, em 1998, o Exército
de Libertação do Côssovo iniciou violenta campanha pela independência cossovar. Note-se
112
que a luta armada cossovar teve início somente oito anos depois de a autonomia da província
haver sido cassada. Como forma de represália, o presidente iugoslavo, Slobodan Milosevic,
ordenou ao exército iugoslavo que atacasse o Côssovo. Entretanto, por trás da ofensiva militar
iugoslava havia outro intento: o genocídio cometido contra os cossovares de origem albanesa.
Tal qual na Bósnia, o genocídio no Côssovo buscava, pela eliminação de um grupo cultural,
impor a supremacia da minoria sérvia na província e controlar o território.
A guerra terminou com a intervenção da OTAN, que atacou a Iugoslávia em
1999. Inicialmente a repressão sérvia contra os cossovares aumentou, situação que forçou
quase um milhão deles a refugiar-se em Estados vizinhos. Entretanto, depois de 78 dias sob
ataque da OTAN, a Iugoslávia retirou suas tropas do Côssovo. A partir de então, a ONU
instalou um governo provisório. Em 2001 realizaram-se as primeiras eleições para a
Assembléia do Côssovo, que deve contar 120 assentos, dos quais dez reservados para a
minoria sérvia no Côssovo e outros dez reservados para minorias não-sérvias, como os bósnios
e os ciganos. Cabe à assembléia eleger o presidente e o primeiro-ministro do Côssovo.
Dessa forma, pode-se inferir que os Bálcãs, entrecruzados pelas fronteiras
culturais de três civilizações e cindidos entre vários Estados cujas fronteiras políticas não
coincidem com as fronteiras culturais, constituem o mais expressivo exemplo de conflitos
territoriais provocados por motivações culturais.
3.4. UM CASO ESPECIAL: O SUDÃO
A principal proposta deste trabalho é a análise dos conflitos territoriais e
culturais e dos fatores que estão a eles estreitamente ligados. Elegeu-se, assim, a Europa como
113
área principal a ser investigada. Há, contudo, conflitos culturais e territoriais por todo o
mundo. Entretanto, chama a atenção o caso de um Estado africano, o Sudão, quer pela duração
dos conflitos quer por seu caráter evidentemente cultural e territorial. Assim, mesmo
localizado na África, investigar-se-ão os conflitos territoriais e culturais do Sudão.
Outrora o Sudão foi conhecido como Núbia, e resumia-se a algumas áreas no
vale do rio Nilo. Durante o século VII, é incorporado à civilização islâmica. O sul, todavia,
escapa ao controle islâmico. Entre 1820 e 1822 é conquistado e unificado pelo Egito;
posteriormente põe-se sob influência do Reino Unido para, em 1899, formalizar-se o domínio
anglo-egípcio no Sudão. Em 1930 promulga-se a Declaração do Sudão Meridional, em que se
define que o Sudão Meridional é cultural e racialmente distinto e, portanto, deve desenvolver-
se como uma entidade autônoma ou ser integrado à África Oriental Inglesa153. A autonomia
foi concedida a todo o Sudão em 1953, e a independência em 1956. Os norte-sudaneses, então,
rejeitam o estabelecimento de uma federação.
O domínio anglo-egípcio, tal qual o regime de Belgrado na Iugoslávia, reprimia
as diferenças culturais entre o norte, em grande parte desértico, e seus habitantes, árabes
pertencentes à civilização islâmica; e o sul, composto por savanas e florestas tropicais e sua
população esmagadoramente negra, que pratica o animismo ou professa o cristianismo e
pertence à civilização africana. Ao cessar o domínio anglo-egípcio, logo após a independência,
tiveram início os conflitos territoriais e culturais no Sudão.
O Exército de Libertação do Povo Sudanês, organização meridional do Sudão,
enceta os conflitos ao exigir de Cartum igualdade de tratamento entre o norte e o sul. Em
153 WIKIPÉDIA. Sudan. 2006b. Disponível em <http://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Sudan&oldid=85452746>. Acesso em 17 set. 2006.
114
1969, um golpe militar liderado pelo general Gaafar Nimeriy instaura a ditadura. Ao tentar
impor a xariá, Nimeriy incita grande revolta no sul, e iniciam-se efetivamente os conflitos
territoriais e culturais no Sudão, sob a forma de guerra civil.
O levante dos sul-sudaneses, em 1985, acaba por derrubar Nimeriy e instala-se
um governo de transição que estabelece regime democrático. Porém, em 1989, novo golpe
militar leva ao poder o general Omar Hassan al-Bashir. Islâmico convicto, intensifica a
repressão islâmica contra os negros animistas e cristãos. Os melhores e mais importantes
cargos no governo sudanês são reservados aos islâmicos, e aos estudantes somente é permitido
freqüentar a universidade se prestarem serviços durante um ano e meio à Frente Islâmica
Nacional154. Finalmente, em 1991, impõe-se a xariá, que proíbe o consumo de bebidas
alcoólicas e prevê punições por enforcamento ou mutilação.
A imposição da xariá fez com que aproximadamente 600 mil sudaneses
fugissem para Estados vizinhos155. A resposta do Exército de Libertação do Povo Sudanês foi
o recrudescimento dos combates entre o sul e o norte. A guerra civil estender-se-ia, com
períodos mais intensos do que outros, até 1996, quando realizaram-se eleições legislativas e
presidenciais. A vitória de al-Bashir provocou nova intensificação dos combates.
Finalmente, em janeiro de 2005, depois de mais de 45 anos de guerra civil e de
genocídio, o governo do Sudão concordou em conceder autonomia ao sul do Estado sudanês,
constituindo assim a região autônoma do Sudão Meridional156. Observe-se, na figura 11, a
divisão territorial que se efetuou no território sudanês levando-se em consideração a cultura:
154 A Frente Islâmica Nacional é a organização política que conduziu o governo do Sudão quando da intensificação do genocídio perpetrado contra os negros do Sudão Meridional. 155 Ibid. 156 Ibid.
115
Vê-se, dessa maneira, a cultura refletindo-se no território, determinando uma
alteração na estrutura territorial sudanesa. A autonomia, entretanto, chegaria um pouco tarde,
pois, primeiramente, o regime de Cartum optara pela homogeneização cultural do território,
impondo sua cultura por intermédio da xariá. Posteriormente, dada a resistência dos negros
animistas e cristãos, recorreu-se ao genocídio; optava-se, então, pela homogeneização cultural
do território do Estado sudanês por meio do extermínio do outro, ou seja, daquele que
representa a alteridade.
116
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para que se pudesse realizar estudo acerca da incongruência entre as fronteiras
políticas e as fronteiras culturais foi necessário, antes de tudo, examinar cuidadosamente
alguns conceitos e teorias que ao tema da pesquisa estivessem intimamente relacionados.
Assim, analisaram-se a globalização, a gênese do Estado moderno ocidental, sua
caracterização e evolução, a cultura, a civilização, a identidade, as civilizações, as fronteiras e,
finalmente, a territorialização da cultura na ordem mundial do pós-Guerra Fria e algumas de
suas conseqüências.
Ao efetuar a análise dos conflitos territoriais e culturais faz-se imprescindível
realizá-la cuidadosamente. Assim, é salutar considerar que, ao contrário do que pode parecer,
os conflitos mundiais não são exclusivamente culturais. Este trabalho evidencia a relevância
da cultura na ordem mundial do pós-Guerra Fria, porém, não a exalta à posição de única força
motriz de todos os conflitos. Tampouco compactua com a idéia simplista e fatalista da guerra
de civilizações, como se a humanidade caminhasse inexoravelmente a um conflito desse tipo.
O que há, efetivamente, é o despertar da cultura como componente essencial da
nova ordem mundial, e compreender sua territorialização faz-se primordial. A cultura é
elevada a tal categoria de relevância pela globalização e pelas novas tecnologias, que
engendram a percepção das diferenças e também do outro.
A etnicidade, outro fator relevante na formação da identidade, muitas vezes é
sobrepujada pela cultura, uma vez que ninguém pode escolher a etnia a que queira pertencer,
ao contrário da cultura, que independe de fatores biológicos ou físicos e é, efetivamente,
forjada, construída ao longo do tempo e à qual se pode renunciar e a outra abraçar.
117
As outras forças que constituíam a ordem mundial anterior, a saber, a força
ideológica, a força econômica e a força política, cedem espaço agora à força cultural sem,
contudo, anularem-se. Em outras palavras, a nova ordem mundial combina esses quatro
componentes de forma diferente, dando a cada um deles uma nova importância, combinação
em que a cultura torna-se dia a dia mais importante. Também, faz-se necessário acrescentar
que ainda há alianças entre Estados que se baseiam mais na força política e na força
econômica do que na força cultural.
Dessa forma, a aliança entre os Estados Unidos, ocidentais, e a Coréia do Sul,
sínica, prova que, em determinados casos, a cultura ainda não assumiu o papel relevante que já
exerce em outras ocasiões. O caso japonês é, da mesma forma, digno de atenção. Único
Estado da civilização japonesa, o Japão, em princípio, não possuiria nenhum outro Estado a
que se coligar. Por isto alinha-se, na maioria das vezes, aos Estados Unidos, Estado com o
qual mantém intensa interdependência, tanto econômica quanto militar.
Ainda, é preciso esclarecer que as civilizações contemporâneas não são
organizações políticas no sentido estrito do termo, pois não constituem uma confederação,
muito menos um Estado. Elas não possuem um governo central que as una
incondicionalmente. Destarte, fazer parte de uma mesma civilização não significa tender a
uma homogeneização absoluta. As civilizações, como já se fez notar, são o último limite
identitário aquém do considerar-se humano. Detentoras de identidade tão ampla, seria difícil
que fossem plenamente homogêneas. Haverá, então, diferenças dentro das próprias
civilizações, mas essas diferenças serão menores dentro delas mesmas do que quando
comparadas umas com as outras.
118
Haverá também afinidades entre as civilizações: algumas terão relacionamentos
relativamente tranqüilos e profícuos umas com as outras, enquanto outras terão relações
baseadas na desconfiança e na violência. Assim, por exemplo, a civilização hindu relaciona-se
harmonicamente com a civilização ocidental, ao passo que a civilização islâmica opõe-se
sistematicamente ao Ocidente.
Tampouco o fato de dois ou mais Estados pertencerem a uma mesma
civilização impede que eles tenham dissensões ou que entrem em conflito uns com os outros.
Assim, são notórios os conflitos existentes dentro da civilização islâmica. A guerra entre o Irã
e o Iraque, a ocupação do Líbano por tropas sírias e a invasão do Cuaite pelo Iraque são
exemplos de que pertencer a uma mesma civilização não impede os conflitos. Também disso
são exemplo as duas grandes guerras a que a civilização ocidental submeteu o mundo.
Por outro lado, se as civilizações são incapazes de garantir a ausência de
conflitos dentro de si mesmas, é formidável constatar como conseguem unir os Estados
quando há uma provável ameaça externa. Novamente, o caso da civilização islâmica é
emblemático. Quando, no início de 2006, um jornal dinamarquês publicou algumas charges de
Maomé, assistiu-se a intenso movimento islâmico contra o Ocidente e, principalmente, contra
a Dinamarca. É interessante notar que não foi apenas a população de Estados islâmicos que se
insurgiu contra as charges dinamarquesas ao sair enfurecida às ruas ou ao boicotar os produtos
dinamarqueses, mas também o governo desses Estados reclamou retratação formal por parte
do governo de Copenhague e exigiu punição aos responsáveis pelas charges.
O alinhamento dos Estados islâmicos configura-se de modo claramente cultural.
Um suposto insulto é tomado como um insulto a todos os islâmicos. Também os Estados
ortodoxos, sempre que se encontraram em conflito com Estados de outras civilizações
119
apelaram principalmente à Rússia, maior Estado ortodoxo e centro da civilização ortodoxa. O
Ocidente, por sua vez, apresenta discordâncias dentro de si mesmo, em parte por possuir dois
centros, os Estados Unidos e a União Européia, mas, ao mesmo tempo, exibe certa consciência
de sua unidade civilizacional.
A incongruência entre as fronteiras políticas e as fronteiras culturais, assim,
torna-se o elemento deflagrador dos conflitos. Estados pertencentes a diferentes civilizações
que mantêm relações conflituosas, muito provavelmente, verão surgir conflitos ao longo de
suas fronteiras, principalmente se houver incongruência entre elas.
Ao tornar-se o componente essencial da ordem mundial do pós-Guerra Fria, a
cultura fortalece as identidades civilizacionais e evidencia sua própria territorialização. Então,
quando as fronteiras culturais não coincidem com as fronteiras políticas, as identidades podem
tornar-se o princípio desencadeante dos conflitos culturais e territoriais. Uma vez que a cultura
somente se realiza territorialmente, os conflitos culturais refletir-se-ão no território.
É dessa forma que a cultura faz com que os Estados propendam a redefinir-se
com base nela. Em outras palavras, os Estados tendem a alterar suas fronteiras e a reorganizar
sua estrutura territorial interna segundo linhas culturais. Os conflitos ucranianos, apesar de
extremamente agressivos e a despeito de uma ameaça de secessão, não foram suficientemente
fortes para alterar a estrutura territorial ucraniana, ao contrário do que aconteceu na
Iugoslávia, que se fragmentou, na Bósnia, que se viu forçada a transformar-se em uma
federação, e no Sudão, que teve de conceder autonomia à sua porção meridional, étnica e
culturalmente diferente do norte do Estado sudanês.
Assim, a cultura, desenvolvendo-se em turnos de ruptura conceitual, de
conceito estritamente material, passou a designar as questões do espírito. Da realidade rural,
120
passou à vida urbana, para dela nunca mais dissociar-se. Agora assiste-se a nova mudança. De
componente secundário da antiga ordem mundial, passou a ser componente essencial. A
cultura tornou-se a parte elementar do sistema que compõe a ordem mundial do pós-Guerra
Fria. O território, estreitamente ligado à cultura, assume também nova importância. Destarte,
para empreender análise apropriada da ordem mundial do pós-Guerra Fria, é salutar examiná-
la sob a óptica cultural que, necessariamente, eleva consigo o território.
121
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