REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. V Nº 11 SETEMBRO/2014
Antônio Jackson de Souza Brandão & Elizabeth Ramos de Oliveira Takeda
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A CONSTRUÇÃO E A REPRESENTAÇÃO
IMAGÉTICA DA INFÂNCIA
Prof. Dr. Antônio Jackson de Souza Brandão1
http://lattes.cnpq.br/0770952659162153
Profª Elizabeth Ramos de Oliveira Takeda 2
http://lattes.cnpq.br/7451234190022248
RESUMO - O presente artigo procurará abordar, por meio de imagens, o
desenvolvimento da infância e sua valorização ao longo da história, retratando não só
seu percurso histórico-social, desde o seu anonimato e até o entendimento de suas
capacidades e habilidades, como também as várias transformações pelas quais as crianças
passaram em decorrência das mudanças socioculturais e econômicas, ocorridas ao longo
dos séculos até chegar ao século XX.
PALAVRAS-CHAVE – Representação, imagem, infância, teóricos da pedagogia,
transformação sociocultural.
ABSTRACT – This article will try to address, through images, childhood development
and its recovery throughout history, portraying not only its historical and social path
from their anonymity and to the understanding of their skills and abilities, as well as
several transformations in which children spent as a result of socio-cultural and
economic changes that occurred over the centuries to reach the 20th century.
KEYWORDS – Representation, image, childhood, theorists of education, socio-cultural
transformation
Infância: da marginalização ao centro-motor da vida familiar
Ao se falar em infância, deveria vir-nos à mente a imagem de crianças interagindo
com o mundo que as cerca por meio de atividades lúdicas, ou seja, divertindo-se e tendo
seu espaço garantido na sociedade, como um ser que necessita de cuidados específicos
1
Antônio Jackson de Souza Brandão, mestre e doutor em Literatura Alemã pela Universidade de São
Paulo (USP), é docente no Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade de Santo
Amaro (UNISA/SP).
2
Elizabeth Ramos de Oliveira Takeda, especialista em Psicopedagogia e mestranda em Ciências Humanas
na Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP), é professora na Universidade de Santo Amaro (UNISA) e
no Centro Universitário SENAC/SP.
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para desenvolver-se e ampliar sua visão de mundo; tendo, em meio a tudo isso, o
carinho, o afeto e a proteção dos pais, a alegria dos avós e dos familiares. Tal situação, no
entanto, nem sempre foi assim.
Na Grécia antiga, como em toda a cultura antiga, a infância era simplesmente
ignorada, posta à margem de toda vida e atividade social, como uma fase sem nenhuma
importância para o pleno desenvolvimento humano: mera “idade de passagem, ameaçada
por doenças, incerta nos seus sucessos; sobre ela [...] se faz um mínimo investimento
afetivo.” (CAMBI, 1999, p. 81-82) Seu destino é selado no momento do nascimento, já
que o pai pode, simplesmente, enjeitá-la; e, caso isso ocorra, é largada à própria sorte, ou
melhor, acudida por alguém que fará dela um objeto pecuniário ou sexual, pois em
breve poderá vendê-la ou explorá-la sexualmente, já que muitas crianças nessas condições
eram submetidas “a estupro, a trabalho, até a sacrifícios rituais. O menino [...] é um
‘marginal’ e como tal é violentado e explorado sob vários aspectos”. (ibidem, p. 82)
Figura 1
Banquete ou cerimônia familiar, antes de 79 A.D.
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Não muito diferente era a infância em Roma, já que as crianças eram tratadas nos
mesmos tom e termos e com que se lidava com os escravos e os seres inferiores
(VEYNE, 2009); além disso, o nascimento para o cidadão romano não era um mero
acontecimento biológico, já que havia muitas implicações (fig. 2):
Os recém-nascidos só vêm ao mundo, ou melhor, só são recebidos na
sociedade em virtude de uma decisão do chefe de família [...]. Em Roma um
cidadão não “tem” um filho: ele o “toma”, “levanta” (tollere); o pai exerce a
prerrogativa, tão logo nasce a criança, de levantá-la do chão, onde a parteira a
depositou, para tomá-la nos braços e assim manifestar que a reconhece e se
recusa a enjeitá-la. [...] A criança que o pai não levantar será exposta diante da
casa ou num monturo público, quem quiser que a recolha. (ibidem, p. 21)
Isso poderia ocorrer mesmo na ausência do pai, caso este já houvesse rejeitado a
criança ainda na gravidez da mulher. Tal fato se dava devido a vários fatores, como uma
suspeita de infidelidade da esposa, ou para que o nascimento não perturbasse “as
disposições testamentárias já estabelecidas” (ibidem, p. 21) anteriormente, pois a lei era
clara a esse respeito: “‘o nascimento de um filho (ou filha) rompe o testamento’ já
selado” (ibidem, p. 22).
É evidente que o instinto maternal impelia muitas mulheres aristocráticas, à
revelia dos maridos, a entregarem seus filhos enjeitados a pessoas próximas, inclusive a
escravos, a fim de que os criassem. Apesar de saber que nunca poderiam tê-los
novamente, afinal também se tornariam escravos, bastava-lhes a vaga esperança de que
também seriam, quem sabe um dia, libertados.
Convém ressaltar que, se crianças sadias – geradas dentro do casamento – eram
tratadas como objeto, as que nasciam com algum tipo de má formação eram, de pronto,
rejeitadas ou afogadas, já que “é preciso separar o que é bom do que não pode servir para
nada”, conforme disse Sêneca. (ibidem, p. 22)
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Figura 2
Cenas da vida de uma criança, sarcófago de Cornélio, Museu do Louvre, séc. II A.D.
Se, por um lado, mulheres aristocráticas entregavam suas crianças para que
escravos as adotassem, salvando-lhes da morte, mesmo que o preço fosse a escravidão;
por outro, também havia escravas que concebiam de seus senhores. Muitos destes
aproveitavam de seu senhorio para valer-se de suas servas (ancillarioulus) sexualmente, as
quais poderiam engravidar, gerando filhos ilegítimos também escravos. De um modo
diferente do que ocorre hoje, isso não representava alguma garantia, segurança ou
mesmo benefício para a serva. Isso porque a rígida legislação romana não permitia
regularizar tais concepções fora do casamento, sequer se poderia falar a esse respeito:
agia-se como se nada houvesse ocorrido, sendo o silêncio da serva tácito; bem como a
indiferença do senhor que via o número de seus servos aumentar.
Um costume romano, no entanto, poderia fazer com que tais crianças
permanecessem dentro da casa do senhor, salvando as aparências desses filhos ilegítimos
que eram, algumas vezes, reconhecidos e amados por seus pais; sem, contudo, chamar a
atenção da sociedade:
Os romanos gostavam de ter em casa um menino ou uma menina, jovem
escravo ou criança encontrada, que criavam (alumnus, threptus) porque o
"mimavam" (deliciae, delicatus) e o achavam engraçadinho; tinham-no consigo
durante os jantares, brincavam com ele, suportavam-lhe os caprichos; às vezes
davam-lhe uma educação "liberal", reservada, em princípio, aos homens livres.
A vantagem desse costume consistia em ser perfeitamente equívoco: o
queridinho pode servir como brinquedo, mais também como favorito; pode
ser uma espécie de filho adotivo sem que se deva pensar mal, e pode ser
igualmente um rebento que se favorece em segredo; sem esquecer o batalhão
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de aparato composto de adolescentes que se chamariam pajens, se fossem de
bom nascimento: mas também são escravos. (VEYNE, 2009, p. 80-81)
Muitas dessas crianças, contudo, não passavam de brinquedos com os quais os
amos e seus convidados se divertiam afetuosamente (fig. 1); para uns era um favorito
entre os outros serviçais; para outros, não passava de um animal de estimação, já que os
brinquedos mais apreciados naquele momento “eram vivos: pássaros, cães, coelhos.”
(ibidem, p. 82)
Figura 3
Crianças brincando com nozes. Dois fatos chamam a atenção da cena: meninos e meninas brincando
juntos (antes dos doze anos, provavelmente) e as roupas com que são representados. Sarcófago do séc. III
Interessante perceber que, não raro, os senhores demonstravam a essas crianças
atitudes afáveis que podemos hoje considerar dignas da paternidade; diferente, no
entanto, daquela que havia em relação a seus seus filhos legítimos:
o gosto da paternidade devia desabrochar mais pateticamente num menino
sem importância social que no filho legítimo que era preciso criar com
severidade, como continuador da família e inimigo secreto do atual detentor
de sua futura herança. [...] o queridinho ou queridinha indubitavelmente é o
rebento secreto do pai de família. Tanto que são tratados como homens livres:
vestidos como príncipes, cobertos de joias, não saem sem um cortejo; falta-
lhes apenas a veste dos adolescentes de nascimento livre. (ibidem, p. 82)
Além dos filhos legítimos e dos enjeitados, havia também os adotados. A adoção,
contudo, não se fazia por compaixão, mas por necessidade. Pretendia-se com ela ou a
manutenção do nome familiar, impedindo sua extinção; ou seguir uma imposição da lei
que exigia, de modo especial para aqueles que queriam participar das honras públicas ou
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do governo das províncias (ibidem, p. 28), uma família e um herdeiro. Não é de se
estranhar que muitos dos adotados fossem, inclusive, adultos, não crianças como hoje.
Quanto à educação, as crianças romanas frequentavam as escolas, que eram
mistas, dos sete aos doze anos. É possível ver isso nas representações escultóricas, nas
quais se veem meninos e meninas brincando juntos (fig. 3). Após essa fase, separam-se: os
meninos, se pertencerem a uma família abastada, continuam a estudar: mesmo que seja
sob o chicote de um gramático ou de um professor de literatura, quando conhecem os
autores clássicos e a mitologia” (ibidem, p. 30); as meninas, por sua vez, entram na idade
núbil, já que aos quatorze são consideradas adultas.
Figura 4
Escola monástica, iluminura do século XIII
Na Idade Média, uma das grandes lutas na infância era a sobrevivência, visto que a
mortalidade infantil era muito grande devido a fome, epidemias ou guerras. Nestas, por
exemplo, as meninas e os meninos com menos de três anos, juntamente com as
mulheres, faziam parte do butim, sendo levados como escravos; os garotos acima dessa
idade eram mortos. (ROUCHE, 2009, p. 450)
Muitos pais, de modo especial os mais pobres, diante de mais um nascimento,
viam naquela criança apenas mais uma boca para alimentar; além disso, ao terem
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consciência de que ela poderia morrer cedo nessas condições, procuravam não se apegar
as mesmas, deixando-as, muitas vezes, em mosteiros para que que ficassem aos cuidados
dos monges (fig. 4). Estes tendiam a ser, extremamente, complacentes com os enjeitados,
de modo especial com os menores tratados com extrema docilidade. Tal tratamento,
porém, mudava, de modo radical, quando chegavam à puberdade e os monges
retomavam “a boa e velha severidade” (ibidem, p. 451).
Figura 5
Santo Agostinho ressuscita criança que caiu do berço, Simone Martini, cerca de 1328.
Ao alcançar a maioridade, os jovens dos monastérios ou
tomavam ou recusavam os votos perpétuos. Entrementes, porém, haviam
recebido uma educação radicalmente contrária às práticas pedagógicas do
século. Em lugar de criar os meninos para a agressividade e as meninas para a
submissão, os pedagogos monásticos recusam a palmatória e procuram
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conservar as virtudes da infância vistas como fraquezas por seus
contemporâneos. (ibidem, p. 450)
É evidente que a infância sempre foi fato desde a Antiguidade, assim como no
medievo, porém faltava à criança um efetivo reconhecimento, não como um adulto em
miniatura, mas como um ser que requer cuidados específicos para seu desenvolvimento.
Assim, diante dessa sua adultização pela qual passou ainda durante seu processo de
formação, era simplesmente explorada em trabalhos excessivos que, muitas vezes,
resultavam em óbito precoce devido a sua fragilidade.
Nesse sentido, como ainda inexistia o cuidado e o sentimento de infância, à
medida que iam morrendo, eram simplesmente substituídas por outras, que davam
continuidade às atividades que precisavam ser terminadas.
Figura 6
“Madona di Crevole”, Duccio di Buonisegna, 1283-84
Partindo do contexto de exploração do trabalho infantil e da pouca importância,
que as crianças teriam naquela sociedade; Ariès (1981), ao analisar a arte medieval,
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constatou que quase não havia a presença de crianças em suas pinturas, apesar de aquela
sociedade possuir pintores habilidosos. A exceção se dava na figura do menino Jesus,
modelo de infância que existia, afinal se vivia em uma Weltanschauung cuja
representação principal era a de um mundo teocrático (fig. 6).
Mesmo assim, tal representação é sempre isolada num mundo adulto em que há a
centralização da figura de Maria, da presença de santos – como no afresco de Fra
Angelico no convento dos dominicanos em Florença, Maria com o Menino Jesus e
Santos, de 1437-1446 –, ou de anjos – como no tondo de Botticelli, Maria com o
Menino Jesus e cinco anjos, de 1483/85.
Figura 7
Madona del Sacco, Pietro Perugino, 1495-1500
Quando, porém, há a representação de uma outra criança, essa é, normalmente, a
figura de São João Batista menino, como na obra de Pietro Perugino, Madona del
Sacco, de 1495 (fig. 7); no tondo de Piero de Cosimo, Adoração da Criança, de 1500; ou
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em várias pinturas de Raffael, como a Maria com o Menino Jesus e João Batista, de
1507.
Não poderemos, portanto, caminhar na percepção da infância, sem considerar o
contexto sociocultural ao qual ela estava inserida, pois sabemos que sua realidade sempre
existiu em todos os períodos da humanidade, mas é a sociedade e sua cultura que
projetam esse conceito, o qual é recente e data, aproximadamente, do século XVII:
Com efeito, crianças existiram desde sempre, desde o primeiro ser humano, e
infância como construção social – a propósito da qual se construiu um
conjunto de representações sociais e de crenças e para a qual se estruturaram
dispositivos de socialização e controle que a instituíram como categoria social
própria – existe desde os séculos XVII e XVIII. (SARMENTO. PINTO, 1997,
p.13)
Na passagem da Idade Média para a Renacença, não há uma expressiva
transformação em relação ao mundo infantil, apesar das significativas mudanças sociais
proporcionadas pela ascendente burguesia, como a busca da privacidade, por exemplo.
Ao nascer, as crianças eram separadas da mãe e confiadas a amas-de-leite que, em raros
casos, conviviam na mesma casa dos patrões. Se sobrevivessem, retornariam à casa dos
pais meses depois (muitas chegavam a permanecer dezoito meses fora). Ao regressarem,
ficavam em berços próximo à cama da mãe ou suspensas no teto (DUBY, 2009),
conforme a figura 5.
Apesar de a ideia de infância ainda não estar totalmente constituída, pelo menos
já apareciam nas artes, mesmo que estejam inseridas nas atividades dos adultos: não se
dava importância para sua fragilidade, sequer havia ambientes apropriados para que
pudessem exercer atividades de acordo com a sua faixa etária. É possível ver esse
embaralhamento no quadro de Bruegel de 1560 (fig. 8), quando é possível ver que
crianças e adultos ocupavam os mesmos espaços sociais. Nota-se, porém, de acordo com
o pintor, que as crianças começam a ocupar o espaço público para suas próprias
brincadeiras.
No quadro, pode-se perceber que as vestimentas das meninas são semelhantes a de
suas mães: não havia diferença entre elas, afinal as crianças não passavam de pequenos
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adultos, envolvidos também em atividades que não deveriam ser suas. Há uma relação
entre trabalho e brincadeira, como se as crianças deixassem rapidamente as brincadeiras
para terminar os afazeres do trabalho.
Ainda segundo Ariès,
Por volta de 1600, a especialização das brincadeiras atingia apenas a primeira
infância; depois dos três ou quatro anos, ela se atenuava e desaparecia. A partir
dessa idade, a criança jogava os mesmos jogos e participava das mesmas
brincadeiras dos adultos, quer entre crianças, quer misturada aos adultos.
Sabemos disso graças principalmente ao testemunho de uma abundante
iconografia, pois, da Idade Média até o século XVIII, tornou-se comum
representar cenas de jogos: um índice do lugar ocupado pelo divertimento na
vida social do Ancien Régime. (...) Inversamente, os adultos participavam de
jogos e brincadeiras que hoje reservamos às crianças. Um marfim do século
XIV representa uma brincadeira de adultos: um rapaz sentado no chão tenta
pegar os homens e as mulheres que o empurram. (...) Logo, podemos
compreender o comentário que o estudo da iconografia dos jogos inspirou ao
historiador contemporâneo Van Marle: “Quanto aos divertimentos dos
adultos, não se pode dizer realmente que fossem menos infantis do que as
diversões das crianças”. É claro que não, pois se eram os mesmos!” (ARIÈS,
1981, p. 92-93).
Parece-nos que a preocupação nesta época, não era apenas a de retratar atividades
específicas para crianças – considerando, por exemplo, sua faixa etária –, mas apresentar a
apresentação de brincadeiras e jogos, em que todos – crianças e adultos – podiam
participar sem a intenção específica de se focar no desenvolvimento do amplo
repertório de habilidades que tais atividades poderiam acrescentar no campo psicomotor
das crianças.
A sociedada ainda estava em fase de absorver as rápidas mudanças pelas quais
estava passando. Verifica-se, por exemplo, que mesmo diante da alegria retratada no
quadro de Brugel, havia um pessimismo reinante naquela sociedade, para a qual tudo não
passava de melancolia. Tal conceito, segundo Huizinga (1996), possuía vários
significados no período, como fantasia, tristeza e reflexão; estendendo-se, inclusive, para
certas mesquinharias em relação à própria vida e, como não poderia deixar de ser, em
relação à própria criança.
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O historiador holandês cita, inclusive, um texto de Eutache Deschamps, autor
contemporâneo daquele período, em que se demonstra isso:
Feliz é aquele que não tem filhos porque as crianças não fazem senão chorar e
cheiram mal; só dão trabalhos e cuidados; têm de ser vestidas, albergadas,
alimentadas; contraem doenças e morrem. Quando são crescidas podem seguir
por maus caminhos e ser presas. Nada senão cuidados e desgostos; nenhuma
felicidade nos compensa das aflições, dos trabalhos e das despesas com a sua
educação. Há maior mal do que ter filhos aleijados? (HUIZINGA, 1996, p.
35)
O período também foi marcado pelo aumento do infanticídio, de modo especial
praticado pelas famílias mais pobres, bem como do abandono, como demonstra a criação
de vários locais de acolhimento dessas crianças. (DUBY, 2009) As que eram mantidas em
casa, deveriam dividir o espaço (e a comida!) com vários irmãos e, apesar de não lhe ser
negado o direito de brincar, cedo elas viam-se ocupadas com as preocupações dos mais
velhos e tinham de começar a trabalhar muito cedo, por volta dos seis, oito anos.
(ibidem)
Figura 8
Jogos Infantis – Pieter Bruegel, 1560
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A ruptura, porém, com o antigo modelo medieval fazia-se inevitável, como
demonstram duas instituições: a família e a escola. Estas “se tornam cada vez mais
centrais na experiência formativa dos indivíduos e na própria reprodução (cultural,
ideológica e profissinal) da sociedade” (CAMBI, 1999, p. 203) que se torna, da mesma
maneira, mais individualizada.
Figura 9
XXXIX Caput & Manus (cabeça e mão), Orbis Sensualium Pictus, Comenius
Assim, a configuração coletiva da sociedade vai cedendo espaço para uma mais
individual, e o homem do medievo que se reconhecia “apenas como raça, povo, partido,
corporação, família ou sob qualquer outra das demais formas no coletivo”
(BURCKHARDT, 2009, p. 145) vai, aos poucos, reconhecendo a si mesmo e a seu rosto
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particular. Não tardou e, ao descobrir-se enquanto indivíduo e inserido numa família
também individual, surge um “sentimento da infância” em que a criança passa a ser cada
vez mais “o centro-motor da vida familiar”, nascendo o “sentimento moderno da
família”. (CAMBI, 1999, p. 204-205)
A descoberta da Infância
A visão em relação ao bem-estar da criança começou a transformar-se quase
radicalmente já a partir do século XVI, quando se buscava, nos meios mais abastados, a
preservação de sua vida. Isso fica claro diante da não aceitação de sua morte de forma
passiva e resignada: “recusar a desgraça tentando curá-la” (GÉLIS, 2009, p. 309) passa a
ser um dos objetivos dos pais. Antes, esses apenas possuíam “a consciência da vida, do
ciclo vital [...] e não lhes restava outro recurso” (ibidem, p. 309) que gerar um outro
filho; afinal, apesar da dureza da vida, era necessário perpetuar o corpo da linhagem, já
que “seu dever vital resumia-se em dar a vida”. (ibidem, p. 306)
O mesmo sentimento estendeu-se no século XVII, quando a criança precisaria ser
compreendida como um ser em desenvolvimento e, portanto, deveria receber cuidados
especiais que lhe garantissem uma sobrevida maior. Assim, John Locke em seu Da
educação das crianças, de 1693, fala da importância da prevenção da saúde como meio
eficaz para sua preservação:
Falando aqui da saúde, meu objetivo não é dizer-vos como um médico deve
tratar uma criança enferma ou valetudinária, mas apenas indicar o que os pais
devem fazer, sem o recurso da medicina, para conservar e aumentar a saúde de
seus filhos ou pelo menos para dar-lhes uma constituição que não esteja sujeita
a doenças. (LOCKE, apud GÉLIS, 2009, p. 309)
No mesmo período, o grande pedagogo Comenius relembra a importância da
criança em seu Didactica Magna, de 1657, para as quais não se podem medir esforços em
lhe dar uma boa educação, afinal é nessa idade que seu cérebro se molda, já que
“semelhante à cera [...] é apto a receber todas as figuras que se lhe apresentam”
(COMENIUS, 2001, p. 87-88 e 114): esse é o momento propício à formação do homem,
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pois somente a educação é que nos torna, verdadeiramente, humanos: “todos aqueles que
nasceram homens é necessária a educação, porque é necessário que sejam homens, não
animais ferozes, nem animais brutos, nem troncos inertes.” (ibidem, p. 109) Ainda
empregando a imagem da cera, o grande pedagogo continua dizendo, a respeito do
cérebro infantil, que este “é inteiramente húmido e mole e apto a receber todas as figuras
que se lhe apresentam; mas depois, pouco a pouco, seca e endurece” (ibidem, p. 114), daí
a dificuldade, muitas vezes, de se ensinar homens adultos.
Figura 10
Meninos jogando dados, Murillo, 1675
A própria questão da formação e emprego imagéticos como método pedagógico
não ficará apenas na teoria, mas também na prática de Comenius (PIAGET, 1999). Este
empregará, em seu Orbis sensualium Pictus, de 1658 (fig. 9), imagens, direcionando-as
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como metodologia de ensino, de modo especial na aprendizagem de outras línguas e na
produção de conhecimento pelas crianças.
Locke, seguindo a linha de Comenius, falará de como se deve ministrar os
ensinamentos às crianças por meio de “exercícios”, do “raciocínio” e do “hábito”, já que
elas “sabem raciocinar desde quando começam a falar e [...] gostam de ser tratadas como
criaturas racionais” (CAMBI, 1999, p. 319) não como seres brutos.
Verifica-se, na arte, a efetiva retratação da infância, quando se constata certo
alijamento do sacro – deixa de ser apenas inserida nesse contexto – num período
extremamente religioso que foi o século XVII. Isso fica claro nas obras de Murillo (fig.
10) ao retratar seus meninos nas ruas de Sevilla em atitudes banais; como, por exemplo,
jogando dados (que não era, moralmente, aceito), catando piolhos, comendo. Há, nas
cenas retratadas, um ponto comum: a expressividade e a alegria inerentes da infância, sua
descoberta, apreensão, fixação e emprego do mundo que está a sua volta: a criança passa
a ser um motivo artístico, deixando o limbo em que estava reclusa.
Já a partir da século XVIII, as crianças não só são tratadas como seres pensantes e
racionais, como também são amadas e estimadas. Dessa maneira, os pais veem a
necessidade de educá-las e acabam delegando parte dessa sua obrigação – encorajados pela
Igreja e pelo Estado – ao educador e à escola (GÉLIS, 2009), afinal são raros aqueles que
saibam, possam ou “tenham tempo suficiente para se dedicarem à educação de seus
filhos.” (COMENIUS, 2001, p. 120)
Verifica-se, cada vez mais, que os novos teóricos vão descrevendo essa faixa etária
como um mundo cheio de possibilidades que podem ser adquiridas por meio da
aproximação com a cultura e com os objetos pertencentes a este universo; possibilitando,
assim, o desenvolvimento da linguagem oral e escrita. A criança acerca-se, cada vez mais,
do mundo adulto e se favorece dele para a construção de sua própria identidade, não
apenas como um ser a mais, ou um mero dente nessa engrenagem: a partir de modelos
de referências próximos a ela, amplia e desenvolve seu universo pessoal e cultural.
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Vamos nos deparar, já no século XVIII, com outros pensadores que continuaram
investindo no desenvolvimento da concepção de infância, entre eles Rousseau. Este
destaca que este período deve ser visto como autônomo e dotado “de características e
finalidades específicas, bem diversas das que são próprias da idade adulta” (CAMBI, 1999,
p. 346), conforme deixa claro em sua obra Emílio, onde afirma que “a infância não é
absolutamente conhecida” e “se perde” pelas “falsas ideias que se têm dela.” (ibidem, p.
346) Nesse sentido, exaltava a naturalidade e a autenticidade da criança, pois considerava
a infância uma fase diferente da do adulto. A partir desse momento, a pedagogia torna-se
puericêntrica e viu, no menino, “como disse Montessori, ‘o pai do homem.’” (ibidem, p.
387)
Figura 11
A Família Waagepetersen, Wilhelm Marstran, 1836
Pestalozzi, por sua vez, seguindo as ideias de Rousseau, dizia que a criança traz
em si mesma todas as “facilidades da natureza humana” (p. 418), mas para que
desabroche como “um botão que ainda não se abriu” (p. 418), deve-se partir da intuição,
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ou seja, da “observação intuitiva da natureza (p. 418), promotora de seu
desenvolvimento intelectual.
A primeira metade do século XIX, vemos o surgimento do Romantismo e de seus
ideais, quando se buscou uma renovação na concepção do espírito do homem e do fazer
artístico. Período em que, de modo especial, se expressam de um lado o sentimentalismo
e a idealização; e, de outro, uma forte consciência histórica com a consequente a
retomada do ideais da Europa Medieval. Além disso será, de certa forma, herdeiro do
Iluminismo e da Revolução Francesa; coroando, por fim, os ideias burgueses e
capitalistas.
Figura 12
Crianças brincando (estudo), Max Liebermann, 1875
Esse século também será paradoxal de muitas maneiras: se de um lado a criança
passa a ser reconhecida como um ser humano de fato, mas inserido em um outro estágio
de desenvolvimento diferente da fase adulta; por outro, será refém de sua própria
fragilidade: empregada como mão de obra barata e submissa. Além disso, apesar de o
emprego das amas de leite atingirem altos níveis, as mães burguesas aprenderam a se
ocupar, efetivamente, de seus filhos (PERROT, 2009), conforme a retratação de Morisot.
(fig. 13)
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Diante de tanta transformação, a própria imagem da criança também mudará,
assim como o conceito de educar, calcado agora na formação completa do homem, em
sua Bildung, cujo fulcro principal será a busca pelo homem integral, capaz de conciliar,
sensibilidade e razão (CAMBI, 1999, p. 420), a fim de que cresça em sua totalidade
humana e que de catalize a tensão do eu. Não é à toa que a arte terá um papel central
nesse processo, elaborando “por meio da fantasia, um equilíbrio de necessidade e de
liberdade, de intelecto e sentimento,” (ibidem, p. 421)
Figura 13
O berço, de Berthe Morisot, 1872
Para Fröbel, um dos grandes pedagogos do período, deve-se reforçar a capacidade
cognitiva da criança, sua “vontade de mergulhar no mundo-natureza [fig. 15], de
conhecê-lo, dominá-lo, participando de sua atividade criativa com o sentimento e pela
arte” (ibidem, p. 426); mas, para isso, são imprescindíveis as brincadeiras, o canto, o
jogo, com os quais se estimularão não só sua aprendizagem e desenvolvimento internos,
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como também sua aptidão para vencer obstáculos que se acercarão dela em sua fase
adulta (fig. 14):
Figura 14
Momento de brincar de cozinhar no Jardim da Infância, Frankfurt a.M., por volta de 1900
A brincadeira é a fase mais alta do desenvolvimento da criança [...], pois ela é a
representação autoativa do interno – representação do interno, da necessidade
e dos impulsos internos. A brincadeira é a mais pura, a mais espiritual
atividade do homem neste estágio e, ao mesmo tempo, típica da vida humana
como um todo – da vida natural interna escondida no homem e em todas as
coisas. (FRÖBEL apud ARCE, 2002, p. 60-61).
Mesmo ainda sem ter acesso à química do cérebro e a seus neurotransmissores,
como a endorfina descoberta em 1975, Fröbel, empiricamente, constatou que a
brincadeira
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dá alegria, liberdade, contentamento, descanso interno e externo, paz com o
mundo. Ela tem a fonte de tudo que é bom. A criança que brinca muito com
determinação autoativa, perseverantemente até que a fadiga física proíba,
certamente será um homem (mulher) determinado, capaz do autossacrifício
para a promoção do bem estar próprio e dos outros. (ibidem, p. 60-61)
Figura 15
Crianças na jardinagem no Jardim da Infância do Pratt Institut, Nova York, 1905
Afinal a brincadeira é, naturalmente, um “indutor de produção e de circulação de
endorfinas” (NEGRINE, 2014), ou seja, vai além de um mero ato desprovido de
significado, individual, inútil ou mesmo banal que se acerca de uma determinada atuação
sociocultural, para adentrar em fatores biológicos extremamente relevantes (ibidem).
Brincar, portanto, libera esses “agentes ‘biolétricos’ transmissores de energia vital”
(ibidem) que nos dão uma não apenas uma sensação de bem-estar e prazer (fig. 11), como
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também nos preparam para enfrentar os reveses da vida, já que sua ausência pode,
inclusive, causar certas patologias.
Dessa maneira, brincar faz parte integrante do se estar criança; e não é, de
maneira alguma, trivial, pois diante de todas as conquistas da criança ao longo dos
tempos, a importância do brinquedo e da brincadeira na prática educativa é,
seguramente, uma das mais expressivas. Isso porque, por meio do brincar revela-se,
mesmo que de maneira incipiente,
o futuro da vida interna do homem. As brincadeiras da criança são as folhas
germinais de toda a vida futura; pois o homem todo é desenvolvido e
mostrado nelas, em suas disposições mais carinhosas, em suas tendências mais
interiores. (FRÖBEL apud ARCE, 2002, p. 60-61).
Não é à toa que uma das grandes contribuições de Fröbel para o desenvolvimento
da criança foram os “jardins de infância” (Kindergarten). Espaços aparelhados e voltados,
de maneira especial, para o jogo e o trabalho infantil, organizados por uma professora
que orienta as atividades, “sem que estas jamais assumam uma forma orgânica e
programática, como ocorre nas escolas”. (CAMBI, 1999, p. 426) A “intuição das coisas”
e do mundo que a cerca é colocada no centro das atividades num local onde há áreas
verdes e canteiros que visam a estimular as mais variadas atividades das crianças, sempre
a partir do lúdico:
Der wissenschaftliche Fokus auf den Kindergarten hat seinen Ursprung in
religiösen Konzepten, die ausgehend von Friedrich Fröbels (1782-1852) Idee
über die Enheit von Individuum, Gott und Natur die Aufgabe des
Kindergartens darins sah, diese Einheit dem Kind mithilfe eigens konstruirter
Spiel- oder Baugaben erfahrbar zu machen. (ECARIUS. KÖBEL. WAHL,
2011, p. 102)
Infelizmente, apesar de todas essas descobertas referentes à infância no século
XIX, o período presenciou o emprego de muitas crianças – a partir dos sete, oito, nove
anos – em regime de quase escravidão em minas de carvão (fig. 16) ou em fábricas (fig. 17
e 18), nas quais trabalhavam mais de quinze horas por dia (HUBERMAN, 1985, p. 191-
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192); vendo-se, portanto, alijadas dessa necessidade básica que são os jogos e as
brincadeiras.
Figura 16 Breaker boys das minas de carvão, Lewis Hine, 1909
Huberman (1985, p. 190), ao falar dos horrores do capitalismo industrial, diz que
os industriais
compravam o trabalho das crianças pobres, nos orfanatos; mais tarde, como
os salários do pai operário e da mãe operária não eram suficientes para manter
a família, também as crianças que tinham casa foram obrigadas a trabalhar nas
fábricas e nas minas.
Anteriormente, o mesmo autor afirmou que os donos das fábricas viam tudo o
que estava no inteirior de sua propriedade como algo que lhe pertencesse, fossem as
mãos fossem as máquinas; davam, no entanto, sempre preferência a estas – por
representarem um investimento – em detrimento daquelas. Além disso, por as crianças e
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as mulheres receberem menos que os homens, cabiam a elas trabalhar, enquanto muitos
homens ficavam em casa, sem ocupação. (ibidem, p. 190)
Figura 17
Gravura do século XIX retratando meninas em uma fiação
De forma lamentável, tal situação não se limitou ao século XIX, mas estendeu-se
também pelo XX, conforme demonstrou o fotógrafo estadunidense Lewis Hine, em sua
série de fotografias-protesto contra o trabalho infantil, quando nos mostra os rostos de
crianças desprovidas de alegria, de sonhos e de esperanças, conforme se pode ver na
figura 16.
Assim, ao se chegar ao século XX, deparamo-nos com uma criança que, apesar de
todas as vicissitudes da pobreza e do capitalismo selvagem que ainda vai explorá-la como
mão de obra barata; é possivel ver que, enquanto representação, a mesma já é retratada
demonstrando seu sentimento de infância. Isso pressupõe que a sociedade mudou e,
mesmo com seu resgate da penumbra da história ainda que de forma incompleta, se
manteve a preocupação por seu desenvolvimento.
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Figura 18
Crianças trabalhando em uma fiação, primeira década do século XX, Lewis Hine
Tendo isso em mente, vemos, por exemplo, Picasso com sua sensibilidade cubista
retratar sua filha, Maya, segurando uma boneca (fig. 19): não é mais possível dissociar a
imagem da criança da brincadeira, nem do brinquedo: afinal, este vai auxiliá-la a ter
iniciativa, a desenvolver sua imaginação, a expressar sua criatividade.
Nesse sentido a obra é demonstração do retrato da infância, ao longo de suas
transformações sociais, uma vez que esta obra demonstra bem o perfil infantil que
retrata tanto a antiga situação da infância, quanto a atual com seus direitos garantidos.
Mesmo geomentricamente esfacelada em sua representação, Maya representa a vitória
da infância (mesmo que ainda se encontre estilhaçada em muitos lugares), já sua boneca
mantém-se íntegra e de braços abertos: continua cumprindo seu papel de conduzir e
reconduzir a infância à idade adulta.
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Não se pode esquecer, porém, que conforme a época, o perfil de infância também
vai se pautando em vários modelos vivenciados pela sociedade em que está inserida, além
daqueles “delineados nas esferas científicas, políticas, econômicas e artísticas, construindo
e desconstruindo imagens” (FURLANETTO, 2006, p. 12); mas, apesar disso, não se
pode esquecer que “a criança tem um mundo próprio – com seu tempo, seus desejos,
suas ideias – cabendo ao adulto compreendê-la.” (ibidem, p. 12)
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Figura 20
Maya com sua boneca, Picasso,1938
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