UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS
MESTRADO EM HISTRIA
ECOS DO SUBTERRNEO: A Questo da Juventude e do Movimento Punk como
Subcultura - A Dcada de 80.
Daniela Lemes Canhte Orientador: Prof. Dr. Luiz Srgio Duarte da Silva
Goinia
2004
DANIELA LEMES CANHTE
- ECOS DO SUBTERRNEO -
A Questo da Juventude e do Movimento Punk como Subcultura - A Dcada de 80.
Dissertao apresentada ao curso de Mestrado em Histria da Universidade Federal de Gois para
obteno do ttulo de Mestre em Histria. Orientador: Prof. Dr. Luiz Srgio Duarte da Silva
GOINIA 2004
Canhte, Daniela Lemes. Ecos do Subterrneo: A questo da juventude e do movimento punk como subcultura. / Daniela Lemes Canhte. Goinia, 2004. 148 f. il, , enc. Bibliografia: Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Gois, Faculdade de Cincias Humanas e Filosofia, 2004. 1. Histria. 2. Jovens. 3. Movimentos Juvenis. 4. Punk. I. Ttulo.
CDU: 316.723-053.6
DANIELA LEMES CANHTE
ECOS DO SUBTERRNEO: A Questo da Juventude e do Movimento Punk como
Subcultura A Dcada de 80.
Dissertao defendida e aprovada em ________ de __________ pela Banca Examinadora constituda pelos professores.
___________________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Srgio Duarte da Silva
Presidente da Banca
___________________________________________________________ Prof. Dr. Dulce Amarante dos Santos
___________________________________________________________ Prof. Dr. Francisco C. Evangelista Rabelo
___________________________________________________________ Prof. Dr. Maria Tereza Negro de Melo
A todas as bandas punks e aos punks que conheci durante a confeco deste trabalho.
Agradecimentos,
Deus, meus pais, Anderson, Alessandro Animal, Prof Srgio, punks da city e a toda a galera do rock que faz de Gyn uma cidade diferente.
... o pachuco um clown impassvel e sinistro, que no tenta fazer rir, mas sim procura aterrorizar. Esta atitude sdica se alia a um desejo de auto-humilhao, que me parece constituir o prprio fundo do seu carter: sabe que sobressair perigoso e que sua conduta irrita a sociedade; mas no se importa, procura e atrai a perseguio e o escndalo. S assim poder estabelecer uma relao mais viva com a sociedade que provoca: vtima, poder ocupar um posto nesse mundo que at pouco tempo o ignorava; delinqente, ser um de seus rebeldes malditos.
Octavio Paz
SUMRIO RESUMO.............................................................................................................................09 ABSTRACT.........................................................................................................................09 INTRODUO...................................................................................................................10
1. A JUVENTUDE COMO TEMA............................................................................14
1.1 DEFINIES DE JUVENTUDE.......................................................................16 1.2 TENTATIVAS INICIAIS...................................................................................17 1.3 A SOCIOLOGIA DA JUVENTUDE.................................................................19 1.4 A JUVENTUDE NO CONTEXTO DA MODERNIDADE..............................25 1.5 O LUGAR DA JUVENTUDE: O ESPAO PBLICO....................................36
2. OS PRIMRDIOS DO ROCK E O SURGIMENTO DO PUNK......................41
2.1 ANOS 50............................................................................................................41 2.2 ANOS 60............................................................................................................43 2.3 ANOS 70: OS PUNKS.......................................................................................47
3. O PUNK COMO SUBCULTURA JUVENIL.....................................................69
3.1 PEQUENA HISTRIA DO MOVIMENTO PUNK........................................72 3.2 A QUESTO DAS SUBCULTURAS JUVENIS........................................ ...82 3.3 O UNIVERSO SIMBLICO PUNK................................................................96 3.4 O MOVIMENTO PUNK NO BRASIL...........................................................108 3.5 A MSICA E OS FANZINES........................................................................126
4. CONSIDERAES FINAIS..............................................................................137 BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................142 FONTES............................................................................................................................147 ANEXO..............................................................................................................................149
Resumo
O objetivo desse trabalho analisar a formao de um grupo de
jovens de origem suburbana que, nos subrbios de vrias cidades ao redor do mundo, tendo como referncia os punks ingleses, assumiram caractersticas de uma subcultura juvenil. De carter internacional tendo como base de identificao os fanzines e a msica, o universo simblico dos grupos punks assumiu posio de destaque no s dentro da histria do rock, mas tambm no contexto da juventude na sociedade contempornea.
Abstract This work aims the analyses of suburban teenagers group gathering, that within various cities worldwide and influenced by the English punks, took over the underground youth culture features based on fanzines and music identification. Furthermore, the punk groups symbolic universe reached out a great international importance not only over the rock history, but also in the contemporary youth society environment.
10
INTRODUO
interessante notar que de todas as coletividades juvenis que
emergiram aps os explosivos movimentos contraculturais dos anos 60 e
elas so muitas: punks, skinheads, metaleiros, darks, gticos, entre outras -, a
que mais influncia e curiosidade despertou sobre as camadas jovens da
populao, foi, sem dvida, o movimento punk. Sua apario colocou em
evidncia uma nova forma de atuao social, diametralmente oposta quela
vivida e praticada pela juventude dos anos 60.
O mito paz e amor juntamente com a viso utpica de uma
sociedade igualitria e sem fronteiras que, orientaram por muito tempo as
aes dos jovens ocidentais, soavam no contexto dos anos 70 absolutamente
anacrnicos para aqueles jovens que, distantes da prosperidade econmica e
privados de liberdade individual, pregaram de um lado, aes coletivas em
contraposio ao autoconhecimento da dcada anterior e, de outro, a violncia
e o confronto contra a filosofia pacifista da gerao hippie.
Uma grande mudana ocorria, ento, no cenrio social e trazia tona
o desejo e as aspiraes de jovens da periferia, que tinham, num plano mais
geral, a vida duramente sacrificada pela crise econmica generalizada e, num
plano mais localizado, isto , no Brasil, encontravam-se amordaados pela
ditadura que inibia a criatividade e o invencionismo caracterstico dessa fase
da vida.
Sem dinheiro para o gasto dirio e sem atividades de lazer que lhes
ocupassem o tempo, os jovens da periferia de Londres promoveram um
levante contra o establishment e suas regras e apresentaram-se ao mundo
como uma verdadeira anttese do bom comportamento social.
11
A rebelio vista inicialmente como uma conspirao sem
propsitos, uma vez que no propunha nenhum modelo alternativo de
sociedade. O movimento, porm, logo assumiria feies de manifestaes
organizadas, deixando claro sociedade que aqueles jovens que profanavam o
presente e diziam no acreditar no futuro tambm queriam ter reconhecimento
e participao na vida social.
O propsito deste estudo consiste exatamente em compreender como
se deu participao dos punks no cenrio social durante a dcada de 80, que
contribuies trouxeram e que influncias deixaram nos movimentos juvenis.
Uma vez que o movimento juvenil no nasceu com os punks nem, to
pouco, se findou em seus limites, julgamos necessrio e tambm pertinente
reconstituir mesmo que de maneira sumria a trajetria percorrida pela
juventude ocidental at o momento da exploso punk em fins dos anos 70.
Sob a luz dessa perspectiva de anlise, compreendemos que o
nascimento da condio juvenil inexistente na Idade Mdia encontraria nas
transformaes polticas, econmicas e sociais que sacudiram o sculo XVIII
os primeiros incentivos para sua definitiva estruturao quando alguns pases
europeus a Frana principalmente pem em prtica um novo mtodo de
ensino, isto , a separao etria das salas de aula. Contudo, pode-se dizer que
foi somente no sculo XX, com o trmino da Primeira Guerra Mundial, que a
juventude comeou a assumir caractersticas de categoria social autnoma.
A grande reviravolta ainda estava, todavia, para acontecer e ela veio
com a fase de prosperidade econmica vivida pelos E.U.A. a partir dos anos
50. Esse crescimento econmico culminaria com a massificao de novas
tcnicas de comunicaes que, entre outras coisas, aceleraria e contribuiria
para a formao da identidade juvenil nas sociedades industriais do ocidente.
De tal sorte que, o final dos anos 50 e incio dos anos 60 assistiria
12
consolidao e conseqente multiplicao de organizaes juvenis por todo o
mundo.
Foi, portanto, somente aps percorrer tortuosos caminhos da histria
que compreendemos a complexidade na qual esto inseridas as subculturas
juvenis que se estruturaram na contemporaneidade. Os mtodos de violncia
adotados para a interveno social, a clandestinidade de suas organizaes e a
permanente recusa em acatar os cdigos e as normas sociais que nos levaram
a caracterizar os grupos punks de subcultura juvenil, pois, diferentemente de
outras coletividades juvenis o movimento estudantil, por exemplo seus
membros encontram-se fechados s influncias externas e fortemente ligados
por uma rede de relaes pessoais.
Assim, preciso elucidar que, quando falamos de subcultura nos
referimos identificao de idias e sentimentos que permeiam as relaes e
permite a um determinado grupo ter uma atuao comum, independente de
seus limites territoriais.
Nesse sentido, interessante observar que os beatniks e os hippies
so, pode-se dizer, as coletividades juvenis que mais se assemelham aos
grupos punks, uma vez que seus membros encontram-se igualmente ligados
por laos de simpatia e que de maneira mais geral e menos radical, tambm
recusam as influncias externas. Todavia, apesar das diversas similitudes
existentes entre esses trs movimentos separados pelo tempo, importante
esclarecer que entre os dois primeiros e o ltimo existe uma diferena
fundamental: enquanto os grupos punks so de origem marcadamente
suburbana, seus congneres do passado encontram-se fortemente ligados s
pretenses e aspiraes que norteiam os horizontes da classe mdia.
13
Responsveis pelo resgate da tradio underground1 na sociedade
contempornea, o movimento punk tem se revelado uma inesgotvel fonte de
pesquisas para estudiosos que se preocupam em entender o comportamento
juvenil na sociedade de massas.
O presente estudo tem como objetivo contribuir para o
aprofundamento do debate e das pesquisas sobre as prticas coletivas desses
grupos, suas organizaes e como interferem no cotidiano social.
A partir da pesquisa bibliogrfica e das fontes acerca do movimento
punk tornar-se- possvel o entendimento e o reconhecimento de um tema
ainda pouco estudado na histria. com esse objetivo que iniciamos este
trabalho.
1 Underground: subterrneo, marginal, subversivo. No sentido em que tal termo utilizado no movimento punk.
14
I
___________________
A JUVENTUDE COMO TEMA
As inteis querelas intelectuais, polticas e de escolas no passam da expresso do enclausuramento da intelligentsia em seu mundo que se acaba. Ela no conhece seu prprio tempo. Este se vinga com todos os tipos de excessos. Disto constituem os indcios mais marcantes volta dos diferentes fanatismos, assim como a rebelio, mais ou menos violenta dos jovens dos subrbios, para no mencionar a desero de numerosas instituies. De fato, silenciosa ou ruidosa, a revolta germina. Pois sabido que o marginal, o poeta maldito, o terico rejeitado e o rebelde de todos os tipos tendem a tornar-se a referncia incontornvel.
Michel Maffesoli, 2002.
interessante notar que ao contrrio de outras reas das cincias
humanas tais como a Antropologia e a Sociologia, os estudos histricos deram
pouca ateno questo da juventude. A dificuldade de se encontrar trabalhos
historiogrficos que inseriram a juventude em seus quadros notria, basta
percorrer as prateleiras de bibliotecas e livrarias e logo nos deparamos com o
primeiro problema. A escassez de trabalhos historiogrficos que fazem
referncia direta problemtica juvenil.
Segundo, a necessidade de se discutir tal tema esbarra na prpria
definio da categoria juventude. Fato que nas cincias histricas s ocorreu
aps o lanamento da obra de Phillipe ries2, que no trata diretamente da
2 ARIS, Philippe. Histria Social da Criana e da Famlia. Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1981.
15
questo juvenil, mas atenta para aspectos relevantes e iniciais para o que seria
a problemtica geracional, ou seja, as idades da vida.
As idades da vida ocupam um lugar importante nos tratados
pseudocientficos da idade Mdia. Seus autores empregam uma terminologia que nos parece puramente verbal: infncia e puerilidade, juventude e adolescncia, velhice e senilidade cada uma designando um perodo diferente da vida. Terminologia erudita que com o tempo se tornou familiar.3
O aprofundamento de tais questes referentes a conceitualizao do
que de fato seria a juventude, aliado sua relevncia nos contextos histricos
requer primeiramente, uma breve discusso e anlise dos primeiros e j
clssicos4 estudos que trataram a juventude como tema central em suas linhas
de interesse.
De fato, ao iniciarmos uma investigao que se aventura em percorrer
os caminhos que levam problemtica juvenil percebemos que tal questo
est diretamente ligada modernidade, como processo historicamente vivel.
Isso porque a lgica capitalista j em vias de desenvolvimento no sculo XIX
e efetivada no decorrer do sculo XX traz tona as discusses matemticas e
estatsticas da lgica de mercado. E, posteriormente, questo do mercado
consumidor. Fato que em meados do sculo XX elegera a juventude como
agente catalisador das novidades e dos bens culturais de um mercado que no
s expe produtos, mas tambm de um mercado que cria e recria estilos de
vida.
nesse exato momento que o historiador se pergunta. E a juventude
do passado? Seria impossvel lanar luz sobre o jovem de outros contextos e
3 Ibid. p 33. 4 Einsenstadt, Parsons, Fau, Flitner, Gottlieb, Hall, entre outros.
16
perodos histricos? Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt5 reuniram em uma
coletnea de textos o que seria, seno a primeira, uma das primeiras obras
historiogrficas a tratar o jovem como tema central. Tal coletnea reuniu
historiadores de diversas reas numa tentativa de se delinear aspectos da
juventude de perodos histricos diferenciados e lanar a semente sobre
possveis abordagens da questo juvenil nos contextos diversos.
Infelizmente obras como a de Levi e Schmitt so raras na
historiografia, mas tal fato no impede que novos estudos possam surgir e
iluminar um tema ainda negligenciado pelas cincias histricas. Mais uma
tentativa surge com este trabalho.
1.1- Definies de Juventude
A prpria especificidade da juventude - como uma fase da vida dos
indivduos em que as faculdades mentais e o desenvolvimento biolgico ainda
no esto plenamente estabelecidos j traz em si a primeira dificuldade do
termo, como defini-lo. Aparentemente seria tentador definir a condio juvenil
em faixas etrias visto que, ser jovem implica primeiramente, uma fase de
transio onde o indivduo deixa o mundo infantil, das brincadeiras e
fantasias, mas ao mesmo tempo no se insere no mundo adulto, das
responsabilidades sociais e econmicas. Mas tal modo de proceder no seria
suficiente na tentativa de se reconhecer o jovem tal qual ele se apresenta em
nossa sociedade.
Isto porque delimitar idades-limites para o que seria a fase juvenil
reconhecendo-a por meio de faixas etrias seria uma forma superficial de
5 LEVI, Giovanni & SCHMITT, Jean-Claude. Histria dos Jovens. Tomo I e II. So Paulo, Cia. das Letras, 1996.
17
abarcar o termo. Visto que os indivduos no pertencem s faixas etrias, eles
as atravessam. Nesse sentido nenhum limite fisiolgico basta para identificar
analiticamente uma fase da vida que se pode explicar melhor pela
determinao cultural das sociedades humanas segundo o modo pelo qual
tratam de identificar, atribuir ordem e sentido a algo que parece tipicamente
transitrio.
Desse modo podemos definir a juventude como uma categoria
social6. Mas tambm necessrio reconhec-la como produto de uma
construo cultural, visto que nas sociedades ocidentais a juventude se
reconhece e reconhecida a partir do seu tipo especfico de atuao e
representao no meio social e no caso desse trabalho urbano.
1.2 - Tentativas iniciais
Na tentativa de se entender essa fase da vida caracterizada por
mudanas biolgicas o desenvolvimento do corpo e mentais os processos
de adaptao s regras sociais do mundo adulto, a psicologia tentou abarcar o
tema da juventude. A partir de concepes adquiridas da medicina7 e da
psicanlise a psicologia moderna estabeleceu critrios desenvolvimentistas na
caracterizao e reconhecimento da juventude. A adolescncia foi o principal
tema de anlise do comportamento juvenil e a transio para a maturidade foi
o foco central. Fato que na psicologia caracterizou-se a adolescncia como o
perodo mais prximo da infncia e a juventude a fase em si de transio para
o mundo adulto. 6 Mannheim, Karl. O Problema da Juventude na Sociedade Moderna. In: Sulamita Brito (org.). Sociologia da Juventude, vol. I, Rio de Janeiro, Zahar, 1961. 7 As cincias mdicas criaram a concepo de puberdade, referente fase de transformaes no corpo do indivduo que era criana e que est se tornando maduro.Groppo, Lus Antnio. Juventude: Ensaios sobre Sociologia e Histria das Juventudes Modernas. Rio de Janeiro: Difel, 2000. p.13.
18
No incio do sculo XX, com a publicao, em 1904, da obra de
Stanley Hall intitulada, Adolescence8, considerada um marco na psicologia, a
figura do teenager se configura como o momento chave da crise caracterizada
pela passagem da infncia para a maturidade e os estudos juvenis norte-
americanos comearam a chamar a ateno de outras cincias para a
problemtica geracional.
No decorrer do sculo XX, o debate sobre a adolescncia e a juventude nos Estados Unidos iria mover-se em dois plos: por um lado, a exigncia de garantir liberdade e possibilidades de autogoverno e, por outro, a uniformizar, coletivizar e restituir ao social os impulsos criativos juvenis.9
Portanto, o nascente interesse pelos assuntos relacionados juventude
j apareceu concomitante com a tentativa de normatizar sua conduta em
sociedade. Fato que marcar o aparecimento de instituies que objetivaram
preparar o jovem para o mundo social adulto. A psicologia, a psicanlise e a
pedagogia foram os baluartes cientficos que durante a primeira metade do
sculo XX deram luz e forma ao que, posteriormente, foi a principal influncia
nas anlises em torno da questo juvenil nas cincias humanas.
A psicologia, a psicanlise e a pedagogia criaram a concepo
de adolescncia, relativa s mudanas na personalidade, na mente ou no comportamento do indivduo que se torna adulto.10
Foi, portanto, a partir do reconhecimento das faixas etrias para a
psicologia a fase entre a infncia e a maturidade abarcariam jovens entre13 e
8 G. Stanley Hall, Adolescence: its psychology and its relations to anthropology, sociology, sex crime, religion and education. New York: Routledge, 1975. 9 Giovanni Levi & Jean-Claude Schmitt. Op. cit, p.352. 10 Lus Antnio Groppo. Op. cit, p. 14.
19
20 anos, 17 e 25 anos, 15 a 21 anos, etc no sentido de limites etrios
restritos. Porm tal delimitao se mostrou insuficiente visto que a condio
juvenil estar posteriormente relacionada ao seu reconhecimento como tal em
determinada sociedade e sua representao social. Limitar a juventude dentro
de limites etrios , de certa forma, ignorar que o jovem um produto scio-
cultural, e o seu reconhecimento depende muito mais de sua atuao no meio
social do que da idade que possui. A partir de tais pressupostos ser a
sociologia a prxima cincia a se preocupar com a questo juvenil.
1.3 - A Sociologia da Juventude
Entre os anos de 1915 e 1940, a escola sociolgica de Chicago mais
conhecida como Escola de Chicago, iniciou seus estudos na rea da sociologia
urbana. O fato relevante em tais pesquisas foi adoo do termo homem
marginal no reconhecimento da especificidade das comunidades de imigrantes
na cidade de Chicago. Para os estudiosos da Escola de Chicago11 o homem
marginal seria aquele que desterritorializado de seu espao o imigrante
desenvolve novas formas de atuao em sociedade, isto , desenvolve culturas
intermedirias, hbridas, sem jamais se assimilar totalmente cultura
dominante local de fixao. Tais manifestaes designariam o desviante
social.
A partir das concepes de desvio social, homem marginal e hbrido
cultural a criminalidade foi o campo par excelence dos estudos sociolgicos
da Escola de Chicago, fato relevante para os estudos juvenis, pois, nesse
momento a gangue, foi o foco central de investigao. 11 Dentre eles: Franklin Frazier, Frederic Thrasher, Park, Sutherland entre outros.
20
Uma gangue uma gangue onde quer que se encontre. Representa um tipo especfico de sociedade... As gangues, como a maioria das demais formas de associao humana, devem ser estudadas em seu habitat particular. Surgem espontaneamente, mas apenas em condies favorveis e em um meio definido... Isto o que torna interessante o seu estudo, convenci-nos de que elas no so incorrigveis e que podem ser controladas.12
interessante notar que no foi preocupao da Escola de Chicago o
carter juvenil das gangues, os estudos giravam em torno do grupo como um
grupo desviante, mas no atentavam para a questo juvenil da mesma, o que,
como j foi dito, ser perceptvel nos estudos sociolgicos a partir da Segunda
Guerra Mundial.
A gangue uma resposta desorganizao social. Ela oferece um
substituto quilo que a sociedade no consegue dar e protege de comportamentos desagradveis e repressivos. Supre uma carncia e oferece uma escapatria.13
Ambas definies acerca das gangues datam do incio dos anos 20,
mais precisamente 1923, porm foi um marco para os estudos juvenis visto
que a concepo de gangue contribuiu para o que, na dcada de 60 seria
designado como subcultura juvenil - sobre esse termo veremos mais tarde. E,
principalmente para o surgimento do termo delinqncia usado basicamente
para caracterizar os tipos de comportamento das gangues de Chicago.
12 COULON, Alan. A Escola de Chicago. So Paulo: Papirus Editora, 1995. p. 62. 13 Ibid. p.62.
21
A gangue um grupo intersticial que se forma, em um primeiro momento, de maneira espontnea, para depois se consolidar por meio de conflito. Caracteriza-se pelos seguintes tipos de comportamento: encontros hostis, perambulaes, deslocamentos em grupo, conflitos e projetos criminosos. A conseqncia desse comportamento coletivo o desenvolvimento de uma tradio, de uma solidariedade, de uma estrutura interna no refletida, de um esprit de corps, uma moral, uma conscincia de um grupo e uma ligao a um territrio.14
A partir da concepo de delinqncia surgiu a idia de que as
gangues de Chicago possuam um fator relevante, eram grupos de jovens, e
essa percepo marcou a grande influncia da Escola de Chicago para os
estudos juvenis das dcadas posteriores. Para Thrasher15, muitas gangues no
resistiam ao desgaste do tempo. A solidariedade de uma gangue nunca era
muito duradoura.
Se os jovens se tornam membro das gangues porque trazem em si uma energia sem uso que nenhum modelo social desejvel capaz de controlar, mas que tem ocasio de se expressar nas gangues de maneira mais livre e mais espontnea.16
Para Shaw17 (1929), um ato delinqente uma parte do processo
dinmico da vida do indivduo. Para ele, enquanto a delinqncia no for
considerada com relao ao seu contexto na histria do indivduo, no ser
compreensvel e no poder ser tratada com eficcia. Dessa forma, a
delinqncia urbana dos jovens deve ser explicada por fatores sociais, pois, a
influncia da organizao social e da herana cultural sobre o indivduo, so
fatores determinantes.
14 Ibid. p.64. 15 Ibid. p.65. 16 Ibid. p.66. 17 Ibid. p.73.
22
Outro marco na sociologia no que concerne aos estudos juvenis
encontra-se reunido na obra intitulada, Sociologia da Juventude: para uma
sociologia diferencial, dividida em quatro volumes18. A referida obra uma
coletnea dos primeiros estudos acerca da juventude no interior das cincias
sociais. No vamos aqui nos referir ao conjunto da obra, preferimos nos ater
ao que de mais relevante alguns autores contriburam para o desenvolvimento
deste trabalho.
interessante notar que a questo da juventude para os autores da
referida obra ainda se concentrava em duas principais tendncias temticas:
Primeiro, a idia genrica de juventude. Segundo, a especificidade das
experincias juvenis. A primeira idia ainda se apoiava fortemente na questo
das faixas etrias e do desenvolvimento psquico para se entender a condio
juvenil, fato muito influenciado pela psicologia e pedagogia do incio do
sculo XX. A grande novidade, no entanto, foi o reconhecimento das
especificidades das experincias juvenis, que naquele momento reconheceu no
jovem o potencial criativo da juventude, no que concerne pertena a grupos
especficos.
Karl Mannheim19 procurou esboar o problema sociolgico das
geraes atravs da interseco entre o processo histrico e o ciclo vital
individual. Desta forma o autor reconheceu a difuso de novas atitudes e
estilos jovens no contexto da modernidade, fato que marcou o aumento
considervel dos estudos sociolgicos em torno da especificidade da
juventude e da formao de grupos basicamente juvenis. Mannheim acreditava
que a juventude como categoria social no era progressista nem conservadora,
fato amplamente discutido em alguns crculos da poca, porm para ele, a 18 Sulamita de Brito (Org.). Sociologia da Juventude. 4 vols. Rio de Janeiro. Zahar, 1968. 19 MANNHEIM, K. O Problema da Juventude na Sociedade Moderna. In: Sociologia da Juventude. Vol. I. Rio de Janeiro, Zahar, 1968.
23
juventude era uma potencialidade pronta para qualquer nova oportunidade.
Isto , a juventude era, segundo o autor, o agente revitalizador da sociedade,
possuidora de uma imaginao criadora e espontnea que possibilitou a
formao de grupos especficos dotados da capacidade de julgamento e
independncia mental em relao sociedade em que viviam.
A grande contribuio de Mannheim para os estudos juvenis se
encontra no fato de que o autor enfrentou, j nos anos 50, o problema da
fragmentao e o da unidade dos grupos de jovens. Desta forma, e cada vez
mais, o tratamento genrico da juventude foi sendo substitudo pelo
tratamento das questes que envolviam um conceito em construo; o de
gerao. Ao invs de se tratar a juventude do ponto de vista nico e
exclusivamente etrio, davam-se preferncia questo geracional, visto que,
pertencer a uma gerao um fato coletivo e diretamente relacionado com o
histrico social de cada indivduo.
A julgar pelo critrio em que, para Mannheim, se baseia a situao de gerao, a experincia comum de uma transformao biolgica o curso natural da vida a gerao poderia ser considerada uma vivncia social criada a partir de um fundamento natural. No entanto, as faixas etrias e as categorias sociais delas oriundas so criaes scio-culturais; jamais um dado puro e simples da natureza.20
Karl Mannheim reconhecia na juventude um agente revitalizante
visto o seu carter de limite, isto , transitrio e ao mesmo tempo geracional.
Nesse sentido, o problema da juventude na sociedade moderna estaria
basicamente entrelaado ao problema das geraes21, isto , ao problema da
capacidade prpria de renovao que o ciclo da vida humana impe aos
20 L. A. Groppo., op. cit., p.20. 21 Mannheim procura definir a gerao como um fato coletivo, como uma forma de situao social.
24
processos temporais. Para o autor, a juventude em especial possui a
capacidade de apontar novas sadas para a sociedade, pois possui um maior
esprito de aventura visto que, na condio de jovem, este ainda no est
completamente enredado no status quo da ordem social.
A psicologia e a Sociologia modernas do adolescente ensinaram-nos que a chave para a compreenso da mentalidade da juventude moderna no se encontra unicamente na efervescncia biolgica desta fase do desenvolvimento humano. Afinal de contas, ela universal e sem restries no tempo e no espao. O fato decisivo acerca da puberdade, sob o nosso ponto de vista, que a mocidade entra nessa quadra na vida pblica e na sociedade moderna e ento que ela se v confrontada pela primeira vez com o caos das valorizaes antagnicas.22
Outro autor que se dedicou ao estudo da juventude foi Talcott
Parsons. Este vinculou a definio de gerao a um contexto histrico-social
especfico, visto que para Parsons a condio da juventude estava diretamente
relacionada com a questo do lugar que o indivduo ocupa no tempo e no
espao. Assim como Mannheim, Parsons percebia a posio peculiar da
condio juvenil em relao aos valores sociais de uma dada poca.
Nota-se que os estudos juvenis das dcadas de 40 e 50 ainda se
encontravam profundamente voltados para a concepo geracional e do
carter transitrio da idade juvenil. Talvez por esses motivos a juventude
como campo de investigao tenha sido negligenciada e por fim generalizada
de forma que os temas relacionados sua condio ainda eram notavelmente
influenciados por questes herdadas da psicologia e pedagogia e por isso,
ainda que reconhecida como um tema permeado de especificidades, o que
acontecia na maioria dos casos era o tratamento genrico da juventude do
22 K. Mannheim. op. cit., .pp. 73-74.
25
ponto de vista da sociologia. Isto , o tratamento das questes juvenis era
permeado de negatividade.
Atualmente, nota-se que uma gama de estudos envolvendo a
juventude tm surgido no interior das cincias sociais, e particularmente no
que diz respeito antropologia e sociologia. Diversas obras do final da
dcada de 90 tm apontado para a questo do desenvolvimento e ampliao
dos temas relacionados condio juvenil. Novas abordagens, novos temas e
uma nova configurao tm apontado para o fato de que a juventude como
categoria social termo herdado de Mannheim possui uma gama de
variaes comportamentais dentro de uma mesma sociedade, isto , ser jovem
no implica estar inserido em uma condio homognea. E alm do mais, ser
jovem uma condio transitria, porm permeada de significados
determinantes para sua identificao em sociedade.
Em suma, o final do sculo XX marcou o momento da identificao dos
jovens no interior de grupos diferenciados e com isso possibilitou a variedade
de estudos envolvendo grupos juvenis, sejam vistos e interpretados como
movimento, tribos urbanas, grupos e associaes marginais, entre outros. O
importante perceber que, o reconhecimento da pertena desses jovens a
determinados universos simblicos possibilitou o desenvolvimento e o
reconhecimento de inmeras variaes identitrias juvenis no interior da
sociedade moderna.
1.4 - A Juventude no Contexto da Modernidade
Durante os anos 60 e 70, os estudos acadmicos que
analisavam o comportamento social dos jovens tinham o seu foco de interesse
voltado quase basicamente para jovens de classe mdia. Essas anlises quase
26
sempre tinham como base de reflexo os estudantes universitrios. A partir
dos anos 80 e, principalmente, dos anos 90, esse foco de interesse foi
lentamente sofrendo alteraes, surgindo assim, estudos preocupados com os
marginalizados, com os despossudos, enfim, com os excludos do processo
social.
Este , alis, um dos pontos de partida para uma abordagem que passa
a levar em considerao tambm s angstias e aflies vividas pela juventude
dos anos 80 em diante, em contraponto abordagem que via a juventude
apenas como agente poltico. Para examinar melhor essa questo, podemos
seguir os argumentos que Hebert Marcuse nos fornece em um estudo dos anos
60; j naquela poca Marcuse apontava para novas perspectivas de anlise ao
afirmar:
Por baixo da base conservadora popular est o substrato dos parias e estranhos, dos explorados e perseguidos, de outras raas e outras cores, os desempregados e os no empregveis. Eles existem fora do processo democrtico; sua existncia a mais imediata e a mais real necessidade de pr fim s condies intolerveis. Assim, sua posio revolucionria, ainda que sua conscincia no o seja (...). O fato de eles comearem a recusar jogar o jogo pode ser o fato que marca o comeo do fim de um perodo. 23
Marcuse mostra-nos que na sociedade urbano-industrial novas
categorias sociais emergem e querem tambm, ainda que no clara e
objetivamente, ter participao nos processos decisrios da sociedade. Essas
novas categorias, saindo da condio passiva, procuram novas formas de viver
e confrontam-se diretamente com a ordem estabelecida; o fato que, fora do
processo democrtico, eles tendem cada vez mais radicalizao. 23 MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 235.
27
Temos a a base de uma nova juventude que atua em campo
diametralmente oposto ao de suas congneres do passado. Se por um lado, nos
anos 60 e 70 a juventude estava voltada para a busca de uma atuao poltica
que os levaria irremediavelmente a uma sociedade mais igualitria onde as
injustias sociais seriam imediatamente dissipadas, por outro lado veremos
que, dos anos 80 para c, cristalizou-se na sociedade uma juventude que no
remete para o futuro a resoluo das aflies que vivem no presente; por isso,
sua atuao marcada por uma interveno direta no mundo cotidiano,
buscando novas formas de prazer e de entretenimento que a leve,
necessariamente, a uma nova relao de vida com as normas estabelecidas.
Os mais diversos pesquisadores que se dedicaram a estudar o
fenmeno social da juventude so unnimes em apontar para uma significativa
alterao no comportamento social dos jovens no decorrer do sculo XX,
quando, no todo mais fortemente influenciados pela indstria do
entretenimento, passaram a resistir aos valores do mundo adulto e a question-
los.
Antes de nos dedicarmos explicao das bases em que se ancorava
essa juventude, importante traar um breve histrico de sua trajetria, a fim
de compreendermos as mutaes que processaram seu comportamento no
decorrer da histria moderna; neste sentido, vale a pena acompanhar os
argumentos de Philippe ries no seu vigoroso estudo: Histria Social da
Criana e da Famlia.24
Segundo ris, o homem da idade mdia no tinha uma perfeita
compreenso do que significava o mundo na infncia. Desse modo, as
crianas eram projetadas muito prematuramente para o mundo da
responsabilidade no aprendizado dos ofcios da vida adulta. De criancinha 24 Ver nota 1.
28
pequena, ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem passar
pelas etapas da juventude.25
ries observa que nesta sociedade tradicionalista reinava a mais
absoluta confuso entre o universo familiar e o mundo social mais amplo.
Essa confuso, ainda segundo o autor, era, at certo ponto, o reflexo das
inabilidades daquela sociedade em separar o mundo infantil do mundo adulto,
na medida em que a passagem da criana para a vida adulta acontecia sem
nenhuma preparao especial. Dessa maneira, a socializao da criana fugia
ao universo familiar para ganhar amparo no mundo da sociabilidade coletiva.
A criana mal adquiria algum desembarao fsico, era logo misturada aos
adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos.26
Essa introduo prematura da criana no mundo adulto caracteriza,
segundo ries, um certo desapego que a famlia daquela sociedade tinha para
com suas crianas. Esse desapego era de tal maneira elevado que, at mesmo,
a educao mais elementar das crianas era confiada a estranhos. A educao
onde a criana entregue a estranhos para aprender os ofcios do mundo
adulto foi, com efeito, preponderante, no decorrer da Idade Mdia. No entanto,
a partir do sculo XV com a ascenso da burguesia ao mundo dos negcios,
essa educao mostrou-se completamente obsoleta em relao s novas
necessidades da sociedade em perspectiva. Assim, sedimentava-se no iderio
da burguesia o interesse de criar um centro onde seus filhos pudessem,
verdadeiramente, se preparar para a vida social mais ampla.
No decorrer dos sculos XV e XVI, um novo sentimento de infncia
vai se desenvolvendo nas sociedades europias, deixando para trs aquela
infncia mal-compreendida da sociedade tradicional. Nesse momento, a
25 Ibid. p. 10. 26 Ibid. p. 10.
29
instituio escolar desponta como a grande responsvel pela consolidao de
um novo sentimento de infncia, pois, doravante, na escola que a criana
passa a maior parte do tempo, at ficar suficientemente madura para ingressar
no mundo adulto. A escola funciona, ento, como uma espcie de
quarentena, conforme observa ries, onde as crianas ficavam antes de
entrar para o mundo da responsabilidade.
No sculo XVI, entretanto, a instituio escolar sofreu duas
mudanas estruturais significativas que contriburam de maneira decisiva para
sua efetiva consolidao: primeiramente, a criao das classes escolares que
serviu de base para as primeiras tentativas de separao etria da populao
escolar; a outra mudana foi o contnuo prolongamento da idade escolar dos
alunos, permitindo que a infncia avanasse at o perodo da adolescncia.
ries observa que a extenso progressiva do perodo de aprendizado
escolar que acontece a partir do sculo XVII abriu espao para o
nascimento de um perodo intermedirio entre a infncia e a maturidade. A
infncia foi prolongada alm dos anos em que o garotinho ainda andava com o
auxlio de guias.27
Nessa perspectiva de anlise, ries argumenta que uma das bases
para a separao entre a infncia e o mundo adulto, intermediado pela
adolescncia e a juventude, foi o desenvolvimento da instituio escolar que
ocorreu nas sociedades europias entre os sculos XV e XVII. Para o autor, o
destaque granjeado pela juventude no mundo moderno est tambm
relacionado ao crescimento da escola que, no obstante seu carter elitista e
excludente - sculo XVII -, ampliou-se e popularizou-se para atender a um
nmero cada vez maior da populao do sculo XVIII em diante.
27 Ibid. p.187.
30
De acordo com ries, a diviso da escola por ciclos um ciclo curto
(primrio) para o povo que no podia se dedicar integralmente aos estudos e
um ciclo longo (secundrio) para burgueses, que exigia dedicao exclusiva
aceleraram, por um lado, o fim das misturas generalizadas das idades e, por
outro lado, transformou a escola em um espao de crianas e jovens.
A mistura arcaica das idades persistiu nos sculos XVII e XVIII entre o resto da populao escolar, em que crianas de 10 a 14 anos, adolescentes de 15 a 18 e rapazes de 19 a 25 freqentavam as mesmas salas.28
No sculo XIX e, principalmente, no sculo XX, a escola, ao mesmo
tempo em que ganha homogeneidade etria, expande tambm seus servios
para os mais diversos segmentos sociais, deixando de ser um privilgio de
nobres e burgueses, passando, dessa maneira, a desempenhar importante papel
na formao dos jovens de todas as classes sociais. importante esclarecer,
contudo, que esse processo de democratizao da escola foi um fenmeno
mais intensamente vivido pelo continente europeu. No Brasil os primeiros
sinais dessa democratizao aparecem nos anos 30, quando o governo Getlio
Vargas cria o Ministrio da Educao e em seguida estabelece a
obrigatoriedade do ensino fundamental de 1 4 srie em todo o territrio
nacional.
Eisenstadt em seu clssico estudo, De Gerao em Gerao29,
aponta tambm para uma perspectiva de anlise semelhante de ries.
Segundo Eisenstadt, a escola moderna, por meio de seu carter universalista,
forneceu elementos para o desenvolvimento de uma vigorosa condio juvenil
28 Ibid. p.176. 29 EISENSTADT, S. N. De Gerao em Gerao. So Paulo: Perspectiva, 1976.
31
que, no sculo XX, ganha visibilidade e passa a desempenhar papel de
destaque como categoria social.
Eisenstadt observa que, com a consolidao dos valores
universalistas, a famlia, paulatinamente, deixa de ser o centro privilegiado de
transmisso de conhecimento, pois as novas exigncias de tcnica e
especializao estavam fora de seu universo de conhecimento.
Nas sociedades modernas a especializao econmica e profissional baseia-se na acumulao de conhecimento tcnico, cuja transmisso est fora das possibilidades da famlia e exige a passagem por um perodo de aprendizagem e preparao, cuja extenso est geralmente relacionada ao grau de especializao.30
Segundo Eisenstadt, a escola moderna por intermdio de sua
organizao separao etria, perodo fixo de estudo, etc. forneceu as
bases para a emergncia de grupos juvenis que em suas manifestaes
cotidianas desenvolveram uma ideologia especfica de contestao aos valores
pr-concebidos pelo mundo dos adultos. exatamente este aspecto rebelde,
que recusa em absorver a herana social vigente, que d juventude um
carter potencialmente problemtico.
Uma das caractersticas mais marcantes desse comportamento
problemtico da juventude, conforme observa Einsestadt, manifesta-se nos
conflitos geracionais.
As pessoas mais jovens geralmente comeam a buscar uma nova identidade, e seja numa ou noutra etapa, essa busca passa a expressar-se em termos de conflito ideolgico da juventude, ou passa a considerar a gente jovem como uma categoria cultural distinta.31
30 Ibid. p.146. 31 Ibid. p.156.
32
Eisenstadt, assim como ries relaciona o destaque da juventude como
categoria social ao desenvolvimento da instituio escolar no mundo moderno.
De acordo com esses autores, duas mudanas bsicas motivaram o surgimento
de uma nova identidade juvenil. A primeira foi o fim do privilgio
educacional, como verificamos antes, que a famlia deixa de exercer sobre
seus filhos, posto que o conhecimento da famlia j no atendia mais s novas
exigncias tcnicas da sociedade. Desse modo, a famlia abandona a pretenso
de transmitir conhecimento total a seus filhos e entrega-os a uma instituio
especializada para isso; adultos passam dessa maneira a trabalhar na vida
privada para formar os corpos e as almas de seus membros.32
A segunda mudana, que est diretamente relacionada primeira, diz
respeito ao contnuo prolongamento do tempo de estudo das crianas,
possibilitando, assim, que elas ficassem cada vez mais distantes da famlia e
cada vez mais prximas de outras culturas, posto que a escola, a cada dia, se
transformava no espao de convivncia dos mais diversos segmentos sociais.
O contato persistente do jovem com outras culturas, alm daquela
transmitida pela famlia, forneceu a eles elementos para a formao de uma
nova personalidade.
Assim, no decorrer do sculo XIX e, principalmente, do sculo XX, a
juventude ganha visibilidade e importncia como categoria social e seu espao
de atuao estende-se para alm dos muros das escolas, chamando, dessa
maneira, a ateno da sociedade para os seus problemas.
No mundo moderno a juventude amplia seus espaos de
atuao, ganha visibilidade e passa a desempenhar papel de destaque como
categoria social. Eisenstadt observa que esse novo papel da juventude 32 P. Aris. op. cit. p.277.
33
acontece por dois motivos bsicos. Em primeiro lugar, nas sociedades
industriais, como verificamos nas anlises precedentes, o conhecimento e a
tcnica esto fora das possibilidades de conhecimento da famlia, impelindo,
dessa maneira, o jovem a buscar no mundo exgeno s tradies familiares os
seus novos referenciais de vida. O segundo motivo bsico que, com os
avanos tcnicos dessa nova sociedade, o comportamento do jovem passou a
ser regulado por valores universalistas; o que possibilitou o surgimento de
uma ideologia especfica da juventude.33
A consolidao de alguns valores universalistas trabalho
assalariado, escola gratuita combinados ampliao do espao pblico
levou o jovem a abandonar a rigidez da hierarquia familiar e, em um mesmo
movimento, buscar num mundo de hbitos e costumes mais flexveis um
status igualitrio.34 O acontecimento que mais claramente aponta para esse
fato a formao nas sociedades modernas de grupos informais que, na
maioria das vezes, representa o desejo de emancipao frente autoridade da
famlia e das normas estabelecidas.
Ren Fau, 35 ao estudar as caractersticas mais gerais desses grupos
informais, verifica que o jovem busca proteo na agressividade do grupo para
por em prtica seu comportamento de transgresso. Segundo Fau, o apoio do
grupo funciona como uma ponte para o desenvolvimento da autonomia do
jovem na sociedade, ao mesmo tempo, promove sua independncia perante a
famlia. Esta tese tambm corroborada por Lopold Rosenmyr36 que ao
estudar algumas caractersticas da sociedade moderna pondera que, nas
33 S. N. EISENSTADT, op. cit. p.157. 34 Ibid. p.159. 35 FAU, Ren. Caractersticas gerais do grupo durante a adolescncia. In: Sociologia da Juventude. Vol. III. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. 36 ROSENMYR, Lopold. A situao scio-econmica da juventude de hoje. In: Sociologia da Juventude, vol. III. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
34
sociedades ps-industriais, os pais no exercem mais o controle absoluto sobre
a escolha dos amigos de seus filhos. Segundo Rosenmyr, o desaparecimento
dessa antiga estrutura abriu espao para o surgimento de movimentos da
juventude que contestassem o regime patriarcal e buscassem em um espao de
liberdade e autonomia as suas novas relaes de amizade.
Para afirmar sua personalidade e seu sentimento e independncia, o adolescente deve-se orientar para um novo papel social que se funda em larga escala, em sua aceitao e em sua adoo por outras pessoas que no os prprios pais.37
O jovem estabelece nesse perodo de transio de sua vida uma
posio de confronto com a ordem estabelecida que, de maneira mais restrita,
representada pela famlia e, de maneira mais geral, pela escola. Porm,
medida que o indivduo alcana sua autonomia plena estabelece relaes de
autonomia para com a sociedade, o universo restrito do grupo deixa de ser seu
nico referencial de apoio.
Assim, o grupo existe para o indivduo como um mecanismo de
transio onde o jovem busca apoio e solidariedade contra as arbitrariedades
da famlia e da sociedade. Esse fenmeno que leva o jovem a se organizar em
grupos contra a ordem social existente ganhar vulto e visibilidade na
passagem do sculo passado para o atual.
Karl Mannheim38, em seu clssico estudo, O Problema da Juventude
na Sociedade Moderna, pontua que a juventude no progressista por
natureza, mas sim uma potencialidade pronta para qualquer mudana. O que
configura tal potencialidade, segundo Mannheim, so as transformaes
biolgicas verificadas no organismo do indivduo na adolescncia,
37 Ibid. p. 159. 38 Karl Mannheim. op. cit. 1968.
35
combinadas ainda com o fato de que nesse perodo o jovem obrigado a
enfrentar o caos das valorizaes antagnicas39 da vida pblica, quando
deve fazer uma separao radical entre os valores que o indivduo aprendeu a
respeitar em casa e as normas predominantes na vida pblica. Essa
discrepncia de valores torna a juventude especialmente apta a solidarizar-se
com os movimentos sociais dinmicos que, por razes bem diferentes das
suas, esto insatisfeitos com o estado de coisas existentes.40 Esta tese
fundamenta-se nos argumentos de que o jovem, ao chegar de fora sociedade,
e por no ter ainda interesses adquiridos na vida social, nem to pouco funes
estabelecidas no mundo dos negcios, estimulado pelo grupo a questionar
todos os valores sociais, estabelecendo, assim, uma disputa por status.
Contudo, a partir do momento em que esse status alcanado quer atravs
de interesses adquiridos na vida social (famlia constituda), quer atravs de
funes assumidas no mundo dos negcios (trabalho) o comportamento
excntrico do jovem passa para a defensiva e suas funes passam a ser
dirigidas em favor da defesa do status quo.
isso, alis, de acordo com Mannheim, que explica o mpeto
revolucionrio de todo o adolescente e que, ao chegar maturidade e a
assumir as responsabilidades da vida cotidiana, ele passa para a retaguarda e
assume uma posio mais conservadora.
Assim, o comportamento anormal, excntrico, ou agressivo
manifestado em movimentos juvenis pode ser caracterizado como uma fase de
transio na vida do indivduo que, por no ter ainda segurana de seus atos e
tambm por no estar de maneira definitiva enredado ao status quo, busca no
grupo o apoio necessrio para desenvolver sua autoconfiana. O grupo
39 Ibid. p. 74. 40 Ibid. p. 75.
36
funciona nesse momento como um estgio por onde o jovem passa antes de
assumir as responsabilidades da vida social.
A. Cohen41 em seu famoso estudo A Delinqncia como Subcultura,
ao estudar o fenmeno social da cultura juvenil, verifica que as dificuldades
de ajustar o comportamento do indivduo a uma norma j estabelecida
valorizam no jovem um desejo incontrolvel de mudana. Cohen argumenta
que as novas tcnicas a escola, o cinema, o rdio, os jornais e as revistas
so manipuladas pela classe mdia, que procura estender para toda a sociedade
seus valores de vida. Essa manipulao estabelece um confronto com as
camadas populares que, distantes da realidade de conforto e lazer da classe
mdia, desenvolvem uma subcultura delinqente claramente caracterizada
pelo repdio explcito e generalizado dos padres da classe mdia.42
Ao estabelecer uma disputa pelo espao social, ao renegar a
hierarquia familiar e ao repudiar de maneira aberta e generalizada os valores
da sociedade constituda, o jovem desenvolve um comportamento que quase
sempre o pe margem da sociedade, dificultando a sua integrao social. O
jovem torna-se ento, um verdadeiro problema para a sociedade na medida em
que seus atos esto sempre questionando a ordem estabelecida.
1.5 - O Lugar da Juventude: o espao pblico
Como verificamos nas anlises precedentes, a criao do espao
escolar foi o marco de uma separao entre a esfera pblica e a privada at
ento inexistentes, pois, como nos mostrou ries, no mundo da Idade Mdia
reinava a mais absoluta confuso entre esses dois espaos. 41 COHEN, A. K. A Delinqncia como subcultura. In: Sociologia da Juventude, vol. III. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. 42 Ibid. p. 139.
37
Desse modo, ser apenas a partir do Antigo Regime que a esfera
pblica ganhar importncia enquanto espao de sociabilidade juvenil. Aqui
importante acompanhar os argumentos que Richard Sennet nos apresenta no
livro O Declnio do Homem Pblico.43 Segundo o autor, os espaos de
sociabilidade ruas, praas e parques ganharam importncia no Antigo
Regime, uma vez que, com a progressiva ascenso da burguesia, a vida urbana
deixava de ser privilgio da nobreza para se transformar em um espao denso
de encontros com as mais diferenciadas classes sociais.
A diversidade de novas categorias sociais que agora se inserem no
espao pblico traz consigo uma mudana de linguagem e de comportamento
sem precedentes para a formao de uma nova mentalidade que estava se
manifestando naquela sociedade. Sennet esclarece que:
Essas mudanas estavam relacionadas com condies de comportamento e modos de crena na Cosmpolis do sculo XVIII. medida que as cidades cresciam e desenvolviam-se redes de sociabilidade independentes do controle real direto, aumentaram os locais onde estranhos podiam regularmente se encontrar. Foi poca da construo de enormes parques urbanos, das primeiras tentativas precpuas de passeio de pedestres, como forma de lazer.44
Assim, tanto no campo das necessidades escolas -, como no campo
do lazer - parques e praas -, surgiram padres de integrao social adequados
a uma nova realidade que passa a existir a partir do sculo XVIII. Todavia,
nem as necessidades nem o lazer foram capazes de elevar a juventude como
fator de preocupao social nos sculos XVIII e XIX; nesse perodo, a
43 SENNET, Richard. O Declnio do Homem Pblico; as Tiranias da Intimidade. So Paulo: Cia. Das Letras, 1988. 44 Ibid. p. 32.
38
juventude ainda desempenhava um papel secundrio na sociedade. Ela s
ganhar destaque como categoria social a partir do sculo XX.
Depois da Primeira Guerra Mundial, o comportamento social da
juventude tornou-se um fenmeno de inquestionvel oposio aos valores
defendidos pelas velhas geraes, pois a morte de centenas de jovens nos
campos de batalha, enquanto as velhas geraes ficavam na retaguarda, sem
colocar a vida em risco, gerou nos jovens um sentimento de repulsa contra
tudo aquilo que representava o mundo dos adultos. Desse momento em diante,
a apario pblica da juventude ser revestida de um intenso pessimismo e por
uma descrena geral na sociedade, que s ir se dissipar em meados dos anos
50 com a formao daquilo que Edgar Morin45 chamou de Terceira Cultura. A
Terceira Cultura decorrncia do boom tecnolgico que o mundo viveu
depois da Segunda Guerra Mundial e que levou a uma popularizao do
cinema, da imprensa, do rdio, da televiso, etc. O salto tecnolgico
possibilitou juventude, a criao de novos canais e veculos como formas
mais autnticas de manifestao.
O sculo XX trouxe novos meios de sociabilidade e integrao social
o rdio, o cinema, a indstria fonogrfica, etc. -, tornando decisivas as
influncias sobra vida da juventude. Porm, essas novas tcnicas logo sero
incorporadas pelos jovens como forma mais cotidiana de interferncia em um
mundo social para eles amplificado. A juventude deixa, assim, de ser apenas
receptora de cultura, suas manifestaes ganham notoriedade e de receptora
ela passa a criadora de uma nova maneira de ser e viver.
Essa nova configurao cultural da juventude ganha vulto, de maneira
mais especfica, no ps-guerra devido ao aquecimento ocorrido no setor
45 MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Sculo XX: O Esprito do Tempo . vol. I; Neurose. Rio de Janeiro: Forense, 1969.
39
industrial; ele possibilitou um aumento na demanda de empregos e,
concomitantemente, levou mais recursos financeiros para um nmero cada vez
maior de famlias que passam a investir seu tempo livre na diverso e lazer.
Edgar Morin, ao analisar essas novas caractersticas da sociedade
moderna, pondera que a ampliao do tempo de lazer combinada com a
popularizao das novas tcnicas de integrao social possibilitou o
surgimento de uma cultura de massas na sociedade moderna.
Foi no compasso dessa Terceira Cultura, portanto, que o fulcro do
que era uma subcultura juvenil cedeu espao para o surgimento de uma ampla
cultura juvenil que, no decorrer dos anos 50, articula-se em torno de novos
referenciais - principalmente cinema e msica rock n roll - para ganhar uma
posio de destaque na sociedade.
Temos a uma nova problematizao no cenrio juvenil que,
estimulada pelo aumento do poder aquisitivo e pelo tempo livre, cria espaos
especficos para suas reunies. As praas j no lhes so suficientes; agora
eles querem o cinema, as lanchonetes, enfim, eles querem visibilidade e
ateno. Morin, ao analisar os problemas comportamentais dos jovens numa
sociedade pautada pela massificao cultural, observa:
O desenvolvimento dessa cultura est ligado a uma conquista da autonomia dos adolescentes no seio da famlia e da sociedade. A aquisio de relativa autonomia monetria (dinheiro para o gasto dirio dado pelos pais nas sociedades avanadas e, alhures, dinheiro para o gasto dirio conservado pelos adolescentes que ganham a vida e entregam o que ganham aos pais) e de relativa liberdade no seio da famlia (o que nos conduz ao problema da liberalizao aqui, da desestruturao acol, da famlia) permitem aos adolescentes adquirir material que lhes insuflar sua cultura (transistor, toca-discos e mesmo, violo), que lhes d sua liberdade de fuga e de encontro (bicicleta, motocicleta, automvel) e lhes permitir viver sua vida autnoma no lazer e pelo lazer. Essa cultura, essa vida aceleram, em contrapartida, as reivindicaes dos adolescentes que no se satisfazem com a
40
semiliberdade adquirida e fazem crescer sua contestao a propsito de um mundo adulto cada vez menos semelhante ao deles.46
Na busca de autonomia e liberalizao dos propsitos familiares, o
cinema e a msica aparecem como duas modalidades da constituio de
sociabilidade da juventude: eles sero seus referenciais mais imediatos e,
tambm, os veculos de suas manifestaes mais autnticas.
Para Morin, esses novos produtos tecnolgicos - especialmente o
cinema e a indstria fonogrfica - sero o suporte para a expanso dessa
Terceira Cultura que ganhou notoriedade e passou a ocupar as preocupaes
dos adultos a partir dos anos 50, quando uma gerao de jovens, fazendo uso
dessa nova tecnologia, sai a pblico para desnudar suas preocupaes mais
ntimas e cotidianas.
Morin observa que, em funo dessa nova conformao juvenil de
maior exposio de seus problemas ao mundo pblico, de maior autonomia
conquistada dentro da hierarquia familiar e de maior liberdade em escolher
seu destino, abriu-se espao para o conflito entre cultura culta e cultura de
massas na sociedade contempornea. Com efeito, o momento mais agudo
desse conflito acontece com o aparecimento de uma nova gerao de jovens
que parecia disposta a colocar em risco todas as suas conquistas e, assim, abrir
espao para o surgimento de novos smbolos e novas motivaes para suas
vidas.
46 Ibid. p. 140.
41
II
___________________
OS PRIMRDIOS DO ROCK E O SURGIMENTO DO PUNK
No consegui chegar a ser coisa alguma, nem sequer mau, nem mau nem bom, nem canalha nem homem de bem, nem heri nem inseto. E agora termino minha vida no meu canto, escarnecendo de mim mesmo com o intil e despeitado consolo de que um homem inteligente no pode vir a ser nada de srio e de que s o idiota o consegue. Cavalheiros, estou gracejando, e sei por mim mesmo que nessa matria sou um desastre, nem tudo se pode tomar como gracejo. talvez rangendo os dentes que eu gracejo. Direis, talvez, que no valho o incmodo; mas nesse caso eu vos responderei na mesma moeda. Estamos discutindo a srio; se no vos dignardes me dar ateno, podeis ir para o diabo. Tenho meu subterrneo.
Fiodor M. Dostoievski, Notas do Subterrneo.
2.1 Anos 50
Em meados dos anos 50, o cinema e a msica apresentavam para o
mundo uma nova maneira de ser jovem. No cinema, Marilyn Monroe e James
Dean consolidavam um novo estilo de rebeldia e de protesto contra o mundo
adulto. Na msica, Elvis Presley tambm criava um novo estilo de
interpretao e escandalizava o mundo com sua dana. Assim, o jovem
ganhava o mundo pela tela do cinema e pelas ondas do rdio, e os problemas
do jovem americano logo passavam a ser tambm os problemas de jovens de
outros pases.
42
A expanso da tecnologia e o aumento dos bens de consumo, como
vimos anteriormente nas anlises de Morin, foram de vital importncia para o
crescimento dessa nova cultura juvenil que emergiu nos anos 50 e se
consolidou nos anos 60, quando os jovens, impelidos pelos dolos, adotaram
uma postura de confronto com o mundo adulto. O resultado do confronto,
segundo Morin, foi o surgimento de um estilo inteiramente novo de viver dos
jovens, que, empurrados pelos heris do cinema, desenvolveram uma vida em
gang que se contrapunha inteiramente aos modos de vida preconcebidos pelo
mundo dos adultos.
O modelo norte-americano do rebelde sem causa estendeu suas
influncias para a maioria dos pases ocidentais, passando a ser uma referncia
cultural para jovens de todas as classes sociais.
Nos Estados Unidos, os beatniks imprimiam uma nova maneira de ser
que fugia aos rigores da famlia, formalidade do trabalho e disciplina da
escola. Era um sonho de liberdade. O que eles queriam era escrever poesia,
ouvir jazz, viajar de carona, conhecer outras culturas e divulg-las para o
mundo.
Na Inglaterra, quase que concomitantemente, acontecia um
movimento avassalador que tambm questionava a ordem estabelecida.
Entretanto, enquanto o movimento beat foi quase que exclusivamente de
classe mdia, dedicado poesia e ao jazz, na Inglaterra o movimento dos
teddy boys acontecia entre jovens pobres envolvidos com o rock e que, por
meio das roupas, procuravam debochar da aristocracia inglesa.
Enquanto, por um lado, os beatniks e os teddy boys foram a afirmao
mais acabada do niilismo, da insociabilidade e da indisposio de vislumbrar
alternativas para a sociedade, por outro, os jovens revolucionrios da Hungria
43
(1956) representavam o contraponto exato para esta desesperana, difundindo
para o mundo a idia de uma sociedade mais justa e igualitria.
O resultado dessas manifestaes juvenis foi tentativa do
establishment de fazer um rpido rejuvenescimento dos quadros de comando
da sociedade, numa tentativa de apaziguar os nimos. Entretanto, essa
tentativa parecia fazer-se tarde demais, pois os efeitos da rebeldia j haviam se
expandido de leste a oeste e no se encontravam apenas no cinema e na
msica; agora seu descontentamento atinge tambm a literatura com o
nouveau roman, a pintura atravs das obras de Bernard Buffet a costura com
as novas criaes de Ives Saint-Laurent. Pode-se dizer, assim, que a
insubordinao contra os valores da cultura dominante foi uma das principais
caractersticas formuladas por esses jovens dos anos 50 que, lutando contra o
tdio burocrtico, forjaram o nascimento de novos smbolos, imagens e
emoes para suas vidas, criando, dessa maneira, as bases de sustentao da
contracultura dos anos 60 e 70.
2.2 - Anos 60
Os anos 60 assistiram ao surgimento de um novo modo nas
disposies dos jovens em buscar prazer e realizao fora das influncias
restritas do lar. A maioria dos pesquisadores que analisaram a questo aponta
como fator determinante para esse novo impulso juvenil algumas
transformaes processadas na sociedade no decorrer deste perodo:
crescimento populacional da juventude em todo o mundo, expanso da
indstria de entretenimento, gradativo reconhecimento da participao
feminina na vida social, etc.
44
A juventude passou, assim, a ser compreendida cada vez mais como
uma categoria social homognea e com potencial para mudar a configurao
da sociedade. Esse novo aspecto da juventude, de acordo com alguns autores,
estava alicerado no contnuo crescimento da indstria de lazer e nas lentas
transformaes ocorridas na sociedade desde o fim da Segunda Guerra
Mundial. Contudo, foi somente a partir da segunda metade da dcada de 60
que as manifestaes juvenis ganharam importncia nas manchetes de todo o
mundo como um fenmeno verdadeiramente social. Nesse momento, houve
uma fragmentao das manifestaes juvenis que, das mais diversas formas,
buscavam renovar suas energias e reinventar suas aes na luta contra os
vcios do sistema: a luta contra as ditaduras no terceiro mundo, o engajamento
contra as injustias raciais nos Estados Unidos, as manifestaes pelo fim da
guerra no Vietn, os movimentos estudantis, Maio de 68 e as barricadas de
Paris, os festivais de msica e o amor livre. Todas essas manifestaes
apontavam para uma mudana de comportamento dos jovens que no
aceitavam mais o papel de coadjuvante na sociedade.
Theodore Roszak47, estudando essas mudanas comportamentais dos
jovens, assinala que a sociedade dos anos 60 ainda empenhava-se em impor
uma moral uniforme para o mundo coletivo, dizendo o que podia e o que no
podia ser feito. De acordo com esse autor, o desejo de manter a ordem vigente
atravs de cdigos, normas e disciplinas rgidas chocou-se com os novos
hbitos culturais de uma significativa parcela da populao que, desde meados
dos anos 50, vinha lutando por uma maior liberalizao dos costumes. Porm,
todas as vezes que a busca dos jovens em apontar alternativas para a sociedade
47 ROSZAK, Theodore. A contracultura: reflexes sobre a sociedade tecnocrtica e a oposio juvenil. Petrpolis: Vozes, 1972.
45
estava perto de alcanar xito, o establishment, por meio da poltica de
gabinete, procurava sufocar essas manifestaes:
Na Frana, os aguerridos estudantes da rebelio de Maio de 68
foram obrigados a assistir ao conluio poltico, que passaram a agir com a confiana do presidente De Gaulle na manuteno do governo responsvel e ordeiro, face ameaa da anarquia nas ruas48.
Esses acordos de gabinete deixaram a juventude desesperanada e
desiludida com a poltica convencional das velhas geraes; assim, sem
vislumbrar perspectivas completas que pudessem acalentar seus desejos de
mudana, houve, nesse momento, uma radicalizao da oposio poltica dos
jovens, que passaram a solidarizar-se com as guerrilhas de carter socialista. O
fato que mais precisamente comprova essa atitude foi aliana de Rgis
Debray com Che Guevara na Bolvia. No Brasil, do mesmo modo, uma
gerao de estudantes tambm esteve presa a esta utopia, de luta armada
contra o regime militar na busca de um mundo mais justo para as geraes do
presente e do porvir.
importante sinalizar, todavia, que a luta contra as ditaduras e a
adeso de determinados segmentos juvenis luta armada no foram s nicas
maneiras de resistncia ao sistema encontrada pelos jovens dos anos 60.
Concomitantemente a essa radicalizao das posies polticas houve,
tambm, um desvio para movimentos culturais de vanguarda que chamavam a
ateno para uma outra forma de resistncia: aqui o Cinema Novo e a
Tropiclia; do outro lado do Atlntico, o cinema de arte e os Beatles,
Woodstock e as comunidades hippies. exatamente a combinao desses
48 Ibid. p. 17.
46
diferentes tipos de movimentos, segundo David Matza49, que caracteriza a
natureza rebelde da juventude na civilizao moderna. De acordo com Matza,
essa rebeldia pode ser manifestada em trs tradies distintas: a Tradio
Delinqente, mais relacionada aos jovens do estudo secundrio, que rejeita os
sentimentos burgueses de mtodo e rotina, particularmente quando se
manifestam dentro do sistema escolar50; a Tradio Bomia est associada a
uma faixa etria mais elevada e sua atitude a de total indiferena frente aos
valores da tica burguesa, por isso, ela se ope tendncia mecanizada,
organizada, centralizada e crescentemente coletiva do capitalismo moderno51;
a Tradio Radical, por sua vez, est mais vinculada s diferentes verses do
Marxismo Revolucionrio e, sendo assim, seu principal objetivo de ataque
o sistema capitalista de dominao poltica e econmica e o papel
imperialista supostamente desempenhado por tais sistemas em assuntos
internacionais52.
Essas trs tradies balizaram os movimentos juvenis modernos e
exerceram influncias marcantes sobre as manifestaes culturais e polticas
ocorridas nos anos 60, principalmente a Tradio Radical, sustentada
basicamente pelo iderio marxista e que propaga que esse mundo maligno um
dia chegar ao fim e ser substitudo por um mundo mais justo e puro. No se
sabe se esse mundo justo e puro foi alcanado, o fato que muitos daqueles
que participaram dessa Tradio Radical na luta contra a ordem estabelecida,
mudaram de lado e hoje conforme assinalou Mannheim agem em defesa
do status quo.
49 MATZA, David. As tradies ocultas da juventude. In: Sociologia da Juventude, vol. III, Rio de Janeiro: Zahar, 1968. 50 Ibid. p. 86. 51 Ibid. p. 87. 52 Ibid. p. 87.
47
2.3 - Anos 70: os Punks
Se os anos 50 representaram a primazia da rebeldia juvenil, os anos
60 significaram sua contnua expanso pelos cinco continentes atravs dos
movimentos de contracultura. Os anos 70, por sua vez, sinalizaram o comeo
do fim de um perodo; afinal, apesar de todo o protesto de resistncia, os
regimes militares se fortaleciam no terceiro mundo. Che Guevara foi
assassinado na Bolvia e John Lennon pronunciou sua clebre frase: the dream
is over. As utopias, os sonhos, o amor livre dos anos 60 pareciam no se
encaixar mais nos padres estticos dos anos 70. Nesse compasso a sociedade
a cada dia ficava mais tecnocrtica53, impondo, dessa maneira, uma conduta
cada vez mais disciplinar aos indivduos.
O momento foi, pois, de total pessimismo. Num contexto mais amplo,
a crise do petrleo e a Guerra do Vietn esvaziavam as utopias e expectativas
que jovens ocidentais alimentavam de uma sociedade mais humanitria. Num
contexto mais localizado, isto , no Brasil, a conjuntura econmica, poltica e
social era marcada pela ditadura militar que, de maneira rigorosa, inibia a
emergncia de culturas alternativas.
Ser que os jovens, depois de experimentarem a ousadia inicial de se
rebelarem contra a organizao do mundo adulto nos anos 50 e, em
conseqncia disso viverem a liberdade total nos anos 60, viviam um
momento de pouca criatividade, de apatia e omisso nos anos 70? Ser que os
jovens abririam mo de suas conquistas e passivos voltariam a viver sob a
tutela familiar? Ou ser que esse ambiente de desiluso e pessimismo, que foi
53 Para Roszak, sociedade tecnocrtica aquela que atinge o pice de sua integrao organizacional por meio de imperativos incontestveis como procura de eficincia e segurana, combinados com o desejo de racionalizao e planejamento.
48
o incio dos anos 70, seria a base para o nascimento de um outro movimento
juvenil?
Em meados dos anos 70 o jovem subitamente se viu rfo de ideais e
perdeu poder de ao. Seus dolos, os que no morreram de overdose, estavam
enclausurados em castelos na Sua Bob Dylan -, e no cantavam mais a sua
realidade cotidiana; quando tudo parecia estar acabado, ecoou na Inglaterra
um novo grito de rebeldia: nasciam os punks. Os punks so, pois, filhos da
desiluso expressa por John Lennon no fim dos anos 60 e da falta de
perspectiva que a juventude vivia em meados dos anos 70.
Alm do surgimento do soft rock, outro sintoma do resfriamento se
refletiu na onda de nostalgia que tomou conta do rock durante a primeira
metade dos anos 70. Nem John Lennon, que pouco antes se intitulara um
working-class hero, escapou. Seu penltimo disco da dcada, lanado em
1975, foi um lbum de reedies chamado, Rock n Roll. Ele o justificou
assim: O rock n roll foi a msica que me inspirou a fazer msica. No existe
nada conceitualmente melhor que o rock n roll. Ou talvez, como costuma
acontecer com os pais da gente, aquela a minha poca, estou vidrado nela e
nunca a esquecerei54. a funo da msica assim descrita, provavelmente
matria publicitria destinada a promover discos relanados na onda de
saudosismo que assolou os jovens quando o rock comeou a perder o seu
vigor.
Esse novo individualismo do rock no deixou de ter os seus exegetas.
Num ensaio bombstico, o filsofo Tom Wolf um dos pais do Novo
Jornalismo, outro desdobramento da contracultura decretava que 1970 seria
a Dcada do Eu.55 Isso implicava muitos mistrios. Por exemplo, por que os
54 McNeil, L. e McCain, G. Mate-me por Favor. So Paulo: LPeM, 1997. p. 37. 55 Ibid, p. 45.
49
Beatles se separaram e seguiram caminhos to diferentes. Paul e Linda criando
os Wings e partindo para a sua verso de bubblegun rock. George embarcando
em sua viagem mstica, Oh Lord... E John, aps uma terapia, mergulhando no
rock psicanaltico de Mother e Image e ento silenciando. Alis, foi o
prprio John Lennon que definiu melhor a mudana, na sua entrevista
histrica de 1970 revista Rolling Stone: O sonho acabou. E no estou
falando s dos Beatles. Falo dessa transa de gerao. Acabou e temos que
encarar a chamada realidade.56
Aos poucos, o vazio ideolgico dos jovens comearia a ser
preenchido por uma infinidade de seitas ou terapias de orientao religiosa
(moonies, Jesus freaks, est, cientologia, Maharaj Ji, Synanon, etc). E, para os
de orientao mais materialista, surgiram os templos do novo hedonismo: as
discotecas. A discoteca se inseriu perfeitamente no salve-se-quem-puder da
poca. Para a indstria de discos, em termos de vendas, foi um festim ao qual
talvez ela nunca mais possa se permitir.
Entretanto, a falncia do rock-como-revoluo comeou a aparecer
mais evidente no comportamento dos dolos. Dos Beatles: Ringo passou a
flertar com cinema e acabou um aposentado de luxo em Monte Carlo; Paul, o
mais ativo de todos, gravando e excursionando, fixou-se numa msica sem
pretenses revolucionrias; George, alm de seu misticismo orientalista,
dedicou um LP aos heris da Frmula I, John Lennon, o mais intelectual dos
quatro, passou os ltimos cinco anos mais preocupado com problemas de
condomnio do Dakota, edifcio das celebridades de Nova Iorque, onde
possua cinco apartamentos e se isolou como um eremita, a ponto de merecer
o apelido de Greta Garbo do rock. Bob Dylan, depois de um divrcio
milionrio, presenteou sua nova noiva com um diamante de 25 quilates, 56 Ibid, 49.
50
mandou erguer um palacete na praia de Malibu, no valor de $ 250,000, e seus
novos LPs insistiam em defender os valores fundamentais do cristianismo.
Procurando no se desligar totalmente da realidade social, o rock fez
concesses e praticou alguns gestos de caridade. Mas j era tarde, os msicos
da dcada de 1960 se tornaram os dinossauros da dcada de 1970, Mick
Jagger nas discotecas, Elton John colecionando Rolls Royces; Rod Stewart
colecionando mulheres; Elvis o jovem rebelde dos anos 50, morrendo de tdio
como um velho milionrio no seu castelo decididamente o rock no era mais
o mesmo. As grandes bandas se ocupavam em produzir shows teatrais
altamente iluminados e ideologicamente vazios. Algo teria que surgir, e no
demorou muito.
1977: morre Elvis Presley, do outro lado do oceano acontecia o
jubileu da rainha Elisabeth, de repente na periferia de Londres, surge um novo
movimento, agora arrogante e agressivo, colocando definitivamente um fim a
saudosa gerao paz e amor, e anunciando o fim do mundo com a anarquia no
Reino Unido. Situao irnica: os contestadores dos anos 60 contestados nos
anos 70.
Depois dos anos 70, deixa de haver grandes acontecimentos
envolvendo grupos juvenis e o cenrio do rock parece marcado principalmente
por uma grande fragmentao. Os movimentos estudantis, na maior parte dos
pases, perdem as dimenses e a importncia que haviam assumido nos anos
precedentes, passando a expressar-se de forma localizada.
A contracultura enquanto tal perdeu sua fora e vigor, como j
apontamos anteriormente. Desaparece a idia de uma revoluo juvenil, da
reinveno do mundo sobre outros princpios, de paz e amor, do investimento
utpico de uma juventude preocupada em transformar o mundo.
51
A maior parte dos acontecimentos dos anos 80 parece estar ligada
formao de subculturas juvenis relacionadas com determinados estilos
musicais e cuja principal expresso est no estilo de vida e no modo como
seus representantes enxergam o mundo ao seu redor. A diferena desses
grupos emergentes no final da dcada de 70, com grupos juvenis das dcadas
anteriores, que estes tm uma dimenso ampliada, pois mais numerosos e
diversificados e com uma surpreendente amplitude internacional.
O fenmeno deflagrador dessa onda foi o aparecimento do punk na
Inglaterra em 1976, 1977. O punk apareceu como uma nova cultura juvenil
que se articulava ao mesmo tempo em torno de uma reverso musical dentro
do rock, e de um modo de vestir inusitado.
Com um estilo diferente do rock n roll, uma espcie de niilismo
subversivo, o punk inaugurou e ao mesmo tempo revirou a histria do rock, a
partir da negao do prprio rock da poca. Nascido nos subrbios de Londres
e banidos pela sociedade londrina, os punks criaram suas prprias formas de
aparecimento e se tornaram reconhecidos em diversas partes do globo.
Tudo indica que o primeiro a utilizar a palavra punk fora Shakespeare
para designar uma prostituta, 400 anos depois a palavra reapareceu na boca de
James Dean no filme Juventude Transviada57, para designar, de maneira
pejorativa, uma gangue de adolescentes violentos. Em 1977, novamente a
palavra aparece. Como traduo literal o punk significa podre, podrido, e
talvez seja por esse motivo que tal palavra caiu to bem na boca de milhares
de jovens que j em fins da dcada de 70 na Inglaterra ultrapassava a casa dos
6000.58 Os grupos punks so fundados em atitudes como a rejeio de aparatos
grandiosos e de conhecimento acumulado, em troca da utilizao da misria e
57 Do ttulo original: Rebel Without a Cause, 1955. 58 ESSINGER, Silvio, PUNK: A Anarquia Planetria e a Cena Brasileira, So Paulo: Ed. 34, 1999, p. 63.
52
aspereza como elementos bsicos de criao, o uso da dissonncia e da
estranheza para causar choque, o rompimento com os parmetros de beleza e
virtuosismo, a valorizao do caos, a cacofonia de referncias e signos para
produzir confuso, a inteno de provocar, de produzir interferncias
perturbadoras da ordem.
A msica punk aparece como reao ao estrelismo do rock
progressivo imperante nos anos 70, que necessitava de um enorme esquema
empresarial e envolvia muito dinheiro; aparece como busca de uma msica
simples e rudimentar, sem necessidade de grandes aparatos e virtuosismo, que
qualquer garoto com vontade de divertir-se e expressar-se pudesse fazer: o
lema da proposta musical justamente o do it yourself 59, com os recursos
disponveis, por mais rudimentares que sejam. O punk aparece ento como
uma msica gil e autntica, ligadas s experincias dos jovens no cotidiano
das ruas: uma msica que faz sentido de novo para os jovens e suas
experincias reais. O resultado um retorno estrutura bsica do rock, um
som seco, mais persuasivo, sem solos, gritado mais que cantado.
Em torno dessa proposta musical, articula-se toda uma esttica
baseada nos mesmos princpios, isto , a utilizao de materiais rudimentares,
desvalorizados, provenientes do lixo urbano e industrial: tecidos de plstico,
calas rasgadas, meias furadas, camisetas semidestrudas, peas de roupas fora
de moda. O estilo compe uma aparncia estranha e agressiva.
Punk um termo da lngua inglesa que quer dizer madeira
podre, mas que tambm serve para designar coisas sem valor ou pessoas desqualificadas.60
59 Faa Voc Mesmo. T. A. 60 ABRAMO, W. H, Cenas Juvenis, SP, Scritta, 1994, p. 44.
53
Essa criao musical e estilstica espalhou-se durante o ano de 1977,
atraindo um grande nmero de jovens, apesar das dificuldades de divulgao
- poucos discos gravados por temor e hesitao das gravadoras, proibio de
execuo das msicas em meios de comunicao - e dos ataques da imprensa
e perseguies da polcia.
Os punks so principalmente garotos das classes trabalhadoras dos
subrbios, vivendo nesse momento uma situao de desesperana: a crise
econmica e os ndices de desemprego atingiram duramente os jovens
proletrios que, ao sarem do ensino bsico no encontravam emprego e,
alm disso, viam boa parte dos servios pblicos antes existentes ser
encerrada pela poltica de desestatizao de Thatcher. Sem dinheiro, sem
nada para fazer, e com uma sensao de estagnao e e