Cachoeira – Bahia – Brasil, 21, 22 e 23 nov/2018 www3.ufrb.edu.br/eventos/4congressoculturas
Carnaval, Cultura e Memória em São Félix-BA
MATOS, Daniela1
UFRB-CAHL, Brasil, <[email protected]>
SANTOS, Valdelice2
UFRB-CAHL, Brasil, <[email protected]>
Resumo:
Este trabalho apresenta um estudo sobre a história do carnaval da cidade de São Félix-BA, festa
que teve um grande valor cultural para a região do Recôncavo da Bahia, entre os anos 20 e os anos 70
do século XX. Nosso objetivo principal ao investigar a história do carnaval de São Félix é verificar
como essa festa popular faz emergir características da cultura do Recôncavo da Bahia, das relações
cotidianas entre os moradores da cidade e, também, evidencia relações de poder experimentadas no dia
a dia da população. A análise foi empreendida a partir de dois corpus empíricos que se complementam:
a) um conjunto de 12 entrevistas realizadas com moradores e foliões de modo que foi possível acessar,
a partir desses relatos orais, narrativas de memória que reconstituíram o ambiente e as práticas culturais
carnavalescas e b) documentos acessados no Arquivo Público Municipal, como exemplares do Jornal
Correio de São Félix e Jornal A Vanguarda e o livro Emeféricos: Efemeridades Sanfelistas.
Palavras-Chave: Carnaval, São Félix, Memória, História.
Introdução
O Brasil é formado pela mistura de povos e costumes diferentes que deram origem a
uma cultura com uma diversidade singular. Isso pode ser comprovado nas artes, na música, na
culinária, na religião, na arquitetura e nas festas. Por sua vez, a Bahia, assim como sua região
do Recôncavo, encontra-se nessa mesma mistura de cultura, de ritmos e de cores, e um exemplo
disto é o carnaval. Esta festa, de origem europeia, se caracterizou em solo brasileiro e se
apresenta diferentemente em cada região do país.
1 Professora do Centro de Artes, Humanidades – CAHL, da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia. Docente permanente do Mestrado em Comunicação da UFRB. Doutora em Comunicação Social pela
UFMG.
2 Bacharela em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e
graduanda do Curso Superior de Tecnologia em Gestão Pública pela UFRB.
O carnaval pode ser sinônimo de diversão, de reivindicações e de expressão popular.
Em São Félix, cidade situada no Recôncavo da Bahia, esse festejo marcou presença entre os
anos de 1920 e 1970. Os foliões dessa cidade usavam máscaras, serpentinas, confete, fantasias
e outros adereços; brincavam nos bailes em clubes e participavam de desfiles pelas ruas da
cidade, no intuito de se divertir e esquecer os problemas do dia-a-dia.
Hoje essa festa está presente na memória dos antigos foliões que guardam
cuidadosamente a lembrança dos momentos felizes que tiveram nessa celebração ao rei
Momo; já os moradores mais recentes de São Félix, ou aqueles mais jovens, desconhecem a
história desse festejo em épocas remotas. Assim, torna-se essencial pesquisar fatos da
celebração do carnaval em São Félix, que tragam aspectos da relação entre moradores da
cidade e a festa que, por sua vez, fizeram essa festividade ser tão apreciada pela população
sanfelista e de cidades circunvizinhas, anos atrás.
Portanto, nosso objetivo principal, ao investigar a história do carnaval de São Félix,
é verificar como essa festa popular faz emergir características da cultura do Recôncavo da
Bahia, das relações cotidianas entre os moradores da cidade e, também, das relações de poder
experimentadas no dia a dia da população.
Uma vez que essa festividade era muito importante para a cultura local de São Félix,
além de ser um dos principais meio de diversão da cidade na época, viu-se a necessidade de
realizar este trabalho para contribuir para o enriquecimento da história do município e da
história cultural do Recôncavo. Além disso, chamar atenção, principalmente dos jovens, para
as histórias dessa manifestação cultural.
Desde meados dos anos 70, não houve mais realização do carnaval de clube em São
Félix, já o da rua, voltou nos anos de 2015 e 2016, porém com novas características e sem o
brilhantismo do antigo. O retorno do carnaval foi um projeto do então prefeito Eduardo José
de Macedo Júnior, realizado em dois bairros da cidade, Bairro 135 e Varre Estrada, com
animação de charanga, cantores locais e pouquíssima participação popular, mas o projeto
não teve continuidade.
Este artigo é uma releitura do radiodocumentário “Lembranças de outros Carnavais e
Micaretas”3. A análise foi empreendida a partir de um conjunto de 12 entrevistas realizadas
com moradores e foliões que, por meio de narrativas de memória, reconstituíram o ambiente e
3 “Lembranças de outros Carnavais e Micaretas” é um radiodocumentário produzido por Valdelice
Santos, uma das autoras deste artigo, como parte do Trabalho de Conclusão de Curso de Comunicação
Social/Jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), intitulado “Alegria, folia e muitas
histórias para contar – resgate histórico do carnaval e micareta de São Félix”, defendido em 2013. Disponível em:
<https://carnavalemicaretadesaofelixbahia.wordpress.com>
as práticas culturais carnavalescas de São Félix; e documentos disponíveis no Arquivo Público
Municipal: Jornal Correio de São Félix (edições de janeiro a março dos anos de 1934 a 1988),
Jornal A Vanguarda (exemplares de fevereiro de 1925 e de março de 1926, únicas edições
encontradas); e o livro Emeféricos: Efemeridades Sanfelistas que serviu para identificar datas
de fundação dos Clubes onde aconteciam os bailes de carnaval.
Carnaval, cultura e memória
O carnaval chega ao Brasil por volta do século XVI e nessa época era chamado de
Entrudo devido à influência dos portugueses. O Entrudo acontecia de duas formas: uma era a
“familiar” (acontecia no interior das casas), a outra era o entrudo “popular” (saía pelas ruas e
envolvia o povo mais pobre, como os escravos).
Nesta ocasião, se permitia aos escravos o uso de máscaras e de fantasias, além
de comer e beber desbragadamente. No Brasil, o entrudo limitou-se, até
meados do século XIX, a uma festa em que os escravos da Colônia e do
Império saíam correndo pelas ruas, sujando-se uns aos outros com farinha de
trigo e polvilho. As famílias brancas, refugiadas em suas casas, divertiam-se
derramando, pelas janelas, tinas de água suja sobre as pessoas que passavam,
enquanto comiam e bebiam em um clima de quebra consentida da extrema
rigidez patriarcal. Estas comemorações incluíam desfiles com fantasiados,
carros alegóricos e música de fanfarra (VARGAS, 2014, p. 186)
Em 1853, esse tipo de manifestação foi proibida por pressão das classes
dominantes e das autoridades policiais que desejavam impor um novo modelo de festa,
demarcada por influências europeias e acionando ideais de civilidade. Segundo Moura ( 2017,
s/p) “Em dado momento, as elites queriam que a festa que precedia a quaresma se parecesse
com os festejos franceses e italianos, e não com a bagunça associada à festa trazida de Portugal.
[...] Havia um ideal de higienização e civilização da festa que era associada aos costumes
porcos, sujos". Contudo, o autor destaca ainda que a o processo de desaparecimento do Entrudo
para a consolidação desse modelo de Carnaval de Bailes e Máscaras não aconteceu tão
rapidamente, foram algumas décadas entre final do século XIX e início do século XX até que
se consolidasse o novo modelo.
Nesse período de transição, surgiram as festas de clubes e a partir de então, o carnaval
deixa de ser apenas manifestação de rua e torna-se também uma festa organizada por
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associações. Surgem, então, os bailes dançantes promovidos pela elite do Império, realizados
em clubes e teatros. A passagem do entrudo português para o carnaval de bailes e máscaras
pode ter sido uma ação das elites brasileiras, demarcada intencionalmente para dar um ar de
“superioridade” e “europeização” à festa. “Para fazer frente à barbárie, incongruente com o
mínimo grau de sofisticação demandado àquela época, as elites brasileiras incorporaram os
bailes de máscaras e festas à fantasia da Europa” (OLIVEIRA, 2015, p. 15), com inspiração
estética ditada por Paris, considerada, então, a capital do mundo civilizado. Segundo Arantes
(2013) os primeiros Bailes de Máscaras, também chamados Bailes à Fantasia foram realizados
no Rio de Janeiro.
O primeiro baile carnavalesco aconteceu em 1840, no Hotel de Itália,
localizado no Rio de Janeiro, que anunciava um “baile de máscaras como se
usa na Europa por ocasião do Carnaval”. Os bailes foram se multiplicando e
popularizando, e passaram a ser promovidos também em teatros. Começaram
a surgir os clubes dançantes (ARANTES, 2013, p. 9).
Segundo Cadena (2018), o primeiro baile de mascarado carnavalesco realizado no
Nordeste foi na Associação Comercial da Bahia, em 1844, com exclusividade para associados
e convidados especiais. Assim, pode-se dizer que o carnaval é uma festa que permeia entre o
espaço público e privado. Para brincar nos bailes dos teatros ou dos salões era preciso pagar
ingresso. Já a rua, era a opção para as famílias mais pobres se divertirem. Embora cada um
brincando à sua maneira, com diferentes influências e expressões culturais, não deixou de
realizar a festa no país, tornando-a ser reconhecida internacionalmente.
A origem do carnaval é remetida às mais antigas celebrações da humanidade, como as
festas egípcias, romanas e gregas. Com o tempo, ele adquiriu novas características e elementos,
como bloco de rua, trio elétrico, carro alegórico, escola de samba, camarote, abadá, frevo e axé
music, porém outros foram se perdendo, como os bailes dançantes.
Por sua vez, o trio elétrico traz outra forma de dançar e celebrar o carnaval na Bahia,
como pondera Miguez (1996).
As pessoas "pulam" ao som do trio elétrico. O que quer dizer, dançam com
movimentos simples e livres, executando, individualmente, uma coreografia
espontânea e ímpar. Assim, "pula-se" sozinho no trio elétrico, tendo-se como
único parceiro possível ... a multidão que ele arrasta (MIGUEZ, 1996, p. 87).
Com isso, a festa passa a ter mais participação de foliões que se aglomeram pelas ruas,
espaço comum a todos. Contando com esses novos elementos, o carnaval baiano se populariza
entre os séculos XVIII e XIX. A cidade baiana com maior destaque para o carnaval é Salvador,
no entanto outras como Juazeiro, Ilhéus, Porto Seguro, Mata de São João, Barreiras e
Maragogipe também realizam a festividade. No recôncavo, o carnaval maragogipano, com
registro nos fins do século XIX, é um dos que preservam antigos elementos. “Maragojipe ainda
conserva a tradição dos mascarados, pelas formas artesanais de produzir fantasias, de
patrocinar o riso e promover a representação da vida cotidiana” (SANTOS e BARBOSA, 2010,
p. 35).
Conforme Santos e Barbosa (2010) o carnaval representa a inversão e a informalidade.
“Trata-se de manifestação cultural que acontece em dias e espaços definidos, onde pessoas ou
grupos se encontram, com alegria e espontaneidade. A reconfiguração de espaços e a inversão
de valores são elaboradas e definidas, para aquele contexto festivo, lúdico, simbólico” (p. 27).
Logo, é possível perceber que o carnaval está relacionado ao campo das tradições festivas do
país, sobretudo a baiana, e, nesse cenário cultural, ele pode ser considerado como:
[...] o lugar da significação, da representação, da simbolização, da
diversidade. Todas estas categorias estão associadas ao modo como as
pessoas, nas suas práticas, revivem a cada época, já que cada realidade
cultural tem sua lógica e dinâmica própria, em cada sociedade (SANTOS e
BARBOSA, 2010, p. 27).
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o carnaval faz parte da cultura popular
brasileira, entendendo que manifestação cultural e cultura popular são alguns elementos-chave
deste conceito. Vale ressaltar que a cultura popular envolve diversas áreas de conhecimento,
como arte, crenças, hábitos, ideias, linguagem e costumes. Portanto, uma cultura vivencia
épocas, perpassando de geração a geração, como pontua Trigueiro (2005, p. 1),
O homem comemora há centenas de anos os seus ritos de passagem, relembra
as suas datas festivas sagradas, profanas e de agradecimento. São essas
evoluções e evocações que chegam até os dias atuais, que já estão
incorporadas aos nossos calendários de tradição religiosa e festiva. Ao longo
do tempo essas práticas sempre fizeram parte dos processos das
transformações culturais e religiosas da sociedade humana e das suas relações
simbólicas entre a realidade e a ficção, dando origem aos diversos
protagonistas e suas performances nos festejos populares.
Assim, dialogar com o passado para conhecer aspectos relacionados à celebração do
carnaval em épocas distantes, significa recorrer à memória, seja ela documental ou oral. A
memória é uma das formas de conservar e relembrar experiências e informações relacionadas
ao passado. Le Goff (2003) afirma que a memória individual não consegue armazenar todos os
acontecimentos remotos, daí a importância da escrita e das instituições de memória (como
arquivos públicos, por exemplo) para a permanência de uma memória coletiva, visto que esta
é “um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja
busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e
na angústia” (LE GOFF, 2003, p. 469). Logo, entender a história de uma festa popular, por
meio das memórias, ajuda-nos a entender as características de um grupo, uma comunidade e
um lugar.
À vista disso, a memória de um povo representa um pedaço da história de um
determinado lugar, permitindo que as manifestações culturais locais, sobrevivam ao tempo. Em
se tratando de uma festividade, como o carnaval - objeto desse estudo -, podemos compreender
como os processos de transmissão de conhecimento permitem identificar laços de
solidariedade, de identidade e de sentido de pertencimento de um povo com o local em que
vive.
Carnaval em São Félix e o registro de sua temporalidade
São Félix é um pequeno município do Recôncavo da Bahia, localizado a 110 km da
capital do Estado. Banhado pelo Rio Paraguaçu, seu crescimento está ligado ao ciclo da cana
de açúcar e, posteriormente, à indústria fumageira. Possui uma história profundamente ligada
às manifestações culturais como: bumba meu boi; pastoril; quadrilha junina; queima de
Judas; samba de roda; terno do Barricão; e terno do Mandu.
Os registros históricos, coletados a partir de material impresso localizado no Arquivo
Público de São Félix e de relatos orais obtidos da pesquisa de campo, indicam que o carnaval
de São Félix aconteceu entre 1920 e 1970. Nesse período, os foliões usavam máscaras,
serpentina, fantasias e outros adereços; brincavam principalmente nos bailes em clubes e,
algumas vezes, em desfiles por ruas da cidade.
Tudo leva a crer que o carnaval tenha começado em São Félix na década de 1920. De
acordo com o Jornal “A Vanguarda”, a primeira festa de carnaval aconteceu em fevereiro de
1926 no Clube da Associação Atlética. Conforme o seguinte trecho publicado no referido
Jornal, “Na segunda-feira gorda, São Félix, vai assistir a uma das mais encantadoras festas
que já se realizaram nesta cidade. É o Baile do Club Allemão promovido por uma comissão
diamantes de grandes destaques de nossa sociedade […] São sem conta o numero de
phantasia em confecção para essa encantadora festa de elegancia, que vai ficar registrada no
mundanismo de São Félix como uma das suas melhores datas”. (O BAILE, 1926, p.1).
Com esse breve registro, percebemos que a concepção da “elegância” é relevante para
demarcar e caracterizar a festa que surge na cidade e dialoga com o contexto mais amplo,
como já mencionado, de uma tentativa de trazer ideais de “civilidade” e “europeização” para
os carnavais brasileiros. O lugar da elegância também pode ser lido como o lugar da elite,
nesse sentido.
Quanto ao período de declínio dessa festa, identifica-se a partir de 1970 e, mais
precisamente, o ano de 1975. A última matéria jornalística encontrada no Arquivo Público
sobre o Carnaval de São Félix foi publicada em 8/02/75 e menciona que os dirigentes do
Clube Floresta fizeram um “esforço” para atender aos “adeptos de Momo” e em seguida
também menciona que a Associação Atlética, outro importante Clube na histórica desse
Carnaval, resolveu “quase de improviso” reabrir seus salões. Os trechos estão destacados
abaixo e se relacionados a matérias publicadas em 1972, 1973 e 1974 demonstram já um
declínio desse modelo de festa carnavalesca.
O corpo dirigente do Floresta F.C no esforço de atender aos adeptos do Momo e
prosseguir na tradição de realizar o melhor carnaval popular da cidade, decidiu
franqueiar seus salões aos associados, simpatisantes e famílias para os festejos
carnavalescos nos dias 9 e 11 do corrente, efetuando vibrantes bailes a fantasia, nos
horários das 21 horas, até às 4 da madrugada. O Dendê que sempre animou a cidade
com suas festas enfrentou o embalo momesco para a fervura da folia, será outra
confirmação, de que carnaval mesmo, animado, agitado e vibrante é no clube Floresta
mesmo. Alerta, pois, foliões! (FLORESTA, 1975b, p.1) (sublinhado nosso).
A matéria prossegue,
Segundo informes, a direção da Associação Atlética de São Félix, decidiu figurar
no prestito de Momo, realizando 3 animados bailes carnavalescos, nos dias 8, 9 e
10 inclusive infantil. Mesmo de improviso quasi, o velho clube, respeitando
gloriosa tradição, abrirá seus salões para a sociedade e associados, figurando
assim no entusiasmo do fervor carnavalesco. (FLORESTA, 1975b, p.1).
Importante destacar que desde 1969 iniciou-se a realização da micareta de São Félix4
trazendo novos formatos para a festa, em um período diferente daquele determinado pelo
calendário para o carnaval e contando, conforme registra o Correio de São Félix em matéria de
15 /02/1975, com o apoio do poder público municipal para a nova festividade. Aspecto também
diferente das festas de carnaval, que eram organizadas e financiadas de modo particular pelos
Clubes e aqueles que podiam pagar pelos ingressos.
Como festejo popular, o carnaval, foi quase ignorado pela população. Fantasias na
maioria infantis apareciam nas ruas, preenchendo velho costume de homenagear
Momo. Balda de vida e animação a festança carnavalesca, foi adiada para realização
da Micareta, quando a principal patrocinadora será a Prefeitura, segundo informes do
prefeito sr. Eduardo José de Macedo (FLORESTA, 1975a, p.3).
4 A micareta, realizada entre 1960 a 1990, em São Félix era patrocinada pela Prefeitura e os moradores
organizavam os blocos. Concentrava-se no Porto da cidade e animada por trios elétricos como Destaque, Brilhaê
e Tapajós ao som de muito axé music. A última edição aconteceu em maio de 1996.
Os Bailes e seus foliões
O Carnaval de São Félix tinha nos Bailes realizados em Clubes e Associações seu
principal atrativo. A festa era realizada entre cinco e três dias antecedentes a quarta-feira de
Cinzas, com bailes dançantes, oferecidos aos adeptos e associados dos clubes, animados por
grupos como Jazz Continental, Cuba Jazz e Filarmônica União Sanfelista e ainda por foliões
fantasiados que cantavam e dançavam ao som de marchinhas.
O primeiro aconteceu no Clube da Atlética, que se localizava na Avenida Salvador
Pinto, o Clube Floresta, que fica na Rua Manuel Vitorino, também promoveu vários bailes. O
Clube da Leste – ou Ferroviário, com sede na Ladeira da Misericórdia, realizou em um ano.
Cada Clube tinha sua rainha, que era escolhida através de concurso, os jurados eram os
diretores e sócios dos clubes. Os jornais de circulação local divulgavam o concurso, a exemplo
do Correio de São Félix, fundado em 1934. O baile que escolhia a rainha era denominado
“Grito de carnaval”.
O concurso realizado para a escolha da rainha e princesas também atraia moradores de
cidades vizinhas. “Como alegre e ruidez manifestação ao deus Mômo, realizará hoje á noite,
em seus salões, a Associação Atlética, sobretudo baile á fantasia, o qual, como nas épocas
anteriores, merecerá as simpatias do alto mundo social das cidades vizinhas” (GRITO, 1954,
p. 1).
Conforme já mencionado, a festa era promovida pelos sócios dos clubes e os bailes
eram pagos. A população só participava em maior número quando o carnaval saia pelas ruas.
De acordo com matéria publicada no Jornal Correio de São Félix “Nesta cidade, não tem havido
festejos de Mômo, caracteristicamente popular. As comemorações carnavalescas teem sido de
iniciativa parcialmente privada, ficando restrita aos clubs ou bailes privados” (CARNAVAL
NA, 1948, p. 1). O relato oral do Sr. Raimundo Silva reforça essa característica,
Todo mundo brincava o carnaval. Era uma festa pra todo mundo, mas nos bailes, ia
mais pessoas que tinham mais condições, não podia ir todo mundo. Só ia mesmo
pessoas que tivessem condições de participar da festa, porque era pago. Tinha na
Associação Atlética de São Félix e no Floresta Futebol Clube. Eu participei no
Floresta, eu gostava mais do baile do Floresta. No carnaval de rua vinha muita gente
de fora, de Cruz das Almas, de Cachoeira. Eu me lembro da época que saía no porto,
na Avenida Salvador Pinto (SILVA, 2013)
Há outros registros, contudo, que amenizam essa percepção, Luiz Gonzaga Dias na
matéria Carnaval e Mascarados, publicada no Jornal Correio de São Félix em 1953, afirma que
a festa era esperada o ano inteiro pelos moradores da cidade, que esqueciam o preconceito e as
diferenças e iam atrás de diversão: “As máscaras tumultuam de envoltas com as fantasias mais
ricas e imaginativas. Nas ruas. Nos clubes, Boaites e cassinos. Mascarada entre nuvens de
perfumes, chaves de confete; botes entrecruzados de serpentinas” (DIAS, 1953, p. 1). Nesse
texto, há uma tentativa de ampliação de experiência dos moradores da cidade com a festa para
além dos clubes e seus associados. O registro fotográfico abaixo, datado de 1951, apresenta
um momento dessa ação carnavalesca de rua.
Carnaval nas ruas de São Félix, 1951
Fonte: Dilermando Lemos
Ainda assim, na maior parte dos registros coletados, reforça-se a característica dos
bailes e salões dedicado à uma parte da sociedade sanfelista. “Na Associação Atlética prepara-
se para brindar os associados, adeptos e a sociedade sanfelixta, com o brilhantismo e sucesso
costumeiros dos seus bailes os quais serão efetuados durante os três dias dedicados a Momo,
havendo ainda dois bailes infantis dedicados aos filhos dos socios do club” (O CARNAVAL,
1946, p. 01). O relato oral de Davi Novaes reforça a percepção, “Em 1957, em 58, 59, 60 e 61
era um carnaval maravilhoso. Eu gostava do carnaval daqui porque não era tão tumultuoso
quanto carnaval de Salvador. A brincadeira na rua pouca, em Cachoeira o número era maior, a
festa era lá na Praça 25. Aqui tinha a festa era no Clube Floresta e na Associação Atlética”
(NOVAIS, 2013).
Diante dessa caracterização mais evidente nos cabe refletir sobre quem eram esses
sócios, e dar visibilidade as principais interdições que existiam cotidianamente e continuam a
operar nas festas de carnaval. A participação da comunidade negra nos bailes de clubes, por
exemplo. Fato este bem ilustrado pela fala de Davi Novais: “O Floresta era um clube que
entrava todo mundo e lá na Associação era escolhido. Lá até tinha privilégio de qualidade.
Preto lá, só se fosse um médico como o Doutor Carlos pra ir pra lá porque se fosse preto e não
tivesse nada, existia dificuldade”. A partir do relato podemos afirmar que a participação da
população negra estava restrita aos integrantes das atrações musicais, como o grupo Cuba Jazz
que animava muitos bailes e era formado, em sua maioria, por homens negros.
Já os registros jornalísticos da década de 1970 trazem de volta essa dimensão da rua
para a vivência carnavalesca de São Félix, nesse momento a experiência da micareta – com a
inclusão de trios elétricos – já era forte e as transformações do carnaval de rua de Salvador5
também compõe esse novo contexto.
O encontro marcado pelo Rei Momo com povo sanfelixta, recebeu merecida acolhida
da população que saiu às ruas e frequentou os clubes. O prefeito sr. Antônio Carlos
Lobo Maia, deu notável impulso às manifestações populares, ornamentando a praça
Inácio Tosta, de forma original aparatosa, instalado farta iluminação à cores, e pondo
à disposição dos foliões um pequeno trio elétrico que fez maravilhas (CARNAVAL,
1972, p.2).
Quando a festa tomava as ruas da pequena São Félix era chamado “Cordão da Vitória”.
Era nesse momento que os foliões se divertiam pelas ruas ao som de charangas, com suas
máscaras e fantasias. “Contrariando a inércia aparente, o carnaval alvoroçou os arraiais da
alegria, e botou pra quebrar nas ruas, enchendo a cidade de batuques, blocos, trio elétrico e
foliões durante três dias” (CARNAVAL, 1974, p. 1).
Mesmo sendo uma das principais diversões da comunidade sanfelixta na época, a festa
deixou de realizada na década de 1970. Com a saída de alguns organizadores da cidade e a
morte de outros, a festa perdeu fôlego, pois os demais sócios não tiveram condições financeiras
para prosseguir com o festejo. O último registro do carnaval encontrado no Correio de São
Félix foi do ano de 1975, no Clube Floresta.
Considerações Finais
A construção desta pesquisa proporcionou uma análise sobre os festejos carnavalescos
na cidade de São Félix, durante o século XX. Notamos que o carnaval é um reflexo da mistura
de diversas manifestações da identidade cultural do país, e, em São Félix, a festa movimentou
os principais clubes e pontos da cidade com muita vibração dos foliões. Hoje essa festa está
presente apenas na memória de quem viveu aquela época.
5 O Trio Elétrico, criado por volta de 1951 por Dodô e Osmar, representa a consagração do carnaval de rua de
Salvador, desde então, atrai multidões, tanto anônimas quanto artistas e personalidades, empolgadas com o som
e a magia da diversão pagã. Entre a década de 1960 e 1970, os trios elétricos migraram também para outros
carnavais da Bahia, inclusive para o Recôncavo.
O carnaval era realizado de duas formas: tinha a de iniciativa popular quando saia pelas
ruas arrastando os foliões; e a privada quando acontecia dentro dos clubes. Porém, na privada
é possível perceber que as relações de poder são manifestadas nitidamente, o preconceito, por
exemplo, era bem presente, tanto pela classe social, quanto pela questão racial, o pobre e preto
não era bem visto nos festejos, era uma festa de elite, em que as pessoas mais importantes da
cidade marcavam presença. Característica típica das classes mais ricas da sociedade brasileira,
que se ancorava em um modelo civilizatório eurocêntrico, com marcas do racismo que
caracteriza a sociedade da época, e persiste até hoje. Essa divisão entre público e privado ainda
perdura nos carnavais atuais do país, a exemplo do carnaval de Salvador, há diferença entre
folião que brinca na pipoca e o que está no camarote.
Apesar das contradições presentes, essa festa que mistura tradições africanas, indígenas
e europeias e traz a ideia de inverter a ordem moral da vida burguesa e instaurar ritos profanos,
deixou um legado significativo para história sanfelista e da região. As brincadeiras, danças e
ritmos, por exemplo, se mesclaram e se transformaram em um legado cultural que compõe a
identidade do recôncavo.
Os relatos estudados, tanto dos jornais quanto orais, deixam claro como essa festa foi
importante para a cultura da região, e como há pouco conhecimento sistematizado sobre o
Carnval em(de) São Félix. Desse modo, a pesquisa busca contribuir para a história cultural da
região a partir da organização de dados, informações, documentos, relatos orais que constituem
a memória de uma importante prática cultural que foi realizada durante, pelo menos 50 anos
pela população sanfelixta.
Referências
ALMEIDA, Júlio Ramos. Efemeridades Sanfelixtas: Um pouco da vida de minha
Terra. São Félix, 1953.
ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. 14. ed. São Paulo:
Brasiliense, 2006.
CADENA, Nelson. Carnaval da Bahia no século XIX: Dos salões para a rua, 2018.
Disponível em: http://blogs.ibahia.com/a/blogs/memoriasdabahia/2018/02/21/carnaval-da-
bahia-no-seculo-xix-dos-saloes-para-a-rua/ Acesso em: 05 de nov. de 2018.
CARNAVAL arrastou multidões para as ruas e clubes da cidade. Correio de São Félix,
São Félix, ano XL, nº 1825, p. 2, 19 de fev., 1972.
CARNAVAL na cidade: quebrada a monotonia dos anos anteriores. Correio de São
Félix, São Félix, ano XIV, nº 659, 24 jan. 1948.
CARNAVAL transformou a cidade: Em vibrante império da folia. Correio de São
Félix, São Félix, ano XLII, nº 2113, p.1, 2 mar. 1974.
DIAS, Gonzaga. Carnaval e Mascarados. Correio de São Félix, São Félix, ano XVIII,
nº 918, 14 fev, 1953.
FLORESTA com três grandes bailes: Dinamizou o carnaval no clube. Correio de São
Félix, São Félix, ano XLIII, nº 2193, p. 3, 15 de fev., 1975a.
FLORESTA na arrancada carnavalesca: Animação para valer nos arrales florestino.
Correio de São Félix, São Félix, ano XLIII, nº 2192, p. 1, 8 de fev., 1975b.
GRITO de carnaval hoje a noite na Associação Atlética. Correio de São Félix, São
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LE GOFF, Jacques. História e memória. São Paulo: Ed. da UNICAMP, 2003.
MIGUEZ, Paulo César. Carnaval baiano: as tramas da alegria e a teia de negócios.
1996. 237f. Dissertação (Mestrado em Administração) – Núcleo de Pós-Graduação da Escola
de Administração da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996. Disponível em:
http://academiadosamba.com.br/monografias/paulomiguez.pdf. Acesso em: 12 de out. 2018.
NOVAIS, Davi. Entrevista concedida a Valdelice Santos. São Félix, 17 de jan. 2013.
[Trecho da entrevista está no Radiodocumentário Lembranças de outros Carnavais e Micaretas.
Disponível em: https://carnavalemicaretadesaofelixbahia.wordpress.com]
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