1. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte Uma
viso atual da problemtica existencial luz da Filosofia, da Religio
e da Cincia
2. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte
Ttulo: O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte Autor: J. Herculano
Pires 3 Edio 1996 3.000 exemplares Capa: caro Reviso: Demetre Abrao
Nami Direitos desta edio reservados Editora Paidia Ltda., segundo
os dispositivos legais. Pedidos : Editora Paidia Ltda. Rua Dr.
Bacelar, 505 - V. Clementino CEP: 04026-001 - So Paulo - SP -
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3. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 3
Para Samuel Balababian que desceu entre os supostos destroos da
Arca de No, no Monte Ararat, foi escravo dos bedunos no deserto,
barbeiro em Buenos Aires e barbeiro nos Dirios Associados de So
Paulo, na Rua 7 de Abril, onde me contava anedotas armnias, e um
dia me perguntou: Por que temos de sofrer tanto neste mundo e
morrer sem ter conseguido nada? Se Samuel no entendeu esta
resposta, estaremos quites, pois muita coisa que ele me contou, na
lngua da Torre de Babel, misturando rabe, armnio, espanhol e
portugus, eu tambm no entendi. O principal que no rosto envelhecido
e cansado de Samuel, tocado pela sombra da morte, passou um sopro
de alegria quando eu lhe disse que a sua pergunta me levara a
escrever um livro.
4. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 4
ndice O que todos devemos saber
.......................................................... 5 1. Os
Capatazes de Deus
............................................................ 9 2.
Os Mecanismos do Sensvel
................................................. 14 3. Do Sensvel
ao Inteligvel ....................................................
21 4. O Mundo sem
Dor................................................................
31 5. A Lagosta de Sartre
.............................................................. 37
6. Os Caminhos Incertos da Experincia
.................................. 43 7. As Revolues Conceptuais
................................................. 49 8. Os Caminhos
Escusos da Moral ........................................... 55 9.
O Controle tico da Moral
................................................... 61 10. A Sntese
Esttica da Conscincia ...................................... 67 11.
Os Perigos da Conscincia Prtica
..................................... 74 12. O Ser
Moral........................................................................
83 13. A Certeza da Vida Aps a
Morte........................................ 90 Ficha de
Identificao
Literria.................................................. 99
5. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 5 O
que todos devemos saber O avano do conhecimento nos ltimos dois
sculos, e particularmente neste sculo, deu-nos, pela primeira vez
no mundo, os dados necessrios para o esclarecimento cientfico da
problemtica existencial, ou seja, da natureza e da condio do homem.
O desenvolvimento da razo e, conseqentemente, das tcnicas de
pesquisa abriu-nos possibilidades decisivas de uma penetrao mais
profunda no mistrio de ns mesmos. Libertamo-nos da sistemtica
filosfica e do emaranhado contraditrio das proposies teolgicas,
para encararmos o problema do homem com realismo, sem os temores e
os embaraos da superstio e da religio. Mas a pesada herana dos
milnios de obscurantismo, alimentados pela magia primitiva, pelo
temor do sagrado, pela nebulosidade dos conceitos formais sobre as
coisas e os seres, tudo isso em conflito com a mentalidade
mitolgica, as concepes materialistas, a ferocidade das instituies
religiosas, gerava um pandemnio que no podia levar a nada. Todos
tinham e no tinha razo, mas vencia a sem-razo dos mais poderosos.
Atualmente, apesar dos pesares, a metodologia cientfica e as
tcnicas romperam as antigas barreiras, graas aos resultados
positivos de suas atividades, criando condies mais favorveis a um
tratamento objetivo do problema do homem. Nossa viso atual oferece
mais opes racionais para uma tomada de posio realista e liberta de
perturbaes da metafsica fidesta. Acentuou-se nas massas a tendncia
pelas descobertas cientficas e definiu-se a existncia de uma elite
do saber que dispe de recursos para afugentar as fascinaes da
mentira piedosa. Queremos hoje a verdade provada e no apenas o
carimbo oficial dos supostos
6. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 6
donos da infalibilidade consagrada pela evidente falibilidade
humana. Essa a razo de voltarmos, neste livro, s teses antigas
sobre o homem e particularmente sobre os temas de Lon Denis em seu
livro O Problema do Ser, do Destino e da Dor. No repisamos esses
temas, mas procuramos desenvolv-los mais amplamente na perspectiva
filosfica e cientfica dos nossos dias. A posio de Denis, ligada aos
fins do sculo passado e princpios deste sculo, ainda bem recente.
Mas o aceleramento cultural de hoje encurtou as fases, antes
seculares, da complementao de dados substanciais em diversos rumos
da problemtica. No se trata, pois, de uma reviso arbitrria de obra
clssica e consagrada culturalmente, que continua vlida e necessria,
na sua inteireza de pensamento e linguagem, mas de um
desenvolvimento tambm necessrio dos temas do grande pensador da
Lorena, que teria hoje novos dados para enfrentar Voltaire na quase
polmica de que o poeta Gaston Luce, contemporneo de ambos, nos d
numa rpida informao em seu livro Vida e Obra de Lon Denis. Os
leitores de Denis vero que no nos ativemos ao seu esquema e nem
tentamos reformular as suas proposies. Procuramos apenas ajustar a
sua temtica realidade dos nossos dias. Valemo-nos de nossa
afinidade com Denis e sua obra para continuar tratando do assunto,
com a maior amplitude possvel, no desenvolvimento atual da cultura.
Essa uma exigncia do nosso tempo, considerada como indispensvel em
todos os ramos do conhecimento. Cada fase do desenvolvimento
cultural cria novo clima e oferece maiores possibilidades para o
trabalho intelectual. As obras clssicas correspondem s diversas
fases do passado e so consideradas completas em si mesmas, obras
feitas e intocveis na sua dignidade de testemunhas da grandeza do
seu tempo. crime desfigur-las a pretexto de atualiz-las, como fazem
hoje as religies crists em suas novas edies da Bblia. Essa
violao
7. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 7
criminosa (crime moral e crime cultural ao mesmo tempo) s ocorre,
por estranho que parea, justamente nas reas religiosas, que
consideram sagradas as obras da revelao. Ignorncia e interesse
imediatista de venda e de proselitismo so as molas dessa
criminalidade religiosa. Mas no se pode negar a cada poca o direito
e o dever de elaborar as suas prprias obras, que testemunharo as
condies culturais de seu tempo. No tocante ao problema que
enfrentamos neste livro, a necessidade de uma atualizao
epistemolgica se impe, no aproveitamento das novas condies surgidas
para o melhor e mais completo conhecimento do problema luz dos
novos dados obtidos pela pesquisa histrica e cultural em geral.
Ante o avano cientfico e filosfico da atualidade, com reflexos
profundos no plano religioso, a concepo geral do mundo, a
mundividncia especulativa ou dogmtica do homem comum, negativa ou
positiva, ampliou-se nas perspectivas csmicas. Materialistas e
espiritualistas, racionalistas e fidestas, romperam a estreiteza de
suas convices acanhadas. Uma nova revoluo coprnica explodiu no
interior das bastilhas, das Igrejas e por trs das muralhas do
Kremlin. Por toda a Terra, como num desafogo de milnios, a mente
popular e a das elites abriram-se sofregamente para a percepo do
ilimitado. O curioso que essa abertura ocorreu sobre os destroos da
segunda conflagrao mundial, num misto generalizado de temor e
esperanas. Essa virada do finito para o infinito confirmou a
validade das utopias, segundo a tese de Karl Mannheim. A descoberta
cientfica da percepo extra-sensorial comprovou a capacidade humana
de antecipar mentalmente as realidades futuras. Fomos obrigados
literalmente obrigados a aceitar uma nova cosmoviso, em que o homem
no mais aparece como o bicho da terra, to pequeno, de Cames, mas a
Fnix egpcia de asas misteriosas, que vence o tempo, o espao e a
morte. Todas as nossas idias sobre a realidade nossa e
8. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 8
do mundo foram postas em cheque. A matria foi virada no avesso pela
descoberta da antimatria, perdeu sua solidez em troca da fluidez,
que considervamos uma heresia cientfica, e o espao fsico e imutvel
dispersou-se na multiplicidade dos hiperespaos. Somente os alrgicos
ao futuro, na expresso de Remy Chauvin, continuaram a bater no
peito, como beatos inconversveis, repetindo os credos de um passado
sombrio. Como na teoria aristotlica de potncia e ato, basta-nos
abrir as plpebras aps o sono para que a viso da alvorada nos
atualize na realidade nova. Os que quiserem continuar de olhos
fechados podero faz-lo, como toupeiras que se recusam a sair da
cova. A liberdade do homem s limitada por ele mesmo. O seu prprio
despertar depende do seu desejo ou no de ver o raiar do Sol.
Estimular nos leitores esse desejo a principal finalidade deste
livro provocado por um velho armnio de esprito jovem, curtido nas
dores do mundo.
9. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 9
1. Os Capatazes de Deus As explicaes religiosas sobre a dor e a
morte apiam-se at hoje em conceitos mitolgicos provenientes da mais
alta Antigidade. Originam-se da idia primitiva e, portanto,
simplria da criao do mundo pelos deuses. Esses deuses, por sua vez,
no passam de criaturas humanas divinizadas, que regem o mundo em
que vivemos e todo o Universo atravs de poderes mgicos que se
manifestam na realidade sensvel em forma de decretos irrevogveis.
Camos assim nas garras de um fatalismo totalitrio, do qual no
podemos escapar de maneira alguma. Nascemos, vivemos e morremos
como peixes de um aqurio ou como os galinceos de um vasto
galinheiro, criados apenas para o corte impiedoso dos interessados
em lucros. A vontade humana no conta. Os deuses nos criam,
alimentam e devoram. Somos animais de corte que se contentam com as
raes e as vtimas inferiores que nos permitem caar. O mximo que
podemos fazer suplicar de mos postas que os deuses no se esqueam de
nos dar as raes e de tratarnos de maneira benigna. Dispomos do
recurso das splicas e da obedincia, dos ritos de submisso, dos
louvores obrigatrios aos deuses para, pelo menos, conseguirmos
algumas concesses benvolas dos poderosos, mas sempre na certeza de
que iremos para o sacrifcio mais cedo ou mais tarde. Contamos tambm
com a proteo possvel de alguns capatazes generosos, que podem
aliviar-nos quando quiserem. Com o advento do Monotesmo, da crena
de um Deus Supremo nico, nossa miservel condio subumana no melhorou
muito. O Senhor implacvel jamais concordou em conceder-nos a
alforria. Continuamos presos como os negros nas senzalas e
ten-
10. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 10
tamos revoltas inteis, que s serviram para aumentar as nossas
dores. O Deus Supremo irascvel e pode irritar-se com as nossas
pretenses. O chicote da dor est sempre erguido sobre os nossos
lombos e a morte sempre espreita para nos ceifar. Os raios de
Jpiter podem cair sobre as nossas cabeas a qualquer momento, sem
sabermos por que motivo. Deus no precisa de motivos e no se
preocupa com arrazoados de espcie alguma. Apesar dessa irredutvel e
trgica viso da vida, continuamos a viver, pois gostamos de estar
vivos e detestamos a morte. A dor mais insuportvel se torna
suportvel quando nos lembramos das ameaas dos capatazes de Deus
sobre as penas eternas. A idia de uma eternidade de dores nos
perturba e preferimos esperar vivos a hora do corte. S os que se
desesperam e no encontram alvio algum na vida acabam apelando para
a morte. Desse impasse resultou a rebelio das senzalas no plano
mental, com as tentativas de golpe de Estado da Filosofia e das
Cincias. O Positivismo, o Materialismo, o Pragmatismo e outros
ismos da mesma espcie tentaram abrir algumas brechas de liberdade
nas muralhas da vida, para libert-la. Mas caram numa situao
desesperadora, pois tiraram dos homens as poucas esperanas que lhes
restavam. O Buda e o Cristo chefiaram revoltas mais aceitveis. Mas
o Buda apelava para a fuga e o Cristo pareceu suspeito, por se
dizer Filho de Deus. Os capatazes puseram a boca no mundo, com
ameaas terrveis para os que se bandeassem para o lado inimigo. Era
perigoso arriscar um olho para quem s possua dois. Surgiram os
msticos do terceiro olho, mas os homens sensatos desconfiaram de
uma cilada, em virtude da prpria posio esquiva desse olho estepe.
Na prpria Bblia hebraica que os capatazes diziam, com autoridade
indiscutvel, ser a Palavra de Deus, figurava o pacto de No com Iav
(o Deus dos Judeus), povo esperto firmado logo aps o Dilvio. Nesse
pacto estava clara a posio de Deus, que
11. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 11
exigira duas coisas da Humanidade: o povoamento total da Terra e a
reserva absoluta de todo sangue derramado para a alimentao do
Senhor. At hoje os judeus ortodoxos mantm matadouros rituais em que
o sangue dos animais abatidos reservado exclusivamente para Deus. A
fim de evitar abusos, os capatazes inventaram que a alma de todos
os seres est no sangue, de maneira que, com os chourios, o homem
corria o risco de engolir almas de animais e animalizar-se. Ficou
claro que Deus era carnvoro, quando No lhe fez um altar no Monte
Ararat, aps o Dilvio, e Iav debruou-se guloso sobre as carnes
assadas que o esperto No pusera para ele no altar. Iav no comeu as
carnes, mas aspirou gulosamente as deliciosas emanaes daqueles
assados, em que o sangue das vtimas subia nas espirais de fumaa.
Quem visse Iav naquele momento, de narinas escancaradas para no
perder o menor fiozinho de fumaa alimentcia, podia compreender a
importncia do sangue humano (o mais precioso) nos banquetes
celestiais. E quem visse as matanas coletivas no mundo e as
fogueiras acesas febrilmente pelos inquisidores compreenderia a
razo daquele dispositivo do pacto que dizia: Povoai toda a Terra,
enchei-a com vossa descendncia. Iav exigia todo o sangue dos
animais e da humanidade para a maior produo dos frigorficos
celestiais. Os capatazes de Deus tambm compreenderam isso e criaram
taxas especiais a serem pagas pelos que, ritualmente impedidos de
comer carne em dias santificados, recebessem licena especial, de
maneira a que no se diminusse a matana universal de que resultariam
os estoques de sangue. Por tudo isso o sangue se tornou a mais
preciosa das coisas nos ritos e sacramentos das Igrejas. Pois nem
mesmo o sangue sagrado do Cordeiro de Deus havia sido poupado! Deus
perdoava tudo aos homens, menos a dor e a morte, sem as quais no
seriam possveis as matanas. Esse quadro, toscamente esboado, da
Tragdia Universal, pode despertar os homens para uma compreenso
mais clara e
12. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 12
precisa do significado da dor e da morte na Terra. Continuamos,
ainda hoje, submetidos fascinao dessas idias arcaicas, com que
ainda se alimentam teologias e filosofias sanguinrias por todo o
mundo. Enquanto no nos livrarmos dessa fascinao cruenta no
chegaremos compreenso real do que so a dor e a morte na vida humana
e continuaremos a viver sem saber por que o fazemos. Nossa vida
humana tem o sentido estranho de uma concesso condicionada s
exigncias interesseiras de um grande monoplio celestial do sangue.
E continuaremos a derramar o sangue dos animais e dos nossos
semelhantes para agradar a um Deus insacivel. Por mais invenes e
conquistas que fizermos, no passaremos da condio desses trogloditas
que continuam em matanas selvagens e brutais nos pases mais
supostamente civilizados deste planeta ensangentado. Isso prova que
a Civilizao no passa de uma domesticao de feras indomveis. Mais de
vinte grandes Civilizaes desfilaram pelo planeta at hoje, segundo
os clculos de Toynbee, e os homens continuam os mesmos. As dores do
mundo aumentaram, a ao das Civilizaes mostrou-se contraditria,
eliminando males antigos e criando novos e mais terrveis males. O
progresso das Cincias e das Tcnicas foi enorme. O homem voa mais
seguro e mais veloz que os pssaros, chegou a pousar na Lua e voltar
Terra, mas enfermidades terrveis se espalharam pela Terra, como as
vrias formas cancergenas, os enfartes, os distrbios nervosos,
psquicos e mentais e assim por diante. Vivemos no mundo do terror,
da insegurana, carregando em ns mesmos o germe dos males que nos
assaltaro e nos mataro na hora prefixada de dipo. Devastamos a
Terra, polumos a atmosfera que temos de respirar, liquidamos as
defesas ecolgicas naturais, envenenamos o cu e o mar. As
perspectivas de novas dores e tragdias inevitveis so muito maiores
e mais ameaadoras do que nos milhes de
13. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 13
anos decorridos. Chegamos ao cmulo de voltar ao canibalismo e aos
massacres genocidas. Aumentamos muito a nossa capacidade de
produzir novas, mais agudas e mais espantosas formas de dor para
toda a Humanidade. Parece evidente que, mais do que o acaso ou o
destino, somos ns os produtores dos males que nos afligem. Estamos
na hora de perguntar se a dor realmente uma das alavancas da evoluo
humana e da evoluo geral, ou apenas um subproduto de nossas
loucuras industrializantes. Seria a dor, como supusemos at agora,
um meio de desenvolvimento da sensibilidade ou uma forma de seu
embotamento? Tentamos suprimi-la atravs de anestsicos e somos
forados a multiplic-la por meio de mecanismos infernais. Qual a
funo da dor, da misria, do sofrimento individual e coletivo no
mundo em que vivemos? As crianas choram ao nascer com medo do mundo
ou por piedade de si mesmas? So mltiplos os problemas da atualidade
mundial, envolta em sangue, desespero e lgrimas. Sabemos que iremos
morrer, mas cada morte aumenta as dores do mundo e em cada enterro
ou cremao desaparece um ente querido que lana os vivos em novas
angstias. No descobrimos ainda nenhum meio de dominar as dores que
nos perseguem, como hienas famintas, desde que nascemos at o
momento fatal da morte.
14. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 14
2. Os Mecanismos do Sensvel O mundo do sensvel e o mundo do
inteligvel, em que Plato divide a realidade, encerram os mistrios
da morte e da vida. Temos no sensvel o mundo morto da matria bruta
ou compacta, e no inteligvel o mundo da matria refinada e vibrtil,
animada e dotada de sensibilidade. Apesar do dualismo aparente,
esses dois mundos se fundem na realidade nica do pondervel
universal, hoje inteiramente acessvel aos nossos instrumentos ou
aparelhos externos e extracorpreos de percepo. O Deus bblico dos
judeus, herdeiro das tradies mgicas do Egito, arrancou o mundo do
nada, do vazio da sua cartola, mas os deuses gregos, srios e
modestos, preferiram arranc-lo da realidade subjacente das coisas,
que constitui o plano do sensvel. Deucalio e Pirra, os heris do
dilvio grego, repovoaram a Grcia catando pedras e atirandoas para
trs, sem olh-las, para no perturbarem o milagre da converso dessas
pedras em seres humanos. Essa parbola aparentemente ingnua contm o
segredo da relao entre o sensvel e o inteligvel. Os primeiros
judeus nasceram do barro de Ur, na Mesopotmia, mas os primeiros
gregos nasceram das pedras de Delfos, onde ergueriam mais tarde o
Orculo de Apolo. Apesar de nascidos do barro, do limo da Terra,
como diz o texto sagrado, os judeus se arrogaram o ttulo racial de
Filhos de Deus. Toda essa estria muito curiosa e cheia de
subentendidos e significados ocultos, que somente hoje se tornam
transparentes. Os orculos gregos viam mais longe que os profetas
judeus. Mas o que mais nos interessa, confirmando os poderes
intuitivos dos gregos, a revelao dos mecanismos do sensvel, no
processo de transformao das pedras em homens. Na linha ato-
15. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 15
mista posterior, filsofos gregos, como Leucipo e Demcrito,
mostrariam que a pedra, insensvel em si mesma, era sensvel nossa
percepo, carregando em suas entranhas catalpticas o germe oculto da
humanidade ps-diluviana. As entranhas da pedra constituam-se, como
hoje sabemos, de torvelinhos atmicos. A inrcia aparente da pedra
velava, na realidade, o futuro nas franjas do Vu de sis. A herana
egpcia da Grcia arcaica, consubstanciada na mitologia da pedra e
nas mutaes da metempsicose, permitia aos gregos compreender os
mecanismos do sensvel. A gestao secreta das energias atmicas no
ventre das pedras no ameaava o mundo com exploses destruidoras,
mas, prometendo-lhe antes a multiplicao das espcies vivas, desde as
misteriosas favas de Pitgoras, at o repovoamento da Hlade aps a
Guerra do Peloponeso. Reconhecida a funo geradora do mineral,
tornava-se possvel a compreenso das relaes entre os vrios reinos
naturais. Alm disso, a concepo monista do mundo e do Universo,
antecipada na matemtica lrica de Pitgoras, com sua msica das
esferas siderais e a teoria do isolosmo, segundo a qual a Terra era
um ser vivo, levaria compreenso de que o sensvel e o inteligvel no
eram mundos antpodas, mas fundidos e interpenetrados. Essa
realidade panormica, captada pela intuio grega, preparou-nos para
aceitarmos mais tarde, em tempos amargos do planeta, que a dor no
tinha funes puramente humanas. No apenas o homem que sofre com a
dor, mas toda a estrutura sensvel do gigantesco organismo de um
Universo vivo. Sendo assim, no podemos atribuir as dores do mundo,
que levaram Schopenhauer loucura, apenas s aes humanas. Foi o que
Kardec percebeu, nas suas pesquisas espritas, ao verificar que as
mesas-girantes eram movidas, no por cargas eltricas ou magnticas,
como supusera a princpio, mas por emisses ectoplsmicas dirigidas
intencionalmente e controladas por intelign-
16. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 16
cias reveladoras dos arcanos da natureza. Kardec, de origem
palingensica celta, percebeu a profundidade e a extenso dessa
renovao dos conceitos do seu tempo, mas viu-se obrigado a
restringir-se s condies culturais mdias da sua poca para, como
professor e didata exmio, preparar com sua obra os caminhos do
futuro. Sempre que Kardec se restringe ao aspecto humano dos
problemas espritas o faz por necessidade metodolgica, pois a Europa
do seu tempo no estava em condies de poder enfrentar com proveito
as idias avanadas que devia apresentar e defender. Nem sequer os
problemas atmicos haviam se desenvolvido. Convm lembrar que as
razes celtas e, portanto, drudicas de Kardec estavam ligadas, de um
lado, Filosofia Grega da rea socrtica, e de outro lado aos ensinos
do Cristo, na Palestina. Aristteles referiu-se aos celtas como o
nico povo filsofo que havia encontrado no mundo, e o prprio Kardec
incumbiu-se de estabelecer o confronto, na Revista Esprita, dos
princpios do Cristianismo e do Espiritismo com a doutrina trplice
dos druidas. historicamente evidente essa trplice ligao, como
Kardec o provou no seu estudo citado. Depois de sua morte, Kardec
voltou ao assunto numa comunicao medinica em que considerou a Frana
como uma espcie de refletor dos pensamentos renovadores do Alto. Em
O Evangelho Segundo o Espiritismo considerou Scrates e Plato como
precursores das idias crists, restabelecendo as ligaes espirituais
entre a Palestina do tempo de Jesus, a Frana e a Grcia antiga. So
essas as trs fontes da Cultura Esprita. A Universidade Esprita do
futuro ter a incumbncia de aprofundar os estudos desse problema de
importncia fundamental para a Era Csmica de que j nos aproximamos.
No plano mstico da Histria Crist, a lenda piedosa da fuga de
Madalena para a Frana, aps a crucificao do Cristo, pode ser
considerada como uma prova potica da ligao dos bardos celtas
(poetassacerdotes) com o surto literrio do Romantismo, exposto no
manifesto de Victor Hugo como produto do impacto do Cristia-
17. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 17
nismo no mundo. No foi -toa que o tmulo de Kardec em Paris foi
esculpido nos moldes de um dlmen drudico, fixando na pedra os
altares rsticos das florestas celtas. O princpio kardeciano da
unidade seqente, que ele expressou da maneira mais simples e
didtica: Tudo se encadeia no Universo, reflete-se na sua vida e na
sua obra. A Grcia, a Palestina e a Frana formam o patamar do novo
mundo que nasce das entranhas minerais do planeta e envolve toda a
Terra na rede sutil e ao mesmo tempo poderosa de uma nova concepo
da vida, do homem e do mundo. Nessa concepo, a dor nos revela a sua
face oculta. A mecnica dos tomos, semelhante mecnica dos astros,
teve a imensa teia de aes e reaes que abrange o finito e o infinito
em suas mltiplas expresses. E nessa teia se insere a fludica das
mnadas, no conceito platnico que Leibniz desenvolveu em nosso
tempo; a mnada platnica a idia, semelhante forma aristotlica que
modela as coisas e os seres. Na sua essncia apenas um ponto
invisvel no espao e sua pequenez escapa s nossas possibilidades de
avaliao matemtica. Na sua mnima estrutura encerra a mxima potncia.
a sntese mxima. Menor que as homeomerias de Empdocles, formas
infinitesimais dos rgos e dos membros das coisas e dos seres, que
se ajustam na formao material desses rgos e membros. o smen
invisvel e impondervel do pensamento de Deus que fecunda a matria.
Henri Bergson viu-as em caudais, na sua genial concepo do lan vital
infiltrando-se na matria para aglutinar os seus elementos no
processo da evoluo criadora. Hegel antecipara essa viso na sua
teoria esttica, descrevendo a epopia do belo em luta com a matria,
desde as formas monstruosas da arte oriental antiga, nos templos
indianos, at o artesanato das criaes estticas da Europa. A Cincia
atual, nas pesquisas sobre os centros padronizadores dos rgos e
membros de corpos animais, especialmente
18. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 18
de ratos, mostraram que as homeomerias no so uma criao imaginria e
ingnua, mas a percepo, antecipada pelos gregos, das formas
padronizadoras existentes nos corpos. Deslocando-se um brao de
frente de um embrio de rato para o lugar de uma perna traseira, e
vice-versa, a perna cresce como brao e o brao como perna. A curiosa
idia das homeomerias aparece ento como uma forma de percepo dos
padres ocultos no corpo. Confirmou-se tambm, com essas pesquisas, a
intuio de Claude Bernard sobre a necessidade de um modelo energtico
para o corpo humano. Nas recentes e famosas pesquisas da
Universidade de Kirov, na URSS rejeitadas pelo Estado Materialista
dogmtico, mas sustentadas pelos cientistas pesquisadores , estes
fizeram a descoberta do corpo-bioplsmico do homem, modelo e
sustentador do corpo fsico, ao qual deram essa denominao por ser
ele o corpo que d vida ao corpo material e constitudo de plasma
fsico. Pesquisadores da Universidade de Prentice Hall, dos Estados
Unidos, confirmaram essa descoberta e a divulgaram em livro editado
pela Universidade. Os mecanismos do sensvel foram assim
descobertos. Trata-se de processos atmicos e subatmicos, nos quais
intervm a antimatria e as mnadas. Estas representam o elemento
espiritual, designadas pelo Professor Rhine, na Parapsicologia,
como extrafsicos. graas a essa conjugao de foras, somente agora
comprovadas pela pesquisa cientfica objetiva, que os mecanismos do
sensvel transformam o reino mineral em vegetal e este em reino
animal, do qual surgiu na Terra o Reino Hominal, configurado na
Espcie Humana. Em todo esse vasto, profundo e multimilenar processo
da evoluo criadora, a dor se manifesta nos atritos, desajustes e
disperses de elementos, despertando a sensibilidade mondica atravs
de estmulos e desenvolvimentos sucessivos. Kardec sustentou essa
teoria, que j confirmara em suas pesquisas da Cincia Esprita, na
segunda metade do Sculo XIX. Lon Denis a sintetizou na sua
conhecida expresso potica: A alma
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dorme na pedra, sonha do vegetal, agita-se no animal e acorda no
homem. Gustave Geley, em seu livro Do Inconsciente ao Consciente,
sustentou a existncia do dinamismo-psquicoinconsciente, como
elemento universal determinante dos processos evolutivos em todos
os reinos da Natureza. Kardec antecipou a teoria da transcendncia
das atuais Filosofias da Existncia, sustentando, com base em suas
pesquisas espritas, que o Reino Hominal evolui para a Angelitude,
no desenvolvimento das potencialidades do homem. A Angelitude a
condio anglica que a Humanidade dever atingir na sua evoluo
terrena, transferindo-se para os Mundos Superiores das constelaes
csmicas. Dessa maneira a dor se apresenta, fora dos limites
estreitos da concepo antropomrfica, como uma decorrncia natural dos
processos evolutivos em todo o Cosmos. uma conseqncia dos esforos
despendidos pelas coisas e os seres, em luta com os obstculos
internos e externos com que todos ns e todas as coisas e seres se
deparam nos caminhos da evoluo universal. Toda estase adquirida
configura uma situao de impasse que ter de ser rompida pelos
mecanismos do sensvel. Sofre a pedra, sofre o vegetal, sofre o
animal e sofre o homem em cada curva implacvel do desenvolvimento
de suas potencialidades. Denis viu isso com clareza ao afirmar que
a dor uma lei de equilbrio e educao, referindo-se especialmente
Humanidade. A essa lei universal nada e ningum pode fugir. O
universo teleolgico, dirige-se, em tudo e em toda parte, a
finalidades definidas. No isso que vemos ao nosso redor, desde que
nascemos at morrermos? Um fato assim to evidente, incessantemente
repetido, j trs em si mesmo o selo natural da sua comprovao, que s
os espritos sistemticos podem pr em dvida. No tocante reencarnao
humana, que apenas um detalhe da lei grega da palingenesia, do
constante e inevitvel renascimento de todas as coisas e todos os
seres, trazemos em nossa
20. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 20
prpria conscincia a certeza secreta de termos de passar por esse
processo. Mas na reencarnao humana o problema da dor se complica
com a presena no homem da conscincia de si mesmo e de seus deveres.
Ao e reao so inevitveis, em todos os planos, mas o homem tem a
vantagem de saber qual o seu destino e como pode e deve empregar o
seu livre-arbtrio para alcanar os objetivos superiores da sua
destinao csmica. Ele o responsvel nico pelas suas opes e os seus
atos, pensamentos, desejos e palavras. O perdo de Deus pode
auxili-lo em suas situaes desesperadas, mas s ele mesmo pode
redimir-se, corrigindo e superando os seus erros. Pesa sobre os
seus ombros a responsabilidade moral que adquiriu na sua evoluo
espiritual. Nenhum sacerdote e nenhuma entidade espiritual pode
livr-lo dos compromissos que assumiu. Deus no o castiga nem o
recompensa. O Tribunal de Deus est instalado em sua conscincia e
ele mesmo se condena e se pune, no uso pleno da sua liberdade. Seus
sofrimentos e angstias nasceram de sua prpria conscincia e s nela
podem apagar-se. Deus lhe conferiu a jurisdio de si mesmo. A dor
que o aflige no castigo de Deus, mas fogueira que ele mesmo acendeu
e pode apagar por si mesmo. Essa solido do homem a sua prpria
grandeza. Ele tem nas suas mos o poder de fazer e desfazer o seu
destino, de se fazer maldito ou se tornar divino.
21. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 21
3. Do Sensvel ao Inteligvel O reino mineral contm, na sua dinmica
secreta, todas as potencialidades da criao. Permanece em xtase
(como adormecido) sujeito apenas movimentao externa que lhe dada
pelo vento, pela chuva, pelos desnveis das camadas de terra
interiores, pelos abalos ssmicos e as erupes da pirosfera nas
exploses vulcnicas. Ante a extenso tranqila e imvel dos areais no
deserto, das montanhas e geleiras impassveis, os homens se julgam
senhores absolutos de um mundo morto. Mas a intuio mondica os
adverte que a vida palpita sob os disfarces da morte. Os panoramas
majestosos da solido externa sugerem-lhe o formigar oculto das
potncias em gestao. Os vendavais, os rios, os temporais e os sismos
lhe mostram que, sob a inrcia aparente das coisas h uma trepidao
secreta. As mnadas modelam em silncio as formas das coisas e dos
seres, as constelaes atmicas atritam-se com as sementes mondicas,
fazendo-as germinar. As potncias adormecidas acordam no ventre das
camadas minerais e determinam a partognese das primeiras floraes
vegetais. Na seqncia dessas atividades secretas os vegetais
despertam as potncias animais e nessas se manifestam os primeiros
sintomas da inteligncia subjacente em cada gro de areia, em cada
folhinha tmida de relva. Assim como no cadver que se retira intacto
de um tmulo em que no se desfez, e ao ser exposto infiltrao do ar
comea a se desfazer em vermes pululantes, a terra morta explode em
movimentao incessante e o mundo fervilha nas manifestaes vitais. A
qumica da vida rompe o silncio mortal e desencadeia a proliferao
dos seres. A dor fulgura pela primeira vez nas fibras
22. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 22
do sensvel, revelando a passagem mgica deste para o inteligvel. O
homem, se j existisse, como o figuramos neste quadro gensico,
poderia ento perceber as primeiras manifestaes da inteligncia
incubada nas estruturas aparentemente mecnicas das coisas e dos
seres. O princpio inteligente se revela no tropismo das razes que
penetram no solo em busca de gua, na corola das flores que se
voltam para a luz do Sol, no instinto dos animais que buscam
alimento e proteo, desenvolvendo as proles e construindo suas tocas
como se obedecessem a esquemas previamente traados. A imagem
ancestral da Terra morta atualmente revista pelos astronautas que
pousam na Lua. Testemunho de Deus, o homem assiste epopia da Gnese
planetria num minsculo recorte do Universo e o faz atravs da
seqncia das geraes terrenas, na magia telrica e espantosa das
reencarnaes progressivas da sua prpria espcie. O que a Gnese Bblica
nos apresenta num esquema fantasioso, A Cincia do homem reconstri
no tempo com seus dados objetivos, colhidos nas entranhas do
planeta. O grande laboratrio guarda os seus registros na prpria
carne da Terra para que o homem possa reconstruir o seu prprio
passado na consulta memria planetria. Desgnio, inteno, atividade
criadora, previso, tudo isso ressalta das investigaes cientficas na
crosta terrena e nos depsitos de fsseis. Atribuir tudo isso ao
acaso seria negar a casualidade como seqncia de ocorrncias sem
sentido. Seria fazer do acaso um ser casualmente inteligente. A
Cincia no se alimenta de acasos, mas de causas. So estas que
importam para a tomada de conscincia do homem diante da realidade
universal. As mistificaes forjadas na Filosofia, na Teologia e na
Cincia, para afastar a presena de uma Inteligncia Suprema na
realidade csmica (ou minimiz-la), so manifestaes evidentes de uma
vaidade de pigmeus africanos escolarizados. O homem ainda
23. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 23
no dispe de possibilidades para uma investigao dessa natureza em
amplitude csmica. As opinies dos sbios, como dizia Kardec, so
vlidas na medida em que se ajustam especialidade do sbio. A verdade
sobre o Cosmos conhecida ainda em termos arrasadoramente
insuficientes para que algum possa negar a evidncia, comprovada at
agora na pesquisa de dados objetivos, de que a estrutura
inteligente do Cosmos s pode ser explicada pela ao de uma
Inteligncia Csmica. Os mecanismos do sensvel e a evoluo do
inteligvel na Terra esto decisivamente comprovados pelas pesquisas
cientficas. Qualquer refutao dessa evidncia s ter valor quando
apoiada em pesquisas da mesma ordem. Fora disso, s temos opinies
pessoais que nada valem no campo cientfico. Na Cincia Esprita a
prova da existncia de Deus dada em termos rigorosamente cientficos,
pelo exame objetivo e lgico da estrutura da realidade csmica. A
concluso lgica de bronze, como assinalou Richet, a quem os mais
significativos fenmenos parciais no conseguiram convencer. O
veredicto final de Kardec foi assim resumido: No h fenmeno
inteligente sem causa inteligente, e a grandeza do fenmeno
corresponde necessariamente grandeza da causa. Podemos acrescentar
que no h grandeza maior, mais evidente e mais comprovada do que a
da Inteligncia Csmica revelada em todos os aspectos conhecidos do
Cosmos. Essa rigorosa posio cientfica s pode ser contestada por
meio de sofismas facilmente elaborados por criaturas opiniticas. A
dor, em seus mltiplos aspectos, fsicos e morais, acha-se entranhada
na realidade csmica como elemento necessrio da evoluo universal,
que decorre dos processos naturais de desenvolvimento das
potencialidades gensicas atravs da passagem da potncia a ato. Todo
ato um parto e todo parto doloroso. S podemos supor um mundo sem
dor imaginando o completo de-
24. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 24
senvolvimento de todas as potencialidades das coisas e dos seres, o
que no passaria de pura especulao imaginativa. Nos mundos em que a
matria densa predomina, como o nosso, o esprito ainda est sujeito s
leis fsicas e viriais, ou seja, biofsicas. Os longos ciclos
evolutivos necessrios ao desenvolvimento das potencialidades
mostram-nos que o processo no imediato ou mgico, mas lento e
gradual, regido ao mesmo tempo pelas leis fsicas, biolgicas e
espirituais. As relaes entre esprito e matria implicam sempre em
contrastes dialticos de ao e reao, de luta e fuso, antes que
atinjam o plano dialtico da fuso harmoniosa, segundo a concepo de
Hammeleim. Nas primeiras fases gensicas o esprito (no caso
designado apenas como princpio inteligente) atrai a matria
dispersa, como o m atrai a limalha, e aglutina a matria aos
esquemas formais do projeto divino. Incorporada a matria ao
esprito, a fuso se realiza objetivando a sntese. Mas esta vai ser o
resultado de um duplo e recproco apresamento: o da matria pelo
esprito e o do esprito pela matria. A dor reponta naturalmente
desse embate de potncias adversas. Por isso Kardec definiu a matria
como o lao que prende o esprito. Essa priso recproca do esprito
matria e da matria ao esprito prolongase no tempo e no espao, na
durao necessria para que as potencialidades do esprito se
desenvolvam. Todos sabemos, por experincia prpria, como os desejos
imediatistas da matria se opem aos anseios de transcendncia do
esprito e vice-versa. Por isso Unamuno considerou o homem como um
drama e os existencialistas atuais reconheceram, inclusive Sartre,
que o objetivo do homem a transcendncia. Do materialismo filosfico
passamos, em plena era pragmatista e materialista, concepo do homem
como esprito, o que foi uma vitria inegvel e irredutvel de Kardec.
O princpio do inteligvel em Plato no se refere apenas inteligncia
dos seres, mas tambm inteligibilidade de todas as coisas.
Praticamente, o inteligvel a chave da compreenso geral
25. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 25
do mundo, sem a qual a porta do saber no se abriria para a
Humanidade. Passar do sensvel ao inteligvel equivale a uma escalada
espiritual que leva os seres do plano da simples percepo das coisas
ao plano complexo da compreenso de toda a realidade. Na Cincia
Esprita esse princpio platnico aparece como aplicao do mtodo
racional explicao da realidade. Na Filosofia Esprita ele a Razo de
Deus ordenando o mundo, justificando o homem e ajustando o
pensamento humano ao real. Na Religio Esprita ele o sustentculo
nico da f, pois s a f racional, como sustenta Kardec, pode
enfrentar a razo face a face, de igual para igual, em todas as
fases da evoluo humana. A f dogmtica, cega e irracional, que se
apia em opinies tiradas de velhas tradies mitolgicas e folclricas,
murcha nos caminhos da evoluo na medida em que a Razo do Mundo vai
se revelando inteligncia humana. O emurchecer da f dogmtica amargo
e trgico, mergulhando as religies formalistas e dogmticas no charco
dos interesses materiais, fato que hoje estamos presenciando em
todo o mundo. So dolorosas as manobras feitas pelo dogmatismo
opressor para sustentar-se em p ou de ccoras na corrente evolutiva.
Ao contrrio disso, a f racional ou raciocinada acompanha e no raro
antecipa as posies novas do pensamento na busca da verdade legtima
e natural. O homem trs em si mesmo, na sua conscincia e na sua
afetividade, o impulso fidesta. Descartes, na sua busca
introspectiva da realidade, mergulhando no cogito, em profunda
cogitao filosfica, descobriu a idia de um ser supremo e perfeito em
si mesmo e declarou que a idia de Deus est no homem como a marca do
obreiro em sua obra. Kant observou que essa idia o mais elevado
conceito formulado pela mente humana, pois encerra em si mesma a
sntese da realidade universal. Kardec, em suas pesquisas
psicolgicas sobre a questo, concluiu que o homem trs em si a lei de
adorao, que se comprova no plano histrico pelas manifestaes
universais, de todos os povos e de
26. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 26
todas as fases da evoluo humana. A exigncia constante dos ritos de
adorao em todas as condies existenciais do homem revela a natureza
ntica dessa lei e todas as condies do homem provam que ela tem sua
fonte no prprio onto, ou seja, no prprio ser da criatura humana.
Disso resulta que o homem um ser religioso. Mas a religio, para
Kardec, embora se manifeste historicamente em processos rituais, no
se prende a essas formas de simples exteriorizao, definindo-se, na
sua expresso mais legtima, como adorao ntima e consciencial.
Corroborando isso, Bergson uniu a religio moral, considerando que a
verdadeira religio individual e absorvente, no se conformando com
as religies formais e coletivas. Pestalozzi, que foi mestre de
Kardec, j havia afirmado, antes da tese bergsoniana, que a
verdadeira religio a Moralidade. A dor marca a religio em todos os
seus aspectos, revelando que a sua origem est no impulso de
transcendncia do homem. Dessa maneira, o conceito antropomrfico da
dor, como castigo de Deus, resultante do pecado, seja como problema
de conscincia ou como resultante crmica, proveniente de aes
malficas em vidas anteriores ou remorsos decorrentes dessas aes na
vida presente, no passa de um resduo do antropomorfismo que
assinala as fases iniciais do desenvolvimento humano. A palavra
karma indiana e provm do snscrito, mas vulgarizou-se na cultura
esprita pelo fato de reduzir a expresso esprita efeitos da lei de
ao e reao numa s palavra. A tendncia ao antropomorfismo, natural no
homem, contribuiu poderosamente para integr-la na linguagem
esprita, sem nenhum prejuzo doutrinrio quanto sua significao. A
Doutrina Esprita tem a sua terminologia prpria, especfica, que no
pode ser alterada ou atualizada, como pretendem alguns
novidadeiros. Mas isso no impede que um termo ou outro, absorvido
naturalmente pelo meio esprita, a ponto de se tornar usual, seja
aceito pelos estudiosos. Alguns jovens afoitos e alguns velhotes
novidadeiros querem transformar
27. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 27
a terminologia esprita num saco de gatos, sem o menor respeito
tradio e estrutura da doutrina. Na lingstica em geral a lei de
absoro de termos enxertados permite esses enxertos quando eles
podem facilitar o trnsito das lnguas, sem prejuzo das estruturas
lingsticas em questo. Em geral, a prpria linguagem afetada por
esses atentados terminolgicos rejeita os termos imprprios,
devolvendo-os praia, como faz o mar com os detritos lanados nas
suas guas. As estruturas lingsticas, como todas as demais,
defendem-se das intromisses de terminologia estranha. O caso da
palavra karma um dos poucos que foram pacificamente aceitos em todo
o mundo, e essa aceitao universal a nica forma de legitimao do novo
termo na antiga terminologia. Isso ocorre quando as leis de euforia
e de afinidade conceptual no repudiam o termo e no uma pessoa, nem
um grupo de novidadeiros ou uma instituio doutrinria que decide
sobre a aceitao. Por influncia do antropomorfismo desenvolveu-se no
meio doutrinrio esprita a idia restritiva de que todo aleijo ou
situao anmala de natureza crmica. No obstante, o prprio Kardec
adverte que muitos desses transtornos ocorrem por causa das
imperfeies da matria densa, de que se constitui o nosso mundo. Foi
o que Hegel postulou em sua teoria da evoluo esttica e Bergson
reconheceu na sua teoria do lan vital. A restrio antropomrfica do
karma desfigurou a aplicao indiscriminadamente aos casos de
acidentes reencarnatrios. Uma criana nasce com deficincia numa
perna ou num brao e logo um sabereta esprita promove a suposta
devassa do seu passado, acusando-a de crimes inverificveis.
Precisamos compreender que o esprito reencarnante tem o seu passado
e trs o seu karma, mas tambm enfrenta uma nova experincia em que
est sujeito a acidentes vrios na fecundao e na gestao, no parto,
nos problemas da hereditariedade biolgica e assim por diante. Assim
como temos em nosso destino a programao e o livre-arbtrio, temos
tambm na experincia da reencarnao o karma e a margem naturalmente
livre da
28. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 28
nova experincia natalina. verdade que a programao crmica leva em
conta os acidentes provveis, mas a margem de liberdade indispensvel
na experincia reencarnatria, e que acima dos objetivos de resgate
existe o interesse bsico de aprendizado e desenvolvimento das
potencialidades. A teoria fatalista de Espinosa, em sua formulao
matemtica irredutvel, no corresponde Doutrina Esprita de
causa-efeito, precisamente por nos mostrar o mundo asfixiado numa
estrutura sem liberdade e, portanto, sem opes, sem margem para a
experincia do esprito. Todas as possibilidades experienciais do
homem estariam sumariamente excludas do processo da vida, ante esse
despotismo divino, que na verdade no seria divino, mas satnico. Por
outro lado, as funes essenciais do inteligvel estariam obstrudas,
condenandose o esprito a uma vida terrena de trabalhos forados, sem
a mnima possibilidade de opo. A prpria interveno de Deus e a
atividade dos espritos protetores estariam fatalmente barradas
diante dessa programao de computador eletrnico. foroso
considerar-se tambm a impiedade e at mesmo a imoralidade da
permanente exibio dos crimes do passado nos aleijes da atual
existncia. Entre os gregos houve correntes filosficas que
anteciparam o fatalismo espinosiano de maneira ridcula,
admitindo-se, na teoria do eterno retorno, que na reencarnao os
homens voltavam s aldeias e casas estritamente semelhantes s do
passado, com todas as suas delcias. Ao invs do progresso, da evoluo
das coisas e dos seres, teramos apenas a repetio intil e permanente
das situaes e condies anteriores. Scrates mostrou a insanidade
dessas teorias de razes mitolgicas e antecipou a teoria livre da
reencarnao esprita. Existem, naturalmente, os crculos viciosos das
reencarnaes repetitivas, a que se apegam espritos irresponsveis e
indolentes, mas a esses que Lzaro se refere, numa de suas mensagens
includas em O Evangelho Segundo o Espiritis-
29. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 29
mo, advertindo que os guias da humanidade em marcha faro esses
indolentes avanar, com a dupla ao do freio e da espora, que
corresponde ao da conscincia e da dor sobre esses retardatrios. De
que serviriam os protetores e a ao benfica das provaes dolorosas,
se a programao dos destinos fosse absoluta e, portanto, esmagadora?
Kardec lembra que nenhum esprito se reencarna para repetir o
passado criminoso, pois nenhum processo reencarnatrio tem por
finalidade o mal, mas apenas o bem. Os que fracassam na reencarnao,
retornando s prticas anteriores, so nufragos e no predestinados.
Cada reencarnao implica uma misso e no existem misses criminosas.
tempo de reexaminarmos essas questes, evitando as perguntas frvolas
que muitas vezes se nos deparam no meio esprita, como esta: Por que
sofrem os animais? Sofrem porque evoluem e porque toda evoluo,
consciente ou inconsciente, sempre acompanhada das dores do parto
que anunciam as transies evolutivas para planos superiores. Nada se
faz sem esforo e, portanto, sem dor. Ningum supera a gravitao sem
esforo e dor. necessrio o explodir dos foguetes espaciais para que
o homem sinta a presso atmosfrica e a gravitao terrena para se
lanar no espao sideral. O homem no mais do que um dos elementos
ativos da natureza, como os vegetais e os animais. Cabe-lhe, em
conjugao com os demais elementos, trabalhar a terra, modific-la,
preparla para o futuro, sacrificando-se ao lado dos seres
massacrados por ele em suas experincias evolutivas. Tendo atingido
o desenvolvimento mental necessrio para lhe dar supremacia sobre os
demais, no se conformou com a sua condio animal e atingiu a duras
penas a condio superior do subumano, de que ainda hoje no conseguiu
libertar-se. Proclamou-se filho nico de Deus, com direitos de
herdeiro exclusivo sobre toda a criao, e no se sujei-
30. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 30
tou s exigncias da humildade e da simplicidade para prosseguir na
escalada, j ento de ordem moral e no fsica. O mito grego de
Prometeu, que roubou o fogo do cu, d-nos a medida do atrevimento
humano. A inconformao com a dor e a morte simbolizada no mito pelo
roubo do fogo divino e a condenao de Prometeu, entregue aos abutres
do Cucaso, simboliza a condenao da espcie humana s condies
perecveis das espcies animais. A imolao voluntria do Cristo, para
salvar a Humanidade do seu orgulho estpido e orient-la nos caminhos
mais suaves da humildade e do sacrifcio, foi o socorro da
Humanidade Crstica, dos mundos superiores do Cosmos, tentando
despertar o homem terreno para o seu engano desastroso. Se o
exemplo do Cristo e os seus ensinos tivessem sido aceitos no
estaramos mais num mundo de provas e expiaes, mas teramos o Reino
de Deus implantado e florescente na Terra. No plano moral que o
homem atingiu, dotado das luzes da conscincia, bastaria a sua
aceitao da humildade para que o desenvolvimento de suas
potencialidades divinas se acelerasse. Infelizmente, empolgados
pelo orgulho e a arrogncia, continuamos a considerar-nos como os
privilegiados de Deus e nos embriagamos com o vinho dos tonis
inteis de Ssifo, que rodamos sem cessar at o cume da montanha e o
deixamos rodar encosta abaixo sem nenhum proveito. Nosso orgulho no
nos permite aceitar a condio humana, que nos sujeita s doenas, dor
e morte. Camos na contradio de sonhar com a eternidade da vida
carnal, esquecidos de que a carne um simples agregado atmico
sujeito dissoluo temporal. Aniquilamos o prprio planeta em que
vivemos e ateamos fogo a ns mesmos, tentando superar a morte com
alucingenos que a abreviam e com o ridculo expediente dos cadveres
congelados. Tamanho foi o nosso orgulho, que acabamos nos
frigorficos como animais de corte.
31. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 31
4. O Mundo sem Dor Toda a nfase deste captulo podia ser
representada por uma pgina em branco. A evoluo da dor equivaleria
instalao universal do nada, esse conceito vazio, segundo Kant, esse
zero absoluto da anti-realidade, essa negao da negao, em termos
dialticos; seria o princpio de tudo o que no nem pode ser.
Pitgoras, para figurar a solido de Deus antes da Criao, recorreu
idia do Uno, o nmero 1, sem procedncia nem conseqncia, imvel no
Inefvel. Sartre, em nosso tempo doloroso, para devolver o homem ao
nada de que teria sado, teve de recorrer contradio de uma frmula
dialtica que levaria o pensamento frustrao total de si mesmo. No h
sada para a idia do nada, seno no solipsismo da volta ao nada, que
nada nem pode ser. A imaginao pitagrica teve pelo menos a coerncia
de recorrer ao acaso, admitindo um estremecimento do 1 no inefvel,
que multiplicaria a unidade, desencadeando a Dcada, o nmero 10 que
deu nascimento ao Todo. Filsofos e telogos cristos vangloriam-se at
hoje da originalidade da Bblia, que fez Deus tirar o mundo do nada,
tirar o real do irreal. Mas a Bblia um livro judeu e no cristo.
Configura-se nessa vanglria a glria v de um roubo do nada. Na
verdade, o nada s pode existir em termos de relatividade, o que,
subordinando-o ao todo, anula toda a sua pretenso existencial. Para
o nada existir seria necessria a existncia dos elementos formais do
nada, que no seriam nada, mas alguma coisa. Tudo isso pode parecer
uma cogitao vazia, mas no , pois se processa nos quadros histricos
do pensamento antigo e mo-
32. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 32
derno, levando-nos a uma concluso mentalmente objetiva: o nada uma
impossibilidade do pensamento. Como a dor um elemento do sensvel,
chegamos a outra concluso inevitvel: o mundo sem dor uma abstrao
gratuita que s existiria no imaginrio absoluto e inconseqente, pois
a excluso da dor implicaria necessariamente a inexistncia de
qualquer atividade. Seria o mundo da morte absoluta, sem a esperana
da ressurreio, que acarretaria a dor absoluta. Nesse solipsismo do
absurdo chegamos a outra impossibilidade do pensamento: a da
definio absoluta de Deus. Nada mais podemos fazer do que aceitar a
sua realidade como ela se apresenta na introjeo imemorial da nossa
conscincia profunda, em que Descartes a encontrou na sua cogitao
assombrosa, ou neg-la, negando ao mesmo tempo toda a realidade.
Essa exigncia da negao total decorre das condies epistemolgicas da
nossa cultura, que no permite mais a fragmentao do saber, com as
posies ilhadas de campos gnosiolgicos ilhados e enfeudados em
provncias esprias do Conhecimento. Hoje o Conhecimento um s, o
macio do Saber, no admitindo uma Cincia dos homens mais do que
homens e outra dos homens simplesmente homens da diviso estratgica
de Descartes. A unificao do Ser produziu, ao mesmo tempo, a
fragmentao profissional das especialidades, no plano da prtica
cientfica, e massividade da generalizao globalizante. Ou admitimos
a existncia de Deus como Conscincia Csmica abrangente ou a
rejeitamos como impossibilidade lgica (na Lgica Antiga e na Lgica
Moderna), de maneira que os capatazes de Deus foram banidos de seus
cargos e expulsos do processo cultural. Foi o que Dilthey colocou
de maneira precisa em seu ensaio sobre A Tragdia da Cultura, em que
o aumento de conhecimentos supera a capacidade individual da mente
humana. A Filosofia das Cincias abrangeu numa viso gestltica,
globalizante, os setores dispersos da investigao. A crena foi
afastada
33. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 33
como posio ingnua do passado e a f tornou-se conhecimento
comprovado. Kardec postulou a prevalncia da f como certeza
decorrente da experincia e da prova. Foi ainda mais longe,
mostrando que a Revelao, instrumento divino do Saber, ao mesmo
tempo humana e divina, pois os cientistas revelam com mais segurana
que os profetas. Denis Bradley, ante as experincias medinicas de
que participou nos Estados Unidos, proclamou: Eu no creio, eu sei!
John Laurence, biofsico da NASA, declarou num simpsio em So Paulo:
O ncleo do tomo no tem massa e rege a constelao atmica. Tentamos
agora descobrir o ncleo do homem. Essa viso cientfica e geral da
realidade no permite mais a antinomia crena e saber, que propiciou
no passado sombrio o poder eclesistico sem limites do fanatismo
religioso. No h mais lugar para fanatismos de qualquer espcie no
mundo atual, iluminado pelas esperanas da Era Csmica. Os fanticos
ideolgicos so os ltimos abencerrages do nosso sculo, condenados de
maneira inapelvel extino total. Os espritas, primeiros chamados
para a compreenso da Cincia Integral e que na sua maioria
refugiaram-se num beatismo de sacristia , esto intimados a alijar
dos ombros as cargas do misticismo igrejeiro para poderem assumir a
herana do sculo. O conhecimento epidrmico da doutrina que herdaram
os transformaram em adversrios de si mesmos. S lhes resta um
caminho a seguir: o rompimento com os compromissos sectrios das
religies formalistas em que foram criados e alimentados, pelo
aprofundamento corajoso no estudo dos seus princpios doutrinrios. A
deformao sistemtica do homem, no mundo inteiro, pelos telogos e
clrigos, na explorao do medo morte, no terror do sagrado e no
comrcio deslavado da simonia, transformou os homens em criaturas
servis, hipcritas e levianas, incapazes de encarar com seriedade e
coragem os problemas espirituais. A raa de vboras que o Cristo
enfrentou e denunciou em Jerusalm espalhou-se por toda a
34. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 34
Terra, contagiando a Humanidade. O meio esprita no podia escapar a
esse contgio. A mais vigorosa e libertria doutrina j surgida no
mundo converteu-se, nas mos de multides ignorantes e obtusas, em
novo muro de lamentaes. Os beatos das religies dogmticas trocaram
de pele mas no perderam suas manhas. Substituram os ritos catlicos
pelos passes e preces, a gua benta pela gua fludica e os rosrios de
repeties medrosas pelos colares de contas de If, na magia primitiva
das religies mgicas da selva, negras e indgenas. A marafa ou cachaa
de lcool de cana, principalmente na Amrica, substituiu nos batuques
da macumba os vinhos sacramentais de uva. No pandemnio das
supersties os deuses africanos e americanos demonstraram aos
ingnuos que a sabedoria divina no est nos livros, mas na boca dos
exus, no batuque dos tambores e nas defumaes de charutos e ervas
milagrosas. A miscigenao religiosa (na verdade mgica e selvagem)
gerou ento as religies mestias de que tratou Euclides da Cunha,
sucedneos mais fceis dos complicados sacramentos dos padres
paramentados. A linguagem e os ritos da selva substituram os
instrumentos sagrados de ouro e prata e o latim incompreensvel. As
prticas da Gocia arcaica, ou magia negra, os batismos de sangue
animal em cabeas raspadas e humilhadas derrotaram os ritos
batismais de gua. Era inevitvel o abandono do livro, do estudo, da
reflexo sobre problemas superiores, nesse meio bastardo em que o
analfabetismo e a ignorncia eram regra e praxe de virtudes
salvadoras. No meio esprita a infiltrao das prticas selvagens,
graas ao analfabetismo geral e a repulsa das criaturas simples aos
problemas culturais, conseguiu infiltrar-se. A confuso comodista
entre simplicidade e estupidez levou muitos espritas simplrios a
deixar a doutrina de lado como intil inveno de gente letrada e
vaidosa. Nos meios culturais o reflexo dessa situao desastrosa
levou comodistas altamente considerados a moverem campanhas
difamatrias contra a doutrina e seus adeptos, em nome de um
35. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 35
Cristianismo desfigurado e de uma cultura cientfica mentirosa. A
obra de Kardec ficou confinada a poucas pessoas de bom-senso e
livres de preconceitos. Era mais uma curiosidade do sculo XIX do
que uma formulao doutrinria superior. Como se isso no bastasse,
criaturas de pretensa sapincia, consideradas semi-sbias por seus
ttulos acadmicos, num meio em que a cultura era luxo e no dever,
aceitaram mistificaes ridculas como a de Roustaing como complemento
necessrio da obra kardeciana, mais voltada para a Cincia dos homens
do que para a Cincia divina. Como pode manter-se, at hoje, em
instituio respeitvel por seu passado essa mixrdia indigna? Toda uma
mitologia do absurdo se mistura s realidades claras da doutrina
kardeciana, a comear pelo nascimento mitolgico de Jesus, gerado
numa falsa gravidez de tipo histrico na reformulao dos evangelhos
por entidades visivelmente trapaceiras com a finalidade nica de
ridicularizar a doutrina racional e cientfica do Espiritismo.
Entretanto, na mesma hora que isso acontece, as Cincias confirmam
em suas pesquisas, sem o saber e sem o querer, os princpios da
doutrina ultrajada e rejeitada. No precisaramos de mais evidente
prova da impossibilidade de um mundo sem dor. O ensino e abnegao de
Jesus transforma-se historicamente em motivos de lutas sangrentas
por dois milnios. A obra modelar de Kardec modelo de racionalidade,
fundada em pesquisas cientficas da fenomenologia paranormal, modelo
de critrio cientfico, modelo de abertura para novas perspectivas no
campo do Conhecimento, modelo de respeito s leis naturais, modelo
de correo justa e pacfica dos erros clamorosos do passado, modelo
cartesiano da busca da verdade sem precipitao e sem preconceitos,
foi simplesmente rejeitada como anticientfica e supersticiosa por
abrir s Cincias novos caminhos de busca no sensvel e no inteligvel.
No faltava, sequer, ao mestre sacrificado, as credenciais da
cultura universitria, como peda-
36. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 36
gogo, continuador da obra de Pestalozzi, mdico e professor de
Cincias Mdicas, diretor de estudos da Universidade de Paris, com
suas obras aprovadas e adotadas pela Universidade. O que houve de
dor nesse episdio histrico moderno foi suficiente para provar que
estamos ainda muito longe de podermos sonhar com um mundo de paz
eterna, como queria Kant. Sofreu Kardec, sofreu sua esposa Amlie
Boudet, sofreram os companheiros e colaboradores do mestre. Porque
toda luta pela evoluo, nos mundos inferiores, sempre marcada pela
dor em todos os seus aspectos. Mas agora, que at mesmo na rea
materialista ideolgica da Terra, a obra de Kardec se impe por sua
inegvel legitimidade, necessrio que os espritas enfrentem a grande
tarefa de estud-la, pesquis-la e elev-la ao plano que lhe cabe na
atualidade. Estudar Kardec, pondo de lado todas as tentativas de
desfigurao da mesma que foram semeadas no meio doutrinrio por seus
pretensos superadores, j uma contribuio, por modesta que seja, ao
reconhecimento da abnegao do mestre. E mais do que isso, o estudo
srio, consciencioso e respeitoso dessa obra monumental um dever de
todos os que a seguem como filosofia de vida, mesmo que tropeando
nas pedras do caminho. Essa obra representa um momento culminante
do desenvolvimento cultural da Terra. E a Terra necessita dela,
hoje mais do que nunca. Se o movimento esprita no revelar condies
para compreender a herana kardeciana, estaremos falidos perante ns
mesmos.
37. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 37
5. A Lagosta de Sartre A morte nos espera na sala de partos, quando
no se precipita a ir buscar-nos no ventre. Costuma-se dizer que
comeamos a morrer ao nascer e essa uma verdade biolgica. Mas,
apesar dessa naturalidade milenria da morte, no nos acostumamos com
ela, por uma razo muito simples, que o gosto pela vida. Entretanto,
quando a vida se prolonga demais, perde pouco a pouco o seu gosto.
O envelhecimento uma forma de expulso. A velhice no uma ceifadora
esqueltica, mas uma bruxa que nos enxota da vida com sua vassoura
voadora. A situao do velho atirado como que num depsito de
automveis gastos e enferrujados a de um pingim na Praia Grande: a
temperatura o castiga, as juntas lhe dem, a saudade o oprime, a gua
do mar parece gua choca de lagoa tropical, ele quer arrancar-se
dali e gritar que est vivo, mas falecem-lhe as energias e a
disposio. Ele se acaba, mas ainda no se acabou e a chamazinha tnue
da esperana, a ltima a apagar-se, bruxoleia irnica em seu corao de
casa assombrada. E ainda surgem os poetas gozadores que, como
Bilac, dizem coisas assim: Envelheamos rindo, como as rvores fortes
envelhecem, agasalhando os pssaros nos ramos, dando sombra e
consolo aos que padecem. demais! Eles no tm mais ramos, nem fora,
nem capacidade para rir ou sorrir, sua sombra esqueltica e seu
consolo mal d para o consumo prprio. Contam que Victor Hugo
envelheceu trotando na sala com os netos nas costas, que o faziam
feliz. Conta Simone de Beauvoir, nas suas memrias da maturidade,
que Jean Paul Sartre, ao sentir que envelhecia, preferiu
enlouquecer e comeou a ser perseguido por enorme lagosta que o
38. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 38
acompanhava por toda parte, amedrontando-o. Ele, que no gostava dos
psicanalistas, pois um deles j o havia convencido de que era uma
personalidade mutilada, pois no possua o superego, preferiu assim
mesmo um tratamento analtico. Simone arranjoulhe uma jovem
enfermeira e esta se engraou com o doente e o doente com ela. Isso
provava que a velhice no estava to prxima; restavam foras ao
filsofo para conquistas amorosas. Mulher decidida e prtica, apesar
de filsofa, Simone mandou a enfermeira embora, espantou a lagosta e
tomou conta do companheiro antes que fosse tarde. Sartre continuou
a envelhecer, gastou suas ltimas energias na sua volumosa obra
Crtica da Razo Dialtica e acabou perdendo o seu nico olho, pois foi
picego desde criana e sempre viu o mundo enviesado, com um olho s.
A velhice o abateu e ele hoje confessa que no vai bem das pernas,
como nunca foi da bola. Esse novssimo episdio da Histria da
Filosofia mostra-nos que o gosto pela vida de uma resistncia a toda
prova. Mas h outros fatos que provam o contrrio. Por exemplo: o
filsofo argentino Jos Ingenieros temia mais a velhice do que a
morte e dizia no querer passar dos quarenta anos. Como passou,
suicidou-se. Mas claro que a preferncia pela morte foi forada e no
voluntria. O certo, o normal, o velho apagar-se naturalmente como
lamparina que esgotou o azeite. Os que se preveniram no suicdio ou
na loucura ainda conservavam mais mocidade do que podiam supor.
Estas parbolas servem para mostrar que, embora nos acompanhando
desde o nascimento, a morte uma companheira indesejvel. Heidegger
lembra que at na linguagem comum usamos o reflexivo se para
afugentar a morte, como na expresso: Morrese, onde o se transfere a
morte para os outros. Morremos, mas sempre a contragosto. Mas
quando nos convencemos realmente de que a morte apenas uma mudana,
como dizia Victor Hugo
39. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 39
depois de suas experincias espritas com Madame de Girardin,
recebemos a morte com alegria, pois ela nos tira o fardo das costas
e nos leva ao encontro dos amigos e seres queridos que foram antes
de ns para o outro mundo. Talvez tenha sido por essa certeza que
Hugo se divertia com os netos enquanto a esperava. Os romanos,
particularmente na Repblica, gostavam de exaltar a velhice. A
senectude j naquele tempo dava os frutos geralmente balofos ou
amargos das subgeraes de senadores. Ccero insistia na importncia da
maturidade que dava repouso alma, amortecendo as inquietaes da
carne. Casos como o de Marco Antnio e Clepatra ilustravam bem o
perigo das fases hericas da juventude. Com essa teoria conseguiram
envelhecer Roma, que se afundou na perverso da velhice impotente,
mas ainda de fogo aceso, em homenagem aos deuses. Passaram, com o
tempo, a confiar mais nos gansos do Capitlio do que em suas legies
aguerridas e acabaram massacrados pelos brbaros. No podemos
enfeitar a velhice com sugestes ilusrias. Ela simplesmente o
processo natural de desgaste das coisas materiais no decorrer do
tempo. Por isso diz o vagabundo de Knut Amsun: A velhice no nos d
experincias nem sabedoria, mas cabelos grisalhos e rugas. E
acrescenta, lembrando a empfia e as tolices dos sbios em todo o
mundo: Deus me livre de ser um sbio. Sartre no sbio, mas filsofo,
ou seja, amante da Sabedoria. Na posio de amante dessa divindade
etrea, sempre se manteve em guarda contra o carrancismo dos homens
casados com divindades de carne e osso, geralmente demasiado
exigentes. Aceitou que Juliette Grecco se fizesse Musa do
Existencialismo no Caf de Fiore, onde gostava de escrever.
Considerou a seriedade como falsa categoria filosfica e, mesmo
agora, depois dos sessenta anos e cego, declara s revistas
parisienses que no gosta de conversar com pessoas de mais de 30
anos de idade. Era natural que arranjasse, ao sentir que
envelhecia, uma companheira sem compromissos para o acompanhar na
velhice. A enorme lagosta
40. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 40
promissos para o acompanhar na velhice. A enorme lagosta que o
seguia pelas ruas de Paris era um fantasma desinibido, explorado e
devorado impiedosamente pelos franceses, que na loucura por
lagostas chegaram quase a provocar uma guerra de lagostas com o
Brasil. Isso mostra que Sartre, inimigo de mitos e mitlogos, fugia
com sua lagosta das terrveis homenagens que os becios costumam
prestar aos sbios que envelhecem glorificadores de si mesmos s
custas da glria alheia. Nenhum desses aproveitadores se sentiria
bem numa solenidade acadmica em que a enorme lagosta aparecesse nas
costas do filsofo, como o bacalhau nas costas do antigo
propagandista de Emulso de Scott. Talvez a nica vantagem da velhice
seja o aguamento da crtica e da irreverncia nos velhos
inteligentes, que afiaram no correr dos anos a sua lmina de ironia.
O sorriso irnico de Voltaire contribuiu mais para a libertao dos
homens das garras da moral burguesa do que o sorriso suspeito e
enganador da Mona Lisa. Os burgueses no se livraram at hoje da
subservincia dos burgos medievais. A ironia brota da inteligncia, e
quando trs ainda o cheiro da terra no corta ao lu, mas poda. Podar
a burguesia da sua ramagem de subservincia semear no solo as
sementes de um novo mundo, livre de milionrios e mendigos. Ele
viveu com um p na cova e o outro na plataforma de foguetes do Cabo
Canaveral. Todos envelhecemos, mas Voltaire soube transformar o seu
desgaste orgnico em refinamento do esprito afiando-o como lmina de
navalha. Os clrigos o amaldioaram por toda parte e o consideraram
morto e enterrado, mas Kardec provou a sua sobrevivncia em suas
pesquisas medinicas da Passage SaintAnne, em Paris. S h uma maneira
de fugirmos ao envelhecimento, que preservando a nossa liberdade
espiritual, pois o esprito no envelhece. Os que se fazem
independentes em meio servido geral
41. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 41
podem sorrir como Voltaire da arrogncia dos estpidos, covardes e
venais, que esmagam os indefesos com os recursos de suas castas
exploradoras, em nome de Deus e das instituies criadas pelos
egostas. O sorriso de Voltaire salvou o soneto de Bilac, pois se
pudermos envelhecer como ele, usando o sorriso irnico ante a
farndola dos falsificadores da espcie humana, ajudaremos o mundo a
se livrar das aves de rapina. A lagosta de Sartre foi uma encenao
inconsciente com esse mesmo sentido. O envelhecimento orgnico est
tambm sujeito ao do psiquismo. A vontade de cada um pode acelerar
ou retardar os processos do desgaste orgnico. Simone mesmo, apesar
de sua posio agnstica, reconhece que no podemos chamar a Humanidade
de espcie humana, porque ela supera as condies da animalidade em
suas transformaes incessantes para um vir-a-ser imprevisvel. As
reaes psicolgicas provocadas pelo envelhecimento so as mais
variadas. Nas pessoas que temem a morte os sintomas da velhice
geralmente provocam pnico e sensao de marginalizao. H os que se
revoltam e procuram todos os disfarces possveis para manterem
aparncia juvenil. Os que encaram com realismo o problema procuram
apenas os recursos da gerontologia, tentando apenas evitar o
aceleramento do processo. E h os que, maneira dos antigos romanos,
entregam-se ao prazer de uma vida crepuscular, mais contemplativa
do que ativa, gozando a perigosa placidez da aposentadoria real ou
emocional. O temperamento de Sartre no se adapta a essas formas de
acomodao. De certa maneira ele se compensou com a evocao da lagosta
gigante, que lhe dava a sensao do perigo, beira da loucura, que lhe
garantia, ao mesmo tempo, a sensao juvenil de pendurar-se na boca
de um abismo e a possibilidade de sentir-se gal ao lado da
enfermeira. Simone confessa que se ralou de cimes, o que deve ter
reforado a permanncia psicolgica da lagosta.
42. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 42
O caso mais curioso de entrega ativa velhice ocorreu com o famoso
escritor colombiano Vargas Villa, que passou a maior parte de sua
vida na Europa, considerando-se intelectualmente francs e
emocionalmente italiano. No prefcio de sua novela bis, sucesso
rococ entre os anos 20 e 30 em todo o mundo, encarava a velhice
como a fase fantstica da vida, que lhe tirava as possibilidades do
real mas o compensava com a possibilidade de evocar suas antigas
lutas e paixes num clima de paz e encantamento. Figurava-se dotado
de umas asas tnues e leves que lhe permitiam voar ao crepsculo
sobre os campos de seus antigos combates, cheios dos destroos de
suas vitrias passadas. Nem tudo dor nas dores do mundo. A imaginao
humana capaz de doirar com reflexos de um sol interior as paisagens
cinzentas. Vargas Villa se dizia capaz de evocar suas antigas
emoes, fazendo-as ressuscitar do estado catalptico que haviam cado,
com a vantagem de no se apresentarem com as trepidaes inquietantes
do passado. Muitos jovens sonharam, ao l-lo, com as delcias do
envelhecimento, mas poucos conseguiram passar pelos arcos de
triunfo dessa viso legendria.
43. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 43
6. Os Caminhos Incertos da Experincia Os adultos e os velhos se
apegam experincia da vida como seu galardo e prova indiscutvel de
sabedoria e autoridade. Mas as novas geraes se revoltam, de uma
forma ou de outra, contra essa pretenso das geraes envelhecidas. O
conflito de geraes no decorre simplesmente das diferenas etrias,
dos desnveis da idade. O processo da experincia constitui-se de
dois elementos fundamentais: a conquista progressiva do mundo dos
adultos pelos jovens, que comeam pelo instinto de imitao que
caracteriza as fases infantis e molda os jovens pelo comportamento,
o vesturio e as regras sociais e morais dos avs e dos pais. Por
isso, na educao antiga as crianas e os adolescentes eram
considerados como adultos em miniatura. A revoluo pedaggica de
Rousseau produziu o primeiro impacto nessa sistemtica, abrindo as
perspectivas da educao moderna, fundada na Psicologia da Infncia e
da Adolescncia e na orientao tica das novas geraes. Os mtodos de
amoldagem foram pouco a pouco cedendo lugar aos processos de
desenvolvimento das potencialidades. Pestalozzi, mais educador do
que pedagogo, o que vale dizer mais prtico do que terico, deu aos
fins da educao um sentido universalista, segundo o qual o educando
no devia amoldar-se ao passado, mas lanar-se ao futuro. Kant
reconheceu que a educao tinha por objetivo real, no a acomodao, mas
o deslocamento do ser no espao e no tempo, em busca da perfeio.
Voltava ao princpio socrtico do desenvolvimento das potencialidades
ocultas no educando. Cada ser trazia em si a sua prpria sabedoria,
cabendo ao educador proceder no educando o parto do esprito, com a
revelao das suas potencialidades. A educao se trans-
44. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 44
formava, assim, no processo de desenvolvimento no educando de toda
a sua perfectibilidade possvel, ou seja, de toda a perfeio que o
ser pode atingir. Essa a educao universal da Humanidade, que no se
confunde com a adaptao do ser aos usos e costumes, crenas e
vivncias de uma determinada sociedade. Ao examinar essa proposio,
descobrimos de imediato as molas secretas da evoluo humana, que
Kardec, discpulo e continuador da pedagogia pestalozziana, revelou,
atravs de suas pesquisas dos fenmenos paranormais, a natureza do
homem, integrando-o na realidade csmica como uma unidade
palingensica que, como todas as coisas, no se perde nem se destri
com a morte corporal. A Economia Divina no permitia o desperdcio
sem sentido de sua maior e mais bela conquista, que a formao do ser
humano. Nada se perde, tudo se transforma. A teoria posterior,
baseada em Kardec, no dnamo-psiquismo de Gustave Geley,
confirmava-se claramente na descoberta desse vetor ou unidade
energtica do processo evolutivo. Nascer, viver, morrer, renascer
ainda e progredir sem cessar, essa a lei, proclamou Kardec,
repetindo o ensino de Jesus a Nicodemos. Essa descoberta cientfica
do Espiritismo, que as Cincias posteriores foram obrigadas a
confirmar, desde Richet at Rhine, marcou o maior avano do
Conhecimento Humano na segunda metade do sculo XIX, abrindo os
caminhos do espantoso progresso cientfico do nosso sculo. Era
natural que os povos da Antigidade, apesar das intuies da sabedoria
grega clssica, no tivessem podido entrar no uso e gozo desse
conhecimento, por falta dos recursos e do clima libertrio que s
apareceriam mais tarde. A agressividade dos sculos de arbtrio era
endgena, brotava das entranhas do homem como herana das fases
primrias em que a razo era esmagada pela brutalidade da fora em
suas mnimas manifestaes. Essa herana ainda pesa sobre ns, mas a
abertura do nosso sculo facilitar
45. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 45
a extino dos seus ltimos resduos, apesar da resistncia dos
instintos animalescos que carregamos. A experincia favorece a
adaptao do homem ao mundo, mas a insegurana do homem ante a
variedade das situaes que enfrenta o leva a criar e manter
dispositivos de segurana que so cristalizaes da experincia
embargando as vias de acesso ao futuro. Podemos ver isso com
nitidez nas estruturas sociais de todos os tempos. As foras de
defesa da sociedade convertem-se em dispositivos de represso que as
transformam em mecanismos rgidos de asfixia da liberdade. O ensaio
de Denis em Rougemont, A Aventura Ocidental do Homem, confrontando
as condies massivas das tribos e das hordas com as massivas
civilizaes orientais, tornou transparente essa afinidade histrica
dolorosa. Esparta venceu Atenas, engrenando de novo o cidado
ateniense na opressividade das estruturas brutais, agora
desenvolvidas ao mximo na racionalidade anti-racional da expanso
tecnolgica. A civilizao crist negou-se a si mesma por medo de suas
prprias criaes e apego sua suposta perfeio. A advertncia de Jesus:
quem se apega a sua vida perd-la- foi aplicada s avessas na traduo
latina dos romanos. Ao se conluiar com o Imprio, a Igreja Crist
perdeu o sentido da sua vida espiritual e se profanou na aventura
ocidental das conquistas a ferro e fogo. O mesmo aconteceu na
rotina da vida familial, onde a autoridade dos pais, voltada para a
segurana dos filhos, despertou-lhes a revolta ante as exigncias
contrrias ao impulso de renovao das novas geraes. Ingenieros
proclamou em As Foras Morais que a juventude toca a rebate em toda
renovao. Dewey mostrou que a funo das novas geraes no a de se
acomodar s experincias das geraes passadas, mas a de reelabor-las
de acordo com as exigncias dos novos tempos. Mas o apego dos homens
s estruturas cristalizadas e prescritas e aos formalismos hipcritas
negou aos
46. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 46
filhos o direito de cumprir os seus deveres, estabelecendo, assim,
conflito de geraes com todos os excessos do desespero e da angstia,
a chamada angstia existencial dos nossos dias. A experincia tem a
sua validez limitada pelas condies de cada poca. O processo
experiencial regido pelas leis da evoluo, na medida dos novos
problemas que surgem. A escala de valores de uma poca torna-se
perempta na poca seguinte. Disso decorre a inaplicabilidade das
normas do passado ao comportamento humano da poca seguinte. A idia
de que a moral decorre dos usos e costumes j se torna caduca em
nossos dias, dado o avano do conhecimento no campo das Cincias
Humanas, particularmente no plano psicolgico e no ontolgico. Graas
s contribuies de Bergson, Ren Hubert, Kerschensteiner e Rhine ficou
demonstrado que a moral decorre das leis extrafsicas da conscincia,
manifestadas atravs do pensamento. Ao contrrio do que se pensava at
agora, os usos e costumes no surgem apenas dos meios sociais em
organizao, mas tambm e sobretudo das exigncias conscienciais do
homem. Os costumes (morais) que parecem determinar a moral, na
verdade so determinados, orientados e disciplinados pelas exigncias
conscienciais provenientes das aspiraes de ordem, paz e felicidade
inscritas na mente e na afetividade humana e projetadas pela
vontade no plano das atividades prticas. A experincia concreta no
mundo revela ao homem os meios de ao mais compatveis com aquelas
aspiraes. Os instintos animais em evoluo, nos processos evolutivos
para o plano hominal, desenvolvidas as suas potencialidades,
convertem-se em imperativos conscienciais que Scrates e Kant j
haviam previsto em suas intuies antecipadoras. Em cada nova gerao
esses imperativos conscienciais se renovam, modificando o panorama
moral do planeta. As fases de aparente retrocesso correspondem aos
perodos de conflito em que a cons-
47. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 47
cincia luta contra o apego ao passado. Em nosso tempo visvel essa
luta contra preconceitos formais e hipocrisias cristalizadas e j h
muito rompida pelas exigncias da vida prtica. Toda moral legtima se
impe inevitavelmente pela prpria fora da sua autenticidade. Na
reelaborao da experincia as novas geraes quebram os tabus do
passado, destroem os preconceitos e arrancam as mscaras da
hipocrisia institucionalizada. Aldous Huxley revela, em O Gnio e a
Deusa, a condio conflitiva a que chegou a moral vitoriana na
Inglaterra atual, no mais elevado plano da intelectualidade. Dos
destroos da ltima conflagrao mundial a moral saiu esfarrapada em
todo o mundo. No se trata de uma decadncia ou at mesmo, como querem
alguns retardatrios, da morte da moral, mas de uma renovao profunda
que tem de remover pesados escolhos custa de grandes sacrifcios e
duras vergonhas. Passado esse perodo de transformao, o gnio no se
mostrar to esquizofrnico ao peso da sua inteligncia e a deusa no
ser to leviana e inconseqente. Impe-se a volta naturalidade nas
relaes sociais, afastando-se os escolhos dos formalismos mentirosos
com sua carga de hipocrisia aviltante, deformadora da criatura
humana. O homem decado ter de reabilitar-se ao peso da sua prpria
conscincia. Suas aspiraes de pureza, bondade e justia provm da
mnada divina a idia de Deus no homem , que nunca foi nem poder ser
afetada pelas crises da instabilidade social. O avano cultural no
se faz ao acaso das circunstncias. regido por leis que o conduzem
com segurana nas vias precisas. Sartre pregou e anunciou uma nova
moral existencial que no chegou a formular. Sustentando a nadificao
do homem na morte, no dispunha de condies para a tarefa que se
propunha. Simone tentou socorr-lo, publicando um ensaio sobre uma
possvel moral da ambigidade que, nas suas contradies, no passou de
um ovo gorado. Hubert, na sua modstia e discrio, formulou
48. J. Herculano Pires O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte 48
o Esquisse Dune Moralit, estabelecendo as bases do seu Trait Gnrale
de Pdagogie, duas contribuies vlidas para as perspectivas do futuro
mundial. No Trait Hubert se coloca numa posio pedaggica tipicamente
esprita, oferecendo uma viso interligada e dinmica do processo
moral e do processo educacional que corresponde s exigncias
crescentes do nosso tempo. O predomnio de Dewey nas escolas e
centros universitrios do Brasil barrou a penetrao entre ns dessas
contribuies de Hubert. Tivemos a oportunidade de introduzir esses
trabalhos de Hubert na Cadeira de Histria e Filosofia da Educao da
Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de