UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
JOSÉ NILTON DOS SANTOS
O PAPEL DO ATOR-XAMÃ NA
INSTAURAÇÃO CÊNICA-RITUAL
NATAL/RN
2019
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede
Santos, Jose Nilton dos.
O papel do ator-Xamã na instauração-cênica-ritual / Jose Nilton dos Santos. - 2019.
125 f.: il.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro
de Ciências, Comunicação, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Artes
Cênicas. Natal, RN, 2019.
Orientadora: Profa. Dra. Nara Graças Salles.
1. Teatro - Ritual - Dissertação. 2. Instauração Cênica - Dissertação. 3.
Antonin Artaud - Dissertação. I. Salles, Nara Graças. II. Título.
RN/UF/BCZM CDU 792(043.3)
JOSÉ NILTON SANTOS
O PAPEL DO ATOR-XAMÃ NA INSTAURAÇÃO
CÊNICA-RITUAL
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito
para obtenção do título de mestre em Artes
Cênicas, na linha de pesquisa Interfaces da Cena:
Políticas, Performances, Cultura e Espaço, sob
orientação da Profa. Dra. Nara Salles.
Natal
2019
JOSE NILTON DOS SANTOS
O PAPEL DO ATOR-XAMÃ NA INSTAURAÇÃO CÊNICA-RITUAL
Esta dissertação foi apreciada parcialmente para
obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas pela
Orientadora e pela Banca Examinadora.
Orientadora:
Profª. Dra. Nara Salles, UFRN
Banca Examinadora:
Profª. Dra. Urânia Auxiliadora Santos Maia de Oliveira, UFBA
Prof. Dr. Adriano Moraes de Oliveira, UFRN
Natal, Julho de 2019.
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a minha Mãe Maria Anunciada (in memoriam) pela dedicação e
apoio no aprendizado das primeiras letras e por me ensinar a amar as coisas e as pessoas.
AGRADECIMENTOS
Aos Professores do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, pela oportunidade
do conhecimento acadêmico e pela contribuição direta e indireta em minha área de pesquisa.
À minha orientadora Nara Salles por suas contribuição e dedicação a este trabalho
Aos colegas de turma do PPGARC/UFRN pelo companheirismo durante o curso e
constantes trocas de experiências.
Aos atores da Associação de Atores Dupla Face de Teatro pela disponibilidade para a
pesquisa, ensaios e experimentações.
Ao companheiro de jornada afetiva Ed Silva por sempre repetir “seja forte, a escolha
foi sua, aguente!”
Ao diretor e Ator Zé Celso Martinez Corrêa por me ensinar alguns cantos dionisíacos
e por compartilhar comigo alguns segredos à beira mar de Tambaú
Ao amigo póstumo Antonin Artaud que se constitui como uma grande inspiração para
a minha Jornada xamânica no teatro.
A Neide Nunes, secretária de Estado do Desenvolvimento Humano do Estado da
Paraíba, por me apoiar nesta jornada de conquistas.
A amiga Deputada Estadual Professora Cida Ramos, exemplo de vida e estimulo de
coragem para seguir em frente.
Aos amigos(as) de trabalho da Diretoria Técnica da Fundação Desenvolvimento da
Criança e do Adolescente, pessoas fortes na luta da transformação humana – uma verdadeira
alquimia!
A todos os loucos e gênios que são encerrados nos manicômios como uma forma de se
manterem afastados das verdades que poderiam revelar.
RESUMO
A investigação proposta por esta dissertação está centrada no sentido de compreender o meu
papel como um possível ator-xamã a partir de uma instauração cênica-ritual intitulada “Y”. O
processo criativo colocado em prática e analisado, foi inspirado nos estudos ocultistas da
Kabala, da Filosofia Hermética e do Tarot. O pensamento teórico que guiou este trabalho
encontra-se fundamentado nas obras de Antonin Artaud, sendo uma referência matriz para
esta averiguação. O processo criativo experimentado levou em consideração o conceito de
Instauração Cênica elaborado por Nara Salles (2004) que incorpora elementos das artes
visuais ao campo do teatro e da performance, que além de propor resíduos a serem deixados
no local da instauração e como procedimento criativo explora a memória e matrizes corpóreo-
vocais dos instauradores da cena. Minha proposta de um trabalho do ator/atriz como xamã
parte das ideias apresentadas e discutidas por Antonin Artaud em sua obra, O Teatro e seu
Duplo (1985) propondo este olhar a ser acrescido ao conceito de Instauração Cênica sendo a
esta agregado. A partir desta referência e dos elementos cênicos-
dramatúrgicos desenvolvidos na instauração cênica “Y” descrevo as possibilidades
de relações entre o trabalho místico de um ator/atriz e de um xamã, percebendo a forma
como eu me aproprio dos estímulos místicos utilizados na criação como um novo
procedimento para o teatro compreendido com fundamentos no ritual. A escrita dissertativa
se apresenta como uma série de cartas, sendo estas direcionadas ao Ator e diretor Antonin
Artaud. As sessões de textos foram ordenadas e estruturadas com base no Tarô Cabalístico de
Rider (2009), assim para cada carta endereçada a Artaud é oferecida uma imagem de tarô
como estimulo inicial para o desenvolvimento do tema.
Palavras-chaves: instauração cênica, ritual, teatro sagrado.
ABSTRACT
The research proposed by this dissertation is centered in the sense of understanding my role
as a possible shaman-actor from a scenic-ritual instauration entitled "Y". The creative process
put into practice and analyzed was inspired by the occult studies of Kabala, Hermetic
Philosophy and Tarot. The theoretical thinking that guided this work is based on the works of
Antonin Artaud, being a reference matrix for this investigation. The creative process has
taken into account the concept of Scenic Insertion elaborated by Nara Salles (2004) that
incorporates elements of the visual arts into the field of theater and performance and
proposes residues to be left at the place of installation and as a creative procedure explores the
memory and corporeal-vocal matrices of the scene settlers. My proposal for a work by the
actor / actress as a shaman starts from the ideas presented and discussed by Antonin Artaud in
his work, The Theater in its Double (1985) proposing this look to be added to the concept of
Scenic Insertion being added to it. From this reference and from the scenic-dramaturgical
elements developed in the scenic setting "Y" I describe the possibilities of relations between
the mystical work of an actor / actress and a shaman, realizing how I appropriate the mystical
stimuli used in creating a new procedure for the theater understood as ritual. The essay
writing appears as a series of letters, these being directed to the Actor and director Antonin
Artaud. The text sessions were ordered and structured based on the Rider's Kabbalistic Tarot
(2009), so for each letter addressed to Artaud a tarot image was offered as an initial stimulus
for the development of the theme.
Keywords: scenic instauration, ritual, sacred theater
SUMÁRIO
Carta ao Louco - A inspiração inicial ou a jornada em busca do ator xamã.................12
Carta ao Mago – Ou abordagens sobre um possível Ator-Xamã.....................................28
Carta à Sacerdotisa - elementos místicos de inspiração na composição da Instauração
Cênica “Y” .............................................................................................................................48
Carta da Imperatriz-Alquímica para o Ator-Alquímico Antonin Artaud.......................55
Carta do Imperador-xamã ao Ator-poeta Antonin Artaud..............................................71
Carta para o Papa-Dramaturgo – Descontruindo a figura do antigo dramaturgo
natimorto.................................................................................................................................86
Roteiro Comentado da Instauração-cênica- ritual “Y”.......................................................94
Carta dos Enamorados para o Ator-xamã Artaud - Aspectos (in)conclusivos..............111
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................................................125
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 0. Carta do Tarot de Waite - O Louco.........................................................................12
Figura 1. Carta do Tarot de Waite: O Mago .........................................................................28
Figura 2. Recorte da mesa do Mago - destaque dos elementos da magia...............................44
Figura 3. Carta do Tarot de Waite - A Sacerdotisa ................................................................49
Figura 4. Diagrama da Árvore da Vida...................................................................................53
Figura 5. Correspondência das cartas do tarô no diagrama da Árvore da Vida......................54
Figura 6. A Imperatriz do Tarot de Waite...............................................................................56
Figura 7. Diagrama da Árvore da Vida e seus respectivos caminhos cabalísticos..................62
Figura 8. Carta do imperador no Tarot de Rider waite.......................................................70
Figura 9. Planta baixa do cenário de Y. Cada esfera colorida é uma clareira feita na floresta.
As linhas que ligam as esferas são as trilhas por onde os espectadores caminham.................73
Figura 10. Bastão xamânico feito durante o processo de criação de Y...................................77
Figura 11. Trabalho com o bastão – o autor demonstrando um exercício com o bastão..........78
Figura 12 Experimentação com o fogo – processo de construção da Instauração....................81
Figura 13. Carta do Tarot de Waite-Rider...............................................................................85
Figura 14. Mapa da instauração-cênica com o nome do arcano de cada cena. Associação
utilizada na concepção de “Y” .......................................................................................91
Figura 15. Público assistindo uma cena realizada em uma das trilhas(caminhos) de Y..........93
Figura 16. Corte esquemático do conjunto das três primeiras Shefiras, local do prólogo e
encenação da cena do Louco............................................................................................94
Figura 17. Recepção dos Servos de Cronus aos espectadores-instauradores..........................95
Figura 18. Cena do Louco – a atriz executa sua própria iluminação.......................................96
Figura 19. Corte esquemático da Árvore da Vida. Cena da Imperatriz. A seta de cor laranja
mostra o percurso do cortejo desde a Shefira branca, passando pela Shefira Cinza e chegando
a 3ª Shefira onde acontece a cena da Imperatriz................................................................97
Figura. 20. Cena da Imperatriz................................................................................................97
Figura 21. cena 04 ( No Salão dos Espelhos de Geburah)...................................................98
Figura 22. Gravura de autor desconhecido. As criaturas sagradas na visão do Profeta
Ezequiel........................................................................................................................98
Figura 23. Cena de Aracne entrelaçando os fios do destino...............................................101
Figura 24. Figura nº 24 Cena de Aracne e cena No Mundo de Dionísio – corte esquemático da
Árvore da Vida, entre o 2º e 3º triângulo. Cortejo sai da cena do Salão dos Espelhos e vai em
direção a cena de Aracne para chegar na cena No Mundo de Dionísio...............................103
Figura. 25 O Arcano do Diabo no Tarot de Waite............................................................104
Figura 26. No Mundo de Dionisio – no primeiro plano o ator Leonardo Santiago como
Dionísio Mascarado.......................................................................................................105
Figura 27. O Mestre de Cerimônia joga tarot para os espectadores......................................106
Figura 28. Cena da morte – três figuras cômicas vendem bilhetes do Baú da Eternidade.....107
Figura 29. Cortejo saindo da Shefira de nº 04, passando pela 6º e para chegar até a cena das
Estrelas, Shefira de nº 09........................................................................................................107
Figura 30. Cena do Pedágio e banquete..................................................................................107
Figura 31. Altar de recolhimento do pedágio.........................................................................108
Figura 32 Saída do público da área de encenação - ritual final.............................................110
Figura 33. Os Enamorados – Sexto Arcano Maior do tarot de Waite ...................................111
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Associação cabalística da relação Tarô e Árvore da Vida.................................56
LISTA DE ABREVIATURAS
ABNT: Associação Brasileira de Normas Técnicas
UFRN: Universidade Federal do Rio Grande do Norte
UFPB: Universidade Federal da Paraíba
PPGARC: Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
AADFT: Associação de Atores Dupla Face de Teatro
13
CARTA AO LOUCO – A INSPIRAÇÃO INICIAL OU A JORNADA EM
BUSCA DO ATOR-XAMÃ
Figura 0: Carta do Tarot de Waite: o Louco (gravura do Tarot de Waite 2009)
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Caro Artaud, saudações!
Antonin Artaud tu não era um louco como muitos acreditavam, mas foste acusado de o
ser para que lançassem o descrédito sobre certas revelações capitais que te preparava para
fazer. Assim como Van Gogh, você recebeu o julgo de uma “sociedade tarada que inventou a
psiquiatria para se defender das investigações de certas lucidezes superiores cujas faculdades
de adivinhação a incomodavam” (ARTAUD, 2014, p.258)
Além de você ser acusado, foi ainda trancado em manicômio, fisicamente eletrocutado
cotidianamente nas loucas terapias de choque, “para que perdesse a memória dos fatos
monstruosos que ia revelar” (idem) e que, sob a ação desse golpe, submeteram você para o
plano sobrenatural, porque seria melhor para essa sociedade tarada, se aliar ocultamente
contra sua consciência para lhe fazer esquecer a realidade.
Não, eu acredito que tu não era louco Artaud, mas suas obras artísticas eram ácidas,
cruéis e com efeito de bomba cujo ângulo de visão, ao lado de todas as outras obras de sua
época, teria sido capaz de perturbar gravemente o conformismo larvar da burguesia da
Europa. Pois não é um certo conformismo de costumes que sua obra ataca, mas o das próprias
instituições. E mesmo a natureza tal qual como a conhecemos, com seus climas, seus ritmos
naturais, tempestades e maremotos, não pode mais, depois da passagem de Antonin Artaud
pelo mundo da arte, manter a mesma gravitação.
Artaud posso parecer exagerado em minha expressão, mas o que escrevo aqui nestas
linhas é uma releitura de sua obra, Van Gogh, o Suicidado da Sociedade (1947) como uma
forma de iniciar esta carta destinada a você, a quem foi chamado de louco. Nunca vi um louco
munido de tanta lucidez, que diante de tal racionalidade, a psiquiatria de sua época não
passava de um reduto de aventureiros que exploraram seus fetiches nas representações
intelectuais de alguns gênios superiores não entendidos, a quem a sociedade deu o nome de
louco. Mas o que seria esse louco Artaud?
É um homem que preferiu enlouquecer, no sentido em que a sociedade entende a
palavra, a trair certa ideia superior a honra humana. Eis por que a sociedade condenou
ao estrangulamento em seus manicômios todos aqueles os quais se queria livrar,
contra os quais queria defender-se, porque eles haviam recusado a acumpliar-se com
ela em certos atos de suprema sujeira. Pois um louco é também um homem a quem a
sociedade não quis ouvir e quem desejava impedir a expressão de verdades
insuportáveis (apud, ESSLIN, p.90, 1978)
15
A sua arte foi essa verdade insuportável que enquanto expressão, não quis ser escutada
e compreendida pela sociedade artística da primeira metade do século XX. Sob o julgamento
de louco produziste uma imensa obra, que do ponto de vista dos tempos atuais nada tem a
comparar com a loucura.
O titulo dessa carta chama-se Carta ao Louco - A inspiração inicial ou a jornada em
busca do ator-xamã, que tem o intuito de informar sobre o que eu estou empreendendo no
momento. O titulo, é uma alusão a carta do Tarot de Waite O Louco, que eu escolhi para
inspirar esta escrita destinada a você, intitulado por essa sociedade tarada de o “louco”
O Louco no Tarot, é nada mais, nada menos que a figura de um bobo da corte, um
ator, um momo andarilho no caminho da arte. Permita-me Artaud que eu fale um pouco sobre
esse louco e você vai entender que ele é o elemento essencial para o trabalho a qual eu estou
defendendo. Este louco espelha de forma análoga a figura do ator de carreira, um servidor do
teatro, um profissional que entende como manipular as emoções. Entretanto este Bobo,
cansado de servir apenas de animador da corte, resolve abandonar o conforto do reino para se
aventurar no mundo. Ele está insatisfeito com a arte dos palácios teatrais e agora busca uma
nova experiência para sua vida de artista. Interiormente, este louco-momo-ator guarda uma
vontade de retornar as origens rituais do teatro. Com esse propósito ele se coloca em
caminhos desconhecidos – é um inicio de uma jornada, uma peregrinação mística, artística e
alquímica. No caminho, o bobo descobre que é preciso antes de tudo estar em estado
diferenciado de energia. Existe uma alteridade na mente e no corpo do peregrino teatral. O
qual explicarei mais adiante.
No Tarot de Rider-Waite existe uma lâmina de um Bobo da Corte, chamado de Le Mat
– O Louco. Na imagem se vê um bobo da corte vestido a caráter de um artista medieval, tendo
em seu figurino os guizos próprios dos palhaços da época. Carrega em suas costas uma trouxa
de roupas, que se permite imaginar que ele inicia uma jornada. Na representação mística do
tarot, o louco significa um estado de abertura para as novas experiências – o principio criador.
O Arcano do louco é a causa subjacente após todos os efeitos. O poder oculto após
todas suas manifestações. Segundo a ocultista Edith Waite (2009) é a semente do fim semeada
em todo inicio. É o nada do qual surge tudo. “O Louco costuma representar inícios,
experiências e opções novas; os primeiros passos de um novo caminho e as primeiras
palavras escritas numa página em branco” (WAITE, 2009 p.44)
Na imagem do Tarot de Waite, O Louco é visto frente a um precipício que se coloca
como obstáculo em seu caminho, para significar que em todas as experiências novas existe o
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risco de falhar. Desta forma, o Louco expresso nesta imagem corresponde ao Bobo da Corte,
o Ator, o Atuante e uma pessoa do teatro.
Acredito Artaud, que o Louco nos representa, sobretudo te representa. Pois, nós loucos
somos vistos como extravagantes escandalosos e alarmantes. Entretanto, o louco não se
preocupa com o que as pessoas estão pensando a respeito dele, a única aprovação de que ele
precisa é a sua. Este arcano revela um ser dotado de confiança em si mesmo. Talvez não tenha
nada de louco.
Quando não somos compreendidos atraímos naturalmente a condenação – isto é um
louco! Por diversas vezes, nós pessoas do teatro somos atacados por essa reprovação. Quando
eu ouvia falar de você em algum meio artístico, escutava quase que repetidamente a censura:
“Artaud era louco” e isso me aproximou mais de sua obra. Acredito que onde há a
condenação á loucura, há também um caminho oculto de verdades assombrosas. E assim,
como O Louco do Tarot eu me coloco em situação de risco para percorrer uma jornada
mística nas artes cênicas
Só agora é que eu começo a entender o que você escreveu em seus estudos. A falta de
maturidade e a incompreensão intelectual que é própria dos artistas ainda não tocados pela
peste teatral, nos faz confundir as ideias e tornar o pensamento um imenso caos de
informações. Confesso que demorei certo tempo para entender o que você pretendia, ou na
verdade, pretende.
Durante a minha formação no Curso de Bacharelado e Licenciatura em Teatro1 eu não
conseguia me sentir um ator. Eu tinha a impressão que era um mero imitador, que imitava
técnicas de outros mestres, ou mesmo um caminhante que percorre um caminho com olhos
alheios. Dentro de mim, um cavalo selvagem corria doido atropelando todos os protocolos do
aprendizado acadêmico. Cada técnica ensinada, cada teoria estudada, cada descortinar de
palavras ou conceitos sobre o teatro não surtia encantamento. Por vezes desejei dar um passo
atrás e voltar no tempo em que apenas a intuição ordenava o teatro a qual eu devia fazer. Um
espirito rebelde e perverso guiava meu corpo para a loucura. As minhas tentativas de me
adequar a uma representação teatral só me aborreciam. O “ser ou não ser” apenas me soava
falso. A voz, o gesto e outras expressões de movimento, nasciam já na condição de natimorto.
Em minha volta, onde quer que meus olhos alcançassem, tudo parecia morto. Um ator morto,
um teatro morto, uma encenação de espectros impotentes. Os fantasmas me rodeavam, aonde
1 Bacharelado (2010.1) e Licenciatura (2014.1) em Teatro pela Universidade Federal da Paraíba
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ir? Eu sabia que devia fugir enquanto ainda fosse tempo – antes que a velha cortina dos
teatros empoeirados caísse finalizando o ato.
Louco! Eu me encontrava em delírio, preso num enfadonho sono letárgico. Como
quem acorda de um terrível pesadelo pulando do leito, eu saltei num grito de existência – não
sou um ator! Neste momento desperto e consciente da crise, perguntei-me quem sou eu então?
O que sou?
Esta pergunta, meu caro Artaud, me fez reconhecer que eu não queria criar uma obra
dissociada de minha vida. Minhas verdades sobre eu mesmo. Eu represento a “EU MESMO”
assim, como você, que representa a “Antonin Artaud” e que representa totalmente a sua vida.
Por vezes, me comparo ao Louco. Vejo-me no topo de um precipício existencial
criativo. O Louco do Tarot representa o ser humano em estado de monotonia, e que se coloca
a caminho de novas descobertas. Assim estou eu, meu caro Artaud, buscando o novo, por
caminhos já trilhados. As leituras sobre o teatro cerimonial e as celebrações dionisíacas2 me
despertam um estado de emoção exacerbado, uma vontade de reviver a história e adentrar aos
rituais do teatro antigo. A vontade de compreender a energia do teatro ritual e sagrado, me
impulsiona a voltar ao inicio do caminho para verificar os rastros de nossos antepassados – os
atores ancestrais.
Sabes por que estou falando isso? Te falarei envergonhado, peço que não entendas
como arrogância de minha parte, ou mesmo prepotência a comparação, mas, assim como
você, estou com os ânimos em êxtase ao montar uma nova encenação. Assim me encontro, a
caminho de vivenciar um processo criativo. Antes que me esqueça, este processo será
conduzido a partir do entendimento de instauração cênica. A principio eu pretendia usar o
termo espetáculo para definir o resultado artístico cênico da encenação, mas ao tomar contato
com o conceito de instauração cênica desenvolvido pela orientadora desta dissertação3
cheguei a conclusão de me utilizar deste termo por acreditar que o mesmo alinha bem a forma
artística dos elementos postos a cena.
O conceito de instauração cênica foi arquitetado por Nara Salles(2004) a partir do
termo instauração, utilizado pela a curadora Lisette Lagnado para definir elementos
performáticos intercruzados na instalação em arte visual, significando assim um aspecto
hibrido entre as duas categorias. No entendimento da curadora o termo instauração guarda
2 In Nietzsche, A Visão Dionisíaca do Mundo, 1995
3 Professora membro do programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte e orientadora desta dissertação
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dois momentos de estruturação artística: um dinâmico e outro estático. Diferentemente da
performance a instauração deixa resíduos:
A acepção de instauração supera a característica efêmera da performance, a
instauração deixa resíduos, avançando no sentido de perpetuar a memória de uma
ação, o que lhe tira o caráter de ser somente uma instalação. Nesta, existe um
ambiente montado para determinado acontecimento que pode ser destruído durante o
decorrer da ação no ambiente. A instauração não é destruída no decorrer da ação,
podendo acontecer uma transformação do ambiente a partir de uma estrutura
estabelecida, havendo inclusive uma construção no espaço, interferindo na
paisagem. (SALLES, 2015, p.03)
Desta forma Artaud, seguindo o entendimento de Lisette Lagnado, Nara Salles
incorporou o termo instauração na conjunção com termo “cênica” para hibridizar as
categorias numa mesma significação, para indicar que naquele local são instauradas ações
cênicas e a ambientação não será destruída, mas alterada. É como se o ambiente cenográfico
de uma encenação continuasse em exposição após o encerramento da obra artística, de forma
a deixar resíduos do ato cênico. Para ser mais claro Artaud, a instauração cênica cria um
espaço durante a apresentação que pode ser observado posteriormente como um elemento de
artes visuais.
A instauração cênica a que venho me dedicando a cerca de um ano4, irá se chamar Y.
Poeticamente, eu escolhi essa letra por ela representar imageticamente um caminho bifurcado,
do qual um caminhante deve escolher qual o lado ele deve seguir. Inspiração, que responde a
minha inquietação: por onde seguir, qual melhor caminho da estrada para acessar o teatro que
eu acredito?
Artaud, não sei se estou sendo claro. Temo não ser compreendido. O que eu quero
dizer a você francamente, é que, neste momento estou produzindo uma obra artística de cunho
místico, onde o ator assume uma atuação como um xamã em sua prática operativa. Antes, que
você me diga, eu mesmo venho confessar – foi de seus escritos que a ideia surgiu. Não quero
plagiar você, ou mesmo repetir o que você fala, mas a partir de seu teatro criar o meu. E por
meio de seus desejos e aspirações que eu pretendo me inspirar.
Posso estar parecendo um tanto prepotente ao tentar me aproximar de teus ideais.
Compreendo que não é tarefa fácil adentrar teu sonho teatral e assistir a tragédia que tão bem
4 O processo criativo aqui observado teve início em 01 de novembro de 2016, antes do ingresso à Pós Graduação
na UFRN
19
ensaiaste, entrelaçando vida, arte, linguagem e vida, ações e contradições. Mas como um
louco que sou, resolvo me colocar em risco. Sem o perigo a arte é frágil e sua face é bondosa.
Assim como você, Artaud, eu acredito que o teatro tem o poder de mudar a sociedade,
os seres humanos e o mundo, e também acredito que o teatro não é o lugar do entretenimento.
Concordo quando você diz há os que vão ao teatro como ao bordel
Faz algum tempo que venho lendo suas publicações e admito que elas tenham surtido
um efeito muito sensível sobre minha vida de artista. Cada provocação sua, não passa impune
à minha ânsia devoradora e revolucionária. Sinto que o teatro, assim como o mundo, repete
ciclos entre evoluções e involuções, avanços e retrocessos constantes. Assim, compreendo que
as minhas inquietações artísticas fazem parte deste círculo de repetições.
Então você vai me perguntar o porquê destas minhas colocações, e eu irei lhe afirmar:
quero montar uma instauração cênica com alguns elementos que acredito ser verdadeiramente
próprios do teatro. Elementos que você debateu em seus escritos, filosofias teatrais,
mitologias cênicas, operações mágicas, alegorias e arquétipos da arte e outros devaneios
oníricos que encontram no ato teatral terreno fértil para fecundação trágica. De certo você irá
dizer que estes termos não estão em sua obra desta forma, e eu replicarei – você fala de
magia, em seu livro O Teatro e Seu Duplo, você nos diz, concebemos o teatro como um
verdadeiro ato de magia (1985, p.87) Foi pensando sobre isso que me inspirei para conceber o
meu processo criativo “Y”
A instauração cênica “Y” também buscou se guiar e se influenciar por outras
inspirações simbólicas como o Tarot de Rider-Waite5 e a Cabala Hermética, que segundo os
apontamentos de ZELL-RAVENHEART(2016) consiste em um sistema de estudos pautados
nos escritos de Hermes Trimegisto, no conhecimento da numerologia caldeia, na astrologia e
deixado de diversos conhecimentos místicos judaicos. Este código místico foi profundamente
utilizado pelos alquimistas durante o período medieval, servindo de base para todos os
estudos das ordens ocultistas como a Golden Dawn e Ordo Templi Orientis no século XIX.
Ela envolve todo o traçado do mapa dos estados de consciência no ser humano, de extrema
importância na magia ritualística. Estes elementos místicos são os mesmos descritos por você
em suas obras completas.
Nós, seus admiradores, nos aproximamos de você pela diversidade de suas ideias e
pelo grau de mistério que envolve a sua linguagem. O seu espirito inconformado com o teatro
5 Arthur Edward Waite (02.10.1857 – 19.05.1942), místico e ocultista inglês. Foi um grande estudioso e
renomado escritor nos campos do esoterismo e da maçonaria, in WAITE, Edith. O Tarot Universal de Waite.
São Paulo: Isis, 2009
20
do inicio do século XX o impulsionou a trazer á cena assuntos ignorados no teatro, como a
questão de pensar o teatro como um ato mágico. Podemos conferir que você foi o primeiro na
historia do teatro ocidental a pensar o ator como um xamã. E sob este aspecto você nos
convida a uma viagem espiritual, uma jornada xamânica no teatro, como se refere Susan
Sontag(1986) em seu ensaio “Abordando Artaud”.
Devo lhe confessar que muito me atrai e influencia a sua ideia de pensar o teatro como
uma obra integral, uma obra de arte total, como proclamou no primeiro Manifesto do Teatro
da Crueldade, quando fala que “nós queremos é ressuscitar esta velha ideia, no fundo jamais
realizada, do espetáculo integral” (apud, VIRMAUX, 2009, p.45) Para o estudioso Alain
Virmau, esse era o sonho de muitos artistas depois que Richard Wagner nomeou suas óperas
de A Obra de Arte Total, e você Artaud, seria a pessoa melhor credenciada para assumir essa
ambição totalitária.
Assim como Wagner, você conseguiu realizar uma atividade multiforme, manifestada
em todos os níveis no teatro e nos espetáculos, e que também, verificamos em outros campos
de criação artística. Sabemos que você experimentou os fazeres de diversos ofícios: ator de
teatro e cinema, diretor e assistente teatral, cenógrafo, maquetista, roteirista, sem contar de
algumas produções de artes visuais6 e iluminação cênica. Tarefas que despertou esta sua visão
integral do teatro.
Inspirado em sua biografia e experiência de trabalho eu pretendo me guiar por essa
possível senda - um teatro integral, onde eu possa manipular diversos elementos numa única
obra, no meu caso a Instauração Cênica. A esse principio, eu pretendo experimentar alguns
elementos cerimoniais e místicos, cantos, operações xamânicas, jogos de improvisação,
instaurações cênicas, elementos performáticos e idealizar um espetáculo ritual como
happening, no qual irá se realizar uma espécie de cortejo. Minha instauração cênica será,
sobretudo itinerante. Para isso eu reservei um espaço em minha propriedade, um bosque de
árvores. Neste local eu apresentarei minha criação teatral “Y”
A idealização deste processo criativo é estruturado no misticismo da cabala e nos
arcanos maiores do Tarot de Rider-Waite. Sei, que estou falando de um assunto que te
provoca, o misticismo. Não falo isso por uma visão rasa, a esse respeito Martim Esslin7 já
mencionou sobre o seu trabalho:
6 Brochura gráfica que continha montagens fotográficas das produções: O Teatro Alfred Jarry e A Hostilidade
Pública 7 ESSLIN,Martin. Artaud. São Paulo: Cultrix.1978
21
Porém, a mais notável expressão da imersão de Artaud nos hábitos de pensamento
e imaginação do mundo helenístico pode ser observada na estreita afinidade entre
suas fantasias religiosas e cosmológicas nos últimos quinze anos de sua vida, e o
universo dos gnósticos helenistas, essas numerosas e diversas escolas de
especulação filosófica e mística florescentes no mediterrâneo oriental entre os
séculos III e VII, condenados e veementes combatidos pelas igrejas cristãs, como
hereges perniciosos, esses filósofos gnósticos e essas escolas e seitas criaram uma
desnorteadora variedade de sínteses entre cristianismo, filosofia grega e pensamento
e mito das religiões orientais como fez Artaud em seus últimos escritos, gnósticos
misturavam elementos dos livros canônicos e dos apócrifos da bíblia com
neoplatonismo e cabala, as crenças indianas na transmigração das almas, o culto
egípcio de Osíris e Hórus, os ensinamentos maniqueístas a respeito do mundo da
dualidade de bem e de mal, o zoroastrismo da Pérsia, a astrologia babilônica, que
interpretava o universo como rígida hierarquia das esferas ascendentes e
descendentes, e resíduos das religiões da Grécia clássica, como o canto de Dionísio
e os mistérios do Orfismo (ESSLIN.p.18, 1978)
Sabemos que você Artaud, era obsidiado por numerologia, pelos sistemas divinatórios
e por outras questões ligadas a feituras e quebras de feitiço. Não podes negar que teu livro
sobre o imperador romano Heliogábalo8 foi dedicado ao eremita Apolônio de Tyana
9, e que
esta dedicação mística se revela como a prova real de sua aproximação com as filosofias
místicas, e o seu encantamento com a alquimia.
De minha parte também, tenho um verdadeiro encanto pelo universo das mitologias e
doutrinas ocultistas. Desde muito novo, sou inclinado aos assuntos ocultistas. Ainda menino
eu encenava ludicamente a figura de um mago manipulador de poções mágicas, brincando
com vasilhames de vidro e água misturada com areia e pedras, eu acreditava inocentemente e
intuitivamente que seria possível obter o ouro nessa manipulação. No inicio de minha
juventude fui apresentado aos estudos do Tarot, momento em que tive contanto com uma aura
de encantamento e mistério. Quando tomei pela primeira vez, em minhas mãos, um baralho
de Tarot, senti uma indescritível atração pelas imagens gravadas nas cartas. A meu ver, estas
figuras, que por um lado parecem enigmáticas, mas que ao mesmo tempo, nos provoca uma
imaginação. É como se falassem diretamente ao nosso pensamento, cada carta de Tarot guarda
uma história desenhada em símbolos, que de certa forma desperta um conhecimento profundo
durante muito tempo esquecido.
Não sabemos quem inventou, nem a época e nem a sua finalidade. Sabemos que o
mesmo é notadamente conhecido nos círculos esotéricos e, que há diversos estilos destes
baralhos. Segundo as informações de Edith Waite (2009), o seu próprio nome já é um
8. ARTAUD, Antonin. Heliogábalo ou O Anarquista Coroado. São Paulo: Assírio e Alvin, 1991. Romance
bibliográfico escrito por Artaud que traz uma linguagem mística provocante. 9 “Dedico este livro aos homens de Apolonio de Tiana, contemporâneo de Cristo, e para todos os verdadeiros
Illuminati que podem permanecer neste mundo que se perde” (ARTAUD, 1991) segundo Carlos Basílio(2010)
Apolonio de Tiana foi um Filósofo grego que viajou pela Ásia menor, Babilônia e Índia visando difundir as
doutrinas grega e oriental.
22
mistério. O termo Tarot é usado na atualidade na maioria dos idiomas. A primeira noticia que
se tem sobre o Tarot vem do inicio do século XV. “apareceu pela primeira vez no norte da
Itália, composto por 78 cartas, formadas por 22 triunfos ou arcanos maiores e 56 menores, que
por sua vez estão divididos em quatro espécie ou naipes: ouros, copas, espadas e paus”
(WAITE, 2009, p.08) é interessante perceber que há no Tarot uma relação estreita com o
conhecimento da Cabala.
A Cabala, segundo o rabino Michael Laitman (2002) é um método para alcançar o
mundo espiritual. “Ensina-nos a respeito do mundo espiritual, e, ao estudá-la, desenvolvemos
um sentido adicional. Com a ajuda deste sentido, podemos estabelecer contato com os
mundos superiores. este sistema pode ser ainda denominado como sabedoria oculta.” (p.17)
Ainda segundo Laitman (2002) A Cabala é um sistema que objetiva avaliar nossos
desejos: “toma todos os nossos sentimentos e desejos, os divide e dá uma fórmula matemática
exata para cada fenômeno, a cada nível, para cada tipo de compreensão e de sentimento”.
(p.19) Assim, a cabala guarda elementos matemáticos em sua organização: utiliza geometria,
matrizes e diagramas, na tentativa de estudar o “ser” e o seu “sentimento”
O aprendizado dos sistemas do Tarot e da Cabala me possibilitaram identificar em suas
obras Artaud, diversos códigos esotéricos e expressões da sabedoria oculta.
Ao conhecer o teatro eu percebi que ele não era um simples jogo dramatúrgico, mas se
constituía de um grande ato de virtualidade, semelhante à própria estrutura do Tarot e seus
arcanos, que são na verdade um sistema de códigos, expressados misticamente pelas imagens
desenhadas nas cartas. As imagens descrevem cenas, contam histórias e camuflam segredos
sem recorrer a palavras escritas. Num primeiro olhar, os arcanos compõem um cenário, que
poderiam ser descritos como uma representação gráfica de uma cena. As imagens arcanas do
Tarot expressam gestos semelhantes a da atuação teatral.
Com o tempo essa minha visão se escureceu e a mente recolheu esse pensamento para
o arquivo do inconsciente. Os anos se passaram, experimentei diversas encenações e práticas
teatrais, mas com um sentimento de insatisfação, eu me senti como um mendigo que come a
mesa do rei e continua esfomeado. O teatro que experimentei ao longo de minha formação de
bacharel em teatro, parecia um teatro de imitação, um teatro de protocolos e regras, técnicas
padrões e estilos dramatúrgicos. Por vezes eu até conseguia compreender que tudo aquilo era
um processo de sistematização do conhecimento, mas ao mesmo tempo e sabia e conhecia a
partir do que eu lia e estudava, que o teatro já havia se libertado a um bom tempo das
submissões de uma dramaturgia escrita e dos roteiros rotineiros e rígidos.
23
Quando tive às mãos uma publicação sua, O Teatro e Seu Duplo (1985), fiquei
contagiado com o tipo de teatro que você pretendia construir. Este escrito despertou toda
minha memória do Tarot. Havia no Teatro e Seu Duplo um convite para desbravar os
mistérios do teatro e buscar uma mística cênica, humana e cruel. Como um cataplético
desperto do sono da morte eu fui acionado para arte como um dínamo elétrico – toda minha
vontade teatral ressurgiu.
E para aumentar esse meu ânimo, tive acesso a uma de suas cartas escritas a Jean
Louis Barrault, no período em que visitastes o México. Nela, você fala do teatro que
pretendes conceber: “quando eu o tiver nas mãos poderei automaticamente realizar o
verdadeiro drama que devo fazer, desta vez com a certeza de conseguir, não se trata talvez de
teatro sobre o palco” (apud VIRMAUX, 2009, p.41).
O meu espirito rebelde de ator encontrou nos seus pensamentos uma orientação do
teatro que eu queria experimentar. Estou falando dos elementos de selvageria, agressividade
gosto pelo crime, quimeras, obsessões eróticas e outras utopias presentes no Manifesto do
Teatro da Crueldade que publicaste em 1932 na Nova Revista Francesa. No artigo tem um
trecho que acredito que possa ser tomado como uma síntese do manifesto:
O teatro só poderá voltar a ser ele mesmo, isto é, voltar a constituir um meio de
ilusão verdadeira, se fornecer ao espectador verdadeiros precipitados de sonhos,
onde seu gosto pelo crime, suas obsessões eróticas, sua selvageria, suas quimeras,
seu sentido utópico da vida e das coisas, seu canibalismo se desencadeiem, num
plano não suposto e ilusório, mas interior ( ARTAUD, 1987, p. 48)
O sentimento de interiorização cênica do seu teatro é confirmado com a publicação
do Segundo Manifesto do Teatro da Crueldade (1933) quando afirmas que o teatro da
crueldade “foi criado para devolver ao teatro a noção de uma vida apaixonada e convulsa; e é
neste sentido de rigor violento, de condensação extrema dos elementos cênicos, que se deve
entender a crueldade” ( ARTAUD, 1987, p. 48)
Primeiramente por coincidência e logo depois por indução, encontrei em sua obra os
elementos que eu acredito serem importantes para a minha formação poética e teatral. Ainda
hoje as pessoas tem dificuldade de entender o que você propôs. E também esquecem que a
partir de você surgiram muitas ideias que renovaram o nosso teatro. As suas tentativas de
idealizar a sua obra, nos ofertou toda uma diversidade de reflexão sobre o papel do teatro, a
função do ator/atriz e o processo criativo das artes cênicas.
Creio que será impossível falar da criação de minha instauração cênica “Y” sem que
eu relacione minhas ideias com as suas, ou mesmo que eu me inspire em seus desejos para
24
orientar o meu trabalho. Em verdade Artaud, você é a referencia guia e condutora dessa
pesquisa. Não quero lhe divinizar ou mesmo lhe engrandecer na condição de um semideus
como muitos de seus seguidores fazem. A ti eu irei me relacionar como um irmão das artes,
um Frater Iniciado10
nos segredos da magia, um ator de fato, e um homem de teatro. Acredito
que todos os grandes nomes da história do teatro estão na mesma proximidade que nós atores
mortais. A sacralidade com que fazemos de vossos nomes, só permite afastá-los cada vez mais
de nossos olhos. É preciso, profanar o objeto sagrado como diz Giogio Agambem em seu
livro profanações (2007) de modo, a tê-lo perto de nós. Assim, eu lhe tiro do altar da
sacralidade para lhe degustar como uma oferenda ritual palpável, simples e humano.
O que me faz entender que você é uma figura humana e não um semideus do teatro
como muitos fazem de ti, é o fato de encontrar no Manifesto da Crueldade a expressão de vida
associada à arte e ainda perceber que você propõe um teatro com uma linguagem fundada no
corpo e na inspiração. A crueldade a que descreves, age como uma renovação da vida através
de um teatro que promove a cura. Lembro quando você falou certa vez, que “o ato dramático
poderá dar vez a cerimonia mágica e mística e que a ação pudesse transcender ao autor, ao
ator e ao público” (ARTAUD, 2014, p.75).
Sei que o teatro oriental foi sua grande fonte de reflexão, e que foi através de uma
apresentação do Teatro de Balí, por meio do espetáculo Barong, que chegastes à reflexão
inicial sobre o teatro que se produzia na Europa naqueles idos de 1930. O contato com aquele
teatro de Balí te possibilitou uma nova concepção de mundo que influenciou não só sua obra,
mas todo o fazer do teatro contemporâneo no ocidente. Um dos traços marcantes que você
observou neste tipo de teatro, foi a supressão do autor na produção teatral em proveito de
diretor. “Mas aqui o diretor é uma espécie de ordenador mágico, um mestre de cerimônias
sagradas. E a matéria sobre a qual ele trabalha, os temas que faz palpitar não são dele mas dos
deuses. Eles provêm, ao que parece, das junções primitivas da Natureza que um Espírito
duplo favoreceu.”(ARTAUD,2014, 87)
Busquei em seu pensamento Artaud, a inspiração para edificar meu trabalho de teatro e
a construção da Instauração-Cênica “Y”, e isso foi feito a partir das tuas colocações sobre os
aspectos da magia no teatro. Há em tua obra O Teatro e seu Duplo, um apontamento que me
serviu como guia condutor e ordenador para o meu processo criativo:
10
Nas tradições das escolas de filosofia mística os novos adeptos eram chamados de Frater, ou seja, irmão.
25
É sob esse ângulo de utilização mágica e de bruxaria que se deve considerar a
encenação, não como o reflexo de um texto escrito e de toda a projeção de duplos
físicos que provém do texto escrito, mas como a projeção ardente de tudo o que
pode ser extraído, como consequências objetivas, de um gesto, uma palavra, um
som, uma música e da combinação entre eles. Essa projeção ativa só pode ser feita
em cena e suas consequências encontradas diante da cena e na cena; e o autor que
usa exclusivamente palavras escritas não tem o que fazer e deve ceder o lugar a
especialistas dessa bruxaria objetiva e animada. (ARTAUD,2014, 81)
Outro apontamento que foi muito relevante e que justifica o meu trabalho se encontra
na seguinte enunciação: “Alcançar as paixões através de suas forças em vez de considerá-las
como puras abstrações confere ao ator um domínio que o iguala a um verdadeiro curandeiro”
(ARTAUD, 2014, 149).
Não encontramos em seus textos Artaud, o termo xamã, encontramos terminações
semelhantes a exemplo de curandeiro, feiticeiro e mestre de cerimônias sagradas. Dessa
forma, quando eu falo em ator como xamã eu faço relação com esses termos, principalmente
com o “curandeiro” que resulta em um facilitador da cura por meio de operações de magia.
Assim, desta forma eu pretendo buscar essa possível transcendência na instauração
cênica Y. Quero tornar o ato teatral em uma operação mágica, onde o ator é mestre de
cerimônia, é servidor de um teatro da sensibilidade, do êxtase e da cura. Ao saber que você
acreditava que o ator poderia atuar como um xamã, eu me desafiei experimentar esta ideia.
Os xamãs, como você bem sabe, eram mestres de magia cerimonial. Segundo Mircea
Eliade (2002) os xamãs estavam no seio de sua sociedade promoviam as transformações de
estados de emoções e comportamentos através de cantos, evocações danças, pantominas e
presdigitação, eles, os xamã são mestres da técnica do êxtase, assim, o “xamanismo é a
técnica do êxtase[...]A palavra chegou até nós através do russo, do tungue saman (ELIADE,
2002, p.16 ) apesar do termo xamã ser originário da Sibéria, passou a ser utilizado por
estudiosos da antropologia e das ciências das religiões para identificar e reunir conjuntos de
práticas e crenças religiosas de origem ancestral em todo mundo. Assim,
Desde o início do século (XX), os etnólogos se habituaram a utilizar como
sinônimos os termos xamã, medicine man, feiticeiro e mago para designar certos
indivíduos dotados de prestígio mágico-religioso encontrados em todas as
sociedades “primitivas”. Em português, poderíamos acrescentar a essa lista os
termos curandeiro e pajé. (ELIADE, 2002 p.15).
Meu caro Artaud, a obra de Mircea Eliade (2002) faz uma ampla abordagem sobre o
papel do xamã, segundo ele, atribui-se ao xamã a competência de curar e de operar milagres,
como aos magos. Além disso, é ainda psicopompo, ou seja, aquele que pode guiar as almas ou
26
através dos sonhos esclarecer e revelar segredos a seus seguidores. O xamã para Eliade (2002)
pode ainda ser sacerdote, místico e poeta. Desta maneira os xamãs, por meio da técnica do
transe, servem de intermediários entre a comunidade e outras dimensões místicas. “O xamã é
o grande especialista da alma humana; só ele a “vê”, pois conhece sua “forma” seu destino”
(idem, p.20).
Em seus escritos Lévi Strauss (2014) nos fala que algumas práticas xamânicas são
muitas vezes compostas de recursos dramáticos, elementos rituais e cênicos que ainda podem
ser encontrados nas manifestações de algumas aldeias do oriente da Ásia e da Oceania.
Artaud, no seu livro O Teatro e seu Duplo (1985), encontrei uma ponderação sobre o
teatro oriental, a qual você destaca como um teatro de tendências metafísicas, ao mesmo
tempo em que descreves o teatro ocidental inclinado para as tendências psicológicas. Desta
forma, surgiu inquietação que me tomou conta durante algum tempo: O que difere uma
linguagem teatral da outra? Aprofundando-me mais um pouco em sua obra, cheguei a partir
de sua reflexão, a um entendimento, que a linguagem do teatro oriental por se tratar de uma
relação metafísica, baseia-se nos gestos, signos, atitudes e sons; enquanto o teatro ocidental,
preso na cultura dos psicologismos, fundamenta-se nas palavras e no diálogo verbal da
dramaturgia.
É evidente Artaud, que você não queria suprimir a palavra articulada no teatro, apenas
queria que ela não fosse mais importante que o próprio gesto. Assim, as artes cênicas
desenvolvidas no oriente lhe serviram de exemplo para entender que a linguagem dos signos
está acima das palavras, e que por sua vez nos despertam a sensação de poderes mágicos.
Encontramos em sua obra O Teatro e Seu Duplo (1985) a manifestação de seu
pensamento místico do teatro, no qual você destaca a necessidade de retornarmos a ideia
superior da poesia pelo teatro, que existe por trás dos mitos, de maneira a suportar a ideia
religiosa e sagrada do teatro. É importante lembrar Artaud, que as suas ideias sobre o teatro
“foram vislumbradas e inspiradas principalmente no teatro balinês, que possui um caráter
altamente ritualístico” (SALLES, 2004, p.31) e eu acredito Artaud, que aquela extensa
temporada de apresentações do Teatro de Bali em Paris no ano de 193111
foi decisiva para a
estruturação de sua ideia sobre o ator como xamã. Acredito que tal acontecimento tenha lhe
motivado a idealizar a volta às bases do teatro como cerimônia e ritual.
11
No ano de 1931 aconteceu em Paris uma série temporada do teatro de Bali, do qual Artaud teve contato e
causou grande admiração e segundo AMARAL(1996) o teatro de Bali contribui decisivamente para estruturação
do teatro metafisico de Artaud.
27
O termo Teatro-Ritual enquanto categoria estética nas artes cênicas é algo ainda
recente, sua incorporação às pesquisas teatrais começa a ganhar ênfase na segunda metade
século XX, primeiramente com você Artaud, e logo mais com o surgimento de grupos e
pesquisadores que sonhavam em resgatar a magia perdida pelo teatro ao longo de sua historia.
Com esse objetivo, atores ocidentais mergulharam nas tradições orientais, nas culturas
africanas e latino-americanas. Desta forma a o termo Teatro-Ritual pode estar por vezes
interligado ao entendimento de práticas culturais e religiosas que se estruturam na cerimônia,
no rito e no ritual. Entretanto, Artaud, as pesquisas realizadas na área de teatro e ritual
ganharam evidência, a partir dos estudos da antropologia teatral12
, mas, como você vivenciou
de perto e sabe melhor que ninguém, que a busca por esse assunto começou a ser explorado
desde o surgimento das vanguardas artísticas do começo do século XX..
O escritor Francês Patrice Pavis (2005), entende que o ritual encontra seu caminho
na apresentação sagrada de um acontecimento único, que seria uma ação não imitável por
definição, teatro invisível ou espontâneo, mas sobretudo o desnudamento sacrificial do ator
diante do espectador que coloca assim suas preocupações, bem como as profundezas de sua
alma, à vista de todos, com uma esperança confessa de uma redenção coletiva
A teórica de História do Teatro, Margot Berthold (2008), ao falar do teatro como ritual
assenta-se nos alicerces dos impulsos vitais primários, retirando deles seus misteriosos
poderes de magia, conjuração, metamorfose, “dos encantamentos de caça dos nômades da
idade da pedra, das danças de fertilidade e colheita dos primeiros lavradores do campo, dos
ritos de iniciação, totemismo e xamanismo e dos vários cultos divinos” (p.02)
Os elementos da expressão teatral meu caro Artaud, podem ser analisados em
observação aos rituais antigos. Para Margot Berthold (2008) a pré-história, a historia da
religião, a etnologia e a cultura popular oferecem material abundante sobre danças rituais e
manifestações populares de caráter religioso das mais diversas formas que carregam a
semente do teatro.
O teatro ocidental, assim como o oriental surgiu do culto aos deuses da natureza, da
fertilidade, aos ritos de iniciação e das práticas xamânicas – nessas manifestações religiosas
podia-se realizar uma série de ritos: meditação, drogas alucinógenas, dança, música, evocação
a espíritos da natureza, bem como a produção de ruídos ensurdecedores. Gostaria Artaud, de
destacar esta informação que encontrei na obra de Margot Berthold, do qual a autora
acrescenta, que tais ritos causam o estado de transe mediado pelo xamã, observemos:
12
Estudo do comportamento do artista no fazer artístico, formas de trabalho, métodos e simbologias não
necessariamente estéticas, mas que se constituem base para o trabalho do ator
28
Seu contato visionário com o outro mundo lhe confere poder “mágico” para curar
doenças, fazer chover, destruir o inimigo e fazer nascer o amor. Essa convicção do
xamã, de que ele pode fazer com os espíritos venham em seu auxilio induzem-no a
jogar com eles. (BERTHOLD, 2008, p.03)
Alguns teóricos costumam classificar o teatro ritual como um tipo de “teatro
primitivo”. Eu particularmente não gosto da expressão “primitivo” soa como algo rude. Nós
ocidentais, munidos das armas da colonização somos alienados em classificar as culturas
ancestrais como algo inferior. Em sua época, Artaud, podia-se até compreender, mas hoje, no
século XXI, encontrar essa diminuição é praticamente revoltante. Por isso, me apraz muito, o
pensamento mais atual de alguns pesquisadores do teatro, como a respeito de Ana Maria
Amaral (1996) que ao falar do teatro antigo, o teatro como ritual, justifica, que a sua
existência se deu no momento em que o ser humano sentiu “a necessidade de sair de si, de se
despersonalizar, de se disfarçar, de sair do seu dia a dia para viver novas experiências.”(p.56)
esse sair de si mesmo se dava por meio da transformação das energias cósmicas, e isto só era
possível na realização do ato cerimonial guiado por um agente xamânico. Se você perceber
Artaud, a autora que acabei de falar tem em suas ideias o pensamento Artaudiano.
Eu acredito, que para o ator enquanto xamã encontre o lugar da representação e o
entendimento de sua função artística-xamânica, ele precisará incorporar em sua prática
exercícios inspirados em técnicas do êxtase xamânico, e se esforçar para compreender como
esses elementos criam as condições de ser ator – o ser ou não ser. A tentativa de descobrir
ritos para atuação teatral oferece ao ator contemporâneo uma oportunidade de conciliação do
ator de agora com o ator de ontem. Conciliar técnicas, conceitos com os ritos e operações
cerimoniais sem que para isso o teatro torne-se mera encenação religiosa.
Eu estruturei esta investigação a partir dos termos matrizes: ator/atriz, xamã, e
instauração cênica. Esses termos, Artaud, foram a base para eu construir uma escrita
dissertativa sobre o meu papel enquanto ator na vivência do ritual no teatro, bem como a
realização da Instauração cênica Y que envolverá ritual e teatro. Sabemos que tal
empreendimento não se estrutura de maneira fácil, pois a complexidade de entendimento
sobre teatro ritual se espelham na complexidade dos estudos sociológicos das artes, religiões e
antropologia. Entretanto, a possibilidade de haver uma ligação dos elementos teatro com a
antropologia e da religião, torna esta pesquisa um campo fértil, no qual o ator poderá buscar
arqueologicamente as sementes ancestrais de seu trabalho de atuação. Acredito em seu ideal
29
Artaud, quando você fala que o artista possui um potencial de energia semelhante à de um
curandeiro, de forma a “alcançar as paixões através de suas forças em vez de considerá-las
como puras abstrações confere ao ator um domínio que o iguala a um verdadeiro curandeiro.”
(ARTAUD, 2014, 149) assim esse curandeiro se insere dentro da compreensão de trabalho
um xamã, como nos expõe os estudos de ELIADE(2002), LÉVI-STRAUSS(2004),
MOUSSINAC(1957) É nesta crença que me obstino a enveredar pelas trilhas ancestrais do
teatro e do ritual com a finalidade de articular pensamentos, e experimentações teórico-
práticas.
Até aqui Artaud, eu esbocei o meu pensamento e minhas vontades criativas, como
também o que eu tenho estudado a respeito, mas quero que saibas – você, Antonin Artaud é a
maior referência para este trabalho. Embriago-me com sua filosofia teatral e assim, como as
bacantes no ápice do ritual dionisíaco, chego ao estado transcendental do teatro, isto é, estado
catártico, pensando por Aristóteles(1993) para definir o sentimento produzido na tragédia
grega, onde a obra teatral em forma dramática, não narrativa, encena incidentes que suscitam
piedade e temor.
Para encerrar esta primeira carta Artaud, devo dizer que o Louco do Tarot é um
arcano de grande relevância enquanto representação simbólica. Ele é um ator que consegue
incorporar a alma de diversos outros arcanos, e por sua vez traz a essência do xamã. Em
minha Instauração-Cênica “Y”, conto a história deste louco, deste bobo da corte que se
encontra diante de um caminho bifurcado, uma estrada dividida, dupla, assim como o teatro
Artaudiano.
Peço desculpas se por algum momento não fui claro o suficiente. Mas, me coloco em
condição humilde para receber sua opinião ou de quem quer que seja. Escrever-te-ei outras
cartas explicando o processo de minha pesquisa e a realização de minha instauração cênica.
Apenas posso dizer com precisão, que me tenha como um seguidor e, sobretudo
como um admirador.
30
CARTA AO MAGO – OU ABORDAGENS SOBRE UM POSSÍVEL ATOR-XAMÃ
Figura 1: Carta do Tarot de Waite: O Mago (gravura do Tarot de Waite 2009)
31
Caro Artaud,
Eu tenho um projeto de teatro que realizei com um financiamento cultural através do
Fundo Municipal de Incentivo a Cultura da Prefeitura Municipal de João Pessoa –
FMC/PMJP, para montagem de uma instauração cênica intitulada de “Y”, que por sua vez é
também objeto de estudo desta escrita dissertativa. Na verdade, trata-se de experimento
artístico com um atributo de ritual. Esta iniciativa partiu do desejo de colocar em prática uma
inspiração poética que adquiri lendo sua obra o Teatro e seu Duplo (1985) como também em
outros textos seus reunidos na obra Linguagem e Vida13
(2014)
A proposta deste trabalho a qual eu estou me dedicando nos últimos tempos, pesquisa
referenciais teórico-práticos para a consolidar e organizar elementos cênicos que possam
dialogar com um possível teatro ritual artaudiano à base de signos místicos e artísticos, e que
sobretudo atenda o meu sentimento particular de artista, e que possa dessa forma trazer-me a
felicidade estética, sem que a instauração cênica seja um “atrativo digestivo14
” como você
mesmo chama com as produções pensadas unicamente em satisfazer as demandas do mercado
cultural.
A minha irrisória pretensão consiste apenas em discutir algumas de suas colocações
sobre o teatro que você deseja, e a partir de suas contribuições, erigir aquilo que eu acredito
ser necessário para o meu teatro.
Em uma das suas cartas ao senhor Fouilloux15
você afirma que o seu projeto de teatro
tem a finalidade de reconciliar a ideia de ação com o plano utilitário da vida tendo o proposito
de “alcançar as regiões mais profundas do individuo e criar nele próprio uma espécie de
alteração real” (ARTAUD, 2014, p.92) e no desenvolvimento de sua explanação você
objetiva o resultado onde você pretende chegar:
Isto significa colocar o teatro no plano da magia, o que nos aproxima de certos ritos,
de certas operações da Grécia Antiga e da Índia em todos os tempos. Contudo
precisamos nos entender e não é preciso acreditar que o teatro, segundo essa
concepção seja reservado a uma elite de espíritos religiosos, místicos e iniciados.
(ARTAUD, 2014, p.92)
Assim, devo lhe confessar que gosto da mesma ideia e acredito que a magia é ainda
um elemento bastante forte na criação da obra de Arte Cênica. O “A” maiúsculo na palavra
13
Textos organizados por J. Guinsburg, Silvia Fernades Telesi e Antônio Mercado Neto 14
Expressão utilizada na carta ao Senhor Van Caulaert ou Senhor Fouilloux (projeto de carta) – Paris, 8 de julho
de 1932. 15
Gerente comercial do Teatro da Comédia Francesa.
32
Arte se justifica na feitura da Grande Obra16
, na verdade trata-se de uma breve analogia. Para
os alquimistas a arte era uma só, e quando ela tinha a capacidade de produzir transformações
físico-químicas recebia a escrita com o “A” maiúsculo. Neste sentido quero trazer aspectos da
Alquimia, da Magia e do Xamanismo para minha pesquisa e produção artística.
Antes mesmo de conhecer os seus escritos sobre esse teatro baseado nas forças
espirituais, eu já me debruçava sobre os véus de mistérios que envolvem a origem do teatro na
historia mundial. E foi sob os aspectos de um teatro mais ritualístico, que me motivei a buscar
informações sobre ritos, procedimentos mágicos e operações que estivessem próximos aos
elementos do teatro.
Mas foi a partir de seus pensamentos e ideais que eu cheguei ao ponto de decisão:
experimentar possibilidades cênicas para montar uma obra de artes cênicas onde o ritual é o
mote.
Outra questão que me faz dedicar tempo nesta empreitada, é a minha vivência aos
estudos da Alquimia, Cabala, Xamanismo, Tarot. Desta forma eu quero trazer para o meu
teatro aquilo que me alimenta espiritualmente e que me possibilita desenvolver uma crença
em um teatro mágico-espiritual, onde o ator é conhecedor da magia e da Arte.
Artaud permita-me, desenvolver aqui alguns dos princípios que me guiaram no
empreendimento que busco no atual momento.
Primeiramente tenho uma ideia de escrever sobre o meu papel ator como um xamã
inserido numa instauração cênica, e que é objeto de defesa do meu grau em mestre em artes
cênicas. Segundo, a materialização estética dessa instauração cênica numa produção artística,
onde eu sou o idealizador.
Quando eu digo “o meu papel”, na verdade, eu estou tentando mostrar qual a minha
função nesta tarefa artística de construir uma encenação onde eu, enquanto ator e produtor,
sou também agente espiritual, servidor do teatro. Pode parecer confuso Artaud o que eu estou
tentando colocar, é que, o meu papel, revela um desempenho, uma ação premeditada e
executada.
Quando se fala em papel no teatro, temos logo em mente uma imagem artística criada
por um dramaturgo, cujo objetivo é dar vida a uma personagem na encenação. Isto pode ser
conferido no conceito de papel dado pelo o famoso ator, diretor e dramaturgo Jurij Alschitz,
através da seguinte reflexão:
16
Dentro da concepção dos estudos da Alquimia, o processo de operação (manipulação) é chamado de A Grande
Obra. Para os filósofos Hermetistas a Arte com “A” maiúsculo seria a própria alquimia, matriz de todas as artes,
inclusive o teatro. Por este motivo Artaud foi um dos primeiros a pensar a possibilidade da relação alquimia e
teatro.
33
O papel pode ser visto como uma imagem artística criada pelo o dramaturgo e
trazida à vida pelo o ator. É o caminho tal como a partitura musical escrita pelo o
compositor. A linha das palavras, movimentos e emoções mostra o caminho tomado
pelas ideias e temas; símbolos e signos de ideias concretas mostram o rumo a seguir
em uma forma artística. (ALSCHITZ, 2014, p.38)
Neste caso, o meu papel enquanto ator-xamã se baseia em partes neste conceito. Mas
não tem o proposito de seguir a construção de uma personagem pela via tradicional do texto
teatral. A minha função, o meu papel se esboça justamente na possibilidade de construir uma
imagem artística de o ator como um xamã, no qual eu sou o próprio dramaturgo. Assim, eu
desenho um propósito e busco seguir este argumento.
Esta dupla tarefa de construir a instauração-cênica e pensar o meu papel de ator-xamã
tem me consumido muito, pois acredito que sejam duas coisas diferentes postas num mesmo
caminho – é um duplo, como você mesmo fala: em todas as coisas existem dois lados, dois
aspectos. (ARTAUD, 2014, p.81) Assim, surgem por vezes confusões e conflitos entre
escrever, defender uma ideia, e criar artisticamente elementos rituais para essa instauração.
O ponto de partida meu caro, é pensar a relação desse ator como um xamã.
Apontando algumas incidências sobre o ritual no teatro e perceber como “eu” enquanto ator e
enquanto iniciado místico, pode trazer elementos do campo do teatro e do ritual para
identificar, se há essa possibilidade de ser um “ator-xamã”. Para que isso possa ocorrer, irei
me colocar como objeto de estudo: o “eu pesquisador” analisando o “eu ator”. Este
empreendimento meu caro Artaud, não se encerra com a defesa dissertativa que eu fiz para a
aquisição de minha titulação de Mestre. É uma ação que tomará um tempo maior de minha
vida de artista-pesquisador e poderá também desaguar em outros afluentes da pesquisa em
artes cênicas.
Então você poderá me perguntar o porquê de me colocar como objeto de estudo, ao
invés de escolher alguns atores para investigar essas relações. Eu penso isso até o presente
momento, e até mesmo, disponho de um elenco que participou da produção artística, e que de
certa forma, poderia constituir-se como objeto. Mas, quis apenas focar na minha pessoa, visto
que eu era o único artista nesse processo que já havia experimentado vivências xamânicas,
além de ser um membro associado à um Ordem Oculta17
, que de certa forma dialoga com os
princípios do universo xamanico. Assim eu acredito que seja mais fácil saber reconhecer as
relações entre “magia e teatro”
17
Trata-se de uma ordem filosófica baseada nos mistérios ocultos da filosofia Hermetista fundada por discípulos
de Hermes Trimegisto no século IV antes de Cristo.
34
Para que eu possa levantar quaisquer considerações sobre este trabalho, devo fazer
antes, alguns apontamentos que justificam a minha motivação por esta pesquisa. Espero não
ser fatigante nesta tarefa. Mas creio que seja necessário Artaud fazer aqui nesta carta, algumas
colocações sobre o teatro como ritual, sobre xamanismo e teatro.
Sabemos Artaud, que o misticismo e as ciências ocultas se constituíram de grande base
de sua vivência no mundo da arte. Dedicaste tempo de estudo e colocaste tais referências em
boa parte dos ensaios, livros e poemas que escreveste. Desta forma te considero a referência
matriz de minha pesquisa. A partir de seus textos eu poderei trazer outras contribuições de
outros autores, mas quero que saibas que em boa parte dos escritos sobre teatro e ritual na
atualidade partem das inspirações de seus estudos. E que foste o principal nome do século XX
a idealizar a volta do teatro a suas origens, como ritual e mágico. Eis que você nos coloca:
O teatro é antes de tudo ritual e mágico, isto é ligado a forças, baseado em uma
religião, crenças efetivas, e cuja eficácia se traduz em gestos, está ligada diretamente
aos ritos do teatro que são o próprio exercício e a expressão de uma necessidade
mágica espiritual. (ARTAUD, 2014, p.75)
Entre os artistas do teatro ocidental podemos considerar você como um dos primeiros
a enveredar pelas trilhas de um teatro mais ancestral, onde se abrem caminhos para os ritos do
teatro, um teatro liberto de uma dramaturgia de palavras escritas e textos meramente
declamados. Em seu Teatro encontramos diversas vezes a sua declaração de vontade em
querer construir um novo tipo de teatro: “Concebo o teatro como uma operação ou uma
cerimônia mágica, e concentrei todos os meus esforços para lhe devolver, por meios atuais e
modernos, e também compreensíveis a todos, seu caráter ritual” (ARTAUD, 2014, p.75)
A ideia do ator como xamã foi discutida a primeira vez na historia do teatro ocidental
por você em sua obra O Teatro e Seu Duplo (1985) nela você expõe que o ator deveria
assumir a postura de um curandeiro ou feiticeiro, assim você idealiza uma reaproximação a
tradição mítica do teatro, na qual a encenação é tomada como uma ação terapêutica,
comparado até mesmo aos métodos de certas religiões ancestrais que tinha o xamã como guia
e condutor. É facilmente compreendida a analogia entre o teatro idealizado por ti Artaud, e as
práticas xamânicas.
A princípio eu não compreendia a possibilidade do ator assumir a postura de um
xamã. Pois o entendimento de xamã parecia limitado aos círculos de magia. Segundo o
estudioso das religiões, Mircea Eliade (2002), o xamanismo se constitui como um fenômeno
35
religioso e mágico, não podendo ser generalizado para todas as formas e tipos de rituais. Para
este estudioso, o xamanismo é um fenômeno exclusivo da região da Sibéria e do centro-
asiático, sendo o xamã o mestre do êxtase que conduz todo o processo de execução do ritual.
Para Eliade(2013), o Xamã é possuidor da experiência extática e é por meio do êxtase que ele
realiza as curas e traz as mensagens do além-mundo.
Entretanto Artaud, outros estudiosos, sobretudo antropólogos como Lévy
Strauss(2004) e Andreas Lommel(1970), acreditam que os xamãs podem estar em toda parte
do mundo, no qual se encontram envolvidos nas magias ligadas as forças da natureza e são
hábeis mestres em entrar num estado de consciência mental diferenciado e alterado.
Talvez seja o estado de consciência diferenciado que aproxime o ator do xamã e eu,
acredito que seja isso que você falou em sua obra. Então eu te pergunto, o êxtase do xamã
pode ser entendido ou mesmo relacionado com o estado de sensibilidade do artista quando
está em cena?
No seu livro O Teatro e Seu Duplo (1985) encontramos o termo transe relacionado à
atuação do ator, no qual você expõe que o atuante deve possuir um estado de consciência
próximo ao estado extático, ou seja, um individuo em transe . Entretanto ao analisar suas
colocações sobre o transe, sou levado a pensar que o quê você fala é um estado lógico de
energia corporal e de consciência e não um caos como muitos entendem. Reforço esta ideia
fazendo uma citação do Ator Gilberto Icle:
Acostumamo-nos a pensar no transe como uma atividade descontrolada e caótica, e
chegaram a existir teorias que relacionavam esses fenômenos a doenças mentais. No
entanto Eliade mostra como a preparação e a iniciação dos xamãs requerem rituais
didáticos que instruem o aspirante em técnicas determinadas (ICLE, 2010, p.68)
No livro O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase (2002) Mircea Eliade
descreve o caminho para se chegar êxtase como uma técnica apurada, organizada e sobretudo
sistematizada. Desta forma para se chegar ao êxtase, xamãs de algumas culturas entram em
sintonia com as energias do próprio corpo, entoam canções e sabem perfeitamente como
utilizar os níveis de respiração para aumentar a concentração e o estado diferenciado de
consciência.
A técnica utilizada pelos xamãs é de certa forma conhecida por nós atores. Lembro-me
Artaud, que por diversas vezes, em meio aos exercícios de respiração utilizados no teatro, eu
conseguia experimentar uma sensação alterada de consciência. Em algumas vezes meu corpo
parecia estar mais leve e flutuar; por outras, eu acreditava estar afundando no palco – isto
36
tudo ocorrido através da respiração consciente. Não quero dizer que esta vivência pode ser
considerada um tipo de êxtase, mas acredito que pode ser base para esse estado.
Esse estado alterado de consciência que o xamã dispõe para acessar o mundo espiritual
é estimulado através de técnicas como nos fala Eliade (2002) outros antropólogos como é o
caso de Lévi Strauss (2004) utilizam o nome de experiência extática, radical grego que
significa “fora de si”. Este fora de si mesmo, também pode ser visto nas descrições de Junito
de Sousa Brandão (1984) quando ele relata as experiências dos atores e devotos de Dionísio
no teatro grego que atingiam este estado através da dança e embriaguez do vinho:
Após a dança vertiginosa de que se falou, caíam desfalecidos. Neste estado
acreditavam sair pelo o processo do êxtase. Esse sair de si, numa superação da
condição humana, implicava num mergulho em Dionisio e este no seu adorador pelo
processo de entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornava-se “anér” isto é,
um herói, um varão que ultrapassou o “métron” a medida de cada um. Tendo
ultrapassado o métron, o anér é, ipson facto, um hypocrités, que dizer, aquele que
responde em êxtase e entusiasmo, isto é, um ator (BRANDÃO, 1984, p.11)
Também encontramos na obra Castañeda (2013) o termo realidade não comum para
falar da experiência de transe do xamã. Esses três autores descrevem as experiências do
êxtase, como uma ação mental diferenciada do cotidiano, mas extremamente controlada e
racional. Então desta maneira podemos perceber que o xamã poderá estar fora da realidade
mental cotidiana e ao mesmo tempo, não estar completamente absorto do mundo presente.
Para Castañeda (2013) existe nesse processo uma sensibilidade espiritual, sensorial e mental,
que permite ao xamã estar em dois mundos ao mesmo tempo, é como se o xamã encontrasse
uma brecha na realidade para perpetrar a vivência xamânica.
Para estar em dois mundos se faz necessário estar inserido num processo de passagem
ou transformação do social para o pessoal, que para Victor Turner (1974) recebe o nome de
Liminaridade, ou seja, é um momento de margem dos ritos de passagem, fase do ritual onde
os sujeitos se identificam como indeterminados, no qual ocorre uma espécie de processo
transitório de “morte social” para em seguida haver o “renascimento” e a “reintegração” a
estrutura social. O termo liminaridade, se configura como uma condição transitória na qual os
seus sujeitos se acham depostos de suas posições sociais anteriores ao rito, ocupando no
momento um entre-lugar indefinido, sem que haja a categorização tempo espacial desses
sujeitos. Para Turner (1974) a vida social se mobiliza a partir do movimento dialético
alimentado pelas práticas rituais.
37
Tanto para Castañeda (2013) quanto para Eliade (2002) para que o xamã possa torna-
se um ser de conhecimento místico e espiritual, é preciso um trabalho exaustivo, conhecendo
bem o seu instrumento mental-corporal e compreendendo todas as estruturas energéticas que
estão disponíveis no mundo externo. Desta forma, um trabalho exaustivo demonstra ter uma
capacidade de suportar o contato com aprendizado de técnicas e ter o espirito forte para
suportar desafios e fazer esforços dramáticos.
Esforços dramáticos foi o termo utilizado por Eliade (2013) para descrever a utilização
de recursos cênicos no trabalho do xamã. Desta forma o xamã pode recorrer a falsos
desmaios, tremores corporais, mudança repentina do tom da voz, dissimulação sobre imagens,
diálogos com o invisível e outros elementos semelhantes à prática de atuação do ator. Sobre
isto, meu caro amigo Artaud, Castañeda descreve sua vivência com um “feiticeiro” mexicano
“Dom Juan” e analisa suas expressões como uma atuação dramática:
No caminho do homem de conhecimento, um conhecimento do drama era, sem
dúvida, o fato isolado mais importante, e um tipo especial de esforços era necessário
para corresponder ás circunstâncias que exigiam a exploração dramática; isto é, um
homem de conhecimento precisava de esforço dramático. Tomando como exemplo o
comportamento de Dom Juan, à primeira vista podia parecer que sua atuação
dramática era apenas a sua própria maneira de teatralidade (CASTAÑEDA, 2013,
p.245)
Então Artaud, a teatralidade do “feiticeiro” que Casteñeda fala, está ligada a forma
pessoal de como o xamã organizava sua expressão e comunicação. “Seus esforços dramáticos
eram sempre muito mais do que uma simples representação, eram antes, um profundo estado
de crença” (CASTAÑEDA, 2013, p.245)
Este mesmo pensamento pode ser verificado na etnocenologia de Andreas Lommel
(1970) segundo ele, além do transe, o xamã irá se utilizar dos mais variados fins de
representação artística para curar o doente; o xamã é frequentemente muito mais um artista e
deve ter sido mais em tempo ancestrais. Com base nessa ideia podemos enxergar nos xamãs
do ritual primitivo a gênese do ator/atriz teatral. Neste sentido Olsen (2004), destaca que a
manifestação do o teatro é anterior ao surgimento do grego como conhecemos no ocidente,
tendo existido antes em sua forma tribal. Desta maneira, “o ator original era o mais
qualificado dançarino, cantor, portador de máscaras e xamã da tribo” (p.7).
Lévi-Straus (2004) na abordagem sociológica sobre o feiticeiro e sua magia, irá
descrever alguns casos em que o xamã recorre a práticas próximas a representação,
38
prestidigitação e pantomima como um recurso de cura ao doente. Ainda na mesma discussão
sobre o papel do xamã nos rituais, Lévi-Strauss cita o caso de Quesalid fragmento de
autobiografia indígena registrado em língua kwakiutl (da ilha Vancouver, no Canadá) por
Franz Boas em 1930. Quesalid era um jovem iniciado nos mistérios xamânicos, ele
descreve, em detalhes, como eram suas primeiras lições:
Uma estranha mistura de pantomima, prestidigitação e conhecimentos empíricos em
que se mesclam a arte de fingir desmaios, a simulação de crises nervosas, o
aprendizado de cantos mágicos, a técnica para vomitar, noções bastante precisas de
auscultação e obstetrícia, a utilização dos “sonhadores” (isto e, espiões encarregados
de escutar conversas particulares e trazer em segredo ao xamã elementos de
informação acerca da origem e dos sintomas dos males de determinados doentes)
(LÉVI-STRAUS, 2004, p.189)
Para Lévi-Strauss não há porque duvidar da eficácia de certas práticas. Porém, ao
mesmo tempo, percebe-se que a eficácia da magia, implica na crença da magia e na
respeitabilidade do xamã. Assim, é de fundamental importância para a vida do xamã a
aceitação e repercussão de seu trabalho. “o homem não se tornou um grande xamã porque
curava seus doentes, curava os seus doentes porque se tornara um grande xamã” (idem, 2004,
p.192)
Perceba Artaud, que fiz uso de três autores das ciências socais: Lévi-Straus (2004)
Carlos Castañeada (2013) e Mircea Eliade, com o proposito de oferecer exemplos sobre os
xamãs e sua magia, e ao mesmo tempo em que encontramos pistas que nos possibilitam
comparar os procedimentos do xamã com os procedimentos de interpretação do ator/atriz.
O ator/atriz assim como o xamã assume um lugar muito importante no ato de
representar um papel, pois ele anuncia artisticamente uma nova vida. É como se ele estivesse
incorporando outro ser. Assim, ele situa-se no cerne do acontecimento teatral. Patrice Pavis
(2014) entende o ator/atriz como o vinculo vivo entre a “dramaturgia de um autor” e as
orientações diretivas de atuação do encenador/a, o olhar e a visão do espectador.
“compreende-se que este papel esmagador tenha feito dele, na historia do teatro, ora um
personagem adulada e mitificada, um “Monstro Sagrado”, ora um ser desprezado do qual a
sociedade desconfia por um medo quase instintivo” (PAVIS, 2014, p.30)
Não é raro Artaud, vermos artistas que se colocam numa situação diferenciada em
relação ao oficio de atuar. Patrice Pavis (2014) elucida este pensamento do ator, como sendo
um reconhecimento externo de que ele é um habilitado a se metamorfosear em outra pessoa,
39
deixando assim de ser quem ele é para torna-se um “outro”. Nesta perspectiva haveria uma
força sobrenatural que facilitaria esse processo de transformação energética. Entretanto,
Patrice Pavis nos fala que essa ideia pode estar ligada ao “mito romântico do oficio do
ator/atriz” (PAVIS, 2014, p.30)
Penso Artaud, que o ator/atriz e o xamã têm o seu corpo, a sua mente e o treino das
capacidades psicofísicas como instrumentos de acesso ao sensível. Pavis (2014) compreende
o ator/atriz como um corpo condutor para o mundo da ficção. Assim para que este corpo
condutor possa estar apto para tal tarefa, o ator/atriz precisará conhecer cada mecanismo de
seu corpo, músculos, respiração, sistemas de excreção, circulação, concentração mental. Este
mesmo pensamento é encontrado nas pesquisas do professor e ator de teatro Gilberto Icle:
Assim como o xamã, o ator é sujeito de seu trabalho e está suscetível a determinados
processos, configura sua consciência para obter êxito de seu trabalho e transcende
seu corpo e sua mente para alcançar com todo o seu ser sua plateia de observadores
que, em última análise, é a razão de sua ação (ICLE, 2010, p. XIV)
O ator/atriz acessa o virtual de sua atuação através de técnicas extremamente
calculadas, procedimento parecido com as técnicas de transe descritas na pesquisa
antropológica de Mircea Eliade (2002). Lembro Artaud, que no livro O Teatro e seu Duplo,
você nos alerta que o estudo do transe no teatro pode ser baseado na tradição das sociedades
antigas ligadas a natureza, e que ao olharmos para as culturas ancestrais e xamânicas,
perceberemos que o transe não é uma pitiatismo descontrolado. Para Lorelle Yves 18
, as
possessões de transe, “são provocadas por uma cultura da qual não podemos dissociá-las, e
elas são previstas no desenrolar da liturgia” (YVES, 1962, p.38)
Desta forma Artaud, irei solicitar sua compreensão para fazer algumas abordagens
sobre o teatro como ritual, tendo o xamã ou feiticeiro como condutor, sendo este uma espécie
de ator ancestral.
Acredito meu caro Artaud, que falar sobre as origens do teatro como ritual é o mesmo
que relacionar a origem do próprio teatro. Na literatura cientifica sobre o teatro, vamos
encontrar diversos autores que remontam o surgimento do teatro no ritual. No qual os rituais
com o mundo natural (forças naturais exteriores) eram a base cotidiana da vida em que os
historiadores chamam de primitiva, na verdade o período paleolítico.
A investigação das origens vivas do teatro deve ser realizada, sem via de dúvida, no
animismo e na magia. Com efeito, parte da atividade dos grupos humanos intitulados como
18
YVES, Lorelle. Transe e Teatro. Ed Cahieres Reanud Barrault: Lisboa, 1962
40
“primitivos” é caracterizada pelo animismo, elemento passivo, e pela magia, elemento ativo
da religião no momento de seu aparecimento, e podemos verificar que as primeiras formas
reais de teatro se criam e se desenvolvem ao mesmo tempo em que se criam e se
desenvolvem os ritos, as cerimonias e os cultos. (MOUSSINAC, p.7, 1957)
No momento em que a humanidade mais antiga ainda estava dominando a natureza
para sobreviver, havia necessidades primordiais de comer, beber, abrigarem-se às forças do
tempo, defenderem-se assim como criar dispositivos (ferramentas, apetrechos, mecanismos,
etc...) para organizar uma melhor forma de viver.
A alimentação à base de animais, nesta época exigia um grande esforço para a caça,
que segundo Moussinac (1957) requeria ao ser humano a utilidade de imitar o animal a que se
ia matar. “O ato de imitar conferia ao “homem caçador” elementos de proximidade e
semelhança ao “ Ser caçado”. Comer esse animal, além de nutrir o corpo, poderia também
nutrir a essência espiritual do homem em busca de coragem e força. Os restos do cadáver
animal (peles, ossos, dentes) poderiam servir de vestimenta e até mesmo um tipo de figurino
que ajudaria se aproximar cada vez mais do “objeto caçado”
Surgia nessa incorporação dos reflexos da energia do animal pelo ator, certo tipo de
pensamento zoomórfico, ou seja, o ser humano como canal de atribuições a energia desse
animal. É o momento em que o ser humano é influenciado por sugestão dos aspectos do
comportamento animal, trazendo para a sua expressão determinada troca de animalidade,
visto que nós seres humanos também somos animais com necessidades semelhantes. Veja,
meu caro Artaud, se não temos ai algo essencialmente teatral, uma possível aproximação com
as forças essenciais e plenamente conectados com o Todo – o ser humano incorporando
característica de um outro ser, de um outro animal.
Nós humanos temos grandes necessidades de revisitar o passado de nossa história, seja
ela pessoal ou coletiva, e nessa tentativa de revisitação supomos fatos, idealizamos
possiblidades, especulamos conjecturas sobre existências e partir de nossas experiências
tentamos esboçar um entendimento sobre a origem do teatro. E é ai que imaginamos as
primeiras tradições cênicas a partir de especulação cientifica, baseada em fragmentos
históricos ( pinturas nas pedras, vasos, objetos funerários, ferramentas, armas, máscaras,
estatuárias, etc...) com base nesses elementos, tendem-se a construir possibilidades e reflexões
sobre as primeiras danças, encenações, jogos, imitações, adorações rituais.
Talvez Artaud, tenha sido no contato com a natureza e a tentativa de conhecê-la
melhor, é que tenham feito o ser humano a crer no sobrenatural, e assim na busca de
entendimento do mundo foi estabelecida a comunicação ser humano-cosmo. Para um melhor
41
esclarecimento, sobre o que eu quero dizer, devo recorrer novamente ao pensamento de
Moussinac (1957) quando ele descreve que foi na impotência em lutar contra certos
elementos, como trovoada ou inundação que as pessoas começam a acreditar em deuses,
espíritos, assombrações, visões encantadas e uma imensidão de mistérios que permitem aos
sujeitos esboçar certas representações que ele vivenciou. Assim, eu entendo que o que está
posto nesta explanação tem a ver com que você pontuou:
Este é grau em que o teatro usa da magia da natureza, permanece marcada por uma
coloração de tremor de terra e de eclipse, onde os poetas fazem falar a tempestade,
onde o teatro enfim se contenta com o lado físico acessível da alta magia.
(ARTAUD, 2014, p.76)
Sendo assim, há algo de místico na arte teatral que se aproxima da religião, algo
espiritual que mantêm o teatro vivo ao sistema material, capital e industrial vivo e preenchido
de certo mistério mágico, que permite a atores e atrizes a necessidade de voltar no tempo e
sentir o poder ancestral do teatro imerso no ritual.
Caro Artaud, quero objetivamente elucidar nestas poucas linhas que te escrevo, que o
ser humano antigo, os nossos ancestrais buscaram na natureza e na comunicação com os
deuses talvez a primeira forma de se expressar cenicamente, expressando em seu corpo e em
suas ações reflexos do mundo externo, e dessa forma estabelecer uma relação mágica com
aquilo que ele criava e codificava. Assim, meu nobre amigo, podemos tomar como aceite que
a humanidade tenha encontrado na imitação as primeiras formas de dança, de mimo uma
maneira de se expressar plasticamente. Aqui cito mais uma vez o pensamento do historiador
cênico “a mascara é o primeiro documento da historia do teatro porque se apresentou
inicialmente como um disfarce do caçador e porque permitiu dominar o sobrenatural e
encorajar os espíritos malignos” (MOUSSINAC, 1957, p.8)
Como já mencionado; nesse entendimento a máscara se constituía de instrumento
físico e visual para que o ser caçador pudesse imitar, ou torna-se próximo ao ser caçado.
Podemos assim, hipoteticamente especular que uma pele de onça, veado, bisão ou qualquer
outro animal não só comporia o figurino do caçado, mas também lhe aproximava
imageticamente da presa. A semelhança também poderia ter a utilidade de neutralizar o corpo
humano, camuflar o gesto e sua expressividade. Então, neste entendimento podemos imaginar
que poderia acontecer uma espécie de alteridade corporal e comportamental durante a
tentativa de se aproximar deste animal. Acredito Artaud, que temos ai um principio teatral,
que de certa forma é portador de uma consciência diferenciada, ou seja, dava-se inicio a
42
experimentação de uma realidade não comum19
, momento em que a existência continua a
mesma, mas a sensibilidade corporal/mental encontra-se diferenciada. (CASTAÑEADA,
2013)
Todavia, desde que o pensamento do “imitador” experimentou o objeto, neste caso as
peles de animal, as máscaras e outros acessórios, para conceber uma semelhança deste objeto,
já se pode averiguar aí, a possibilidade de acesso à fantasia e à magia, algo que é externo à
vida. Será que neste ato de alteridade corporal e mental já temos um tipo de teatro?, ou se
esses atos são meramente do campo mágico-religioso? Esta pergunta meu caro Artaud, apenas
nos possibilita a pensar as duas probabilidades. Talvez, possamos considerar que a
experiência do “caçador-imitador” tenha a única utilidade de providenciar um recurso de
sobrevivência. Também podemos imaginar que esta necessidade se fez tão forte quanto a
necessidade de um ator stanislaviskiano na busca de sua verdade cênica.20
É preciso lembrar,
que Constantin Stanislavski foi o primeiro a falar sobre uma escola de teatro e ensinar como
se constrói uma personagem. Desta forma, a preparação do ator/atriz Stanislaviskniano utiliza
o mesmo princípio quando aborda a questão dos objetos, do figurino e da maquiagem e
propõe o acesso ao que ele chamava de “Se mágico”. Este conceito é encontrado no livro A
Preparação do Ator (1995), obra que desenvolve conceitos ao desenvolvimento do trabalho
interior do ator. Entre esses conceitos, ele vai pontuar a necessidade do ator em buscar da
Verdade Cênica ou Fé Cênica, que Para Stanislavski (1995) é a vivência de algo que não tem
existência de fato, mas que poderia acontecer realmente. Desta maneira o ator/atriz deve
assumir a problemática na qual sua personagem está envolvida e deve vivenciá-la, de forma
que a transmita como se fosse verdade ao espectador. Para o ator/atriz alcançar esse estado de
Fé Cênica em sua atuação, deverá se utilizar de um processo de imaginação chamado de “Se”
Mágico, que é compreendido como um instrumento auxiliar para o ator/atriz a abandonar o
mundo dos estereótipos. Acredito que isto é semelhante à imaginação do xamã que acredita
que pode curar o doente através de seus processos mentais.
Então meu caro, seria o processo de interpretação de um intérprete um processo de
mentalização mística? O fato de dar forma a um personagem ou uma representação, seria
também um fenômeno de incorporação espiritual, digo, trazer essência de “outro ser” para o
19
Realidade não comum, é uma expressão convencionada pelo antropólogo Carlos Castañeda para descrever a
vivencia do xamã durante o processo mágico-ritual. 20
Para os atores e atrizes que estudam o método de Constantin Stanislavski, a verdade cênica consiste em
representar o ato cênico munido de sentimento de crença naquilo que se interpreta – ver STANISLAVSKI,
Constantin. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995
43
nosso gesto? A este sentido gosto de trazer à cena o ator-escritor Mark Olsen que nos aponta
o seguinte a esse respeito:
Desde as origens religiosas do teatro ocidental na Grécia, o ator confunde-se com a
sua dúplice função: parte essencial do fenômeno teatral, ele introjeta a mística da
divina essência humana ao mesmo tempo que, refletindo em si o seu semelhante,
dirige-se à plateia buscando entregar-lhe uma visão profundamente relevante e
estética do homem na sua mais pura expressão. Ao encarnar os personagens o ator
dá-lhe não apenas corpo, voz, nervos e sentimentos: dá-lhe a totalidade do seu ser
em situação e na sua imanência. (OLSEN, 2004, p.04)
Penso Artaud, que falar sobre o surgimento das primeiras manifestações cênicas é o
mesmo que falar sobre as primeiras manifestações religiosas e por sua vez sobre atores e
sacerdotes. Para mim sacerdotes são de fato atores. Se observarmos na atualidade a
celebração de algumas igrejas, podemos perceber como os “mestres de cerimônias” recorrem
cada vez mais a recursos teatrais como uma forma de praticar a imersão do fiel ao ato
religioso no sentido de despertar o sentimento de crença e até mesmo levar ao êxtase.
Entretanto não pretendo me aprofundar neste assunto, que considero polêmico, visto que
exige um tempo maior de compreensão e análise e também por não ser o meu objetivo.
As informações que temos sobre o surgimento do teatro, que por sua vez são baseadas
na historiografia teatral21
, partem sempre do mesmo principio – o ritual. As artes do período
do paleolítico estampadas nas pedras de cavernas como as de Lascaux na França, retratam
seres mascarados dançando e caçadores vestidos como animais. Assim, a observação sobre
esses desenhos rupestres podem elucidar que tais manifestações poderiam ser atos ritualísticos
espetaculares. Este meu pensamento, Artaud, está em consonância com as suposições do
historiador Moussinac (1957)
A realidade aterroriza o homem que cria seres fantásticos, que depois evoca, anima,
representa na verdadeira acepção do termo, chegando até transpô-los para a cena. A
representação dá origem a ritos; o grupo reunido, fascinado pela magia mimética
que se desenvolverá em expressões de êxtase, de loucura sagrada, assistirá à de
fórmulas encantatórias pelo feiticeiro metamorfoseado pela máscara, pelo guarda
roupa e pelos adereços. A partir de então, o culto compreenderá atos e palavras:
cerimônias cada vez mais complicadas esboçarão uma liturgia, a sua ordem plástica
e rítmica, os seus sortilégios, os seus cantos, as suas músicas. Gradualmente, a
participação torna-se coletiva e amplia-se (MOUSSINAC, 1957, p.09)
A vivência do ritual no paleolítico é abordada por Moussinac como um reflexo
fantástico da realidade, este tipo de ritual é algo que ainda pode ser encontrado em algumas
regiões da África, Oceania e América do Sul. Lembro que encontramos diversas dessas
manifestações nos estudos da História da Religião de Mircea Eliade (2013) e nos registros de
21
Vide livros da historia do teatro de Margoth Berthold; Leon Moussinac; Cesare Molinare
44
antropologia de Carlos Castañeda (2013) e Claude Lévi-Strauss (2004) onde se pode conferir
uma estreita relação entre teatro e ritual presente na prática cerimonial de alguns xamãs.
Assim, meu caro amigo, o ritual encontra seu caminho na apresentação sagrada de
um acontecimento único, que para PAVIS, (2005) seria uma ação não imitável por definição,
teatro invisível ou espontâneo, mas sobre tudo o desnudamento sacrificial do ator diante do
espectador que coloca assim suas preocupações, bem como as profundezas de sua alma, à
vista de todos, com uma esperança confessa de uma redenção coletiva.
É nesta mesma perspectiva que AMARAL (1996) justifica as origens do teatro nos
rituais, cuja estrutura teria servido de inspiração ao ato teatral, pois:
Rituais são cerimônias coletivas onde se realizavam determinadas ações que
provocam na mente dos seus participantes uma emoção que lhes confere uma
espécie de iluminação, uma conscientização que os transporta para algo além” (...)
nos rituais as ações se repetem. E se repetem porque representam algo essencial e
verdadeiro, num determinado momento e para uma determinada comunidade (1996,
p.26)
A Historiadora teatral Margot Berthold (2008) em seus estudos sobre o surgimento do
teatro, nos convida a pensar o ato teatral antigo como partícipe de um ritual, assentado nos
alicerces dos impulsos vitais primários, retirando deles os seus misteriosos poderes de magia,
conjuração, e metamorfose, “dos encantamentos de caça dos nômades da idade da pedra, das
danças de fertilidade e colheita dos primeiros lavradores do campo, dos ritos de iniciação,
totemismo e xamanismo e dos vários cultos divinos” (BERTHOLD, 2008.p.02)
Acredito que as relações entre teatro e ritual são mais atreladas do que se possa
imaginar. O ritual no teatro não pode ser apenas entendido como um elemento
místico/religioso, com seus elementos mágicos e sagrados. Antes de tudo, Artaud, acredito
que o ritual no teatro pode ser compreendido como um sistema de técnicas organizadas que se
repetem para alcançar determinado estado de arte, como no ritual, não falo apenas por mera
intuição ou suposição, falo a partir do que nos expõe o professor Patrice Pavis (2011),
vejamos:
É preciso observar que os rituais impõe “aos atuantes” (aos atores) palavras, gestos,
intervenções físicas cuja boa organização sintagmática adequada é o aval de uma
representação bem- sucedida. Nesse sentido, todo o trabalho coletivo na encenação é
execução de um ritual. (PAVIS, 2011. p, 346)
45
Assim toda organização do trabalho coletivo de uma encenação, os passos criativos de
se construir signos, podem ser entendidos como um ritual? A este sentido entende Michel
Foucault:
O ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no
jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada
posição e formular determinado tipo de enunciados); ele define os gestos, os
comportamentos, as circunstâncias e todo conjunto de signos que deve acompanhar
o discurso; fixa enfim, a eficácia suposta ou imposta quanto às palavras, seu efeito
sobre aqueles aos quais elas se dirigem, os limites de seu valor expressivo
(FOUCAUT, 1971, p.41)
Em meu entendimento Artaud, os gestos, as palavras e os demais signos de expressão
quando encadeados numa repetição e sequência de aprendizados, se correspondem à criação
do rito, termo de origem latina (ritus) que para George Plekhanov (1964) trata- se de um
costume, cerimônia que se repetem invariavelmente a partir de normas preestabelecidas
Artaud, a partir de seu pensamento sobre o rito no teatro, vimos surgir um sentimento
nostálgico sobre suas origens culturais, este sentimento foi desperto a partir do intercâmbio
com as culturas orientais que ainda têm por base o rito como elemento. Sob esse aspecto,
criam-se diversas produções cênicas que se permite entender uma volta ás origens do
acontecimento teatral, através dos ritos organizados num sistema ritual.
Acredito que para se organizar um ritual é necessário ter um entendimento mínimo
sobre quais ritos se quer criar, recriar e convencionar, e para se fazer isto é necessário definir
um condutor, um mestre de cerimônias, que se coloque a disposição para experimentar o
duplo – ritual e teatro
É aqui que podemos pensar o meu papel de ator, nessa empreitada artística-ritual. O
ator/atriz como xamã, conhecedor/a das relações imbricadas neste proposito, poderá facilitar a
ordenação dos ritos do teatro num ritual cênico.
Então minha proposta de trabalho parte deste entendimento: eu serei o ator condutor
do ritual cênico. A principio pensei, em ser um mestre de cerimônias que executa toda a
operação mágica, mas, face ao contato com o xamanismo eu resolvi hifenizar os termo ator e
xamã (ator-xamã) e desempenhar a função de ator e narrador do ritual.
Outra delimitação que eu convencionei Artaud, para este meu ritual teatral, foram os
sistemas simbólicos místicos: Tarot e Cabala. Com base nesses sistemas construí todo o ato
teatral da Instauração Cênica Y. Isso sem esquecer que, idealizo essa relação do teatro com o
xamanismo através da figura do Ator-Xamã. Mais adiante te explicarei com mais detalhes
46
estes sistemas simbólicos utilizados em meu processo criativo. Acredito que isto seja assunto
para uma outra carta.
Como eu já te falei anteriormente, convencionei uma relação imagética a partir das
cartas do Tarot de Waite para desenvolver meu pensamento de escrita dissertativa, como
também na idealização poética e dramatúrgica da minha instauração cênica. Desta forma eu
utilizo as cartas de Tarot para abrir e conduzir uma reflexão sobre o teatro e seus elementos.
Cada imagem arquetípica do Tarot está impregnada de significado simbólico sobre as
experiências humanas, tanto no sentido material, quanto filosófico e espiritual. Assim,
pretendo a partir dessas impressões arquitetar possíveis ligações com o teatro, pelo teatro que
eu acredito – teatro ritualístico, conduzido por um ator-xamã.
Nesta carta direcionada a você eu utilizo a imagem do tarot – O Mago, como
inspiração para falar da alusão do ator como um condutor místico num ritual teatral, ou seja
essa associação tem o objetivo de situar o atuante como o executor do ato ritualístico na
condição de um mestre de cerimônias, um mago em seu processo operativo ou mesmo um
xamã executando sua magia religiosa.
Então, meu caro amigo, vou lhe dizer a seguir, o que eu penso quando associo a carta
do Mago com o trabalho do ator num espetáculo como ritual, no caso particular a instauração
cênica.
O mago é um oficio desempenhado nas doutrinas ocultistas, sobretudo na alquimia. A
função de um mago é de conduzir um ritual de transformação de energias. Os xamãs podem
ser considerados também como magos ou mesmo como “medice man” como expõe Mircea
Eliade (2002)
O mago é um xamã mais capacitado no sentido de sistematização do conhecimento
místico. Geralmente os xamãs passam o conhecimento para os seus descendentes de maneira
oral e todo aprendizado é memorizado mentalmente, sem que haja uma forma de registro. A
prática mística do mago é comumente muito parecida com os xamãs e feiticeiros, o que irá
diferenciar é a forma como o mago sistematiza seu aprendizado. “O mago pode adotar um
diário de magia que recebe o nome de Breviário” (ZELL-RAVENHEART, 2016, P.31)
O Arquétipo do Mago que abre esta carta endereçada a você tem a função de informar
que o ator-xamã é também um sistematizador de conhecimento. Assim, me coloco na
condição de ator-xamã e mago para tratar das reflexões sobre a pesquisa e produção artística
da Instauração Cênica Y e vou lhe explicar os meus procedimentos criativos.
47
Edith Waite em seu Sistema de Tarot22
nos fala que o Mago é a revelação da vontade.
Quando a carta surge em um jogo, ela pode ser lida, ou entendida como a transformação por
meio da vontade. Assim Waite (2014) expõe:
O mago é um condutor de um poder superior que domina todo o mundo material [...]
a palavra mago evoca a imagem de um ilusionista, cujo único poder é a habilidade
manual para a desorientação . Não obstante em muitos aspectos o Mago é também
similar ao ilusionista. Ele está seguro de sua destreza e de sua habilidade para
produzir os efeitos que deseja. Seu poder real provém de forças externas a ele e não
tem poder sem estas fontes, pois depende de quem esta atrás do cenário, de modo
igual ao ilusionista. [...] com seus poderes, o Mago tem influência sobre tudo: teoria
e prática, lógica e emoção, pensamento e ação (WAITE, 2014, p.48)
Deste modo Artaud, eu utilizo a imagem do Mago do Tarot de Waite como metáfora
para falar do trabalho do ator/atriz. Então meu caro amigo, eu vos convido a comparar o
ator/atriz a esse mago. O corpo, a voz e a sua imaginação são o conduto de acesso ao mundo
criativo, no qual os instrumentos de atuação ganham materialidade. O domínio do gesto dos
atuantes é semelhante à habilidade manual do ilusionista para produzir a imersão e fascínio no
público. O ator metaforizado mago tem a capacidade de buscar elementos das forças externas
para a sua criação. Os elementos externos além de servirem de inspiração para o processo
criativo, também servem de meio para se empregar as forças do ato criativo.
Artaud gostaria que você observasse a Carta do Mago. Na imagem vemos o mago
diante de uma mesa posta com quatro objetos: Uma taça, uma moeda cunhada com o
pentagrama, uma espada e um bastão de paus. Cada objeto representa um elemento da
natureza: a taça a água, a espada o fogo, o bastão o ar, a moeda a terra. Esses objetos
simbólicos servem de meio para o mago conduzir o seu ritual alquímico. Não sei se você sabe
Artaud, que na alquimia todo processo é físico-mental. Através de manipulação dos elementos
o alquimista prepara as formulas utilizando todo um processo de mentalização, por exemplo,
o mago se concentra mentalmente sobre a taça cheia de água e tenta imprimir no material
físico sua emoção, é como se tentasse energizar a água com suas mãos. Veja que na imagem
da carta, o mago tem uma mão voltada para os céus e outra para o solo, o seu gesto é de
ordem cerimonial, há nele uma evocação das forças superiores e inferiores, que para a
filosofia Hermetista é correspondente ao preceito “o que está acima é como o que está
abaixo.” A filosofia Hermetista, é um campo de conhecimento das ciências ocultas que estuda
o apanhado das obras de Hermes Trimegisto, sacerdote egípcio que codificou em 7 princípios
22
Conjunto de 78 cartas de tarot produzido em 1910, baseado no Tradicional Tarot de Marselha.
48
as forças regentes do universo. Segundo a tradição egípcia estes princípios estavam inscritos
numa tábua de esmeraldas e foram transcritas para uma obra filosófica chamada de “O
Caibalion”, que trata-se de um livro que foi escrito por três supostos discípulos de Hermes
Trimegisto, chamados de Três Iniciados. Este livro se encontra facilmente nas bibliotecas de
assuntos místicos e se constitui como uma informação inicial de quem estuda alquimia.
Imagem nº 2- recorte da mesa do Mago, em destaque os elementos da magia.
Ao analisar a imagem da carta do mago, percebemos os símbolos arquetípicos (água,
fogo, terra e ar) postos à mesa. Essa representação alude para destacar que a sua energia está
voltada para os objetos. A mesa tem função de altar e ao mesmo tempo de palco. A
distribuição dos elementos nessa disposição física tem o objetivo de restringir a energia para
que ela não fuja. Por trás da mesa o mago assume uma posição cerimonial. “ele,
evidentemente, tem um plano. Está a pique de fazer alguma coisa - de representar para nós”
(NICHOLS, Sallie. 2007, p.59)
Carl Gustav Jung entendia o arquetípico do mago ligado à consciência e
autocompreensão que Jung denominava individualização. Esse acesso ao individuo interior
pode guiar nossa viagem pelo o mundo oculto dos nossos eus mais profundos. “Pois, o ser
humano sempre reconheceu a existência de um poder que transcende o ego, e procurou
propiciá-lo através de ritos mágicos” (NICHOLS, Sallie. 2007, p.59)
Acredito Artaud que o mago, o xamã e o ator/atriz possuem uma mesma capacidade
artístico-espiritual de trabalhar com o seu interior emocional-estético, e trazer em seu corpo
uma densidade muscular, intelectual e mental capaz de produzir efeitos próximos aos rituais
de transe.
49
É sob os aspectos do transe meu caro amigo Artaud, que eu gostaria de observar o
papel do ator num teatro-ritual, no qual ele executa simbolicamente a transmutação do
chumbo em ouro. Só há obra alquímica quando há um mago envolvido energeticamente com
as matérias em seu estado original, a fim de torná-las sublimes. Nesta analogia o ator é um
individuo que trabalha com estados de energia em constante transformação. Neste sentido,
lembro-me do seu texto O Teatro e a Alquimia, quando você fala do paralelismo entre os
campos de conhecimento do teatro e da alquimia:
Entre o teatro e a alquimia há ainda uma semelhança maior e que metafisicamente
leva muito mais longe. É que tanto a alquimia quanto o teatro são artes por assim
dizer virtuais e que carregam em si tanto sua finalidade quanto sua realidade.
(ARTAUD, 1987, p. 50)
Ao meu entender, a alquimia e o teatro se apoiam na expressão mental do individuo
humano e através de processos de concentração sensorial nos efeitos do cérebro e do corpo.
Para eu ser mais claro eu gostaria de explicar isso através da figura do ator/atriz quando se
encontra num estado de encenação – neste momento há uma percepção sensorial diferenciada
no corpo.
O ator/atriz e o alquimista na condição de mago, xamã e mestre de cerimonias têm a
sua disposição talvez os mesmos atributos espirituais e materiais, elementos nascedouros do
gesto ritualístico. Nos compêndios de alquimia encontramos o “operador” ou seja aquele que
executa a transmutação e concentra suas forças mentais na intenção de produzir efeitos na
matéria. Assim o alquimista precisa trabalhar com as “emoções” que são chamadas pelos
iniciados da Alquimia de “temperos”
Para ilustrar esse pensamento Artaud, eu gostaria de usar um exemplo: em seu
laboratório o alquimista manipula o fogo no cozimento da matéria a ser transformada, ele
eleva a altura das chamas, as diminui e procede variando entre chamas altas, baixas e médias.
Durante esse ato ele canta orações, reza e até mesmo recita versos como se estivesse tentando
contagiar a matéria. Há nesse aspecto algo que parece com o teatro e ao mesmo tempo parece
com os procedimentos dos xamãs que brincam com os elementos externos para despertar a
atenção do doente a ser curado. Estas mesmas relações são abordadas diversas vezes por
você:
É preciso notar a estranha afeição que todos os livros dedicados à matéria alquímica
professam pelo termo teatro, como se seus autores tivessem sentido desde logo tudo
que existe de representativo, ou seja, de teatral na série completa dos símbolos
através dos quais se realiza espiritualmente a grande obra (ARTAUD, 1987, p.51)
50
Então meu caro Artaud, a imagem do mago que eu utilizo aqui pode ter a mesma
relação com a figura do xamã. Na verdade o xamã é um mago operativo, da mesma forma que
o alquimista é um xamã transformador da matéria. Ambos utilizam as forças da natureza e
elementos cênicos na condução da magia.
Dentro dos estudos dos arquétipos do Tarot, Carl Gustav Jung, desenvolveu uma série
de estudo sobre os símbolos e os arquétipos do Tarot. Para ele o mago é uma expressão do
artista místico, consciente de sua arte e de sua magia - isto quer dizer que ele sabe tirar
proveito das técnicas de transe, de dissimulação de ilusionismo, recursos dramáticos
encontrados nas obras de ELIADE (2002) CASTAÑEDA (2013) STRAUSS (2004)
O mago do Tarot, será como um espelho para minha pessoa. As suas qualidades de
artista, de feiticeiro ou mesmo um presdigitador, para desenhar um perfil para o papel do ator-
xamã que estou buscando. Eu sou esse mago, moram em mim as forças interiores de
autocompreensão e da vontade executora.
51
CARTA À SACERDOTISA - ELEMENTOS MÍSTICOS DE INSPIRAÇÃO NA
COMPOSIÇÃO DA INSTAURAÇÃO CÊNICA “Y”
Figura 3. A Sacerdotisa do Tarot de Waite – a sabedoria oculta (gravura do tarot de Waite, 2009)
52
CARO ARTAUD, SAUDAÇÕES!
Esta carta é dedicada a sacerdotisa do Tarot de Waite. A sacerdotisa é também
chamada em alguns outros tarot de A Papisa, devido a influência cristã que sincretizou-se no
jogo de cartas. E eu que pensava que os cristãos detestassem tudo o que estivesse ligado à
prática esotérica, mas no tarot vamos encontrar algumas outras imagens que dialogam com
elementos bíblicos, como é o caso da carta da Torre e da carta do Julgamento.
No Tarot de Waite, o arcano da sacerdotisa se encontra disposta entre duas colunas,
uma de cor negra e outra de cor clara, ambas fazem menção as duas colunas do templo de
Salomão, Jaquim e Boaz e representam a estabilidade de forças do pensamento, bem a
oposição das coisas no mundo - o duplo, como você coloca: “ em todas as coisas existem dois
lados, dois aspectos” (ARTAUD, 2015. P.81). Observamos ainda na imagem um véu
estendido entre as duas colunas, este por sua vez representa o mistério oculto do inconsciente
que não podemos entender, mas que através dela podemos aprender a controlar. A figura da
sacerdotisa posta entre as duas colunas tem como epístola principal o equilíbrio entre a
potência e a criação, entre o masculino e o feminino.
O Arcano da Sacerdotisa no Tarot representa a voz interior ao nosso inconsciente .
“ela é a manifestação do inconsciente e do mistério em nosso mundo cotidiano” (WAITE,
2009, p.52) a sacerdotisa é a base de onde surge o poder manipulado pelo Mago. Ela é o
potencial ilimitado que permite ao Mago transformar e criar o que deseja sua vontade. Para o
ocultista Eliphas Lévi23
, nos rituais de magia alquímica é primordial o casamento das forças
de gênero masculino e feminino. Neste caso, o tarot estabelece um principio alquímico na
sequência mago – sacerdotisa, que é expresso na ação da manipulação material do mago e na
emanação de energia da sacerdotisa “ enquanto o Mago enfoca seus poderes no exterior para
conseguir um efeito significativo no mundo, a grande Sacerdotisa nos mostra que também
podemos usar estes poderes num nível interior” (WAITE, 2009, p.53)
A grande sacerdotisa no Tarot de Waite representa o inconsciente e intuição, pois o
inconsciente nos fala com símbolos. Desta forma este arcano é a personificação de todos os
mistérios filosóficos e místicos.
23
Eliphas Lévi, cujo nome verdadeira era Alphonse Louis Constant, nascido em 1810, havia
se preparado para ser sacerdote católico mas desistiu do seminário e se dedicou ao jornalismo
e aos estudos místicos. É de sua autoria o famoso livro esotérico Dogma e Ritual de Alta
Magia, publicado em 1854.
53
Quando a sacerdotisa aparece em jogo de Tarot costuma indicar que o consulente esta
aberto aos sussurros que chegam do interior, segundo Waite (2009) há respostas a
inquietações a serem reveladas. Apenas é necessário saber receber as mensagens. O
ensinamento desta carta diz que tudo que se necessita saber já existe em nosso interior.
A carta da Sacerdotisa Artaud, foi escolhida por mim para falar dos mistérios místicos
que me inspiram na criação da instauração cênica “Y” a representação simbólica deste arcano
se relaciona com os sistemas místicos que eu escolhi para compor o meu processo criativo.
Na criação da instauração cênica “Y” eu adotei dois sistemas: O Tarot de Waite e o
diagrama cabalístico chamado Árvore da Vida. Para um melhor entendimento sobre esses
elementos, explanarei a seguir, justificando sua utilização no processo criativo. Primeiro meu
caro Artaud, sinto-me na obrigação de esclarecer sobre o que é o Tarot, sua origem e sua
finalidade e como o Tarot de Waite foi estruturado. Desta forma poderei objetivar uma
resposta sobre a sua utilização na condução de minha instauração cênica.
Não se sabe a origem certa do Tarô. O seu próprio nome já é um mistério. “muitas
hipóteses têm sido formuladas sobre a origem e significado do Tarô, e todas até agora têm
sido inconstantes” (HOUDOUIN, 2013 p.17), desta forma, não se encontram respostas claras
e precisas às questões essenciais: o que é o tarô e o que ele significa? Porque foi elaborado e
porque ele existe? Estas perguntas são respondidas de várias maneiras. Há uma diversidade
de informações sobre estes questionamentos. Assim como é impossível determinar sua
origem, podemos apenas fazer alguns apontamentos sobre seu aspecto periférico através dos
séculos e pontuar algumas questões sobre o seu desenvolvimento.
Uma coisa é certa meu caro amigo, vários estudiosos em Tarô, o colocam como um
instrumento filosófico que possibilita o autoconhecimento do ser humano, do mundo e do
Universo. Para Waite (2009) esse sistema apesar de ser um elemento esotérico se constitui
também como um elemento de base cultural que permite sua realização efetiva, que para
Houdouin(2013) essa base cultural se constitui em si de código cosmológico arquetípico e
como um sistema simbólico sagrado e atemporal.
O Tarô é considerado pelos estudiosos místicos, HOUDOUIN (2013); WAITE (2009);
LEVI(2014) uma chave de acesso filosófico-espiritual que permite a cada individuo que o
utiliza, compreender os princípios de direção e governança do mundo de maneira a
estabelecer uma consciência de religação com a fonte universal da criação e do poder divino
emanado sobre o homem.
O Tarô é composto por setenta e oito cartas, que segundo Waite (2009) recebem o
nome de “lâminas”. Assim as 78 lâminas são divididas em 22 cartas que recebem o nome de
54
triunfos ou Arcanos Maiores e ainda 56 cartas constituídas com os naipes de paus, ouros,
copas e espadas, bem como as cartas da corte que são cavaleiros, valetes ( ou príncipes) reis,
rainhas e princesas, conjunto que recebe o nome de Arcanos menores.
Etimologicamente o termo tarô tem sido objeto de pesquisa há séculos. Na literatura
temos uma infinidade de obras que levantam suspeitas sobre a origem e significado da
palavra. A investigação de maior credibilidade é atribuída a Antoine Court de Gébelin, que
realizou na historia do esoterismo a primeira análise do Tarô. Ele acreditava que o termo teve
origem no Egito.
Para Court de Gébelin o termo corresponde aos radicais egípcios, TAR =caminho e
RO ou ROG = real (royal); assim, Tarô seria o Caminho Real. Entretanto outro pesquisadores
emitem outro possível significado. Para Pietro Aretino, o termo seria derivado do grego
Etaroi, cujo significado é companheiro. Para o escritor místico Jean-Alexandre Vailant, a
palavra é oriunda do nome da Deusa fenícia Astart, ou Astaroth. O mesmo pesquisador aponta
uma segunda possibilidade, sugerindo que o termo pode ter surgido da filosofia do Tao, que
significa “O Caminho”. Entretanto, Waite (2009) afirma que o termo é originário da palavra
francesa tarocco, mas em nenhum momento aponta o seu significado. Há ainda outra
etimologia de grande aceitação entre os estudiosos:
Encontramos o termo tarô na forma de Tarock na Germânia (Alemanha), e Tarocchi
(plural de Tarocco) na Itália. Partindo dessas palavras, os pesquisadores propuseram
como origem etimológica a palavra árabe Turuq, plural de Tarîga, significando
“caminho”, mais propriamente “processo” ou “método” [...] a palavra árabe Tarîga
vem na verdade do sânscrito Tarika, que significa “barqueiro”, compreendendo a
noção de via, de veículo[...] essa palavra sânscrita Tarika deriva, por outro lado de
Tari, que significa barco. Porém, todas essas palavras , bem como aquelas às quais
se ligam tem por raiz o termo Taru, que significa árvore (HOUDOIN, 2013, p. 20)
Meu caro Artaud peço, que observe nesta citação o termo sânscrito Taru, significando
árvore justifica encontramos no Tarô a inserção do sistema cabalístico-místico dos hebreus
chamado A Árvore da Vida das Sephirotes, que consiste em um diagrama composto por dez
esferas organizadas num conjunto. As esferas estão interligadas por caminhos que explicam a
relação dos poderes universais emanadas à criatura humana. A árvore da Vida é uma espécie
de resumo da filosofia da Cabala. Trata-se de um código visual que tem por finalidade
auxiliar o estudante da cabala a compreender de forma rápida a noção e supremacia destes
poderes.
55
Figura nº 04 – diagrama da árvore da vida – o desenho que resume o conhecimento da cabala
num conjunto de 10 esferas (Gravura do Livro o Tarot Universal de Waite, 2009)
Num breve olhar sobre o diagrama da árvore da vida, imaginamos que não há
nenhuma aparente relação com o Tarô. Mas quando tomamos as cartas em mãos e
começarmos a fazer as devidas relações da simbologia das lâminas com as esferas,
percebemos que existe uma ínfima ligação entre esses dois sistemas simbólicos.
Os sistemas místicos presentes dentro do Tarô começaram se estruturar com as
pesquisas de Court de Gébelin, que entusiasmado com o jogo de cartas, enveredou em buscar
compreender as simbologias presentes nas lâminas. Assim, ele reconheceu que naquele
sistema havia uma infinidade de segredos místicos oriundos da Filosofia Hermética, que é
atribuída a criação pelo sacerdote egípcio Hermes Trimegisto, que viveu no Egito no século
IV antes da era cristã. Hermes Trimegisto após sua morte foi elevado à condição de Deus,
recebendo o nome de Thot, que por sua vez teria dado origem ao sistema filosófico da Cabala,
que falaremos mais adiante.
56
Foi com Elyphas Lévi que a relação do Tarô com os mistérios egípcios, com a cabala e
com alfabeto hebraico teve sua ampla conexão, entrelaçando essas correntes filosóficas num
sistema de relações com a Árvore da Vida. Para Lévi (2014) é possível associar as 22 cartas
com as 22 letras do alfabeto hebraico, como também associar aos 22 caminhos presentes nas
esferas do diagrama cabalístico da Árvore da Vida. Desta forma para cada caminho da Árvore
da Vida, Elyphas Lévi atribuiu uma letra hebraica, um numeral e um arcano maior do Tarô,
compondo desta maneira uma síntese entre imagem e filosofia da cabala. Veja o exemplo:
,
Figura nº05: a correspondência das cartas do Tarô no diagrama da Árvore da vida (biblioteca
cabalística de Colin Low, 2001)
57
Peço desculpas Artaud, se eu pareço demasiado extenso nestas informações, mas
acredito que sejam de suma importância para justificar o uso do Tarô na composição de
minha instauração cênica. Como já te falei anteriormente, o tarô é a base de minha inspiração
para compor o meu processo criativo. Assim, solicito ao caro amigo leitor um nível paciência
para que eu possa contextualizar os elementos que inspiram a criação da instauração Cênica
“Y”. Mais adiante, você irá entender o motivo dessa contextualização. Pois “Y” traz
simbolicamente à cena, através do cenário, os caminhos da Árvore da Vida em formato de
trilhas por onde os espectadores visitantes caminharão durante a execução da Instauração
cênica.
Retornando ao assunto, a associação do Tarô com a Árvore da Vida se expressa na
seguinte relação: Caminho da Árvore, Lâmina do Tarô e Letra Hebraica. Te darei um breve
exemplo deste esquema:
Caminho Tarô Letra hebraica Numeral
1 (kether a Chokmah) O Louco Alef 0
2 (kether a Binah) O Mago Beth 1
3 (kether a Tiphareth) A sacerdotisa Gimel 2
Tabela nº 01: Associação cabalística da relação Tarô e Árvore da Vida
Então meu caro Artaud, a associação demonstrada acima, é praticamente a mesma
relação com que eu lhe escrevo estas cartas. Se prestares atenção, irás perceber cada carta que
lhe escrevo é dedicada a um Arcano do Tarô, que segue a mesma sequência dos caminhos da
Árvore da Vida. A primeira carta que eu lhe escrevi é dedicada ao Louco, que no tarô inicia
uma jornada em busca do conhecimento. Na minha concepção o Louco inicia uma jornada de
inspiração em busca de uma vivência xamânica, espiritual e mística. Experiência possível
para encontrar respostas sobre o papel de ator-xamã.
Na concepção de minha instauração cênica O Louco é o ator da primeira cena da
intervenção cênica, ele age sob o princípio criador e o impulso emocional de buscar novas
formas de ver e sentir o mundo. Não pretendo aqui detalhar esse processo, para que não haja
interferência na compreensão do tema que estou expondo. Este assunto será discutido em uma
próxima carta onde vou mostrar o modo como eu idealizei a instauração cênica.
Espero que estas linhas de escrita possam te esclarecer. Dentro em breve te darei mais
explicações de como eu utilizarei as cartas do tarot na criação cênica.
58
CARTA DA IMPERATRIZ-ALQUÍMICA PARA O ATOR ANTONIN ARTAUD
Figura nº 06 a imperatriz do Tarot de Waite
59
Caro amigo
Esta carta enviada a você tem a função de descrever as inspirações que tive para
desenvolver artisticamente minha instauração-cênica “Y”. Ela é dedicada a Imperatriz do
Tarô de Waite.
A lâmina da Imperatriz tem como desenho uma rainha grávida sentada num bosque
verdejante. Ela segura em uma de suas mãos um emblema de coração e na outra um cetro real
com uma cruz-alquímica. A imperatriz tem como significado-chave a revelação de uma ação
frutífera que se inicia. É a manifestação da criatividade do “espirito-essência” com a
unificação da mente e do corpo. Esta carta representa o ponto mais elevado da filosofia
mística-dualista. Pois, concebe a compreensão do corpo físico e o entendimento do mundo
material, de onde geralmente provém o prazer dos sentidos da vida em sua riqueza de
diversidade e formas. Sobretudo a carta da imperatriz representa arquetipicamente a imagem
da mãe. Através dela podemos visualizar imageticamente o sentimento de materializar ideias
em forma física, dar gestação ao pensamento e fazê-lo surgir no campo do concreto.
Devo lhe dizer Artaud que a imagem da Imperatriz representa para mim a vontade
artística, a intenção de concretizar pensamentos em encenação. E é sob os seus auspícios que
eu idealizo concretamente a ação de estruturar cenicamente e ritualisticamente os elementos
da Instauração-Cênica “Y”
Como já te contei em cartas anteriores a Instauração- Cênica “Y” é uma produção
teatral ritualística inspirada no Tarô de Waite e no conjunto de esferas da Árvore da Vida.
Inspiro-me nos Arcanos Maiores do Tarô e os materializo conforme o meu pensamento para a
cena. Cada Arcano foi estudado primariamente conforme a sua representação mística para
depois ser transportado para o meu mundo teatral. Todas as vezes em que eu jogava tarô, eu
imaginava que aquelas imagens falavam diretamente comigo. É como se eu estivesse
comtemplando uma obra dramatúrgica. Cada arcano revela uma emoção, guarda um segredo,
esconde tramas e códigos virtuais que são muito semelhantes à arte dramatúrgica.
Não sei Artaud, se sou um místico que atua teatralmente ou se sou um ator que
representa um místico. Apenas sei com precisão que esse é o “meu duplo” é meu teatro-
duplo. Jogar tarô para alguém é representar um jogo de possibilidades, um diálogo de
pergunta e respostas. O tarô possibilita para o seu jogador uma experiência de conexão com o
mundo criativo das ideias. Cada carta exige uma emoção do tarólogo, ou seja, aquele que
facilita a leitura das lâminas.
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Quando você diz “é qualidade distintiva das coisas de teatro não poderem elas estar
contidas nas palavras, ou mesmo nos esboços. Uma encenação se faz em cena” (ARTAUD,
2014, p.143) eu entendo perfeitamente isso. Sei que qualquer matriz de pensamento criativo
precisa ganhar vida própria. Assim eu o faço com os elementos que construí para “Y”, mesmo
me baseando nos arcanos, não me deixei levar unicamente pelo o universo imagético das
cartas, mas deixei que elas surgissem em cena.
Acredito que neste ponto em que eu cheguei, devo ser mais claro com você,
explicando objetivamente a descrição de meu processo de trabalho. Então, vou ao tocante de
como tudo começou.
Primeiramente eu queria encenar algo que me agradasse e que eu não precisasse
justificar por que fiz “isso” ou “aquilo” em cena. Estou cansado de defender minha arte dos
críticos, resolvi fazer minha arte sem preocupação de agradar. Garanto que seus livros me
ajudaram muito neste sentido. Bem meu caro, então resolvi apenas ir fazer teatro sem
nenhuma preocupação. Segundo, convidei alguns atores que pensavam de certa forma no que
eu queria, então partimos para o trabalho.
O inicio da Instauração Cênica “Y” partiu do principio do “nada” eu não sabia o que
ia surgir e nem sabia no que poderia resultar. Não havia texto ou roteiro prévio, não possuía
uma ideia organizada de encenação, tudo era abstrato. Eu sabia apenas Artaud, que o mundo
místico a que eu estava acostumado iria falar mais forte. Eu tinha como ponto de partida o
desejo de encenar uma obra que fosse cerimonial, ritualística e que possibilitasse a minha
pessoa uma experiência de êxtase, de sentir espiritualmente os elementos do teatro, de dar
corpo aos espíritos das ideias.
Com esse ideal convidei atores: Barbara Andrelli, Cristiane Fragoso, Ed Silva,
Leonardo Santiago e Lourdes Santos, artistas que estavam a algum tempo sem atuar e de
certa forma estavam desmotivados com o seu trabalho de ator/atriz. A princípio, reuni cinco
atores e os convidei para uma experiência na chácara onde resido. Falei rapidamente sobre os
meus ideais e os perguntei se estavam dispostos a fazerem uma jornada mística teatral. Após a
aceitação de todos, já partimos para a experimentação criativa.
O nosso primeiro encontro de trabalho se deu numa noite escura e sem lua de 31 de
outubro de 2016. Estávamos reunidos em minha chácara à noite e saímos para passear numa
mata que se encontra nesta propriedade. Caminhamos embaixo de árvores bem altas, cujas
copas formam uma espécie de abóboda natural. Estando sob a escuridão da floresta, solicitei
aos atores que respirassem profundo de forma a sentir o cheiro da floresta. Eu queria apenas
que aqueles atores respirassem tranquilamente e pudessem sentir se havia diferença naquele
61
ambiente, se ele era cotidiano para a percepção dos atores que moram numa cidade. O barulho
noturno da mata, as réstias e sombras de luzes e o cenário natural, ofereciam para os atores
uma experiência um tanto diferente e assombradora.
Assim meu caro amigo da arte, vejo que o meu processo criativo de teatro pode tomar
um ambiente “natural” como um cenário, que em um sentido mais amplo pode ser um
elemento dramatúrgico espontâneo para despertar a atenção dos atores e dos espectadores.
Adentrar no escuro de uma mata é como mergulhar num sonho onírico, onde o
mistério atrai e assusta ao mesmo tempo, onde as forças naturais despertam a atmosfera
magnética das magias. Desta forma, Artaud o nosso primeiro encontro teve o único objetivo,
permitir aos atores uma mudança do lugar cotidiano do teatro, para poder vivenciar um
contato com as forças externas.
Então você irá me perguntar: que forças são essas? E eu irei lhe responder que essas
forças são antes de tudo elementos físicos que por sua vez despertam as emoções e os
sentimentos. Acredito que não há nada de estranho nisso, apenas estamos desacostumados de
algumas experiências simples, que por sua vez estão dispostas nos elementos da natureza.
Quando entramos numa mata à noite, tendo apenas uma lanterna na mão, somos convidados
naturalmente a sentir uma tensão emocional espontânea. O barulho do vento nas galhas, os
grilos e cantos de pássaros formam uma trilha sonora natural que de certa forma amplia a
compreensão dos sentidos da audição. As sombras e os reflexos de luz escassa forçam as
retinas a experimentarem uma nova ótica. Os pés em contato com as folhas secas e as raízes
imprimem no tato uma sensação de textura não cotidiana para o individuo habituado com os
ambientes urbanos.
Acredito meu caro Artaud que o corpo-mente do ator/atriz nesta situação poderá
responder de forma diferenciada e assumirá outra sensibilidade físico-emocional. Essa
experiência é semelhante às experiências de um xamã que encontra na natureza, mecanismos
externos para despertar suas forças espirituais.
Podemos neste sentido encontrar uma relação com o conceito de realidade não comum
que é abordada pelo antropólogo Carlos Castañeda (2013), e que diz respeito às
experimentações místicas a partir do contato com a natureza. No qual o antropólogo, através
de estados meditativos, se desperta imageticamente para um mundo onírico, sem que
precisasse dormir. Os seus sentidos ficaram aguçados e sua percepção tática-sonora-visual
permitiu a ele sentir sensivelmente aquilo que ele “normalmente” não conseguiria
experimentar.
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Vejo o meu fazer teatral como uma forma sagrada de fazer Arte. Os alquimistas
acreditavam que o processo de transmutação devia antes de tudo acontecer de forma interna e
mental para depois se materializar externamente. A alquimia para eles era chamada de “A
Grande Arte”, pois envolvia um processo de manipulação manual e operação mental. Assim,
o alquimista devia se conectar mentalmente com o mundo externo para que a mente pudesse
sentir e se comunicar com aquilo que estava fora.
O Ator que eu aspiro ser, busca inspiração e se desenvolve neste universo xamânico,
espiritual e alquímico. O xamã conduz os seus seguidores através de um ritual próprio e
experimentado por ele através de sua sensibilidade interna mental com os fatos externos a si
próprio. O alquimista consagra os mistérios da transmutação com o seu senso emocional.
Através da emoção o alquimista tempera os elementos, ou seja, durante a manipulação dos
metais, ele poderá orar, cantar, recitar versos e regular as chamas do fogo com a intenção de
energizar os metais e acelerar o processo de transformação da “matéria bruta” em “matéria
sublime”
Com este proposito é que venho desenvolvendo minhas inspirações teatrais. A
Instauração-Cênica-Ritual foi pensada e idealizada para ser um ritual teatral, no qual a minha
“Pessoa Artística” é o guia cerimonial da ação teatral. Desta forma, o meu trabalho de ator é
organizado em um conjunto de vivências, de aprendizados tradicionais das artes cênicas
recorrentes de minha formação acadêmica e de aprendizados místicos recorrentes de minhas
experimentações místicas do tarô, alquimia e xamanismo. E é a partir destes elementos que
estruturei a instauração-cênica Y, organizada para ser encenada em um lugar metafórico e
sagrado. – o meu Laboratório Alquímico-Teatral.
Como sabes Artaud, o alquimista realiza suas experiências em seu laboratório, que é o
seu lugar sagrado. Para o ocultista Eliphas Levi (2014) a palavra laboratório deriva do latim
labor – trabalho e orare que significar orar. Dessa junção de palavras surge a máxima
alquímica “ ora, ora et labora” que para os alquimistas expressa, rezar, rezar e trabalhar. O
trabalho do alquimista em seu laboratório é repleto de cânticos, orações, mantras, meditações
e declamações de poesia. Tal iniciativa tem o objetivo de criar as condições emocionais
favoráveis para o trabalho de meditação e consciência do mago, como também purificar e
energizar o local de trabalho.
Tomando como metáfora o laboratório do alquimista, eu providenciei um espaço
exclusivo para ser o local da instauração cênica, e neste ambiente realizo constantemente uma
prática de trabalho semelhante. Acredito meu caro Artaud que podemos condicionar os
lugares e as coisas com nossas energias pessoais, que por sua vez condicionará uma vibração
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espiritual-mental. É semelhante ao “se mágico” defendido por Constatin Stanislavski(1994)
que permite ao ator acreditar emocionalmente no que está realizando, ter fé cênica.
Entretanto, eu acredito existir uma diferença básica entre você Artaud, e Stanislavski, pois
este faz de conta que vive com esse “se magico” e você Artaud realmente vive, não faz de
conta.
Retornando ao local escolhido para realizar a instauração cênica Y; bosque que tem
uma extensão de uns 100x300 metros de comprimentos, repleto de árvores, cujas copas são de
um tamanho deveras considerado. Entre as árvores, tratei de desenhar e executar uma série de
esferas e trilhas, que foram projetadas a partir da imagem da Árvore da Vida. Cada esfera
torna-se uma espécie de palco natural para a encenação. As trilhas são caminhos de condução
aos espectadores que se locomovem de um ponto ao outro no cenário natural, é semelhante às
encenações dos mistérios medievais. Desta forma os espectadores que assistem a instauração
cênica, estão dentro do cenário e assumem uma postura participativa. Os mesmos podem
escolher quando solicitado, qual caminho seguir. Enfim, todo o processo artístico se
estruturou a partir do lugar, e dele surgem os “espectros” do meu teatro.
A ideia de escolher um lugar fixo para a minha Instauração-Cênica, parte da inspiração
de seus escritos quando você afirma e deseja para o seu teatro um lugar novo e que fosse
diferente das salas tradicionais de teatro. Assim, meu caro amigo que me inspira, uso como
justificativa tua descrição sobre a necessidade de um novo espaço:
Foi por isso que abandonando as salas de teatros existentes atualmente usaremos um
galpão ou uma granja qualquer e o reconstruiremos segundo os processos que
resultaram na arquitetura de certas igrejas e lugares sacros e de certos templos do
Alto-Tibet.(ARTAUD,1964, p. 115, apud VIRMAUX, 2000, p. 70)
Neste espaço idealizado por você Artaud, o espectador poderia ser colocado no centro
da ação e o espetáculo se desenvolveria ao seu redor, preconizado por você como um
espetáculo giratório. Isso nos dias de hoje já é algo comum, vários artistas já realizaram tal
façanha. Mas, foste o pioneiro nesta ação.
Na minha Instauração-cênica-ritual o espectador se locomove de um cenário a outro e
ocupa o centro das esferas construídas no bosque. Neste local os atores realizam a ação teatral
e ritual. Cada esfera há uma maneira particular de encenação. Pois a delimitação e a estrutura
física obriga aos atores o contato direto com o espectador, muitas das vezes o espectador é
rodeado pela a cena, tendo que se adaptar ao espaço que se transforma constantemente.
No bosque eu estruturei o cenário natural com base no desenho da Árvore da Vida:
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Figura 07: Diagrama da Árvore da Vida e seus respectivos caminhos cabalísticos (biblioteca
cabalística de Colin Low, 2001)
Peço Artaud, que observe a figura acima. Cada esfera do desenho foi transposta para o
cenário físico, onde eu tratei de fazer pequenas clareiras entre as árvores, considerando o
formato circular e a disposição imagética de cada uma delas. Entre as clareiras fiz trilhas de
ligação de forma semelhante aos caminhos cabalísticos da figura acima. Na verdade
transformei o bosque em um cenário natural repleto de árvores e trilhas, tornando-se um
jardim místico, um teatro ao ar livre.
O cenário de Y foi elaborado a partir do entendimento da geometria sagrada exposta
pelo filosofo e matemático Pitágoras, que considera a natureza como fonte de uma geometria
matriz que se desenvolve a partir de uma proporção primária, que por sua vez se reproduz
sem perder sua harmonia. Este conceito meu caro é absorvido pelos primeiros construtores de
templos e lugares sagrados, como você mesmo reconhece ao falar do teatro que você quer
fundar: “mandarei arrumar e reconstruir segundo os princípios que tende a se aproximar de
certas igrejas, ou melhor, de certos lugares sagrados” (ARTAUD, 2014, p. 79) assim, busquei
me inspirar em seu desejo para criar o meu espaço sagrado para a Instauração-cênica-ritual.
Resumidamente meu caro poeta, a Instauração-cênica-ritual foi idealizada para ser
feita num espaço sagrado, destinado unicamente para a minha prática de magia cerimonial,
ritualística e teatral, na qual eu sou condutor.
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O “meu teatro” pertence unicamente a mim – o “eu criador”. Tenho um espaço para as
minhas criações cênicas. Este espaço, que eu chamo de “Y” é o meu laboratório cênico-
alquímico, onde eu na qualidade autoproclamada de ator-xamã, ator-mago e ator-louco
experimento possíveis encontros dos elementos do teatro com a magia-cerimonial e ritual e
busco envolver o público na participação e efetivação do ato teatral.
Então meu amigo das artes virtuais, o ator-xamã que eu acredito ser, é um ator que se
incorpora de todas suas vivências, crenças e misticismos para o desenvolvimento de sua arte,
e sua mística se faz presente o tempo todo, tanto no campo cotidiano, quanto no mundo das
artes. Este ator-xamã cria, se apropria e adapta rituais do campo místico-espiritual para o seu
processo criativo, de modo que estes campos se encontram numa única “obra’” – uma obra
dupla, assim como o seu teatro duplo misto de teatro e alquimia; teatro e a peste; teatro
metafisica; teatro e vida.
Então Artaud, você irá me perguntar de onde vem o conceito de Instauração-cênica
que eu nomeio a categoria desta minha criação artística, antes mesmo que lhe falo, devo lhe
confessar que eu não sabia classificar o que eu estava fazendo. A principio eu imaginava que
eu podia categorizar como espetáculo-ritual ou performance ritual. Entretanto, eu não
considerava termos suficientes significativos para classificar minha produção, uma vez que eu
tinha um produto artístico duplo, um bosque-cenário e um espetáculo teatral que era realizado
neste bosque. Eu refletia que quando não fosse realizado a encenação do espetáculo, o bosque
conseguiria descrever um significado artístico, podia mesmo guardar nos elementos de seu
cenário resíduos de informações do espetáculo efêmero que ali foi representado. É como
adentrar uma igreja após uma cerimonia religiosa e observar as imagens sacras que mesmo
intactas na condição de objetos sacros foram testemunhas do ritual religioso; os restos de
parafina derretida são resíduos de pedidos, orações e confissões; flores decorativas e cinza de
incensos são elementos que denunciam o evento que ali aconteceu. Olhar estes elementos nos
permite sentir de alguma forma que o evento religioso e espetacular ainda consegue nos
contagiar com sua vibração energética.
Ao descobrir na obra de Nara Salles (2004) o termo Instauração-cênica me possibilitou
encontrar uma categoria com a qual eu podia encaixar minha criação artística, pois o termo
contempla o duplo: a materialidade das artes visuais e as virtualidades das artes cênicas. Para
ser mais objetivo Artaud, vou lhe fazer uma síntese conceitual de onde eu adotei o termo.
Instauração é uma terminação que é utilizada pela curadora de artes Lisette Lagnado, a partir
do processo criativo do artista plástico Tunga quem promoveu o uso concreto do termo
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instauração, com a obra “xipófagas capilares” (1981) na qual duas jovens se movimentavam
unidas por seus cabelos. Desta forma Salles explica:
O conceito, para Lagnado é cunhado a partir dos termos performance e instalação,
significando um híbrido destas categorias. A instauração traz e guarda dois
momentos: um dinâmico e um estático. De acordo com Lagnado, a acepção de
instauração supera a característica efêmera da performance, a instauração deixa
resíduos, avançando no sentido de perpetuar a memória de uma ação, o que lhe tira
o caráter de ser somente uma instalação. (SALLES, 2004. p.04)
Desta forma Artaud, O termo instauração se diferencia do termo instalação que é
comumente usado no campo das artes visuais. A instalação se concretiza na existência de um
ambiente montado para um determinado evento que pode ser destruído durante o decorrer da
ação no ambiente, ao contrário da instauração, que não pode ser é destruída no decorrer da
ação, podendo no entanto, acontecer uma transformação do ambiente a partir de uma estrutura
estabelecida, havendo ainda a possibilidade de uma construção no espaço, intervindo assim
no cenário. Se apropriando deste entendimento, Nara Salles (2004) utiliza o termo
“instauração” conjugado ao termo “cênica”, para sugerir que:
Naquele local são instauradas ações cênicas e a ambientação não será destruída,
mas alterada. Embora utilize para o princípio da montagem no processo criativo,
os conceitos de performance, não denomino a encenação como performance,
porque no meu entendimento, o termo instauração é mais abrangente e a
ultrapassa. (SALLES, 2004. p.04)
Desta forma a instauração-cênica elucidada por Nara Salles (2004) me serviu como
representação categórica para a criação cênica, neste caso eu também conjuguei ao termo
Instauração-cênica a terminologia ritual, para esclarecer que naquela instauração-cênica
também haveria nesta ação a incidência da realização de um ritual.
Na Instauração-Cênica-Ritual “Y” o espaço criado para a apresentação cênica pode ser
observado posteriormente como um elemento de artes visuais, que haja neste momento a
encenação teatral, que conceitualmente para Nara Salles (2004) este ambiente pode evocar
“imagens instauradas na memória dos espectadores, provocando
questionamentos. Contemplando, dessa forma, um momento dinâmico e um estático,
característica da instauração.” (idem, p.04)
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Espero ter sido claro com a exposição acima. Pois, é com base nessa característica que
surgiu a minha jornada mística em busca do meu papel de ator-xamã na instauração-cênica-
ritual, na qual eu sou o “instaurador da cena” junto com os atores e atrizes.
Sim Artaud, eu sou o “instaurador da cena” não sou apenas um ator que encena uma
concepção teatral de alguma ideia, eu sou o cocriador da ideia e da cena. Eu, detendo a
experiência do mundo do teatro e empossado dos elementos presentes na instauração-cênica,
sou o condutor do processo de ritualização do teatro com a instauração-cênica e também
ritual.
A instauração como já falada anteriormente pertence ao campo das artes visuais, sendo
ela a materialidade de um acontecimento que deixa “resíduos” então desta forma a
instauração-cênica desenvolvida por mim terá como marco orientador criativo a
materialização do acontecimento cênico. É quando o teatro morre e deixa resíduo, ou seja,
restos de seu corpo criativo. O que sobra de meu teatro? Contemplar o seus restos é aceitar
que ele sempre morre a cada acontecimento. O teatro é uma arte de morte e você Artaud sabe
disso melhor que eu, quando expôs o sentido de seu teatro de cunho metafisico:
Se nós fazemos um teatro não é para representar peças, mas para conseguir que tudo
quanto há de obscuro no espírito, de enfurnado, de irrevelado, se manifeste em uma
espécie de projeção material, real. Nós não procuramos denunciar como isto se
produziu até aqui, como isto sempre foi o fato do teatro, a ilusão daquilo que não
existe, mas ao contrário fazer aparecer ante os olhares um certo número de quadros,
e imagens indestrutíveis, inegáveis, que falarão ao espirito diretamente. Os objetos,
os acessórios, os próprios cenários que figurarão no palco, deverão ser entendidos
em um sentido imediato, sem transposição: deverão ser tomados não pelo que
representam, mas pelo que são na realidade. A encenação propriamente dita, as
evoluções dos atores, não deverão ser consideradas senão como signos visíveis de
uma linguagem invisível ou secreta. Não haverá um só gesto de teatro que não
carregará atrás de si toda a fatalidade da vida e os misteriosos encontros dos sonhos.
Tudo o que na vida tem um sentido augural, divinatório, corresponde a um
pressentimento, provém de um erro profundo do espirito, tudo isto será encontrado
em um dado momento sobre o nosso palco (Artaud, 2014. P.38)
Então meu caro Artaud, veja que há semelhança entre o espirito de seu teatro e a
concepção da instauração cênica, em ambas as concepções há uma necessidade que o
acontecimento deixe um elemento residual que pode ser acessório, figurino, cenário e etc,
sendo possível a estes elementos comunicar em sua contemplação física um estado de
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emoção. É semelhante aos antigos hieróglifos, que além de ser um signo visual guardava
conjuntamente uma simbolização metafisica, temos ai o encontro de um duplo: o duplo
efêmero do teatro e o duplo da matéria simbológica.
Ao refletir continuadamente sobre o seu espírito do teatro e a concepção de
Instauração cheguei ao entendimento que minha instauração-cênica era o meio onde eu iria
desenvolver o meu ritual de encenação e para isso eu iria recorrer aos elementos físicos dos
espaços e dos resíduos que ficam nele. Eis então a minha instauração-cênica-ritual a que eu
chamo de “Y”.
Y é o meu duplo teatral = o local da encenação e a exposição do resíduo artístico na
pós-encenação. Assim, será possível a quem assistiu a instauração-cênica poder contemplar
em seguida a “instauração” ou seja o outro meio da expressão artística “Y” os seus cenários
naturais, e os cenários criados serão elementos de exposição visual repleta de simbolismo
teatral. É como o esqueleto depois da decomposição. É neste momento que sabemos que o
teatro morreu, temos agora, apenas seus restos que serão oferecidos em sua memória. E isto é
algo que pertence ao campo do ritual. É como se o Deus Dionísio morresse toda vez que o
ritual acaba, mas seu sangue e seu corpo serão entregues simbolicamente aos seus
“degustadores”.
O que seria o teatro senão uma degustação? O teatro não é apenas o cumprimento
etimológico de sua palavra “lugar onde se vê”, mas também o lugar onde é possível sentir,
sentir todos os cinco sentidos da sensibilidade humana: paladar, tato, audição, visão e olfato.
Estes sentidos são semelhantes aos cinco elementos da natureza: Ar, Terra, Fogo, água e éter.
O éter é a matéria essencial e invisível de vida de todas as suas expressões.
É a partir deste principio que temos a criação da Instauração-cênica-Ritual “Y”. que
eu organizei em um conjunto de 3 elementos : instauração (local do resíduo) artes cênicas
(ação efêmera do acontecimento teatral ) e Ritual (procedimentos simbólicos entre o campo
material e o estado efêmero da emoção) a partir dessa conjunção pretendemos proporcionar
ao observador-instaurador da cena compreender que ali existe algo que vai além do teatro e da
arte – ali está a Arte viva, possuidora de corpo (resíduo) e de Espírito (a ação efêmera teatral)
trazendo para a encenação instauradora um tipo de teatro idealizado por você:
Nós concebemos o teatro como uma verdadeira operação de magia. Nós não
dirigiremos aos olhos, nem à emoção direta da alma; o que nós procuramos criar é
uma certa emoção psicológica onde as molas mais secretas do coração serão postas a
nu [...] fora portanto da maior ou menor consecução de nossos espetáculos, os que
vierem a nós compreenderão que participam de uma tentativa mística pela qual uma
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parte importante do domínio do espirito e da consciência pode ser definitivamente
salva ou perdida (Artaud, 2014. p.39)
Então meu caro Artaud, eu me aproprio do que você fala acima: “os que vierem a nós
compreenderão que participam de uma tentativa mística pela qual uma parte importante do
domínio do espírito e da consciência pode ser definitivamente salva ou perdida.” (idem)
O meu projeto de montagem da instauração-cênica-ritual considerou algumas questões
discutidas por você em seus textos, principalmente quando você nos convida a pensar o teatro
como uma obra metafísica, mística e uma criação virtual entre teatro e alquimia. Desta forma,
ao idealizar o meu processo criativo tomei como palavras-chaves alguns elementos discutidos
por você na obra o teatro e seu duplo. São estes os elementos: teatro, tarot, alquimia,
misticismo, cabala, xamanismo, mitologia e êxtase . Estes elementos serviram de base para
todo o processo criativo da instauração-cênica-ritual “Y”.
Voltemos então a nosso ponto de partida, a concepção da instauração-cênica. Como
falei no inicio desta carta, juntei alguns atores com o proposito de elaborar um espetáculo
místico, que mais tarde tornou-se a instauração-cênica-ritual Y. Os atores convidados para
este processo criativo, assim como eu, não pensavam em estudar uma dramaturgia escrita,
todos estavam cansados da experiência tradicional do teatro. Entretanto, eu tinha o proposito
de me guiar por aquilo que você expõe na obra O Teatro e seu Duplo (1985) e pretendia desde
o inicio começar um processo liberto do texto. E assim começamos a experimentar o local
destinado a instauração-cênica.
Quando eu falo em experimentar o local da instauração, eu quero dizer, sentir o lugar
cênico no corpo do ator, conhecer a atmosfera teatral de onde surgirá a nossa encenação.
Então, a questão que se coloca aqui é muito simples: se colocar no espaço da encenação e
sentir toda a atmosfera que nos cerca enquanto instauradores da cena. Para isto, tratei de me
basear nas experiências de um xamã quando este adentra um espaço sagrado. Neste caso, o
xamã entra em contato com as possíveis energias que se expressam ali através dos elementos
presentes no local, vento, terra, folhas, pedras, arvores e animais. E assim, estes elementos
vão dialogar diretamente com o xamã. Tal experiência é descrita por Gabriel Weisz (1999)
quando ele observa nos xamãs algumas experiências externas que são conduzidas para o
corpo. Weisz (1999) entende por “exteroceptividade” a percepção que nosso cérebro articula
o mundo interior do mundo exterior, os proprioceptores são resultantes da percepção que o
sujeito faz da sua posição no ambiente é de ordem da percepção do mundo interior. O
universo significante do corpo e do psiquismo organiza-se na categoria proprioceptiva
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correspondente ao corpo, categoria mediadora entre o exterior e o interior. Desta mediação,
participam as categorias exteroceptivas e interoceptivas. A categoria proprioceptiva trata da
posição do ser vivo no seu meio. Posição que percebe a maneira pela qual o ser vivo recebe
impressões sensoriais e reage no seu meio ambiente.
Com base no entendimento de Weisz (1999) sobre as impressões sensoriais é que
exploramos exercícios físicos de andar, caminhar sentindo as impressões no ambiente da
instauração-cênica, ou seja, o bosque. Este bosque é repleto de árvores, e como o nosso
processo de concepção artística era realizado a noite, o ambiente tornava-se mais denso e até
mesmo assombrador. Assim, os atores conseguiam naturalmente ser tomado por um
sentimento de estranhamento e medo. Os barulhos produzidos na mata por pássaros noturnos,
ventanias, galhos que se quebram, davam ao ambiente um ar de mistério.
Ao entrar neste ambiente de mata, eu comecei a pensar como eu poderia me relacionar com o
ambiente. Neste sentido, busquei a inspiração de um xamã quando ele inicia uma jornada
mística em busca do desconhecido. Para isto tomei como base as descrições da obra O
Espirito do Xamã feitas por Mike Williams (2013). Neste livro o autor faz uma breve síntese
sobre as experiências de um xamã e suas vivencias como o mundo. O que eu encontrei nesta
obra foram indícios do trabalho de xamã e que de certa forma essas experiências não eram
completamente desconhecidas de minhas práticas e que de certa forma dialoga com o seu
pensamento quando você fala: “O ator não passa de um empírico grosseiro, um curandeiro
guiado por um instinto mal conhecido[...] No entanto, por mais que se pense o contrário, não
se trata de ensiná-lo a delirar”( ARTAUD, 1985, p.147)
Passei minha infância em uma chácara rural no agreste de Pernambuco. Nesta época vi
de perto muitos curandeiros e curandeiras, chamados também de rezadores e rezadeiras. Estas
pessoas costumavam curar praticamente uma infinidade de doenças e realizavam curas em
animais que eram mordidos por cobras e adoeciam segundo eles por “olhado” que trata-se de
uma contaminação espiritual através da inveja de terceiros. Estes curandeiros que observei em
minha infância realizavam simpatias com ervas, fogo, terra, benziam águas e magnetizavam
animais. Esta minha vivência me influenciou decisivamente a pensar isso, não apenas como
uma experiência espiritual invisível, mas como um meio fluídico, que gera a materialidade da
cura através do gesto do curandeiro. O que penso a esse respeito, se aproxima de certa forma
com a sua colocação:
A crença em uma materialidade fluídica da alma é indispensável ao ofício do ator.
Saber que uma paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da
matéria, dá sobre as paixões um domínio que amplia nossa soberania. Alcançar as
paixões através de suas forças em vez de considerá-las como puras abstrações
71
confere ao ator um domínio que o iguala a um verdadeiro curandeiro ((
ARTAUD, 1985, p.154)
Estas vivências ainda estão muito vividas em minha memória e foram de certa forma
conduzida para minha prática de vida e minha experimentação artística,
Na concepção da instauração-cênica-ritual eu assumi a condição de um mestre de
cerimônia, um xamã, um guia espiritual e artístico responsável por conduzir o processo de
criação e os atores-instauradores.
Eu sei que é muito prepotente de minha parte a intitulação de xamã. Entretanto, devo
lhe confessar Artaud, o artista é em si um ser prepotente. Eu sou ator, mesmo que possa
parecer loucura assumi o papel de xamã, ou melhor dizendo de ator-xamã. Conjuguei a minha
prática de vida e minha formação naquilo que eu acredito ser possível acontecer.
Para que esta carta não se torne extensa devo encerrar aqui a descrição de como
cheguei ao entendimento do que eu queria fazer – a instauração-cênica-ritual. Esta será uma
possível categoria em que eu tratarei de construir a minha encenação mística. Dentro de breve
lhe escreverei outra carta relatando como esse ator-xamã surgiu em minha vivência de
trabalho artístico.
Faço votos de uma boa leitura e espero que tenhas entendido daquilo que descrevo.
72
CARTA DO IMPERADOR-XAMÃ AO ATOR-POETA ANTONIN ARTAUD
Imagem nº 8 - carta do imperador no Tarot de Rider-Waite
73
Caro Artaud,
Na jornada do louco no tarot chegamos diante do imperador. O imperador no Tarot de
Waite significa uma base sólida para a realização de uma vontade inabalável. O imperador
simboliza o poder da mente para dar forma ao mundo. Assim como a lâmina da imperatriz, o
Imperador representa um aspecto ideal dos pensamentos que queremos dar forma. Ele
diferentemente da imperatriz, consegue materializar objetivamente o seu mundo, ele regula e
ordena as coisas para que tudo tenha sentido. O Imperador é o arquétipo do pai, sábio e
generoso. Ele nos ensina que toda regra tem um motivo e uma razão de ser. Ele é o
governador, o gestor e o líder, é aquele que ordena a estrutura e conduz ao invés de ser
conduzido.
Eu escolhi esta lâmina para descrever as minhas primeiras experiências de como eu
represento o meu papel de ator-xamã na instauração-cênica-ritual. Antes mesmo de narrar a
você algumas de minhas vivências, quero contar uma história que aprendi durante o meu
aprendizado sobre o tarot.
Como eu já falei em outra carta, O Louco representado no tarot inicia uma jornada
mística durante sua evolução. Nesta jornada, o Louco encontrou em seu caminho um Mago
que lhe ensinou como fazer escolhas sobre atributos de vontade e com a Sacerdotisa aprendeu
a receber ajuda e inspiração para tomada de atitudes, em seguida ao encontrar a Imperatriz ele
compreendeu como desenvolver seu caminho e conhecer melhor a abstração de seus
pensamentos que tomarão formas no mundo material. Mas é durante o seu encontro com o
Imperador que ele entenderá como desenvolver o seu trabalho para conseguir seu objetivo.
Assim o louco aproxima-se de um grande imperador sentado em sentado em um trono. Ao
observar como o imperador governa o seu reino, o Louco se espanta com a maneira que o
soberano guia com destreza seu império. Curioso, o Louco respeitosamente pergunta como
ele consegue tal façanha. O Imperador: responde: - A vontade inabalável e uma base sólida
são premissas importantes para guiar qualquer trabalho. Para guiar algo e alguém é preciso
estar alerta de forma brava e agressiva.
Após escutar estas palavras o Louco segue o seu caminho com um novo propósito e
tendo em mente uma direção a seguir.
Este Louco sou eu meu caro amigo da arte. Com o arquétipo do Imperador
(governador) eu consegui entender que é preciso ter foco e inteligência para desenvolver o
meu trabalho de ator-xamã e que este imperador é um reflexo de atitude, que por sua vez nos
mostra o domínio das paixões e o triunfo da inteligência governadora e estruturante.
74
O imperador aqui revelado é um aspecto simbólico que o tarot revela sobre o meu desejo de
ser o ator-xamã. Gostaria com precisão de lhe dar todas as citações fundamentadas.
Entretanto o misticismo em minha vida foi incorporado de forma automática. Muitos dos
ensinamentos aprendidos por mim foram de ordem onírica e arquetípica, que entraram em
minha vida de forma espontânea. Há coisas que sei, que eu aprendi, mas não lembro de onde
vieram. Sei que a ciência não tolera fatos desconhecidos. Mas não há muito que fazer. Por
este motivo eu me nomeio como o objeto de meu próprio estudo. Cada coisa aqui descrita é a
partir do que eu sinto e como eu me expresso na arte e na vida. É o meu teatro da vida
cotidiana, em que eu represento a mim mesmo. Assim começo a descrever minhas
experiências.
Um xamã segundo Mike Williams (2013) surge no lugar onde ele mora. Esse lugar é
onde se encontra a sua casa e sua vizinhança. Segundo ele uma jornada se tem início onde se
está. Este local é o ponto de partida para uma grande viagem mística. No meu caso, eu tenho
um sitio, uma chácara provida de um bosque florestal, também chamado de “mata”. Neste
ambiente eu desenvolvi o cenário real de minha instauração-cênica. Este mesmo lugar é para
mim uma espécie de laboratório alquímico e artístico. E é neste bosque onde iniciei as minhas
vivências místicas, é o meu espaço de trabalho teatral e meu laboratório de pesquisas cênicas.
Segundo as descrições de ELIADE (2002) um xamã desenvolve no loco de sua
comunidade ou tribo. Sua função dialoga diretamente com o lugar que ele habita. A sua rotina
de vida naquele ambiente conduz um tipo de energização do local.
Eu tenho desta forma um lugar que considerado sagrado, é a mata que eu chamo de
“Y”, que por sua vez representa um caminho bifurcado. Na mata “Y” construí 10
círculos/esferas para organizar a cena. Entre os círculos há 32 trilhas que ligam um circulo ao
outro. Estes círculos que na cabala são chamados de sephirothes ou séfiras, mas eu as chamo
de “casas”.
Estas casas foram idealizadas por mim para serem um local sagrado. Para Mike
Williams (2013) em várias culturas sagradas os xamãs sabiam se relacionar com o fluxo de
energia presente nos locais sagrados. Essa energia para os antigos chineses é chamada de qi
(“chi”) que significa fluxo. Assim, cada lugar preparado no cenário de minha Instauração-
Cênica tem um fluxo, que foi condicionado durante o processo criativo para despertar uma
sensação ou energia. Esse fluxo é semelhante as sensações corporais sentidas e descobertas
pelos xamãs em sua prática espiritual em lugares sagrados.
Quando comecei a explorar o bosque senti que havia ali uma energia desconhecida.
Cada circulo desenhado na mata foi uma conquista do lugar. Pois, durante a construção do
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espaço aconteceu uma série de “coisas” que nos assombrava, barulhos, gritos, quebradeiras de
galhos, assovios e pisadas misteriosas nas folhas, que ao repararmos nada descobríamos.
Parecia que havia ali algo de invisível que impedia a nossa estada naquele ambiente. Foi ai
que me lembrei dos curandeiros que observei quando criança. Estes curandeiros ao entrar
num lugar que não tinham domínio, eles pediam licença ao local. Desta mesma forma,
comecei a adotar esse ritual. Todas as vezes que eu adentrava ao bosque eu pedia licença,
mesmo sem ver nada na visualidade a minha frente. Eu, também pedia aos atores e atrizes que
acompanhavam no processo, que eles pedissem licença.
Figura 09: planta baixa do cenário de Y. Cada esfera colorida é uma clareira feita na floresta. As linhas
que ligam as esferas são as trilhas por onde os espectadores caminham
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De inicio, o ato de pedir licença para adentrar ao espaço sagrado e teatral era algo estranho,
pois não havia o hábito de fazer essa reverência para poder trabalhar. Mas, ao longo do
processo pedir licença, tornou-se uma atitude comum. De certa forma, pode parecer um
costume de “crendice” e “superstição” que poderia até mesmo ser dispensado de nossa prática
de trabalho; no entanto minha proposta foi justamente agregar princípios ritualísticos ao
processo criativo, e talvez esse fosse meu principal tarefa neste trabalho. Com a repetição de
licenças nos permitimos a estabelecer uma relação respeitosa com um ambiente:
- Com licença! Vamos entrar na cena-ritual. Somos atores filhos de Dionísio,
entidade mitológica do teatro ocidental, representação mítica a quem servirmos.
Nossa arte veio de longe, de eras longínquas que se perdem no tempo. Trazemos
conosco a arte de engenhar encenações. Encenações são projeções da vida e da
morte que desenhamos com nosso corpo e poesia. Somos atores que procuramos
reviver a magia do teatro metafísico, do teatro xamânico, do teatro-alquímico, nos
dê licença e permissão para nossa arte operar (SANTOS, 2018, trecho de ensaio
retirado do caderno de encenação)
Como você pode perceber Artaud, o trecho acima é um recorte do processo de criação
cênica de minha instauração-cênica- ritual “Y”. Eu início o meu processo de trabalho com
uma saudação ao local de maneira a informar que ali se inicia um processo de encenação, é
como uma espécie de oração, como se fosse uma consagração espiritual a arte virtual do
teatro, como você mesmo diz quando fala do teatro e alquimia, que em ambas as artes são
virtuais, ou seja, a arte é produzida no campo das materialidades e mentalizações. Você fala
algo semelhante na obra O Teatro e seu Duplo: “O teatro refaz o elo entre o que é e o que não
é, entre a virtualidade do possível e o que existe na natureza materializada” (ARTAUD,
1985,p.24)
No inicio do processo eu apenas queria sentir o espaço e orientar aos meus parceiros
de trabalho, ou seja, os instauradores da cena, a sentir o espaço, assim como fazia Constatin
Stanislavski (1994) que orientava a seus atores para sentir a energia das coisas no palco e
sobretudo sentir a energia presente no local da representação, ele chama isso de “círculos de
atenção”. Nos círculos de atenção o ator/atriz se coloca num estado de concentração a partir
do ambiente onde ele está localizado durante a encenação, concentrado o ator/atriz se mantém
em atenção numa escala de proximidade física com os elementos ali presente. Essa
experiência é semelhante a vivência do xamã, que busca no ambiente pontos de energia.
Estes pontos de energia são explorados através de um longo exercício físico de sentar, deitar,
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levantar e caminhar por um ambiente demarcado até achar um ponto favorável para explorar a
sua magia naquele momento. Na obra de Carlos Castañeda (2013), está descrita a exploração
feita por ele junto ao feiticeiro Don Juan, que lhe ensina a descobrir um ponto de energia em
sua casa. Assim, Don Juan orienta a Carlos Castañeda a buscar na varanda um ponto de
energia que lhe chamasse a atenção, para isso ele devia andar no ambiente e sentar várias
vezes em locais diferentes, até o momento em se sentir afetado energeticamente. Essa
experiência é algo difícil de se explicar, pois está marcada no nível da sensibilidade subjetiva,
ou seja, cada individuo sente de forma diferente, mas o sentir se revela como uma sensação
corporal de conforto ou satisfação.
Assim como os xamãs os atores/atrizes também buscam pontos de atenção para
operarem sua arte. Isso também é alquimia, pois a alquimia é um exercício mental empregado
para o desenvolvimento de uma operação mágica de transmutação, ou seja transformar uma
energia em outra, um estado de consciência em outro estado. Nos atores/atrizes operamos
nossa encenação a partir do gesto.
Em “Y” eu entendi que eu sou o artista da cena, eu crio elementos e convenciono a
minha sensibilidade corporal como uma energia para as coisas, atribuo aspectos simbólicos
aos objetos de criação. A minha capacidade de mentalização, me dá as condições reais para
exercer o que eu acredito ser um tipo de magia teatral, e que está contida na percepção do ator
na cena e ao mesmo tempo sobre sua atuação e presença. Barba (1995) entende essa magia
como uma energia que é revelada pela potência muscular e nervosa presente em todo corpo
vivo. Entretanto cabe ao ator dar forma a essa energia para dar vida ao seu teatro.
Yoshi Oida (2007) sugere que a energia revelada no corpo do pode está ligada ao meio
ambiente. Assim, os elementos da natureza podem inspirar imageticamente a constituição das
emoções do personagem. Yoshi Oida exemplifica da seguinte forma, a raiva pode ser
associada analogamente com a imagem do fogo. Essa relação segundo Oida (2007) pode
colaborar com ator na exposição de uma emoção mais viva, sendo esta um reflexo da própria
natureza.
Um dos exercícios que eu propus aos atores-instauradores foi caminhar em uma trilha
que eu demarquei dentro da mata. Eu e os atores-instauradores demos o nome deste caminho
de “Trilha do Louco” em homenagem ao Arcano do Tarot “O Louco”. Nossa tarefa nesta
trilha seria caminhar diversas vezes no mesmo local com o pensamento e a concentração
voltada para sentir o vento, visualizar as sombras da noite e escutar os sons do ambiente. Eu
disse aos instauradores: “tornem-se íntimos do lugar, tenham relação com ele, desta forma ele
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ficará gravado em nossas cabeças e nossos passos ficarão marcados neste lugar”. Estas frases
eram pronunciadas por mim como a declamação de uma oração.
Consagrei a trilha do louco ao elemento ar, que é o elemento atribuído ao Arcano do
Louco no Tarot de Waite (2014) então desta forma, o elemento ar, sentido por nós através da
respiração e do vento seria a nossa inspiração para exploração energética do local. Sentir o ar
e produzir o ar pela expiração era um exercício de rotina nesta fase. Outra forma de produzir o
ar era abanar gestos com os braços, balançar os membros do corpo para estimular correntes de
vento ao nosso redor. Apenas isso.
A princípio, os atores-instauradores acharam um exercício simples, ou mesmo bobo,
pois talvez aquilo, não fosse teatro, pelo menos da forma como estavam acostumados. Mas, se
colocaram a disposição para sentir o mundo externo e de que forma ele podia imprimir no
corpo dos instauradores uma sensação. Acredito que o teatro é feito para emanar sensações.
Da mesma forma que os rituais despertam estados de emoções em seus participantes.
Na criação de minha Instauração-Cênica eu defini um objetivo maior, saber qual o
meu papel de criador na possibilidade a ser um possível ator-xamã. O caminho que eu optei
foi deixar que o xamã surgisse em mim como um personagem no teatro. Entretanto a
construção desse personagem deveria ser arquitetado através de uma jornada mística em
busca de meu xamã interior que por sua vez fez despertar em mim o ator – o ator-xamã
A jornada mística que eu vivenciei neste processo para encontrar o meu possível papel
enquanto ator e xamã, foi inspirada nas experiências de Carlos Castañeda, nas leituras sobre
xamanismo de Mike Williams(2013);Mircea Eliade(2002) e Lévy Straus(2004), onde é
possível encontrar alguns apontamentos sobre o trabalho do xamã. Desta forma eu elegi
alguns elementos que tratei de observar com mais atenção, entres eles os objetos de um xamã,
a relação com o espaço ritual e o contato com o elementos naturais: ar, fogo, terra e água.
Carlos Castañeda (2013) descreve através das indicações do feiticeiro Don Juan, que
xamãs portam objetos de poder. Estes objetos de poder inicialmente são semelhantes a
brinquedos de uma criança, no qual é depositado determinado tipo de sentimento. É como se
nós depositássemos energia nestes objetos. É algo semelhante com trabalho de adereços e
objetos no teatro. Entretanto os objetos para os xamãs são energizados e a partir de então
serão para sempre sagrados. Assim tratei de adotar alguns objetos que são utilizados pelos
xamãs. Logo mais descreverei alguns relatos de minha experimentação com estes elementos.
O primeiro objeto de poder experimentado foi um bastão de madeira recolhido no
mesmo bosque em que trabalhamos a instauração. Para Eliphas Levi (2013) o bastão para os
xamãs e para os magos de várias religiões antigas tem uma importância considerável, no que
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diz respeito às operações com a magia da natureza. Ele é semelhante a famosa varinha mágica
utilizada pelos magos medievais, que se tornou símbolo e referência quando se desenha uma
imagem de um bruxo, bruxa, mago e fada.
Figura 10: bastão xamânico feito durante o processo de criação de Y
O trabalho com o bastão meu caro Artaud, começa unicamente com a tarefa de
providenciar este bastão. Para isto é necessário o uso indeterminado de tempo para se iniciar
uma busca do material que deverá surgir o bastão. Seguindo as orientações de Eliphas Levi
(2013) o bastão deve ser feito de um único galho perfeitamente reto, cortado de um só golpe
com uma faca ou foice destinada para este único fim. O corte deve ser feito antes do nascer do
sol. Após o feito, é necessário perfurá-la em todo o seu comprimento sem fendê-la e em
seguida, introduzir uma haste de ferro imantado que ocupe toda a extensão do bastão de
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madeira. Pode se ainda colocar um prisma de pedra na base superior do bastão. Após a
conclusão deste trabalho, deve se iniciar a consagração do bastão.
A consagração do bastão deve durar sete dias e se iniciar na lua nova com a imposição
do objeto em direção a lua. O bastão deverá ser suspenso pelas as mãos do seu dono. Ele
deverá segurar com um gesto de nobreza, digno dos rituais onde se apresenta os objetos de
trabalho.
Figura 11. Trabalho com o bastão – o autor demonstrando um exercício com o bastão.
Foto de Bruno Vinelli, 2018
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Iniciei a consagração no dia vinte e nove de abril de dois e dezenove, era uma noite de
lua nova exatamente às dezoito horas quando o bosque começou a ficar escuro e a luz da lua
brevemente apareceu entre as copas das árvores. Suspendi o bastão em direção aos céus
segurando firmemente e respirando com tranquilidade. Neste momento passei a observar toda
a extensão do bastão como se o mesmo brotasse de meu corpo. Coloquei-o com sua base
inferior preso nas pernas, próximo a região genital de forma a simbolizar um falo ereto que se
inclina em direção à lua. Enquanto eu segurava o bastão eu solicitava verbalmente que aquele
objeto pudesse receber as forças emanadas pela a natureza pelas minhas energias magnéticas
presentes em meu corpo. Após mais ou menos duas horas ininterrupta de consagração eu
conclui o ritual com uma oração improvisada para a ocasião:
Agradeço as forças ocultas manifestadas neste ritual. Que este bastão possa conter as
forças do ar e da lua, as energias minerais da terra e do fogo, o principio vital através
da água que habita meu corpo. Pela força dos quatro elementos eu te consagro
bastão de poder pessoal. Que a Arte da Alquimia se conjugue neste momento com a
virtualidade mística do teatro. Evoé ! (SANTOS, 2018, trecho de ensaio retirado do
caderno de encenação)
Assim meu nobre Artaud, após os setes dias de consagração eu estava pronto para
utilizar definitivamente o bastão no meu processo criativo. Desta forma nos dias de trabalho
criativo da instauração-cênica, eu recebia os atores-instauradores portando o bastão em
minhas mãos. Eu o utilizava como um cetro, e dele me empregava para fazer desenhos nos
ares e na terra. O bastão também empreendia a função de um cajado que servia de apoio nas
caminhadas noturnas. Ao ver o bastão, os atores-instauradores ficaram curiosos e
perguntaram sobre sua atribuição. Após eu explicar sobre sua utilidade, os convidei para
providenciar também um bastão. Entretanto, os bastões dos atores-instauradores não seriam
consagrados da mesma maneira. Pois, o processo ritual do bastão era apenas recomendado
para pessoas iniciadas que estavam dedicados a algum nos estudos xamânicos. Mas eu
expliquei o motivo e prometi fazer isso mais adiante, quando eles fosse iniciados ritualmente
para tal fim. Ninguém replicou e desta maneira continuamos o trabalho com os bastões não
consagrados.
Os bastões não consagrados que portavam os atores-instauradores foram utilizados
para desenvolver um exercício xamânico de desenhar círculos em torno do corpo de cada
participante. Os círculos dentro da prática xamânica simbolizam o universo que cerca o ser
humano. Para Mike Williams em seus apontamentos sobre o espirito do xamã, ele nos
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informa que estando dentro de um circulo, o individuo cria uma analogia de um
microuniverso, onde quem desenhou fica protegido das forças ocultas.
Levei cada um dos atores-instauradores para um local do bosque. Estando sozinhos,
começaram a desenhar um circulo ao seu redor. Pedi-lhes que os mesmos fizessem uma
oração pessoal pedindo proteção para que as forças ocultas não adentrassem o circulo.
Os sulcos marcados no chão expunham círculos que após a realização do exercício, se
configurariam como um resíduo, elemento próprio da instauração cênica. Assim, na manhã
seguinte eu tratei de visitar o bosque com o objetivo de visualizar os desenhos circulares. Ao
observar os círculos de cada ator-instaurador e me coloquei numa disposição para sentir as
possíveis energias deixadas ali. Os xamãs conseguem se conectar com os deixados por outras
pessoas e até mesmo por seus ancestrais. Estar ali, me possibilitou este pensamento, poder
contemplar o resíduo que foi fruto de uma ação empregada numa energia. Entretanto, ao
mesmo tempo eu me perguntava, se havia ali algo importante para o meu trabalho, o que eu
poderia extrair dali? Qual importância deste acontecimento?
Acredito Artaud, mesmo que os atores-instauradores tenham feito os círculos apenas
de forma mecânica, reproduzindo somente o gesto de marcar o chão com o bastão sem
empregar crença alguma, mesmo assim, não podemos descartar que o esforço físico repetitivo
empregado para tal ação já pode ser considerado um aspecto de energia. Aspecto que por sua
vez desperta a atenção e a curiosidade de saber quem fez os círculos? E por que os fez?
Voltar num lugar após um ritual e observar os resíduos neste local, convida a quem
observa poder pensar sobre o que aconteceu ali. É como visitar um local após um crime ter
acontecido ali, haverá um sentimento estranho, como se o ato criminoso pudesse se repetir a
qualquer momento.
Após a experimentação do bastão. Iniciei o trabalho com o fogo que é um dos
elementos-chave para o desenvolvimento das práticas xamânicas. Na obra de Mike Williams,
O Espirito do Xamã (2013) o fogo é descrito como um elemento de invocação para o xamã,
ou seja, ele é naturalmente condicionado a compreender o poder do fogo e a sua utilização nas
práticas cerimoniais.
Lidar com fogo é um tarefa fácil para um xamã. Pensando como xamã eu entendo que
o fogo é instaurador de renovações vitais. Ele é o calor do corpo que gera substância da vida
e por meio do sangue ele circula em todo o corpo. O fogo é a energia inflamada com que o
ator entra em cena e faz a ação acontecer.
O fogo é um elemento de grande significação em “Y” ele ilumina através de tochas,
velas e fogueiras todos espaços da cena. Ele também se encontra em caráter espiritual, pois é
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elemento dramatúrgico que clareia as trilhas do bosque. Sem ele os acontecimentos
ocorreriam no escuro. Ele está presente nos altares através de vela que são oferecidas as
entidades protetoras do lugar.
Figura 12: experimentação com o fogo – processo de construção da Instauração.
Não sei Artaud se você alguma vez fez e acendeu uma fogueira. É uma experiência
incrível e até mesmo teatral. Fazer com que as chamas surjam na madeira é antes de tudo um
momento de muita atenção. As primeiras chamas são muito pequenas e apagam com
facilidade, desta maneira é preferível acender primeiro um monte de galhos finos e bem secos,
que darão por sua vez uma densidade maior ao corpo do fogo, que por sua vez irá queimar os
galhos mais grossos. Contemplar esta simples tarefa é perceber que isto já foi muito
importante para as comunidades mais antigas. A vida da comunidade dependia do fogo e por
este motivo ele se configurava como um elemento digno de ser zelado com apreço espiritual.
Ao acender a fogueira durante a minha experimentação xamânica me dotou de um
sentimento de muita alegria. É como se eu estive preparando uma festa e estive a espera dos
convidados para confraternizar. Este sentimento simbólico é semelhante ao esperamos que as
chamas de fogo se tornem forte para consumir as madeiras.
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Durante uma noite de lua cheia fui sozinho para o bosque. Lá reuni alguns galhos para
fazer uma fogueira. Todo o ambiente estava escuro e misterioso. A noite na mata nos nutre de
um sentimento de que estamos sendo observados o tempo todo. Enfrentando as sombras da
noite que esconde os galhos, eu juntei uma pequena quantidade de lenha e comecei a tocar
fogo com a ajuda de fósforos. As chamas lentamente foram aumentando ao ponto de clarear
uma parte do bosque. Fiz um circulo ao redor da fogueira e me coloquei dentro da área
demarcada. Andei na direção horária e anti-horária do círculo. Eu batia palmas e gesticulava
com braços acenos para as chamas. Eu dancei. Eu dançava para o fogo na tentativa de
comunicar com ele. Eu imaginava que era possível imprimir as minhas qualidades nele da
mesma forma que eu sentia seu calor.
Havia em mim um sentimento desconhecido. Eu parecia uma criança em seu primeiro
contato com o fogo. Por vezes eu assoprava as chamas como se quisesse aumentá-las.
Saudava o fogo com exclamações de “vivas”. Eu estava sozinho com o fogo, pleno atraído
pelo seu mistério. Algo de erótico nesta relação me satisfazia. Embriagado por esse
sentimento, retirei as vestes que eu portava, e ficando nu, dancei para o fogo. Lembrando-me
do trabalho dos xamãs, eu improvisava versos e canções de saudação. Meu ânimo estava em
êxtase com tudo que estava acontecendo ali. Foi quando eu percebi que as chamas começaram
a se agitar da mesma forma que me agitava. Começava o grande diálogo com o fogo, algo
semelhante com o trabalho do alquimista que cante para as chamas de fogo durante a
operação de transmutação dos metais.
Fiquei neste processo até que toda fogueira se consumiu restando somente as brasas e
as cinzas. Ao final eu me encontrava completamente exausto ao ponto de me debruçar no solo
para aliviar o cansaço. Deitei-me de bruços e contemplei a manhã que já vinha nascendo. Ao
meu redor o mundo girava como se eu estivesse bêbado. De repente eu apaguei e entrei no
processo de sono. Uma ligeira sonolência que durou até que os raios solares me acordassem.
Levantei do solo e me ergui diante das cinzas que estavam situadas ao centro do circulo.
Passei ligeiramente a mão sobre uma porção de cinzas. Estando com as mãos sujas espalhei as
cinzas por todo o corpo. Fiquei completamente pintado pelos os resíduos carbonizados da
fogueira. Neste momento havia em mim uma sensação de energia corporal diferenciada, como
se meu corpo estive unido integralmente às cinzas, uma impressão sensorial difícil de
descrever.
Neste momento, eu decidi que o fogo teria que ser um elemento de cena na instauração
cênica Y. Ele estaria presente na iluminação como objeto-ritual, ou seja, ele além de desenhar
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sua função enquanto iluminação, ainda assumiria um aspecto ritual, pois através dele será
possível consagrar ou purificar coisas.
Após vivenciar a experiência do fogo, eu convidei aos atores-instauradores para
vivenciar o exercício com o elemento fogo. Desta forma eu fiz uma fogueira para cada
participante. Escolhi um lugar para cada um e os convidei para acender a lenha. Solicitei a
eles para cantarem para o fogo, soprarem e ao mesmo tempo dançar imitando o movimento
das chamas.
Enquanto os atores acendiam o fogo, eu recitava versos improvisados ao fogo no
sentido de estimular a sensibilidade e percepção sobre o ambiente: “vinde protetores do fogo!
Vinde com vossas chamas de calor e luz! Com suas chamas aquece nossos corpos e purifica
nossa cabeça; salve irmão fogo! Salve salamandras que habitam as chamas! Nos ilumina e nos
aquece”
Nesta noite, cada ator/instaurador ficou isolado em um espaço da mata, lugar que
reservei especialmente para este exercício. Convencionei neste ambiente, um ponto de energia
para cada um desses atores, como se aquele locar fosse uma espécie de lugar sagrado para
este ator-instaurador a que eu chamei de “casa”
A “casa” na verdade é uma inspiração das esferas das sefirotes da Árvore da Vida
como eu já te expliquei antes. Assim o ator-instaurador assumiria nesta sua casa o
protagonismo da ação cênica. Ele deveria se comportar conforme a natureza simbólica de
cada sefirote.
Como já te falei anteriormente, Sefirote é a representação gráfica dos aspectos de
emanação divina de poder na cabala, e que é representada no diagrama da Árvore da Vida
através de uma esfera. Assim, utilizo metaforicamente a forma circular para desenhar as
clareiras abertas na mata. Em cada uma dessas esferas, há presente um ator-instaurador como
patrono da cena, ou seja, o instaurador é o protagonista da cena e do ritual. É como se o ator
fosse um xamã e tivesse que realizar o processo ritual a público que visita aquela esfera.
Caro amigo, as vivências iniciais foram significativas para apontar o caminho a seguir.
Ao meu favor eu tenho um espaço que convencionei como ambiente sagrado para a
instauração cênica, e tenho a colaboração de seis atores que tomam parte desta
experimentação artística.
Em “Y”, como chamamos o bosque onde idealizamos a instauração-cênica, dispomos
da natureza e das formas naturais que fazem do local um teatro ideal para vivenciar as
energias xamânicas, místicas e mitológicas.
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Por este momento, devo encerrar esta carta saudando o seu gênio de artista e de
patrono de um teatro metafisico e místico. Em breve, devo lhe escrever para narrar as
experiências com a criação do texto e como esta ação se aproxima de seu pensamento. Lhe
mandarei noticias.
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UMA CARTA PARA O PAPA-DRAMATURGO – DESCONSTRUINDO A FIGURA DO
ANTIGO DRAMATURGO NATIMORTO.
Figura 13. – Carta do Tarot de Waite-Rider
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Saudações!
Caro amigo da Arte,
Já faz algum tempo que eu não lhe escrevo. Neste transcorrer de tempo, desde as
primeiras experimentações até a estreia de minha instauração cênica Y se passaram dois anos
de trabalho dedicado a exploração artística. Parece um tempo longo para a montagem de um
trabalho cênico, considerando os gastos financeiros e todas as questões que uma produção
artística precisa para colocar em cartaz o seu produto cênico. Entretanto eu não cedi as
pressões que o teatro cotidiano faz para estrear um espetáculo. Primeiramente, porquê não
temos apenas um espetáculo, temos na verdade uma instauração-cênica com caráter ritual.
Talvez seja esse o aspecto que possibilitou o desenvolvimento de um trabalho como este que
é a instauração cênica Y, que por sua vez foge dos padrões comerciais que o teatro da
atualidade exige. Isto não mudou muito, e mesmo as produções mais contemporâneas e que
tem o teatro de mãos dadas com a pesquisa artística, termina criando rótulos e padrões. Por
vezes eu penso o seguinte, mudamos e inovamos o teatro, Mas, dentro de pouco tempo a
classe de artistas e intelectuais da arte engessam e tornam rígido aquilo que era aparentemente
desprovido de um padrão de referência.
É por este motivo Artaud que eu escrevo esta para você, e que eu dedico ao Arcano do
Papa do Tarot de Waite. Essa referência ao Arcano do Papa se justifica no que diz sentido a
condição de seguir regras, doutrinas, paradigmas e metodologias. Por anos, o teatro era o
campo dos dramaturgos, dos autores de textos, que estabeleciam leis de escrita e faziam da
arte teatral o lugar do texto e não do ator. Sabes melhor do que eu isto, e foste tu mesmo que
apontaste isto quando lançaste o Primeiro Manifesto do Teatro da Crueldade, e após isto,
continuaste a tua defesa em outros textos de sua autoria.
Nesta minha carta dedicada ao imperador, irei lhe narrar como surgiu a dramaturgia de
“Y”, descreverei seu roteiro dramatúrgica e as ações que construímos a partir dos estímulos
criativos inspirados no misticismo da cabala, do Tarot, e das Mitologias. Elementos que
fazem parte de minha vida e que eu resolvi transpor para o teatro.
A primeira coisa Artaud que eu fiz, foi buscar entender o seu sentimento sobre o teatro
que você queria montar, para depois entender o teatro que estaria montado. Assim, sem via de
dúvidas, os seus textos me inspiram para esta tarefa. O seu pensamento critico refletiu com os
meus pensamentos sobre o que o teatro pode ser.
O Papa, meu caro Artaud, é um arcano que costuma impor suas verdades. Ele é de fato
um Papa, ou seja, um sacerdote supremo que estabelece e codifica leis e paradigmas como
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verdades imutáveis. Por isso, discutir sobre suas verdades será uma tarefa difícil, uma vez que
sua autoridade é constituída através da fundamentação de fatos e convicções. O Papa se
traduz como aquele que é autoridade num assunto e o defende com poder de crença e
tradição.
O papa defende a tradição, ele faz com que seus seguidores respeitem códigos e
doutrinas, e isso se justifica pela necessidade de não perder os fundamentos de seu
conhecimento e do conhecimento coletivo que levou anos para se consolidar.
Quem seria o Papa no teatro, meu caro amigo?
Acredito que ao longo de tua carreira artística, Artaud, chegaste a conviver com
diversos arquetípicos de “papas da arte”, autoridades que tinham no texto escrito a base sólida
para o seu teatro. Os doutos do teatro são como esses papas. Eles são cautelosos no que diz
respeito a dramaturgia. Alguns, até consideram o texto como referencia maior na arte do
teatro, tirando assim o centro de observação sobre o trabalho do ator/atriz. Em sua época isso
era mais grave, tanto é meu caro, que esboçasse diversas abordagens sobre a potencia do ator
sobre o texto, onde a palavra escrita não é tão importante quanto a presença do ator.
O arquetípico do Papa no Tarot de Waite também está relacionado ao sentido de
metodologia. Esta visão provém da própria função do supremo chefe da igreja católica, que
tem o posto de zelar pela as diretrizes dos dogmas religiosos. É seu dever cuidar das regras e
metodologias de sua igreja. Ele é o ordenador, regula e controla os fluxos de funcionamento
de uma ordem religiosa.
O Papa é o sacerdote-guia que instrui por onde os seus seguidores devem se guiar e
quais rituais podem ser experimentados. Para isto, o sumo-sacerdote irá estabelecer de forma
clara as indicações e preceitos que constituem o foro de sua crença.
Será Artaud que podemos encontrar na figura do dramaturgo uma espécie de Papa? Eu
acredito que a dramaturgia não pode ser considerada o centro da encenação, e sei Artaud que
este é o seu pensamento. Por isto que eu pergunto, até que ponto um dramaturgo pode
defender os preceitos dramatúrgicos instituídos por ele na escrita de seu texto dramático? E
como um autor de peças pode exigir que sua escrita seja seguida de forma fidedigna até a
atuação. Certamente você irá estranhar estas perguntas, visto que são um tanto ultrapassadas
para nossa época. Devemos concordar que na época que em você escreveu O Teatro e seu
Duplo essas perguntas ainda geravam determinadas polêmicas. Graças a sua contribuição,
encontramos na atualidade outro entendimento de dramaturgia e vemos pouca ortodoxia na
figura dos dramaturgos. Entretanto, o império do texto teatral ainda assombra e por vezes
escraviza o fazer teatral de muitos atores.
90
Durante o inicio de experimentação da Instauração-cênica “Y” os atores-instauradores
me cobravam muito sobre a necessidade de ter um texto, um roteiro escrito que servisse de
orientação. Tal reivindicação era oriunda das práticas de trabalhos anteriores, que mesmo
sendo práticas de teatro contemporâneo estavam alicerçadas na tradição do texto escrito. Para
o assombro dos atores, resolvi por abandonar esta escravidão. O texto que usaríamos na nossa
Instauração seria descoberto no ambiente da exploração artística, seria trazido à luz da cena
através dos jogos de improvisação, para depois torna-los textos de fato. Falo isso Artaud, a
partir do que tu pensavas sobre o teatro que você queria fazer. Foi a partir desta inspiração
que me dispus a buscar a criação do texto sobre os elementos que estavam disponíveis no
espaço da encenação e na experiência dos atores que estavam colaborando com o processo.
Caríssimo Artaud, partimos para a descoberta do texto de Y seguindo o seu eco de
manifesto sobre a cena no Teatro da Crueldade:
Suprimimos o palco e a sala, substituídos por uma espécie de lugar único, sem
divisões nem barreiras de qualquer tipo, e que se tornará o próprio teatro da ação.
Será restabelecida uma comunicação direta entre o espectador e o espetáculo, entre
ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação, estar
envolvido e marcado por ela. (ARTAUD, 2014, p110)
O nosso lugar único é o bosque, as terras de “Y” lugar de onde surgirão as ações de
um teatro onde o espectador será marcado pela a ação cênica, será o participante ativo e
também colaborador da cena. Aqui, neste lugar o texto irá imergir de todos os cantos e
espaços. Assim como você propunha:
Não representaremos peças escritas, mas, em torno de temas, fatos ou obras comuns,
tentaremos uma encenação direta. A própria natureza e disposição da sala exigem o
espetáculo e não há tema, por mais amplo que seja, que nos seja interdito.
(ARTAUD, 2014, p.113)
O tema a ser trabalhado em Y tomou como base o misticismo da cabala e os arcanos
do tarot, esta inspiração estaria subordinada a força mística do ambiente e das experiências
pessoais de cada participante da instauração.
Outro ponto de partida para inspirar a concepção de Y, adveio de vosso de programa
do Manifesto da Crueldade, quando falas das forças de magia presente no lirismo do ator em
cena:
Além disso, saindo do domínio dos sentimentos analisáveis e passionais, pensamos
fazer com que o lirismo do ator sirva para manifestar forças externas - e com isso
fazer a natureza voltar ao teatro, tal como queremos realizá-lo. Por mais vasto que
seja esse programa, ele não ultrapassa o próprio teatro, que nos parece identificar-se,
em suma, com as forças da antiga magia. (ARTAUD, 2014. p.98)
Então meu caro Artaud, este lirismo do ator que você fala acima, usado para
manifestar forças externas, fazendo a natureza regressar ao teatro, pode de certa maneira ser
91
associado com a expressão corporal do xamã durante sua prática mágica, quando ele
empossado de uma camada de mistérios realiza as curas como se tivesse atuando. Cada gesto,
voz, orações precisam ser organizadas, para que o doente possa observar realmente a força da
magia, como fala Mircea Eliade:
Também é preciso dizer algumas palavras sobre o caráter dramático da sessão
xamânica. Não estamos pensando unicamente na encenação, por vezes elaborada, da
sessão, que evidentemente exerce influência benéfica sobre o doente. Mas toda
sessão realmente xamânica acaba por ser um espetáculo sem igual no mundo da
experiência cotidiana. O manejo do fogo, os "milagres" do tipo truque da corda e da
mangueira, a exibição de proezas mágicas desvendam outro mundo, o mundo
fabuloso dos deuses e dos magos, o mundo em que tudo parece possível, onde os
mortos voltam à vida e os vivos morrem para ressuscitar em seguida, onde se pode
desaparecer e reaparecer instantaneamente, onde as "leis da natureza" são abolidas e
onde certa "liberdade" supra-humana é ilustrada e presentificada de maneira
deslumbrante. Para nós, modernos, é difícil imaginar a ressonância de tal espetáculo
numa comunidade "primitiva". Os "milagres" xamânicos não só confirmam e
reforçam as estruturas da religião tradicional como também estimulam e alimentam
a imaginação, dissipam as barreiras entre o sonho e a realidade imediata, abrem
janelas para os mundos habitados por deuses, mortos e espíritos. (ELIADE, 2002,
p.424)
Em Y buscamos suprimir os preceitos papais que orientam a construção de uma
dramaturgia escrita para despertar uma metodologia onde a ação fala mais ao espirito do que
as palavras, é algo próximo ao sonho. Assim como você nos diz: “objetos falam; as imagens
novas falam, mesmo que feitas com palavras. Mas o espaço atroador de imagens, repleto de
sons, também falam”(ARTAUD, 2014. p.98)
O texto de “Y” surgiu das improvisações e das experimentações com o espaço,
guiadas por estímulos dados a partir das imagens do tarot e da imagem da Árvore da Vida e os
seus aspectos filosóficos-místicos. Entretanto, esse texto segue o entendimento de uma
dramaturgia que “designa o conjunto das escolhas estéticas e ideológicas que a equipe de
realização desde o encenador, até o ator, foi levada a fazer (PAVIS, 2005. p.113) Esta mesma
noção é defendida pelo encenador Eugênio Barba, que entende dramaturgia como um trabalho
de organização das ações cênicas: “uma técnica para organizar os materiais a fim de construir,
revelar tecer relações” (BARBA, 1995, p.68).
Desta forma meu caro Artaud, podemos ver, que o pensamento de ambos os autores,
refletem ideologicamente o que você fala: “Isso significa que, em vez de voltar a textos
considerados como definitivos e sagrados, importa antes de tudo romper a sujeição do teatro
ao texto e reencontrar a noção de uma espécie de linguagem única, a meio caminho entre o
gesto e o pensamento” (ARTAUD, 2014. p.98)
92
A Instauração-cênica-ritual “Y” buscou encontrar sentido no entendimento do Teatro
da Crueldade que você lançou através do manifesto de 1932, no qual você elenca uma serie
de fatores que estariam em cena através da atuação dos interpretes e através da organização da
ação teatral:
Gritos, lamentações, aparições, surpresas, golpes teatrais de todo tipo, beleza mágica
das roupas feitas segundo certos modelos rituais, deslumbramento da luz, beleza
encantatória das vozes, encanto da harmonia, raras notas musicais, cor dos objetos,
ritmo físico dos movimentos cujo crescendo e decrescendo acompanharão a
pulsação de movimentos familiares a todos, aparições concretas de objetos novos e
surpreendentes, máscaras, bonecos de vários metros, mudanças bruscas da luz, ação
física da luz que desperta o calor e o frio, etc. (ARTAUD, 2014. p.103)
Os fatores de atuação que você descreve não é novidade no teatro contemporâneo. Em
sua época tudo isso parecia praticamente ariscado de colocar em cena, apesar de que ainda
hoje, esses elementos são recebidos com tom de ousadia. E é no campo da ousadia que eu
adoto a tua arte da crueldade na cena “Y”. Acredito que o ambiente do bosque ajudará muito
na ampliação destes fatores cruéis, da mesma forma como você coloca: “Do ponto de vista do
espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação
irreversível, absoluta” (ARTAUD, 2014. p.101)
Uma das ideias que eu tive como marco central da instauração-cênica, foi idealizar um
cortejo, semelhante às procissões religiosas que acompanhavam os mistérios medievais. Desta
forma, o espectador é conduzido por um cortejo em direção ao local da instauração. Na
entrada do local, eu, enquanto mestre de cerimônia recebo todos os espectadores com uma
fogueira acessa. Neste momento, eu aviso a todos que o que eles vão participar não é um
espetáculo comum, trata-se de uma instauração-cênica que tem por caráter uma ação ritual, e
para isto todos devem estar receptivos para as intervenções e ritos que acontecerão durante
todo o processo de instauração. Consideramos essa ação, um elemento essencial em nossa
dramaturgia de Y, ela atende ao ritual inspirado no xamanismo e se configura como um
elemento de encenação.
Antes do espectador-instaurador adentrar o lugar da instauração, a que nós chamamos
de “terras de Y” ele tem que passar por um ritual de purificação. Ao lado da fogueira está
disposto um alguidar de barro, contendo ervas que estão imersas na água. Com estas ervas eu
benzo o público, semelhante a um sacerdote católico quando joga água benta nos fieis
durante a missa. Enquanto eu esparjo a água nos visitantes eu declamo uma oração de
purificação:
Receba esta água em vosso corpo como sinal de purificação. Estejam limpos e
purificados. Pela força da água, elemento sagrado da natureza eu vos limpo vosso
corpo e vossa mente. Oh divina água a qual fomos gerados, nos proteja e nos
fortaleça. Sob os aspectos de sua fluidez possamos ser fluídicos! (Y, 2018)
93
Após a purificação com a água, procedo a purificação com incenso de mirra. Tomando
um turibulo, ou seja, um incensário de brasas, eu realizo uma defumação a todos os presentes.
Esta ação é consagrada ao elemento fogo, pois é através dele que a fumaça é produzida e
dissipada. Tudo isso acontece com o anúncio de orações improvisadas por mim, a partir do
que eu sinto de cada pessoa naquele momento.
Para entrar ao espaço de Y, o visitante deve pedir licença diante de um portão aberto
em uma cerca de arame farpado. Entretanto, a em entrada deve ser feita com joelhos
curvados, estando a pessoa de costa. Este procedimento foi organizado como um ritual,
convencionado como um sinal de humildade para com um lugar sagrado o qual se vai acessar.
O cortejo de Y, segue o desenho do diagrama visual da árvore da vida (veja a seguir o
mapa cabalístico das emanações divinas no mundo físico) cada esfera (ponto) é chamado de
shefira, recebendo o nome de shefirotes o conjunto de 10 esferas. Em cada shefira acontecerá
uma cena em conjunto com os caminhos, que são as ligações entre as esferas. Veja a seguir o
desenho Artaud, e percorra visualmente o caminho entre as esferas, percebendo que há um
arcano em cada trilha. Estes caminhos que estão representados no diagrama, também está
desenhado fisicamente no bosque de “Y”. Assim, os espectadores, em cortejo se locomovem
de uma cena à outra para assistir a representação de cada arcano.
Figura nº 14 – Mapa da instauração-cênica com o nome do arcano de cada cena. Associação
utilizada na concepção de “Y” (imagem da biblioteca cabalística de Colin Low)
94
No caminho entre cada shefira há a presença de um arcano do tarot que convida o
espectador a se locomover de um ponto a outro, enquanto contempla e interage com ele na
representação cênica.
Figura 15: público assistindo uma cena realizada em uma das trilhas(caminhos) de Y
Artaud, para que você possa entender o funcionamento de minha instauração cênica,
irei compartilhar com o você uma síntese de roteiro que elaborei após a experimentação
artística com os atores-instauradores no espaço do bosque. O roteiro a seguir, não é um texto
rígido, ou seja, cristalizado nas palavras de atuação. Em cena os atores-instauradores poderão
a qualquer momento utilizar outras palavras, cujo sinônimo não mudará o sentido e o
significado místico da ação.
Quero destacar Artaud, que o roteiro a seguir não deve ser confundido como um texto
tradicional. Trata-se na verdade de um caminho a seguir, podendo este percurso ser feito de
várias maneiras. Quero destacar que na realização da instauração, há toda uma margem para a
criação espontânea. Nas apresentações que foram realizadas, o público influenciou
decisivamente a condução do roteiro. Pois, é a partir de sua imersão na experiência do ritual
teatral que estabeleço a condução da instauração.
95
ROTEIRO COMENTADO DA INSTAURAÇÃO-CÊNICA- RITUAL “Y”
(vídeo disponível em https www.youtube.com/watch?v=WDdqV9km5_4&t=4010s)
INÍCIO ( PRÓLOGO )
Em frente ao portão de entrada o público é recepcionado por mim, o mestre de
cerimônias. O público se banha com água perfumada, pede licença e de costa entra através de
um pequeno portão.
Figura nº16 – corte esquemático do conjunto das três primeiras Shefiras, local do prólogo e encenação da
cena do Louco
A figura acima representa o mapa das terras de y, ou seja o lugar da representação da
instauração cênica. Para chegar a este lugar o espectador é recepcionado em ponto de
encontro determinado horas antes pela produção. Os espectadores-instauradores fazem a
reserva de seu ingresso pelo telefone da produção. Na hora e no lugar marcado, a produção
executiva da instauração surge através de uma atriz que segura em suas mãos um livro que se
assemelhas com os Grimórios de Magia, não sei se tu lembras Artaud, Mas eu já descrevi
sobre o que é um Grimório em uma de minhas cartas.
A atriz que recepciona o público com o livro em mãos, orienta a todos os visitantes
que irão imergir na instauração. Após o esclarecimento, ela solicita a todos os presentes que
assinem um “termo de inconsciência” que está escrito no livro de registro:
Eu, abaixo assinado na condição de “espectador-instaurador,” me disponibilizo a
adentrar as terras de Y e participar de todas as cenas da instauração-cênica-ritual.
Assim, me responsabilizo unicamente por tudo que possa acontecer comigo. Ao
96
assinar esse termo, eu concordo em contribuir espiritualmente nesta e em outras
vidas com os elementos estéticos-espirituais. Em concordância confirmo minha
participação (Livro Y – 2018, p.48)
O Livro Y, Artaud, é uma espécie de livro registro com a assinatura dos espectadores-
instauradores que participarão da apresentação. Em seguida o público é guiado por uma trilha
da mata em direção as terras de Y. Ao chegar no local, uma fogueira recepciona a todos. O
mestre de cerimônia, função a qual ocupo nesta instauração, se coloca numa tarefa de
purificar os visitantes aspergindo água em suas cabeças para em seguida realizar o ritual de
defumação com incensos de resinas colhidas na região do bosque. Este momento Artaud, se
configura como o primeiro ato ritualístico da instauração. Desempenho nesta tarefa, uma
função semelhante a de um xamã, quando ele realiza um processo de cura, através de rezas,
onde tenta expurgar as doenças e espíritos.
Após cumprirem o ritual de purificação. Os espectadores são recepcionados na Shefira
branca pelos servos de Cronus, que os recebem com chamas acessas e com um cântico:
“Vinde vê senhor do tempo/Carregando em vossas mãos/Vinde almas desejosas/ Rasga o véu
da escuridão (2 vezes)Vinde almas desejosas/ Vinde vê (vinde!) – (2 vezes ) Cronus o tempo!
Figura 17: recepção dos Servos de Cronus aos espectadores-instauradores
97
Cena 1 ( A Jornada do Louco)
Após a saída dos servos de Cronus, o mestre-guia narra a história do Bobo (O Louco)
que abandona sua corte para se aventurar em busca do desconhecido. Surge no escuro um
rosto iluminado. O mestre-guia conduz os errantes (espectadores) para o ponto 2º. Neste lugar
aparece uma criatura que se debruça aos solos, se banha com terra, sente uma energia de
prazer que o domina e o impulsiona a sentir um certo desespero que o faz sair gritando pela a
selva escura. Ecos de gritos ecoam por toda mata escura, vozes perdidas ressoam por todos os
lados avisando aos espectadores-instauradores para não seguirem jornada. A noite ganha um
ar cruel semelhante aos elementos do teatro artaudiano:
Gritos, lamentações, aparições, surpresas, golpes teatrais de todo tipo [...], beleza
encantatória das vozes, encanto da harmonia, raras notas musicais, ritmo físico dos
movimentos cujo crescendo e decrescendo acompanharão a pulsação de movimentos
familiares a todos[...] aparições concretas de objetos novos e surpreendentes,
(ARTAUD, 2014. p.103)
(SOM DE TAMBOR)
Das selvas aparecem sátiros. Estes portam sinos amarrados em seus corpos, com o
objetivo de produzir um som a partir de sua movimentação. Os sátiros se aproximam dos
errantes (espectadores) e jogam terra em suas cabeças
98
Figura 18: cena do Louco – a atriz executa sua própria iluminação
Cena 2 ( A Casa de Binah – A Grande Mãe)
Figura nº 19 – corte esquemático da Árvore da Vida. Cena da Imperatriz. A seta de cor laranja mostra o
percurso do cortejo desde a Shefira branca, passando pela Shefira Cinza e chegando a 3ª Shefira onde
acontece a cena da Imperatriz.
O mestre conduz ao ponto de Nº 3. Em cena, uma mulher dança serpenteando os
braços, e caminha em direção a um homem que se encontra postado ao chão. Ela acaricia seu
corpo enquanto uma serva manipula um jarro de água que entorna no momento em que o
casal chega aos êxtases. A serva canta uma canção que parece uma cantiga de ninar: “vem
meu menino, vem/ Eu vou te levar /Para as profundezas /De minha alma”
Figura 20: Cena da Imperatriz
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Cena 04 - ponto de nº05 ( No Salão dos Espelhos de Geburah)
Figura nº 21 – cena 04 ( No Salão dos Espelhos de Geburah)
O guia-mestre leva os errantes para um salão de espelhos-oráculos. Dentro de cada
espelho habita uma criatura sagrada, são 04 ao total- Um anjo-touro, um anjo-águia, um anjo-
leão, um anjo-homem. As criaturas provocam os espectadores para consultarem os oráculos: “
estás preparado para te veres ao espelho? Estás preparado para ver tua face nua? Vem, te
despe de tua roupa e máscara! Não fujas, não tenha medo. É chegada a hora... olhai, olhai,
olhai”(Y, 2019. P.04)
Figura 14: gravura de autor desconhecido. As criaturas sagradas na visão do Profeta Ezequiel.
100
O mestre guia pede que os espectadores-instauradores observem um espelho circular
de metal. Perguntas devem ser feitas a este espelho. As criaturas sagradas começam a contar o
tempo. O mestre em seguida chama a todos para saírem correndo para a próxima etapa da
jornada mística.
As criaturas desta cena são inspiradas nas figuras descritas pelo livro bíblico Ezequiel,
profeta que descreveu primeira vez estas criatura como anjos antropomórficos. Tais criaturas
também são encontradas no livro bíblico de Apocalipse do Profeta João, e que serviram ao
longo da história como inspiração de código para os alquimistas.
As figuras das criaturas vivas tiradas do imaginário bíblico foram utilizadas na
instauração-cênica como mensageiras do oráculo dos espelhos. Na cabala, a esfera de número
cinco no diagrama da Árvore da Vida é chamada de Geburah, sendo o lugar de reflexão
carmica. Desta forma, eu construí uma analogia entre a shefira de Geburah com as criaturas
sagradas de forma a potencializar o poder da imagem com o significado da shefira, que resulta
em um julgamento sobre as nossas ações enquanto seres encarnados.
Nesta cena-ritual-instauradora as criaturas sagradas são representadas através de
máscaras. Quatro máscaras confeccionadas em papelão para representar o signo de um leão,
de um touro, de uma águia, e de um humano. Quatro cabeças recortadas e montadas em alto-
relevo para favorecer a luz escassa da mata, que ao tocar a estrutura do material, dará uma
dimensão de profundidade. Essas máscaras não foram feitas para usar no rosto e sim, em cima
da cabeça dos atores-atrizes que estão um pano preto sobre o seu rosto e seu corpo, deixando
em destaque apenas o visual das máscaras. As máscaras nesta cena esconde os atores, eles são
manipulares destes elementos de encenação não-humano. Pois, não podemos chamar certos
objetos de inanimados, eles apenas não possuem a vitalidade-biológica dos humanos. Estas
máscaras possuem a vitalidade cênica dos símbolos teatrais, ganham vida através do gesto e
da energia emocional dos artistas-manipulares, que emprestam o seu gesto-muscular para
imprimir um gesto-projeção no rosto destas máscaras. Estas palavras hifenizadas por mim,
expõe pensamentos meus a partir do que eu venho lendo sobre teatro e xamanismo, e não
conferem conceito direto a nenhum autor especifico, cheguei a elas através do simples de
ligar um termo que pode ter ligação com um outro termo. Cheguei a eles através da reflexão
sobre a seguinte colocação da pesquisadora Ana Maria Amaral: O gesto é a vida da máscara,
e sua expressividade pode ser tal que prescindem de palavras. É um teatro de gesto e ação,
sem diálogo, às vezes, alguma narração (p. 57, 1996)
Esta cena, enquanto encenação é uma obra aberta que irá ao longo do tempo receber
outros elementos e outros símbolos. Penso que no futuro desta encenação eu possa criar
101
máscaras para às mãos, algo semelhante a uma luva, que poderá ser modelada como uma letra
de alfabeto, um hieróglifo, que se modificará conforme o gesto da movimentação da mão.
Isto, eu ainda, não apresentei para meu elenco, eles ainda, não sabe o futuro de cena. Eu,
pretendo informar através de uma contação de histórias, na qual eu pretendo já portar uma
luva, e esta será iluminada por uma lanterna.
Acredito Artaud, que gestos empregados sobre certos objetos criados pelo o homem,
podem pertencer tanto ao mundo do teatro como ao mundo xamanismo.
O xamã cria o seu cajado de um galho de Árvore ( bem que se poderia chamar de um
osso de árvore) Galho que em algum momento teve sua vida biológica e animação biológica-
vital. Creio que aqui poderia caber um conceito, mas isto eu não farei agora. Tenho pouco
tempo para explicar conceitos que surgem em minha encenação. O que quero dizer, que tanto
o ator quanto o xamã, podem dar vida ao velho galho-osso de árvore que se tornou cajado.
Esta vida não é biológica e nem vital, ela é cênica, ou seja, vida-teatral, cujo aspecto vital é
emprestado pelo o ator.
O ator e o xamã ao segurar uma máscara e suas mãos e ao por esta, em seu corpo,
estará ofertando parte de sua energia vital para ela, ao ponto de lhe dar vida – isto é teatro,
isto é uma ligação do homem com as forças superiores da espiritualidade, e por este motivo
que o ator Charles Chaplin entoou a seguinte frase: “Não sois máquina!
Homens é que sois!24
”
Cena 5 – ponto nº 06 ( Casa de Tifareth – A Grande Rede)
O guia-mestre conduz os espectadores cantando: “venham, venham, venham....” os
espectadores seguem o mestre dançando em círculos. Ao parar a dança, se deparam com
Aracne, mulher-aranha que recita provocações filosóficas sobre o existir.
A figura de Aracne presente na instauração-cênica foi inspirada na mitologia grega de
mesmo nome. Segundo a mitologia grega narrada por Thomas Bulfinch (2015) Aracne era
uma era uma jovem tecelã que vivia na Lídia, região geográfica da Ásia. Seu trabalho
artesanal era tão perfeito que, em toda a região, Aracne ganhou fama de ser a melhor tecelã
na arte de fiar, tecer e urdir a lã. A fama de Aracne lhe permitiu ser dominada pela vaidade ao
ponto de querer competir com a Deusa Atena, entidade que lhe tinha dado tal talento. Aracne
queria provar sua independência e sua autosuficiência frente às intenções dos Deuses. Desta
24
Discurso proferido pelo Ator Charles Chaplin no filme O Grande Ditador, 1940
102
forma ela enfrentou a Deusa, que ao saber de sua presunção, foi procurá-la disfarçada como
uma velha senhora, que pediu a Aracne que a escutasse seu conselho “Busque entre os
mortais toda fama que desejar, mas reconheça a posição da deusa". mas, a famosa tecelã não
percebeu que se tratava da Deusa Atena e tratou de reafirmar seu desafio: "Por que motivo
sua deusa está evitando competir comigo?". Assim a Deusa, apareceu em sua verdadeira
forma e desafiou a tecelã numa disputa de oficio, na qual ambas teriam que fazer uma peça de
grande complexidade de urdidura. Evidentemente a Deusa foi a campeã, mas a mesma
reconheceu os talentos de Aracne e resolveu não castigá-la. Com a derrota, Aracne tentou se
suicidar com uma corda, sendo socorrida por Atenas que a transformou numa aranha.
Figura 22: cena de Aracne entrelaçando os fios do destino
A Aracne presente na cena de Y, não possui em sua caracterização de uma imagem de
aranha, ela possui as qualidades da mulher tecelã, que urde uma teia feita de barbantes. Ela,
possui um temperamento enérgico e prepotente e figura como um personagem recortado de
um conto mitológico. Aracne recebe os espectadores-instauradores na margem de uma trilha,
ela urdi uma teia de fios grossos e declama algumas perguntas: “quem é tu? Para onde vais?
Há oito ventos e quatro direções”
103
A Aracne em Y tece os fios do destino. Cada barbante trançado na teia, forma uma
tela, conjunto visual que poderá ser contemplado após a apresentação como um elemento de
arte visual. Entretanto, sua função artística é dupla, serve ao teatro e serve a exposição visual.
Comtemplar um objeto utilizado em cena, quando ele está fora de cena, nos faz
imaginar que ele é uma espécie de resíduo da instauração. Anteriormente já te falei disto,
quando descrevi o conceito de Instauração-Cênica proposto por Nara Sales (2004)
A teia de barbante de Aracne se inscreve dentro do entendimento de objeto na arte,
que entendido por Ana Maria Amaral (1996) como um objeto utilizado na arte com fins
artísticos, ele pode ser criado para a cena, pode ter sido trazido e ou mesmo ressignificado.
Ela recebe os caminhantes da terra sagrada e os perguntam para onde eles querem ir.
Ela aponta os caminhos e as direções marcadas pelos quatro ventos. Aracne pergunta ao
mestre de cerimônia, por onde ele quer ir. Em seguida surge uma ninfa que convida a todos
para a próxima cena.
Os artistas do Surrealismo fizeram isso muito bem. “diz-se mesmo que o objeto na arte
é uma invenção surrealista, e que o Surrealismo foi um movimento voltado para o objeto. E o
que o Surrealismo foi um movimento voltado para o objeto” (AMARAL, p. 209, 1996)
gostaria Artaud saber, se você enquanto Ex-Surrealista concorda com esse pensamento. Sei
que você tinha fascínio pelos objetos em cena, a exemplo disso são os manequins que você
colocou em cena. Evidente que não puder assistir sua encenação, as condições de tempo e
espaço não me favoreceram para isso, mas cheguei a esta informação através das informações
contidas na obra, Artaud e o Teatro (2009), de Alain Virmaux(1928-2012), escritor que fez
uma apanhado sobre o seu teatro, suas influências e análises de seus conceitos
Alain Virmaux (2009) coloca o uso do manequins em cena, como um ato de criar
temas e procedimentos dramatúrgicos, e que estas criações suas estavam condicionadas a uma
tendência da repetição retorno. Assim em várias dramaturgias suas, há indicações de
manequins em cena.
104
Figura nº 24 Cena de Aracne e cena No Mundo de Dionísio – corte esquemático da Árvore da Vida, entre
o 2º e 3º triângulo. Cortejo sai da cena do Salão dos Espelhos e vai em direção a cena de Aracne para
chegar na cena No Mundo de Dionísio.
Cena 7 – ponto 08 ( no mundo de Dionisius )
Entre duas árvores corpos se agitam num prazer alegórico e infernal. Neste instante
Dionísio-mascarado anuncia o reino dos prazeres e da liberdade eterna, convida um errante
para adentrar seu templo. Mas para isso o convidado terá que responder a uma charada, caso
acerte poderá conhecer a infinidade de prazer que existir em seu templo.
A cena de Dionísio é baseada nos rituais dionisíacos. Em cena, jovens bacantes
homenageiam o Deus Dionísio através de suspiros orgásticos ritmados numa profusão de
prazeres coletivos. O tema principal desta cena é o prazer da carne e dos poderes terrenos. O
prazer encontrado no plano material é ordem mundana como nos diz Giorgio Agamben
(2007) em seu livro Profanações. Pois, o termo mundano é derivado da palavra mundus, ou
seja, mundo. Em verdade, meu caro Artaud, só se é mundano de fato, quando o individuo se
permite sentir o mundo ao seu redor. Um mundo cheio de desejos que comunica a nós e ao
cosmo as grandezas do que é estar vivo. E isto, é uma visão minha. Espectro de imagem que
eu tento incorporar em minhas criações artísticas.
Assim, Artaud o mundo de Dionísio em Y é um templo de desejo, onde o sentimento
de pertencimento é experimentado através do gesto coletivo, ação que a tornamos uma
105
provocação visual aos caminhantes que chegam aquela Shefira. A idealização desta cena, traz
à reflexão o que Giorgio Agamben nos fala sobre a dificuldade de trazer nossos desejos à luz:
Desejar é uma coisa simples e humana que há. Por que, então, para nós são
inconfessáveis precisamente nossos desejos, por que nos é tão difícil trazê-los à
palavra? Tão difícil que acabamos mantendo-os escondidos, e construímos para eles,
em algum lugar em nós, uma cripta, onde permanecem embalsamados, à espera
(AGAMBEN, 2007. p.43)
Muitos estudiosos do tarot, principalmente Eliphas Levi (2013) associam a carta do
diabo com Deus Dionísio, devido ser uma carta que revela os aspectos do prazer e da
diversão.
Figura nº25: o Arcano do Diabo no Tarot de Waite.
O Arcano do Diabo no Tarot de Waite mostra uma criatura com asas de morcegos,
chifres de bode e pernas de aves, estando com uma mão aos céus e a outra para o solo
segurando uma tocha de fogo. Aos pés dessa figura aparece um casal acorrentando pelo
pescoço. A mulher que aparece na imagem tem uma cauda em formato de um ramo de
vidreira, cuja significação aponta para os mistérios da embriaguez dionisíaca. O homem
possui uma cauda que é constituída por chamas de fogo. Embora a carta fale de submissão e
escravidão ao prazer, ela também nos convida para descobrir o estado emocional da diversão,
onde não há regras rígidas.
Os visitantes de Y ao chegarem à cena “No Mundo de Dionisius” são recebidos com
muita alegria e orgasmos. Por trás de duas grandes árvores os amantes do Deus do Teatro
106
brincam de ser amantes. É uma festa com convite expresso ao público. Aqueles que querem
adentrar ao espaço serão conduzidos pelo patrono da cena, O Dionísio Mascarado.
Figura nº26 – No Mundo de Dionisio – no primeiro plano o ator Leonardo Santiago como Dionísio
Mascarado. Foto de Bruno Vinele, Janeiro de 2019
Cena 8 – ponto 4 ( Uma Leitura de Tarot )
Após os visitantes saírem da cena O Mundo de Dionisius, eles são convidados pelo
mestre-guia para se fazerem presentes na cena do Oráculo do Tarot. Nesta ação da
instauração-cênica, eu, o mestre de cerimônia, convido os espectadores-instauradores para
sentarem-se ao chão do bosque. Neste momento eu realizo um ritual dedicado a Saint
German, figura alquimista que viveu no século XVIII, e segundo algumas lendas da época
ele tenha vivido por mais de duzentos anos. Acendo um cachimbo contendo uma mistura de
fumo e ervas perfumadas. Faço uma oração alquímica e convido os espectadores para uma
consulta de tarot, no qual 05 pessoas poderão tirar cartas.
Eu considero uma das cenas de Y com maior interação com o público, pois não sabe a
carta que será revelada ao ser puxada durante a consulta. Cada carta revela um mistério. Cada
imagem que aparece é lida com um tom diferenciado, aumentando o caráter do mistério e
trazendo para a cena um segredo, um enigma, algo que é dito com uma expressão de parábola.
107
Temos nessa cena uma grande contação de história, semelhante às narrações
xamânicas executadas na beira da fogueira, onde o xamã ensina, diverte e assombra a sua
comunidade com suas historias de encantos e magias.
Figura 27 – O Mestre de Cerimônia joga tarot para os espectadores
Cena 9 – ponto 6 - a morte – o baú da eternidade
O som de uma corneta anuncia a chegada das vendedoras do baú da eternidade. Três
mulheres puxam um carro de mão onde está estampando os dizeres comerciais “ Baú da
Eternidade”. As figuras das vendedoras cantam:
Parará pá pá pá - Parará pá pá pá
Não precisa de bagagem para embarcar
A viagem é de graça é só você subir
Parará pá pá - Parará pá pá (Y, 2018, p.05)
Um dos vendedores percebe que errou o caminho, ele analisa o mapa, e ao perceber
que não há solução chama os amigos vendedores para oferecerem os produtos à plateia.
Esta cena foi baseada na carta da morte do tarot de Waite. Mas, a inspiração foi apenas
de ordem mística, no sentido de revelar uma mudança de rotina da vida de um individuo,
fugindo do significado de morte.
108
Figura 28: cena da morte – três figuras cômicas vendem bilhetes do Baú da Eternidade.
Cena 10 – ponto 9 (um estrela se banha na fonte)
Em uma fonte de água presente no bosque de Y, uma musa se banha cantando: “eu
sou uma estrela que dos céus desceu, venha meu amado, meu amado meu” (Y, 2018, p.05). Por
trás da fonte duas musas se acariciam olhando para a que se banha na fonte, num ato de
voyerismo. Esta cena foi baseada na carta de tarot a Estrela.
Figura 29 – cortejo saindo da Shefira de nº 04, passando pela 6º e para chegar até a cena das Estrelas,
Shefira de nº 09
Figura 30 (ao lado) Cena do Pedágio e banquete
109
Cena 11 – ponto de nº 7 (O Pedágio)
O mestre pede aos expectadores que paguem o pedágio antes de continuar a jornada.
Quando o mestre condutor da jornada leva os caminhantes para pagarem um valor pela
a experiência vivida. Um altar repleto de doações, espolio e pagamentos efetuados por
aqueles que entenderam o sentido de caminhar em Y. É justamente nesta ocasião que o mestre
cobra a passagem, ou seja, o pedágio, que pode se configurar como uma joia que o
caminhante carrega, um amuleto, uma peça de roupa, dinheiro, ou mesmo parte de seus
cabelos, pedaços de unhas, saliva, sangue, urina – excreções que pertencerão ao altar da
passagem.
Deixar algo de si neste altar, é uma forma de materializar sua passagem pelas terras de
Y. Os elementos doados, pagos e oferecidos nesta cena receberão um caráter de peça de
museu, que após a instauração cênica poderá ser visto como um objeto visual. Assim como as
peças de museu sacro de ex-votos.
A cada doação dada o mestre referencia o patrono da casa, chamado de mestre San
Mequetrefe, personalidade fictícia criada unicamente para a cena e que é representada por
uma estatua de concreto. San Mequetrefe é comparável a um Exu-protetor de terreiro,
entidade oriunda das tradições afro-brasileiras que tem a função de abrir os caminhos quando
é feito um pedido.
Figura 31: altar de recolhimento do pedágio
Cena 12 – ponto de nº 10 (O Banquete na Casa de Chapelão)
Após o pagamento do pedágio os espectadores adentram a casa do mestre chapelão,
onde são recebidos por Musas-Servas que dançam ao som de tambor. O público é
110
recepcionado pelo mestre chapelão que saúda a chegada dos mesmos e pede para servir uma
comida aos caminhantes
Eis que estamos diante de um dos momentos mais deslumbre do ritual-teatral da
instauração. É quando os espectadores-instauradores são recebidos em uma grande clareira
em formato circular. No centro deste local há uma grande fogueira que ilumina, aquece e
purifica a cena-instaurada.
De todos os lados surgem as Musas-Servas, que são figuras semelhantes às Ninfas
gregas. Elas representam um elemento da natureza: água, fogo, terra e ar. Um tambor é tocado
por um músico servo, ele toca o instrumento durante todo o tempo, sua função é propiciar um
clima de imersão na cena, de maneira que o espectador-instaurador seja conduzido pela
música. Todos dançam. Os espectadores instauradores são participantes ativos do ato teatral-
ritual.
De longe aparece o Mestre Chapelão, o patrono da cena. Ele saúda os visitantes com
boas vindas. O Chapelão convida a todos para ficarem a vontade em suas terras. Ele entende
que todos vieram de muito longe e devem estar cansados. Assim, manda as Musas-Servas
servirem comida e bebidas, mas antes, eles terão se purificarem para receber a alimentação. A
purificação é realizada também pelas Musas-Servas, que limpam o corpo do visitante com
ervas – elas são as benzedeiras que retiram as cargas de cansaço presente no corpo. Elas tem a
missão de curar as doenças e afastar os espíritos. As Musas-Servas se configuram como
Atrizes-Xamãs e estão à disposição do Mestre Chapelão para realizar todos os fascínios
mágicos, teatrais e religiosos.
O Mestre chapelão anuncia: Eis o último banquete, comam e bebam pela a última vez.
Quem comer deste alimento terá parte comigo e com a terra sagrada de Y, quem beber este
delicioso néctar receberá o poder da fluidez e da felicidade. Seja bem vindos ao Reino da
felicidade passageira. Aproveitem, pois este é o último momento de suas vidas errantes nesta
longa jornada de Y... salve, salve, salve!
A comida é servida. Ela é apetitosa, quente e apimentada. Em seguida uma bebida
agridoce é ofertada para aliviar a pimenta da comida. Os sabores despertam o paladar dos
espectadores.
Enquanto o banquete é degustado o Mestre Chapelão traz revelações espirituais.
Estando em êxtase ele conversa com os espíritos que trazem conselhos de alerta para alguns
espectadores. Após, ele se despede e agradece ao mestre-guia que conduziu todos até ali.
Com a saída do Mestre Chapelão as Musas-Servas realizam uma última dança. Ao
terminar elas recolhem um punhado de areia no chão e jogam sobre a fogueira e entoam um
111
nome de um elemento. Por ultimo se despede o tocador que sai executando uma música
percussiva compassada.
Figura 32: saída do público da área de encenação - ritual final
De longe surgem os servos de Cronus, os mesmos que receberam os visitantes no
inicio de toda a jornada. Eles anunciam que o tempo está findo. Os ponteiros de todos os
relógios voltam a girar. O tempo corre e caso os espectadores não saiam neste momento
ficaram para sempre presos nas terras de Y.
Os servos gritam de longe: eu sou Cronus, o tempo!
Todos saem de Y. A noite é misteriosa e repleta de espectros. Tudo é teatral: o medo
da mata escura, os barulhos e as vozes balbuciadas a esmo. Fim da jornada de Y.
112
CARTA DOS ENAMORADOS PARA O ATOR-XAMÃ ARTAUD - ASPECTOS (IN)
CONCLUSIVOS
FIGURA 33: Os Enamorados – Sexto Arcano Maior do tarot de Waite
113
Caro amigo da Arte,
Saudações!
Artaud, espero que as minhas cartas anteriores não tenham sido enfadonhas. Isso me
preocupa muito. Colocar as ideias no papel não é uma empreitada fácil, e esta tarefa se torna
ainda mais complexa quando falamos de conceitos artísticos. Dar à luz um pensamento sobre
a arte, é fazer de certo modo materializar a própria poesia. Sei que ainda estou longe deste
patamar que você desempenhou com tanta excelência.
Esta carta que te escrevo agora, encerra esse ciclo de divulgação do meu processo de
construção da instauração cênica e de minhas ideias sobre o ator como xamã na instauração-
cênica-ritual. Carta que eu dedico ao sexto arcano do tarot de Waite, os enamorados, e que
trata de apontar alguns aspectos (in) conclusivos de minha dissertação de mestrado.
Eu resolvi utilizar o termo “(in) conclusivo” para justificar que não há em minhas
ideias uma conclusão final de conceitos. Tomei, o termo emprestado da tese de Nara Salles
(2004) como uma opção de apontar apenas alguns aspectos conceituais que finalizam o texto
dissertativo, mas não encerram de fato o pensamento acadêmico.
Os aspectos (in)conclusivos apontados aqui, partem de uma síntese de minha
experiência na tarefa de buscar compreender o meu papel de Ator-Xamã durante a encenação
da instauração-cênica- ritual Y. Por isso o termo (in) conclusivo vem bem a calhar, uma vez
que não encerro de uma vez esta produção. Finalizo apenas um primeiro ciclo de ideias, que
por sua vez não rígidas. Pretendo continuar com o desenvolvimento deste trabalho místico-
teatral, esboçando outras possibilidades ao ponto de resolver o que aqui não ficou entendível.
Esta carta é dedicada ao Arcano “Os Enamorados” do tarot de Waite. A sua
representação imagética dialoga perfeitamente com esta fase (in) conclusiva que eu
desenvolvo nestas linhas.
O Arcano Os Enamorados à primeira vista nos sugere um entendimento sobre amor e
sobre relacionamento, mas segundo o entendimento de Edith Waite(2014), seu significado vai
além, e resulta numa mensagem de transformação no individuo humano. Este arquetípico traz
consigo o significado que estamos perante uma escolha importante na nossa vida, e que
acontece mediante ao um impasse, no qual teremos que optar entre uma alternativa e outra. É
na verdade a própria significação do Y enquanto caminho. Como já falei anteriormente, em
outra carta, o “Y” é grafia que representa um caminho bifurcado, por onde o caminhante terá
que optar por um lado ou outro. Quando se escolhe percorrer um caminho, deixamos outro
para trás. É ai que surge a existência da dúvida: por onde seguir?
114
Esta carta do tarot fala dos aspectos duplos, que como você mesmo falou, estão
presentes em nossas vidas. É o sim e ou não, o claro e o escuro, o frio e o quente, ou seja,
extremos de um mesmo valor, onde ficar no meio dessa escala, é ficar equilibrado de forma
neutra. E de certa forma quando ficamos neutros, ficamos tentados a escolher uma das partes.
Caso, resolvermos aceitar uma das partes, seremos os únicos responsáveis por isso. Somos
responsáveis por nossas escolhas, e você Artaud sabe muito bem o preço alto que pagaste por
escolher um caminho de arte que ainda não era bem trilhado – o seu Teatro Duplo e Cruel25
.
Na lâmina Os Enamorados vemos duas figuras humanas, um homem e uma mulher,
numa figuração semelhante aos personagens bíblicos de Adão e Eva no jardim do Éden. Pode
se ver atrás de Adão a Árvore da Vida, e estando atrás de Eva uma outra árvore, a Árvore do
conhecimento do Bem e do Mal, tendo uma serpente assentada em volta do tronco da árvore.
Se olharmos para cima da cabeça dos amantes, perceberemos a presença de um Arcanjo, que
com seus gestos parece abençoar ou proteger os dois. A imagem sugere uma escolha a ser
feita entre as duas árvores, uma delas oferece a virtude e a outra à tentação. Eis, que surge a
questão, por qual optar? É o momento que o “ser ou não ser” de Hamlet se manifesta.
Os Enamorados, na leitura mística de Edith Waite (2014) se revela como um elemento
simbólico da união harmoniosa de dois seres, e que representa também a junção equilibrada
da relação de nossa mente consciente com as nossas emoções. Desta forma, o aspecto duplo
do Arcano traz consigo os sentimentos de tentação, atração, a luta entre o amor sagrado e o
amor profano, a luta entre a emoção e o equilíbrio racional.
Eu acredito Artaud, que a representação simbólica do duplo significado deste Arcano,
pode se constituir como uma breve metáfora para falar do meu trabalho de ator/xamã. Pois a
conjunção dos termos “ator” e “xamã” figuram por antecipação uma relação dupla entre arte e
espiritualidade, da mesma forma que você refletiu sobre o teatro e a peste, o teatro e a
metafisica, o teatro e alquimia. Enfim, possibilidades de encontrar um aspecto duplo no
teatro:
O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. E a peste
é um mal superior porque é uma crise completa após a qual resta apenas a morte ou
uma extrema purificação. Também o teatro é um mal porque é o equilíbrio supremo
que não se adquire sem destruição. Ele convida o espírito a um delírio que exalta
suas energias; e para terminar pode-se observar que, do ponto de vista humano, a
ação do teatro, como a da peste, é benfazeja pois, levando os homens a se verem
como são, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, a tibieza, a baixeza, o
engodo; sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais claros
dos sentidos; e, revelando para coletividades o poder obscuro delas, sua força oculta
convida-as a assumir diante do destino uma atitude heroica e superior que, sem isso,
nunca assumiriam. ( ARTAUD, 1985, p 168.)
25
Referencia ao manifesto do teatro da crueldade publicado por Artaud em 1932
115
O meu papel de ator xamã, encontra sua função diante do duplo: teatro e xamanismo.
A instauração Cênica-ritual a qual desenvolvi foi baseada nos sistemas simbólicos do tarot, do
xamanismo, da alquimia e da cabala. Todo as insídias de encenação, o contato com os
elementos da natureza, as inspirações encontradas no ambiente da floresta, o medo do escuro,
e a ansiedade de construir a instauração, só foi possível acontecer, porque havia ai um
encontro do ator com o xamã. Na verdade essa incidência ainda está em estado de
desenvolvimento.
Busco no xamanismo elementos para fortalecer meu teatro, e busco no teatro a
inspiração de construir a imagem de meu papel como xamã. Assim, desta forma eu procurei
essa possível transcendência na instauração cênica-ritual “Y”, com o objetivo de tornar o ato
teatral em uma operação mágica, onde eu, enquanto ator, sou também mestre de cerimônia do
ritual teatral. Patrice Pavis (2005) entende que o ritual encontra seu caminho na apresentação
sagrada de um acontecimento único, que seria uma ação não imitável por definição, teatro
invisível ou espontâneo, mas, sobretudo o desnudamento sacrificial do ator diante do
espectador que coloca assim suas preocupações, bem como as profundezas de sua alma, à
vista de todos, com uma esperança confessa de uma redenção coletiva. Desta forma eu tentei
imprimir estes aspectos na encenação de minha instauração cênica, através da criação de
pequenos rituais entre uma cena e outra. Caso ache que eu estou descontextualizado, peço que
revisite o roteiro de Y.
Desde o inicio de meu trabalho procurei estruturar esta investigação a partir dos
termos matrizes: ator e xamã. Esses termos, Artaud, foram a base para eu que eu pudesse
construir uma escrita dissertativa sobre o meu papel enquanto ator na vivência do ritual, bem
como a realização da Instauração cênica Y que envolveu os aspectos conceituais de ritual e
de teatro. Não sei se tal empreendimento foi compreendido de maneira fácil. Pois, a
complexidade de entendimento sobre teatro ritual se espelham no enredamento dos estudos
sociológicos das artes, religiões e antropologia. Entretanto, a possibilidade de haver uma
ligação dos elementos teatro com a espiritualidade, tornaram esta pesquisa um campo fértil,
no qual eu tentei buscar as sementes ancestrais do teatro-ritual para o meu trabalho de
atuação.
A proposta deste trabalho a que me dediquei, pesquisou referenciais teóricos em sua
obra Artaud, com a finalidade de consolidar e organizar elementos cênicos de uma possível
intercessão do teatro com o ritual à base de signos místicos e artísticos, e que sobretudo
116
pudesse atender o meu sentimento particular de artista. Desta forma não tive a preocupação de
agradar o espectador, e sim de provoca-lo, para que ele pudesse ver e sentir um tipo de teatro
que não atende apenas o divertimento. Mas, que traz o público para dentro da cena, se
aproximando assim do seu ideal, de colocar o expectador no centro da cena.
A construção de minha instauração cênica-ritual levou em consideração, conhecimento
seus escritos sobre esse teatro baseado nas forças espirituais. Entretanto, o conhecimento
místico que eu já dispunha sobre as ciências ocultas, só fortaleceu a minha obstinação de
descortinar os véus de mistérios que envolvem a origem espiritual do teatro na historia
mundial. E foi sob os aspectos de um teatro mais ritualístico, que me motivei a buscar
informações sobre ritos, procedimentos mágicos e operações que estivessem próximos aos
elementos do teatro. Evidente, que o que expus aqui nestas cartas, é apenas o inicio de uma
investigação maior, e que poderá resultar em outro trabalho acadêmico.
A organização de meu pensamento e a materialização do meu objeto artístico me
possibilitou a busca por um entendimento, sobre, qual seria o meu papel neste trabalho. Como
eu já falei anteriormente, o termo “papel” nos traz à primeira vista uma imagem artística
criada por um dramaturgo, cujo objetivo é dar vida a uma personagem na encenação. De certo
modo, esta visão não foi descartada. Pois a instauração cênica Y, dramaturgicamente ofereceu
uma imagem artística central, o mestre de cerimônias, que por sua vez era o guia de todo o
cerimonial teatral. Então, desta maneira o meu papel estava definido, eu seria mestre de
cerimonia, que era ao mesmo tempo um xamã executor de rituais e um ator-narrador-contador
de histórias. Este meu entendimento foi arquitetado a partir do seguinte conceito:
O papel pode ser visto como uma imagem artística criada pelo o dramaturgo e
trazida à vida pelo o ator. É o caminho tal como a partitura musical escrita pelo o
compositor. A linha das palavras, movimentos e emoções mostra o caminho tomado
pelas ideias e temas; símbolos e signos de ideias concretas mostram o rumo a seguir
em uma forma artística. (ALSCHITZ, 2014, p.38)
Então meu caro amigo Artaud, o meu papel de ator como xamã se inspirou em partes
neste conceito. Mas, sem o propósito de seguir uma linha tradicional de construção de uma
personagem pela via do texto teatral. A minha função, o meu papel se esboçou justamente na
possibilidade de construir uma imagem artística do ator como um xamã, no qual eu ocupa
também a função de dramaturgo. Pois a cada apresentação o mestre de cerimonias conduzia o
ritual de formas diferentes, mesmo quando se seguia o roteiro apresentado.
A ideia do ator como xamã teve origem em sua obra O Teatro e Seu Duplo (1985)
nela você expõe que o ator deveria assumir a postura de um curandeiro ou feiticeiro, assim
você concebe uma reaproximação da tradição mítica do teatro, na qual a encenação é tomada
117
como uma ação terapêutica, comparado até mesmo aos métodos de certas religiões ancestrais
que tinha o xamã como guia e condutor. E foi com base neste ideal que eu busquei promover
na construção da instauração cênica-ritual Y a intercessão do teatro com o xamanismo.
Pretendo continuar com o desenvolvimento deste tema de forma mais aprofundada,
visto ser um assunto que exige tempo e pesquisa. Considero Artaud, que o xamanismo pode
oferecer ao meu campo de pesquisa, um objeto que precise de mais tempo. Por isso apenas
pontuei, nestas cartas alguns indícios. Sei que poderei fazer mais, uma vez que não consegui
me aprofundar sobre a questão do transe.
Nestas minhas reflexões, fiz alguns levantamentos que considerei importantes, e que
se encontram nas obras dos seguintes autores: Castañeda (2013) onde o antropólogo
convencionou o termo realidade não comum para falar da experiência de transe do xamã;
Mircea Eliade (2002) no qual o termo transe também recebe o nome de experiência extática;
Lévi-Strauss, que destaca o transe como uma técnica própria dos xamãs.
Esses três autores descrevem as experiências do êxtase, como uma ação mental
diferenciada do cotidiano, mas extremamente controlada e racional. Então desta maneira
podemos perceber que o xamã poderá estar fora da realidade mental cotidiana e ao mesmo
tempo, não estar completamente absorto do mundo presente.
Devo confessar Artaud que me apraz muito as colocações de Castañeda (2013) sobre a
ação do êxtase, para ele no trabalho do feiticeiro, ou seja, o xamã, há uma sensibilidade
espiritual, sensorial e mental, que permite ao xamã estar em dois mundos ao mesmo tempo, é
como se o xamã encontrasse uma brecha na realidade para perpetrar a vivência xamânica. Tal
descrição é muito semelhante ao trabalho do ator/atriz, que para atuar recorre a toda uma de
recursos sensoriais.
Assim, como o xamã o ator pode estar entre dois mundos, entre a sensibilidade criativa
e a virtualidade de sua arte. Desta forma meu caro Artaud, para estar em dois mundos se faz
necessário estar inserido num processo de passagem ou transformação do social para o
pessoal, que para Victor Turner (1974) recebe o nome de Liminaridade, ou seja, é um
momento de margem dos ritos de passagem, fase do ritual onde os sujeitos se identificam
como indeterminados, no qual ocorre uma espécie de processo transitório de “morte social”
para em seguida haver o “renascimento” e a “reintegração” a estrutura social.
O termo liminaridade, se configura como uma condição transitória na qual os seus
sujeitos se acham depostos de suas posições sociais anteriores ao rito, ocupando no momento
um entre-lugar indefinido, sem que haja a categorização tempo espacial desses sujeitos. Para
118
Turner (1974) a vida social se mobiliza a partir do movimento dialético alimentado pelas
práticas rituais.
Outro ponto que me chamou atenção durante o desenvolvimento de minha pesquisa,
foi termo “esforços dramáticos” utilizado por Eliade (2013) para descrever a utilização de
recursos cênicos no trabalho do xamã. Desta forma o xamã pode recorrer a falsos desmaios,
tremores corporais, mudança repentina do tom da voz, dissimulação sobre imagens, diálogos
com o invisível e outros elementos semelhantes à prática de atuação do ator.
Encontramos o entendimento de “esforços dramáticos” também nas descrições,
Castañeda(2013) quando ele descreve sua vivência com um “feiticeiro” mexicano “Dom
Juan” e analisa suas expressões como uma atuação dramática:
No caminho do homem de conhecimento, um conhecimento do drama era, sem
dúvida, o fato isolado mais importante, e um tipo especial de esforços era necessário
para corresponder ás circunstâncias que exigiam a exploração dramática; isto é, um
homem de conhecimento precisava de esforço dramático. Tomando como exemplo o
comportamento de Dom Juan, à primeira vista podia parecer que sua atuação
dramática era apenas a sua própria maneira de teatralidade (CASTAÑEDA, 2013,
p.245)
Então Artaud, a teatralidade do “feiticeiro” que Casteñeda fala, está ligada a forma
pessoal de como o xamã organizava sua expressão e comunicação. “Seus esforços dramáticos
eram sempre muito mais do que uma simples representação, eram antes, um profundo estado
de crença” (CASTAÑEDA, 2013, p.245)
Apontei também nestas cartas, uma referencia a etnocenologia de Andreas Lommel
(1970) segundo ele, além do transe, o xamã irá se utilizar dos mais variados fins de
representação artística para curar o doente; o xamã é frequentemente muito mais um artista e
deve ter sido mais em tempo ancestrais. Com base nessa ideia podemos enxergar nos xamãs a
gênese do ator/atriz teatral. Neste sentido Olsen (2004), destaca que a manifestação do o
teatro é anterior ao surgimento do grego como conhecemos no ocidente, tendo existido antes
em sua forma tribal. Desta maneira, “o ator original era o mais qualificado dançarino, cantor,
portador de máscaras e xamã da tribo” (idem, p.7).
Com base nestes apontamentos Artaud, acredito que o ator/atriz e o xamã têm o seu
corpo, a sua mente e o treino das capacidades psicofísicas como instrumentos de acesso ao
mundo sensível da arte e da espiritualidade.
119
Pavis (2014) destaca o ator/atriz como um corpo condutor para o mundo da ficção.
Assim, o ator/atriz tendo a atribuição de corpo condutor, pode estar apto para a tarefa da
atuação, através da utilização de recursos sensíveis da mente e do corpo, onde o atuador
precisará conhecer cada mecanismo de seu corpo, músculos, respiração, sistemas de excreção,
circulação, concentração mental. Este mesmo pensamento é encontrado nas pesquisas do
professor e ator de teatro Gilberto Icle:
Assim como o xamã, o ator é sujeito de seu trabalho e está suscetível a determinados
processos, configura sua consciência para obter êxito de seu trabalho e transcende
seu corpo e sua mente para alcançar com todo o seu ser sua plateia de observadores
que, em última análise, é a razão de sua ação (ICLE, 2010, p. XIV)
Então meu caro, vejo no processo de atuação cênica uma relação com o trabalho do
xamã. Pois ambos recorrem a um procedimento de mentalização, que transita entre a arte e a
espiritualidade. O fato de dar forma a uma personagem ou uma representação, de certo modo
seria também um fenômeno de incorporação artística ou espiritual, digo, trazer essência de
“outro ser” para o nosso gesto. Isso que eu falo tem relação com a seguinte citação de Mark
Olsen que nos aponta o seguinte a esse respeito:
O ator confunde-se com a sua dúplice função: parte essencial do fenômeno teatral,
ele introjeta a mística da divina essência humana ao mesmo tempo que, refletindo
em si o seu semelhante, dirige-se à plateia buscando entregar-lhe uma visão
profundamente relevante e estética do homem na sua mais pura expressão. Ao
encarnar os personagens o ator dá-lhe não apenas corpo, voz, nervos e sentimentos:
dá-lhe a totalidade do seu ser em situação e na sua imanência. (OLSEN, 2004, p.04)
Assim, meu caro amigo, o ritual no teatro encontra seu caminho na apresentação
sagrada de um acontecimento único, que para PAVIS, (2005) seria uma ação não imitável por
definição, teatro invisível ou espontâneo, mas sobre tudo o desnudamento sacrificial do ator
diante do espectador que coloca as profundezas de sua alma, à vista de todos, com uma
esperança confessa de uma redenção coletiva.
A criação da Instauração Cênica-Ritual “Y” reforçou a minha crença de haver uma
ligação de relação entre o teatro e o ritual. O ritual no teatro não pode ser apenas entendido
como um elemento místico/religioso, com seus elementos mágicos e sagrados. Antes de tudo,
Artaud, acredito que o ritual no teatro pode ser compreendido como um sistema de técnicas
organizadas que se repetem para alcançar um determinado estado de arte como no ritual. Isso
se justifica no seguinte colocação de Pavis (2011), vejamos:
120
É preciso observar que os rituais impõe “aos atuantes” (aos atores) palavras, gestos,
intervenções físicas cuja boa organização sintagmática adequada é o aval de uma
representação bem- sucedida. Nesse sentido, todo o trabalho coletivo na encenação é
execução de um ritual. (PAVIS, 2011. p, 346)
Acredito que para se organizar um ritual é necessário ter um entendimento mínimo
sobre quais ritos se quer criar, recriar e convencionar, e para se fazer isto é necessário definir
um condutor, um mestre de cerimônias, que se coloque a disposição para experimentar o
duplo – ritual e teatro.
Em Y eu fui o condutor, determinei como seria o ritual teatral e mesmo eu tendo
algumas atribuições dos artistas parceiros, tratei de imprimir um significado místico que
pudesse conferir a instauração uma série de elementos que garantissem o poder do ritual.
Desta forma eu reconheço que o meu papel de ator-xamã, nessa empreitada artística-ritual foi
de facilitar a ordenação dos ritos do teatro num ritual cênico
Desde o principio da criação artística da instauração cênica, eu pensei em ser um
mestre de cerimônias com a atribuição de um xamã, a quem se encarregou de executar toda a
intervenção mística e artística. Por este motivo, face ao contato com o xamanismo com o
teatro eu resolvi hifenizar os termo ator e xamã (ator-xamã) e desempenhar a minha função
neste trabalho artístico.
Vejo o meu fazer teatral como uma forma sagrada de fazer Arte, e este fazer artístico é
semelhante a crença dos alquimistas que acreditam que o processo de transmutação deve
antes de tudo, acontecer de forma mental para depois se materializar externamente. É por este
motivo que Alquimia para eles era chamada de “A Grande Arte”, pois envolve um processo
de manipulação manual e operação mental. Assim, o alquimista devia se conectar
mentalmente com o mundo externo para que a mente pudesse sentir e se comunicar com
aquilo que estava fora. Meu trabalho em “Y” caminhou neste sentido, buscando a unir o
desejo espiritual/mental do “eu ator” com o mundo externo da atuação cênica, e isso se
confirma nas suas próprias palavras meu caro Artaud:
Entre o princípio do teatro e o da alquimia há uma misteriosa identidade de essência.
É que o teatro, assim como a alquimia, quando considerado em seu princípio e
subterraneamente, está vinculado a um certo número de bases, que são as mesmas
para todas as artes e que visam, no domínio espiritual e imaginário, uma eficácia
análoga àquela que, no domínio físico, permite realmente a produção de ouro
(ARTAUD, 1985, p.50)
O Ator que eu almejo ser, busca essa inspiração e se desenvolve artisticamente neste
universo xamânico, espiritual e alquímico. Desta forma tomo por base o trabalho do xamã,
121
quando ele conduz os seus seguidores através de um ritual próprio e experimentado por ele
através de sua sensibilidade interna mental com os fatos externos a si próprio. Também me
inspiro no alquimista que consagra os mistérios da transmutação com o seu senso emocional.
Uma das atividades que atribui ao meu papel de ator-xamã foi de preparar
espiritualmente o local onde seria executada a instauração cênica. E fiz isso, sozinho sem a
ajuda de ninguém cada caminho e trilha a ser desbravada no bosque foram feitas por mim,
através do trabalho material de definir o espaço da encenação. Abri 32 trilhas na mata fechada
com o objetivo de ligar os círculos (espaços da encenação)
As trilhas são caminhos de condução aos espectadores que se locomovem de um ponto
ao outro no cenário natural, é semelhante às encenações dos mistérios medievais. Desta forma
os espectadores que assistem a instauração cênica, estão dentro do cenário e assumem uma
postura participativa. Os mesmos podem escolher quando solicitado, qual caminho seguir.
Enfim, todo o processo artístico se estruturou a partir do lugar, e dele surgem os “espectros”
do meu teatro. E este lugar atendeu ao que você chama, Artaud, um lugar sagrado para o
teatro
A ideia de escolher um lugar fixo para a minha Instauração-Cênica, parte da inspiração
de seus escritos quando você afirma e deseja para o seu teatro um lugar novo e que fosse
diferente das salas tradicionais de teatro. Assim, meu caro amigo que me inspira, uso como
justificativa tua descrição sobre a necessidade de um novo espaço:
Foi por isso que abandonando as salas de teatros existentes atualmente usaremos um
galpão ou uma granja qualquer e o reconstruiremos segundo os processos que
resultaram na arquitetura de certas igrejas e lugares sacros e de certos templos do
Alto-Tibet.(ARTAUD,1964, p. 115, apud VIRMAUX, 2000, p. 70)
Resumidamente meu caro poeta, a Instauração-cênica-ritual foi idealizada para ser
feita num espaço sagrado, destinado unicamente para a minha prática de magia cerimonial,
ritualística e teatral, na qual eu sou uma espécie de ator-condutor. “Y” é o meu laboratório
cênico-alquímico, onde eu na qualidade autoproclamada de ator-xamã, ator-mago e ator-louco
experimento possíveis encontros dos elementos do teatro com a magia-cerimonial e busco
envolver o público na participação e efetivação do ato teatral.
Então meu amigo das artes virtuais, o ator-xamã que eu acredito ser, é um ator que se
incorpora de todas suas vivências, crenças e misticismos para o desenvolvimento de sua arte,
e sua mística, e se faz presente o tempo todo, tanto no campo cotidiano, quanto no mundo das
artes. Este ator-xamã cria, se apropria e adapta rituais do campo místico-espiritual para o seu
processo criativo, de modo que estes campos se encontram numa única “obra’” – uma obra
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dupla, assim como o seu teatro duplo misto de teatro e alquimia; teatro e a peste; teatro
metafisica; teatro e vida.
Artaud, na concepção criativa de Y, eu sou o “instaurador da cena” e não apenas um
ator que encena uma concepção teatral de alguma ideia. Eu sou o cocriador da ideia e da
cena. Eu, detendo a experiência do mundo do teatro e empossado dos elementos presentes na
instauração-cênica, sou o condutor do processo de ritualização do teatro com a instauração-
cênica e também ritual.
Organizei a criação da Instauração-cênica-Ritual “Y” em um conjunto de três
elementos: instauração (local do resíduo) artes cênicas (ação efêmera do acontecimento
teatral ) e Ritual (procedimentos simbólicos entre o campo material e o estado efêmero da
emoção) a partir dessa conjunção empreendi a tarefa de proporcionar ao observador-
instaurador da cena, a tentativa de despertar sua compreensão para entender que ali existe
algo que vai além do teatro e da arte – ali está a Arte Viva.
Sob a inspiração do xamanismo eu busquei experimentar as sensações do local da
instauração, no sentido de sentir o lugar cênico despertava no corpo de ator, tentando absorver
e conhecer a atmosfera teatral de onde surgirá a nossa encenação
Para isto, tratei de me basear nas experiências de um xamã quando este adentra um
espaço sagrado. Neste caso, o xamã entra em contato com as possíveis energias que se
expressam ali através dos elementos presentes no local, vento, terra, folhas, pedras, arvores e
animais. E assim, estes elementos vão dialogar diretamente com o xamã. Tal experiência é
descrita por Gabriel Weisz (1999) quando ele observa nos xamãs algumas experiências
externas que são conduzidas para o corpo. Weisz (1999) entende por “exteroceptividade” a
percepção que nosso cérebro articula o mundo interior do mundo exterior, os proprioceptores
são resultantes da percepção que o sujeito faz da sua posição no ambiente é de ordem da
percepção do mundo interior.
O universo significante do corpo e do psiquismo organiza-se na categoria
proprioceptiva correspondente ao corpo, que para Weisz é uma categoria mediadora entre o
exterior e o interior. Desta mediação, participam as categorias exteroceptivas e interoceptivas.
A categoria proprioceptiva trata da posição do ser vivo no seu meio. Posição que percebe a
maneira pela qual o ser vivo recebe impressões sensoriais e reage no seu meio ambiente.
Em “Y” eu entendi que eu sou o artista da cena, eu crio elementos e convenciono a
minha sensibilidade corporal como uma energia para as coisas, atribuo aspectos simbólicos
aos objetos de criação. A minha capacidade de mentalização, me dá as condições reais para
exercer o que eu acredito ser um tipo de magia teatral.
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Assim como o Arcano dos Enamorados eu tive que contemplar uma escolha, qual o
caminho a seguir na arte teatral: o caminho do teatro tradicional ou a via do teatral ancestral e
mítico. O caminho que eu optei foi deixar que o xamã surgisse em mim como um personagem
surge no teatro. Entretanto a construção desse personagem deveria ser arquitetado através de
uma jornada mística, na qual eu tinha um papel que merecia ganhar vida – eis que surge o ator
como xamã.
Aos poucos meu caro Artaud, estou conseguindo entender que a jornada deste ator-
xamã é bastante longa. E que para se iniciar este percurso é preciso ter em minhas bagagens a
loucura do Arcano do Louco como companheira para despertar o principio criador da
encenação; ter a vontade do Mago alquímico para empreender a transmutação da realidade em
sonho e o sonho em teatro.
A viagem xamânica é uma jornada muito longa, mas que para iniciar é preciso dar um
primeiro passo. Eu dei um primeiro passo, e em breve espero darei tantos outros passos neste
caminho bifurcado, duplo, teatral e místico.
Meu caro Artaud espero que consigas entender tudo isso que eu te falei. Por aqui
encerro e esta carta e na esperança de um breve retorno.
Do seu amigo e admirador,
Nilton Santos.
Bosque de Y, 10 de junho de 2019.
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