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UNIVERSIDADE ESTADUAL V ALE DO ACARAÚ INSTITUTO BRASIL DE PESQUISA E ENSINO SUPERIOR CURSO DE GRADUAÇÃO EM PEDAGOGIA LICENCIATURA PLENA ENSINO GEOGRA = IA Organizadoras: Profl Esp. Josefa Maria de Souza Santos Prof 8 Ms. Maria do Rosário da Silva Cabral Natal- 2015

Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

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Page 1: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

UNIVERSIDADE ESTADUAL V ALE DO ACARAÚ INSTITUTO BRASIL DE PESQUISA E ENSINO SUPERIOR

CURSO DE GRADUAÇÃO EM PEDAGOGIA LICENCIATURA PLENA

ENSINO :~E GEOGRA =IA

Organizadoras:

Profl Esp. Josefa Maria de Souza Santos Prof8 Ms. Maria do Rosário da Silva Cabral

Natal- 2015

Page 2: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

SUMÁRIO

1 REALIDADES E PERSPECTIVAS DO ENSINO DE GEOGRAFIA NO BRASIL

José William Vicentini

2 CONCEPÇÕES DE GEOGRAFIA E DE GEOGRAFIA ESCOLAR NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

Lana de Souza Cavalcanti

3 CONCEITO DE TERRITÓRIO SEGUNDO MILTON SANTOS

Milton Santos

4 DISCIPLINARIDADE, TRANSVERSALIDADE E INTERDISCIPLINARIDADE

Nídia Nacib Pontuschka; Tomoki lyda Paganelli; Núbia Hanglei Cacete

5 GRUPO, ESPAÇO E TEMPO NAS SÉRIES INICIAIS

Helena Copetti Callai; Jaime Luiz Callai

6 A GEOGRAFIA NOS ANOS INICIAIS DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Wesley de Souza Arcassa

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7 REALIDADES E PERSPECTIVAS

DO ENSINO DE GEOGRAFIA NO BRASIL

José William Vesentini

A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais perma­necerá tal como é, porém se renova continuamente( .. . ) . A função da escola é ensinar aos jovens como o nw1tdo é. A educação é o polllo em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação. Basicamente, estamos sempre educando para um mundo que ou já está fora

. dos eixos ou para aí caminha ( ... ). Esse é o motivo pelo qual mais importante que o domínio da matéria, por parte do professO/; é o exercfcio colltÍIWO da atividade de aprendizagem, de tal modo que ele ncio trans11iitaum "conhecimento petrificado", mas demonstre constante· mente como o saber é produzido.

Hannah Arendt

O ensino de geografia no século XXI 219

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Introdução

Assim como acontece em muitos outros países, o ens ino da geografia no Brasil vive ·uma fase decisiva, um momento de redefinições impostas tanto pela sociedade em geral - pelo avançar da Terceira Revolução Industrial e da globalização, pela necessidade de (re)construir um sistema escolar que contribua para a form ação de cidadãos conscientes e ativos - como também pelas modificações que ocorrem na ciência geográfica. O sistema escolar vive mais uma vez - só que em ritmo bem mais acelerado - uma fase de profundas reestruturações e, no seu bojo, o ensino da geografia sofre questionamentos, propostas de mudanças radicais, tentativas de eliminação ou minimização, por parte de. alguns, e de uma maior valorização, por parte de outros. Uma segunda yez- pois algo semelhante ocorreu nos anos 60 e 70, embora num outro contexto e com outro significado, ocasião em que em algUns países falou-se muito, e algumas vezes se agiu nesse sentido, em substituir a geografia escolar por outras disciplinas mais "modemas" - o ensino da geografia vem sendo questionado pelas autoridades, pelos educadores e pelo público em geral, que algumas vezes pensam que esse saber é obsoleto para dar con ta dos desafios do mundo atual, e, outras vezes, acreditam que o melhor seria uma profunda reformul ação no seu conteúdo e nos seus objetivos. 1)ma coisa é certa: o ensino tradicional da geografia- mnemômico e descritivo, alicerçado no esque·ma "a Terra e o homem" -não tem lugar na escola do século XXI. Ou a geografia muda radicalmente e mostra que pode contribuir para formar cidadãos ativos, para levar o educando a compreender o mundo em que vivemos, para ajudá-lo a entender as relações problemáticas <!ntre sociedade e natureza e entre todas as escalas geográficas, ou ela vai acab:u virando urna peça de museu.

Parece claro que não existe qualquer consenso- nem algo próximo disso -entre os geógrafos preocupados ou envolvidos com a educação a respeito de qual é o papel, e quais são os conteúdos, os objetivos e as estratégias mais adequadas, do ensino da geografia. Por isso, existe desde os anos 80, no ensino da geografia nas escolas elementar e média, uma situação paradoxal, meio caótica e ao mesmo tempo bastante rica: implemen tação de caminhos plurais, de experiências divers ificadas, de tentativas ora de renovar dentro do tradicional, ora de mudar tudo desta ou daquela maneira. Podemos mesmo afirmar com segurança que nenhuma outra disciplina escol:lr- a matemática, a biologia, a qufmica, a história, a língua portuguesa etc.- vem conhecendo uma pluralidade tão grande de tentativas de renovação quanto a geografia. Não que inexistam renovações, tentativas de mudar conteúdos e es tratégias nas demais disciplinas

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escolares. Existem sim, mas elas, por via de regra, seguem caminhos rn.ais ~u menos previarrlente traçados e amplamente discuti~os-~ p~; exem~lo: a ap\Jcaçao do construtivismo na matemática, das "novas h1sto:1as (d(). genero. ~a v1d~ cotidiana) na ~istória e assim por diante -, algo d1ferente da~ :entatl v a: na

f· a que vão desde propostas de substituir totalmente a trad1çao geograf1ca geogra I , , · · ]' · j pelo materialismo histórico, pela abordag~m geo~o!It!CO-J~rna !Stl.ca, pe a sociologia cultural etc. até as reações no sent1do de fmc~r ~ pe. no trad!cl_o~al e culpar os "outros." pelos problemas,! passando por posJçoes mtermedJ.anas e algumas vezes mais equilibradas. A geografia escolar, dessa for~a, v1ve um momento rico e complexo, com uma intensa pluralidade de cammhos, o que não por acaso coincide com as profundas redefinições no sis:err:a ~scolar e com os correlatos questionamentos ao ensino tradicional dessa dJSC!plma.

E no Brasil, ao cont~ário do que seria de se esperar - em face da desvalorização do ensino e da carreira docente, da falta de recursos nas. escolas, dos baixíssimos salários pagos aos professores em geral -, ~ssa nqueza e

l l 'dade é maior ainda do que nas demais sociedades nactonats. Talvez pura 1 d' -

·exatamente esse descaso para com a educação- e também as intensas 1scussoes travadas no seio do professorado de geografia - tenha contri.buído pa~a ~erar essa riqueza e complexidade, fazendo que os d~centes se se~ttssem. ma1s llvres para inovar, para experimentar diferentes cammhos, para nao contmuar com a rotina do tradicional. Por esse motivo, o Brasil é um caso espec1al no toca~ te ao ensino da geografia: por um lado, é um pé!ÍS no qual o professorado ve com inveja os melhores salários e condições de trabalho- equipamentos na~ escolas, nUmero de aulas ·por semana, número de alunos por sala etc. -que extstem em

1. Al"uns poucos foram e ainda vão nessa direção, acreditando que "não havia nada de errado co~ a geografta tradicional" e que foram as tentativas de renovação, em especial ~s crflicas, que produziram essa desvalorização da disciplina. Um texto exemplardessa

0tendencta, que

seria cômico não fosse trágico, é o que saiu r~centemente na revtsta Ga/lieu (n. 134, setembro de 2002, p. 86, Editora Globo). Com o título de "A miséri~ .da g'~ografw", o arugo JOrnalfsu.co procura demonstrar que foi a incorporação de "temas cntJcos pela geografia escolm - tats como reforma agrária , globalização, distribuição social da renda- que fez que os alunos

H l - H 'Olt!l deixassem de se interessar por essa disciplina escolar, propondo como so uçao uma \ .u

t d. ·anal começando pela "geografia física" (bacias hidrográficas, relevo, climas), que ao ra ICJ . , 1. • d . seriam "conceitos mais facilmente assimiláveis pelos alunos" (sic!). Nilo e necessano per ei muito tempo com tal disparate, pois qualquer pessoa bem informada sub~ que a "cr.Jse da aeografia escolar" vem no mfnimo desde os anos 60, quando a expansao dos metas de ~omunicações de massa, em especial da televisão, e também o apogeu do ford!sJno e da e:cola técnica produziram um questionamento da geografia tradiCional por parte dos alunos, dos

educadores e do público em geral.

o ensino de geografia no século XXI 221

Page 5: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

várias dezenas de outras sociedades nacionais; mas, por outro lado, é uma realidade vista com respeito por numerosos geógrafos-educadores de outros países. que admiram - e muitas vezes procuram estudar, verificar as possibilidades de adaptações à sua realidade etc. - essa rica pluralidade que resultou na incorporação de temas e estratégias inovadores, que em determinados casos nunca foram tentados em outra parte do mundo.

Da geografia tradicional à crítica2

' Há quase um consenso entre os professores de geografia, pelo menos no

Brasil, que atualmente estamos vivenciando uma transição de uma geografia escolar tradicional para uma(s) crítica(s). Aquela primeira seria descritiva e mnemônica, alicerçada no paradigma "a Tena e o homem", com uma seqüência predefinida de temas: estrutura geológica e relevo, clima, vegetação, hidrografia, população, economia. E a última, a(s) geografia(s) crítica(s), vem se expandido no Brasil a partir dos anos 80. Numa perspectiva internacional, ela teria surgido em meados da década de 1970, inicialmente nos Estados Unidos (com a geografia radical) e na França e, posteriormente, na Espanha, Itália, Alemanha, Sl!íça e em muitos outros países, tendo sido, na sua origem, expressa ou pelo menos identificada com os periódicos Antipode: A Radical Journal of Geography (criado em 1969 nos Estados Unidos) e Hérodote (criado em 1976 na França), além da enorme importância, como uma espécie de livro-manifesto, da obra A

geografia: Isso sen;e, em primeiro lugar; para fazer a guerra (de 1976), de Yves Lacoste. Todavia, independentemente dessas obras acadêmicás, muitos professores de geografia, em especial do ensino médio- e o Brasil talvez seja o grande exemplo disso - , já praticavam em suas aulas uma geografia escolar diferente da tradicional , com novas estratégias (debates e/ou trabalhos dirigidos em vez de apenas aulas expositivas, trabalhos de campo em áreas carentes, interpretação de bons textos críticos etc.) e com novos conteúdos (dis tribuição social da renda, a pobreza no espaço, os sistemas socioeconômicos , o subdesenvolvimento etc.).

Pode-se dizer que os pressupostos básicos dessa "revolução" ou reconstrução do saber geográfico consistiram e consistem na criticidade e no

2. Este item reproduz, com ndaptações, o nosso hipertexto di~ponlvel em http:// www.geocritica.hpg .ig.eom.br/geocritica.htm.

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poder e de dominaçãp. E en.gajamento :'ist~ como . uma geografia nã~ mais "neutra" e sim comprometida com a JUStiça soctal, com a correçao das desigualdades socip~conômicas e das disparidades regionais. A produção geográfica até os anos 70, afirma-se - embora admitindo exceções: Réi::lus, I<i'opotkin e outros-, sempre tivera uma pretensão à neutralidade e costumava deixar de lado os problemas sociais (e até mesmo os ambientais, na medida em que, em grande parte, eles são sociais), alegando que "não eram geográficos".

É lógico que essa nova maneira de encarar e praticar a geografia não surgiu do nada. Ela se enraizou e floresceu num contexto de revisão de idéias e valores: o maio de 1968 na França, as lutas civis nos Estados Unidos, os reclames contra a guena do Vietnã, a eclosão e a expansão do movimento feminista, do ecologismo e da CJise do marxismo. E ela se alimentou de muito do que já havia sido feito anterimmente, tanto por parte de alguns poucos geógrafos quanto por ~utras correntes de pensamento que podem ser classificadas como críticas. Desde o seu nascedouro, a geografia crítica encetou um diál'ogo com a teoria crítica (isto é, com os pensadores da Escola de Frankfurt), com o anarquismo (Réclus, Kropotkin), com Michel Foucault, com Marx e os marxismos (em particular os não dogmáticos, tal como Gramsci, que foi um dos raros marxistas a valorizar a questão territorial), com os pós-modernistas e várias outras escolas de pensamento inovadoras. Mas ela plincipalmente representou uma abertura para - e um entrelaçamento com- os movimentos sociais: a luta pela ampliação dos direitos civis e principalmente sociais, pela moradia, pelo acesso à terra ou à educação de boa qualidade, pelo combate à pobreza, aos preconceitos de gênero, de cultural etnia e de orientação sexual etc.

Todavia, cabe ress~ltar que a geografia crítica escolar- isto é, aquela praticada nos ensinos fundamental e médio - possui e sempre possuiu uma dinâmica própria e relativamente independente da sua vertente acadêmica. É importante reafirmar esse fato, pois muitos imaginam, de fmma ingênua ou até mesmo preconceituosa, que as disciplinas escolares (matemática, língua portuguesa, ciências, história, geografia) tão-somente reproduzem, de forma simplificada, ôs conteúdos criados e desenvolvidos na universidade, no ensino superior, na graduação e. na pós-graduação. É como se o professor das escolas fundamental e média fosse apenas um reprodutor do saber construído em outro I ugar, o "lugar competente", e a sua tarefa consistisse essencialmente em ndaptm· esse saber à faixa etária do aluno. Seu labor s~ria então "didático" num sentido

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tradicional : como ensinar da melhor maneira um determina do conteúdo já pronto e que o educando deve meramente assimilar. Mas essa forma de ver é parcial e. no extremo. autoritária, pois ela ignora que o professor e os seus al unos também podem ser co-autores do saber, também podem pesquisar e chegar a conclusões próprias e que não são meras cópias ou simplificações do conhecimento já pronto e instituído.

O professor crítico e/ou construtivis ta- e não podemos esquecer que o bom professor é aquele que "aprende ensinando" e que não ensina, mas "ajuda os alunos a aprender" - não apenas reproduz, mas também produz saber na atividade educativa. E tampouco o educando pode ser visto como um receptácul o vazio que irá assimilar ou aprender um conteúdo externo à sua realidade existencial,, psicogenética e socioeconômica. Ele é um ser humano com uma história de . vida a ser levada em conta no processo de aprendizagem, que reelabora, assimila à sua maneira - até reconstruindo ou criando - o saber apropriado para tal ou qual disciplina. E na geografia essa característica essencial da verdadeira atividade educativa talvez seja ainda mais acentuada do que em outras disciplinas, tais como, por exemplo, na física ou na matemática. Isso porque no ensino da geografia é importantíssimo- é mesmo indispensável -o estudo e a compreensão da realidade local onde os alunos vivem, onde a escola se situa. Isso não está (nem poderia estar) nos manuais -no máximo existem neles dicas ou esquemas sempre passíveis de aperfeiçoamento para est,udar este ou aquele aspecto dessa realidade; e no fundo não se trata somente de "aplicar" as definições ou as explicações contidas no "conteúdo geral", mas também de (re)criar conceitos e explicações, de d~scobrir coisas novas enfim.

Por sinal, a geografia escolar é anterior ao advento da chamada geografia científica ou acadêmica. Parodiando um estudioso da história do pensamento geográfico, podemos lembrar que, muito antes de existirem os geógrafos, já existiam os professores de geografia. 3 Isto é, muito antes de a geografia ser considerada uma '~ciência" ou uma disciplina universitária, muito antes de ela ter sido institucionalizada em meados do século XIX (com Humboldt e Ritter), já existiam aulas de geografia (para crianças, para adolescentes e até mesmo para adultos) e manuais que procuravam esquematizar esse saber escolar e prático (pois servia para viagens, para o comércio, para a guerra). Podemos mesmo afirmar que, em grande parte, a institucionalização da geografia no século XIX

3. Cf. H, Cape!. lnstituciona/ización de la geograjfa y estrategias de la comun idad cientifico de los geógrafos .. Barcelona: Barcanova, 1977. .

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deveu-se fundamentalmente à necessidade de formar um número cada vez maior de professores dessa disciplina para o sistema escolar em (enorme) expansão no período. E o mesmo ocorreu no passado recenle, com o surgimento da geografia escolar crítica, e continua a ocorrer nos dias atuais, com inúmeras novas experi~ncias no ensino elementar e no médio que, em alguns casos, produzem inovações em relação ao que já existe na produção acadêmica.

Dessa forma .. não foi após e muito menos em virtude de alguns trabalhos acadêmicos inovadores que o estudo c1ítico da geografia se desenvolveu nas escolas elementar e média. Não que esses níveis de ensino estivessem "atrasados" e levassem muitos anos para se atualizar, como afirmam alguns. Nada disso . É que muito antes do advento da geografia crítica acadêmica já existiam centenas, talvez milhares de professores de geografia no ensino médio ou até no fundamental.que inovavam as suas lições -inclusive buscando subsídios na economia, na sociologia, na história, no marxismo e, principalmente, nas lutas sociais de suas épocas/lugares- e incorporavam o estudo do subdesenvolvimento e dos sistemas socioeconômicos, das relações de gênero (homem/mulher), das sociedades ditas primitivas, dos problemas sociais urbanos, da reforma agrária (tema tão importante no Brasil do início dos anos 60 !), e isso em muitos casos antes desses temas serem abordados pelos compêndios ou mesmo por teses, artigos e livros acadêmicos de geografia.

· Uma parte importante dos geógrafos críticos acadêmicos começou como professores dos ensinos fundamental e médio, e foi em grande parte aí que eles iniciaram as suas reflexões e as novas abordagens, que depois foram sistematizadas· ou reelaboradas com vistas à produção de trabalhos universitários . Não é difícil entepder por que isso ocorreu, e em parte ainda ocorre: malgrado a idéia preconcebida segundo a qual o professor nos ensinos fundamental e médio não inova,! não cria, não ousa sair da rotina e do tradicionalismo (a não

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ser quando alguni novo "programa oficial" o obrigue a isso), em geral ele- ou melhor, alguns de~es- faz tudo isso com umh freqüência maior do que os estudos acadêmicos. Ao dontrário do que se imagina, é muito mais fácil (e freqüente, convém enfatizar) inovar no conteúdo e nos métodos de um curso no ensino médio, em especial nas escolas públicas (ou em algumas particulares), do que em teses e outros trabalhos acadêmicos. (0 que não significa que essas inovações não ocorram neste último caso. Elas ocorrem, sem dúvida, mas pelo menos na geografia e nos anos 60, 70 e 80 foram em geral posteriores, e não anteriores. ao que já se vinha fazendo, pelo menos em parte, no ensino médio.) As regras na academia são mais sedimentadas e fechadas, o controle por parte das bancas, das agências de financiamento, das comissões de publicações etc. é maior e

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normalmente existe um maior apego aos estereótipos ou às idéias predefinidas sobre o que deveria ser abordado naquele assunto X ou Y. Só para citar um exemplo, poderíamos lembrar que Yves La.cosle, cuja importância para a definição da geografia crítica (ou pelo menos de uma importante vertente dela) já foi mencionada, teve enormes dificuldades em conseguir ser aprovado (só o foi depois de várias tentativas e sendo obrigado a "caçar" em lotais distantes professores titulares que aceitassem participar da sua banca!) na sua tese de livre-docência na França por causa do tema- Unidade e diversidade do Terceiro

Mundo (Das representações planetárias às estratégias sobre o terreno)- e da sua abordagem gebpolítica, considerados na época (em pleno início da década de 1980!) como "não geográficos" e políticos em demasia, isto é, "não neutros". Pois bem, esse geógrafo, que também começou como professor no ensino fundamental e no médio (e autor de livros didáticos), já trabalhava com esse assunto na sua atividade docente e nos seus manuais muito antes de ter feito essa pesquisa acadêmica.4

Mesmo aqui no Brasil poderíamos escavar numerosos casos similares, pois a abordagem, nos ensinos fundamental e médio, de temas/pwblemas tais como as relações de gênero, críticas ao socialismo real e à burocracia, choques culturais e civi lizações, orientação sexual, o novo raci smo etc. foi indiscutivelmente anterior a qualquer pesquisa, tese ou publicação oriunda dos departamentos de geografia das universidades. Isso não significa que não existam ou que não devam existir relações de complementaridade entre a universidade e os níveis fundamental e médio de ensino. Mas essas relações são mais complexas do que a idéia preconceituosa segundo a qual aqueles níveis de ensino devem apenas "simplificar" e reproduzir os conteúdos produzidos na academia. Essa idéia, infelizmente dominante, costuma gerar verdadeiras aberrações: "propostas cuniculares" ou PCNs para os ensinos fundamental e médio feitos por professores universitários que não têm experiência nesse nível de ensino e que desconhecem completamente a realidade dos alunos que aí estudam. Costuma-se também pura e simplesmente ignorar, e dessa forma não aproveitar, as experiênci as inovadoras que os professores - pelo menos alguns deles- estão produzindo nas escolas. O resultado, normalmente (existem algumas poucas exceções, mas são casos em que os elaboradores tinham vasta experiência nesses níveis de ensino e/ou

4. Veja-se, sobre isso, o depoimento do próprio autor; Y. Lacoste. La enseiianza de la geog rafia. Curso proferido nos dias 22 e 23 de março de 1985 na Univers idade de Salamanca, Espanha, editado em 1986 pelo grupo Cronos. ·

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contaram com a colaboração ativa de professores que atuam na sala de aula), é que esses currículos são impraticáveis e acabam não sendo operacionalizados (embora muitos professores sejam obrigados a fingir que os utilizem para agradar a alguns burocratas que tentam controlar a atividade docente); em geral, esses currículos estão aquém daquilo que muitos professores praticam e mais atrapalham do que ajudam na melhoria do sistema escolar.

A geografia crítica escolar, portanto, não consiste na mera reprodução nas escolas elementar e média daquilo que foi an teriormente elaborado pela produção universitária crítica. Isso até pode ocorrer, mas não é- e nunca foi -o essencial ou mesmo a regra geral. O fundamental é levar em conta a realidade dos alunos e os problemas de sua época e lugar. Como se sabe, a geografia escolar crítica- ou as geografias, na medida em que não existe um caminho ou um esquema único- se opõe à geografia tradicional e normalmente mnemônica (isto é, que enfatiza a memorização, a lista de fatos ou acidentes: cidades principais, capitais, unidades de relevo, rios e seus afluentes, tipos de .clima etc.), que tem por base o esquema "a Terra e o homem". Mas é lógico que a própria geografia tradicional conheceu várias fases e nuanças e nunca foi um bloco monolític o. Existiram aí autores que valorizaram a explicação e combateram veementemente a descrição e a memorização (por exemplo: Delgado de Carvalho, Pierre Monbeig, Nilo Bernardes e outros), que inclufram bons textos literários nos seus manuais (exemplo: Clóvis Dottori e outros) e até mesmo, em especial na última fase da geografia tradicional francesa, com Pierre George e sua entourage - a chamada "escola georgiana" -, que incorporaram novos temas (subdesenvolvimento, sistemas socioeconômicos, "explosão c:lemográfica", organização do espaço e planejamento, região como espaço polarizado etc.) que em alguns casos demandaram uma análise crítica do real. Mas foi uma crítica limitada e parcial: nunca ancorada nos movimentos sociais, mas, sim, em um modelo de "ciência" objetiva e neutra; e tampouco incorporando ou dialogando com autores/escolas críticos (anarquismos, Foucault, Escola de Frankfurt, Lefebvre, Gramsci e outros marxistas etc.); e, acima de tudo, essencialmente preocupada em valorizar a geografia diante do Estado e das grandes empresas por meio da proposta de uma "geografia ativa" ou voltada para a ação (ou melhor, para o planejamento).

A geografia escolar crítica vai muito além desses avanços que ocorrera~1 na geografia tradicional- embora os assimilando à sua maneira- e preocupa-se basicamente com o desenvolvimento da autonomia, da criatividade e da criticidade do educando, com a cidadania, afinal, que é ao mesmo tempo o

resultado e a condição da existência de cidadãos ativos e participantes, isto é,

O ensino de geografia no século XXI 227

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que questionam a realidade e (re)constroem os direitos democráticos ou direitos do homem (inclusive os direitos das minorias e o direito de ser diferente), direitos esses que hoj e tendem a se expandir para abarcar os não-humanos (as árvores, os animais).

Portanto, um ensino crítico da geografia não se limita a uma renovação do conteúdo- com a incorporação de novos temas/problemas, nonnalmente ligados às lutas sociais : relações de gênero, ênfase na participação do cidadão/morador e não no planejamento, compreensão das desigualdades e das exclusões, dos direitos sociais (inclusive os do consumidor), da questão ambiental e das lutas ecológicas etc. Ela também implica valorizar determinadas atitudes - combate aos preconceitos; ênfase na ética, no respeito aos direitos alheios e às diferenças; sociabilidade e inteligência emocional - e habilidades (raciocínio, aplicação/ elaboração de conceitos, capacidade de observação e de crítica etc.). E para isso é fundamental uma adoção de novos procedimentos didáticos: não mais apenas ou principaim ·~ nte a aula expositiva, mas, sim, estudos do meio (isto é, trabalhos fora da sala de aula), dinâmicas de grupo e trabalhos dirigidos, debates, uso de

. computadores (e suas redes) e outros recursos tecnológicos, preocupações com atividades interdisciplinares e com temas transversais etc.

Tampouco se pode omitir o estudo da natureza, a geografia física, como querem alguns. Não é porque um ou outro geógrafo crítico ou radical famoso e importante aborda somente temas socioeconômicos que a geografia escolar deve

. fazer o mesmo. Esses geógrafos,5 na realidade, são especialistas e, normalmente, não possuem experiência (nem qualquer interesse) nos ensinos elementar e médio. Só que, mais uma vez reiteramos, o objetivo da disciplina escolar geografia não é reproduzir o discurso desses geógrafos especialistas e sim levar o educando a

· compreender o mundo em que vive; o espaço geográfico desde a escala local até a global. E a compreensão desse espaço passa necessariamente pelo estudo

. da natureza-para-o-homem, das paisagens naturais como encadeamento de . elementos (clima, relevo, solos, águas, vegetação e biodiversidade), que possuem as suas dinâmicas próprias e independentes do social. E também passa, principalmente nos dias de hoje, pelo estudo da questão ambiental, que não pode prescindir da dinâmica da natureza (e suas alterações/reações diante da

5. Estamos nos referindo a autores como David Harvey, Richard Peet, Milton Santos, Massimo Quaini, John Short, Peter Taylor e outros, que produziram ou ainda produzem uma profícua obra em temas como a justiça social, a urbanização, a globalização, a divisão capitalista do espaço etc. , mas que nunca se preocuparam (não vai aqui nenhuma crítica, mas apenas uma constatação) com o ensino da geografia.

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ação humana), que é fundamental para que se possa perscrutar os rumos de cada sociedade nacional e da própria humanidade neste novo século.

O advento da geocrítica no Brasil6

Os primórdios da geografia crítica no Brasil enraizaram-se em dois elementos principais: a influência e os subsfdios oriundos do Primeiro Mundo e em especial da França (o nosso grande farol até inícios dos anos 80) e, notadamente, a luta contra a ditadura militar e, ao mesmo tempo, contra o projeto de capitalismo dependente e associado, contra a ideologia da Guerra Fria e os seus tristes reflexos na repressão policial, nas torturas, no cerceamento do pensamento crítico etc. Ao contrário do que se pensa- se é que quem crê nisso pensa! -, a geografia crítica no Brasil não se iniciou nem se desenvolveu inici<Úmente no? estudos ou teses uni versitários . Tampouco no IBGE e muito menos nas análises ambientais ou nas de planejamento. Ela se desenvolveu, a par.tir.em especial dos anos 70, nas escolas de nível fundamental (5" a SQ série) e principalmente no ensino médio, o antigo colegial ou 2ll grau. (E também em alguns pouquíssimos ·cursinhos pré-vestibulares, que até inícios dos anos 70 tinham um perfii bem diferente daquele que é praticamente exclusivo hoje; em vez de serem fábricas que apenas visam lucros e massificam os alunos, eram em alguns casos redutos de leituras e discussões de obras críticas. Eu mesmo tive o .privi légio de discutir em seminários num cursinho, em 1969, obras co mo Geografia do subdesenvolvimento, Panorama do mundo atual, Capitalismo e subdesenvolvimento na América Latina, Formação do Brasil contemporâneo, Formação ecom5mica do Brasil e outras.) A geografia crítica no Brasil, portanto,

· iniciou-se como um esforço por parte de alguns docentes de superar (o que não significa abandonar totalmente) a sua tradição, a sua formação universitária, aquilo que as universidades diziam que "deyeria ser ensinado": Esses professores de geografia p·rocuraram suscitar nos seus alunos a compreensão do subdesenvolvimento (a importânci a, nos anos 70, do li vro Geografia do

subdesenvolvimento, de Yves Lacoste, foi enorme, embora esse t ·~ma

· incorporasse também outros autores e obras significativos na época: André

6. Esta parte do tex,to retoma e sintetiza um artigo que escrevemos no primeiro semestre de 2002 e colocamos à disposição do público no nosso si te na Internet: A geografia crírica no Brasil: Uma interprelfção depomte, disponível em http://www.geocritica.hpg.ig. com.b 1'/

geocritica04-6.li tm.

O ensino de geografia no século XXI 229

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Gunder Frank, Harry Magdoff, Teotônio doq Santos, Rui Mauro Marini, Paul Baran e Paul Sweezy etc.), ligando esse tema pomo sistema capitalista mundial e as suas áreas centrais e periféricas. Eles proc~raram também enfatizar a questão agrária do Brasil, a questão da distribuição social da renda (um terna recorrente no nosso pensamento crítico desde os anos : 70 !), a questão da pobreza e da violência policial. Eles- esse pequeno grupo de professores do ensino médio, os verdadeiros introdutores da geocrítica no Brasil- estavam fazendo tudo isso enquanto os "setores avançados" da universidade- é evidente que estamos nos referindo à geografia - enfatizavam obras/ternas como ."A organ ização do espaço", de Jean Labasse, os "Pólos de desenvolvi'mento" ou, no máximo, o livro Geografia ativa, de PietTe George e outros (propostas distantes de qualquer saber crítico e claramente comprometidas com o planejamento estatal).

Em grande parte, podemos afirmar que a introdução da geocrítica- também no nível acadêmico- deveu-se ao "encontro" ou diálogo desses professores de nível médio mais engajados e críticos com alguns raros docentes universitá1ios também descontentes com toda aquela situação de controle, repressão e censura que existia na segunda metade dos anos 60 e nos anos 7.0 no Brasi l. Só para mencionar um exemplo significativo, podemos lembrar que nes~e período rem sequer se podia falar em geografia política e muito menos em "geografia do subdesenvolvimento" nas universidades; na própria USP, no Departamento de

Geografia (considerado, com razão, como o "mais avançado" do país nessa época, o único que não foi subjugado nem pelos cursos de curta dLtração - Estudos Sociais- e nem pelo pragmatismo de inspiração norte-americana que rebaixava, ou melhor, traves tia a nossa disciplina de ciência humana e social em "geociência"), havia um curso de "geografia do mundo tropical", que ocupava o lugar daquela e procurava "analisar" a realidade da América Latina, da África e de grande parte da Ásia dentro desse parâmetro alicerçado na "Terra"!

Alguns poucos docentes universitários "abriram as portas" da academia para esses professores críticos e com uma boa dose de coragem aceitaram orientar (ou melhor, conceder a sua assinatura ou aval , pois em geral não domin avam esses novos temas e aprenderam junto com esses orientandos) na elaboração de dissertações de mestrado ou teses de doutorado sobre assuntos/objetos que até então eram interditados ao saber geográfico universitário: a auto-ajuda dos moradores de bailTos populares, os problemas do desenvólvimento capitalista

· no campo, análises críticas da geopolítica brasileira e de seus projetos, a escola e o ensino da geografia como aparatos ideológicos, a industri alização e a

produção do espaço em alguma região específica, o espaço geográfico como

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locus (e instrumento) de lutas sociais, as desigualdades (e a natureza classista) das formas de apropriação social do espaço etc. Foi dessa confluência - entre uma meia dúzia de docentes universitários com doutorado e um punhado de (ex-)professores do ensino médio que já estavam revolucionando há anos esse saber nas salas de aula - que surgiu oficialmente, como legitimação pela academia, a(s) geografia(s) crítica(s) no Brasil.

A influência de Gramsci, direta ou indireta, foi notável nessa referida confluência que oficializou, via academia, a geocrítica no Brasil. O conceito gramsciano de hegemonia com base cultural foi o leitmotiv que conduziu esses professores críticos até a pós-graduação, até as pesquisas e a carreira universitária. É lógico que não foram todos os professores críticos de geografia que caminharam até a universidade nos anos 70 ou inícios dos anos 80. Alguns desses professores foram presos, torturados e até assassinados nos porões da d.itâdura. Outros se engajaram em movimentos de "guerrilha" urbana ou rural. Outros ainda "sumiram" dos grandes centros urbanos, onde a repressão policial era mais àcirrada e constante (como em São Paulo) e foram trabalhar em regiões distantes de onde eram conhecidos, muitas vez~s em pequenos centros urbanos do interior, . temerosos e ao mesmo tempo relativamente desiludidos com desmantelamento dos grupelhos auto-intitulados revolucionários. Mas uma parcela deles fez esse referido percurso, procurando gramscianamente "tomar a universidade", local

do qual teriam maior influência cultural e conseqUentemente política. Foram eles que produziram as primeiras obras- as primeiras teses ou dissertações, as primeiras pesquisas acadêrrúcas -, aquelas que ficaram, que em muitos casos foram publicadas total ou parcialmente, que estão disponíveis em certos arquivos e bibliotecas e, dessa forma, servem de marco como os albores (pelo menos no sentido documental) da geocrítica no Brasil. Essa foi . a primeira geração dos

· geógrafos críticos no BrasiJ.? Foi a geração que produziu trabalhos pioneiros de pesquisas e/ou reflexôes críticas acadêmicas nos anos 70 (principalmente no final dessa década) e nos anos 80. Depois dela, veio a segunda geração, aquela dos anos 90 e desta primeira década do século XXI, que em grande parte é constituída por (ex-)alunos ou orientandos dessa primeira geração, coín a qual

7. Convém reiterar, para evitar mal-entendidos, que estamos nos referindo il geogranu crítica no sentido dado a partir dos anos 70 por Lacos te, Capei, Harvey e outros, na qual evidentemente existem altos e baixos, trabalhos de excelente nfvel e outros nem tanto. Não pretendemos ser maniquefstas e advogar que só há ótimos textos nessa nova modalidade de geografia (alguns são até dogmáticos e panfletários!), c muito menos que só existiam textos ruins na geografi a tradicional.

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convive. Talvez a principal diferenç{i entre elas seja que a primeira geração era, pelo menos até o final dos anos 80, essencialmente gramsciana no sentido de acreditar que estava promovendo uma revolução (anticapitalista e igualitária) na geografi a e na universidade. A segunda geração, por sua vez (é lógico que toda regra admite exceções e que existem interpenetrações ou sobreposições), preocupa-se muito mais com o método, com novos enfoques para analisar o "espaço"; com o prestígio científico ou social. Mas essas diferenças são antes de tudo relativas e desde o início já havia determinadas ambigüidades ou aporias

na(s) geografia(s) crítica(s) tanto no Brasil como no exterior.8

Afirma-se comumente que o Encontro de 1978 da Associação dos Geógrafos Brasileiros. (AGB) teria sido o marco fundamental da introdução da geocrítica no Brasil. Sem nenhuma intenção de desmerecer esse importante encontro, que ocorreu em Fortaleza e teve inúmeros méritos, acreditamos que

· essa interpretação é exagerada e mitificadora. É uma espécie de "discurso dos vencedores", isto é, propagado por um punhado de geógrafos, na época estudantes (de graduação ou de pós), ou professores universitários sem grande prestígio (mas com potencial) e dominados/subordinados institucionalmente pelos medalhões, que contestaram o poder destes e democratizaram a AGB. Esse foi . afinal o grande significado desse encontro: uma democratização, mesmo que relativa- como toda democratização afinal, pois a democracia não é uma forma . acabada e permanente e sim um processo que se expande continuamente- da AGB nacionalmente, na qual deixaram de existir duas categorias de sócios (os plenos, os professores universitários, que podiam ser membros da diretoria; e os demais, que pagavam suas anuidades, mas não podiam concorrer aos cargos

decisórios) e a partir daí todos, pelo menos em tese, podem votar e ser votados, podem se inscrever na época apropriada- a cada dois anos -para concorrer aos cargos diretivos dessa associação.

É lógico que esse punhado de "contestadores" (como foram chamados na ocasião) acabou por dominar a AGB nacional (e talvez até eles tenham se tomado nos "novos mandarins"), daí a expressão que empregamos, "discurso dos vencedores". Mas também o tema engajamento social, a fa vor dos explorados/dominados, foi apregoado pela primeira vez num Encontro nacional da AGB, tendo como base (ou como uma espécie de "aval", pois era uma obra

8. Veja-se sobre isso o nosso texto de 1984- "Percalços da geografia crítica: Entre a cri se do marxismo e o mito do conhecimento cientifico" ~. publicado nos Anais do 5" Congresso Brasileiro de Geógrafos . São Paulo, julho de ln4, vol. 2, pp. 423-433.

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oriunda da França) o mencionado livreto de Lacoste, A geografia: Isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra.9

' Todavia, não se pode falar em "introdução da geografia crítica no Brasil", como fazem ~lguns, somente tendo-se em conta essa democratização da AGE­nacional. Em primeiro lugar, a seção São Paulo da AGB, a AGB-SP, já havia sido democratizada dois anos antes, desde 1976, e foi dela que surgiu a ."edição pirata" dessa ob.ra de Lacoste. Em segundo lugar, essa versão tem o colorido de uma autopromoção gratuita. Ela desqualifica toda uma ação anterior de centenas

de professores de geografia, alguns dos quais pagaram caro por essa ousadia de revolucionar o conteúdo geográfico (e a prática pedagógica) nas salas de aula e, para complementar, é uma interpretação que acaba resultando numa espécie de "história institucional", algo que lembra muito os historiadores tradicionais, que denegam as lutas populares e só discorrem acerca das mudanças nas instituições oficiais.

Por outro lado, não podemos exagerar a importância (que existe!) ou a difusão da AGB. Provavelmente cerca de 80% do professorado de geografia do país, a imensa maioria dos geógrafos, portanto, até hoje (imagine-se então em 1978, quando a AGB era bem mais elitizada) nunca sequer ouviu falar dessa associação. 10 Apesar de uma louvável democratização a partir de 1976-1978, a AGB ainda prossegue como um reduto de professores universitários, principalmente dos mais jovens (doutores) e não mais apenas dos "medalhões" (catedráticos) como era anteriormente, e pouco tem a ver com a realidade da geografia que

9. A primeira edição dessa obra, em francês, deu-se em 1976 (e logo surgiu uma tradução portuguesa, que foi xerocada em São Puulo e originou wna "edição pirata" brasileira. com mi !h ares de exemplares que em grande parte fornm vendidos em Forta!ezn d\irnnte o Enconu·o de 1978). Uma edição mais recente, trnduzida de uma nova versão ampliada escrita pelo autor, foi publicada em 1988 pela Papiros Editor11, de Campinas. Nesta, existe uma introdução de nossa autoria que realiza uma espécie de "balanço" a respeito do significado dessa obra nu geografia bras i !eira .

1 O. Utilizo esse número (e esse raciocfnio) com base em pesquisas feitas em 1995-1996 por alu nos do meu curso "Geografia crítica e ensino" nas antigas Delegacias Regionais de Ensino da Grande São Paulo, guando constatamos gue 54% dos professores de geografia na rede pública (de 5' a 8' séries e no ensino médio) não são formados nessa disciplina, sendo estudantes (principalmente de história, ciências sociais ou geografia) ou engenheiros, advogados, teólogos ou seminaristas, historiadores ou sociólogos etc. A única referência que grande parte desse pessoal possui sobre as mudanças na geografia é a que está contida nos (poucos) bons livros didáticos, que algumas vezes eles usam para preparar suas aulas (mas não como livro-texto dos alunos, que no múximo possuem um caderno). Se essa é a realidade da Grande São Paulo, o centro dinâmico da economia nacional, imagine-se então a situação mediana no restante do país!

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predomina no Brasil e no mundo (e que contérp o futuro dessa disciplina), que é a geografia escolar no ensino fundamental e no médio. Isso não é uma crítica destrutiva e sim uma mera constatação. É lógico que existem numerosas razões que justificam, embora não legitimem, essa reillidade: a necessidade de apoio das universidades para que as AGBs locais- que afinal são a base da nacional- possam existir (elas em geral, incluindo a de São Paulo,. mi qual a nacional está ancorada, mal conseguem pagar sozinhas a conta do telefone ou a do provedor da Internet, imagine-se então o aluguel de alguma sala; e tanto os ·diretores quanto os funcionários são professores ou estudantes que realizam voluntária e gratuitamente essas tarefas), os b~ixíssimos salários percebidos pel~s professores do ensino fundamental e do médio (que assim não têm tempo nem dinheiro para freqüentar assiduamente as assembléias e os encontros da AGB) etc. Mas confundir a AGB com a geografia do Brasil, como fazem aqueles que divulgam a idéia de que o Encontro de Fortaleza teria sido o "deflagrador" da geografia crítica no país, é não enxergar a realidade, é confundir o todo com uma· pequena 'parte.

A realidade na sala de aula, os guias e os parâmetros curriculares

A distância entre o ideal e o real, no Brasil, costuma ser muito maior do que na maioria das demais sociedades, em especial as do Primeiro Mundo. Essa defasagem, no ensino, é ainda maior. A riona economia do mundo- segundo o World Developmellt lndicators, 2002, do Banco Mundial-:- mal consegue atingir o 79Q lugar em competições internacionais de ciências, de matemática, de história e geografia. Enquanto várias dezenas de Estados da atualidade já conseguiram reduzir para praticamente zero os índices d.e analfabetismo- inclusive muitos do sul: Uruguai, Chile, Cingapura, Coréia do Sul, Cuba e outros -, o Brasil ainda tem uma humilhante taxa de 14%, sendo um dos raríssimos países com vários milhões de adultos analfabetos. A taxa de jovens entre 15 e 17 anos matriculados no ensino médio na Áustria é de 96%, no Canadá 97%, na Argentina e na Jamaica de 90%, no Paraguai de 51%, ao passo ·que no Brasil é de somente 32% (e, além de tudo, com um elevado índice de desistência antes do término do curso). O tempo médio de estudos de um adulto nos Estados Unidos e no Canadá é de 12 anos, na Coréia do Sul11 anos e na Argentina 8,8 anos, ao passo que no Brasil é de apenas 4,9 anos. 11 Enquanto o salário· mensal médio - de

11. Essas informações estatísticas estão no World Developmemlndicators- 2002, do Banco Mundial. e também no Human Development Report- 2002, do UNDP das Nações Unidas.

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escolas públicas e particulares- de um professor do ensino médio no Brasil é de 300 dólares (em 2002), esse rendimento no Japão é de 3.650 dólares, na Suíça de 5 mil dólares, e~ Hong Kong de 4.700 dólares e na Dinamarca de 3.300 dólares. No Brasil, esse mesmo professor tem de leCionar, no mínimo, 40 aulas por semana para atingir aquele baixo rendimento, ao passo que, nos demais países mencionados, ele leCiona entre 18 e 30 aulas por semana. E enquanto no Brasil é freqüente haver mais de 35 alunos por sala de aula, naqueles países o máximo que existe são 30 alunos por classe. 12 ·

Destarte, a realidade vigente nas escolas brasileiras em geral- existem raríssimas exceções- é extremamente precária. Além dos problemas de baixos salários dos professores, do elevado número de aulas por semana que eles são obrigados a cumprir e do excesso de alunos por sala1 devemos acrescentar ainda a generalizada falta de equipamentos: ausência quase total de vídeos; computadores, projetores em geral · (principalmente os multimídia), mapas, maquetes, laboratórios e algumas vezes até de um simples quadro com giz. No caso do ensino da geografia, isso tudo é agravado pelos preconceitos contra a disciplina (e contra as humanidades em geral, consideradas "secundárias"), que

fica com uma carga horária reduzida - e não pode reprovar ou reter nenhum

aluno, naqueles estados onde isso ainda existe 13 - e enfrenta uma enorme dificuldade para operacionalizar os estudos do meio, que são importantíssimos na sua prática educativa. Ademais, a 'formação dos professores de geografia é freqüentemente problemática, pois existem muitos cursos superiores dessa ciência (e também de algumas outras) que não têm condições mínimas de funcionamento­isto é, corpo docente qualificado, com mestrado ou doutorado, laboratórios e bibliotecas razoáveis, ônibus para excursões etc.- e, para completar, qualquer um julga que pode lecionar essa disciplina: uma boa parte dos docentes de sa a 8ª série do ensino fundamental e do ensino médio não possui uma formação

12. Esses dados n respeito de salários e condições de trabalho foram obtidos no site da Americon. Federatíon of Teachers (AFT), cujo endereço eletrônico é http://www.nft.org.

13. Fazemos essa observação, porque desde 1995 que no estado de São Paulo (talvez em ~lguns outros) existe uma "aprovação automática", isto é, todos os alunos, independentemente de seus desempenhos em qualquer disciplin~, vão para a série seguinte no ano letivo subseqUente. Não existe, portanto, uma verdadeira avaliação e, como já demonstraram inúmeros educadores, isso resultou numa falta de motivação para os estudos (ou mesmo para assistir às aulas) por parte dos alunos. Também as associações de professores já concluíram que esse sistema é nocivo à.atividade educativa, sendo que alguns parlamentares ligados no professorado elaboraram projetos de lei que eliminam e·sse sistema, mas que até o final de 2002 ainda não foram votados.

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específica na área, s-endo estudantes (de · di versos cursos) ou sociólogos, historiadores, advogados , engenheiros, geólogos, teólogos etc. 14 Esse é um dos

fatores- juntamente com a sobrecarga de aulas e os baixos salários, elementos

que fazem que o professorado em geral disponha de pouco tempo para preparar

cuidadosamente as suas lições - que explicam por que a geografia escolar

tradicional ainda predomina nas escolas brasileiras de níve l médio ou fundamentaL Aqueles que possuem uma formação específica em geografia, comumente, já estudaram a renovação geográfica a partir dos anos 80, cursaram as disciplinas história do pensamento geográfico, geografia política e tantas

outras, e, sem dúvida, têm uma clara noção de que a geografia escolar não é

umamera reprodução de nomes de rios ou bacias hidrográficas, planaltos ou

depressões, cidades ou tipos de cultivo. Mas aqueles que não possuem uma

formação específica na área, apesar de al gumas exceções (isto é, aquelas raríssimas pessoas esforçadas que procuram se atualizar, ir atrás de uma bibliografia de apoio etc.), ainda permanecem com essa visão estereotipada da geografia como um saber enciclopédico e que somente exige memorização.·

Como as autoridades brasileiras tentam enfrentar esses problemas nas raras

vezes em que se preocupam com eles? Da forma mais burocrática e autoritária

possível: através da condenação dos professores - tidos como os responsáveis

pelo lamentável estado da educação - e da elaboração de novos .guias ou

"propostas" curriculares, que normalmente são impostos de cima para baixo e redigidos por alguns poucos professores universitários bem relacionados com a máquina estatal. Em vez de aumentar os salários dos docentes e melhorar as suas condições de trabalho, em vez de ofertar bons cursos de reciclagem - e incentivar os professores a fazê-los, criando também o tempo de que eles necessitam para

tal-, o que predomina é aquela visão conteudístico-burocrática segundo a qual o

problema sempre está no conteúdo das disciplinas e/ou na organização dO sistema

escolar. Desde a chamada "redemocratização" do país, iniciada em 1985, que em

praticamente todos os estados da federação- e também em muitos municípios populosos e com uma rede de escolas própria - ocorreu uma série de reformulações curriculares e administrativas que, no fundo, quase nada produziram do ponto de vista de real· melhoria da educação: mudança de nomes (por exemplo: as antigas

14. A respeito da formação universitária do professorado de geografia. veja-se o nosso ensaio "A formação do professor de geografia- Algumas reflexões", em N.N. Pomuschka e A.U. O li v eira (orgs.). Geografia em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2002, pp. 235-240. Ou tra obra que também evidencia a precária situação do professorado de geografia é o livro de Nestor A Kaercher. Desafios e utopias no ensino de geografia. Porto Alegre: Edunisc, 2001.

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delegacias de ensino hoje são diretorias, pelo menos em São Paul o) , de organogramas (alguns cargos/funções foram extintos e outros criados) , de procedimento~ didáticos/pedagógicos (por exemplo: a criação da recuperação, a

possibilidade qo aluno passar de ano mesmo tendo sido reprovado em até duas

disciplinas e, mais recentemente, a aprovação automática de todos os alunos) 15 e, principalment~, da grade e do conteúdo cunicular. É comum que a cada novo governo tudo 'seja mudado, pelo menos no aspecto formal (organograma e currículo), mas a'realidade precária continua a vigorar.

Os guias ou "propostas" curriculares- que muitas autoridades (delegados

ou diretores de ensino, diretores de escolas, coordenadores pedagógicos etc.)

tentam obrigar os professores a seguir rigidamente, mesmo sendo ilegal tal

imposição -constituem um capítulo à parte nesses procedimentos paliativos que nada contribuem para a melhmia das reais condições do ensi no. Alguns professores universitários, que às vezes até são idealistas e bem-intencionados , acreditam piamente estar suscitando um avanço no ensino da geografia quando elaboram conteúdos curriculares seguindo a sua própria linha de pensamento. Nem passa pelas suas cabeças que os professores deveriam ser não apenas

formalmente consultados, como em alguns poucos casos acontece, mas , sim, considerados os sujeitos desse conteúdo curricular, que só tem sentido quando

resulta de um profundo conhecimento da realidade dos alunos- socioeconômica, intelectual, psicogenética, de experiência de vida etc. Tal conteúdo, que nunca deve ser totalmente fixo ou petrificado e sim constantemente reelaborado em razão dos seus resultados e de fatores imprevistos, em qualquer sociedade democrática, é obrigatoriamente engendrado por quem vai aplicá-lo nas salas

de aula e não por alguém que se julga o "detentor da verdade" só porque leciona

na universidade. Mas a arbitrariedade algumas vezes é tão grande que exis tem ­

ou existiram, já.que a cada novo governo, principalmente quando de oposição

ao anterior, novos currículos são vomitados de cima para baixo - gui as curriculares completamente inoperantes~ distantes da realidade dos alunos (ou até dos professores). Há desde aquela proposta curricular que, para o ensino da geografia na 5D série, reproduz o conteúdo do volume I de O Capital, de Marx -

!5. Esses procedimentos, no fundo, visam tão somente melhorar as estatísticas de alunos que terminam a 8' série ou o ensino médio . Ou seja, são paliativos "para inglês ver", para atenuar um pouco a humilhante situação do Brasil no plano internacionaL Só que eles não visam a uma melhoria de qualidade; pelo contrário, contribuem para degradá-la ainda mais. Basta lembrarmos do grande número de semi·analfabetos que atualmente conclui o ensino médio, algo inexistente no passado.

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o que é mercadoria, valor de uso e valor d~ troca, mais valia, divisão do trabalho

etc. - até aquela outra que, para o ensino médio, enfatiza uma "história do pensamento geográfico" extremamente simplista (quem foram Humboldt e Ritter, as "escolas" determinista e possibilista, o posÚivismo e a dialética na geografia etc.) .16 É lógico que também existem várias propostas curriculares bem elaboradas , com conteúdos mai s abertos e próximos da realidade dos alunos, mas o que estamos evidenciando aqui é o absurdo de tentar mudar uma situação precária com formalidades burocráticas e também a aberração de elaborar guias curriculares de cima para baix o e se m verdadeiro diálogo com os reais interessados , os,professores e os seus alunos. Nesses dois exemplos citados, e também em vários outros, o que fica evidente é a total falta de percepção do para que serve ensinar geografia, que objetivos pedagógicos esse ensino deve atender, q~al é a realidade existencial e psicogenética dos alunos aos quais esse ensino se destina etc. A ún ica preocupação dei;ses elaboradores fo i reproduzir a sua visão (acadêmica) particul ar do que é geografia. Gostaríamos de deixar claro que não vai aqui nenhuma restrição a qualquer con·ente de pensamento na geografia: devemos ser pluralistas e admitir- e dialogar com- todos os pontos de vista, desde que bem fundamentados. Mas é importante reafi rmar este truísmo essencial: que os ensinos fundamental e médio são diferentes da universidade e neles não estamos formando "pequenos geógrafos" e sim cidadãos, que mais do que o domínio de certos conteúdos· devem aprender a aprender, aprender a pesquisar, a conviver com os outros, a combater todas as formas de preconceito etc. A geografia não é uma disciplina escolar por "dir~ito di vino", como imaginam alguns. Ela tem de mostrar à sociedade que pode contribuir para formar cidadãos, para fazer o educando compreender o mundo em que vivemos, e isso pouco tem a ver com os seus rumos especfficos- ou as suas picuinhas, tal como a "concorrência" entre a geografia física e a humana- na academia ou na universidade.

Esse mesmo raciocínio vale para os PCNs, bs Parâmetros Curriculares Nacionais, elaborados em 1997-1998 pelo governo federal que se instalou em Brasília em 1995 e ficou até 2002. Esse governo, embora tenha obt ido alguns modestos avanços na educação, procurou centralizar uma série de procedimentos

e decisões no sistema escolar. Como exemplos de.ssa centralização, temos os PCNs e o Enem, o Exame Nacional para o Ensino Médio, que iremos comentar

16. Esses são dois exemplos de guias curriculares que ti ve a oportunidade de examinar nos anos 90, que foram elaborados em dois diferentes estados da federação, e que talvez ainda estejam em "uso", embora já tenha ocorrido uma mudança nos governos e, por conseguinte, nas equipes que cu idam da educação.

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no próximo item deste artigo. Os PCNs acabaram por se sobrepor a guias ou propostas curriculares estaduais ou municipais (naquelas raras cidades que possuem uma rede escolar própria) e no fundo mostram como são pleonásticos todos esses conteúdos curriculares "oficiais", que em geral só vigoram no papel, mas que, infelizmente; despendem preciosos recursos públicos. O grande mérito dos PCNs foi ter reafirmado os ensinamentos oriundos da Unesco, 17 que enfatizam a interdisciplinaridade e os temas transversais (ética, meio ambiente, pluralidade cultural, orientação sexual, saúde, trabalho e consumo). Quando os PCNs são genéricos e somente apontam para diretrizes, tal como ocorre com o ensino fundamental de 1 ~ a 4Q série ou, principalmente, com o ensino médio, eles não são nocivos e até podem contribuir para a reflexão dos professores e educadores. Mas quando são detalhistas e valorizam o conteúdo curricular, tal como ocorre com aqueles do ensino fundamental de 5A a ga série (é. claro que estamos nos referindo à disciplina geografia, para a qual os PCNs desse nível de ensino explicitam até a matéria específica para cada série e semestre!), eles na realidade mais atrapalham do que ajudam e constituem um estorvo para os professores que procuram levar em conta a realidade dos seus alunos.

O ensino médio, os vestibulares e o Enein

O ensino médio no Brasil tem ainda outro empecilho ou handicap: os vestibulares, que agem como uma influência nefasta, pois forçam muitas escolas e professores a deixar de lado uma formação para a cidadania, para a vida, em prol do treinamento para um exame medíocre e ineficaz. Sem dúvida, não podemos ignorar que existe um funil para à entrada nas boas universidades do pafs, que em geral são públicas e gratuitas. Mas o método de seleção de estudantes para ingressar no curso superior, o atual vestibular, é o pior possfvel. Temos de criar novos procedimentos, em especial de foJma descentralizada e deixando 'a critério de cada instituição de ensino o que ela quer priorizar nessa seleção: se o currículo escolar do educando (talvez acompanhado por uma entrevista), os

resultados que ele obteve no Enem, algum tipo de exame não homogeneizador (isto é, diversificado e específico para cada curso, com redações ou atividades que abordem temas adequados para cada carreira) etc., ou mesmo uma mistura disso tudo.

17. Cf. Jacques Delors (org.). Educação: Um tesouro cz descobrir. Brasflia, MEC/Cortez/Unesco, 1998.

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Mas os atuais vestibulares, baseados em grandes fundações ou comissões executivas - Fuvest, Vunesp, UFRJ, Unicamp etc-, são centralizados em demasia e no fundo não avaliam minimamente os conhecimentos e menos ainda as habilidades dos candidatos para o curso específico que cada um escolheu. O formato atual dos vestibulares- que não por coincidência se iniciou em I 969-1970, na época áurea do fordismo e da ditadura militar (que queria eliminar os antigos "excedentes", ou seja, o grande número de candidatos que obtinham a nota mínima para entrar num curso, mas eram barrados em virtude do limite de vagas)- é massificante e padronizador. Traçando um paralelo com a produção industrial (na qual se inspirou), podemos dizer que esse formato de vestibular é uma cópia da produção fordista com a sua linha de montagem e produção em série; ele nã() se preocupa com o controle de qualidade nem é flexível, tal como na produção pós-fordista ou da Terceira Revolução Industrial, e tampouco leva em consideração os interesses dos consumidores (isto é, da sociedade, dos alunos/ candidatos ou mesmo das carreiras ou cursos específicos, que exigem conhecimentos e habilidades relativamente diferentes uns dos outros).

:&lse vestibular centralizado e padronizador, associado com a nossa cultura que desvaloriza o ensino e prioriza ·o diploma como condição de status e principalmente de um bom emprego, 18 produz um efeito arrasador sobre o ensino médio, que deveria ter os seus próprios objetivos- preparar para a vida, para a cidadania, para o adolescente conhecer melhor e se inserir de forma ativa e democrática no mundo em que vivemos.:.. e que muitas vezes é obrigado a desvirtuá­los ou deixá-los de lado por causa da pressão dos alunos e de seus pais, que vêem esse nível de ensino como um mero degrau para o vestibular. l:Jm indicador dessa tendência é a recente multiplicação, nas últimas décadas, daquelas redes de ensino . que vendem franquias- Positivo, Objetivo, Anglo e muitas outras- e cuja única preocupação é com o desempenho de seus al unos nos vestibulares. Elas funcionam como uma produção fordista com a sua linha de montagem e fabricação estandardizada. Elas não utilizam bons textos (suas apostilas são de péssima

qualidade), não valorizam os comportamentos e as habilidades dos alunos, mas priorizam basicamente o conteúdo- e ainda por cima aquele conteúdo que costuma cair nos vestibulares. Essas empresas - .esse é o nome correto para elas, e não

18. Estamos nos referindo à pouca preocupação dos pais de alunos (algo evidente em qualq uer reunião de pais e mestres de alguma escola de nfvel fu ndamental ou médio), e também dos próprios educandos, para com o nfvel de ensino e os seus objetivos. A sua demanda quase exclusiva é que seus filhos tirem boas notas e passem de ano, mesmo que não exista um ensino de qualidade ou uma apreudizagem adequada. Quando há alguma preocupação para com o ensino em si, trata-se geralmente de "cobranças" de um conteúdo- ou macetes- apropriado ao vestibular.

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escolas- talvez já abranjam mais da metade dos estabelecimentos particulares de ensino de nív~l médio no Brasil e, infelizmente, até mesmo muitas escolas públicas são pressionadas pelos alunos e, principalmente, pelos seus_pais no sentido de

também adotar.em um método semelhante.

Outro elemento a ser considerado no caso do ensino médio no Brasil é o Exame Naciodal do Ensino Médio (Enem), realizado pelo MEC e abrangendo, teoricamente, todos os estudantes do país matriculados nesse nível de ensino. O Enem foi implantado pelo governo federal e aplicado pela primeira vez em 1998. Em agosto de 2002, tivemos a quinta prova do Enem, com um número cada vez maior de estudantes participando e muitas faculdades ou universidades- inclusive a UnB, uma das melhores do país - passaram a levar em conta os resultados obtidos pelos candidatos nesse exame para selecionar aqueles que vão ingressar nos seus cursos. Acreditamos que já é possível tirar algumas conclusões desses cinco exames realizados até o momento. Em síntese, é indiscutível que esse exame nacional possui alguns aspectos negativos e outros positivos.

O que há de mais negativo é o fato de ser um exame homogeneizador, único para todo o país, algo que se choca com o federalismo e com a neces~idade democrática de deixar a cada comunidade local (por meio das trocas de idéias entre professores/educadores e pais de alunos) o direito de estabelecer o currículo adequado à realidade de seus educandos. (Fazemos essa observação, porque esse exame, como qualquer outro , implícita ou explicitamente enfatiza determinados conteúdos. Mas, nesse caso, existe um atenuante, na medida em que o Enem procura valorizar mais o raciocínio- determinadas habilidades dos candidatos: inferência, dedução, indução, extrapolação etc.- do que o conteúdo curricular.) Existe, portanto, um viés autoritário nesse exame centralizador, que não respeita a imensa diversidade regional do país e as inúmeras experiências inovadoras que estão sendo implementadas por alguns professores ou escolas.

Mas~ por.outro lado, esse exa~e não deixa de ter um ou dois aspectos positivos. Primeiro, pode contrabalançàr- ou talvez até abolir, dentro de algum tempo - os vestibulares, essa verdadeira aberração educacional. Segundo, pode direcionar algumas escolas de baixíssimo nível, aquelas nas quais a aprendizagem é o que menos importa (que infelizmente existem no Brasil , em grande número), a elevar um pouco o seu nível de exigência a esse respeito. Como os alunos e seus pais pouco a pouco começam a comparar as suas notas (e as dos seus colegas de escola) com a média nacional e com as notas de outros estudantes que freqüentam outras escolas nas vizinhanças, é provável que esse fato gere uma espécie de pressão que conduza a uma melhoria nas piores escolas de nível médio. Só que

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isso pode ser uma faca de dois gumes, pois, ao mesmo tempo em que tende a engendrar uma melhoria das piores escolas, também é possível que gere uin enfraquecimento das melhores. Isso porque uma escola de fato inovadora, construtivista e crítica, sem dúvida tem um currículo adequado à realidade (econômico-social, cultural, psicogenética, local) dos seus educandos, e a (possível ) pressão no sentido de direcioná-la para atender às demandas geradas pelo Enem­isto é, só ensinar ou ensinar preferencialmente aquele tipo de questão cob(ada nesses exames - pode contribuir para degradara seu nfvel de exigência didático­pedagógica. Ou sej~, ele é um exame homogeneizador, que procura nivelar as suas questões por uma certa "média" nacional •. o que sign'itica que está aquém daquilo que é praticado em muitas escolas de vanguarda. Em todo o caso, reiteramos que esse receio·deve ser amenizado pelo fato de que as questões do Enem- tanto a redação quanto os testes de múltipla escolha- procuram evitar uma cobrança de conteúdos específicos, valorizando mais determinados raciocínios (coerência das idéias, capacidade de se expressar adequadamente, raciocínio lógico, interpretação de mapas, gráficos, tabelas, textos etc.) por parte dos alunos.

Em todo caso, no que se refere ao tipo de questões - e em especial à disciplina geografia -, o resultado desses exames realizados até o momento tem sido satisfatório, bastante superior aos melhores (ou menos ruins) exames vestibulares. Estes últimos são pouco criativos e sempre repetem uma mesma fónnula: todos sabemos que existe um tipo de questão que em geral cai na parte de geografia do vestibular da Unicamp (cobrança de leitura de jornais ou atualidades), um outro um pouco diferente na Fuvest, outro na UFRJ etc. São questões que não exigem raciocínio ou habilidades e sim um conhecimento prévio e, dessa forma, são facilmente assimiláveis pelos cursinhos preparatórios. Já o Enem, ao contrário dos vestibulares, não divide as questões por disciplinas escolares; com freqüência, elas são interdisciplinares (ou abordam temas transversais) e exigem mais raciocínio do que um conhecimento petrificado ou o domínio de macetes. Este ültimo traço é importantíssimo- o exigir mais raciocínio ou habilidades do que um conhecimento prévio, seja ele qual for (mesmo que pretensamente crítico, tal como as recorrentes questões da Unicamp sobre reforma agrária, distiibuição social da renda19 etc.)-, pois isso dificulta sob~emaneira a vida dos cursinhos preparatórios (nos quais só existem aulas expositivas e ainda por cima voltadas para reproduzir macetes) e valoriza o trabalho do professor que

19. Gostaríamos de esclarecer que não estamos reprochando o uso desses conteúdos: que por sinal são inovadores no ensino da geografia, mas, sim, assinalando a forma acrítica e pottco criati va corno são "cobrados" no vestibular, com testes de múltipla escolha que somente exigem um

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é criativo e faz os seus alunos lerem e discutirem textos, interpretarem gráficos, tabelas e mapas, realizarem trabalhos de campo ou estudos do ineio etc.

·Consciente ou - o que é mais provável ,.... inconscientemente, os elaboradores desses exames nacionais do ensino médio valorizaram bastante a geografia escolar ao eleger inúmeras questões voltadas para medir ou suscitar a cri ti cidade dos alunos e o seu conhecimento sobre o mundo no qual vivemos, com os seus problemas e os seus potenciais. Apesar de o Enem ter o mérito de não dividir as questões por disciplinas. tal como fazem os exames vestibulares, é possfvel concluir a que matéria(s)- ou tema(s) inter ou transdisciplinar(es) -pertence tal ou qual questão. Uma boa parte - talvez a maipria- das questões une duas ou mais disciplinas (geografia e história, física ou matemática e geografia, língua portuguesa e biologia e/ou geografia etc.), não sendo em muitos casos possível classificá-las como exclusivamente geográficas, matemáticas, históricas ou de qualquer outra disciplina específica. Mas, sem dúvida, dá para perceber se há algum conteúdo de geografia (ou de qualquer outra disciplina escolar)- e, no caso de haver, qual é exatamente- em cada uma das questões. Fizemos uma análise do conteúdo das questões dos exames realizados até o momento20 e chegamos ao seguinte resultado:

DISCIPLINAS ENEM·1998 ENEM-1999 ENEM·2000 ENEM·2001 ENEM·2002

Matemática 19 questões 20 questões 15 questões 12 questões 16 questões

30,1% do total') (31,8%) (23,8%) (19%) (25,4%)

Português .. 8 questões 7 questões 9 questões 11 questões 11 questões (12,6%) (11,2%) (14,3%) 17,5%) (17,5%)

GEOGRAFIA 17 questões 28 questões 27 questões 24 questões 17 questões (26,9%) (44,4%) (42,8%) (38%) (27%)

História 11 que~t~es 9·questões 8 questões 8 questões 8 questões (17,5%) (14,3%) (12,7%) (12,7%) (1.2,7%)

Biologia 13 questoes 9 questões 14 questoes 13 questões 18 questoes (20,6%) (14,3%) (22,3%) (20,6%) (28,5%)

Física 13 questões 15 questões 12 questões 12 questões 9 questões

(20,6%) . (23,8%) (19%) (19%) 14,3%)

Química 4 questões 6 questões 7 questões 6 questões 7 questões (6,4%) (9,6%) (11,2%) . (9,5%) (11,2%)

Outras"' 2 questões (3,2%)

2 questões (3,2%)

4 questões (6,4%)

5 questões .(8%)

4 questões (6,4%)

'Estamos deixando de lado a redação e contabilizando apenas as demais questões, que são "objetivas" ou de múltipla escolha, cujo iotal é de 63 em cada exame. Quanto à redação, que logicamente está ligada à lfngua portuguesa, ela normalmente aponta para temas históricos, filosóficos e/ou geográficos,

conheci'mento prévio (ou às vezes até um posicionamento ideológico!) por parte do candidato, algo perfeitamente adequado à indústria dos cursinhos.

20. Maiores detalhes- e também as questões desses exames, com aquelas que consideramos como geográficas -podem ser obtidos no nosso sire: http://www.geocritica.hpg.com.br.

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tais como "Viver e aprender'' (1998) , "Cidadania e participação social" (1999) e "Direitos da criança e do ·adolescente: Como enfrentar esse desafio nacional?" (2000), "Desenvolvimento e preservação ambiental: como conciliar os Interesses em conflito?" (2001 / e "O direito de votar: Como fazer dessa conquista um melo para promover as transformaçOes OOQ!als de que o Brasil necessita?" (2002). Sa somarmos o número de questões por disciplina teremos um total superior a 63- e também o resul tado da soma das porcentagens da questões por disciplina é maior que 100%- em virtude do fato, já comentado, de que com freqüência as questões do Enem são uma mistura de duas ou mais disciplinas. .. Lfngua e litereltura . ... Anes, sociologia e filosofia.

Por que tem ocorrido essa valorização, provavelmente inconsciente, da geografia escolar nos exames do Enem? Minha hipótese é que isso se deve tanto à caracterlstiça específica desse exame- que procura avaliar não tanto o domínio de algum conteúdo disciplinar e sim b raciocínio sobre problemas em geral interdisciplinares- como também à natureza da própria geografia, que, apesar de ser uma ciência social, é um saber que se localiza mais ou menos na interface entre as humanidades, as ciências naturais e a matemática. É muito mais fácil (o que não significa que não seja possível) elaborar uma questão in terdisciplinar unindo a fís ica ou a biologia com a geografia do que com a história ou com a sociologia, por exemplo. Também é mais fáci 1 elaborar uma questão mesclando ·a matemática com a geografia (interpretação quantitativa de mapas , tabelas ou gráficos, cálc ulos sobre população ou sobre a proporção de algum fenômeno em tal ou qual região do país etc.) do que com a literatura ou a língua portuguesa. Também a preocupação dos exames do Enem em "cobrar" dos alunos a compreensão do mundo e de seus problemas - econômicos, demográficos, energéticos, ecológicos etc. -, muito auxiliou nessa valorização da disciplina geografia, mesmo que integrada com a biologia, a física, a química, a matemática, a história, a fi losofia e a língua portuguesa, pois as questões do Enem raramen \e solicitam conhecimentos ou fórmulas de física (ou matemática, ou química) em si, independentemente de problemas sociais ou ambientais. Quase sempre é uma pergunta sobre poluição (do ar, das águas, de uma cidade ou região), sobre uma usina hidrelétrica ou nuclear (seus impactos ambientais, por exemplo), sobre o crescimento demográfico do mundo ou do Brasil etc ., e o seu conteúdo invariavelmente pode ser encontrado nos bons manuais de geografia .

Até o momento desta publicação, ainda não havia definições sobre a continuidade de realização do Enem a partir de 2005. Seria lamentável acabar com essa experiência, pois isso provavelmente resultaria numa completa revalorização dos vestibulares- já mencionamos que alguns cursos superiores, nos últimos anos, passaram a levar em conta os resultados obtidos pelos candidatos no Enem para os seus sistemas de seleção, algo que começou a enfraquecer os vestibulares e a indústria dos cursinhos preparatórios -, que,

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como já vimos, constituem um elemento que muito cont1ibui para degr.adar _o ensino médio do Brasil. O ideal não seria acabar com o Enem e s1m apnmora­lo, procurando lévar mais em conta a enorme diversidade re~ional do. pa~s .. mas sempre mantendo essa sua característica básica de avaliar maJS O raCJOClDIO do que os conteúdos disciplinares. Mas o futuro é indeterminado e cabe apenas torcer para que haja bom senso e uma real vontade de melhorar a qualidade do

ensino no país, em todos os seus níveis.

As perspectivas

Diante dessa realidade em grande parte desanimadora, quais são as perspectivas p~ra este novo século? Será que o sistema escolar em geral e o ensino da geografia em particular - embora seus destinos não es tejam necessariamente identificados- vão sofrer uma melhora de qualidade no Brasil ? Para se ponder~r a esse respeito, devemos levar em consideração vários fatores, pois, no final das contas, a atividade educativa é parte de um todo maior, a sociedade, e sofre uma forte influência de numerosos processos socioeconômicos, políticos e culturais.

A educação no Brasil é o que é, pelo menos em parte, em virtude de nossa cultura no sentido amplo do termo: valores, hábitos, conceitos ou preconceitos arraigados, características das fam11ias, das relações de amizade e de parentesco, dos meios de comunicação de massa etc. Todo professor que tentou inovar radicalmente, que mudou a sua prática educativa procurando realizar bons estudos do meio, selecionar textos críticos para leitura e discussão, abordar novos temas/problemas etc. conhece muito bem as enormes dificuldades que enfrentou: muitos pais de alunos que reclamam e querem o tradicional , porque julgam que com isso os 'seus filhos terão uma maior chance nos vestibulares; alguns diretores de espolas que detestam qualquer no vo procedimento que saia da rotina preestabelecida; a pressão de muitos alunos (que não querem estudar de fato e preferem o comodismo das aul as expos iti vas e dos questionários nos quais se copiam as respostas) e até mesmo de alguns colegas, professores de diversas disciplinas que se sentem ameaçados por alguém que se esforça para melhorar e, dessa forma, deixa implícito para quem sabe refletir a fracrilidade das aulas repetitivas e não criativas. É lógico que tudo isso

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é ·Superável, pelo menos nas escolas mais abertas e flexíveis, mas, sem dúvida, que exerce uma tremenda pressão no sentido de manter o conservadorismo e o ensino tradicional. Afirmo isso tanto por experiência pessoal- pois lecionei no

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ensino médio e no fundamental (de 5ll a 8ll série) de 1970 até 1982, tendo enfrentado esses problemas mencionados- quanto por conversas com centenas de orient::mdos, ex-alunos e outros docentes nesses níveis de ensino, de diversas partes do país, que continuam a se defrontar com todas essas pressões e muitas vezes pensam em desistir do esforço não gratificad~ no sentido de uma renovação. Sempre os incentivo a persistir, a dialogar com os alunos e os seus pais, com os diretores e colegas etc., e reafirmo que essas dificuldades são momentâneas, normalmente duram alguns meses, após o que os alunos começam a gostar do novo método e a perceber que estão aprendendo mais e estão discutindo ou refletindo sobre temas bem mais interessantes que os tradicionais.

Também os meios de comunicação - ·jornais,. revist as , rádio e principalmente a televisão - influenciam bastante a educação e o ensino da geografia. Mas essa influência, no Brasil, é quase sempre no sentido de manter ou até piorar a realidade precária e atrasada. Cursos .ou redes de escolas particulares medíocres são exatamente aqueles que gastam mais recursos na mídia propagando os seus métodos- aquelas famosas indústrias escolares que vendem franquias e/ou apostilas de baixo nível e que apenas treinam os educandos para os exames vestibulares - e, com isso, acabam sendo divulgados como "exemplos de escolas bem-sucedidas". A mentira e o descaramento são tais que eles inventam centenas ou milhares de alunos seus que teriam sido aprovados neste ou naquele exame vestibular importante, e a mídia logicamente não averigua os fatos- e nem tem qualquer interesse nisso, pois essas escolas gastam rios de dinheiro em propaganda nos meios de comunicação-, ·que dessa forma acabam passando por verdades. Além disso, quando existe algum programa ou coluna (pretensamente) educativos nos meios de comunicação, algo raríssimo, com freqüência ele tão-somente reproduz conteúdos tradicionais e fossilizados: nomes de reis ou batalhas, de rios ou cidades-capitais, de usinas hidrelétricas etc. E antes que alguém venha com aquele discurso estereotipado e panf!etário- e no final das contas conformista -, segundo o qual os meios de comunicação no capitalismo são sempre assim, que eles necessariamente têm de tratar a cultura como mercadoria e nunca poderiam desempenhar um papel crítico etc., gostaria de lembrar que existem ótimos programas educativos (inclusive de.geografia e história) na televisão francesa e em várias outras, que a mídia norte·americana, em especial a CNN e o The New York Times, exerceu uma função essencial no final dos anos 80 ao denunciar o "analfabetismo geográfic'o" dos cidadãos em

- geral e dos estudantes em particular, propugnando uma completa re~ovação no ensino geográfico e até mesmo um maior número de aulas por semana.

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O futuro da educação, no essencial, depende de um projeto político de desenvolvimento. Ela só vai engrenar e avançar de fato no momento em que a sociedade brasileira - e as suas autoridades - perceber que não existe um desenvolvimento econômico e social sem um notável esforço no sentido de valorizar e reestruturar pàr completo a atividade educa ti v a. A sociedade brasileira· já perdeu muito tempo -mais de um século- com aquela arraigada crença de que vivemos num "berço esplêndido", que o nosso imenso território com suas riquezas minerais e hídricas, com uma "abundância de bons solos", irá nos garantir um futmo de prosperidade .. Muitos livros e professores de geografia, cabe reconhecer com tristeza, contribuíram· para essa alienação. Temos de combater esse estereótipo. Devemos mostrar a verdade: que os "recursos humanos"- isto é, uma população bem instruída e com um bom nível de renda

. ou poder aquisitivo- são muito mais importantes nos dias de hoje que eis recursos naturais, que nenhum país irá acompanhar a Terceira Revolução Industrial, irá se desenvolver enfim, neste novo século, se não tiver uma força de trabalho qualificada e com um elevado nível de escolaridade. E investir na educação, que é a base para a qualificação da força de.trabalho e paraa elevação do nível educacional da população, não significa no fundamental construir escolas ou prédios, atividade que com freqtiência gera um enorme desvio de recursos públicos (isto é, corrupção), mas, sim, valorizar e reciclar o professorado. Não é construindo prédios, muitos dos quais ficam inacabados ou nunca são utilizados, e tampouco reformulando constantemente os currículos e os organogramas, que se vai realmente melhorar a educação no Brasil. O elemento fundamental do sistema escolar é o professor: a sua formação, os seus rendimentos e as suas condições de trabalho, a necessidade de uma reciclagem ou atualização constante. E o mesmo vale para o aluno, que afinal é o destinatário da educação: não é

apenas, nem principalmente, refonnulando o cun·ículo e tampouco dificultando

ou eliminando a reprovação que se vai melhorar o nível ou a qualidade dos estudos. Isso só vai ocorrer quando o Estado brasileiro, em todas as suas esferas (federal, estadual e municipal), em consonância e parceria com a sociedade civil, investir seriamente em algumas condições mfnimas - tais como, por exemplo, a bolsa-educação e/ou outras formas de incentivo para as famíJi.as de baixa renda colocarem e manterem os seus filhos nas escolas, uma rigorosa proibição do trabalho de menores de 16 anos etc.-:- para que os jovens possam se dedicar preferencialmente aos estudos. Mas, por enquanto, isso ainda é uma utopia no Brasil.

Apesar dos pesares, de todos os problemas apontados, somos otimistas. A sociedade bras ileira é carcomida, extremamente injusta e com arraigados

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valores autoritá1i os, mas em muitas ocasiões demonstrou que reage com presteza e costuma estar antenada com o que se passa no resto do mundo, em especial nas economias mais desenvolvidas. Um importante traço nosso, que alguns consideram abominável- a abertura cultural para o exterior, a fácil assimilação de valores ou hábitos estrangeiros - talvez seja a grande riqueza ou o grande potencial de ffi lldançns. Em vez de encarar essa característica como inferioridade, como é tradição no nosso pensamento autori tário (de direita e de esquerda), devemos vê-la como garantia de pluralidade, como maior possibilidade de adaptações e in tercâmbios, como troca . de experiências afinal. Pois no fundamental não há nada de totalmente novo a ser inventado, nenhum caminho completamente inédito a ser descoberto e trilhado. O que há é a necessidade de recuperar o atraso e enveredar pelo caminho do desenvolvimento econômico e social que vaiori ze os recursos humanos e neles se apóie, que conserve os recursos naturais e ao mesmo tempo fomente uma maior justiça social, que combata os preconceitos - inclusive e principalmente aqueles contra os professores e a educação ·em geral, contra as humanidades, con lra a cultura popular- e promova uma generalização da igualdade de oportunidades. Será que o ensino da geografia tem algum lugar nessa necessária renovação econômica e social? Sem dúvida que sim, desde que assuma a orientação que já vem esboçando desde os anos 80 e que consiste em contribuir para a cidadania plena, em levar o educando a conhecer o mundo em que vivemos, desde a escala local até a global, sem nenhuma preocupação com conceitos petrificados e sempre levando em conta o fato de que este mu~do está sempre em processo de mudanças e transformações que não têm uma causa simples nem constante, mas, pelo contrário, resultam do entrecruzamento de inúmeros fatores que variam muito de acordo com a escala geográfica e com determinações culturais, econômico-sociais e até mesmo ambientais .

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1 CONCEPÇÕES DE GEOGRAFIA E DE

GEOGRAFIA ESCOLAR NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

Concepções contemporâneas de geografia

Para discutir as concepções teóricas da geografia no mundo contemporâneo, é necessário antes levantar alguns aspectos relevantes que caracterizam esse mundo. O primeiro deles é o fato de que o mundo hoje é

globalizado, Entende-se a globalização como um fenômeno de eliminação

de fronteiras entre os países de todo o mundo; que afeta múltiplos campos:

cultural, tecnológico, social, econômico etc., e que traz como conseqüência a construção de espaços de relações integradas. Ainda que se saiba que a globalização é um processo complexo e diverso, no qual participam efetivamente muitos países, mas não todos, e que essa participação ocorre de modos diferenciados, pode-se dizerque todos expei:imentàm, de fato, em muitos aspectos, uma aproximação de espaços. e uma integração de povos, ainda que estas sejam impostas por padrões econômicos globais hegemônicos, É, assim, um fenômeno que obriga a considerar a

. interdependência de escalas, já que nele ocorre a construção de espaços de relações mais integradas em que estão profundamente· inter-relacionados o local, o regional e o global.

A experiência da globalização acentua dois fenômenos paradoxais : de

um lado, a homogeneização dos espaços e da sociedade; de outro, a ampliação

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das desigualdades, com o agravamento de alguns problemas (que se tornaram globais), como a exclusão social, as desigualdades socioeconômicas, a violência, a fragmentação tenitorial, o desempn:go, a contaminação ambiental.

· É verdade que alguns pilares da globalização, confonne Vlach (2005), podem

ser considerados mitos, como o mercado mundial, ou como projetos ainda pouco vivenciados, como o de uma sociedade mundial. Mas, como afuma a autora: "a mundialização, por meio da coexistência entre tenitório e rede, evidenciou a complexidade do mundo e expôs as suas peculiares, imprevisibilidade, incerteza, instantaneidade e simultaneidade" (idem, p. 34).

Uma outra característica importante do mundo atual é o desenvol­vimento das chamadas tecnologias da comunic~ção e da informação. O mundo de hoje é um mundo de grandes avanços tecnológicos, sobrerudo nas áreas de comunicação e informação. Por um lado, esses avanços permitem a simultaneidade, ou seja, tornam possível "presenciar" todos os fenômenos e acontecimentos, já que a comunicação ocorre em tempo real; permitem colocar "à disposição", para todo o mundo, todo o conhecimento acumulado. Mas, por outro lado, a comunicação de massa tem levado a um

. processo de homogeneização cultural- como a universalização dos gostos,

da alimentação, dos hábitos de consumo, do lazer, dos modelos de vida

social - e de democratização da idéia de consumo, do ideal de consumo.

De fato, o advento das tecnologias nas áreas apontadas leva a que as pessoas vivenciem o mundo de modo mais próximo, provocando familiaridades a:p.tes impossíveis entre determinados lugares.' e suas representações pelos meios de comunicação; com essas tecnologias é também possível impor estilos de vida internacionais, globais, por meio da adesão, por cidadãos do mundo inteiro, ao consumo de alguns prcudutos e serviços que estão no marco de um mercado internacional ; para o funcionamento desse mercado aparecem a intern~t e todas as redes . telemáticas corno veículos da possibilidade de estar presente em qualquer ponto. do giobo a WJl só tempo. Todos esses eventos fazem com que boa parte do que sucede nas diferentes vidas cotidianas esteja influenciada por acontecimentos que vão além de seu entorno i.nlediato.

A urbanizaçãq também é uma característica relevante do mundo

contemporâneo, sobretUdo no mundo ocidental. As cidades são hoje locais complexos, que abrizam grande parte da população; são expressão da

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complexidade e da diversidade da experiência humana, da história humana. Considerando-se tanto as grandes como as pequenas áreas urbanas, é preciso

entendê-las no contexto da globalização e da informação, trazendo elementos

distintos para o cotidiano urbano, para os modos de viver o dia-a-dia da

cidade. Os dados estatísticos apontam, de fato, para a consolidação do fato da urbanização, pois, .num futuro próximo, mais da metade da população do planeta estará vivendo em cidades (Davis 2006); contudo, para além desses números .. é importante destacar que as formas de vida das sociedades atuais são predominantemente urbanas, o que implica a existência de interações cotidianas múltiplas; a residência em áreas de população concentrada; o ace~so em tempos "urbanos" a serviços de todo tipo -educa ti v o, recreativq, sanitário; a inserção em mercados de trabalho urbanos

(Blanco e Gurevichi 2002, p. 68) .

No contexto ôa globalização, pode-se, por um lado, constatar que aspectos desse contexto estão presentes de algum modo em todas as cidades, o que acaba por padronizar aspectos do cotidiano das pessoas que aí vivem. Por outro lado, constata-se também uma diversidade dos grupos que nelas '

vivem, uma multiplicidade de redes sociais, de manifestações culturais, em

disputa, em conflito. Com isso, elas vão sendo produzidas, vão sendo configuradas de diferentes maneiras, numa dialética do local/global, do homogêneo/heterogêneo, da inclusão/exclusão, para que seus habitantes -diferentes grupos, diferentes culturas, diferentes condições sociais- possam praticar a vida em comum, compartilhando, nesses espaços, desejos, necessidades, problemas cotidianos. A experiência com a diversidade de culturas enriquece a vida cotidiana nas cidades, tomando-as lugares de manifestações globais e universais, e lugares de encontros, lugares da diferença Por isso, destaca-se que a sociedaéle urbana tem-se tornado mais complexa, mais individualizada e mais multi e intercultural; nela, os comportamentos urbanos diversificaram-se, ao passo que algumas pautas culturais globalizaram-se e homogeneizaram-se.

Outra característica ainda é o multiculturalismo, que pode ser destacado

como uma intensificação da convivência 'entre povos de diferentes lugares

;::lo mmdo e com diferentes culturas, ocasionada pela maior comurucação

.:,ntre as ·pessoas do r:nÚndo inteiro, pelo maior deslocamento dos povos e pela facilitação relativa a entradas e saídas de países em diferentes regjões.

A geografia escolar e a cidade 17

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Page 21: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

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Nesse quadro da contemporaneidade, é preciso destacar a busca de novos paradigmas de conhecimento, de ciência, destacando-se os avanços no campo da microeletrônica e da revolução biológica. Buscam-se teorias compatíveis com o mundo atual, que dêem conta dà tarefa de compreender

a complexidade desse mundo e as possibilidades de nele intervir. É base

para o entendimento do mundo nesses paradigmas o princípio da incerteza no campo da ciência (cf. !vlorin eLe Moigne 2000).

Esses aspectos do mundo contemporâneo revelam transformações que são mais que uma simples mudança * fatos e processos econômicos; . o contexto atual é, na verdade, o de uma nova cultura, de novos processos de identidades, de um novo espaço, de uma nova territorialidade ou de uma "desterritorialização/reterritorialização" (Haesbaert 2006). Enfim, uma espacialidade que é bastante complexa e que requer análises amplas. Para essa análise, têm sido demandados conhecimentos integrados, interdisciplinares, abertos, na perspectiva da complexidade, que consigam abalar a tradição moderna de produção · de conhecimento científico, principalmente aquela que tem dado maior ênfase a uma racionalidade objetiva, técnica e operacional.

A geografia, nesse contexto, tem também se reestruturado, tornando­

se uma ciência mais plural. Por um lado, ela reafmna seu foco de análise,

que é o espaço, mas, por oU:~!' toma-se mais consciente de que esta é uma . dimensão da realidade, e não a <própria realidade, complexa e interdisciplinar por si mesma. O espaço como objeto da análise geográfica é concebido não como aquele da experiência empírica, não como um! objeto em si mesmo, a ser descrito pormenorizadamente, mas sim comq uma abstração, uma construção teórica, uma categoria de análise quê permite apreender a dimensão da espacialidade das/nas coisas do mundo. O espaço geográfico é, desse modo, concebido e construído intelectualmente como um produto social e histórico, que se constitui em ferramenta que ;permite analisar a realidade em sua dimensão material e em sua representàção. Tanto é assim que cada vez mais se reafirma o conteúdo material e simbólico na totalidade do espaço, tornando-o mais aberto em suas determinações e mais imprevisível em suas configurações.

Partindo dessa ferramenta intelectual, há, atualmente, urna diversidade

de perspectivas da análise geográfica (que estão basicamente fundàrn.entadas

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na perspectiva fenomenológica, dialética e sistêmica, ou em ~gum modo de inter-relação entre elas), que contribuem, cada uma a seu modo, para a compreensão da espacialidade contemporânea; a meu ver, essas perspectivas

, da análise geográfica possuem algumas bases comuns, como, por exemplo,

o fato de colocarem-se como uma ciência social de relevância e de investirem

na busca de um marco teórico e conceitual consistente e articulado. N~sse . .

novo cenário das ciências, e da ciência geográfica no Brasil, em ·pá.rticular, ocorre também uma preocupação com o papel dos geógrafos (cf. Moreira 2007; Haesbaert 2006, entre outros), com as questões que os preocupam, com sua especificidade, com as ferramentas que utilizam em suas análises.

A geografia busca, assim, estrutUrar-se para ter um olhar mais integrador e àberto, ao mesmo tempo, às contribuições de outras áreas da ciência e às diferentes especialidades em seu interior; um olhar mais ·. compreensivo, mais sensível às explicações do senso comum, ao sentido dado pelas pessoas para suas práticas espaciais. Como atinna Ballly (apud Claval2002), em uma análise que parte da perspectiva da geografia cultural, a constituição do social passou a ser apreendida de outra forma, pois se entende que ela se implanta no jogo das representações que as pessoas recebem do mundo circundante. Como aflrma Clava!, .na perspectiva

cultural, os geógrafos "não hesitam mais em falar dos indivíduos, em contar

a vida deles, em acreditar erh seus depoimentos" (idem, p. 26). Ou, como também, mas em outra perspectiva, nos fala Santos (1999), o lugar é a instância da resistência ou da possibilidade de efetivação das práticas globais mais estruturais. Seja numa perspectiva ou noutra, parece que na geografia não se admite mais excluir as diferentes compreensões, explicações, determinações da configuração do real, simbólicas, econômicas ou naturais. Entende-se que o real é complexo, composto por elementos. subjetivos e objetivos , naturais e sociais, o que encaminha o discurso geográfico na busca das inter-relações entre esses elementos e da eliminaÇão .das dicotomias. Como sugere Suertegaray (2002); baseando-se na compreensão de complexidade de Morin, é preciso superar ria geografia certas dualidades, como: natureza/sociedade, natureza/cultura,· tempo/e11paço, cidade/campo, local/global, lugar/mundo, teoria/prática, conhecimento/ação, téCnica/poesia, ensino/pesquisa, ensino/aprendizagem, bacharel/professor, geografia física/

geografia humana.

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Com a contribuição dos pensadores, buscou-se avançar numa no va

compreensão do espaço, de sua historicidade e de sua relação dialética com. a

sociedade. Na verdade, já nesse primeiro período do movimento de renovação havia uma multiplicidade de entendimentos do que seria essa geografia crítica, ou mesmo geografias críticas. Como afirma Moreira (2007, p. 2')):

As temáticas do marxfsmo e da renovação da geografia cruz.am­se, portanto, nesse momento. Proximidade de onde é tirada a idéia generalizada do marxismo como a base filo sófica e político­ideológica da renovação. Idéia generalizada, porém fal sa: há marxistas, há quem passe ao largo do marxismo e há mesmo antimarxistas entre os envolvidos no processo da reformulação da geografia. É um fato que os geógrafos "descobrem" Marx ( ... ) Mas é preciso dizer que se um inédito processo de refundição marxista ocorre por dentro da renovação da geografia, a renovação, todavia, não se confunde com o marxismo e os geógrafos de formação marxista. Até, porque, verdadeiramente, o que há é um movimento plural, convergente apenas no que toca ao descon­tentamento a todos comum, que existe em relação ao discurso geográfico vigente.

Destaca-se dessas considerações a pluralidade po discurso geográfico já existente desde os anos de 1980. Porém, a predominância e a repercussão de certos textos e autores com vinculação ao discu~so marxista permitem falar em, pelo menos, uma predominância dessa orie~tação , nesse momento do movimento, embora já se reivindicasse a consideràção dessa pluralidade,

o que foi se tomando uma conduta mais consolidada da geografia nos anos de 1990.

No âmbito da geografia escolar, ainda que se reconheça que aí também não havia, desde o inicio dessa renovação, uma unidade na geografia crítica, havia, pelo menos, denúncias comuns, que expressavam um descon­

tentamento quanto aos rumos que tomavam as práticas de seu ensino. 2

2. Aqui é importante fazer menção a obras que se tomaram clássica~ do petiodo, como Oliveira (1989), Vesentini (1989), revista Terra Livre, n. 8 (1991).

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Mas é preciso mencionar que esse descontentamento também não era

novidade, já que a história da .geografia escolar no Brasil, {>elo exame çie

textos de geógrafos preoq1pados com o ensino dessa matéria em períodos anteriores à sua renovação (cf., entre outros, Vlach 2004 e Vesentini 2004), é marcada pelo enfrentamento dos mesmos problemas evocados·: a geografia como era ensinada não atraía os alunos; não havia uma consciência da importância dos conteúdos ensinados por essa matéria; o saber por ela veiculado era inútil e sem significado para os alunos, serviri.do, antes , aos projetos políticos de formar um sentimento de patriotismo acrftic~, estático e naturalizante; a memorização tomou-se seu principal objetivo e também orientou sua metodologia. · ·

Em contrapartida, era preciso encontrar novos caminhos. A busca por esses novos caminhos igualmente faz. parte da história dá geografia · escolar. Desde sempre (pelo menos desde o início do século XX), procurou­"se atribuir significado à geografia que se ensina para os alunos, tomando-a

mais interessante e mais atraente e possibilitando seu aprendizado por eles.

Nesse momento de renovação do ensino de geografia- na década de 1980, como já se disse, predominavam idéias de caminhos alternativos que se orientavam pelo marxismo, ou peio materialismo dialético-, questionava­se a estrutura dicotômica e fragmentada (composta por "partes ·estanques") do discurso da geografia (de um lado, apresentavam-se os fenômenos naturais; de outro, os humanos), e algumas propostas buscavam inserir nesse discurso elementos da análise espacial. Mais do que localizar e descrever elementos da natureza, da população e da econortiia, de forma

separada e dicotomizada, propunba-se uma nova estrutura para esse conteúdo

escolar, que tivesse como pressupostos o espaço e as contradições sociais, orientando-se pela explicação das causas e decorrências das· lçx:alizações de certas estruturas espaciais.

A partir de 1990, o c~ntexto sociopolítico, cientÍfico e educacional apontava para uma crise. e ao mesmo tempo para a necessidade de uma

ampliação dos referenciais interpretativos da realidade, corrio foi destacado

na primeira parte deste capítulo, quando analisamos o ·contexto da globalização na atualidade. Nesse cenário, tal qual a geografia acadêmica, surgiram novos canúnhos na investigação sobre o ensino de geografia, e as orientações para o trabalho docente com essa matéria escolar foram se

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reconstruindo, com base no contexto mencionado. Mais do que propostas de ensinar con teúdos críticos, como foi a tônica na década de 1980, começaram a ganhar "corpo" diferentes propostas alternativas (não mais com a predominância das de ~unho marxista) para ensinar criticamente conteúc;los críticos. Algumas pesquisas interpretam os diferentes períodos e têm demonstrado que as propostas para o ensino de geografia, a partir da década de 1990, incorporaram mais explicitamente a fundamentação pedagógico-didática, definindo, com base nessa fundamentação, diferentes

·métodos para o ensino de geografia (Zanatta 2003).

Nessas duas últimas décadas do sécu lo XX ocorreram variados "eventos" que contribuíram para mais uma reforrqulação da geografia escolar, bem como da geografia acadêmica. Destacam-se, nesse sentido, a

. investigação sobre ensino de geografia (seja na forma de estudos de mestrado · e doutorado, seja como projeto investigativo realizado por equipe de especialistas no âmbito das instituições de ensino superior), que se ampliou substancialmente nesse período, as palestras e os debates nos espaços da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), a divulgação 'de resultados da investigação ~o ensino de geografia em livros e em artigos de periódicos nacionais. Toda essa produção buscou analisar o ensino de geografia e

. propor orientações com vistas a alterações em sua prática, orientações explicitadas nos livros didáticos mais recentes, em livros acadêmicos e em diversas diretrizes curriculares, destacando-se, aqui, pela sua abrangência,

·os Parâmetros Cuniculares Nacionais (PCNs 1998).3

Percebe~se, desse modo, que há caminhos paralelos na produção

teórica da geografia acadêmica e da teoria sobre o ensino, que são, por sua vez, duas referências importantes para a composição da g~ografia escolar.

· · 3. Não se pode, entretanto, deixar de assinalar que, apesar de já ter sido amplamente criticada e teoricamente superada (como demonstra uma grande quantidade de pesquisas a respeito), a prática desse eruino continua •-1uase inalterada, predominando até agora o ensino tradicional, baseado na memorização de c!ados isolados, e ainda tendo como critério de avaliação da aprendizagem dos alunos a sua capacidade de reproduzir os conteúdos apresentados, sem questionamentos, sem muito espaço para a reelaboração, para a construção de conhecimeatos novos, para a produção da autonomia de Pensamento geográfico.

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Pode-se dizer, ~omisso, que, embora a geografia acadêmica e a geografia escolar sejam duas estruturações de um mesmo campo científico, que gu'arctam estreita relação entre si, essa relação não é de identidade.

A estruturação da geografia escolar é realizada e praticada em última instância pelo professor dessa matéria, em seu exercício profissional cÓtidiano. Para isso; ele tem múltiplas referências, mas as mais diretas são, de tL'Tl lado, os conhecimentos geográficos acadêmicos, tanto a geografia

acadêmica quanto a didática da geografia, e, de outro, a própria geografia

~scolar já constituída.

Na busca pela compreensão de corno se estruturam os conhecimentos ~scolarés, ref~rentes às diversas áreas do conhecimento cientifico (no caso, a geografia escolar), é interessante considerar, por exemplo, o conceito de conhecimento didático do conteúdo, elaborado por Shulman (apud Marcelo García 2002a),· e que representa a combinação adequada entre o conhecimento da m~téria a ensinar e o conhecimento pedagógico e didático referido a corno ensiná-la. Essa combinação fundamenta o professor em relação à forma de brganização e de representação da matéria.

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Outra refer~ncia importante sobre a constituição desses conhecimentos é a tese da transposição didática de Chevallard (1997) . Segundo o autor, a fransposiçãci é um processo amplo, de "passagem" do saber acadêmico ao saber ensinado, que não se restringe ao ato de preparar didaticamente um curso, mas que envolve toda a reflexão pedagógico-didática

e epistemológica sobre os saberes, em vários níveis, desde a que é realizada

por aqueles que se dedicam a sistematizar teoricamente esse processo, os estudiosos da didática, passando pela que é feita pelos elaboradores de propostas e diretrizes curriculares e pelos autores de livros didáticos, até a reflexão efetuada pelo professor que prepara seu curso, que faz suas opções de conteúdo. O conceito de transposição didática, ainda que se . possam

fazer adequações e/ou críticas pelo entendimento do processo que a ele se pode <tssociar, parece adequado para a compreensão dos diferentes aspectos que envolvem o processo de constituição dos conteúdos de geografia que st~ veiculam na escola. A transposição didática, nessa compreensão, configura a geografia escolar tendo em vista o funcionamento didático e a dinâmica própria dessa disciplina em face das demandas da academia e das der.1andas sociais.

A geografia escolar e a cidade 25

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A consciência da especificidade das geografias acadêmica e escolar e de suas relações contribui para que o professor não se angustie por não "aplicar" seus conhecimentos acadêmicos na prática docente, pois a geografia escolar tem uma especificidade (cf., por exemplo, Goodson 1990), que advém em parte dos conhecimentos acadêmicos, em parte do movimento

autônomo dos processos e práticas escolares e em parte das indicações

formuladas em outras ~stâncias, como as diretrizes curriculares e os livros didáticos. Compreendendo assim o processo, o professor poderá perceber­se como parte desse conjunto de "realizadores" da geografia escolar, assumindo nele urna posição de sujeito, com relativa autonomia e acentuado senso crítico.

A reflexão sobre essa questão está vinculada à teoria do cuniculo, especificamente na linha da história das disciplinas, e à didática das ciências,

e tem importantes contribuições, além das já mencionadas no texto (cf.,

entre elas, Lopes 1997, 2007). Essa linha de reflexão procura destacar as

diferenças entre a estrutura das disciplinas escolares e a estrutura dos ramÇls científicos de referência, entendendo que entre elas não há uma relação de hierarquia, uma transposição direta ou mecanismps dê simplificação; o que há são mediações didáticas (Lopes 1997), has quai s o conteúdo é

reconstruído, alguns ternas são escolhidos , erfatizados , e outros são

desconsiderados. Essas reflexões estão articuladas a uma concepção de

cultura escolar múltipla, que entende que os sab~res veiculados na escola incluem as práticas sociais e não estão ligados apenas a uma cultura sistematizada cientificarnepte. Nesse processo, as· disciplinas esçolares sofrem influências diversas , tendo como panorama ·mais amplo a cultura social prnticada.

Há, assim, outras referências na composição da· geografia escolar, para além da ciência, como, por exemplo, as concepções pessoais dos

professores resultantes de sua experiência com a geografia e com a prática

escolar (com respeito a ternas como: ensinar geografia, aprender geografia, ser bom professor de geografia e muitas outras) . Outras referências são as própr-ias práticas escolares, ou seja, o modo como se -organiza a .escola quanto às orientações de currículo e de planos de ensino, às referências oficiais (diretrizes curriculares, livros didáticos), à forma como o professor organiza as atividades de planejamento e avaliação do projeto pedagógico,

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e, em cada uma dessas atividades, à forma. como ele lida com a geografia e com os conhecimentos geográficos.

A investigação a.respeito dos caminhos percorridos e configurados na geografia escolar é ímportante e necessita ser aprofundada. Sua

importância está, no meu entendimento, relacionada a vários fatores. Emre eles destaco dois pontos. O primeiro é o de que essa reflexão permite esclarecer que a geografia escolar tern um estatuto próprio e não necessariamente está subordinada ao que se prescreve para ela na Academia, e o segundo é o de que a geografia escolar não é uma simplificação da ciência, no sentido de se ter como parâmetro a referência· direta dos conhecimentos científicos para o cotidiano dos alunos. Sua razão de ser deve estar assentada na possibilidade de permitir o questionamento tanto do conhecimento cientifico quanto do conhecimento cotidiano. Sobre isso;

argumenta Lopes (1997, p. 54):

A partir do processo de problematização das relações entre essas esferas do conhecimento, podemos procurar pensar nas possíveis contribuições do conhecimento cotidiano ao conhecimento científico. No mínimo, o conhecimento cotidiano é capaz de coriferir ao conhecimento científico a noção do circunstancial e imediato, e de evitar sua tendência à onipotência [por outro lado] o conhecimento escolar, que envolve a (re) construção do conhecimento científico, não pode perder de vista a (re)construção do conhecimento cotidiano ( .. . ) devemos conceber a escola como instituição que tem por objetivo contribuir para questionar as concepções cotidianas de todos nós. ·

Com base nessas considerações, pode-se dizer que a· pesquisa no campo da didática e da formação de professores tem contripuído para

desenvolver algumas indicações sobre essa questão:

1. a geografia escolar não se identifica com a gebgrafia acadêmica, ainda que não possa dela se · distanciar; ela é sua referência fundamental, é fonte básica de sua legitimidade; ·

2. a geografia escolar não é a geografia acadêmica estruturada

segundo critérios didáticos e psicológicos, ainda que ê$tes também

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sejam referenciais importantes. Com base nes:ses critérios, constrói-se o saber geográfico a ser ensinado, estabelecido em cursos de formação acadêmica, nas diretrizes curriculares, nos livros didáticos, o que não é ainda .a geografia escolar;

3. a geografia escolar é o conhecimento geográfico efetivamente . ensinado, efetivamente veiculado, trabalhado em sala de aula. Para sua composição, como já foi di to, concorrem a geografia acadêmica, a geografia "dídatizada" e a geografia , da tradíção prática Essa composição é f~ita pelos professores 'no coletivo,

por. meio do conhecimento que constroem sobre geografia escolar.

Esse conhecimento é extremamente significativo na concepção

de que conteúdos da matéria ensinar. Nele têm paper relevante as crenças adquiridas no plano do vivido pelo professor como cidadão; o conjunto de concepções, crenças adquiridas na vida, incluindo aí a formação profissional universitária (a inicial e a continuada); as práticas sociais, as práticas de poder e a prática instituida na própria escola.

Enfim, a geografia escolar não se ensina, ela se constrói, ela se realiza.

:Ela tem um moVimento próprio, relativamente independente, realizado pelos professores e demais sujeitos da prática escolar que tomam decisões sobre ·o que é ensinado efetivamente. Assim, a escola é e pode ser importante espaço parapromover a discussão e a avaliação desse conhecimento. No

· . campo da pesquisa em didática da geografia, deve-se conhecer a ~eografia

escolar, para submetê-la à análise critica, compreendendo seus fundamentos,

suas origens; análise a ser feita pelo conjunto de professores.

Destaca-se nessa discussão a reflexão sobre conhecimento e saberes docentes, sobre a relação teoria e prática. No senso comum, o momento da formação é o da divulgação, da discussão e do acesso à teoria, e o momento da prática é o da aplicação dessa teoria. Nessa linha, a teoria, a boa teoria, traz explicações • recisas da realidade, sendo, com i~so, capaz de dar orientações seguras para a prática. Trata-se de uma concepção de que há uma linearidade que parte da teoria para a prática e de que há superioridade

da primeira em relação à segunda. A separação entre teoria e prática está ligada à divisão social do trabalho, que historicamente repercutiu em uma

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I hierarsuização das atividades, discriminando e desvalorizando algumas delas . Nessa linha, consolidou-se a concepção de que a teoria tem a ver com uma compreensão científica, mais geral, que rompe com as manifestações

pcniculares da prática e sistematiza o conhecimento.

Esse entendimento traz a idéia de que a teoria é a dimensão própria ds. ciência e dos cursos de formação urúversitária, nas licenciaturas por exemplo, e a prática, a dimensão das escolas e dos professores; a teoria é produzida pela pesquisa e veiculada pelos processos formativos, enquanto a prática dos professores nas escolas é vista como desprovida de saberes

ou portadora de um saber "menos confiável", porque mais próximo do

senso comum: Assim, há uma crença de que o mundo da teoria tem o papel

de contribuir para melhorar o mundo da prática.

Para superar essa concepção, renWlciando de vez à crença de que as teorias determinam a r.ealidade prática, é preciso pensar na teoria e na prática como duas dimensões da realidade, não necessariamente realizadas em lugares e por pe~soas diferentes, mas como dimensões indissociáveis. E essa compreensão ajuda a encarar de Ol)tro modo os processos formativos do professor, e no cruio deste texto interessa pensar no professor de geografia,

no campo da teoria r da geografia acadêmica, e nos processos práticos de o

f01mação, na escol<l\ no exercício da profissão, na formulação de teorias na dimensão de sua funcionalidade imediata. Essa compreensão é fundamental, por su~ vez, para pensar nas mudanças necessárias, tanto na teoria quanto na prática da geografia escolar, nesse cenário analisado ao

longo do capítulo.

A educação geográfica no contexto contemporâneo

Considerando, então, o movimento próprio da geografia e suas inter­relações com a geografia acadêmica e seus desdobramentos e preocupações contemporâneas, como se pode analisar a geografia escolar atual?

Como foi abordado, nos últimos 20 anos, o conjunto de profissionais

ligados c:.o c;nsino -e especificamente ao ensino de geografia - no Brasil tem

procUr<iclO produzir teorias e práticas de ensino mais de acordo com as tarefas ;ociais que essa área profissional deve cumprir. Há uma produção na

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área de geografia que procura dar conta do contexto contemporâneo em suas diferentes dimensões - científica, cultural, educacional, social -, e essa produção, como foi já apresentado neste texto, aponta para a necessidade de conhecimentos mais integrados, mais abertos , para conseguir abarcar a

complexidade inerente à realidade. Portanto, para a educação, as tarefas são

igualmente complexas. Deve-se ter como meta, nesse camp_o, formar indivíduos mais aberto~, mais sensíveis, e ao mesmo tempo mais informados, mais velozes, mais críticos. Com o intuito de cumprir as delicadas tarefas da formação básica de oidadãos para o mundo contemporâneo, via educação escolar e especificamente via ensino de uma das matérias escolares, investiu­se bastante nos últimos anos em pesquisas sobre o ensino de geografia e

sobre a metodologia de ensino dessa matéria. Por meio desses estudos foi

possível realizar diagnósticos, colher depoimentos de professores, de alunos

e de outros sujeitos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem dessa matéria, analisar materiais didáticos etc. Com tudo isso, várias propostas pedagógico-didáticas puderam também ser sistbmatizadas.

Nas discussões entre os geógrafos (bacharéis e professores de geografia), percebe-se cada vez mais a incorporação dessa temática; assim como nas pesquisas acadêmicas, inclusive em dissertações e teses. 4 Pode­se dizer que no âmbito da geografia acadêmica ligada ao ensino houve significativos avanços, que podem ser pontuados da seguinte maneira: em primeiro lugar, o número dos trabalhos nessa área tem aumentado bastante nos últimos anos e eles têm-se constituído em ricos diagnósticos da geografia ensinada e produzida no país, fornecendo parâmetros para a avaliação de propostas curriculares, de políticas educacionais , . de · livros didáticos, de

metodologias e de procedimentos empregados no ensino (cf. Pinheiro 2005); em segundo lugar, pode-se já apostar núm processo inicial de

reconhecimento da legitimidade e da relevância da pesquisa no ensino de geografia realizada pela comunidade acadêmica:

4. .- Para apontar um indício dessa incorporação, pode-se citar a di~tinção de um grupo de trabalho com a temática do ensino no último encontro da Assoei ação Nacional de .

Pós-Graduação em Geografia (Anpeg). Nesse ericon!ro, foram apresentados e discutidos, no âmbito desse GT, diversos trabalhos, com temáticas em torno da

questão ambiental, da cartografia e de currículo, entre outros.

Nesses primeiros anos do século XXI, diante dessa realidade esboçada, algumas preocupações teóricas têm resultado em indicações para a prática de ensino de geografia. Entre elas podem ser destacadas:

• Reafinnação do lugar como dimensão espacial importante: o lugar é a vida cotidiana; o cotidiano é o lugar do desejo, do sentido, contrapondo com a necessidade, a ordem distante. O lugar passou a ser visto como referência necessária, como escala de análise dos conteúdos do ensino; o ensino da geografia passou a ter como objetivo relevante estudar o lugar para compreender o mundo

(Callai 1999, 2001, 2003).

Articulação local-global como superposição escalar poten­cializadora do raciocínio espacial complexo. Pode-se falar em um revigoramento da proposta de incorporação do conceito de espacialidade diferencial, de escalas diferenciadas/multiplicidade escalar, para superar o conceito de obstáculo de região. O dado global, visto como conjunto articulado de processos, relações e estruturas de Uih dado espaço, tem um significado es~cífico, peculiar em cada lugar; mas esse lugar não pode ser apreendido completamente se não se fizer uma articulação de seu significado com a totalidade da qual faz parte. Portanto, trabalha-se com uma compreensão de interdependência dialética entre local e global. Busca-se entender os fenômenos na relação parte/tod o , concebendo a totalidade como dinâmica.

Formação de conceitos geográficos instrumentalizadores do

pensamento espacial é meta a ser buscada no ensino de geografia.

A formação de conceitos pressupõe encontro e confronto entre conceitos cotid!anos e conceitos científicos. A respeito dessa orientação metodológica, tenho buscàdo apresentar contribuições fundamentadas no pensamento de Vygotsky (1984), destacando a relação necessária entre cotidiano, mediação pedagógica e formação de conceitos no desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem. Em relação ao ensino de geografia, tenho insistido na idéia de que encaminhar o ensinopor meio dessa orientação

requer um olhar atento para os conhecimentos cotidianos dos

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alunos, especialmente seus conhecimentos a respeito do lugar onde. vivem e suas repres::mtaçOes sobre os diferentes lugares do globo. Esse entendimento implica ter cofuo dimensão do conhecimento geográfico o espaço vivido, ou' a geografia vivenciada cotidianamente na prática social dos 3.Iunos. Sendo assim, o professor deve captar os significados que os alunos dão

. aos conceitos científicos que são trabalhados no ensino. Isso significa a afinnação e a neg~ção , ao mesmo tempo, dos dois níveis de conhecimento (o cotidiario e o científico) na construção do conhecimento, tendo, contudo, como referência imediata, durante todo o processo, o saber cotidiano do aluno.

• Inclusão da discussão de temas emergentes para a compreensão

·da espacialidade contemporânea, como gênero, questões étnico­

raciais, turismo, violência urbana. Esses temas, que fazem parte

do cotidiano dos alunos, são veiculados de modo recorrente pela mídia, o que acaba acarretando .o risco de que sejam tratados de modo superficial, com forte viés ideológico e preconceituoso. Na lógica que rege a sociedade contemporânea, há uma tendência a que se tornem também objetos de espetacularização. Aos profes ·ores cabe trazer os temas para serem debatidos, com transparência, permitindo todas as "falas" possíveis, propiciando a divergência e explicando sua complexidade.

• Desenvolvimento da linguagem cartográfica. Essa indicação me.todol6gica tem como um dos eixos norteadores a alfabetização cartográfica e o trabalho com as representações de mundos visíveis, objetivos, e de mundos subjetivos, numa compreensão de que representações cartográficas não se limitam ao mapeamento e à localização objetiva e fixa das coisas , mas devem dar conta de

um espaço fluido, em rede, pleno .de significações e sentidos.

Esse parece ser o intento das recomendações e das pesquisas que têm como foco tanto trabalhos com mapa mental como aqueles voltados para o geoprocessamento _e a produção de recursos didáticos .

• Educação ambiental e preocupação com o conceito de ambiente

e de ambiência, com a questão ambiental e qualidade de vida,

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com a preservação/conservação da natureza, com sua valorização e com a definição de formas de uso. Essa indicação está bastante consolidada nos meios educacionais, com experiênCias inter e transdisciplinares bastante interessantes e frutíferas, requerendo, no entanto, sua discussão constante, no sentido de ampliar a criticidade de suas metas e especificando caminhos para formar valores ambientais por mGio de conteúdos escolares específicos.

Incorporação de outras formas de linguagem (ou outras formas de leitura da realidade), como o cinema, a música, a literatura, as charges, a internet. É verdade que a sociedade mudou e avançou em muitos aspectos, e que a escola e o ensino de geogràfia não têm acompanhado satisfatoriamente essa mudança. Por isso

mesmo, a escola e o ensino d~. geografia precisam, de fato, mudar,

pr~cisam estar mais ligados à vida social atual. Mas isso não

significa esperar que a escola se transforme em um "fliperama", que se organize como se fosse uma "casa de jogos eletrônicos". Tampouco o professor de geografia deve se comportar como um animador de TV, como um mediador de um reality show. Nem o ~onteúdo geográfico tem de se tomar um tema de programa de vídeo ou de TV. Acredito que não é assim que a escola vai estar mais "antenada" com o mundo atual. Ela não precisa ser outra coisa para exercer sua função na sociedade, mas também

·não pode continuar sendo o que é. Considero, de qualquer forma, que a escola (e o ensino de geografia) mantém sua atualidade ·como espaço onde se desenvolve o trabalho com o saber, com a cultur<;i, em busca do crescimento intelectual de seus alunos. Seu papel, nesse sentido, é ampliar o uso de procedimentos de ensino

que sejam propiciadores da manifestação dos sujeitos, de sua

·diversidade e do processo de significação de conteúdos , inclnindo

a música, a: literatura, o cinemà, a cartografia, o estudo do meio, os jogos de simulação.

Essas atuais preocupações e indicações práticas têm como pressupos to que a educação geográfica proposta para uma sociedade

complexa como é a sociedade contemporânea, e realizada com os

A geografia escolar e a cidade 33

Page 28: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

. .

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conhecimentos da geografia escolar, deve levar em conta que os interesses, as atitudes e as necessidades individuais e sociais dos alunos mudaram em decorrência dessa nova realidade espacial. Sendo assim, não pode ficar alheia às mudanças da geografia acadêmica. Para que os alunos entendam os espaços de sua vida cotidiana, que se tomaram extremamente complexos, é necessário que aprendam · a olhar, ao mesmo tempo, para um contexto mais amplo e global, do qual todos fazem parte, e para os elementos que caracterizam e distingu~m seu contexto local. Para atingir os objetivos dessa educação, deve-se levar em consideração, portanto , o local, o lugar do

aluno, sempre visando propiciar a construção, por ele, de um quadro de

referências mais geral que lhe permita fazer análises c1iticas desse lugar.

No contexto esboçado neste capítulo, então, que geografia ensinar? Em outras palavras, como se deve constituir hqje a geografia escolar?

Antes de qualquer coisa, ensinar abs alunos os conteúdos considerados relevantes para compreender a espacialidade atual, tal como foi aqui caracterizado. No entanto, mais do qt1e conteúdos, é necessário, também, ensinar-lhes modos de pensamento e ação, ou seja, por meio de atividades proporcionadas nas aulas, por meio do trabalho com os conteúdos, os professores devem propiciar o desenvolvimento. de certas capacidades e

habilidades, como:

uma atitude indagadora diante da realidade que se observa e se

vive cotidianamente;

uma capacidade de análise da realidade, de faws . e fenômenos,

em um contexto socioespacial;

a consideração de que os objetos estudados têm diferentes.escalas, ou seja, levar em conta suas inserções locais e globais;

a consideração de que há uma multiplicidade de perspectivas e

tipos de conhecimento;

uma compreensão de que conhecer é construu subjetivamente a

realidade;

uma percepção de que há cada vez mais temas polêmicos (que as coisas não são simples; que sempre há um lado e outro na construÇão de explicações sobre uma dada ·realidade);

34 Papirus Editora

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uma compreensão de que os fenômenos, os processos e a própria geografia são históricos;

uma convicção de que aprender sobre o espaço é relevante, na medida em que é uma dimensão constitutiva da realidade.

A consideração da geografia escolar como uma maneira específica de raciocinar e de interpretar a realidade e as relações espàciais, mais do

que uma disciplina que apresenta dados e informações sobre lugares para

que sejam memorizados, aproxima a disciplina dos princípios construti vistas. Ou seja, pautar o ensino no desenvolvimento de determinadas capacidades, a serem desenvolvidas por meio do trabalho com os conteódos, requer a escolha de caminhos adequados para levar a cabo 6 próprio ensino. Dessa forma, a reflexão sobre os conteúdos leva também à reflexão sobre métodos de ensino, pois são elementos integrados no contexto didático.

Para pensar sobre aspectos metodológicos do ensino de geografia, tendo em vista o que já foi exposto, entendo que o primeiro passo é colocar o aluno como centro e sujeito do processo de ensino, para, a partir daf,

. refletir sobre o papel do professor e da geografia, que são elementos igualmente fundamentais no contexto didático. Trata-se de ·um processo dinâmico em que todos esses elementos são ativos. O aluno, com su u experiência cotidiana a ser considerada em sua aprendizagem, é sujeito

, ativo de seu processo de formação e de desenvolviinento intelectuál, afetivú

e social; é sujeito que tem idéias em construção, que têm a vercom seu

contexto social mais imediato; o professor, com o papel de mediador do processo de fonnação do aluno, tem o trabalho de favorecer/propiciar a inter-relação entre os sujeitos (alunos) e os objetos de conhecimento; a geografia escolar, que representa um conjunto de instrUmentos simbólicos, conceitos, categorias, teorias, dados, informações, procedimentos, constituído em sua história, é uma mediação importante da relação dos alunos com o mundo, contribuindo assim para sua formação geral . .

Nesse ponto, cabe reafirmar a importância da geografia escolar para a formação dos alunos. Na relação cognitiva de crianças, jovens e adultos com o mundo, o raciocínio espacial é necessário, pois as práticas sociais

cotidianas têm uma dimensão espacial; os alunos que estudam geogratla já

Page 29: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

· I

possuem conhecimentos geográficos oriundos de sua relação direta e

cotidiana com o espaço vivido. O trabalho de educação geográfica ajuda os alunos a desenvolver modos do pensamento geográfico, a intemalizar métodos e procedimentos de captar a realidade tendo consciência de sua espacialidade. Esse modo de pensar geográfico é importante para a realização de práticas sociais 'variadas, já que essas práticas são sempre práticas soc~oespaciais. A materialização dessas práticas que se realizam num movimento entre as

pessoas e os espaços vai-se tornando cada vez mais complexa, e sua compreensão cada vez mais difícil, o que requer referências conceituais sistematizadas, para além de suas referêi1cias espaciais cotidianas, carregadas de sentidos·; de histórias, de imagens, de representações.

Portanto, para que o aluno aprenda geografia não apenas para assi..rnilar e compreender as informações geográficas disponíveis (que são importantes em si mesmas), mas para formar um pensamento espacial, é necessário que forme conceitos geográficos abrangentes. A idéia que tenho trabalhado

é a de que esses conceitos são ferramentaS fundamentais para a compreensão

dos diversos espaços, para a localização e a análise dos significados dos

distintos lugares e de sua relação com a vida cotidiana. o desenvolvimento do pensamento conceitual, que permite uma mudança na relação do sujeito com o mundo, que proporciona ao sujeito generalizar suas experiências, é papel da escola e das aulas de geografia. No entanto, sabe-se que os conceitos não se formam na mente do indivíduo por transferênCia direta ou por

reprodução de conteúdos. Nesse processo é preciso considerar os conceitos

cotidianos dos sujeitos envolvi dos. Os conceitos geográficos mais abrangentes com que tenho trabalhado são: paisagem, lugar, região, natureza,

·sociedade e .território. :

A reflexão sobre princípios epistemológicos da geografia, que inclui a análise do processo de construção do conhecimento da geografia escolar, ajuda a compreender as dificuldades de "fazer chegM" ·.os avanços da

geografia acadêmica na prática escolar, a entender por que na prática escolar

·há resistências refere,ntes às orientações 1

acadêrnicas. .

Na prática, a geografia ensinada não consegue, muitas vezes, ultrapassar ou superar as descrições e as enumerações de dados e fenômenos, como é tradição dessa disciplina. Nessas condições, o livro didático, muitas

. vezes trazendo urii conteúdo padronizado, define o que se vai ensinar, e os

36 Papirus Editora

-----------------~

professores tratam os temas em si mesmos . 'o~m permitir que x.ua abordagem

sirv;l para transitar na escala global-local, tendo como foco o local. As:-:>ir:-1, continua a ser um desafio trabalhar com situações-problema, buscando a fomtação de um pensamento conceitual, para servir de instrumento da vida cotidiana, tendo em mente ao mesmo tempo a complexidade do mundo contemporâneo e o contexto local em que se encontra. Na prática, enfim,

contir.ua sendo um desafio cumprir o objetivo básico da geografia na escola, que ·é o de formar um pensamento geográfico, pensamento espacial genericamente estruturado para compreender e atuar na vida cotidiana pessoal e coktíva.

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Page 30: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

O conceito de TERRITÓRI01 segundo Milton Santos2

Antes, era o Estado que definia os lugares. O Território era a base, o fundamento do Estado-Nação que, ao mesmo tempo, o moldava. Com a globalização, passamos da noção de território "estatizado", nacional, para a noção de território "transnacional", mundial, global.

O território nacional é o espaço de todos, abrigo de todos. Já o território <~ansnacional" é o de interesse das empresas, habitado por um processo racionalizador e wn conteúdo ideológico de origem distante e que chegam a cada lugar coni os objetos e as normas estabelecidos para servi-los.

Em sua crítica à globalização e aos processos que atuam no mundo acentuando e aprofundando desigualdades sócio-espaciais, Milton Santos retoma dois conceitos da Geografia: o conceito de território e o conceito de lugar.

O autor propôs que o ''espaço geográfico" (sinônimo de "território usado") seja compreendido como uma mediação entre o mundo e a sociedade nacional e local, e assumido como um conceito indispensável para a compreensão do funcionamento do mundo presente.

Ele chama atenção para o novo functonamento do terntóno, através de honzontahdades (ou seJa, lugares vizinhos reunidos por uma continuidade territorial) e verticalidades (formadas por pontos distantes uns dos outros, ligados por tódas as formas e processos sociais).

O território, hoje, pode ser formado de lugares contíguos e de lugares em rede: as redes constituem uma realidade nova que, de alguma maneira, justifica a expressão verticalidade. Mas além das redes, antes das redes, apesar das redes, depois das redes, com as redes, há o espaço de todos, todo o espaço, porque as redes constituem apenas uma parte do espaço e o espaço de alguns. São, todavia, os mesmos lugares que formam redes e que formam o espaço de todos.

Quem produz, quem comanda, quem disciplina, quem normaliza, quem impõe uma racionalidade às redes é o Mundo. Esse mundo é o do mercado universal e dos governos mundiais. O FMI, o Banco Mundial, o GA TI, as organizações internacionais, as Universidades mundiais, as Fundações que estimulam com dinheiro forte a pesquisa, fazem parte do governo mundial, que pretendem implantar, dando fundamento à globalização perversa e aos ataques que hoje se fazem, na prática e na ideologia, ao Estado Territorial.

Quando se fala em Mundo, está se falando, sobretudo, em Mercado que hoje, ao contrário de ontem, atravessa tudo, inclusive a consciência das pessoas. Mercado das coisas, inclusive a natureza; mercado das ideais, inclusive a ciência e a informação; mercado político. Justamente, a versão politica dessa globalização perversa é a democracia de mercado. O neoliberalismo é o outro braço dessa globalização perversa, e ambos esses braços - democracia de mercado e neoliberalismo - são necessários para reduzir as possibilidades de afirmação das formas de viver cuja solidariedade é baseada na contigüidade, na vizinhança solidária, isto é, no território compartilhado.

1 Texto compilado do Iiwo Territorio, Globalização e Fragmentação. São Paulo: Hucitec, 1994. 2 Nasceu na Bahia, foi intelectual, militante, advogado, geógrafo, professor doutor pela Universidade de Strasbourg (França). Recebeu 20 títulos de Dr. Honoris Causa de Universidades de várias partes do mundo e publicou cerca de 50 livros em diversas línguas. ·

Page 31: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

Na de~ocracia de mercado, o território é o suporte de redes que transportam regras e normas utilitárias, parciais, parcializadas, egoístas (do ponto de vista dos atores hegemônicos), as verticaJidades, enquanto as horizontalidades hoje enfraquecidas são obrigadas, com suas forças limitadas, a levar em conta a totalidade dos atores. A arena da oposição entre o mercado -que singulariza- e a sociedade civil -<JUe generaliza- é o território, em suas diversas dimensões e escalas.

A tendência atual é que os lugares se unam verticalmente e tudo é feito para isso, em toda parte. Créditos internacionais são postos a disposição dos paises mais pobres para permitir que as redes se estabeleçam ao serviço do grande capital.

Mundo e lugar se constituem num par indissociável. O lugar é o papável, que recebe os impactos do mundo. O lugar é controlado remotamente pelo mundo.

Mas esse mesmo lugar é também o espaço da existência e da coexistência. No lugf:l:T, . .P2~tQ,_~~side a única possibilidade de resistência aosprocessos perversos do mundo, dada a po~ibilidade real e efetiva da comunicação, da trüca de informação e da conStrução política.

Os lugares também podem se unir horizontalmente, reconstrUindo aquela base de vida comum susceptível de criar normas locais, normas regionais ...

As uniões horizontais podem ser ampliadas, mediante as própri:::s formas novas de produção e de consumo. Um exemplo é a maneira como produtores rurais se reúnem para defender os seus interesses, o que lhes permitiu passar de um consumo puramente econômico, necessário às respectivas produções, a um consumo político localmente defmído e que também distingue as regiões brasileiras umas das outras.

Assim, o lugar é o espaço do acontecer solidário. Estas solidariedades defmem usos e geram valores de múltiplas naturezas: culturais, antropológicos, econômicos, sociais, financeiros, para citar alguns.

As solidariedades pressupõem coexistências no espaço geográfico. À partir do território e dos lugares, está sendo gestado um novo tempo que Milton Santos chegou a denominar de período popular da história. Este período se caracteriza pelo processo de resistência dos lugares às perversidades impostas a ele pelo mundo.

O lugar- não importa sua dimensão - é a sede. dessa resistência da sociedade civil, mas nada impede que aprendamos as formas de estender essa resistência às escalas mais altas. Para isso, é indispensável insistir na necessidade de conhecimento sistemático da realidade, mediante o tratamento analítico desse seu aspecto fundamental que é o território (o território usado, o uso do território). Antes, é essencial rever a realidade de dentro, isto é, interrogar a sua própria constituição neste momento histórico. Seu entendimento é, pois, fundamental para afastar o risco de alienação, o risco da perda do sentido da existência individual e coletiva, o risco de renúncia ao futuro.

Devemos ter isso em mente, ao pensar na construção de novas horizontalidades que permitirão, a partir da base da sociedade territorial, encontrar um caminho que nos libere da maldição da globalização

. perve~ que estamos vivendo e nos aproxime da possibilidade de construir uma outra globalízação, capaz de restaurar o homem na sua dignidade.

O papel ativo do território pode impor ao mundo uma revanche.

Page 32: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

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Disciplinaridade, transversal idade

e interdisciplinaridade

Para abordar a disciplinaridadt, cu:Wtamos a distinção que }apiassu (1976) institui entre ciência e disciplina.

Segu.nd<J o autor, a disciplinaricúuú é progressiva exploração cientifica especializada em certa drea ou

domlnio homogêneo de estud<J que estabelece e define

ft . , . I b J~ J_ . onte:ras constttu:ntes, ca enao a estas aeterrmnar seus objetos, conceitos e teorias. O termo "disciplina" é

comumente emprcga.CÚJ para desigruzr o ensino de uma ciência, ao passo que o termo "ciência" se refere

pn'ncipalmente à atividade de pesquisa. A disciplinaricúuú serd aqui abordada na perspectiva de

uma disciplina escoktr.

A disciplina escolar Geografia mantém vínculos com a respectiva ciência por meio dos conceitos, métodos e teo rias geográficas. Os conteúdos disciplinares são orga­nizados a fim de atender a concepções hegemónicas da própria ciência e correspondem a um tempo e espaço específicos, articulados às concepções pedagógicas ·de · organização do currículo e do ensino.

Hoje, com a globalização, muitos curríCulos oficiais, principalmente dos denominados países emergentes do mundo ocidental, apresentam conc.epções curriculares com traços. e perspectivas comuns. No caso específico da

113

Page 33: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

0 ENSI NO•APRENDIZAGEM DA GEO GRAFIA E AS PRÁTICAS

"Õ sa n; para J(f' rmina o, adquiriM r aua/i4M, sofrr

rranifonnaróm · 1rpntnt4(ÕC, COrttJ,

progm;ào, simplifirar4o, tradurão rm li;órr, aul4.r r

fXrrdcios, organiu:rtfo a partir dr matn-WIJ prl·

romrru/dQs (m4nUIIÚ, brochuras, fichas) . .AJhn

dim, Mvt inscrtfltr-tr num contrato dJ'IIdriro ~idur4 '!"' fi=. o tJI4tuto ~ 1abn; da

ignordnri.A, ~ rrro, ~ aforro. da atmrk. da

origina/idadt, tÍAJ pn-gunw r mpouas. A rraruposirão

didJtica dcs 14bms ta tpútrmolcgia q~U JlJ.Jtm/4 o contrai() didtitico baJ(/.Am·Jt

rm muitos outro! a!p~tos, para a/(m M Mmlnio acadhnico Mt rabm,·

(!',renoud, 1997, p. 24).

Sobrt frrtns o dQ didJtica, if. Sam.ttdn, J !)!)8, p. 93.

114

I GeograEa, observam-se propostas . curriculares diferen-ciadas: desde currículos que não incluem essa disciplina

no ensino básico até aqueles de países em que ela es tá

presente em todos os níveis da educação básica, passan­

do por propostas curriculares que a incluem apenas em

algumas séries.

O professor pode encontrar em livros didaci cos o desenvolvimento de um rol de conteúdos e adotá-los para o desenvolvimento das aillas; pode tomar como base propostas governamentais que expressam conteú­

dos considerados fruto de políticas educacionais e plane­

jar suas aulas de acordo com o currículo oficial. Pode também promover um resumo ou acé mesmo uma sín­

tese das . disciplinas do mundo acadêmico e trabalhar com os alunos. Como dar significado à aprendizagem ou ressignificar um conhecimento que o aluno ou o pro­fessor já possuem?

Para a aprendizagem significativa, pode-se p:nsar

como os diferentes saberes interagem para produzi r

outro saber, representado pelo escolar, que não se con­funde 'com o. acadêmico, mas não prescinde desce na

· construção do saber a 'ser ensinado. · As pes_quisas atuais so re a transposição didática têm

alertado sobre as diferenças entre os vários saberes: o

saber acadêmico e o saber escolar e as mediações do

saber do professor e do saber construído pelos alunos no ambiente escolar.

Perrenoud (1999), ao analisar o conceito de transpo­

sição didática, propõe a existência de momentos diferen­tes nos quais ocorrem as transformações entre os saberes. Devemos e.xa.minar esses tipos de saberes mencionados

que se produzem no ambiente escolar e nas práticas coti­

dianas da sociedade.

DISCIPLINARIDADE, TRANS VERSA LIDADE E INTERDISCIPLI NARIDAD E

P;Ha Apple (1973), o saber escolar apresenta seis aspec tOs básicos, como parte integrante do curdculo da escola:

1) O conjunto arquitetonJco das escolas, que regula

um sistema de vida, de relações com o meio exte­

rior. A organização espacial de uma escola e mesmo de uma sala de aula, via de regra, revela a forma de entender.: o poder, a relação humana e os comporta­mentos cotidianos dos sujeitos.

2) Os aspectos materiais e tecnológicos. O acesso a aparelhos audiovisuais e a computadores abre possi­bil idades estimuladoras de aprendizagem, e seu sig­nificado educativo deriva da natureza da atividade, ao ser~m utilizados de forma criativa por mestres e alw10s.

3) Os· sistemas simbólicos e de informação, o currículo expUcito ou escrito da escola.

4) As habilidades do professor, considerando-o o sujeito p róp rio do currfculo, fonte de estimulação particular. Daí resulta o entendimento de que sua formação

culrural e pedagógica seja o primeiro elemento determinante da qualidade de ensino. O professor é tanto o executor de diretrizes defmidas desde fora quanto o criador das condições imediatas da expe­riência educativa. ·

5) O s estudantes. A influência entre iguais f<j>i conside­rada um dos âmbitos educativos mais importantes da educação escolariz.ada.e extra-escolar, pois se trata de algo básico no desenvolvimento social, moral e inte­lectual, C<?mQ fonte' de estímulo e de rodos os tipos de atitudes.

6) C omponentes organizativos e de poder. Na escola como instituição, pautas de organização do tempo,

do espaço,· do p~ssoal, a.s rotinas e as formas de ordenar as relações entre os diferentes atores sociais

115

Page 34: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

,: .

0 ENSINO•APRENDIZAGEM DA GEOGRAFIA E AS PRÁTICAS

numa estrutura hierarquizada constituem fontes de aprendizado muito importantes.

As considerações feitas por Apple levam-nos a entender que não são apenas um elenco de remas geo­gráficos e um bom professor que determinam o ensino de Geografia ou de outras disciplinas, mas o conheci­mento inteiro do ambiente esêolar.

Definir o que é conteúdo• de ensino e como chegar à sua seleção constitui um dos[ aspectos mais conflit uo­sos da história do pensamento educativo e da prática de ensino e envolve os mais diyersos enfoques, perspec· tivas e opções. Os conteúdos, /como construções histó­rico-sociais, sofreram mudanÇas no deco rre r da hisc6-ria da Educação no Brasil e no mundo. O termo con­

teúdo é .. carregado de uma significação intelectualista e culturalista própria da tradição 'dominante das institui ­ções nas quais foi forjado e urilizad~ (Sacris cán , 1998, p. 149-150). . .

Segundo Libâneo (1994), a relevâ.ncia e o lugar de destaque dos conteúdos de ensino na vida escolar são reiterados nos vários momentos da Didática. A escola tem por principal tarefa em nossa sociedade a demo­cratização dos conhecimentos, 6 que garante uma cul­tura de base para todas as cri~nças e jovens. Os conteú­dos de ensino compõem-se de alguns elementos.: conhecimentos sistematizados, habilidades, hábi tos, atitudes e convicções.

Os conteúdos sempre estiveram associados aos

conhecimentos de tipo conceitual (faros, noções, con­ceitos e princípios), diferenciados das capacidades, habilidades e atitudes. Algumas obras at~ais ampliam a denominação de conteúdo p~a os procedimentos,

DISCIPLINARIDADE, TRANS VER SAl! DA DE E INTEROISCII'LINARIDADE

valores, convicções e atitudes, embasando-se.na propo­

sição de Basil Bernstein (1971-1975), que aplica o 'd (( d '1 ,.:ermo con~u o a ru o aqur o que se ~cupa no tem.[2._Q_

· e-;çolar". Embora esses aspectos estejam presentes em tõâõSÕs processos educativos, reconhece-se qu'e, no ensino, a ênfase maior ainda é nos aspectos cogniti­vos do ensino e aprendizagem, ou seja, nos faros e conceltos.

Os conteúdos a ser selecionados relacionam-se aos

saberes a ser ensinados e precisam considerar as carac­terísticas da escola e as condições objetivas e subjetivas do corpo discente e docente.

Na organização dos conteúdos conceituais, dois aspectos precisam ser destacados: referências que se r­

vem de eixos organizadores dos conteúdos em temas e

unidades didáticas e as respectivas seqüências nos pro­gramas.

O professor, nos primeiros ciclos do ensino funda­mental e nas classes unídocences, tem maior liberdade de organizar e ordenar os conteúdos, relacionando as aprendizagens de várias áreas ou dentró de cada uma. Por outro. lado, para o professor especialista de uma disciplina, · as interações são mais complicadas e tão- ·

somente o planejamento conjunto pode minimizar as fronteiras entre as disciplinas e o conseqüente parcela­mento da aprendizagem do aluno.

A integração dos saberes pode ocorrer na mente dos

indivíduos mesmo em um ensino baseado essencial­

mente no cognitivo, mas será facilitada externamente se a apresentação dos cOnteúdos visar ao estabeleci­mento das inter-relações. Ou seja, a integração deve ser expressa pelo professor e percebida pelo aluno.

117

Page 35: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

,, . . 1.18 ~ ...... .

0 ENSINO•APRENDIZACEM DA GEOGRAFIA E AS PRÁTICAS

1. Organização dos conteúdos p9r agrupamentos

Em sua organização, os conteúdos podem ser agrup;l­

dos por unidades didáticas, centros de interesse, projetos,

resoluções de problemas e eixos temáticos, os quais fazem

parte das experiências de muitos professores.

·A escolha das unidades didáticas é estabelecida por

um planejamento curricular.da escola, o qual serve de

suporte para sua distribuição. As unidades didáticas

utilizadas hoje na escola c no ensino guardam traços de

sua introdução no Brasil por Irene Mello Carvalho

(1956), em seu livro O ensino por unidades diddticas. A distribuição dos conteúdos por unidades didáticas

permanec~ bastante utilizada na elaboração dos progra­

mas e planejamentos de ensino e em sua aplicação na sala

. de aula. Nesse tipo de organização, há a tendência de

considerar os s:;1beres prévios dos alunos e inserir esses

conhecimentos na realidade próxima e concreta da esco­

la e do entorno, com a intenção de problematizar os con­

teúdos.

A organização por centros de in teres se parte dos

conhecimentos de interesse dos alunos, com a preten­

são de integrar esses conhecimentos com as informa­

ções oferecidas pelas diferentes disciplinas nas séries

iniciais do ensino fundamental (antigo grupo escolar).

Tal organização foi aplicada pripcipalmente nas déca­

das de 40 e 50 do século XX. A leitura, a escrita, o cál­

culo, o desenho são estudados conjuntamente em cada

centro de interesse. Esse tipo de organização funciona

DISCIPLINARIDADE, TRANSVERSALIDADE E INTERDISCIPLINARIDADE

com o ampla unidade integrada, abrangendo ·as dife­

rences disciplinas de um currículo globalizado.

O mécodo de projecos, bastante utilizado na biblio­

grafia americana nas décadas de 20 e 30, configura-se

uma proposta de atividade em atenção às motivações e

interesses dos alunos. Originariamente, o projeto dizia

respeito a algo específico, caracterizando-se como uma

atividade com objetivo definido, considerada valiosa

pe los alunos e realizada em meio ao quadro nacura1 ou

·numa situâção real. Havia certa autonomia dos alunos,

cuj o trabalho resultava na execução material de algo

com valor imediato. Por exemplo, a construção da

maquete de um bairro ou de uma fazenda, a organiza­

ção da caixa escolar ou a decoração da sala de aula.

Posteriormente, esse método expandiu-se para o ensi­

no da agricultura, das artes industriais e da economia doméstica por influênci<i. de W H. Kílpatrick.

]ohn Dewey, ao inserir o método de projetos num

ato Íntegral do próprio pensamento, produziu novo

método denominado resolução de problemas.

Os procedimentos de organização dos conteúdos

propostos por Kilpatrick para os projetos e os propos­

tos por Dewey para as resoluções de probJemas apre­

sentam pontos de contato. Observe o quadro:

Profeto (KJipotrlck) Resolução de problemas (Devvey)

1) Seleção do projeto. 1) Apresenloçõo e definição do problema . . 2) Plonejamenlo e coleta de Informações. 2) Coleto de dados, classificação e críl ico .

3) Execução. 3) Formulação de hipóteses .

4) Julgamento do projeto. · · 4) Seleção de uma hipótese e sua veri ficação.

119

Page 36: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

~I

0 ENSINO·APRENOIZAGEM DA GEOGRAfiA E A5 PRÁTICAS

Na década de 80, antes dos PCN, várías propostas

curriculares de Estados brasileiros adotaram os eixos

temáticos na constituição dos currículos de Geografia,

e paralelamente foram debatidas .q~estões epistemolÓgi­

cas e metodológicas que, em m'~mento posterior, fu nda­

mentaram à organização dos conteúdos propostos. Temas abrangentes foram definidos com o obje tivo

precípuo de organizar os conteúdos de· forma discipli­nar e oferecer aos educadores lirl.has norteadoras para desenvolverem com maior autonomia os conhecimen­tos geográficos a ser ensinados.

Esses eixos, · portanto, não se configuraram com o

um rol de conú:údos com mais de uma dezena de tó pi­

cos a ser contemplados em sala de aula. A título de exemplo, apresentamos dois eixos presentes em .certa proposta: .,

a) Anos iniciais do ensino básico - Tema I: O 1 uga r de vivência do aluno e a escola como espaço de relações.

b) 5o..ano- Tema IV: O processo de industrializâção e a produção do espaço brasileiro.

Os temas, como se percebe, mostram-se bas tan te amplos e permitem ao professor a busca de recursos didá­ticos como textos, mapas, desenhos e imagens para cons­truir sua aula e, assim, desemp~nhar o papel de produto~ de conhecimento sobre a disciplina de Geografla.

2. Seleção de conteúdos e sua estruturação 16gica: categorias, conceitos e mapas conceituais

A apropriação e o domínio dos conceitos científicos

na escola foram temas de discussão na educação brasileira

DrSCIPliNARIDADE, TRANSVERSAliDADE E INTERD ISCIPLINARIDADE

a parw das refl exões de Brunner (1971 ) sobre a

esrrutura discipl inar. A i déia era que, por meio da

ênfase na estrutura da matéria de ensino, fosse

M atemática , fosse História, se procurasse dar ao

alun o, o mais rap idamente possível, a compreensão

das idéias fundamentais da disciplina. Tal abordagem

encontrou guarida nos fundamentos da Lei 5.692/71.

Quais seriam, na Geografia, os conceitos básicos que

permitiriam identificar a est rutura da disciplina escolar? Essa foi a questão apresentada aos professo­

res da disciplina a partir do fim dos anos 60. Na ten-·1

cativa de identificá-los , Pierre George, nos anos 60, :

propôs duas noções que se mostraram aptas a abarcar

os fenômenos es tudados pela Geografia: o conceito

de sír io (o lugar e suas características físico-naturai s, .

humanas, econômicas, ~~lfticas) e o de si:uação (re·lt_Ja-', ção do lugar e de sua regrao nas escalas regwnal? naclO­

nal e internacional). Ambos refletem um momento do

pensamento geográfico dominante na época. ·

O s conceicos de região homogênea, região polariza~

da, hierarquia urbana e área metropolitana entraram

no vocabulário geográfico escolar, facultando a identi­ficação de duas escrucuras básicas do espaço geográfico

mediante a classificação por homogeneidade e a rela­

ção entre lugares porpolarização.

A partir da segunda metade dos anos 70, os ge6gra­

fos brasileiros realizaram reflexões e anilises sobre os conceitos básicos de espaço (absoluto, relativo, relacio­

nal) , território, região, lugar e paisagem, ao mesmo

tempo em que desenvolveram, no ensino sup crrior, um

mecodo para análise espacial (forma, função, estrutura, I

12 1

Page 37: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

122

0 ENSINO•APRENDIZAGEM DA GEOGRAFIA E AS PRÁTICAS

·processo) que também atingiu parte dos professores do

ensino fundamental e médio.

Os conceitos básicos têm sua origem datada, sua

gênese1 e genealogia associadas a dererminadas fases do

pensamento geográfico e a contextos hist6ricos esped­

ficos, e à luz dessa realidade é que devem ser compreen­

didos e analisados. Na Geografia clássica, a região, a

paisagem e o gênero de vida foram essenciais na análi­

se dos espaços, assim como os conceitos de espaço, ter­

ritório, região e lugar são atualmente valorizados. A paisagem, mais próxima do senso comum e suposta­mente mais aparente, é valorizada e transformada, em tempos. e espaços diferentes, pelas diversas correntes do

pensamento geográfico.

O processo de produção dos conceitos básicos da

ciência difere da formação de conceitos pela criança

e adolescente, É o qL:e se consta ra ao examinar os conceitos que foram objeto de pesquisas de episte­

m6logos e psic6logos (P iaget, Vygotsky e Luria) em

sua análise de questões relativas à construção e ao

desenvolvimento l6gico, espacial, temporal, social e

moral da criança, do ado!esce~te e do adulto, cujos

resultados são considerados pelo s educadores em

suas práticas de sala de aula.

Coll et ai. (1998) identifica e subdivide tipos e

estratégias de aprendizagem e situa entre eles o proces­

so de classificação por categorização (formação de con­

ceitos) e de hierarquização das redes de conceitos e dos

mapas conceituais, instrumentos que permitem analisar

as articulações e hierarquizações dos conceitos mais

simples para os mais complexos.

01SCIPLINARIDAOE1 TRANSYERSALIDADE E INTERDISCIPLINARIDADE

Uma Classificação das Estratégias de Aprendizagem

Tipo de Aprendizagem Estratégia de Aprerdllogem

Qualidade ou Habilidade

Téallco ou Habilidade

Reposse simples ~ Repelir

· Repo ss~ < Sublinhar

< Apoio ao Reposse ~ Deslocar

Copiar Por .Associação

Palavra chove . · '. < SimpletE~~~~tod~ Imagem Elaboração . Rimos e Códigos

Complexo ---~ Formos analógicos llnlerno) ler lexlos

Formar categorias Classificar -----'._

Po; Eslruluroçqo ___... Organização<:::::

· ::.lo... Hierarquizar <CCf Formar redes de conce1los Identificar eSiruluras Fazer mopos conceituai;

Adlptado de Coll e1 ai. , 1998. p. 82

A formação de conceitos do ponto de vista lógico,

po r estruturação e organização , efetua-se por processos de constituição de classes (objetos que possuem os m esmos atributos; por exemplo, que apresentam a m esma forma, como triângulos, quadrados ou círcu­

los)·- mediante os atributos identificadores e sua apli­caçã o aos objetos- e por hierarquização, que permi­

te fo rmar as redes de conceitos.

I pinturas L....,._.:..__,.. _ __J fologrofios

. r LUGARl

I '

r pode ser representado 1

I r mapa~~ moqueles /

T I ----~----~--~ jl egendos símbolo~ I esco la I r orienloção .I I I realidade

I aquele que foz: ou mondo fazer o mapa I

Mapa co nceirw.l elabOrado pelo licenciando TIUago Romeu dos Santos pan wm aula de Cl!togra.Aa- 5' séne, 2002

123

Page 38: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

' ·'.'

1,. ,,

0 ENSINO·APRENDIZACEM DA GEOGRAFIA E AS PRÁTICAS

A criança, em suas ações cotidianas, na relação com o mundo, inicia um processo de categqrização e assim separa ou agrupa por semelhanças e diferenças (cor, tamanho, ruído; ter patas, p~lÜ'J pena; viver na água, na floresta, na cidade). A inclusão dos entes nas classes mais abrangentes é uma das grandes qificuldades dos alunos do' ensino fundamental, A criança necessita identificar e diferenciar os atributos menos abrangen­tes dos mais abrangentes. No caso do espaço, por exemplo, é atributo do bairro ser de menor exrensão

do que a cidade. A passagem dos conceitos «cotidianos" aos concei­

tos científicos é um aprendizado que se efetiva cbm o desenvolvimento do raciocínio no âmbito exredor e interior da escola. A hierarquização dos conceiws mais gerais, mais inclusivos, dos conceitos intermediários e dos mais específicos, pouco inclusivos, ensej a a elabo­ração dos mapas conceituais. Tanto para o professo r quanto para o licenciando, o mapa conceirual é um instrumento de reflexão sobre a complexidade de um conceito e suas relações com outros conceitos envo lvi­dos em uma aui~, rema ou unidade.

j Megabloco econômico I I I I

I Fim do mundo blpolar O mundo pós-guerra fr ia I I

/ Globollzaçõo 1

I Economia mullipolor I I

I Regióe! Fluxos Redes I ~ l I I

Zonas de livre comérc io I 1 Pólos I

Acordos alfondegórios I Megobloco l l

Mapa concdcual dabondo pela licenciada da UFF Rache! Torrrs para o ensino médio, 2002

124

DISCIPLINA RIDADE 1 TRANSVERSALIDADE E INTERDI SC IPLINARIDADE

Os mapas conceituais são também instrumentos de avaliação sobre a compreensão dos alunos de um con­ceito e de suas ligações com outros conceitos. O mapa conceitual elaborado pelo aluno permite detectar a ausência de diferenciação entre o conceito mais geral e

0 específico e na abrangência do conceito enfocado. Apresentamos abaixo dois mapas conceituais: um

mapa-referência realizado pela professora Ângela Luiz sob re a concepção do conceito de paisagem e outro de uma aluna de 11 anos de idade, elaborado após o

desenvolvimento de várias atividades sobre o tema. I

.NATUREZA I SOCIEDADE o( ....

t ESPAÇO GEOGRÁFICO

t PAISAGEM

" PAISAGEM NATURAL . I ~-----------------, I PAISAGEM HUMANIZADA

/ " ~------~ ~-----------, I ESPAÇO RU RAL I ~;.- I ESPAÇO URBANO

M.>p~ cono:irua.J el.o.bor:~.do pda li.:encl.da da UFF R>.c.hd Torres para o ci'\.Sino médio . 2002

Paisagem Nalural I >+ Pai sagem

Humanizado

Espaço Urbano >I Nalureza :fj

Mapa conccirual bidi:nmsional de uma aluna de 11 anos - adaptado On: Ãngda Luiz, 2001. P· 131 )

125

Page 39: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

126

0 ENSINO•A PREND IZAG EM .OA GEOGRAFIA E AS PIV\ TI CAS

O mapa conceitual da aluna ainda não apresenta uma hierarquização do conceito de paisagem, do mais geral para o mais específico, e não demonstra estabele­cer as inter·relaçõe.S esperadas pela professora. No entanto, esse mapa permite avaliar o momento em que a estudante se encontra em relação ao desenvolvimen­to do fOnceito de paisagem geográfi_ça. Com base nele podem ser programadas outras ativ.i dades para o enri-quecimento desse conceito. '

As seqüências ligadas aos processos de indagações refletem uma lógica da metodologia interna de cada área ou d isciplina. Milton S~nros (1986) apresenta

uma :Seqüência metodológica que obedece às etapa~ de uma análise geográfica, ao considerar as form as, fun­ções, estruturas e processos espaciais e espac ia!izados .

3. Transversalidade e os temas transversais

Nos discursos e documentos dos órgãos oficiais de Educação no Brasil, a partir da década de 90, a inter­disciplinaridade e também a transversalidade estão em foco .. Uma das inovações feitas nos Parâmetros Curriculares Nacionais foi a inclusão de temas trans-

. versais que deveriam perpassar por rodas as disciplinas

do curdcu!o mediante diferentes p rá ticas pedagógicas.

No en$ino fundamental, a transversalidade foi uma forma encontrada pelo MEC para promover a aproxi­mação entre as várias disciplinas escolares.

Para entender o papel da transversalidade e dos temas transversais na reforma de nosso país, é preciso, antes de tudo, conhecer um pouco do sucedido na reforma curri­cular da Espanha, já que o governo brasileiro, na época , a adotou como modelo;

01SCIPLI NA RIDAOE, TRANSVERSALIDAOE E INTERDI SCIP LI NARIOAOE

A transversal idade surgiu de uma proposta. de reno­vação pedagógica e de formação do professorado da Espanha para que o fazer pedagógico fosse realizado de outra maneira e até mesmo criasse uma nova escola.

Os temas transversais íiHroduzidos na Espanha

fora m selecionados com base nas problemáticas sociais e ambientais, que abriam caminho para o tratamento de valores e de conteúdos em si mesmos valorativos. Segundo um grupo de educadores espanhóis, educar na transversalidade implica mudar a perspectiva do currk ulo escolar, indo além da complementação das

áreas disciplinares e chegando mesmo a remover as

bases da instituição escolar remanescentes do século XIX. Tal prática estimula a reflexão sobre a potenciali­dade educ~ civa dos temas transversais ao abordar con­teúdos referentes à saúde, ao consumo, ao meio ambiente, à sexualidade e à convivência, os quais,

sendo familiares aos professores. nunca foram conteú­dos curriculares integrantes das disciplinas ou das áreas clássicas do saber e da cultura.

O s temas transversais são também interpretados por

vários autores como pontes entre o conhecimento do sens~ comum e o conhecimento acadêmico, estabele~ cendo articulação entre ambos. Esses temas procuram

desvendar a complexidade dessa relação. ?ode igual­

mert ce, de acordo com o MEC, transformar-se em um

aliado na aproximação aos temas significativos do mu ndo atual, mais próximos da realidade vivida e per­cebi da pelos alunos.

Rafael Yus (1998), educador envolvido na renova­ção pedagógic;1 e na. formação do professorado, vê na

rransversalidade uma maneira mais aberra de supera­

ção do ensino tradicional existente na escola de seu ~

127

Page 40: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

1'1Q

0 ENSINO•APRENDIZACEM DA GEOGRAFIA E AS PRÁTICAS

país. No livro Temas tran,;versais, esse auror propõe

mudanças necessárias para cÓnstruir uma nova escola e, com base nas críticas ao sistema educacional , vislum­bra possibilidades de mudanças positivas no processo de introdução do novo currículo.

O principal problema, tanto na Espanha como no Brasil, quê adorou os princípios da reforma cu rricular

espanhola, é como incluir os temas transversais nas

várias disciplinas escolares e no projeto polftico-peda-gógico das escolas. .

Na Espanha, houve, durante o processo de cc>nstru­ção da reforma (década de 90 do século XX), t;nui tas pesquisas sobre as experiências já existentes e reun iões com professores espanhóis sobre as possibil idades de

inclusão da transversalidade nos currículos escblares.

Desse modo, criou-se um acúmulo de discussão e conhe­

cimento sobre essa problemática. Documentos oficiais foram estudados e professores foram ouvidos a fim de dar a conhecer suas práticas, ainda que eventuais.

Embora com uma população bem metior que a do Brasil, a Espanha também possui uma diversidade cul­tural e étnica resultante de uma história de invasões e

de migrações, com minorias étnicas que falam dialetos ·

como o càtalão, na região da Catalunha, o galego, na Galícia, no noroeste do país, o basco e, ao sul, o anda­luz, com profunda influência da cultura árabe. Nosso país apresenta realidades bastante diversificadas de

norte a sul e de leste a oeste, decorrentes da ocupação

do territ6rio e das diferenças culturais dos povos aut6cto­

nes (índios) e dos povos oriundos de migrações forçadas

(africanos) ou não (migrantes europeus e asiáticos).

Na reforma curricular do Ministério de Educação es­panhol, misturam-se inovações como a transversalidade

ÜISCIPLI NARI DADE1 TRANSVERSAliDADE E INTERDISCI PLINARIDADE

com velhas rotinas tradicionais de ensino. Essa dicoto­

m;a, aparentemente, não rem solução imediata. Uma das

contradições é como aplicar a transversalidade numa seqüência que, nas propostas oficiais, obedece à lógica

disciplinar. Os órgãos oficiais não conseguiram integrar os

temas transversais na seqüência de conteúdos proposta e transferiram tal tarefa para os professores, quando da

elaboração de seus projetos escolares.

Outra questão enfrentada, relativa aos projetos cur­riculares em que a transversalídade está presente, é a definição dos cri térios de avaliação de cada área, pois os critérios se referem sobretudo a conteúdos concei­tuais, levando muito pouco em conta os conteúdos de

natureza moral ou atirudinal. Desse modo, percebe-se

que o eixo principal no currículo oficial é consrltu{do

pelos conteúdos das áreas disciplinares. No contexto da transversalidade, um dos problemas

em pauta refere-se à seleção das relações a integrar a estrutura curricular. Yus (1998) apresenta três opções:

1) estrutura prévia fundamentada em conteúdos disci­plinares, enriquecida com conteúdos transversais;

2) estrutura prévia organizada por conreúdos transver­sais, enriquecida com temas disciplinares;

3) os conteúdos não aparecem estruturados previa­mente, nem os transversais nem os disciplinares. Tanto uns como outros estão integrados globalmente.

Há criticas a todas as opções e, sobrerudo, ~ tercei­

ra, porque desaparecem as disciplinas. A primeira

opção é a mais utilizada na Espanha, embora as demais possam ser ali encontradas circunstancialmente.

A reforma curricular espanhola, ao propor a inclusão dos temas transve~·sais para estabelecer uma conexão da

129

Page 41: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

130

. 0 ENSIND·APRENDIZAGEM DA GEO GRAFIA E AS PRÁTICAS

escola com a vida, constatou a necessidade de inserir algumas med,idas de caráter g~ral, cais como: 1) dar ênfase aos processos e não centrar a p!'ática educativa nos resul'tados; 2) revalorizar o princípio da aprendiza­gem ativa, tal como propunhamFreinet, Piagec e outros educadores ou psicólogos que contribuíram para a refle­xão sobre o ato de ensinar e aprender; 3) dar destaque à aprendizagem significativa, considerando que o aluno possui pma estrutura mental prévia que interage com as informações recebidas. Assim, nova informação arricula­da· à sua estrutura mental cria novos sentidos ao conhe­cimento prévio que ele detém; 4) propor práticas de cooperação, pois as experiências cooperativas estimulam relações e adtudes muito mais posi tivas, fortalecem as relações interpessoa.is no sentido horizontal e repercutem no rendimento e na produtividade dos panicipantes.

No processo educativo · baseado em um currículo com temas transversais, há necessidade de que o pro­fessor e a escola construam o projeto político-pedagó­gico com ênfase na ação e os alunos tenham a oportu­nidade de mobilizar novas formas de pensar e agir e aprendam a tomar decisõ.es.

-4. Temas transversais no Brasil

No caso brasileiro, até a primeira metade da década de 90, cada Estado propunha seu próprio currículo e atendia minimamente às especificidades deste. Essa fase do curdculo no Brasil caracterizo u-se por mudan­ças no conteudo, procurando atender à nova dinâmica da sociedade brasileira após a queda da ditadura, e

cr~ou ~ necessidade .de ~ovo currículo par~ ~eografla e História, com a exnnçao dos Estudos Soctats.

DISCIPLINAR IDADE, TRA NSV ERSALIDADE E INTERDISCIPLI NAR IDA DE

Em meados da década de 90, no governo de Fer­nando Henrique Cardoso, o MEC desenvolveu outro movimento no sentido de criar um currículo para todo o território nacional e propor algumas inovações inspi­radas na reforma educacional da Espanha, sendo uma delas a introdução dos temas transversais.

Houve um estudo prévio, efetuado pela Fundação Carlos Chagas, sobre os documentos curriculares dos Escadas que, de cena forma, ofereceu subs{dios para a real ização de um projeto nacional de currículo. Deve-se acencar para o fato de que as entidades de representa­ção dos docentes só tiveram acesso aos novos docu­mentos do MEC na finalização do processo.

Muitas questões surgem ao pensarmos em como os temas transversais foram introduzidos no Brasil, em como foram propostos nos Parâmetros Curriculares Naç:ionaís e introduzidos nas escolas.

O modelo de c.urrkulo nacional estabelecido pelo Ministério de Educação e Cultura da Espanha foi ado­tado na reforma curricular do ensino brasileiro em 1996, embora sua inserção aqui tenha sido muito dife­renr,e da dinâmica de produção lá verificada, sobretu­do no que concerne à participação dos educadores no proçesso de construção e implementação do modelo.

No Brasil, os temas transversais foram a'presentados à comunidade docente por meio dos PCN. Para a escolha dos temas transversais introduzidos no currícu­lo do País, foram estabelecidos alguns criçérios, tais com o: urgência social, abrangência nacional, possibili­dade de inclusão no currículo de ensino fundamental e favorecimento à compreensão da realidade escolar e à participação social. Obedecendo a esses critérios, foram selecionados os temas:· Ética, Meio Ambiente, Pluralidade

131

Page 42: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

.. , 0 ENSINO•APRENDIZACEM DA GEOGRAFIA E AS PRÁ T/CAS

No caso das entidade.~ culturais, pode·se lembrar,

para a Geografia, a Associação dos Geógrafos

Brasileiros (AGB) e a Associação Naclonal da

Pós-Graduação em Gwgrafla (Anpcge).

Cultural, Saúde, Trabalho e Consumo, Orientação Se­

xual e Temas Locais. No entender· do documento ' outros temas poderiam ser indufdos para compor um

conjunto articulado e aberto, na busca de um trata­mento didático que contemplasse sua complexidade e

dinâmica. Segundo as orientações, esses temas devem

perpassar' por todas as disciplinas escolares do ,ensino

fundamental e, também, pela Geografia. . • Apesar das resistências existentes ao currículo ' nacio­

nal único, especialmente em razão do modo pelo qual foi instituído, sem passar pela análise anreri br dos

órgãos representativos do professorado, hoje, na ela­

boração dos programas e projetos no âmbito escolar, esse currículo não pode ser esquecido como documen­to oficial, apresentando implicações no trabalho peda­

gógico da escola e de cada disciplina em particular. Nesse sentido, há que ,pensar de que forma a Geografia pode, minimamente, como 'disciplina escolar, atender ao currículo oficial sem descaracterizar seus métodos e conteúdos.

A Geografia, por estudar o espaço geográflco , com­

posto de dimensões múltiplas, e considerar as rdações !

existentes entre a sociedade e a natureza, traz conheci­mentos que podem contribuir para os temas transver­sais, tais como Pluralidade Cultural, Ambiente , Saúde

e Temas Locais, mas certamente tem o gue conrribuir

para outros temas, conforme o planejamento das esco-las na cooperação mútua.

PLURALIDADE CULTURAL: Vivemos em um pafs

em que a diversidade étnica está. muito presente como resultado do processo hiStórico de constituição da socieda- ~ de brasileira desde épocas anteriores, aliado à entro.da de ·Í

migrantes europeus, asiáticos e latino-americanos até os j }1

DISCIPLINARIDADE1 TRANSYE RSALIDADE E INTERDISCIPLINARIOADE

: tempos conremporâneos. No encanto, a presença de

t: diferentes ~rupos étnicos e de imigrantes. vin~os dos ): vários conrmentes com culturas bastame d1vers1ficadas \ ocasionou contatos · nem sempre tranqUilos, muitas ( vezes até conflituosos, com convivência marcada pelo

; preconceito e pela discriminação. A Geografia, mesmo

antes da introdução dos PCN, teve ,como preocupação

o estudo dos migrantes e das migrações, assim como o : trabalho de negros, índios e brancos. Portanto, já exis-. tia um conhecimento acumulado no campo geográfico · : para oferecer significativa contribuição à compreensão

' dessa temática. MEIO AMBIENTE: A atual concepção de meio

ambiente contempla as relações sociais, físicas, biológicas

e culturais instauradas na produção das condições

ambientais em que os seres vivos e os homens vivem e

inceragem. Ao longo da história, a humanidade, ào trans­formar o ambiente, também se transformou, criou cultw-ra, tecnologias, estabeleceu relações econômicas e manei· . ras diferentes de comunicar-se com a natureza. ·

A Geografia sempre demonstrou preocupação teóri­

ca com as condições ambientais, mesmo ames dos

movimentos ambientalistas surgidos, principalmente, • nas décadas de 60 e 70, porque, ao analisar o processo de dominação dos grupos e países hegemônicos em

diversos momentos históricos, em tempos e l espaços

diferentes, teve como objeto de escudo os sistemas agrí­

colas e sua relação com a degradação dos solos, como

no caso das monoculruras de produtos tropicais. A

retirada da vegetação e a aceleração dos processos ero­sivos, gerando, em alguns lugares, a aceleração da desercificação e ourros1 tantos problemas, sempre cons· tituíram fonte de preocupação para a Geomorfologia;

133

Page 43: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

134

:0 ENSINO·APRENOIZAGEM DA GEOGRAFIA E AS PRÁTICAS

mesmo nas vertentes tradicionais da Geografia, essas preocupações estavam presentes. Hoje, com as venen­·rés críticas da ciência geográfica, em que a dimensão· geopolttica está em pauta, a preservação da vida no pla­neta e as demais questões ambientais precisam ser tra­tadas peio conjunto das disciplinas escolares.

A Geografia possui teorias, métodos e técnicas que podem auxi liar na compreensão de questões ambien­tais e no aumento da consciência ambiental das crian ­ças, jovens e professores. O conhecimento dos proble­mas e a consciência amb iental podem contribuir na busca de soluções possíveis, para que a sociedade en­frente os complexos desafios que mexem com múlci-

. pios interesses, tanto locais como internac ionais. SAÚDE: A presença da Geografla nessa <lrea, ao

estudar ·~ denunciar as condições de pobreza e de exclusão em que vive grande parcela da população bra­sileira em termos de educação, saúde, saneamento bási­co e moradia, num país cuja desigualdade social se tra­duz numa situação em que a renda se concentra nas mãos de uns poucos privilegiados, é evidenciada pelos dados estatísticos do IBGE, 6rgão do governo federal. Esses dados reunidos pelos ge6grafos bras ileiros e os trabalhos de campo por eles realizados explicam a per­manência de doenças como a tuberculose, a leptosp i~

rose e a hanseníase, isso para citar apenas algumas das resultantes da pobreza, da precariedade da educação e da saúde pública. A análise da vida nas grandes metr6-poles auxilia na compreensão dos pro blemas de saúde ligados ao ambiente urbano. A Geografia, que tem por objeto de estudo as paisagens, os lugares , o rerrit6rio e os proflemas criados pela concentração de renda em certo grupo social e em certos lugares em prejuízo de

ÜISCIPLI NAR IOAOE, TRA NSY ERSALIDADE E INTERDISCIPLINARIOADE

outros, pode dar sua contribuição em projetos trans­versais e disciplinares relacionados à saúde.

TRA.BALHO E CONSUMO: A ciência geográfica sempre se interessou pelàs atividades exercidas pelas sociedades humanas no sentido de garantir a sobrevi­vência dos povos: desde o ·extrativism6 e a agricultura até a indústria moderna, mecanizada, e a chamada ter­ceira Revolução Indu5ttial, com todas as características que fazem parte dessas atividades; desde os trabalhos dos índios e posseiros; · realizados à custa da energia human:1 ou animal, os quais ainda persistem em mui­tas áreas do globo e até nas grandes metrópoles, pas­sando pela agricultura familiar, pelo trabalho do bóia­fria na colheita de grãàs e no cultivo da soja e da cana­de-açúcar, até a produção de mercadorias com a utili­zação de tecnologias de ponta e de informatização das mais sofis ti cadas que o :mundo contemporâneo conhe­ce, em indústrias al.tamente automatizadas que necessi­tam de um mínimo de mão-de-obra.

É preocupação da Geografia o entendimento da for­m:lção da sociedade d e consumo e do desaparecimen­to proporcional do,s pequenos comerciantes, que garantiram , por séculos, a sobrevivência própria e das respectivas famílias. À sociedade de consumo atribui­se, em grande parte, a pimínuição dos recupos natu­rais, com destaque parai os energéticos não renováveis, sem os quais as sociedaôes humanas atuais não sobre­vivem . O trabalho e o trabalhador estão há muito na pauta de programações da disciplina escolar Geografia, que poderá oferecer esse conhecimento preexistente às escolas dispostas a realizar uma programação, tendo o Trabalho e o Consumo como centro do currkülo ou mesmo como um tema, que se integre ao conjunto das disciplinas escolares.

135

Page 44: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

0 ENSINO•APRENDIZAGEM DA GEOGRAFIA E AS PRÁTICAS

TEMAS LOCAIS: Os PCN de Geografia propõem o lugar como um dos conceicos fundamentais do cur­dcul ci. Esse conceito tem variações mesmo entre as

correntes geográficas que integram a crítica e a dialéti­

ca nas respectivas produções teóricas: o lugar co nfun­

dindo-se com o munidpio, o bairro, o estado e até mesmo o país; o lugar como vivência do aluno, : onde .ele desenvolve relações pessoais e fami liares no ârn bito de uma dimensão subjeriva; o lugar como o un iverso cultural do alunoj o lugar como funcionaliza ç~o do todo; o lugar como totalidade que supera as relações familiares e mantém a relação intrínseca com outros lugares; o lugar como o local de reprodução da vida; o lugar surgido da relação com a rotalidr~de dos lugares, como conseqüência da divisão regional dq' trabalho; .o lugar como ponto nodal de .uma rede de relações que

fluem do local para o global e deste para o local.

No entanto, apesar das diferenças, há cerro consen- .

so sobre a noção de que a prática pedagógica na d isci­plina escolar Geografia deve começar pelo lugar de vivência do aluno, explorando rodo o potencial dé seu conhecimento prévio e, com base nele, introduzir os conceitos científicos dominados pelo professor. É no conhecimento local que estão as fontes que servirão de parâmetros para o aluno atingir o conhecimento espa­

cial de outras realidades. "Sob a denominação de Temas Locais, os PCNs pretendem contemplar os temas de in te-

. resse especifico de uma determinada realidade a serem definidos no âmbito do estado, da cidade e/ou dcl escola" (Brasil, 1997, p. 35).

No Brasil e até mesmo nos Estados em que existem

vái-ias universidades publicas, ainda não há um mapea­

mento das pesquisas sobre a participação efe tiva dos ' ·

01SCIPLINARIDADE, TRANSYERSA LIDADÉ E INTERDISCIPLINARIDAO E

cemas transversais nos currículos escolares. Os estágios supervisionados de alunos dos cursos de Metodologia do Ensino de Geografia, embora observem a existência

de alguns projetos de ensino, não os . caracterizam

como transversais. Isso também é constatado nos vários

cursos de formação continuada de professores, coorde­

nados por universidades. Assim, pode-se afirmar que ainda são raras as escolas e os professores da disciplina que apresentam um cu~rículo interativo, considerando a transversalidade na programação de suas aulas e na dos

colegas de outras áreas do conhecimento. · Os professores formados em departamentos, cada

um no compartimento de sua ciência, têm dificuldade

de pensar em aulas ou práticas pedagógicas que possi­bilitem a inter-relação de um tema com as demais dis­cip linas escolares.

5. Atividades

1) Compare a organização das unidades de um livro clidático de Geografia de determinada série da década de 70 com a de outro livro atual e verifique as dife­renças nas respectivas estruturações. Tente ievantar algumas hipóteses sobre as ra:zões dessas diferenças.

2) Escolha um tema ou unidade de ensino ou mesmo um conceito e organize um mapa conceitual de acordo com a abordagem do autor e de um livro didático atual.

3) Avalie a compreensão. de um conceito ou tema de natureza geográfica por meio de mapas conceituais

produzidos por alunos de determinada série do ensino fundamental.

137

Page 45: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

1:l.R

0 ENSINO·APRENDIZACEM DA CEOC RAFIA E AS PRÁTICAS

. . 4) Recupere as discussões sobre a organização dos eixos

temáticos nà Geografia, ap6s 1980, em documentos oficiais, sejam estaduais, sejam municipais, e compare dois deles segundo algumas categorias selecionadas.

5) Analise a organização das unidades dos livros didá­. ticos de Geografia de 5i a 81 série da década de 70 e

compare com um livro de Geografia para as mesmas séries na atualidade.

6) Escolha um tema ou um conceito geográfico e orga-nize um mapa conceitual.

7) Analise o desenvolvimento espacial dos alunos com base nas representações gráficas dos lugares conhe-cidos por eles. I

8) Suscite discussões que envolvam diferenças, oposi­ções' e contradições no espaço geográfico e analise as explicações dadas pelos alunos.

6. Leituras complementares

BRUNNER, Jerome Seymour. A inspiração de Vygotsky. In: _. Realidade menta/, mundos po.s.slveis. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. p. 75 -83.

CARVALHO, !rene M. O enst'no por unidades diddti­cas: seu ensaio no Colégio. Nova Friburgo. Rio de

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COLL, Cesar; VA.LLS, Enric. Aprendizagem e ensino dos procedimentos. In: COLL, Ct sar <: r ai. Qt emteú­

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DISCIPLI NAR IDADE, TRANSV ER SALI DADE E INTERDI SCJ PLI NAR IDADE

COLL, Cesar et al. Os conteúdos d4. reforma: ensino e aprendizagem de conceitos, procedimentos e acitudes. Tradução de Beatriz Mfonso Neves. Porto Alegre: Artmed, 1998.

JAPIASSU, Hil~on. lnttréiiscip!inaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro:· !mago, 1976.

LURIA, Alexander Romanovitch. Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos culturais e sociais. São Paulo: fcone, 1990.· ·

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MOREIRA, Marco Antonio. Mapas conceituais: ins­trumentos didáticos de avaliação e de análise de curd~ cuJos. São Paulo; Moraes, 1987.

PAGANELLI, Toinoko Iyda. Reflexões sobre catego~ rias, conceitos e conceúdos geográficos: seleção e orga­nização. In: PONTUSCHKA, Nfdia Nacib; pLIVEI-

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· PIAGET, Jean. Representação do espaço na criança. Tradução de Bernardin~ Machado de Albuquerque. Porto l Jegre: Artes Médicas, 1993.

·SANTOS, Milton. Metamorfose do espaço habitado. . São Paulo: Hucitec, 1988. . . (

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Page 46: Apostila - Ensino de Geografia (UVA)

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GRUPO, ESPAÇO E TEMPO NAS SÉRIES INICIAIS

Helena Copetti Callai Jaeme Luiz Callaí*

Nas séries iniciais do ensino fundamental a ênfase do trabalho docente é a alfa­betização, na rnai.oria das vezes compreendida como aquisição da leitwa e da escrita, secundariamente o domínio das quatro operações - somar, diminuir, multiplicar e dividir. Muito raramente, de forma difusa e confusa, há lugar para estudos soclais.

Na ausência de .uma orientação clara e segura do que é ensinar estudos so­ciais, o professor se preserva, trabalhando nada ou muito pouco desta área do co­nhecimento, ou arrisca-se ensinando o que lhe parecer mais adequado. O resultado em qualquer uma das hipóteses tem sido frustrante para alunos, para professores e, porque não, para os pais. Ou não se aprende nada ou se tem um esforço para "apren­der" informações que, por isoladas, perdem o sentido e a significação.

A compreensão da alfabetização como capacidade de leitura não só do tex­to, mas também da experiência humana vívida por todos, cotidianamente, e de escritura, igualmente não só do texto, mas também como construção da própria história não ocorre. Num e noutro caso entende-se leitura/escritura não só como uma habilidade I!leCânica, mas corno urna manifestação de cidadania. Neste sen­tido, a alfabetizaÇão do ler e do escrever é um meio para a constituição do cida­dão que sabe o quê, e por quê, lê e/ou escreve.

Não se trata a penas de -ensinar os conteúdos de estudos sociais, mas de desenvolver conçyÜ6s que são importantes, constitutivos da própria vida. Eles devem ser prop<?~tos, exercitados, para que a criança entenda o seu significado, não em si mesmô~ma:s em sua dinâmica na vida da sociedade. Dentre os conteú­dos de estudeis sociais, é relevante estudar as relações sociais que se estabelecem entre as pessoas e os distintos grupos sociais; o espaço diferenciado ocupado por um ou outro grupo ou atividade e as relações que se estabelecem; o tempo, como presente vivo e passado vivido, dimensões necessárias para o viver individual e societário. Como c;onstruir com as crianças esses conceitos é o desafio, especial­mente pqrque não se trata de oferecer à criança um conceito produzido, mas precisamente op(Jrtunizar que ela mesma construa seu próprio conhecimento.

Não é o conhed mento em si o mais importante, mas sua vivência, isto é, a compreensão dos g!fUpoS (dos diversos grupos sociais) que a criança 'e sua famí·

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66/ Geografia em sala de aula: práticas e reflexões

lia fazem parte, do espaço que ocupam, do acesso que tem ao espaço para morar, para trabalhar, para o lazer, para a sua vida, enfim, e do tempo em que vivem, da história da fanu1ia, do que projetam para o futuro. É n:J. complexidade da vida que as pessoas podem entender e compreender que constroem seu espaço, a sua história e a sociedade em que vivem. •

Neste sentido, estudos sociais é conteúdo importante no currículo das séries iniciais. se entendermos que estes alunos estão .formando-se/transformando-se em cidadãos. Importante não como um elenco de temas que devam ser desenvol­vidos, mas como uma perspectiva de médio/longo prazo que dê a conformação dos estudos sociais, isto é, a definição de quais conteúdos devam ser trabalhados obedecendo a perspectiva de formaÇão da cidadania,, desafio maior dos estudos sociais nas séries iniciais. Descartam-se os conteúdos preestabelecidos. a trans­missão mecânica de infomutções prontas e acabadas, conhecimentos estranhos à vida do aluno. A tarefa dos estudos sociai$ é propiciar o conhecimento e facilitar o entendimento da realidade em que o aluno vive; partindo do conhecimento que ele possui, adquirido na escola ou mesmo anterior a ela. O trabalho do professor é sintonizar o alu.no com o mundo, facilitando-lhe o acesso ao saber já produzido e à compreensão .do processo social cotidianamente vivido.

É fundamental de parte do professor uma atitude de questionamento, de provocação, de abertura à inquietude, curiosidade, deslumbramento do aluno, dos muitos mundos que os alunos representam. É na confluência entre o interes­sante, o desejado e o vivido pelo aluno, de um lado, e, de outro, a proposta peda­gógica da escola e do currículo por atividade que o professor terá elementos para eleger o que ensinar, o que se propõe que a criança aprenda.

Cabe aqui um parêntese: o volume de informações é cada vez maior, mais complexo, e o aluno tem direito a receber da escola condições para aprender tudo, mas a escola nunca conseguirá dar conta em extensão e profundidade de passar todo o saber produzido e acumulado. Torna-se necessário então fazer um recorte, pôr limites, selecionar, eleger o que ensinar. Entendemos que esse limite deve ser posto no confronto dos interesses dos alunos com os programas 'respec­tivos e as condições postas anteriormente. Se o ponto de partida é conhecer a realidade em que vivem, é neste âmbito que se problerpatiza a questão de como dar conta dos conceitos de "grupo-espaço-tempo", segt indo esses critérios.

Queremos formar cidadãos? Não é apenas no co~ teúdo de estudos sociais em si que vamos encontrar os caminhos, mas na dinârntca do processo de alfabe­tização, na forma em que é encarada e nos objetivos que estão postos adiante. Ensinar a ler e escrever para quê? .

O nosso aluno tem de ser considerado em sua plenitude, e não apenas como uma criança que está à disposição do professor e da escola para ser ensi­nado. Se a preocupação da escola é formar cidadãos, o aluno precisa ser visto como indivíduo que vive em sociedade (faiendo parte de vários gru'pos) num

Geografia em sala de aula: práticas t rtf/ex&s I 61

determinado momento (um tempo definido) e ocupando determinado lugar (es­paço) . Crescer, portanto, significa ir localizando-se com lucidez, no tempo e nas circunstâncias em que se vive, para chegar a ser verdadeiramente homem, isto é, indivíduo capaz de criar e transformar a realidade, em éomunhão com seus semelhantes.

Através dos estudos sociais, na observação da realidade local e da dinâ­mica que se estabelece nos qiversos grupos em que os alunos se inserem, é ~ue vão ser exercitados esses conceitos (grupo, espaço e tempo). Ao exercício de­vemos acrescentar a teorização. Não só fazer as coisas, as crianças precisam saber o quê e por que estão fazendo tal atividade. E mais, precisam saber que "não estão descobrindo o mundo", que outros antes delas também já "descobri­ram" tais coisas e que este conhecimento produzido socialmente vai sendo in­corporado pela sociedade, que vai evoluindo e criando melhores condições para o trabalho, para o lazer, para viver enfim. As informações não devem ser postas a elas de forma pronta e acabada mas, na medida do possível, demons­trar-lhes o contexto em que foram construídas, como as pessoas buscavam es­tes resultados, quais os interesses envolvidos. , Se a escola quer fazer com que o aluno consiga conhecimento amplo em todas as coisas do mundo e não fique em especialidades ou partes apenas, é nesta fase da escolaridade que deve começar: aprendendo que as coisas que vêm até nós não foramj~descobertas magicamente, mas do esforço de pensar, de refletir, de necessidadtt que os diversos povos têm e tiveram. Neste contexto, de que forma então trabalhar os conceitos de "grupo-espaço-tempo" e não um elenco de conteúdos ou atividades mais ou menos estanques? A experiência, a sensibilida­de do professor frente à capacidade, interesse, desempenho dos alunos detenni­narão o fluxo e a articulação do fazer pedagógico para um estudo articulado.

Para o desenvolvimento dos conceitos centrais de estudos sociais, é possí­vel o desenvolvimento de uma porção de atividades que terão como suporte in· formativo a experiência específica de cada série e grupo de alunos. Uma primei· ra sugestão de conceitos a serem estudados assume os seguintes contornos:

GRUPO

O grupo é fundamental na nossa vida. No nosso cotidiano, ele é permanen­temente vivido. Pertencemos a diversos grupos ao mesmo tempo, a fanu1ia , os amigos, a turma do futebol, a de brincar todo dia, a turma da escola, da igreja, d; ~ ;: vizinhança. É no confronto cotidiano com os outros que aprendemos, que consti ~ .:; tuímos o nosso pensamento, o nosso conhecimento. É nesse processo de sociali: " zação que está embutida toda a riqueza da aprendizagem. A vida no grupo permi' te e encaminha discussões das regras sociais, da boa convivência na sala de aula na realização de tarefas, nos recreios, no início e no final da aula.

..)

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68 I Gwgrafia tm sala dt! aula: práricas t! reflexões

E é no período (no tempo) e no lugar (no espaço) da aula que se podem criar as condições de instrumentalização do aluno para viver essa troca, essas relações sociais fundamentais para a vida. A formação do cidadão que tanto buscamos supõe esta trajetória, o quanto mais possível concretizada no dia-a-dia da vida do aluno, construindo a sua identidade e se percebendo como alguém que constrói a história e o espaço onde vive. Não são em situações isoladas que se vão exercitar estes conceitos fundamentais para estudos sociais (mas mais que isto, da vida), mas na dinâmica das atividades corriqueiras, propostas e realizadas em sala de aula, na aplicação destas regras quando da realização de tarefas: no planejamen­to, na concretização, na sisten\atização. E nestas três fases, quando de discus­sões, eleições\escolhas de coordenadores das tarefas, no controle e avaliação, na análise crítica, no registro oral e escrito.

É na dinâmica das atividades que se desenvolvem que o professor poderá conduzir os alunos a refletirem sobre seus posicionamentos, seus modelos, suas formas de intervenção; seu relacionamento com os colegas, professor e demais membros da escola. A análise crítica da avaliação das atividades, oral ou escrita, é também parte do processo. Ao defender suas idéias, os alunos avançam na compreensão do que estão estudando, aprendem a falar em público, aprendem a ouvir questionamentos e dúvidas e a tentar respondê-los. Ao escrever, formali­zam o registro que está sendo discutido e escrevem um texto que resulta de um trabalho concreto: devem pensar no que aconteceu para demonstrar como enten­deram e como conseguem se expressar. Este registro e apresentação, na primeira série, pode ser feito muitas vezes através do desenho e da dramatização.

Não se trata (nunca é demais repetir) de eleger um conteúdo específico para desenvolver o conceito de grupo. Pelo contrário, trata-se de realizar uma análise crítica das relações que se dão nos grupos, discutir como se dão e a que levam. É o aprendizado da convivência e da compreensão de quanto ela é importante na nossa vida. Para finalizar

É no grupo que aprendemos esse diffcil processo de conviver com as divergências, os conflitos, as diferenças.lsso tudo envolve e significa processo de conhecimento, signi­fica processo de apropriação do saber de cada um para deflagrar o que ainda não se co­nhece. (Freire, 1993, p.l62)

ESPAÇO

Os h~mens vivem num espaço, situam-se nele, ocupam lugares. Esse espaço comumente é visto como algo estático, pronto e acabado. Tem uma aparência. Mas é resultado de uma dinâmica, é cheio de historicidade. A aparência é o resultado, num determinado momento, de coisas que aconteceram. É a expressão de um prc:x;esso, portanto há dinâmica no arranjo. Só na aparência ele é estático, pois em si está cons-

Geografia t!m sala cú aula: práricas e rt!jlexões 169

tantemente sendo construído. E, conhecer o espaço, entendê-lo, é observar esta dinâ­mica e percebê-lo como resultado, mais do que aceitá-lo como definitivo e acabado. Em sendo estático, caberia apenas adaptar-se a ele, ajustar-se para poder viver. E esta era a premissa dos estudos sociais- ajustar o indivíduo ao meio em que vive.

Não aceitando esta idéia, e avançando no sentido de entender que o espaço é construído pelos homens que vivem nele, cabe aos estudos sociais também avançar. Em vez de conhecer e descrever para se adaptar, se ajustar, devemos procurar entender o espaço como resultado de uma dinâmica e, então, dar condi­ções ao aluno para que se situe neste processo. Deve-se reconhecer que é possí­vel constrUir o espaço, e que a forma como ele se apresenta, no momento atual, é o resultado da história de quem vive nele e como vive nele. Vai daí que se torna necessário perceber que é possível construir o espaço em que se vive. Que ele é a aparência do resultado da luta dos homens pela sobrevivência num detemúna­do lugar e num detenninado tempo.

Este espaço real, concreto, que vemos, onde vivemos e no qual ocupamos um lugar para morar e no qual nos locomovemos, existe em si mesmo. E urna dimensão da realidade, e como tal precisamos nos apropriar intelectualmente

.. dele. É um conceito que precisamos compreender. Esse conceito precisa ser cons­truído no interior do proc.esso de aprendizagem.

Ao exercer e exercitar a crítica daquilo que faz parte da nossa vivência diária, .e da história que estamos construindo nos grupos em que vivemos, pode­mos ir nos apropriando. do conceito de espaço também. A construção do conceito espaço tem início com a vida. Supõe sair de si próprio para perceber o que existe além. Cabe aos estudos sociais, neste momento do cuirículo escolar, aproveitar­se da vivência diária do aluno para conhecer, exercitar de forma consciente, as relações espaCiais e compreender o espaço em que se vive (como resultado da nossa história), e de construir o seu conceito, apropriar-se dele.

A construção da noção de espaço pela criança requer uma longa preparação[ ... ) Se faz por etapas, mas ·sempre associada à descentração e apoiada na coordenação de ações [ .. . ] Há um longo caminho a ser percorrido para a construção da noção de espaço, que se inicia pela ação da criança e culmina com a operaçãO mental. As relações espaciais per· mltem a construçAo e a repre$entaçllo de trts tipos: relações topológicas. projetivo..s e euclidianas, e e:r;iste uma s~rie de atividades que podem ser realizadas considerando cada uma destas etapas. (Paganelli, 1985, p.21-22)

O conceito de espaço é wna abstração da realidade, construído a partir da reali­dade em si, na compreensão do lugar concreto, de onde se extraem elementos pani

. pensar o mundo (ao con~truir a nossa história e o nosso espaço). Neste caminho. ac observar o lugar específko e confrontá-lo com outros lugares, tem início um proces· so de abstração que se assenta na relação entre o reai aparente, visível, perceptível ( o concreto pensado na elaboração da compreensão do que está sendo ·vivido. .

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•· 72 / Geogra.fU1 em sala de aula: práticas e reflexões

histórico, apresenta ritmos diferenciados conforme os distintos aspectos da vida social que forem considerados. Alguns mudam mais rapidamente, outros são dotados de maior continuidade; mais do que isso, há época em que as mudanças adquirem maior velocidade. Essas diferenças de ritmo- as mudanças e as conti­nuidade- resultam do jogo de interesses e vontades dos diversos grupos consti­tutivos de uma sociedade determinada.

O conceito de tempo que nos interessa é o social. na medida em que a histó­ria é precisamente o estudo das mudanças ou permanências . A criança precisa compreender que a sociedade, todos nós, fazemos a história, isto é, ao viver a fazemos dinamicamente. Ninguéij1, nenhuma sociedade, permanece parada, es­tática. Por sua vez, o tempo físico tem no calendário, por assim dizer, uma lin­guagem que possibilita o entendimento. O uso universal de um mesmo calendá­rio permite maior precisão no processo de datação, de identificação de quando as coisas ocorreram. Por certo, o calendário nos dá maior objetividade. Todos pode­mos mensurar o que são dez anos, por exemplo, já a idéia de "há muito tempo atrás" é, além de imprecisa, equívoca.

Na escola, é necessário que se oportunize o aprendizado e a operação do calendário, mas antes do tempo medido (já pronto) são necessários exercícios e atividades que possibilitem à criança perceber que o tempo flui, que momentos diferentes são intermediados pelo transcorrer de um tempo. Num primeiro mo­mento, é necessário desenvolver a idéia do "suceder". Os fatos, os acontecimen­tos, as coisas "acontecem", uns após os outros, formando uma sucessão, um en­cadeamento. Além disso, o acontecimento, depois de acontecido, não "desacontece" mais, esta é a expressão da irreversibilidade do tempo.

Como isso se apresenta na sala de aula? Inicialmente a ordenação do antes e depois; em seguida, a ordenação mais complexa de muitos antes e muitos depois (ao longo de um dia como se sucedem os fatos da vida cotidiana da própria criança). Um passo adiante na compreensão da dinâmica do tempo é a compreensão dos diferentes ritmos - como algumas coisas mudam mais ou menos rapidamente que as outras. Uma tarde na escola é tempo, momento de estudar, mas este tempo constitui-se de tempos mais rápidos- a hora do conto, o recreio, o exercício de matemática, a "rodinha". Ou ainda como num mesmo tempo (físico) ocorrem diferentes tempos para pessoas diferentes. Enquanto a criança estuda, os país trabalham, o irmão brinca, o guarda noturno dorme. A compreensão dessa variedade de tempos é fundamental para evitar-se a aquisi­ção de um conceito de tempo histórico linear, em que haveria uma sucessão regular e ritmada dos acontecimentos sociais.

Estabelecido o suceder, a irreversibilidade do tempo, a noção de duração (o tempo necessário para que a cois!J. aconteça) e ainda a compreensão dos diversos ritmos do tempo da vida social, é a hora de introduzir-se o calendário. A mensu­ração física do tempo iniciou-se na história da h.umanidade pela distinção dia/

Geografia em sala de aula: práticas e reflexões /73·

noite. Não por acaso, muitas civilizações consideravam a noite um tempo "mor­to", só contavam a passagem do dia. Hoje com a eletricidade a noite virou dia, e ~ í muda a própria percepção. Compreendido o dia e noite, pode-se operar com o manhã e tarde: e, em seqüência, antes e depois do recreio da aula. · O estudo dos dias da semana não pode ser confundido com a memorização do

nome dos dias da semana. Com referência à questão do nome dos dias da semana, ou do nome dos meses ou anos precisamos nos dar conta que os mesmos são uma convenção. Em si mesmos eles não significam nada. O que distingue uma segunda de uma terça­feira? Ou eu sei o que fiz ou vou fazer nestes dias ou eles são absolutamente indistintos? Quantas vezes, nas férias, nos desligamos tanto que nos perdemos, sem saber em que dia estamos? Antes de memdrizar os nomes é preciso desenvolver a compreensão do que é que muda (o dia e a ndite na perspectiva físico-astronômica) a programação da ações (os dias de aula e os dias de folga). A repetição constitui-se num ciclo de tempo que pode ser a semana, o ano. Uma regularidade que pode ser astronômica- o ano- ou social -a semana. Esta nós a instituímos com sete dias de duração.

Da mesma maneira que estudamos o antes e o depois é conveniente estudar/

entender o hoje, o agora e distinguí-lo do ontem, do antigamente. À medida que estas noções forem se clareando na compreensão da criança, pode-se introduzir a linha do tempo. A linha de tempo entendida, pelo professor, como uma representa­ção gráfica do tempo, como conjunto e sucessão de acontecimentos. Ela é, num certo sentido, o legítimo mapa do tempo. Da mesma maneira que para aprender· mos a trabalhar o mapa faz-se necessário desenvolver noções prévias (trajeto, cro­qui, pré-mapa), neste caso também são necessários alguns cuidados preliminares.

Antes de pretender construir a linha de tempo/linha de vida da criança, é conveniente que ela aprenda a representar a duração do~ diferentes tempos de uma tarde de aula, de um dia: Neste caso, seria interessante ver como a criança percebe a duração das diferentes atividades. Possivelmente aquelas prazerosas serão percebidas cómo mais rápidas (já acabou o recreio!), enquanto as mais monótonas d.eixàm a sensação de não passar (como esta aula não termina!).

· A transcrição do tempo físico medido em horas, dias e anos para uma escala métrica (ou centimétrica) é algo razoavelmente complicado. É conveniente inici­ar pela construção de uma pré-linha de tempo, que é representar num desenho o que a criança faz no decorrer do dia e propor, inclusive, que ela estabeleça algum tipo de correspondência entre o que faz e a duração temporal para a realização de respectiva atividade. Subseqüentemente, é hora de introduzir a medida manhã e tarde, antes e depois do recreio, o uso do relógio para a marcação/identificação das horas. E assim, sucessivamente, dias da semana, semanas, meses, anos.

Alguns estudos no campo da psicologia da aprendizagem indicam a dificul­dade ou impossibilidade da criança, mesmo aos 11 ou 12 anos, ser capaz de abstrair a noção de tempo: o que são cinco séculos? Quinhentos anos. Sim, mas quanto é isso? Esta. impossibilidade de apreensão recomenda cautela no trato da

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74 I Geografia em sala de aula: práticas e reflexões

questão e aponta para que não se confunda a capacidade de donúnio do nome das "coisas" com o domínio da "coisa" mesma. O que significa que talvez não seja justificável exigir excessivo esforço de parte da criança para que ela "aprenda" rapidamente o nome dos dias, meses, anos e séculos. . .

Para fmalizar, é recomendável especial esforço e cuidado no que diz r~peito ao · conceito de tempo para que a criança compreenda que o tempo (social) se constitui das mudanças e continuidades de processos que são a própria vida, seja do indivíduo, seja da sociedade. E mais, que o calendário é uma linguagem e um instrumento de medida de duração e sucessão dos diferentes processos sociais, vale dizer da história. Parece-nos bastante claro que estes conceitos (grupo-espaço-tempo) nos dão elemen­tos para levar os alunos a compreender o mundo, para se situar melhor na sociedade em que vive. Mais que isto, que o espaço vai sendo produzido e organizado a partir de interesses não muito explicitados a todos nós, mas que se expressam concretamente nas paisagens e na história que vão, também, sendo construídas.

Os estudos sociais têm como conteúdo o nosso dia-a-dia e compreendê-lo é fundamental, pois

( ... )tem como núcleo central de sua programação as relações de identidade e de perti· nência, isto é, a fonte de constituição dos grupos e dos cidadãos, no espaço e no tempo. É por isso que eles são formados de geografia e hi~tória, mas também de sociologia e antropologia. Porém, não faz o menor sentido estudar abstratamente, temas clássicos dos manuais destas di sciplinas, quando fervilham entre os alunos terríveis dificuldades de identidade e pertencimento. (Grossi e Bordin. 1993, p.224)

. É, portanto, da vivência concreta do dia-a-dia que devem sair os temas dos estudos sociais nas séries inic iais, e as atividade.s realizadas não devem se esgo­tar em si mesmas, mas estar situadas no contexto do prqcesso de aprendizagem, que se desenvolve neste.perfodo do currículo. ·

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALLAI, H.C.; CALLAI, J.L. Fichas metodológicas para o ensino de geografia e história. Cadernos UNJJU! - Série Ciências Sociais, Ijuí: UNIJUf, n.S, 1997 .

FREIRE, M. Aspectos pedagógicos do construtivismo pós-piager'iano- um novo para· digma sobre a aprendizagem. Petrópolis: Vozes, 1993, p.l62. · GROSSI, E. P.;· BORDIN, Y. (orgs.) . Construtivismo pós-piagetümo- um.nqvo paradig· ma sobre a aprendizagem. Petrópolis: Vozes, 1993.

PAGANELLI, T. I. et ai. A noção de espaço e de tempo- o mapa e o gráfico. Orientação. São Paulo: USP, 1985.

• Two publicado originalmente no Bolttim Gaúcho de Gtografia, o.21, 1996.

O ESTUDO DO MUNICÍPIO OU A GEOGRAFIA NAS SÉRIES INICIAIS

Helena Copetti Callai *

Estudar geografia (referida às ciências sociais) é basicamente l~r o .mundo construir a cidadania. Uma criança de séries iniciais aprende, nos pnmetros an?< da escola, a ler e a escrever. Ao nos perguntannos: Ler e escrever para q.ue ~ consideramos que essas são atividades que vão instrumentalizar o aluno a v~ve no mundo, ou melhor, a reconhecer esse mundo e situar-se nele como um.ctda dão. o conteúdo das ciências sociais pode ser considerado, nesta perspecttva, o ·pano de fundo que embasa todo este processo de iniciação escolar, que tem com(., fundamental a alfabetização. .

o estudo de geografia insere-se neste âmbito, na perspectiva ~e d.ar cont" de como fazer a leitura do mundo, incorporando o estudo do temtóno como fundamental para que possa entender as relações que cx:orrem entre. os .h?~~m ; estruturadas em um determinado tempo e espaço. O penodo das séne.s tmc~ats 0 de construir os conceitos básicos da área, e que são básicos para a vtda. Sao O!:

conceitos de grupo-espaço-tempo que permitem responder: Quem sou eu? ~ndc . vivo? como vivo? com quem? Ao dar conta destas perguntas. estamos defimnc! .. a nossa identidade, reconhecendo a nossa história, identifi.can~o o es~a?o e .... . pertencimento ao mundo. Isso pode ser feito .através d~ reahzaçao d.e ~uv1dades : que dêem conta de exercitar os conceitos actma refendo~. Essas a~tvtdades d> vem estar assentadas em uma realidade concreta para a vtda das cnanças e nu ·

tempo e espaço claramente definidos e pró~im~s del.e. . . , . É aí que o município passa a ser um conteudo s1gmficauvo para este pem,

do escolar.

Estudar 0 município é importante e necessário para o aluno, na medida em que ele es.tá1

vivendo. Ali estão o espaço e o tempo delimitados. pemuupdo que se faça a anáh:~" todos os aspectos da complexidade do lugar. [ ... ] É uma eScala de análise quepe . ., ... ' que tenhamos próximos de nós todos aqueles elementos qu~ express~ as condições .

· · õ ·cas políticas do nosso mundo. É uma totalidade considerada no L · sociaJS, econ !TU • d r1~ conjunto, de todos os elementos ali existentes, mas que, como tal , não pode per er · vista a dimensão de outras escalas de análise. (Callai e Zarth, 1988, p.ll )

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76 1 c~ografia ~m sala de aula: práticas e rej!o:ões

O lugar não se explica por si mesmo, ou melhor, os fenômenos que aconte­cem no município, as relações entre os homens, o processo de organização do espaço local não têm as explicações a partir do próprio local apenas. É importan­te e necessário estabelecer as ligações, buscar as explicações em nível regional, nacional e internacional, inclusive. O estudo do local, comumente chamado de estudo do meio, só será consistente se estabelecermos estas ligações com outros níveis. É o local onde vivemos que nos oportuniza as bases concretas para enca­minharmos a compreensão das relações sociais, do acesso ao espaço para vi ver e das condições para tanto.

Formar o cidadão significa dar condições ao aluno de reconhecer-se como um sujeito que tem uma história, que tem um conhecimento prévio do mundo e que é capaz de construir o seu conhecimento. Sígnifica'compreender a sociedade em que vive, a sua história e o espaço por ela produzido como resultados da vida dos homens. Isso tem de ser feito de modo que o aluno se sinta parte integrante daquilo que ele está estudando. Que o que ele está estudando é a sua realidade concreta, vivida cotidianamente, e não coisas distantes e abstratas.

Ao estudar o município, faz-se o estudo do processo de construção da soci­edade, isto é, como os homens se relacionam entre si e de que forma estão orga­nizados para. prover a sua subsistência, seja em nível de trabalho, saúde, cultura,

1lazer. Como constroem a sua história e qual é o espaço que produzem neste pro­cesso. O município é, como qualquer outro, um conteúdo que poderá ser relacio­nado para estudar, pois os conteúdos das diversas séries não estão prontos e ade­quados, a priori, às séries em que são trabalhados. Todo o conteúdo trabalhado nas diversas disciplinas representa uma opção, pois não se pode trabalhar tudo o que existe. Há sempre necessidade de seleção, escolha do que será considerado. · Ao trabalhar o município, no ensino de geografia, estamos fazendo uma opção política que quer fazer com que o aluno se situe no espaço em que vive e que o compreenda como um processo em que a sociedade (isto é, nós) o constrói.

Um ensino que não é neutro (que é o que queremos) liga-se necessariamente a concepções de aprendizagem e à concepção que temos da própria ciência - no caso à geografia. Ao querermos instrumentalizar o aluno para que tenha condições de compreender o mundo em que vive, devemos dar atenção ao conteúdo que é · trabalhado e à forma como ele é desenvolvido. Assim, entendemos que o estudo do município em que vive o estudante (isto é, do lugar em que vive) deve ocorrer desde as séries iniciais, juntamente com o processo de alfabeti~ção. Ao permiti re criar as condições a que ele trabalhe. com a sua realidade próxima, o aluno estará conhecendo, de modo mais sistemático, o lugar em que vive e construindo os con­ceitos necessários tanto para aprendizagens futuras como para a sua vida.

Até a terceira série do ensino fundamental, para trabalhar os conceitos de grupo, espaço e tempo, o professor terá como conteúdos aspectos da própria comu­nidade, que podem ser lugares, fenômenos, fatos, situações diversas, enfim. Esses

Geografia em sala de aula: práticas e reflexões I 1.1

aspectos vão ser considerados na medida em que servirem de subsídios para desen­volver os conceitos referidos. Não há um elenco de conteúdos específicos, mas sim objetivos a alcançar. Ao serem trabalhados os conceitos, serão tratados deternúna­dos conteúdos que serão aprendidos pelas crianças, embora não sejam o objetivo principal. Esses conteúdos são a cidade em si, a zona urbana, a zona rural do muni­cípio, o bairro, um detenninado lugar, uma fábrica, um trajeto, e serão "tirados" do próprio meio em qbe o aluno vive. Podem ser instituições públicas e/ou privadas (prefeitura, câmar~ de verea,dores, rádio, jornal, empresa de comércio, indústria, escolas . . . ). Para conhecer esse espaço, podem ser realizadas excursões, passeios, visitas, entrevistas,jobservação de paisagens, de fatos, de documentos. A partir daí, poderão ser feitas construções de trajetos, percursos, mapas, linhas de tempo, his· tórias de farru1ia, história de instituições, biografias, sempre na perspectiva da cons­

trução dos conceitos de grupo, espaço e tempo. Ter o município como conteúdo de todas as séries do currículo por ativida­

de, e ainda na quarta série, poderá parecer repetitivo e talvez muito tempo para pouca coisa. Será assim mesmo se ficarmos naquela forma tradicional de traba­lhar o conteúdo a partir do "eu" em círculos concêntricos, que vão se ampliando

.na medida em que a criança avança na série. Essa é uma forma de trabalhar que precisa necessariamente.ser superada, pois o mundo e a vida não têm urna se­qüência linear e homogênea. São muito mais complexos, cheios de situações contraditórias. Além do mais, não é o espaço físico quem vai definir a maneira como as coisas acontecem. Assim corno a evolução psicológica da criança, no seu processo de amadurecimento, deve-se considerar também a questão social.

O mundo muda muito rapidamente. As coisas que acontecem em qualquer recanto podem ter a ver com lugares distantes. O que acontece em qualquer lugar logo é sabido por todos. A globalização é um fenômeno atual e não se pode entender o que acontece sem fazer a referência maior. As diversas escalas cie análise devem estar presentes em tudo o que se estuda, sem o que corremos o risco de fazer interpretações que não dêem conta do que queremos entender.

O que deve definir o que vai ser estudado, e quando, não é nem o critério de espaço (de proximiqade física) nem o de conhecimento (do mais próximo para o

· mais amplo). O critério definidor do que deve ser trabalhado deve estar assenta­do na dinâmica da própria aula e da turma de alunos- o que é significativo para os alunos em cada momento. Outro detalhe importante é que não se fique tangen­ciando vários assuntos de modo que o aluno perceba tudo solto ou, ao menos, não consiga perceber o encadeamento das coisas que está fazendo.

Definindo um tempo a ser trabalhado, deve-se buscar as atividades que per­mitam discutir e familiarizar-se com os conceitos já referidos- "grupo·espaço­tempo". Este tempo poderá ser um problema do bairro, da cidade ou da proximi­dade do local da escola. De acordo com a série, o trabalho poderá desenvolver-se

1 de forma mais ou menos ampla, aprofundada e complexa. Por eX.emplo, uma

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problemática do bairro poderia estar sendo tratada pelas três primeiras séries em níveis diferenciados, conforme a capacidade de cada grupo de alunos . ·

O importante, neste processo .. é conhecer a realidade em que se vive. E conhe­cer a realidade vai além de identificar o que existe. Supõe discutir as formas como se expressam, como se apresenta a realidade, entender não apenas o produto, mas, basicamente, os processos que os desencadeiam. Portanto, o professor precisa con­siderar o conhecimento prévio do aluno. Esse é sempre um conhecimento parcela­do, que fragmenta a realidade, cheio de preconceitos, carregado de crendices, de folclore. mas é a idéia que ele faz da realidade. ~ em cima desta idéia, do senso comum, que se deve trabalhar para superá-lo e poder construir uma visão coerente, moderna e científica do mundo atual. Conhecer a realidade passa a ser, então, um processo de reconhecimento do que existe no lugar, com as devidas explicações para o que acontece, e a análise crítica de como se dispõem as coisas.

Cada fenômeno estudado deve considerar sempre que tal corno ele se apre­senta não esgota todas as possibilidades de explicações. Muitas vezes, a explica­ção de algo muito próximo está distante noutro nível de escala. Portanto, ao estudar o local, não se pode perder de vista o regional, o nacional e o mundial. Este movimento faz da análise de qualquer fenômeno, ou mesmo de algum espa­ço, a diferenciação necessária e a amplitude de tratamento das questões. Supera­se a simples descrição e o tratamento simplório; ao buscar referências maiores que permitam entender o fenômeno em uma dinâmica que é a própria vida. .

O que se quer, enfim, é trabalhar realrhente Os estudos sociais nas séries iniciais avançando das simples listas/elenco de lugares e deheró~ e do cansativo desenho de alguns lugares como se assim se estivesse encaminhando~ compreensão da realidade.

O que virão a ser estes fenômenos, os problema~ estudados? Vai depender da dinâmica da aula e não de avanços lineares, partínc!!o do próximo para o mais distante. A noção de próximo/distante é muito relatih , não. se restringe a uma variada extensão do espaço, mas tem a ver com o que[ é significativo para a vida dos alunos, para que eles se reconheçam como cidadãos que vivem num determi-nado lugar e num determinado tempo. .:

Até a terceira série, pode-se trabalhar aspectos do lugar em que se vive. O conteúdo passa aser então o município, não como um todo, mas na perspectiva que for mais conseqUente para os alunos. O aluno terminará então a terceira série com o conhecimento de variados aspectos da realidade local e111 que ele vive. O que se cobra deste aluno. em termos de avaliação, não é o conhecimento e as informações sobre o local. Estes devem significar uma aprendizagem por acrés­cimo que sempre é útil e importante. O aluno deve ter sido encaminhado à com­preensão dos conceitos fundamentais, aos estudos soc iais, que sintetizam o que está referido acima: reconhecer-se como cidadão que tem direitos é deveres, ao pertencer à sociedade e ne la a diversos grupos soci ~.is, que têm uma história construída por todos. que têm um tempo acontecido com diversos fatos que são

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importantes tanto para si quanto para o conjunto da sociedade, e que vive num espaço que não é dado, mas que existe concretamente e que é c9.nstruído cotidi· anamente a partir do trabalho dos homens que ali vivem.

Feito isto nas três séries iniciais, na quarta série entendemos que seja o momento ideal do currículo para fazer a sistematização do que foi aprendido até agora, organizando tudo no interior de um esquema de análise que dê conta de espaço local, mas também do regional, nacional e internacional. O estudo do município é o conteúdo que de forma especial serve para ser trabalhado como instrumento de uma base necessária ao aluno, sistematizando as aprendiza9em realizadas até então e construindo uma base referencial para as aprendizagen: fu turas. É um processo que envolve dois movimentos e um conteúdo que, por ser o meio em que vive o aluno, permite que se realizem, ao mesmo tempo, a siste­matização e as bases para trabalhar com outras realidades mais distantes, corr. fenômenos que exigem maiores generalizações e um maior nível de abstração.

Neste sentido, o estudo do município não pode ser um conteúdo solto, aos peda­ços, não pode ser itens ou temas apenas, mas informações que o aluno possa manuse· ~' e que estejam referidas a um âmbito maior, mais complexo e a outros níveis de escala. Não se trata de fazer o elenco das coisas mais importantes, dos fatos e dos grandes homens, mas procurar entender a dinâmica do desenvolvimento do municí­pio como um todo e como wna das unidades da Federação, no Brasil. Não se trat<.. inclusive de estudá-lo separado dos demais, isolando-o para ver o que acontece ali mas de compreendê-lo como a expressão da. sociedade e do território brasileiro em um dado lugar e momento. Verificar, assim, como se processa a construção do espa­ço, como se dão as relações de poder (a partir da esfera nacional, estadual e munici pai) e qual o significado para a sua organização interna, como se dão as relações entrt> os homens, enfim como é construído o espaço e que aparência assume.

O estudo do município pennite que o aluno constate a organização do espaço, qw .. possa perceber nele a influência e/ou interferência dos vários segmentos da sociedade. dos interesses poüticos e econômicos ali existentes e também de decisões externas ao município, confrontando-se inclusive com interesses locais e da população que ali vive. Na quarta série, ao estudar o município, pcxie-se fazer wn interessante trabalho interdis . ciplinar, partindo da realidade que está sendo vivenciada pelo aluno.

Estudar o município tem pelo menos duas vantagens: o aluno tem condi­ções de reconhecer-se como cidadão em uma realidade que é a da sua vida con- · ereta, apropriando-se das informações e compreendendo como se dão as relaçõe . . )' sociais e a construção do espaço. A outra vantagem é pedagógica, pois, ao estu- ., dar algo que é vivenciado pelo aluno, são muito maiores as chances de sucesso; iJ

de se tornar um aprendizado mais conseqüente. O papel dos estudos sociais nas séries iniciais é fundamental ao processo d'

formação do aluno, à aprendizagem que se baseia neste momento, no saber ler e escrever. Devemos aprender e ensinar a ler o mundo, a realidade. em que vivemo~-: 1

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARCELOS, E. S. (coord.). 4" série - identidade e funções no currículo de primeiro grau- proposta pedagógico-metodológica . Ijuí: Livraria UNIJUÍ Editora. 1990.

CALLAI, H. C.; ZARTH, P. A. O estudo d.o mun icípio e~ ensino .de história e geog rafia . Ijuí: Livraria UNIJUÍ Editora, 1988 .

• Tex to publicado origin.almentc no Bolaim Gaúcho ck Geografia . n.20, 1995.

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A GEOGRAFIA NOS ANOS INICIAIS DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Wesley de Souza Arcassa 1

Mestrando em Geografia pela Universidade Estadual de Londrina arcassa@gmail .com

Resumo: O ensino de Geografia tem, atualmente, grande importância na formação dos educandos, para tanto , faz-se necessário que. estes utilizem saberes e métodos em benefício da construção de sua cidadania e de uma sociedade mais justa. No âmbito escolar devem ser tratadas questões· que dizem respeito às diversidades sociais e à relação sociedade-natureza em uma perspectiva que permita aos alunos reconhecerem seu papel nesse processo. As abordagens geográficas em diferentes escalas também devem ser desenvolvidas, pois possibilitam aos discentes diferenciar o local e o global e relacioná-los , buscando compreender a totalidade das relações sociais , as quais também representam relações · de poder. Assim; o trabalho expústo ·na sequência ·objetiva . realizar uma· revisão bibliográfica em torno da temática do processo de ensino-aprendizagem dÇl Geografia. com destaque para os anos inicias da Educação Básica. Para tanto, faz-se necessário traçar o panorama histórico da imp-lementação da Geografia, enquanto disciplina , no sistema escolar brasileiro. Na sequência, tem-se um enfoque detalhado da abordagem geográfica presente em alguns referenciais curriculares oficiais em nível federal e estadual. Por fim, busca-se desenvolver uma reflexão acerca da realidade vigente do ensino de Geografia nos anos inicias , elucidando os obstáculos e avanços conseguidos.

Palavras-chave: Ensino de Geografia; Anos Iniciais da Educação Básica; Ensino-Aprendizagem.

3. HISTÓRICO DO ENSINO DE GEOGRAFIA NO BRASIL

A Geografia e as demais disciplinas escolares são histórica e socialmente construídas, com a participaçao dos sujeitos sociais diversos que atuam na · escola ou não. Trata-se de um processo que inclui professores, coordenadores, diretores, pais, alunos e demais pessoas que participam das prátic~s escolares, além de técnicos que elaboram currículos e programas e de pesqUisadores de instituições acadêmicas que analisam as disciplinas escolares.

Também se devem ressaltar os objetivos diferentes da academia e da escola: a primeira tem como pretensão a formação profissional em nível superior; já a segunda pretende uma formação cidadã e consciente com base em conhecimentos específicos das disciplinas.

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Outro ponto ainda diz respeito à autonomia em relação às ciências de referência ou as denominadas "ciências-mães" (CHERVEL, 1990). As disciplinas escolares não constituem resultado de uma simples transposição didática, ou seja, não resultam de um conhecimento de segunda categoria , feito a partir de uma passagem ou de uma simplificação de um · saber acadêmico para o escolar (BITTENCOURT, 2004). Desta forma, as disciplinas escolares apoiam-se nas ciências de referência, mas elas próprias podem se tornar meios de construir conhecimento (ALBUQUERQUE [et.al], 201 O, p. 16).

-Compreendendo esses pressupostos, pode-se distinguir a ciência de

referência da disciplina escolar e afirmar que a Geografia escolar não é a Geografia acadêmica simplificada, mas sim, um conhecimento produzido a partir da interação dos saberes trazidos pelos diferentes sujeitos sociais que compõem a escola.

Quando foi fundado o primeiro curso de formação universitária de professores de Geografia e História .da Universidade de São Paulo, em 1934, esta disciplina escolar já constava, há um .século, nos currículos das Escolas das Primeiras Letras e era abordada em temáticas dos textos de leitura, assim como também passou a constar como ·c_onteúdo específico do currículo escolar do Colégio Pedro 11, no Rio de Janeiro, desde a sua fundação, em 1831. : ·

O desenvolvimento da geografia escolar diante da produção acadêmica no Brasil não costuma ser tratado nos manuais ou nas publicações sobre história do pensamento geográfico. Porém, isso não ocorre somente no Brasil. Em países como a Inglaterra (GOODSON, 1990), a França (LACOSTE, 1997) e a Alemanha (VLACH, 1988), a Geografia teve suas primeiras produções voltadas para a escola, visando à constituição do Estado Nacional. Com o advento. e a popularização da escola na modernidade, primeiramente para as classes dominantes e, posteriormente , para as classes trabalhadoras, a Geografia torna-se conhecimento escolar. É somente com as sistematizações das pesquisas do fim do século XIX que ela ganha o status de disciplina acadêmica (ALBUQUERQUE [et.al], 2010, p. 17).

No Brasil, até o fim do século XVIII, não havia manuais escolares específicos de Geografia para o trabalho em sala de aula. Era comum a adoção de manuais portugueses ou franceses. Foi somente no século. XIX, com a vinda de D. João VI e com a introduçãe da Imprensa Régia, que alguns manuais de Geografia foram publicados. Além disso, reclamava-se da ausência de uma produção científica sobre o Brasil para orientar até mesmo os manuais escolares. Consta como um dos primeiros livros de Geografia do Brasil o Corografia Brasílíca, do padre Manuel Aires de Casal, publicado em 1817. Esse livro se caracteriza por um apanhado de informações e dados sobre cada província e serviu de referencial para muitas publicações didáticas que foram elaboradas posteriormente. ·

Com a Imprensa Régia funcionando no país, algumas publicaçõ~s foram entãci difundidas, mas os livros continuavam objetos raros e em muitos casos eram utilizados somente pelos professores, já que os alunos não tinham acesso a eles.

Os manuais didáticos produzidos nessa época (século XIX) , ao tratar de Geografia brasileira , em geral não trabalhavam com uma

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regionalização do país e também não seguiam os métodos de pesquisa em Geografia que estavam em discussão no continente europeu, onde se fundamentavam em proposições pedagóg icas que valorizavam a mem orização. Temos como exemplos as obras de Aires de Casal, as publicações do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , algumas revistas raras como a Dous Mundos · e alguns dicionários e almanaques elaborados nas províncias. Eram raros os autores de livros didáticos que tinham contato com a produção científica europeia da época (ALBUQUERQUE [et.al]. 2010, p. 17).

No Brasil, antes do século XIX, nas Escolas de Primeiras Letras , ensinavam-se noções gerais de Geografia , difundidas nos livros de leitura. Foi somente coni a fundação do Colégio Pedro 11, em 1837, que o país passou a ter uma produção mais sistemática de Geografia destinada às escolas e uma organização do currículo em nível nacional.

A chegada do professor francês Delgado de Carvalho (1884-1990) ao país, oriundo de importantes universidades europeias, trouxe um novo_ ânimo para a disciplina . Com a publicação do rivro Geografia do Brasil, e.m 1913, Carvalho introduziu uma . regionalização · do país e . propunha n"óvas metodologias . de ensino.. Quando publicou Methodologia de Ensino Geographico, em 1925, estabeleceu uma nova marca à _Geografia que se ensinava nas escolas brasileiras. Nesta obra, ele criticava a maneira como a disciplina era lecionada e como os conteúdos eram abordados. Suas críticas parecem bem atuais, pois, já naquela época, ele combati3 o método mnemônico (conteúdos distantes da realidade dos alunos e excesso de nomenclaturas). Propunha iniciar os trabalhos escolares com conteúdos que se relacionavam à realidade do aluno , para então abordar temáticas mais distantes do seu universo. Fundamentava a sua teoria pedagógica . nos pressupostos da Escola Nova.

Carvalho, juntamente com outros membros do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. foi responsável peia criação de um dos primeiros cursos de formação de professores de Geografia no Brasil, o Curso Livre de Geografia e História. Isso mostra a sua preocupação com a formação do educador de Geografia, que até então tinha um quadro de professores composto de profissionais liberais, como advogados, engenheiros e outros que tivessem interesses por temas relacionados à Geografia. Ele também participou de várias

. conferências pelo país para divulgar seu método de ensino. (ALBUQUERQUE [et.al] , 2010, p. 1_7) .

Nesse período, já se percebe uma relação intrínseca entre a produção científica e a escolar; passa-se a ter no Brasil a difusão das ideias sistematizadas com base em métodos específicos e em fundamentações teóricas, Os professores que lecionavam Geografia elaboraram, juntamente com Delgado de Carvalho, um currículo para o ensino da disciplina no pÇ!íS que imprimia essas mudanças. Porém, é importante ressaltar que essa renovação metodológica se dava mais especificamente no Colégio Pedro 11, no Rio de Janeiro, e em algumas escolas espalhadas pelo país que eram obrigadas a seguir o currículo desse importante Colégio. Eram poucas as experiências fora desse circuito que traziam as marcas de inovação.

Neste contexto, com base na necessidade de criar um curso de formação de professores, a disciplina escolar buscará uma resposta acadêmica

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para as suas necessidades. A formação de professores para lecionar nas escolas também foi o objetivo traçado com a fundação do primeiro- curso superior de Geografia no país, o curso de História e Geografia da Universidade de São Paulo, em 1934, e, no ano seguinte, o da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro.

Conforme as reflexões de Kozel (1996, p. 16): "Somente com a fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP, 1934) e com o funcionamento da A_ssociação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) a situa ção começou a mudar, embora muito lentamente".

Com a instalação desses cursos superiores, a relação entre a produção acadêmica e a produção escolar se torna mais próxima, pois alguns autores de livros didáticos, como Aroldo de Azevedo (1910-1974), formados nestes cursos, passaram a lecionar em tais instituições superiores e a elaborar e publicar manuais didáticos destinados ao ensino básico de Geografia .. O próprio Aroldo publicou e comercializou livros de Geografia, da década de -1930 até 1970, o que mostra a duração e a permanência da sua abordagem. Outros. autores tiveram destaque nesse período, entre eles o geógrafo pernambucano Manuel Correia de Andrade (1922-2007).

Sobre a relação entre a acacJ(;rJ1ia .. ~ ê3 . prqdwção dos saberes escolares , é. importante ressaltar que a produção geográfica acadêmica brasileira dessa época, e mais especificamente a que foi feita . em São Paulo , estava atrelada aos preceitos da Geografia francesa de Paul Vida! de La Blache. Essa passou a ser a fundamentação acadêmica de parte das publicações didáticas. Do ponto de vista pedagógico, havia grande conservadorísmo nos métodos e abordagens de conteúdos, fundamentados geralmente em práticas pedagógicas tra dicionais. Entretanto, alguns autores de materiais didáticos trouxeram inovações para suas obras, assim como os professores para suas aulas. Esse período da disciplina escolar é atualmente denominado, de maneira geral, de GeograJia Tradicional. Como se pode perceber, esta Geografia chegou às práticas escolares influenciada pela academia. (ALBUQUERQUE [et.al]. 2010, p. 18).

Do ponto de vista teórico-pedagógico, a produção de Delgado de Carvalho, voltada para a escola, situava-se em oposição à de Aroldo de Azevedo.-Delgado estava ligado aos precursores da "Escola Nova" no Brasil e chegou a assinar o Manifesto dos Pioneiros. Os intelectuais ligados à educação que assumiam esses preceitos eram contrários às práticas escolares tradicionais e as combatiam com veemência .

Para se compreender as transformações e as relaçõ.es que caracteriz9ram a geografia acadêmica e escolar no Brasil a partirda década de 1970, é importante compreender essa diversidade de posições. Existiram e existem, até hoje, por exemplo, diversas "Geografias Tradicionais", pois não se pode dizer que a produção de Delgado e Aroldo faziam parte de um mesmo campo teórico, especialmente no. que diz respeito às proposições pedagógicas (ALBUQUERQUE [et.al], 2010, p. 18).

Com a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, o mundo passou por transformações significativas que repercutiram na produção acadêmica,

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principalmente após a década de 1960. Algumas análises sobre a Geografia brasileira nesse período afirmam que as . transformações tiveram início nas universidades, nas quais se difundiam as novas ideias sistematizadas no início dos anos 1960, mas posteriormente renovadas teoricamente pelas abordagens críticas, sejam elas de base marxista, fenomenológica ou mesmo anarquista. É o que se convencionou denominar "Geografias Críticas".

No ano de 1965, Yves Lacoste publicou sua obra Geografia do Subdesenvolvimento. A partir desse fato tiveram início as primeiras propostas oriundas das ideias da Geografia Crítica no Brasil. Nos anos de 1970, período no qual o país vivenciava um regime militar, a Geografia e a História foram unificadas em uma única disciplina, denominada de Estudos Sociais. Essa iniciativa do Governo Militar visava coibir o surgimento de - movimentos, apoiados na ideia de que a Geografia e a História figuravam como uma ameaça política.

Vesentini (2004) · afirma que importantes transformações tiveram início . nas escolas e nos cursinhos, especialmente . onde os . grupos de professores estavam descontentes com a Geografia difundida no período. O próprio autor fazia p-arte desse grupo, que questionava o saber que então constituía o currículo escolar da disciplina. Esse posicionamento levou à busca de novas fundamentações teóricas e de renovações das práticas pedagógicas, o que foi possível por meio de leituras ligada-s às novas correntes do pensamento geográfico, como as produções dos autores Elisée Reclus e Yves Lacoste. Com isso, inverteu-se a análise até então difundida e súrgiram discussões sobre novas práticas escolares.

De acordo com Moraes (1 998) apud Albuquerque [el. ai] (201 O), houve um aumento significativo de publicações didáticas de Geografia e também foram elaborados, em muitos estados e municípios brasileiros Propostas Curriculares de Geografia, muitas delas fundamentadas nas abordagens críticas, outras ainda arraigadas em abordagens tradicionais .

Em meio a essas discussões, a partir dos anos de 1980, novas abordagens sobre a escola são traçadas. Um novo corpo teórico começa a ser sistematizado na academia, tanto no campo da Geografia quanto no da Pedagogia , e também na própria escola. Além ·disso, foram consideradas as influências das novas configurações espaciais e de poder, estabelecidas com o fim da Guerra Fria e com a queda do Muro de Berlim, e incluídas novas reivindicações sociais (questões de gênero, etnia , diversidade sexual, ecologia, movimentos por terra e moradia). As ciências e a escola tomaram novos impulsos. Para a Geografia escolar, esse quadro não foi diferente e somou-se a ele um debate mais significativo sobre as teorias da aprendizage-m. Tudo isso trouxe um diferencial para as produções destinadas à escola. Além disso, houve uma crescente ampliação de publicações e teses sobre o ensino de Geografia, o que mostra a importância da academia também refletir sobre si mesma a partir da Geogrç:~fia escolar. É nesta perspectiva que a disciplina escolar se aproxima das proposições teóricas de Jean Piaget e de Lev Vygotsky. (ALBUQUERQUE [et.al], 2010, p. 18).

Ampliou-se significativamente a diversidaçle nas abordagens. sobre o ensino de Geografia. Os materiais didáticos que há -muito tempo estavam restritos a poucos manuais tiveram produção crescente em quantidade e em

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qualidade. Além disso, a avaliação dos livros didáticos, promovida pelo Governo Federal, também influenciou positivamente a produção desses materiais. É necessário ainda enfatizar que o país passou a contar com um referencial curricular nacional , os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). ampliados pelos documentos subsequentes, como os PCNs+, com orientações específicas para a adoção desses parâmetros em cada uma das disciplinas, além das proposições curriculares elaboradas nos estados pelas Secretarias de Educação.

4. A GEOGRAFIA NOS REFERENCIAIS CURRICULARES OFICIAIS DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Ao se analisar os principais referenciais curriculares oficiais· que versam sobre o ensino de Geografia nos anos iniciais da Educação Básica

·percetJe::.se, claramente, uma preocupação com a implementação de uma vertente moderna do ensino-aprendizagem das temáticas geográficas. Nessa ótica, cabe abordar as noções de Geografia Escolar presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais de História e Geografia (1 a a 4a série) publicados pelo Ministério da Educação (2001 ) , bem como nas Expectativas de Aprendizagens de História e Geogra.fia (Ensino Fundamental - Ciclo 1) , documento editado pela Secretaria de Estado da Educação de São_pa uio (2008).

A Geografia, na proposta dos PCNs, tem um tratamento específico como área, uma vez que oferece instrumentos essenciais para compreensão e intervenção na realidade social. O documento de Geografia propõe um trabalho pedagógico que visa à ampliação das capacidades dos alunos , do ensino fundamental, de observar, conhecer. explicar, comparar e representar as características do lugar em que vivem e de diferentes paisagens e espaços geográficos. Isso porque, segundo Brasil (2001, p. 108):

O ensino de Geografia pode levar os alunos a compreenderem de forma mais ampla a realidade , possibilitando que nela interfiram de maneira mais consciente e propositiva. Para tanto, porém, é preciso que eles adquiram conhecimentos, dominem categorias . conceitos e procedimentos básicos com os quais este campo do conhecimento opera e constituisuas teorias e explicações, de modo a poder não apenas compreender as relações socioculturais e o funcionamento da . natureza às quais historicamente pertence, mas também conhecer e saber utilizar uma forma singular de pensar sobre a realidade: o conhecimento geográfico.

A Geografia estuda as relações entre o processo histórico que regula a formação das sociedades humanas e o funcionamento da natureza, por meio da leitura do espaço geográfico e da paisagem. A divisão da Geografia em campos de conhecimento da sociedade e da natureza tem propiciado um aprofundamento temático de seus objetos de estudo. Essa divisão é. necessária, como um recurso didático, para distinguir us elementos · sociais ou naturais, mas é artificial, na medida em que o objetivo da Geografia é expliCar e.compreender as relações entre a sociedade e a natureza, e como ocorre a apropriação desta por aquela. Na busca dessa abordagem relaciona!, a Geografia tem que trabalhar com diferentes noções espaciais e temporais, bem como com os fenômenos sociais, culturais e naturais que são

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característicos de cada paisagem, para permitir uma compreensão processual e dinâmica de sua constituição. Identificar e relacionar aquilo que na paisagem representa as heranças das sucessivas relações no tempo entre a sociedade e a natureza é um de seus objetivos.

O estudo de Geografia possibilita . aos alunos, a compreensão de sua posição no conjunto das relações da sociedade com a natureza: como e por que suas ações, individuais ou coletivas , em relação aos valores humanos ou à natureza, têm consequências -tanto para si como para a sociedade. Permite também... que adquiram conhecimentos para compreender as diferentes relações que são estabelecidas na construção do espaço geográfico no qual se encontram inseridos, tanto em nível local como mundial, e perceber a importância de uma atitude de solidariedade e de comprometimento com o destino das futuras gerações. Além disso, seus objetos de estudo e métodos possibilitam que compreendam os avanços na tecnologia , nas ciências e·nas artes como resultantes de trabalho e experiência coletivos da humanidade, de erros e acertos nos âmbitos da política e da ciência, por vezes permeados de uma visão utilitarista e imediatista do uso da natureza e dos bens econômicos. (BRASIL, 2001,p.113).

Desde as primeiras etapas da escolàridade, o .ensino da Geografia pode e deve ter como objetivo mostrar ao aluno que cidadania é também o sentimento de pertencer a uma realidade na qual a~ relações entre a sociedade­e a naturezaformam um todo integrado - constantemente em transformação -do qual ele faz parte e, portanto, precisa conhecer e sentir-se como membro participante, afetivamente ligado, responsável e comprometido historicamente.

Abordagens contemporâneas da Geografia têm buscado práticas pedagógicas que permitam apresentar aos alunos os diferentes aspectos de um mesmo fenômeno em diferentes momentos da escolaridade, de modo que os educandos possam construir compreensões novas e mais complexas a seu respeito. Espera-se que, dessa forma, eles desenvolvam a capacidade de identificar e refletir sobre diferentes aspectos da realidade, compreendendo a relação sociedade-natureza. Essas práticas envolvem procedimentos de problematização, observação, registro, descrição, documentação, representação e pesquisa dos fenômenos sociais, culturais ou naturais que compõem a paisagem e o espaço geográfico, na busca e formulação de hipóteses e explicações das relações, permanências e transformações :que aí se encontram em interação (BRASIL, 2001, p. 115).

Para tanto, o estudo da sociedade e da natureza deve ser realizado de forma conjunta. No ensino, professores e alunos devem procurar entender que ambas - sociedade e natureza - constituem a base material ou física sobre a qual o espaço geográfico é construído.

É fundamental, assim, que o professor crie e planeje situações nas quais os alunos possam conhecer e · utilizar esses procedimentos. A observação, descrição, experimentação, analogia e síntese devem ser ensinadas para que ·os alunos possam aprender a explicar. compreender e até mesmo representar os processos de construção do espaço e dos diferentes tipos de paisagens e territórios. Isso não significa que os procedimentos tenham um fim em si mesmos: observar, descrever, experimentar e comparar servem para construir noções, espacializar os fenômenos, levantar problemas e compreender as soluções propostas, enfim, para conhecer e começar

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a operar com os procedimentos e as explicações que a Geografia como ciência produz. (BRASIL, 2001, p . 116)

Ao se valer de imagens. a Geografia recorre a diferentes linguagens na busca de informações e como forma de expressar suas interpretações, hipóteses e conceitos. Pede uma Cartografia conceitual. apoiada em uma fusão de múltiplos tempos e em uma linguagem específica, que faça da localização e da espacialização uma referência da leitura das paisagens e seus movimentos.

Na escola, assim, fotos comuns, fotografias aéreas, filmes, gravuras e vídeos também podem ser utilizados como fontes de informação e de: leitura do espaço e da paisagem. É preciso que o professor analise as imagens na sua totalidade e procure contextualizá-las em seu processo de produção: por quem foram feitas, quando, com que finalidade, etc., e tomar esses dados como referência na leitura de informações mais particularizadas, ensinando aos alunos que as imagens são produtos do trabalho humano, localizáveis no tempo e no espaço, cujas intencionalidades podem ser encontradas de forrria explícita ou implícita (BRASIL, 2001 , p. 118).

. O estudo da linguagem cartográfica, por sua vez, tem cada vez mais reafirmadó sua importância, desde o início da escolaridade. Contribui não apenas para que os alunos venham a compreender e utilizar uma ferramenta básica -da Geografia, ·os mapas; túmo também para desenvolver capacidades relativas à representação do espaço.

De acordo com Coll e Teberosky (2005, p. 20), os mapas são um "retrato" de um determinado lugar em um dado momento. Eles nos permitem conhecer como é o meio natural, como o lugar está organizado e, finalmente, como esse lugar foi mudando ao longo do tempo. Assim como ocorre com os documentos e com os objetos no estudo da História, a informação de um mapa nos fornece "pistas" para o estudo da vida dos distintos grupos sociais, pois cada um deles construiu o lugar onde vive da maneira mais conveniente segundo os seus interesses. O resultado dessa organização é ilustrado nos diferentes tipos de mapa. Para tirar conclusões a partir dos dados que um mapa oferece, é necessário interpretá-los.

Já nas Expectativas de Aprendizagem de Geografia e História da CENP/SEE há algUmas premissas básicas que devem ser respeitadas no processo de ensino-aprendizagem, para que se possam articular os conteúdos propostos apoiando-se nas características dessas áreas:

~ A definição de cotidiano não pode ser estabelecida de forma objetiva e reduzida a medidas numéricas e propriedades isoladas das coisas. As expressões lugar, vivência, modo de viver, propiciam uma visão integradora do espaço vivido pelas crianças e seus valores.

- O todo não é a soma das partes. A ação humana não deve ser separada de seu contexto social ou natural, daí partir de uma totalidade.

- A cultura, entendida como atribuição de significado e valores as coisas . que nos cercam, somente pode ser interpretada pelos grupos que a

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produziram. Generalizar significa negligenciar as propriedades fundamentais dos contextos particulares.

Nessa perspectiva, o trabalho pedagógico deve ser capaz de interpretar a trama complexa de analogias, de valores, de representações e identidades plurais que figuram nesse espaço vivido das crianças. Dessa maneira, o processo de ensino-aprendizagem deve se estruturar em torno de temas que visam problematizar a realidade e articular conhecimentos desses campos do saber ao mundo contemporâneo e a vivências cotidianas dos educandos relacionadas à sua formação cultural, social e científica.

As expectativas de aprendizagem no campo da Geografia buscam orientar o trabalho pedagógico para que o estudante adquira consciência espacial e a capacidade de desenvolver raciocínios espaciais. A compreensão de diferentes territorialidades , os vínculos espaciais, a produção da paisagem, a mobilidade social. a formação de grupos sociais e sua interação com processos da natureza são articuladas a uma base conceitual da Geografia que dá sustentação para a interpretação dó mundo vivido. No ensino da GeograDa . . os temas estruturam conceitos imprescindíveis para a compreensão da realidade e espaços. Eles. permitem aos estudantes local izar e dar significação aos diferentes lugares e estabelecer relaç.ões desses com seu cotidiano. (SÃO PAULO, 2008, p. 08). · ·

Os temas a serem trabalhados no âmbito escolar devem contemplar as especifiCidades da Géógrafia, respeitando o processo de aprendizagem da criança, o seu desenvolvimento social e afetivo. E, as expectativas necessitam se apoiar em conceitos como: sociedade, identidade, tempo, espaço, trabalho, cultura, economia, homem, lugar, transformação e natureza. Esses referenciais considerados básicos e necessários parÇI a construção do conhecimento precisam ser tratados, ao longo dos temas propostos e articulados com as demais áreas segundo uma ordem crescente de dificuldade .

Para que haja coerência com a ideia que todas as áreas alfabetizam, ou seja, são responsáveis pela aprendizagem da leitura e escrita deve-se tomar como referência situações do cotidiano e das vivências dos estu(_Ja_ntes. A partir de situações concretas, o aluno pode e deve solucionar problemas e levantar hipóteses sobre os fenômenos estudados.

Essa opção fundamenta-se na perspectiva de que qualquer tema nos· permite apreender a totalidade social, em uma relação que caminha da parte para o todo e vice-versa, num movimento de vaivém que permite ao professor trabalhar, dentro de cada assunto, as contradições, as semelhanças e as diferenças e a relaÇão parte e todo. Esse procedimento favorece a formação de estudantes com pensamento crítico e analítico, estimulando o raciocínio a partir de diferentes referenciais ligados ao campo da Geografia e de outras áreas do conhecimento. (SÃO PAULO, 2008, p. 08).

Nesse sentido, conforme as premissas estabelecidas pelo documento paulista, o objetivo fundamental da Geografia, no Ciclo I do Ensino Fundamental, é situar o aluno no momento em que vive. Situar-se é perceber os fatos que acontecem em uma dinâmica de relações espaciais próximas e distantes e em uma multiplicidade temporal e espacial, portanto espera-se que os estudantes, ao longo dos cinco anos iniciais do ensino fundamental, possam desenvolver conhecimentos relacionados à leitura do mundo que vivem.

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Por fim , cabe destacar a escass.a carga horária de aulas semanais de Geografia (quadro 01 ), estabelecida pela Resolução SE/SP n° 81, de 16 de dezembro de 2011, que estabeleceu as diretrizes para a organização curricular do ensino fundamental e do ensino médio nas escolas estaduais. De acordo com o seu Artigo 2°: "o ensino fundamental terá sua organização curricular desenvolvida em regime de progressão continuada, estruturada em 09 (nove) anos, constituída por dois segmentos de ensino (ciclos): I - anos iniciais, correspondendo ao ensino do 1 o ao 5° ano; e, 11 - anos finais , ç_orrespondendo ao ensino do 6° ao 9° ano".

Quadro 01: Matriz Curricular Básica para o Ensino Fundamental- Ciclo I (1a ao 5° ano).

CICLO 1-1° AO 5° ANO 1° ANO 2° ANO 3° ANO 4° ANO 5° ANO Língua Portuguesa 60% 60% 45% 30% 30%

Base História/Geografia - - - 10% 10% Nacional Matemática 25% 25% 40% 35% 35% Comum Ciências - - - 10% -10% .

Educação Física/Arte 15% . 15% 15% 15% . 15% Total Geral 100% 100% 100% 100% . 100%

Fonte: SÃO PAULO. 2011, p. 02 (grifo nosso).

5. REFLEXÕES FINAIS

Diante das reflexões tecidas no transcorrer do texto torna-se possível inferir que o ensino de Geografia é capaz de possibilitar aos educandos condições para a indagação, a elaboração e a compreensão de diferentes elementos do mundo, presentes em seu cotidiano e relacionados à diversidade de procedências culturais, lugares e épocas. Este deve partir da visão integradora das ações humanas e dos processos da natureza, sendo que através de eixos de estudo os docentes são capazes de organizarem sua ação pedagógica por recortes que respeitem as especificidades das áreas de conhecimento.

Segundo Stefanello (2009, p. 19), a Geografia Escolar deve ser sempre considerada como·uma área do conhecimento que integra a educação geral, além de abranger os conteúdos da c1encia geográfica e, consequentemente, os de outros campos do saber, o que lhe confere muitas possibilidades para a interdisciplinaridade. Os conteúdos dessa Geografia Escolar são selecionados pelos docentes, em um processo de transposição didática, de forma a adequá-los aos objetivos da educação básica, buscando desenvolver no aluno ·a observação, a análise e o pensamento crítico da realidade e, em particular, do espaço onde vive.

É sabido que quando ingressa no sistema escolar, a criança traz consigo um conhecimento informal adquirido ao longo de sua vida até esse momento. Ela já possui uma história de vida pessoal, tem vivido experiências, domina uma linguagem que a escola· precisa respeitar para modificá-la aos poucos.

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Durante o Ciclo I do Ensino Fundamental , o processo de ensino­aprendizagem da Geografia pode ser iniciado pela observação orientada da comunidade (características, organização e funcionamento) e do meio ambiente (cidade, campo, meio natural e/ou transformado) nos quais o aluno vive. Para Le Sann (1995, p. 304), a observação sistemática, seguida de registro falado, escrito e/ou desenhado é fundamental para que a criança tenha condições de descobrir o significado da organização e da distribuição dos elementos identificados naquele espaço. A verbalização, a escrita e o desenho provocam a formação de imagens mentais e, conseqld_entemente, a compreensão dos elementos do espaço e suas relações e funções. Assim, o raciocínio geográfico é desenvolvido em três etapas, a partir: 1) da observação dos elementos do espaço; 2) de uma reflexão sobre o papel relativo de cada um; e, 3) da organização dos pensamentos para desabrochar no conhecimento da realidade percebida.

Ao se tratar de qualquer assunto em sala é fundamental levantar os · · conhecimentos anteriormente adquiridos pelas crianças. O professor tem a oportunidade de verificar o nível de seus alunos e · seus eventuais erros conceituais. Inúmeros "erros" provêm de conceituação errada. Cabe ao professor "corrigir", ou seja , retrabalhar as noções formadoras dos conceitos incorretos do ponto de vista do conhecimento acadêmico. (LE SANN. 1995. p. 304) .

Entretanto, independentemente da perspectiva geográfica , a maneira mais comum de se ensinar Geografia tem sido pelo discurso do professor ou pelo livro didático. Este discurso sempre parte de alguma noção ou conceito chave e versa sobre algum fenômeno social, cultural ou natural que é descrito e explicado, de forma descontextualizada do lugar ou do espaço no qual se encontra inserido. Após a exposição, ou trabalho de leitura , o professor avalia, pelos exercícios de memorização, se os alunos aprenderam o conteúdo . Esta ideia é corroborada por Kozel (1996):

Pode-se dizer que. hoje, as diversas tendências da Geografia Escolar - geografia tradicional, quantitativa, da percepção e crítica -mostram-se distribuídas, embora de maneira bem desigual, tanto nos livros didáticos de Geografia como no tratamento dado em revistas e jornais à questão da construção do espaço. Ainda predomina entre os professores e muitas obras de divulgação da ciência geográfica o enfoque tradicional. de caracterí sticas conservadoras e pouço críticas . A Geografia continua a ser tratada como uma área secundária, desinteressante e que pouco contribui para a formação da cidadania. (KOZEL, 1996, p.17).

O docente dos anos iniciais da Educação Básica não recebe uma formação específica para ensinar Geografia. Muitas vezes, ele se encontra despreparado frente às propostas dos livros didáticos para esse nível de ensino, oferecidos no mercado. Na prática, o professor costuma trabalhar noções abstratas e/ou vazias, utilizando conceitos que a criança não domina e tem muita dificuldade para entender, uma vez que lhe faltam noções anteriores, essenciais para um real entendimento da matéria apresentada.

Para romper com a prática tradicional da sala de aula, não adianta apenas a vontade do prof~ssor. É preciso que haja concepções teórico-metodológicas capazes de permitir o reconhecimento do saber do outro, a capacidade de ler o mundo da vida e reconhecer a sua dinamicidade, superando o que está posto como verdade

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absoluta. É preciso trabalhar com a possibilidade de encontrar fo rmas de compreender o mundo, produzindo um conhecimento que é legítimo. (CALLAI, 2005. p. 231).

Na maioria dos casos, segundo Le Sann (1995, p. 305), o professor dos anos iniciais não domina os conceitos que possibilitam uma · real compreensão do espaço, da sociedade e de seus funcionamentos . É necessário oferecer um treinamento apropriado para esse profissional (formação continuada), a fim de que ele possa realmente mudar sua prática pedagógica em sala de aula.

O ensino de Geografia para os anos iniciais não deve ter objetivos tão díspares dos demais níveis de ensino. No entanto, as características didáticos-metodológicas próprias desse nível de escolaridade não podem ser desconsideradas. Alguns pesquisadores como Callai (1998), Gebran (1990), Le Sann (1997) e Kaercher (1998) veem no ensino de Geografia para crianças uma das possibilig-ªg~~ -º-ª _fgrmação do cidadão através do posicionamento crítico em relaç~o às desigualdades sociais identificadas na realidade concreta das Crianças {STRAFORINI, 2004, p. 79).

Por meio da Geografia, nas aulas dos anos iniciais do ensino fundamenta l, podemos encontrar uma maneira interessante de conhecer o mundo. de nos reconhecermos como cidadãós ·e de sermos agent~s atuantes na construção do espaço em que vivemos. E . os nossos alunos precisam aprender a fazer as análises geográficas . E conhecer o seu mundo, o lugar em que vivem. para poder compreender o que são os processos de exclusão social e a seletividade dos espaços. (CALLAI, 2005, p.245).

A Geografia a ser estudada não deve ser aquela enumerativa, descritiva, enciclopédica. Ela deve trabalhar com a realidade do educando, uma realidade de múltiplas relações, ou como propõe Demo (1998), todas as dimensões que compõem a forma de viver e o espaço que a cerca. O aluno deve ser inserido dentro daquilo que se ·está estudando, proporcionando a compreensão de que ele é um participante ativo na produção do espaço geográfico. A realidade tem de ser entendida como algo em processo, em constante movimento, pois a produção do espaço nunca está pronta e acabada (STRAFORll'-ll , 2004, p. 81-82).

Por conseguinte, aprender e ensinar Geografia, nos tempos ·atuais, significa exercer uma ação pedagógica repleta de grandes desafios e de ricas possibilidades de trabalho. O desafio se encontra na necessidade de abordagem de diversos temas, conteúdos e conceitos fundamentais para o entendimento dos fatos, fenômenos e características de um mundo dinâmico e cada vez mais complexo. Dessa forma, os educadores deparam-se diariamente

. com uma série de possibilidades de trabalho junto aos alunos, que certamente não se esgotam em sala de aula, mas nela encontram o lugar ideal para comparar, analisar, debater, sistematizar e socializar antigos e novos conhecimentos fundamentais ·para a construção da cidadania.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ALBUQUERQUE, Maria Adailza Martins de; BIGOTTO, José Francisco; VITIELLO, Márcio Abondanza. Geografia: sociedade e cotidiano. São Paulo: Escala Educacional, 201 O.

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CALLAI, Helena Copetti. Aprendendo a Ler o Mundo: a Geog_rafia nos anos iniciais do ensino fundamental. Cadernos Cedes, Campinas, v. 25, n. 66, p. 227-247 , maio/ago. 2005.

COLL, César; TEBEROSKY, Ana. Aprendendo História e Geografia: conteúdos essenciais para o Ensino Fundamental de 1 a a 4a série. 2. imp. São Paulo: Ática, 2005.

KOZEL, Salete; FILIZOLA, Roberto. Didática de Geografia: memórias da terra -o espaço vivido. São Paulo: FTD, 1996.

LE SANN, Janine G. Cartografia e Cidadania e o Ensino de Estudos Sociais de 1 a a 4a Séries. In: SANTOS, Milton [et ai.] (Org.). Problemas Geográficos de um Novo Mundo. São Paulo: Hucitec/ANPUR, 1995. p. 302-306.

- MILLS, C. Wright. A Sociedade dé Massas. In: FORACCHI, Marialice Mencarini; MARTINS, José de Souza. Sociologia e Sociedade: leituras de introdução à Sociologia. 23. reimp. Rio de Janeiro: L TC, 2004.

PENTEADO, Heloísa Dupas . Metodologia do Ensino de História e Geografia. 9. imp. São Paulo: Cortez, 2001.

PONTUSCHKA, Nídia Nacib; PAGANELLI, Tomoko lyda; CACETE, Núria Hanglei. Para Ensinar e Aprender Geografia. São Paulo: Cortez, 2007.

SÃO PAULO. Coordenadoria de Gestão da Educação Básica/Secretaria de Estado da Educação. Expectativas de Aprendizagens de História · e Geografia (Ensino Fundamental - Ciclo 1). São Paulo: CENP/SEE, 2008.

___ . Secretaria de Estado da Educação. Resolução SE 81, de _f6 de dezembro de 2011. São Paulo: SEE, 2011 . ·

STEFANELLO, Ana Clarissa. Didática e Avaliação da Aprendizagem no Ensino de Geografia. São Paulo: Saraiva, 2009.

STRAFORINI, Rafael. Ensinar Geografia: o desafio da totalidade-mundo nas séries iniciais . São Paulo: Annablume, 2004.

VESENTINI, José William. O Ensino de Geografia no Século XXI. Campinas: Papirus, 2004.

Iusky Vinicius
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