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Ciro Marcondes Filho A SOCIEDADE FRANKENSTEIN São Paulo 1991

Sociedade Frankenstein

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Page 1: Sociedade Frankenstein

Ciro Marcondes Filho

A SOCIEDADE FRANKENSTEIN

São Paulo

1991

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Um Frankenstein tecnológico nos ameaça. Pelo menos é o que cremos. Vivemos já num mundo de máquinas de transportar,

de fabricar, de pensar. Frankenstein, nosso duplo, esse mundo-máquina que

criamos, assume pouco a pouco sua autonomia e seu poder.

Lucien Sfez

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Primeira Parte ................................................................................................................................................ 5 O DESTINO DE UMA ILUSÃO................................................................................................................... 5

1. A Crise do Pensamento Esclarecido................................................................................................. 52. O antiiluminismo................................................................................................................................. 83. O desencanto estético..................................................................................................................... 11

Segunda Parte ............................................................................................................................................. 15 O FRANKENSTEIN TECNOLÓGICO.......................................................................................................15Traços gerais da sociedade..................................................................................................................... 17

1. Crescimento louco, multiplicação e morte....................................................................................... 172. Vivência imaginária.......................................................................................................................... 173. Ficcionalização da memória............................................................................................................. 184. Esvaziamento do ser........................................................................................................................ 185. Substituição dos sistemas lógicos................................................................................................... 19

I - Tecnologias e meios de comunicação.................................................................................................191. Tecnologias...................................................................................................................................... 19

1.1. A velocidade.............................................................................................................................. 201.2. A transformação da cidade....................................................................................................... 221.3. O novo status do saber............................................................................................................. 24

2. Meios de comunicação.................................................................................................................... 242.1. O processo televisivo................................................................................................................ 25

2.1.1.. A visão.............................................................................................................................. 252.1.2. A televisão.......................................................................................................................... 282.1.3.. O tempo televisivo............................................................................................................ 292.1.4. A densidade televisiva....................................................................................................... 292.1.5. A linguagem ...................................................................................................................... 29

2.2. A Informação............................................................................................................................. 312.3. Rock.......................................................................................................................................... 32

3 - Teoria em ruinas............................................................................................................................. 333.1. Velhas teorias da comunicação................................................................................................ 333.2. Nova teoria da comunicação.....................................................................................................363.3. Os conceitos da Era Frankenstein............................................................................................ 37

3.3.1. A circularidade................................................................................................................... 373.3.2. Superfície........................................................................................................................... 373.3.3. Autonomia do objeto.......................................................................................................... 393.3.4. Movimento.......................................................................................................................... 41

II - História, tempo, política...................................................................................................................... 411. Fim da história.................................................................................................................................. 412. O tempo............................................................................................................................................433. A política...........................................................................................................................................444. O Estado orbital............................................................................................................................... 465. O "locus" do poder........................................................................................................................... 47

III. O ser enfraquecido.............................................................................................................................. 481. Assassinato de Deus....................................................................................................................... 492. Multiplicação e fracionamento infinito.............................................................................................. 503. A desestabilização dos sujeitos....................................................................................................... 514. A nova esquizofrenia........................................................................................................................ 53

IV. Cultura pastiche e vazia..................................................................................................................... 551. Cultura do cinismo e da indiferença ................................................................................................562. Coletividade interativa...................................................................................................................... 583. O corpo e a morte............................................................................................................................ 594. O processo econômico.................................................................................................................... 60

Terceira Parte ............................................................................................................................................... 64 PARA ONDE VAI O HOMEM .................................................................................................................. 64

1. Teorias e estratégias........................................................................................................................641.1. Corrente histórico-humanista, voluntarista............................................................................... 64

1.1.1. A esquerda hegeliana........................................................................................................ 641.1.2. A teoria de Juergen Habermas.......................................................................................... 66

1.2. Corrente estruturalista...............................................................................................................681.3. Corrente pós-moderna.............................................................................................................. 70

2.O oráculo de Freud........................................................................................................................... 73Bibliografia .................................................................................................................................................... 77

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Primeira ParteO DESTINO DE UMA ILUSÃO

1. A Crise do Pensamento Esclarecido

O homem da Era Moderna era marcado pela ilusão da onipotência. Nele foi inculcado que possuia poderes, capacidades, força de interferir no meio, na cultura, na história. De Deus, ele arrancou os poderes absolutos e determinou com isso o declínio da metafísica: a nova era passa a ser a do homem dominando a máquina, usando-se da ciência, da razão, do objetivo sobre o subjetivo, do concreto sobre o abstrato, do material sobre o imaterial. O domínio posivito da natureza e do meio decretava que nada mais de sobrenatural poderia interferir na ação racional humana com vistas à realização de seus nobres fins sociais. A técnica, nas mãos do homem, de fato promoveu o crescimento industrial, a expansão dos bens de consumo, o desenvolvimento de todos os meios de transporte e comunicação, bem como a inovação no campo artístico, o aumento das facilidades das próprias sociedades humanas e em todos os âmbitos da vida cotidiana.

As esperanças excepcionais que os homens atribuiram à técnica, entretanto, não previam que seus desdobramentos questionariam a natureza do espírito social da própria época moderna. A técnica não só deu conta das aspirações humanas em realizar suas intenções de expansão, exploração e domínio, mas superou-as excepcionalmente. Técnica, instituições e objetos deixaram claro, no século XX, que os poderes humanos têm alcance restrito: demonstraram que o homem não pode tudo; de fato, ele pode muito pouco. Os objetos têm autonomia, impõem-se ao homem e não se subjugam. A onipotência tornou-se impotência.

A técnica e seus desdobramentos na sociedade, isto é, a ideologia que se desenvolve a partir de seu uso e de sua instrumentalização tornaram possível, em primeiro lugar, a erosão dos princípios filosóficos que haviam sido erguidos no começo do século XVII. A ontologia, ou seja, a concepção baseada na filosofia clássica de que no homem existiriam "estruturas estáveis" - que só não eram claramente perceptíveis porque o homem no seu processo social estaria encoberto por uma nuvem de alienação provocada originalmenmte pelo processo de trabalho - assim como a metafísica, foram minadas pela própria forma de a técnica de autoimpor-se no social. Esta liquidou a imagem de que no homem sua aparência poderia ser negada ou contraposta a uma estrutura íntima última, bem como consagrou a afirmativa de Nietzsche, de que Deus estava morto. Isto é, impôs uma verdade positiva de que as coisas são como são e qualquer recurso transcendente de explicação seria tido como misticismo. Em outras palavras: a crença na existência de Deus, e, por derivação, na possibilidade de uma natureza permanente e imutável no homem passaram, depois desta expansão da técnica, a ser tidas como mera ficção.

A existência de uma ontologia do ser teve sua origem nos mecanismos de antropomorfização da própria sociedade, no destronamento da cultura erguida sobre a imagem de Deus.

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Isto quer dizer que na Época Moderna havia se instaurado um inchaço nas possibilidades do sujeito, marcante especialmente na filosofia idealista, no liberalismo e no socialismo. O sujeito transcedental era o homem ou o proletariado que deveria realizar a utopia histórica. Nesse sentido, a história funcionava como continuação do pensamento religioso e sua filosofia, surgida na Época Moderna, não passava de uma reformulação ou modernização do pensamento e da utopia cristã. Aquilo que para o Cristianismo era a redenção, a salvação, a possibilidade de felicidade final, o pensamento materialista do século XIX transferiu para agentes humanos historicamente determinados. O homem, as classes ou as revoluções deveriam realizar a tarefa histórica de construção terrena de uma utopia social.

Estes grandes discursos legitimadores da ação política, como o foram o marxismo e o liberalismo, funcionaram também como aval do exercício da ciência, do direito, da moral e da arte. O desenvolvimento da técnica, entretanto, foi tornando cada vez mais débil este tipo retaguarda filosófica, porque justificava-se por si mesmo, prescindindo de uma sombra religiosa, ideológica ou abstrata. Quanto mais se desenvolvia a ciência e a técnica, menos se poderia dizer que elas deveriam se basear num estatuto externo a elas, isto é, numa ideologia. É por isso que o desenvolvimento técnico acabou por realizar, especialmente no após-guerra, a liquidação final das ideologias legitimadoras ou das "metanarrativas", e por suprimir o respaldo que se baseava numa filosofia especulativa, num agir ético-político passando a uma legitimação em si mesmo , segundo seus próprios parâmetros.

Com isso, todos os conceitos de sustentação do pensamento iluminista começaram a cair por terra neste final de século. Em primeiro lugar, a razão já que estava associada a um espírito iluminista e, segundo ela, o homem poderia através da inteligência e do uso de sua racionalidade abarcar todas as formas do real. O real é racional, dizia Hegel, atribuindo à capacidade humana a possibilidade de dar conta de todas as ocorrências terrenas. Havia se desfechado aí o golpe mortal e radical contra todas as formas de misticismo, transferidas para a margem da sociedade, para o campo desprestigiado das crenças e ilusões. Tinha prestígio e status, ao contrário, o saber racional e a possibilidade de o homem, através dele, executar o domínio da natureza.

As crises históricas e os caminhos desastrosos a que conduziram os desenvolvimentos técnicos e as tecnologias, e especialmente as formas de dominação, opressão, violência, genocídios e ameaça planetária puseram em cheque a capacidade da administração racional da sociedade. Os sistemas políticos fanáticos e radicais, como barbáries sem rédeas pela história, inspiraram-se, ao contrário, na mais absoluta irracionalidade. A partir da experiência destes, o conceito de razão não tem mais sentido.

Sobreviveram, opostamente, fatos inexplicáveis, imprevisíveis, incontroláveis, inadministráveis, demonstrando que independente ou além de o homem conseguir dar conta da sua realidade, os eventos, acontecimentos, irrupções fogem absolutamente de seu controle e de sua atuação.

Semelhante destino tiveram os conceitos de verdade, ideologia, história, progresso, evolução. O conceito de verdade subordinava-se a uma estrutura lógica maior, que lhe garantia o critério de legitimidade. Tratava-se de um metarrelato e uma razão superior, que justificava os meios de acordo com os

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fins pré-determinados. Com a crise do conceito de verdade, cai por terra também o conceito de história, já que este baseava-se na noção de linearidade ou de determinação. Ele supunha um processo evolutivo em que uma sociedade medieval seria substituída por uma mercantilista mais desenvolvida e esta por uma sociedade industrial capitalista, ainda mais avançada.

A concepção de evolução ascendente do social entra em crise na medida em que os próprios valores que embasavam essa evolução já eram determinados pelo estágio em que se vivia. Ou seja, na noção da história, estava contida uma idéia de finalização, de finalismo e de a história tender à realização de algum princípio, idéia, sociedade que os homens acreditavam fosse se realizar necessariamente. A história deveria dobrar-se a essa idéia criada pelos homens e seguir um rumo pré-programado. Progresso e evolução seriam os indicadores da correção ou não desse rumo. Ingenuamente achava-se que se poderia colocá-la sobre os trilhos.

Vem abaixo também o conceito de ontologia, como mencionado, porque se baseava numa lógica marcada por opostos, essência/aparência, alienação/desalienação, latente/manifesto, que implicavam, a partir de uma crítica ao místico na sociedade, uma revisão de todo o pensamento, buscando trazer à luz aquilo que se apresentava como mistificador, encobridor ou falseador de uma determinada realidade. A concepção de uma ontologia e a idéia de um desmascaramento estão igualmente subordinados às possibilidades do real ser racional, de se chegar através da conscientização política ou do trabalho intelectual ao "fundo" das coisas.

Com a crise dos grandes discursos genéricos, desaba também a noção de totalidade que, derivada basicamente da dialética, reduzia todos os fenômenos a leis gerais de funcionamento e da mesma forma "explicáveis" segundo seus princípios determinantes. A noção de totalidade introduzia um componente simplificador em todas as relações sociais e era da mesma forma aglutinador. Por outro lado, exercia uma força terrorista sobre o conjunto dos demais discursos, na medida que ao integrar todos os componentes sob sua lógica, favorecia o desenvolvimento do pensamento ortodoxo e mesmo fanático em termos de ideologia, política e lógica social.Desmorona-se também a noção de sujeito histórico e mesmo a de indivíduo. Indivíduo, assim como citoyen e burgeois, fazem parte de uma lógica em que o homem obtém destaque dentro do conjunto social e se afirma como ser dominante. Entretanto, já desde Copérnico e Darwin que não se justifica tal preponderância filosófica e histórica do homem. Copérnico, acabando com as ilusões de o planeta estar no centro do sistema solar, e Darwin, reduzindo o homem a um mamífero cujos ancestrais eram símios, obteriam ainda no início deste século um novo complemento a partir de Freud, cuja teoria iria demonstrar que sequer os pensamentos e a ação dos homens lhes pertenciam, fazendo parte, ao contrário, de uma estrutura inconsciente genérica da sociedade, da qual o homem não passava de um mero representante. A radicalização deste ponto de vista deu-se com Lacan, que por meio do método estruturalista iria levar às últimas consequências a determinação do inconsciente enquanto responsável pelas ações humanas: o homem nada é, nada faz, nada altera; ele não passa de um personagem que fala uma língua que já encontra dada , que participa de um mundo simbolicamente estruturado

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pelo Outro e cuja função não é nada mais do que dar conta de um destino e de um dever já fixo e determinado.

Cada vez mais a técnica ocupa um lugar próprio, autônomo, e se no começo da Revolução Industrial ela apenas fazia com mais perfeição e rapidez o trabalho em série, auxiliava e garantia um melhor rendimento, eficiência e produtividade do trabalho social, no século XX, com a sofisticação e o refinamento dos sistemas técnicos, reduz-se o espaço efetivo de intervenção humana: a automação, a substituição das atividades vitais, a organização total da vida nas sociedades segundo normas técnicas, instituem um novo quadro em que o homem vai do centro à periferia. O momento desta inversão do papel da técnica - que, segundo irá se expor durante todo o desenvolvimento deste livro é a marca do surgimento de uma nova era em que o homem toma consciência das ilusões passadas e tem que reconhecer sua pequena estatura - é a época em que já não se pode falar mais de superação crítica, evolucionismo ou progresso. Em Humano, demasiado humano, Nietzsche dizia que dentro do conceito de modernidade está implícita a idéia de sua permanente superação. A época atual, já instalando uma ruptura com a modernidade, não pode assim ser caracterizada como "superação". Há de ser vista, de fato, como um corte, em que nenhum dos conceitos anteriores pode ser reativado. Nem o de reapropriação nem o de recuperação das origens e dos fundamentos.

Tampouco tem sentido para esta época a aspiração de autonomia em oposição a uma totalidade coisificada, como pressupunha o pensamento hegeliano-marxista, ou da contraposição de necessidades forjadas e necessidades verdadeiras. Dentro deste mesmo princípio, a chamada "experiência estética autêntica" não tem mais espaço. Todas estas categorias estavam marcadas pelo conceito de verdade ou de essência irredutível, que faziam parte dos princípios iluministas.

Assim, não se podendo mais pensar em termos de história e desmoronado as bases do humanismo, pode-se acreditar, com Heidegger, que a crise deste humanismo ocorre no ápice da técnica. Em lugar destas duas categorias que centravam o pensamento da Idade Média até a Idade Moderna, instala-se uma nova ordenação lógica dando novo estatuto à técnica. Heidegger dizia que já não é mais hora de se pensar o homem como um personagem forte e heróico; ao contrário, trata-se de encontrar seu verdadeiro lugar como um "sujeito emagrecido".

Mas não somente Heidegger pensou prematuramente a questão da expansão da técnica e a crise do modelo iluminista. Outros autores, especialmente Nietzsche e Weber, posicionaram-se de forma precursora em relação aos desdobramentos que só hoje podemos sentir em sua profundidade.

2. O antiiluminismo

-------------------------------------------------------Modernismo História, Superação Humanismo Ontologia (Incl. marxista)-------------------------------------------------------

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Nietzsche Eterno retorno Niilismo completo (Homem > do centro ao X)-------------------------------------------------------Heidegger Fim da Metafísica Anti-humanismo; (Pós-Metafísica) enfraquecimento do Ser-------------------------------------------------------

No quadro estão apresentadas duas dimensões básicas do pensamento antiiluminista.

Naquilo que para o modernismo corresponde à história ou à possibilidade de superação e de uma ontologia, em Nietzsche encontramos, ao contrário, um caminho circular do eterno retorno. Não existe o conceito de avançar no sentido do progresso e da evolução. Em Heidegger, a superação da morte de Deus dá-se com a fase do predomínio da técnica como uma espécie de sua continuação em outro plano, ou seja, na idade pós-metafísica.

Em relação ao sujeito histórico, a que o modernismo atribuía uma capacidade de interferência e realização, Nietzsche situa o niilismo completo e o caminho do homem não em direção a um fim previamente determinado por um discurso maior mas em direção ao X. Heidegger, igualmente negador desta "inflagem" do ser, vê nisso, ao contrário das possibilidades humanistas, um equívoco já que os homens para ele já estão excessivamente debilitados.

É de Nietzsche a afirmação de que "Deus está morto". Deus é assassinado quando o saber já não deseja mais chegar às causas últimas, ou seja, numa situação em que o fim dos valores supremos não é substituído por outros valores em que o próprio conceito de valor torna-se supérfluo. Em Crepúsculo dos deuses, propõe a consideração do mundo como fábula: a fábula perdeu seu sentido, pois não há mais verdade que a revele como aparência. Não há mais um Grund (fundamento) a ser falsificado ou desmentido. O mundo verdadeiro torna-se fábula e com isso dissolve também o mundo aparente. Daí ser tudo "errância" sem qualquer relação com uma verdade fundamental.

Sob este conceito apresenta-se a proposição de niilismo completo, que se refere à superfluidade dos valores últimos. É também de Nietzsche a crítica mais veemente às concepções da metafísica, quando previu também que a superação das idéias de Deus não traria necessariamente, como imaginava o marxismo, o homem de volta a si mesmo: "Na recuperação das forças levadas aos céus não há emancipação da humanidade mas crescente autonegação".

O pensamento utilitarista e a crença no progresso, que são sistematicamente criticados por Nietzsche, vão novamente tornar os homens escravos e, de fato, este parece que foi o resultado do desenvolvimento da técnica na época atual em que Deus desapareceu. Na eliminação da entidade metafísica, o homem passa a oscilar entre extremos de êxtase e decadência, vivendo a morte de velhos significantes junto com o niilismo completo da pós-modernidade.

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Assumindo uma postura igualmente crítica em relação à técnica e às expectativas de um sujeito heróico que pudesse domesticá-la, aparece com proeminência a posição de Martin Heidegger. Sua proposta é a da destruição da metafísica como forma de chegar às origens, ao Seinsvergessenheit; isto quer dizer que voltando-se a ela, atingir-se-ia o fim e a realização da própria metafísica. Para Heidegger, a técnica, caracterizada pela Ge-Stell ou imposição universal e provocação do mundo técnico (Vattimo, p.26), e nada mais do que ela compõe a essência oculta da metafísica ocidental. Ela seria o máximo desdobramento desta, ou seja, numa situação em que Deus está morto, a técnica assume para o homem a posição de uma nova divindade. Daí a acepção heideggeriana de que a essência da técnica é algo de natureza não técnica.

Ele prevê, para tanto, uma possibilidade de o homem desembaraçar-se desta realidade que o nega e desta metafísica que o encobre, no conceito de Verwindung. Diante da transposição da circularidade vertiginosa em que o homem e o ser perderam todo o caráter metafísico por força da técnica (no Ereignis), urge no presente momento viver de forma radical a própria crise do humanismo, a saber, é preciso assumir esta qualidade da técnica como algo não técnico e entregar-se a uma espécie de "cura de emagrecimento" na qual o homem assumiria sua franqueza.

Partindo de concepções filosóficas diferentes e rejeitando tanto o pensamento niilista quando o existencialista, ao mesmo tempo que afirmando pressupostos antiiluministas, aparece a figura de Max Weber, como outro grande pensador contemporâneo que radicalmente questiona o mito da racionalidade ocidental.

O Iluminismo para Weber não passava de uma ilusão. A racionalidade, em vez de dar conta das exigências e das aspirações humanas de bem-estar e de progresso, levou, ao contrário, à ação racional com vista a fins (Zweckrationalitaet); a razão desembocou numa forma de dominação e opressão. Errado estava Marx que encarava a razão do ponto de vista positivo, como possibilidade real de desenvolvimento das forças econômicas e sociais. Marx acreditava categoricamente nas possibilidades do homem de, através do agir racional, remodelar o próprio meio e construir seu futuro.

Não obstante, os pensadores marxistas deste século, especialmente os que se mantiveram alinhados à corrente hegeliana e que foram portanto herdeiros de Lukács, já abandonavam essa visão romântica da razão e assimilavam o contrário, a concepção mais realista de Weber. Atrás da razão escondia-se a lógica da dominação, da opressão, da burocracia e da impessoalidade; não houve melhoramentos humanos com a tecnologia e a pressão das forças produtivas não conduziu à revolução.

Resultado disso é o que Max Weber caracterizou como "processo universal de desencanto". A razão, que ocupou o lugar do misticismo, não ofereceu em contrapartida um bem-estar psicológico nem material ao homem. As superstições foram liquidadas, já que faziam parte do pensamento mágico, inimigo da postura racional do Iluminismo, e com isso perdeu-se o sentido ético e da unidade da vida. Em substituição a elas a razão foi usada para aumentar o controle ("netro e instrumental") do mundo.

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Na modernidade, para Max Weber, aquilo que significava a preocupação com os bens materiais, que num primeiro momento era visto como um "leve manto" do qual se poderia despojar a qualquer momento, fez com que o manto de tornasse, segundo suas palavras, uma "armadura férrea" (Weber,1973,p.187). Igualmente os homens desta nova era, em que a racionalidade e a relação com os bens materiais assumem um aspecto nuclear, são caracterizados por Weber como "especialistas sem espírito, fruidores sem coração".

Os principais intelectuais deste século que se pautaram pela continuidade do pensamento marxista no campo da filosofia e da crítica da cultura, ou seja, o grupo que se denominou Teoria Crítica da Sociedade, sofreu também os revezes desta virada das perspectivas otimistas em relação à racionalidade. Originalmente seguindo as idéias de Georg Lukács dos anos 30 e sua posição ímpar no desenvolvimento do materialismo histórico em confrontação com a tendência materialista dialética em expansão na União Soviética, os pensadores da Teoria Crítica assimilaram e deram continuidade às possibilidades da crítica à reificação através da razão e da filosofia da consciência; a auto-reflexão racional significava um instrumento criativo nas formas de luta para se atingir a realização do Estado socialista. Não obstante, logo sentiram os rumos desastrosos da técnica, especialmente no período em que eles próprios sofreram sua expansão nas mãos dos Estados totalitários e fanáticos. A autonomização da razão instrumental passou a ser vista, então, como uma decorrência funesta do desenvolvimento da razão e as chances otimistas de Marx foram descartadas.

A partir daí os autores ingressam numa trajetória de negatividade, refutando qualquer espécie de revalidação mais positiva das possibilidades da racionalidade voltada a fins, fato que Juergen Habermas critica em sua tentativa de reapropriação da razão. Para este, haveria a possibilidade de uma racionalidade positiva quando orientada e articulada pelo mundo vivido (Lebenswelt).

3. O desencanto estético

A crise talvez mais marcante e transparente da chamada Era Moderna estaria situada na sua expressão estética, na crise da modernidade estética.

No primeiro período do modernismo, a concepção de arte estava ainda dominada pelos enciclopedistas e por uma relação exageradamente unívoca em relação ao processo artístico. Para estes, só haveria uma possibilidade de observação, uma forma de representação. Engrossavam essas fileiras também filósofos como Comte, Bentham e Mill.

A partir da metade do século passado configura-se uma segunda e mais marcante forma de se encarar a arte, ao lado da aceitação da multiplicidade de formas de representação. É o período que coincide com a expansão da fotografia, que monopoliza a possibilidade de reprodução exata do real por meios técnicos. A arte rebela-se contra esta perda de espaço representativo e parte para processos desviantes, particularistas, impressionistas de representação.

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É a época em que surgem os teóricos do modernismo, como Baudelaire e Flaubert, que assinalam as marcas que distinguem este fenômeno artístico dos outros ciclos culturais. Para Baudelaire, a arte é transitória e contingente mas ao mesmo tempo eterna e imutável. Este segundo aspecto é também de certa forma reafirmado por Flaubert para quem a arte extrai do mundo que passa os traços de eternidade que ele contém (cf. Harvey, 1989, p.20). Encontram-se aí, portanto, nos dois autores, a expressão viva do componente ontológico da cultura, a essência última, que também na filosofia ocupava uma posição de destaque.

Partindo disso, contrói-se a concepção modernista de arte que vai vigorar durante esta parte do século passado (segunda metade) e boa parte ainda deste, segundo a qual, o artista deve desempenhar um papel criativo na definição de uma "essência da humanidade" assim como um papel heróico no que Nietzsche chamava de "destruição criativa". Ele realizaria na prática o que Kant havia proposto em relação o juízo estético: ponte entre a razão prática e o conhecimento científico.

No século XX, contudo, o modernismo já começa a oscilar em posições ambíguas. No primeiro momento, até antes da I Guerra, a posição dos artistas era de reação às inovações técnicas e às tranformações sociais e políticas que a ela estavam relacionadas, como a grande expansão da indústria, o significativo aumento do maquinário e a urbanização das cidades. A isso se somam o desenvolvimento das redes comerciais, dos transportes, das comunicações, assim como, no plano do consumo, o grande aumento dos produtos culturais, a popularização dos bens artísticos e a massificação da própria arte.

Depois da Guerra, os próprios artistas assumem posições divergentes em relação à aceitação ou não do componente técnico na transformação da sociedade. Instala-se uma tendência que mitifica as técnicas e que vai se atrelar de forma mais ou menos radical aos regimes totalitários dos anos 20 e 30. É o caso do futurismo de Marinetti e de Ezra Pound na Itália, mas também de Dos Passos e Hemingway nos Estados Unidos. No âmbito da arquitetura, estão Le Corbusier e Walter Gropius (Bauhaus), em cuja concepção as cidades e as casas seriam "máquinas para dentro delas se viver".

De fato, apesar da não adesão ao regime fascista, os projetos e os propósitos de Gropius foram de fato aplicados pelos engenheiros de Hitler na construção de moradias e instalações para controle político.

Ao lado dessa tendência sobreviveram correntes que rejeitavam a adesão aos regimes fascistas: o surrealismo, o construtivismo e o realismo socialista.

Com a expansão da técnica, o acirramento da corrida armamentícia e a dilatação da própria sociedade de consumo, a arte moderna entra em declínio. Sua última forma é a do alto modernismo, nitidamente identificado com o establishment, movimento este marcado pelo expressionismo abstrato, pelas idéias positivistas, tecnocráticas e racionalistas.

O projeto da arte moderna sucumbe, portanto, com os outros componentes do espírito das Luzes até chegar a um momento de absoluta perda de identidade. É exatamente nesse momento que se trava o debate que

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marcará a divisão de rumos de concepções que pautarão a discussão sobre a pós-modernidade.

De um lado, aparece Juergen Habermas, que segue a tradição de Kant e de Adorno em relação à arte, que ainda vê nela a possibilidade de restauração de uma certa utopia perdida. Para ele, a arte ainda é a marca da negação contra o poder totalizador de uma sociedade unidimensional, o "armazém de significados que se encontram em perigo"(Jay,1988, p.207).

Para Habermas, a arte moderna encontra-se num dilema: ela pode recuperar aquilo que está fortemente ameaçado pela devastadora cultura da pós-modernidade mas para isso é preciso que resgate o projeto kantiano de fusão de esferas cognitiva, político-moral e expressivo-estética.

Claro está aqui, que para o pensador alemão as coisas ainda se colocam em termos de uma essência perdida ou mutilada pelo processo histórico, que deve ser de alguma forma recuperada.

No debate sobre a questão, Peter Buerger, Andreas Huyssen e Jean-François Lyotard colocam-se radicalmente contra a perspectiva habermasiana. Para Buerger, a interpretação de Habermas é absolutamente ilusória. As três esferas não têm nenhuma identificação entre si já que a ciência não integra a vida cotidiana, a arte goza de autonomia própria e aspira à transcendência, coisa que a ciência não faz. Sua crítica é de que Habermas tentaria fazer valer uma concepção totalmente irreal de harmonia entre as três esferas que buscariam apoiar-se mutuamente na construção do projeto estético.

Para Huyssen, Habermas é holista e está na verdade em busca de um "telos" (fim, realização), procurando recuperar portanto a concepção de um devir, de uma história, de um futuro utópico de natureza finalista.

Para Lyotard, da mesma maneira, Habermas, na sua proposta de revitalização do fenômeno estético, deixa transparecer seu objetivo unificador da história e a existência do sujeito totalizador. Para ele, Habermas busca a ordem, a unidade, esperança, a esfera pública quando critica todos os movimentos chamados vanguardistas e a por ele caracterizada perda do referencial histórico da arte.

Mas para a maioria dos autores que analisam o momento atual pós-moderno do desenvolvimento social, a arte é uma manifestação que por seu atrelamento às concepções de mundo e ao espírito do Iluminismo e da razão não tem mais possibilidades nem esperanças de recuperação da aura perdida. A arte na sociedade tecnológica deixou de ser um fenômeno específico; a experiência geral das pessoas tornou-se estetizada, isto é, os ambientes gerais que compõem a cultura passaram eles próprios a se tornarem porta-vozes, maneiras públicas de expressão artística. Tanto nas pessoas como designers bodies (Kroker), como nos ambientes interiores e nos próprios edifícios da paisagem urbana instala-se uma total estetização dos ambientes de vida. Isso constitui o que se convencionou chamar de "fenômeno artístico integral".

A arte dissolve-se, dilui-se, pulveriza-se na cultura como um todo, deixando de existir, portanto, como um fenômeno em si, singular.

Por outro lado, em vista também do espírito do tempo, ela já perdeu sua característica de escandalizar: já não choca, já não atrai, já não é capaz de

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resgatar valores, conceitos ou expressões que tornem as pessoas fixadas e marcadas por eles. Vive-se um período do "transestético" (cf. tb. Baudrillard, 1990), com o desaparecimento de todos os padrões de julgamento artístico. Faz-se uma arte em que nada há mais a ser visto, que só sobrevive como um ritual em relação ao qual nada temos a fazer senão simplesmente crer.

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Segunda ParteO FRANKENSTEIN TECNOLÓGICO

Partindo de perspectivas diferentes, Paul Virilio e Lucien Sfez descrevem o quadro da passagem da Modernidade à Pós-Modernidade (ou: da era do predomínio da lógica da razão à da crise da razão) em três momentos que se completam.

Paul Virilio

-------------------------------------------------------Lógica pintura realidade conhecimentoformal pleno-------------------------------------------------------Lógica foto, atualidade conhecimentodialética cinema aproximado-------------------------------------------------------Lógica vídeo virtualidade poucoparadoxal conhecimento-------------------------------------------------------

Lucien Sfez

-------------------------------------------------------Representação "com" máquina bola de bilhar-------------------------------------------------------Expressão "em" organismo criatura -------------------------------------------------------Confusão "por" tautismo Frankenstein -------------------------------------------------------

Em Virilio, a pintura era a expressão da realidade sob uma perspectiva formalista e através dela chegava-se a um conhecimento pleno, direto, "transparente" do real que estava sendo representado. O cinema e a fotografia, como intervenções técnicas na forma de se reproduzir a realidade, atuavam sob a perspectiva dialética da representatividade. O primado aqui já não já mais da realidade, mas da atualidade. Fotografia e cinema, isto é, o fotograma, significa uma captação atual, momentânea, instantânea que dava à representatividade uma apreensão não programada, não maquiada. Neste caso, com o privilégio da instantaneidade perde-se o componente da plenitude do conhecimento que tinha a ver com uma captação duradoura e exaustiva do objeto. Por fim, no momento atual das tecnologias sofisticadas, marcadas pela videografia e pela

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holografia, já não se trabalha mais com a atualidade mas com um fenômeno que transcende a possibilidade de correspondência do objeto com a imagem real. Está-se no campo da virtualidade e aqui o conhecimento torna-se absolutamente impreciso.

Em Sfez, na visão de mundo da representação, o homem domina a máquina e está com ela para seus fins. Há o predomínio da razão e as máquinas representam o homem segundo o princípio da dualidade cartesiana (corpo/espírito, sujeito/objeto). Os meios de comunicação traduzem o mundo, a imagem representa o emissor, vive-se num universo, em termos de comunicação, da representação. A figura é a bola de bilhar que, uma vez enviada, atinge seu objetivo e é novamente reenviada com a conservação da plena integridade do movimento.

A segunda visão de mundo é a da expressão, em que os objetos são o ambiente natural; nosso mundo é introduzido por ele e o homem está no mundo, nele jogado, não o dominando mas a ele se adaptando. As partes se relacionam com o todo. Os meios de comunicação igualmente estão no mundo e o mundo está neles mas não há mais envio de mensagem . A figura desta segunda fórmula é a criatura, e os signos são produtivos como organismos, exprimem a natureza.

A terceira visão de mundo é a da confusão; não há sujeito e é o objeto técnico que marca seus limites e determina suas qualidades. A tecnologia diz tudo sobre o homem e seu devir. O homem existe pela tecnologia. Nos meios de comunicação ocorre uma ausência de comunicação exatamente pelo próprio excesso de informação. A comunicação torna-se uma entidade metafísica, auto-referente; é uma repetição imperturbável do mesmo no silêncio de um sujeito morto. A figura desta terceira categoria é Frankenstein. (Sfez, 1988, p.12ss)

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TRAÇOS GERAIS DA SOCIEDADE

A sociedade da racionalidade técnica, que substitui a da razão humana, é constituída por traços gerais novos e próprios, que marcam sua especifidade. No decorrer da exposição eles serão melhor esclarecidos através dos exemplos e das descrições de situações.

1. Crescimento louco, multiplicação e morte

Nos novos processos que caracterizam a época atual, os atores históricos, desinvestidos de sua onipotência, são testemunhas de que os próprios movimentos, os próprios objetos expandem-se, desenvolvem-se, desagregam-se indiferentes às intenções de controle racional dos homens. (A fundamentação deste item 1 está baseada principalmente em Baudrillard: 1981, 1983, 1986, 1987a)

Com a morte da ilusão do sujeito e o fim das metanarrativas, movimentos e objetos afirmam sua autonomia e auto-realização; instala-se a lógica da divisão, da multiplicação serial, da duplicação, da potencialização, da proliferação ao infinito. Sujeitos e instituições explodem anômala e arbitrariamente e são as técnicas que "refundem" o social. Nos sistemas como os de comunicação, informação, produção e destruição, as formações cancerosas, a antecipação da morte no seio da significação viva, o crescimento louco, desordenado, o girar em torno de si mesmo, a ausência de regras, a proliferação permanente caracterizam seu movimento.

Os sistemas ultrapassam os limites de suas funções reafirmando com isso um funcionamento cego e automático, indiferente à questão do sentido, da finalidade e da função e tornam-se inertes, hipertélicos e mortos. É aquilo que, apesar de morto, continua a se mover mecanicamente, realizando-se como histerese, processo que continua por inércia mesmo quando a causa desaparece. Os meios de comunicação são o exemplo mais claro deste processo: forma extrema de clonagem que dispensa o original e em que as coisas só existem para sua reprodutibilidade ilimitada. O real desaparece no hiperreal, o sexo no pornográfico, o movimento na aceleração e na velocidade, o corpo no obeso, a informação na obscenidade, as redes na proxenética.

Também nos homens, agora despidos das fantasias iluministas, instala-se a lógica indiferente da multiplicação serial, sem aura; a fabricação de idênticos, sexuados mas com sexualidade inútil. Sem a representação do original, o ser vivo torna-se matriz artificial. Só a nostalgia o restitui como "autêntico". O outro passa a ser ele mesmo, desaparecida a confrontação. É a morte: o ser confunde-se consigo mesmo, desaparece o jogo com a aparência, a individualidade, a transcendência, a representação de si mesmo. A identidade individual fractaliza-se em múltiplos pedaços como cacos de espelho. Fim da representação sintética, de uma "grande gama de dimensões".

2. Vivência imaginária

A vivência na sociedade da racionalidade técnica institui o privilégio do imagético, do virtual, do circular e do autocentrado. O imagético é o privilégio da

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imagem, da televisão e do ecrã sobre a palavra, o som e o tato. No virtual, este sobrepõe-se ao real, as ficções tornam-se vida, a realidade externa é menos investida de importância e significação. As simulações, os modelos ocupam o real. É a era do "falso absoluto", os media passam a referir-se a si mesmos e a concepção de "mediação" é substituída pela de ficcionalização.

Na circularidade, o conceito de (transmissão de) mensagens não existe; o universo torna-se circular e orbital, um girar sideral em que os vetores rodam acima de nós e escapam de nossa realidade. A informação não transcende, não se reflete no infinito, tampouco toca o real. No autocentramento ocorre a negação da espacialidade, da geografia, das dimensões. Investe-se no enclausuramento, no encapsulamento, no autofechamento, na concentração-condensação do espaço.

3. Ficcionalização da memória

A memória é construída e reconstruída a partir da televisão, que institui modelos, formatos, simulacros do que antes era tido como dado histórico. A memória torna-se fato disponível, flexível, acessível, eletronicamente recuperável e os componentes da antiga historiografia têm seu contexto relativizado ao extremo; os fatos são reaproveitados, reutilizados e opera-se uma intervenção no passado, manipulando-se, agora mais livremente, fontes, dados, procedimentos, participações, atuações numa disponibilidade absoluta da própria história.

Ao lado da livre pilhagem do fato histórico, opera-se nos meios de comunicação a ressurreição fictícia e maquiada de acontecimentos do passado, o retrô, o culto dos modelos antigos, a abolição dos tempos e o uso aleatório de símbolos históricos.

4. Esvaziamento do ser

O enfraquecimento do ser coloca-se na razão direta da elevação do status do objeto. O momento desacredita os heróis, os líderes; as identidades agora flutuam. As pessoas tornam-se "perdidas"; é o domínio das máscaras, da esquizofrenia, da solidão e do desejo de suicídio. Narcisismo, necessidade de provar a própria existência, minimalismo são os novos comportamentos. O outro, deixando de ser nosso espelho, decreta a supressão relação de troca social, do acesso ao imaginário.

Paralelamente, com a elevação do status do objeto, as máquinas, os computadores, as tecnologias enredam os sujeitos; os fatos já não são conduzidos, influenciados, produzidos ou determinados por homens ou grupos mas acontecimentos que irrompem de forma imprevista e imprevisível. São eclosões repentinas, de surpresa, viradas espetaculares, violência explosiva descodificada.

Com o enfraquecimento do ser e o fim do princípio da densidade do sujeito heróico, coloca-se em seu lugar uma ética performática; um sujeito sem o peso de uma ontologia, de uma história, de uma ética investe no agir, no movimentar-se, no pular, no participar, no exercitar, no correr, no experimentar

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emoções pura e simplesmente. O investimento é no corpo, na emoção pura, na velocidade, na euforia e no êxtase. Atrás das emoções não há nada.

Suprime-se a "seriedade do compromisso, da missão, do ideal" e enaltece-se o jogo e a festa. Paralelamente ao investimento no agir, a negação do maldito e a purificação de negação: assepsia, embranquecimento, eliminação da negatividade (do pobre, do feio, do inferior).

5. Substituição dos sistemas lógicos

A destituição dos antigos grandes códigos, o fim da razão abstrata, das metanarrativas, a queda do prestígio das instituições e das autoridades, o descrédito dos princípios, das categorias clássicas, dos fatos fundadores ocorre em contrapartida ao privilégio das coisas úteis, dos resultados, das consequências, das práticas. Instala-se o princípio da fragmentação, da descontinuidade, da pulverização.

Em lugar da visão do social como uma totalidade passa-se a encarar a sociedade como equivalente àquilo que metaforicamente Wittgenstein aplicava à linguagem, uma descontinuidade sem centro: "uma velha cidade com uma rede de vielas e praças, casas novas e velhas e casas contruídas em diferentes épocas, e tudo isso cercado por uma quantidade de novos subúrbios, com ruas retas e regulares e com casas uniformes". (Investigações Filosóficas).

O universo torna-se pluralista, os gêneros e estilos misturam-se. No campo da crítica, marcado pelo enraizamento de princípios iluministas, prevalece o negativismo, o niilismo e o ceticismo. No campo dos atores culturais, o relacionamento com o mundo é marcado pela ironia, ridicularização de tudo, indiferença e cinismo.

I - TECNOLOGIAS E MEIOS DE COMUNICAÇÃO

1. Tecnologias

A vida social, política e cultural das sociedades pós-industriais é inteiramente marcada pelos efeitos das novas tecnologias de comunicação e informação. Estamos diante de um cenário cibernético-informático que recompõe todo o real segundo novos critérios e novas formas.

As técnicas invadem todas as áreas e não só a da difusão de informação. Administração, direito, educação, sistemas de transporte, comunicação, lazer, em suma, em todos os campos são penetrados pelo seu discurso. Sua função é de agregar uma sociedade que se desintegrou. (Sfez, 1988, p.20).

O homem dentro desta complexidade marcada pela sofisticação técnica vive pela primeira vez e com toda a intensidade a crise do humanismo apontada por Heidegger. É o ápice da técnica, da imposição universal e provocação do mundo técnico, a Ge-Stell que assinala o ocaso desse humanismo e o aparecimento do que ele chamava de Ereignis, o enfraquecimento do ser, a circularidade vertiginosa em que o homem e o ser perdem seu caráter metafísico.

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A técnica, criação do homem, assinala esse ponto de virada na história humana. De dependente passa assumir cada vez mais contornos de autonomia e de liberdade de movimentos. O enfraquecimento do homem vem na razão direta desse fortalecimento da técnica. "As máquinas, nosso duplo, que criamos, adquirem autonomia e poder". (Sfez, 1988, p.15)

Cada vez mais o homem constitui-se de forma maquínica como robotização humana, semi-carne, semi-metal; cada vez mais a máquina assume o espírito da natureza e através da inteligência artificial humaniza-se, desenvolve formas de malícia, de trapaça, de cordialidade convivial. A tecnologia nesta fase torna-se "way of life" e sensualidade. Como way of life é o "segundo eu" encontrado no computador; entidades e modos de comportamento flutuantes. Como sensualidade, o computador é um contato quase sensual (Turkle,l984, p.173ss.). Marinetti, precursor remoto do endeusamento da máquina, já via o ferro e a madeira como "mais apaixonantes que a mulher".

1.1. A velocidade

Mas as máquinas não são apenas os computadores penetrando cada vez mais amplamente em todos os ambientes da vida pública e privada. A rapidez do envio de mensagens e comunicados encontra um paralelo no conceito de velocidade, uma das categorias mais decisivas da nova era da técnica.

Em alta velocidade dá-se a transmissão de informações, o domínio de percursos geográficos, a criação de material técnico, a produção, distribuição e consumo de bens e serviços, a rotatividade dos objetos e materiais que servem nosso cotidiano, e até mesmo da mão-de-obra.

A alta velocidade trouxe como consequências a acentuada volaticidade e efemeralidade das modas, produtos, da inovação técnica, dos processos do trabalho, das idéias, ideologias e práticas pré-estabelecidas. Valoriza-se a instantaneidade e a descartabilidade, inclusive a de valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, da fixação em coisas, edifícios, lugares, povos, formas autênticas de fazer e se ser.

Trata-se de um processo angustiante de troca em que as pessoas são compelidas por uma pulsão incontrolável de trocar de carro, de casa, de companheiro, de emprego, de roupas etc. É uma pulsação incessante pelo devir sem nenhum investimento substantivo no estar: não se está em lugar nenhum, vive-se contínuamente na expectativa do provável. É um estado de permanente flutuação acima das coisas, dos atos e dos comportamentos. A ênfase já desloca-se do conceito de "sentido", da materialidade, da mera existência física; os bens, matérias tornam-se somente componentes físicos de uma sensação, de um eterno pular de ponto em ponto. É o girar, o movimento que se opõe à permanência. Oscila-se o tempo todo entre um estado de expectativa angustiante e de prazer e euforia que rapidamente se desfaz. Estimula-se, a um ritmo crescente, a busca contínua por outra coisa e no momento de sua obtenção ela como que automaticamente se dilui, recriando novamente a busca.

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Desaparecendo os clássicos componentes estruturantes da realidade de cada um (forte ligação à religião, a um princípio filosófico, a uma ideologia política) as pessoas buscam sair da angústia do esvaziamento através de novas formas de metafísica. Assim, o renascimento religioso, ou seja, a busca de uma "verdade eterna" acaba funcionando como um oportuno substituto deste estado de coisas marcado pelo flutuar acima de qualquer envolvimento mais efetivo. É uma forma de pseudomistificação numa sociedade altamente racionalizada.

A velocidade está no costume com o conforto, naquilo que nos faz reduzir o senso de tocar, de sentir o contacto muscular com as matérias e volumes em proveito, ao contrário, de uma série de afloramentos, de toques e de deslizes furtivos. (Virilio, 1980, p.61) É Virilio que vai caracterizar também a velocidade como uma forma de morte. "Montar um animal ou sentar-se num veículo automotor é preparar-se para morrer no momento da partida e renascer na chegada ... O aumento da velocidade é a curva de crescimento da angústia. A velocidade de deslocamento não é mais do que a sofisticação da fuga". (idem, pp.43-47)

A saída da angústia estaria naturalmente no suicídio. Mas este subordina-se, como a própria angústia, a uma vivência trágica, logicamente associada aos destinos da ontologia. A era das emoções e do êxtase, ao contrário, banaliza a morte, na medida que torna-a medidade de suas próprias forças de estímulo: só se investe, só se estimula, só se trabalha naquilo que "inibe a morte", que faz o jogo fascinante de brincar com ela, isto é, que consiga restituir emoções que nenhum outro modelo hoje mais alcança.

Para Virilio, a velocidade também significa o envelhecimento prematuro, em que mais o movimento se acelera, mais rápido o tempo passa, mais o ambiente se priva de significação. (Virilio, 1984, p.43)

A velocidade tornou os fatos da vida cotidiana absolutamente sintéticos, reduzidos, condensados, comprimidos, de tal forma que mediante todos os recursos que temos à disposição pelas tecnologias podemos em uma só vida viver experiências que num passado distante exigiam muitas. Pode-se viajar milhares de vezes pelo mundo, trocar diversas vezes de ocupação, fazer circular um maior número de parceiros e, em última análise, condensadamente, viver uma vida elevada a uma potência jamais imaginada no passado. Daí a sensação de tudo ter sido vivido, de esgotamento, de ausência de prazer no novo e de uma angústia de envelhecimento precoce. Faz-se hoje muito mais do que qualquer pessoa das gerações passadas poderia fazer, ganha-se em quantidade na razão inversa da apreensão exaustiva, cuidadora e compenetrada da experiência.

Também os lugares mudam de significado na destruição geográfica das distâncias. Quanto mais rápido o carro segue pelas estradas, menor é o tempo que liga o ponto de chegada ao de partida, menor é o registro real do ambiente externo. Cada vez mais o panorama que é atravessado pela autopista e através dela pelo veículo que corre deixa de existir realmente, tornando-se apenas uma sequência enfileirada de diagramas, que compõem um visual composto de pouca fixação. É como um filme de rotação acelerada, do qual pouco nos é dado captar e sentir. A paisagem desaparece com a velocidade. A atenção

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reeduca-se no hábito da apreensão acelerada e múltipla de estímulos, alterando radicalmente o intervalo de sensações registradas.

O declínio da indústria cinematográfica não se deveu apenas á expansão da televisão. Esta teve também como correlato o desenvolvimento da motorização. O automóvel substitui o cinema e as filas nos guichês tornaram-se as filas nos pedágios (Virilio, 1980, p.73). Dentro do automóvel, cada indivíduo encontra o seu "lar": sua vida itinerante e permanentemente em movimento tem como correspondência tecnológica o automóvel, como o sistema que o coloca em órbita nesta sideralização do cotidiano. A solidão do motorista é equivalente às demais formas de solidão, das pessoas que em casa ouvem rádio ou assistem TV apenas para que perto delas "algo fale", independente do que na verdade esteja sendo dito. E a decrescente importância do outro como possibilidade de contacto e comunicação encontra similar no próprio declínio do ambiente. Além do meu carro nada mais existe, a periferia é sem registro, a miséria "desaparece", o mundo perde significação.

No trajeto, todas as existências físicas que são atravessadas seguem, como "horizonte negativo"(Virilio), o caminho da sua própria diluição no campo de registro do motorista. "A utilização desenfreada do automóvel e da moto não tem, contrariamente aos transportes em comum, nenhum destino, não é a priori uma questão de distâncias a cumprir, o que cria fatalmente novas condições de viagem. Não ir a parte alguma, mesmo girar em círculos num quarteirão desértico ou numa pista periférica obstruída parece natural ao voyeur-voyageur. Ao contrário, parar, estacionar são operações desagradáveis e mesmo o condutor detesta ir a qualquer parte ou a alguém, visitar uma pessoa ou ir a um espetáculo parece-lhe um esforço sobrehumano".(Virilio, 1980, p.77)

Com isso, o uso do automóvel torna-se um fenômeno em si absolutamente hipertélico: busca mais locomoção do que a própria locomoção, gira no vazio. A utilização da máquina torna-se um fim em si, tendência esta que é registrada também em outros sistemas da Sociedade Frankenstein, como o computador e a televisão.

1.2. A transformação da cidade

A lógica do desaparecimento da paisagem, da secundarização do outro, em suma, da mudança de importância do espaço geográfico urbano ou mesmo das grandes áreas rurais só poderia conduzir a uma alteração da importância das cidades. As cidades esvaziam-se não no sentido da concepção medieval de cultura e sociedade mas pelo despovoamento dos habitantes dentro do próprio espaço urbano. Em vez da expansão extensiva, difusa e horizontal da população nos centros de cultura, lazer, comércio e nos diferentes bairros, assiste-se, ao contrário, à ruina urbana contrabalançada pela progressiva eleição de pontos de alto investimento comercial-publicitário, que passam a sugar todo o capital circulante da cidade e funcionar como pólos portadores de significação e importância dentro do quadro dos signos do consumo. Assim são os shoppings centers, clubes e associações semifechados, espaços turísticos privilegiados que concorrem para a verticalização de um investimento social provocando a reordenação do tecido urbano.

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A cidade extensiva perde cada vez mais importância, deixando de ser o espaço de discussão pública, a cidade como pólis pauperiza-se, torna-se espaço das populações mais desfavorecidas e a vida de fato desloca-se para espaços que já não são mais públicos mas propriedade de instituições econômicas, culturais, políticas.

A própria arquitetura urbana, que era historicidade cristalizada através dos edifícios e monumentos antigos, que se impunha de forma quase espontânea contra o processo de varrimento do espapo urbano como território de convivência social, experimenta um reaproveitamento tornando-se pura estética de comunicação e publicidade: "a arquitetura está na armação, na geometria, no espaço-tempo dos vetores e a estética da armação dissimula-se nos efeitos especiais da máquina de comunicação".(Virilio, 1980, p.74-5) E também a publicidade ordena a arquitetura e a realização de superobjetos: Beaubourg, Les Halles, La Villette são literalmente monumentos ou antimonumentos publicitários (Baudrillard, 1981, p.118).

Mudando-se sua importância como espaço de exercício de cidadania, de poder político, da organização, as cidades tornam-se agora territórios-suporte, gigantescos painéis de poluição publicitária, do grafite vândalo, da miséria estética. Em Manhattan, o prazo de fixação da imagem arquitetônica foi estabelecido para 12 anos. Mas o fenômeno não é apenas norte-americano. Berlim foi durante mais de 40 anos uma cidade simulacro, totalmente reconstruída apenas para servir de propaganda de uma visão de mundo que visava bombardear o projeto socialista oriental.

Mas o despovoamento urbano ocorre também com a rapidez dos transportes e dos sistemas de comunicação que acabaram por banir das cidades todos os locais por onde as pessoas poderiam circular. As grandes cidades não prevêem espaço para o pedestre, como é o caso de Brasília, e os trens subterrâneos fazem da cidade um espaço em que pessoas transitam invisivelmente. Na rapidez de mobilização de um ponto a outro está a marca de uma progressiva desertificação urbana.

A rua passa a ser apenas espaço de trânsito e da velocidade, cuja função é negar o ambiente. Quem atravessa as ruas com seus veículos em velocidade não a sente mais como espaço social, mas apenas como trajeto. A rua não registra o ambiente, ela nega-o e o exclui. As ruas, como a cidade, passam a ser o espaço dos ratos onde a população desapareceu.

Os equipamentos eletrônicos criam com este esvaziamento uma "nova relação de comunicação" em que as pessoas dentro de suas casas, diantes de sistemas eletrônicos, podem ligar-se aos centros de comércio, aos bancos, às informações culturais bem como a outras pessoas realizando à distância aquilo que no passado marcava a comunicação face-a-face. Neste sentido, a própria figura do vizinho transforma-se, passando a ser, como qualquer outro, uma figura desconhecida e estranha. É uma presença que apesar da proximidade física distancia-se anos-luzes de nós, haja vista a volta que faz todo o sistema de comunicação para que cheguemos a ele. Assim, como o telefonema, que parte de nós, chega à central para depois ser reconduzido pelos cabos até o vizinho do lado, da mesma forma toda a sistemática de comunicação supõe necessariamente o enredamento de todos num sistema complexo para o qual a metáfora da sideralização parece ser a mais pertinente. Cada pessoa como

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estrela brilhante que se comunica pela luz com outras, mas que está infinitamente distante delas.

1.3. O novo status do saber

O impacto da plena expansão da técnica e da tecnologia na sociedade ocorre de forma intensiva no campo do saber e da ciência. Tanto quanto o âmbito estético-expressivo, que perdeu as referências, os padrões da validade, os critérios modernistas com o desenvolvimento técnico, da mesma forma, a esfera cognitiva é checada em sua natureza última.

Com o fim dos grandes códigos e da razão abstrata, a ciência passa a viver segundo critérios, regras, normas e principalmente legitimações particulares, reduzidas e localizadas. O desenvolvimento da técnica e a multiplicação dos sistemas eletrônicos (hardware) alteraram radicalmente a circulação do conhecimento. O saber, diferente do século XIX, que tinha seu espírito simbolizado pela Bildung, pelo conhecimento autônomo, independente das imposições econômicas e políticas, voltado à administração pública e à moral e que se colocava como instância de avaliação e de juízo acima do social, realizador (ou possibilitador) da "epopéia da emancipação", cede espaço ao saber puramente operatório, destituído de poder, sem troca com o social e incorporado às atividades econômico-empresariais.

A ênfase agora recai nos meios e não mais na especulação e investe-se na otimização das performances. A velha ciência substitui seus critérios de avaliação e de identidade anteriores. Especialmente as ciências sociais, diante da crise de significação e validade, passam a fabricar seus objetos, simulam-nos ou perdem-se na busca histérica da causalidade, na procura de responsabilidade ou na "impaciência do saber" (Lyotard), apontando para a angústia da sobrevivência destes próprios saberes.

A trama enciclopédica deixa de ser objeto do investimento intelectual. O ensino tende ao aprendizado técnico-prático e as universidades cada vez mais formam competências para repassar saberes específicos e formados à la carte, tornando os professores meros instrutores da operacionalidade técnica.

O novo saber, marcado pela expansão técnica em todos os campos, resgata a legitimação agora somente através do consenso dos próprios pesquisadores, a saber, pela paralogia: é aceito pela comunidade científica da área aquilo que é simplesmente plausível. O saber maior, que orientava uma ética, uma política, uma filosofia, é substituído pela simples crença que é o que passa a regulá-lo. Conforme Hassan (1988, p.36), vai-se do "poder ser" ao "há de ser verdade" e a sociedade torna-se uma sólida trama de confiança.

2. Meios de comunicação

A técnica ocupa o lugar da comunicação humana introduzindo um novo modelo comunicacional. Trata-se agora de uma forma de comunicação numa sociedade que não sabe mais se comunicar consigo mesma e em que a coesão é contestada, os valores desagragam-se e os símbolos mais usados não servem mais para unificar (Sfez, 1988, p.16).

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É uma comunicação aplicada a uma realidade em que as pessoas já não mais se olham, se tocam, se sentem, se falam. Mais além, ela não mais funcionando como intermediação (ponte) entre o mundo e os lares, é, ela própria, produção livre de conteúdos, fábrica de estórias. O fenômeno da auto-referencialidade está nos jornais cuja notícia são eles mesmos, nas televisões que focalizam, falam, tratam, polemizam consigo mesmas. São os media narcisos, nos quais o único referente para a transmissão pública são suas próprias maquinações e fabricações.

Em outro plano, as formas de comunicação implodem os conceitos de esfera pública e esfera privada. As redes de comunicação do passado, isto é, as que se articulavam no interior das instituições sociais, eram marcadas pela privacidade, pelo espaço íntimo e do sagrado. O homem enquanto pai, citoyen ou bourgeois era quem defendia a relação entre público e privado. No momento em que a comunicação invade todas as esferas do social, ela anula, através de sua "obscenidade"(v. adiante: 2. A Informação), a privacidade, a intimidade e o mistério, rompendo a antiga esfera auto-suficiente e autônoma do privado. Ela alimenta-se exatamente da vida íntima e do fato de tornar público este universo.

2.1. O processo televisivo

2.1.1.. A visão

Entre todos os sentidos humanos, o que recebeu maior investimento estético, o que foi mais explorado politicamente e mais seduzido do ponto de vista econômico foi, sem dúvida alguma, a visão. A começar pela expressão artística da pintura, que representava de forma analógica a ordenação do mundo e das idéias do Período Renascentista, continuando até os desdobramentos de que a visão passou a ser objeto a partir da invenção da fotografia e, mais recentemente, na reprodução eletrônica, o olhar sempre esteve em posição privilegiada.

O século XV foi marcado pelas representações estético-visuais do centralismo-perspectivista, opositor do precedente policentrismo, do deslocamento visual, do ritmo e do movimento das expressões artísticas da Idade Média tardia. Antecipava o racionalismo e desenvolvia uma arte mais ou menos similar ao desenvolvimento do capitalismo, à sua rigidez, ao seu cálculo. Expressões dessa época são Da Vinci, Galileu, Maquiavel e Duerer.

Mais tarde, na Alta Renascença, ganha corpo a tendência de retorno ao movimento, mas agora trata-se de um "movimento na rigidez", como aquilo que se move quando colocado sobre trilhos. A época de Ticiano é que dá destaque ao primeiro plano, como ocorre no teatro, e também é a primeira manifestação de a imagem assumir o caráter de mercadoria e deixar de ser sagrada. Autonomiza-se o território separado de registro e sincroniza-se com a produção de bens em seu movimento externo. É o período em que o olho descorporificado de Deus é substituído pelo do monarca.

O surgimento da Era Burguesa caracteriza-se pelo início da mobilidade da perspectiva. A imagem vista de uma carruagem já não é mais a que um

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homem parado vê numa tela ou num afresco, em que as figuras representam o movimento. A carruagem marcará o início do desaparecimento do espaço intermediário, do atrofiamento da distância entre centro e periferia. Agora é o observador que caminha e a paisagem transforma-se à medida que ele a percorre.

Da mesma forma que o trem, que se expande também nesta época, tem-se aqui a quebra da aura da cena. Pela primeira vez, a velocidade do percurso do observador passa a reduzir a capacidade informativa do que ele vê. A diminuição da percepção tem a ver com a própria capacidade imaginativa. Quanto menos se vê, menos se imagina. A forma de apreciar a paisagem através do movimento tem a ver diretamente com o declínio do tempo de retenção da imagem na memória.

Este desenvolvimento só será interrompido com a descoberta da fotografia, que recupera novamente a capacidade de o homem observar uma cena parada. A fotografia é o ponto culminante da reprodução central-perspectivista, é a restituição da experiência intensiva com o mundo, retorno daquilo que o trem havia liquidado, isto é, a intimidade, o espaço intermediário e a proximidade do primeiro plano.

A fotografia de certa forma faz ressurgir a aura da paisagem destruída pelo trem. Saindo da paisagem, a aura desloca-se para o funcionamento, para o mecanismo de reprodução.

O processo de industrialização em seus desdobramentos com a técnica, que cada vez mais avança sobre os espaços da vivência humana, deixa transparente - através da imagem e da forma como ela realiza a desintegração da unidade e o fim da perspectiva - a mudança de orientação das visões de mundo, que levou à destituição dos monarcas e de supressão de Deus. A técnica acaba com o "ponto central no mundo", que levará mais tarde os homens a questionar o próprio sentido da metafísica e de sua existência enquanto seres com estruturas estáveis, enraizadas ou culturalmente consolidadas.

Por meio da reprodução eletrônica, a segunda natureza do homem deixa de ser a cidade, a arte, a linguagem, para ser a própria técnica. Esta passa a simular o processo de comunicação: comunicação de quem agora já não tem mais nada a dizer.

O olhar do homem, que antes da sofisticação dos sistemas de comunicação voltava-se a seu ambiente, ao outro, à natureza, centra-se agora num objeto técnico puro, no funcionamento de sua estrutura, no olhar fascinado a uma representação sem fundo.

A reprodução eletrônica da imagem traz consequências que têm a ver com a debilitação e a subutilização dos sentidos. Em primeiro lugar, o próprio olhar torna-se limitado. Pelo fato de a imagem não estar mais parada mas ilusoriamente em movimento através dos sinais eletrônicos, a possibilidade de o homem parar sobre cada imagem - como na fotografia - e observá-la em detalhes, com profundidade, explorando cada espaço, cada ângulo, cada perspectiva, esvai-se. O movimento da imagem substitui o do olhar exaustivo da imagem. O volume de cenas que se intercalam, se trocam e se somam toma o lugar de uma única cena cujo tempo de observação original agora

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distribui-se em diversas cenas. O olhar da era das altas tecnologias é dispersão e cintilação.

Com o desenvolvimento do fotograma em movimento (cinema) e no presente, com mais intensidade, através da imagem eletrônica, cada vez mais as imagens sobrepõem-se e constróem por si mesmas a realidade visual imaginária do receptor; cada vez menos as palavras são utilizadas para criar uma representação simbólica das coisas.

Consequência é o processo de dislexia, a dificuldade progressiva de compreender o que se lê, pela dificuldade correlata de se representar. Antes, as imagens poderiam ser substituídas por palavras, criando relações conceituais, teóricas, intelectuais sobre as coisas que eram vistas. Hoje, as imagens substituem-se a si mesmas, deixando qualquer possibilidade de vinculação mais densa com um conteúdo conceitual, com uma profundidade de reflexão ou pensamento.

A reprodução eletrônica das imagens fabrica, em oposição a um imaginário cultural herdado ou constituído através de outros media, um conjunto próprio de imagens, criação exclusiva, fabricação encerrada no próprio universo do meio. Com a imagerie, criam-se as imagens sem suporte, desenvolve-se um certo tipo de produção do imaginário através da máquina, que já pode dispensar a participação do homem. Assim o resume Edmund Couchot: "Uma imagem numérica é uma mensagem reduzida a números. O computador trabalha esses números e formas, visualiza os resultados por meio de um aparelho de vídeo ou de uma impressora. Pode-se assim reduzir uma imagem por meio da pura elaboração de dados... Não é preciso mais basear-se num modelo, num objeto real ... Partindo dos dados de um objeto dado, o computador pode produzir uma quantidade quase infinita de imagens. A imagem numérica não é mais a transposição de um modelo determinado, não é mais a reprodução mais ou menos exata de um original, uma duplicata óptico-química como a fotografia, é uma imagem com possibilidades infinitas". (Couchot, 1985, p.124).

Já ultrapassamos o processo em que o simulacro devora seu modelo. Praticamente nesta fase eletrônica o modelo já perde totalmente sua necessidade de existência. O próprio sistema fabrica multiplicidades cada vez mais diversas e distintas de imagens. Este momento é radical: a partir de agora a produção de imagens deixou de ser uma característica essencialmente humana. Os sistemas eletrônicos substituem os homens inclusive nesta produção infinita de cenas, de objetos, de formas que outrora caracterizavam a experiência estética ou a experimentação artística em geral. O homem já passa a ser um componente dispensável em todo este processo. O sistema, ele próprio, pode produzir as formas de imagens e também de arte.

Com o final da antropomorfia da forma e a criação de formas sempre novas, temos um processo de permanente metamorfose, que já não tem mais nada a ver com um original, como foi dito, nem com uma referência a um sujeito, que garantiria a própria lógica da criação. As imagens é que se alteram de forma arbitrária e livre como num caleidoscópio, com a única diferença de que nelas aqui se instala um processo criativo original.

Da mesma forma, sistemas eletrônicos radicalizam a liquidação da geografia, iniciada pela rapidez do movimento com o trem e depois com os

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transportes mais rápidos, especialmente os urbanos e aéreos. Se a extensão física territorial tornou-se um componente cada vez menos importante na era eletrônica, a integração dos meios de comunicação torna a vivência territorial um fenômeno absolutamente imaginário. Já não se mora em um determinado lugar, diz Vincent Descombes, mas ocupa-se um espaço. As pessoas que estão próximas não são os vizinhos, não há mais vizinhança localizada. Os lugares são exceção do espaço. Isso porque, através dos sistemas de comunicação, cada local é alcançável por qualquer outro; nenhum deles tem o status da origem e da meta, pois institui-se uma circulação de comunicados em todas as direções.

2.1.2. A televisão

A televisão constitui o ponto de ruptura entre o universo sociológico marcado pelas metanarrativas, os discursos da emancipação, do homem atuante, da possibilidade de explicar e administrar o real, por um lado, e o mundo das técnicas e da hiperrealidade, por outro. Quando se fala de televisão, pensa-se em algo que transcende o aparelho em si, a relação e mesmo a materialidade dos sistemas de transmissão. A televisão é muito mais do que a simples transmissão em cadeias locais, regionais ou nacionais de programas de jornalismo e entretenimento para uma sociedade. Ela faz parte de um "gigantesco e exteriorizado sistema nervoso eletrônico, amplificando tecnologicamente todos os nossos sentidos e desenvolvendo funções sensóreas em forma processada de imagens e sons mutantes ... Ela devolve nossa própria angústia com signos simulados e hiperreais de vida". (Kroker, 1988, p.277).

É portanto um universo que transcende em muito as programações das emissoras. É todo um mundo. Ela não é nem a tela nem o telespectador, mas um "complexo espaço virtual entre ambos" (Baudrillard).

O predomínio da televisão a partir dos nos 60 significou não só que ela passou a se destacar diante das demais formas de comunicação mas também a dominá-las e submetê-las. Estas, a partir do predomínio da televisão, entram em declínio e perdem a identidade. O cinema é o exemplo mais flagrante deste processo, mas a crise também invadiu o teatro, o rádio e o jornal. Os demais meios de comunicação tornaram-se cópias da televisão; passaram a imitar sua linguagem, seu ritmo e sua dinâmica. A televisão impõe à sociedade uma velocidade de leitura, uma rapidez na decodificação de imagens visuais e uma forma de apreender o real baseada apenas neste jogo de trocas simultâneas de cenas e da construção de uma narrativa e de uma dramaturgia muito específicas.

Por ser todo um universo, por encerrar em si toda uma complexidade de sistemas de prestígio, projeção e publicidade, todas as coisas que escapam do seu campo ou que não são por ela absorvidos tornam-se necessariamente periferia, margem de todo um sistema, produtos de segunda ordem. O que escapa da TV, sendo periferia, não tem registro, "não tem importância".

A televisão, no entender de Kroker, não é reflexo da sociedade, nem da forma mercadoria, tampouco reprodução de ideologia. É a sociedade que é seu reflexo; ela é o mundo real da economia e da sociedade (Kroker, 1988, p.268).

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Em vez de ser reflexo da forma mercadoria, a televisão é a expressão viva e mais acabada desta. Em vez de ser reprodução de ideologias, ela é a própria ideologia, aponta o autor canadense. Ela é, por um lado, exteriorização de nossos sentidos, na forma como MacLuhan interpreta os meios como nossos prolongamentos em relação ao mundo exterior, e ao mesmo tempo interiorização, desejo simulado como disposições programadas.

2.1.3.. O tempo televisivo

A televisão joga com a categoria do tempo operando-o de forma própria e independente dos conceitos cronológicos usuais. É um tempo artificial e manipulado. Diferente do congelamento fotográfico da imagem, a televisão, ao contrário, é um tempo de permanente fluidez. Nada pára, tudo circula a velocidades vertiginosas e alucinantes, de tal forma que a sucessão de cenas constitui um novo reordenamento da existência visual, agora segundo novos parâmetros, a saber, tecnológicos.

Há na televisão a abolição dos diferentes tempos com a supressão da consciência do atrofiamento do presente: "só o simultâneo é o verdadeiro presente" (G. Anders, 1956, p.134). Trata-se do tempo da tecnologia, marcado por um sequenciamento de cenas e de interrupções que seguem uma lógica própria, segmentada; tempo visual que se sobrepõe a um tempo real e impõe-se de fato como o único tempo.

2.1.4. A densidade televisiva

A televisão é o veículo por excelência da pós-modernidade. Ela não conhece estruturas permanentes, densidades, aprofundamentos, investimentos intensivos, enraizamentos no social, no cultural, no histórico. Nela tudo é como que "chapado". É o primeiro medium cultural em toda a história a apresentar "a realização artística do passado como colagem estruturada junto com fenômenos equiimportantes e simultaneamente existentes, amplamente divorciados da história geográfica e material" (Taylor, cf. Harvey, 1988, p.61).

É uma forma de liquidificador geral, que mistura as mais diferentes matérias e submete-as todas a um mesmo tipo de tratamento ou "branqueamento", tornando-as absolutamente inóquoas. É um sistema de pura fascinação, que as pessoas acionam para funcionar durante todo o tempo e que fica falando em geral para si mesma. Requena diz que sua fala é incessante e vazia, são estribilhos que se repetem, falando todo o tempo, não cessando de falar para nada dizer.

2.1.5. A linguagem

Na televisão, o que se fala está fora de qualquer contexto externo mas, acima de tudo, a maneira como a televisão se apresenta é como monólogo e, como mencionado, auto-referente. Nas suas "representações", o real desaparece completamente e é sua desintegração que aparece pelo processo eletrônico do medium.

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A TV, no entender de Umberto Eco, perdeu sua transparência. Não "passa" mais nada. Ela própria é que constrói o espetáculo, acabando de vez com a separação entre a ficção e jornalismo. O jornalismo é o seu melhor produto ficcional. A televisão não tem mais contacto com o mundo exterior e no que ela apresenta e fala é ela própria o grande personagem.

Em Simulacros e simulações, Baudrillard aponta o exemplo do filme "Síndrome da China" em que a televisão entra numa central nuclear e provoca um acidente. Mas não é só aí que tais fatos acontecem. É conhecido o fenômeno de que no Brasil as passeatas não se constituam até a chegada dos cinegrafistas da televisão. Só quando estes põem suas máquinas a postos e começam a filmar é que se compõem os movimentos de protesto, dissolvendo-se logo em seguida, no momento em que as câmeras são desligadas. Da mesma forma, em recentes quebra-quebras da cidade de São Paulo, os manifestantes em vez de fazer reivindicações de caráter social, portavam faixas dizendo "Queremos a imprensa".

E neste produzir constante de fatos jornalísticos, ela produz também fatos culturais, econômicos, políticos e mesmo históricos: "nossa realidade passou pelos media. Inclusive os acontecimentos trágicos do passado" (Baudrillard). Para este autor, já não dá mais para verificá-los e compreendê-los,pois depois de serem retrabalhados por intermédio da televisão, acabaram-se todos os instrumentos de sua inteligibilidade. Assim, desapareceram as condições de se julgar e avaliar os efeitos ou os crimes cometidos na história passada, de vez que todas as provas, todos os dados a respeito já sofreram um amplo processo de mutilação e de produção de modelos e de simulacros, de tal forma que põem em dúvida qualquer demonstração ou prova a favor de qualquer tese.

Mais ainda, dentro de seu caráter de absoluto tratamento de superfície de todos os fatos , mesmo os componentes hoje mais radicais da cena política, as formas de terrorismo, são ao mesmo tempo criticados e enaltecidos pelo medium. No mesmo momento em que desenvolve a pregação moral contra eles, a televisão demonstra, pela sua forma não verbal, através do show de imagens, o espetacular de todo o circo sádico do terror.

Nas produções dramáticas revela-se também o caráter implosivo que possui a televisão diante dos fatos da cultura. Para Requena, a telenovela é a "hipertrofia cancerígena do relato"(p.122), onde ocorre o esgotamento das eleições narrativas e um prolongamento doentio da trama original. A televisão, em vez de reproduzir a narrativa como classicamente se conhece, através de uma curvatura (em que de um drama originalmente instalado ocorrem seus desdobramentos até que o fato chegue a uma certa consecução), joga com os desdobramentos narrativos segundo a maior ou menor oscilação de seu público telespectador. Assim, não se desenvolvendo desta forma, como curva, a telenovela segue a forma de sinuosidades que sobem e descem durante o desenvolvimento de meses ou até anos, produzindo-se, então, subtramas da trama principal e provocando-se, de forma patológica, um desvio de desenvolvimento que passa a ser associado à forma cancerígena.

Isto tem como consequência a implosão da cultura narrativa. Construindo-se um vício de narrativas "defeituosas" estimula-se o desinteresse

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do telespectador em relação aos desdobramentos e construção sequencial da trama, investindo-se, ao contrário, em sua demolição.

Conforme Dieter Prokop, os modelos dramatúrgicos da televisão trabalham com extremos de questionamento e reconstrução da ordem na sociedade. Para estes produtos, sejam eles telenovelas, séries criminais, filmes de aventuras ou histórias de família usa-se de esquemas simplificados e de fácil assimilação para construir formalmente as tramas. (Prokop, 1986). Prokop fala em esportividade, em agilidade formal, em fantasia-clichê, em signos como componentes específicos da televisão para a montagem de seus dramas. Ocorre que por força da influência e da dominação da televisão sobre outros meios, também o cinema e, de certa forma, o teatro passaram a usar da mesma maneira estes componentes formais, simplificados, para obter fácil entendimento público e imediata resposta mercadológica.

Para exemplificar, Prokop cita Brecht: "Para melhor chegar ao mercado, uma obra de arte, que seja expressão adequada de uma personalidade na ideologia burguesa, precisa ser submetida a uma operação específica que a dissocia de seus elementos. Os elementos chegam, de certa forma, isolados no mercado" (Brecht,1931). Prokop comenta que isso não se aplica apenas às obras de arte mas a qualquer obra que faça parte do universo televisivo.

De acordo com Brecht, as obras feitas segundo as próprias leis, "são divididas, desmontadas em seus elementos aproveitáveis: essa desmontagem das obras de arte pode ocorrer, em primeiro lugar, segundo as mesmas leis do mercado que as dos carros que se tornaram inutilizáveis, com os quais já não se pode andar e que então são desmontados em suas unidades menores (metais, assentos de couro, lâmpadas etc.) e assim se vendem " (Brecht, 1931).

Apesar desse "processo industrial" de criação de bens culturais de consumo para as massas, não há nenhuma garantia de que essa colcha de retalhos, que reúne peças de "sucesso garantido", retorne com o êxito esperado. A fórmula do sucesso público é e será sempre uma incógnita para todos os programadores de comunicação.

2.2. A Informação

Nos media em geral, mas com maior destaque na televisão, a informação ganha um caráter de "obscenidade". É o êxtase de tudo devassar, a ânsia de tornar demasiado visível e transparente, de eliminar qualquer regra restritiva de princípios.

Paul Virilio faz uma interessante comparação entre o processo de iluminação da cidade de Paris e o desenvolvimento simultâneo do próprio Iluminismo, que não só etimologicamente é a ela próximo, bem como revela um novo tipo de espírito que se instalou na França a partir da Revolução Francesa e de seu caráter, em certos aspectos, bárbaro. As Luzes significaram para ele o terror da devassidão. A investigação policial (violação de correspondência na revolução) pretendia "esclarecer" o espaço privado como havia-se anteriormente iluminado o teatro, as ruas, as avenidas, o espaço público (Virilio, 1988,p.78).

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Tratava-se da exposição de cabeças decapitadas, da invasão de palácios e hotéis, da fixação de nomes de habitantes na porta dos imóveis, da profanação de lugares de culto e conventos, da exumação de mortos. Nada mais era sagrado, nada mais poderia ser inviolável. É o terror da revolução, o vandalismo que antecede o terror instituído propriamente dito, a barbárie que se num momento tinha a ver com a iluminação da aristocracia, por outro, associava-se à própria ideologia do Iluminismo, a de colocar potentes holofotes em todos so espaços que demonstravam qualquer aspecto de obscuridade, penumbra, mesmo discreto sombreado.

A intenção de tudo explicar, prever, controlar, administrar supunha que nada mais pudesse ficar fora de seu alcance e ninguém mais do que o próprio jornalismo atuou para executar esta tarefa, na medida que já não encontrava mais obstáculos numa prática que se tornou obstinada em vasculhar todos os espaços privados na busca de uma difusão pública, num pretenso interesse da própria sociedade.

Foi o jornalismo que deu início à demolição da esfera privada, que embaralhou aquilo que era pertencente ao controle exclusivo dos indivíduos, dos cidadãos e o fez domínio de um interesse discutivelmente público. Por isso, são os meios de comunicação o "estágio obsceno da informação" (Baudrillard, l983, p.3). Excesso de informação é eletrocução; produz curto-circuito contínuo em que o indivíduo queima seus circuitos e perde suas defesas (idem, l988).

Ao comentarmos a reprodução eletrônica, falou-se da mudança que representou a época dominada pelas técnicas, de que o olhar do homem ao seu meio, à sua natureza, ao seu próximo, tornava-se agora o olhar ao objeto técnico, um olhar passivo. O exemplo disso, apontado por Freier, estava nas notícias: as imagens mudam e o olhar permanece. Foi nisso o que o telejornalismo inovou: trouxe uma sucessão rápida de cenas, de imagens, de matérias marcadas pelo princípio do êxtase e da atividade ligeira e imediata. Introduziu o show de impactos sobre impactos que pela perseverança desgastou a atenção dos assistentes, até os tornarem mesmo indiferentes a essa notícia. O telejornal na era da velocidade eletrônica é cintilação da rapidez, da cor, do impacto e as notícias funcionam aí como puros álibis, personagens secundários da cena.

2.3. Rock

O rock é a trilha sonora da pós-modernidade. Hoje, a produção fonográfica do rock é mais um espetáculo de ficção do que de fato de uma produção conjunta "artística", em que concorrem diversos intérpretes. Steve Connor acredita que todo o terreno da música de rock é pós-moderno; também Arthur Kroker, para quem o rock significa êxtase, decadência e também o fenômeno mais flagrante das formas atuais de esquizofrenia.

É interessante a descrição que Mark Poster faz da virtualidade que é hoje o som do rock e seu caráter ficcional.Por um lado, a questão da gravação do rock. Esta se dá num espaço de absoluta simulação da copresença. Nenhuma das pessoas que fazem parte do "conjunto" de fato está presente. Cada uma mora e grava num lugar diferente. Um técnico junta todas as partes da mesma música e constrói a unidade em laboratório, fazendo o equilíbrio e o

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balanceamento dos instrumentos. A partir disso, constata-se que a performance na verdade é uma cópia que não tem original, que só existe enquanto objeto de pura reprodução. Trata-se da mostra de algo que jamais ocorreu. A gravação de rock é, portanto, um fenômeno de ficção.

Por outro lado, o próprio audiófilo também penetra neste mundo de modelos e simulações de forma equivalente, através da obsessão pela recaptura da linguagem musical. Trata-se de uma espécie da construção da hiperfidelidade, ou seja, de tentar encontrar um som que seja mais fiel do que o fiel; é onde o audiófilo quer discernir instrumentos, separar vozes de instrumentos, vozes isoladas dentro de um coral, além de tentar também controlar o próprio ambiente da cena, buscando administrar as oscilações da eletricidade, isolar a sala, sentar-se no centro dos altofalantes e procurar aquilo que Poster chama de "utopia auditorial", em que fundem-se na mesma cena sujeito e objeto. O sujeito desloca-se da sua vinculação, da sua impregnação a um certo solo, o lugar lhe escapa; ele flutua suspenso entre pontos de obje-tividade"(Poster,1990,p.11). É a expressão mais clara de que também o som pode ser interpretado como "som virtual".

3 - Teoria em ruinas

3.1. Velhas teorias da comunicação

Retomando o esquema de Lucien Sfez, das três visões de mundo e das três metáforas da comunicação (representação-expressão-confusão, máquina-organismo-Frankenstein), encontramos os modelos de análise e explicação dos processos de comunicação da primeira metade deste século, majoritariamente associados à bola de bilhar (meios de comunicação vistos como representação), assim como aqueles que propuseram o quadro teórico, entre os anos de 1950 a 1970, mais familiarizados com a metáfora da criatura.

Na visão de mundo marcada pela representação, impera a dualidade cartesiana e a separação radical entre o homem e seu objeto. O homem domina a máquina e está com ela para seus fins. Os primeiros estudos sobre meios de comunicação endossam este modo de interpretar o social. São os modelos teóricos da visão aristocrática das massas (Charcot, Le Bon, Tarde), assim como aqueles orientados a uma perspectiva de administração, organização, controle e sobmissão das massas através dos meios de comunicação. A ênfase é a de reforçar a função daquele que no processo de comunicação assume a posição do emissor.

Os primeiros estudos de comunicação dos anos 30 seguem a perspectiva empírico-behaviourista ou empírico-funcionalista, na qual a relação dos homens com os meios de comunicação baseava-se na fórmula reduzida do estímulo-resposta. Para alguns pensadores, a psicologia de Pavlov servia de fundamento para se analisar os problemas da comunicação "de massa" (por exemplo, Serge Tchakhotine). Em outros, contudo, o receptor é passivo e hipnotizável e a comunicação centra-se num processo de três componentes (emissor, mensagem, receptor, ou E-M-R). A interação ocorre através do comportamento baseado em estímulos e a psicologia experimental fornece a base epistemológica para as análises.

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É também o mesmo tipo de investigação que servirá de base para os administradores aplicarem a social engeneering sobre as massas, ou seja, as estratégias que visavam interferir no comportamento coletivo através dos meios massivos.

As principais questões levantadas pela velha teoria da comunicação eram a da manipulação, da persuasão, da formação de opinião, da análise dos efeitos, da influência da comunicação e da mudança de comportamentos. O princípio aristocrático de avaliar como se manifesta a massa, como se esta fosse animal de laboratório, para interferir de forma pontual em alguns aspectos e com vistas à obtenção do resultado esperado, era o fundamento e a razão neste tipo de estudos

Nos anos 50, com o desenvolvimento da cibernética, ocorre um novo desdobramento teórico das teorias empírico-funcionalistas de comunicação, vistas agora como um processo mecânico, mensurável matematicamente, separável em termos de unidades de informação e perfeitamente manipulável como um dado da física. Os conceitos de entropia, feed-back, bit fazem parte deste novo espírito.

Paralelamente, entretanto, ainda no campo do empíreo-funcionalismo, desenvolvem-se novas correntes que começam a analisar o processo da comunicação a partir de outros componentes, como os intermediários (no mecanismo de recepção), e o próprio receptor. Para esses pensadores, especialmente de tradição norte-americana, a chamada "mensagem" da comunicação é uma categoria secundária nos estudos de fenômenos de massa e de complexos de comunicação atuando sobre estas. Igualmente assumem uma posição crítica em relação aos seus predecessores, que se centravam no papel do emissor, afirmando que os efeitos produzem-se independente de uma intencionalidade do emissor e devem ser analisados na forma como estas informações são decodificadas pelo receptor. Lazarsfeld e Katz representaram aqui uma corrente importante nos estudos de comunicação norte-americanos, na medida que trabalharam os mecanismos políticos e sociais a partir desse componente situado no outro extremo do processo de comunicação, a saber, os intermediários. A teoria do two step flow of communication nomeava os líderes de opinião como figuras que realizavam uma espécie de decodificação da mensagem para pequenos grupos e através disso propiciavam, segundo eles, sua melhor apreensão das mensagens.

Da mesma forma, no agenda setting (Mark Comb), acreditava-se que no processo de comunicação figuras intermediárias do mecanismo, como editores e programadores, funcionavam como "sistemas de re-tratamento da mensagem e de orientação e classificação da recepção por parte das pessoas".

Mais recentemente, especialmente depois dos anos 60, talvez por força da persistência de fenômenos inexplicados pelas primeiras teorias que investiam na importância do emissor, assim como pelas mais recentes, que passavam a dedicar interesse também no papel de papel de componentes específicos do receptor, desenvolveram-se teorias que buscavam interpretar o destinatário como o elo principal de toda a cadeia de comunicação. Para esta, não há só a mensagem mas toda uma atmosfera em que a mensagem está inserida, que deve ser estudada para explicar o sucesso ou não das formas de comunicação. Para estes o receptor é, de fato, o criador de mensagens.

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Em todas estas teorias permancece o sentido da representação: os meios de comunicação traduzem o mundo e a "mensagem", uma vez enviada, atinge seu objetivo e é novamente reenviada. O movimento permanece absolutamente íntegro de ponta a ponta.

A partir de meados dos anos 50, desenvolve-se na França o estruturalismo, que em termos de análise de comunicação provocará o surgimento e o desdobramento da semiologia, originalmente criada por Ferdinand de Saussure. Para a semiologia, a metáfora agora é outra, trata-se da criatura. Aqui opera-se uma mudança radical no entendimento do processo de comunicação e uma relativização daqueles componentes que haviam sido autonomizados dentro do modelo explicativo da bola de bilhar. Segundo esta nova perspectiva, o homem perde sua importância e há uma imperiosidade, uma sobredeterminação do todo, importando mais conhecer-se o mecanismo global de funcionamento e não separadamente seus componentes. A quebra de um processo de comunicação em fragmentos, realizada pelas formas de teorias expostas anteriormente, ou seja, a separação de emissor-canal(mensagem)-receptor, significava uma concessão ao modo positivista de traduzir o real. Agora, a perspectiva é de uma captação orgânica deste mesmo processo. Em vez de privilegiar emissor ou receptor será exatamente a "mensagem" que estará no centro do interesse.

Quem manda, o que manda, o que recebe, como recebe, são perguntas secundárias para esta orientação. Aqui, não é certo que qualquer um fale qualquer coisa a qualquer outro; trata-se agora, principalmente, da questão da linguagem. O sujeito não existe enquanto unidade independente, empiricamente subtraído de uma totalidade, mas está submetido a uma lei maior que é a do significante. Tampouco as condições histórico-sociais têm grande peso na interpretação do texto. Restitui-se às coisas seu direito à superfície, desaparece o sujeito da ação, só vale agora o texto.

Esta nova forma de interpretação da comunicação encara que homens estão no mundo e devem a ele se adaptar. A linguagem precede os indivíduos e estes pouco interferem nos seus desdobramentos e no seu processo de desenvolvimento. Os meios de comunicação fazem parte do universo assim como o universo está inserido nos meios de comunicação. Ele é sua expressão.

Por fim, o terceiro grande núcleo teórico de comunicação provém da chamada "Escola de Frankfurt", cujos pensadores principais, além dos clássicos Walter Benjamin e Berthold Brecht, são Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Juergen Habermas. Esta escola despreza tanto o modelo positivista dos norte-americanos, preocupados apenas com o rendimento e a administração da comunicação social em grande escala, quanto a ênfase linguística dos estruturalistas. Para eles, como bons hegelianos, importa o todo complexo expressivo formado pela comunicação, as novas estruturas de poder daí derivadas e a anulação do pensamento crítico. (Esta orientação teórica será mais extensamente apresentada na Terceira Parte, "A esquerda hegeliana").

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3.2. Nova teoria da comunicação

Mas tanto o modelo baseado na representação como o baseado na expressão, a metáfora da bola de bilhar como a da criatura, correspondem a uma visão ultrapassada dos processos de comunicação. Referem-se a uma época em que nos estertores da modernidade ainda se poderia acreditar na independência do homem, da sua ação no social e da possibilidade de uma intervenção real e efetiva neste mesmo social (primeira forma), assim como no império de estruturas cujo efeito seria perceptível através de um centro de sentido (segunda forma). A nova era que se descortinou a partir da expansão dos meios técnicos de comunicação e informação e através da virada que estes provocaram em relação ao domínio do homem, fazendo-o fixar-se na posição de um mero componente deste contexto, exigiu uma completa reformulação e reordenação dos estudos de comunicação.

Mesmo os conceitos até recentemente válidos, já não poderão mais ser usados, já que se referem a uma realidade não mais existente. Para Umberto Eco, deve-se rever tudo que foi feito nos anos 60 e 70 e os professores devem esquecer o conhecimento adquirido até então, porque uma espécie de "neocomunicação" impôs-se ao mundo. Naquela época, diz Eco, acreditava-se que os meios de comunicação eram cópias das relações de poder, o emissor era centralizado, tinha um plano político, suas mensagens eram reconhecíveis e os destinatários, vítimas da destruição ideológica. Bastava ensinás-los a "ler" as mensagens. A partir desta visão de mundo desenvolveu-se todo um trabalho político e de engajamento das correntes de oposição para fazer com que as "massas populares" executassem uma "leitura crítica" da comunicação, praticassem uma "contracomunicação" e interferissem no processo comunicacional fazendo com que a coisa invertesse seus pólos. Isto, contudo, logo demonstrou-se inútil. A revolução da nova era era de natureza absolutamente distinta.

A partir dos anos 80 entra em declínio o investimento na cultura popular, na emancipação do receptor e na apropriação dos meios técnicos com vistas à formação de uma consciência dos dominados. É o momento em que a comunicação inverte seu papel e perde o sentido de contato com o mundo, ponte ou janela que liga indivíduos a fatos. O cenário que o telespectador descobre é o de sua própria natureza arcaica, pré-televisiva e do próprio destino solitário da eletrônica.(Eco,1984,p.200).

A metáfora agora é a do monstro que, criado pelo homem, o ameaça, e a visão de mundo, a do curto-circuito da representação-expressão, da confusão. Desaparecido o sujeito, é o objeto que marca agora os limites da individualidade e determina suas qualidades; o homem passa a existir pela técnica. Em relação à comunicação, ela entra numa espiral delirante e tautológica, onde o excesso produz exatamente a perda da informação. No tautismo (neologismo criado por Sfez, que funde a um só tempo tautologia e autismo no uso das tecnologias avançadas de computação e comunicação), a sociedade diz "eu sou a sociedade". Da mesma forma, também os meios de comunicação, abolindo a transparência, dizem simplesmente "eu sou a televisão". Fabricam os dados exteriores, e os eventos, mesmo os reais, já nascem falsos, são pré-montados em laboratórios, como cenas

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cinematográficas, organizadas em estúdios com jogos de luz apropriados, posição dos atores pré-estudada e um texto já conhecido.

3.3. Os conceitos da Era Frankenstein

3.3.1. A circularidade

A circularidade da comunicação anula a existência efetiva das extremidades na relação de comunicação, conhecidas do modelo empírico-funcionalista emissor-mensagem-receptor, que estava impregnado da suposição de um eu fortalecido e de um sujeito autêntico. Na circularidade, a cultura deixa de ser um componente de um processo social maior para ser um mecanismo que provoca a "inflagem" de toda a sociedade, tornando-se "sociedade cultural" e a cultura o medium que sintetiza toda esta mesma sociedade. Como uma rede, não há começo nem fim, mas múltiplos ajuntamentos e caminhos complexos.

Quando a televisão faz enquetes em praça pública para conhecer a "opinião do povo" sobre um acontecimento, um governante, um fato econômico novo, o que se ouve das pessoas é a reprodução linear daquilo que a própria comunicação emitiu. Desse conjunto de opiniões, os programadores de televisão irão formar novamente a opinião sobre a massa, que a receberá novamente e as reproduzirá mais uma vez. Cria-se o circuito tautológico, em que as mensagens não passam de meras senhas em que todos se reconhecem e que na verdade operam de maneira puramente ritual. Nada de fato se comunica, nada de fato é transmitido, nada muda as posições ou opiniões existentes. Isso porque, em realidade, não existem essas posições ou opiniões, mas a aceitação e a livre circulação de todas elas ao mesmo tempo.

A circularidade da mensagem é ainda bombardeada por um novo componente, que é seu efeito multiplicativo. A mensagem torna-se também inteiramente inóqua exatamente pela sua própria "obesidade", pelo fato de que todos os sistemas de comunicação inflacionam o espaço com uma quantidade fantástica, extraordinariamente grande de mensagens que pelo seu próprio volume tornam a comunicação inviável. A massa de informações, a diversidade, a velocidade, a obsessão de falar, trazer, comentar, argumentar, pôr e colocar dados e em todas as direções cria um universo alucinante de dados, em que cai por terra qualquer possibilidade de formação de fato de opinião. Quando um jornal coloca, em relação a um fato, duas opiniões diametralmente opostas e ao mesmo tempo fundamentadas em dados e informações confiáveis, o receptor não confia em nenhuma delas exatamente porque se anulam e a conclusão é só uma: o aumento das informações leva à desinformação.

3.3.2. Superfície

A hermenêutica, como processo intelectual e científico, entra em declínio porque o signo deixa de ser lastreado por alguma carga útil ou gravidade. A época, ao contrário, é da relatividade total, da comutação, da aleatoriedade, da simulação. Não há correspondência necessária entre significante e significado;

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ao contrário, os signos intercambiam-se entre si sem nenhuma permuta com o real. É o próprio princípio da simulação já mencionado, em que se misturam verdadeiro e falso, real e imaginário; os acontecimentos não perdem o sentido mas são precedidos pelos modelos. Os modelos é que compõem de fato o quadro das cenas e dispensam absolutamente a existência do original.

O declínio da hermenêutica torna possível ver o real como império das aparências. O manifesto e superficial volta-se sobre a "ordem profunda" para anulá-la. É o espaço do jogo e das cartadas, da "paixão pelo desvio" contra a pesquisa do sentido escondido. O que é sedutor no texto é sua aparência. (Baudrillard, 1979,p.20)

A partir disso, a nova investigação dos processos de comunicação afirma que as visões de mundo, os estilos de vida, as vivências repassadas pelos media não são derivações de qualquer maquinação conteudística, de qualquer jogo com a mensagem, de qualquer sentido latente, que estaria por trás dos componentes da comunicação, mas, ao contrário, são elaboradas através do jogo de formas, do modo de produção que impõe esta visão de mundo e estas idéias. Assim, por exemplo, a total neutralização das notícias de um noticiário de televisão não se dá pela notícia em si senão pelo jogo de anulação recíproca dos fatos no seu sequenciamento de exposição. Na forma de intercalar notícias sérias com notícias amenas, de jogar com a mágica das cores e do espetáculo, de ilustrar, editar, sequenciar, cortar, introduzir um ritmo de alta velocidade nas cenas que se intercambiam, em todos esses procedimentos puramente formais do processo de comunicação é que se implanta o mecanismo de pasteurização das mensagens. Tudo é possível passar na televisão e nada de fato provoca qualquer efeito no receptor.

Para Baudrillard, a ciência eliminou a sedução, substituiu-a pela profundidade e pela interpretação, instituindo aí o terrorismo e a violência da interpretação (1979,p.76). Trata-se, no caso da hermenêutica, do fato de que a atribuição de sentido é o mesmo que forçar o fato a uma teoria pré-concebida. É uma forma de mutilação, é a pilhagem da história com fins particularistas, a pilhagem do inconsciente com fins de interpretação psicanalítica, a pilhagem da cultura com fins de massificação e a pilhagem do agir humano para submetê-lo a uma moral, uma norma, um princípio exterior. Em todos estes casos, a permanente obsessão pela domesticação, pela castração, pela eliminação dos riscos, pela submissão de tudo o que aparece à ordem da razão e da explicação.

Na época da metafísica, desnudar as aparências era uma forma usada para fazer resplandecer a verdade de Deus. Junto com o declínio do pensamento marcado pela dualidade falso/verdadeiro, manifesto/latente, executa-se a liquidação de todas as formas de desmascaramento, de desvendamento ideológico, de depuração daquilo que parecia estar obnubilado para, então, aparecer a verdade da coisa. Em todos os casos, o princípio de que a forma como os fatos aparecem é a negação de como eles de fato são. Em todos os casos, a tentativa de negar a verdade da evidência para fazer com que os fatos se dobrem a uma verdade outra, externa ao fenômeno, de natureza ética, política ou filosófica, legitimada por uma verdade divina, revolucionária ou puramente abstrata. A crise da hermenêutica leva consigo o fim do próprio sentido, já que o sentido remete, também ele, a uma visão

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exterior do próprio fenômeno. Tem sentido aquilo que se coadunava com a maneira prévia de como o cientista ou o filósofo viam o mundo.

Caem por terra, portanto, os conceitos de conteúdo e de mensagem como manifestações que estão escondidas, por trás, obscurecidas, pela linguagem manifesta. A análise da mensagem, a análise de conteúdo buscavam exatamente através do instrumental semiológico encontrar ligações, construções inconscientes, formas internas de um discurso não-expresso para trazê-las à luz. O campo então ficava aberto a todas as formas possíveis de especulação, já que tudo é válido e portanto pode se submeter a critérios múltiplos de julgamento. As chamadas "leituras ideológicas" de um texto, de uma pintura, de um filme, de uma peça teatral, de um livro, de um programa de televisão, todas elas remetem a essa tentativa de violentar o real impondo-lhe um sentido, que o pesquisador achava mais correto.

Da mesma forma, o conceito de discurso, que remetia a uma concatenação superior das falas e à sua submissão a toda uma lógica precedente, reduzia todas manifestações à mera expressão dessa própria ordem, dessa visão de mundo. O pesquisador violentava o real e o distorcia para impor-lhe a significação que era da sua própria metanarrativa.

3.3.3. Autonomia do objeto

Na nova teoria desaparece a polarização dominante/dominado, que está na mesma ordem da polarização emissor/receptor. É novamente Umbero Eco quem declara que nas novas formas de comunicação eletrônica não há mais um poder sozinho, um poder centralizado, uma destinação ideológica da mensagem. Se existe uma circularidade na comunicação, se ocorre o que se chama "sedução circular" é porque então ninguém mais manipula ninguém, não há mais persuasão, não há mais influência deliberada, nem a capacidade de indivíduos interferirem radicalmente no comportamento de outros através do uso deliberado dos meios de comunicação.

Em suma, o componente intencional nos efeitos da comunicação extingue-se. As novas formas de manifestação dos meios de comunicação remetem a outro tipo de funcionamento, assim como também a uma nova forma de se considerar a questão do poder. (No item II, se retomará novamente a discussão sobre o caráter do poder na nova sociedade).

A forma como Baudrillard, por exemplo, encara o fenômeno das massas justifica uma tal acepção de poder. Para ele, estas não são boas nem más condutoras do político; nelas tudo dilui, são ao mesmo tempo passividade e espontaneidade selvagem, não guardam nenhum sentido e neutralizam toda cena e o discurso político. O poder não manipula e tampouco as massas são enganadas. Absorvem a energia do social mas não a refratam; absorvem signos mas não os digerem; nunca participam: são boas condutoras de fluxos mas de todos os fluxos, boas condutoras de informação mas de qualquer informação.

Seu comportamento, portanto, é algo que não pode ser previsto, pré-programado, administrado, controlado ou definido pelos indivíduos, Estados ou formas de "poderes" socialmente localizáveis. O que marca seu comportamento é, contrariamente, o da absoluta imprevisibilidade.

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Daí porque não de poder mais falar de uma "cultura de massas" já que esta significaria algo de residual, que atribuiria um caráter ontológico às próprias massas, ou seja, conduziria à idéia de que no fundo elas encerram um certo comportamento, uma certa forma de se opor à dominação, uma certa estratégia intrínseca e inerente de insubmissão. Adorno e Horkheimer rejeitavam a seu tempo o conceito de cultura de massas exatamente porque este supunha uma certa autonomia da massa na criação das formas culturais; a crítica que faziam, contudo, era de que a cultura industrialmente produzida é que não era a da massa, deixando de qualquer forma, o espaço para uma cultura à margem, externa a todo o processo de industrialização, que as manteria ainda intacta. Este era o equívoco de seu pensamento, ou seja, o investimento naquilo que estaria no âmago da própria massa, princípio que posteriormente veio fundamentar toda uma ideologia política e uma estratégia de recuperação da "cultura popular".

Os termos indústria cultural ou industrialização da cultura perdem também sentido porque supõem a atuação deliberada - da mesma forma como no contexto anterior - "manipuladora" de uma matéria prima original, relativamente "pura" para a produção de mercadorias genéricas, difusas, de ampla aceitação popular. Ou seja, está se tratando novamente com agentes que alteram, falsificam, danificam, popularizam produtos de uma cultura autêntica quando a lógica, ao contrário, é nitidamente distinta: cria-se, produz-se, desenvolvem-se bens, objetos culturais numa sociedade dada mas seu resultado é algo absolutamente imprevisível.

Há autonomia dos objetos em relação a seus criadores. São os objetos que provocam efeitos e têm repercussão perante a sociedade como fatos absolutamente inesperados, e não seus autores, já que sua precedência nos remeteria novamente à concepção de um sujeito criador.

Em que categoria, então, num mundo de desaparecimento do sujeito coletivo, do papel histórico, da ação política com vistas a um fim ideologicamente procurado, inserir as ações individuais, pequenas, restritas daqueles que vêem sentido no trabalho, na divulgação, no debate de idéias, na rejeição ao mundo caótico e sem eixo da era técnica ?

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Fora do território e das práticas minimalistas, que ingenuamente visam reconstruir em laboratório mundos irremediavelmente perdidos, o pequeno ato individual e de grupos reduzidos, orientados contra a barbárie da destruição de qualquer razão, o império das imagens, a onipresença da ruina, reclama sua legitimidade. E com razão. No passado, o ato político compreendia-se como curvatura em que ações de indivíduos, grupos ou classes somavam-se para construir um movimento que iria irromper numa realidade dada e provocar a alteração do status quo. Era a revolução. Poder-se-ia supostamente planejá-la, organizá-la e ver sua realização. Hoje, entende-se que o mecanismo foi desconectado, a primeira parte divorciou-se da segunda: homens e grupos ainda lutam por idéias e princípios mas apenas no sentido de "somar", de juntar muita gente para que, pelo volume, as coisas mudem. Já não há mais o "fazer a revolução" mas o "provocar as coisas". Provocar no sentido de "incitar", de cutucar, de trabalhar para que ocorram mudanças pura e simplesmente. O outro lado, o do controle dos efeitos, perdeu-se: ninguém pode afirmar no que vai dar, quais serão os resultados, o que esperar disso. O objeto impõe-se como autonomia.

Se antes o homem estava sobre um cavalo, conduzindo-o a seu destino ("a teleologia"), hoje ele - consciente de sua insignificância - vê que suas ações no máximo servem para provocar a fera. A partir de alterações provocadas e de mudanças ocorridas, voltam outra vez os agentes para novas provocações. É no jogo indeterminado, imprevisível, aleatório que se constituem hoje as "ações socialmente relevantes". É a forma também como Lyotard descreve o agir: age-se com golpes e contra-golpes, realizando mudanças nas relações de força, apenas pela agonística dos "jogos de linguagem".(Lyotard, l979,p.30).

Assim, ao que parece, inscreve-se a ação política, mesmo daqueles que publicamente, mas de forma crítica, denunciam a existência de um mundo sem esperanças. A esperança da utopia desapareceu; a pequena estatura humana vê, talvez agora com muito mais maturidade, seus limites reais, mas também a dimensão verdadeira de seu agir. Isto pode também ser interpretado como avanço.

3.3.4. Movimento

Na nova teoria da comunicação, assim como na nova forma de ordenação do social como um todo, as lógicas que se impõem são marcadas basicamente pelo movimento, velocidade, rapidez, crescimento, expansão, divisão, multiplicação e os efeitos destes processos acelerados sobre todas as coisas. No passado, especialmente na modernidade, as lógicas voltavam-se para o estável, o fixo, o permanente, o contínuo, o que se mantinha estruturado, o que ficava consolidado. O estável, que remetia à ontologia e às concepções do Absoluto, cede lugar na era da técnica ao móvel, dinâmico, ao que está em permanente mutação, subdivisão, clonagem, fractalização, espectralização, sideralização.

II - HISTÓRIA, TEMPO, POLÍTICA

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1. Fim da história

O chamado "fim da história" está intimamente associado à crise dos metarrelatos, cuja legitimação, especialmente no caso do saber, fundamentava-se em um componente ético, político ou - como no caso de Schleiermacher - filosófico. As ciências existiam como práticas orientadas à "emancipação do sujeito em direção à liberdade" ou ao processo de desalienação e desrepressão. Dentro desta lógica, a história significava o desdobramento progressivo, positivo, ascendente das conquistas da humanidade em direção a uma sociedade marcada pela realização da Idéia, da utopia ou do socialismo.

A substituição elementar do paraiso cristão dar-se-ia pela projeção de um "paraiso possível na Terra". O componente místico-religioso nessa ideologia não era ocasional, já que a própria ideologia da religião cristã previa também um caminhar da humanidade em direção à sua própria salvação e redenção. Só que neste caso, em vez de realizar a utopia no plano extra-terreno, a história propunha-se a dar aos homens uma consecução material, concreta, real e possível nos quadros da própria sociedade.

O declínio do conceito de história ocorre na mesma proporção em que entra em decadência a concepção unitária de totalidade, de teleologia ou de finalismo, quando a história deixa de ter sentido como processo único para o qual caminha toda a humanidade, esfacelando-se em múltiplas "histórias". Exemplo da erosão desta unicidade são os meios de comunicação, cujos diversos "centros de histórias" multiplicam-se desordenadamente.

Mas também as idéias e os conceitos que recheiam a contrução histórica perdem sua densidade. Harvey dá exemplo de Ragtime, de E. L. Doctorow, em que, segundo ele, não há mais representação do passado histórico mas "representação" de nossas idéias e estereótipos sobre aquele passado. De fato, nossa experiência com filmes históricos e de ficção científica realizados nos anos 20 e 30 não revelam nada sobre aquele passado, menos ainda sobre o futuro magicamente projetado; ao contrário, demonstram apenas o imaginário daquela época.

No livro Die Provinz des Menschen, Elias Canetti apresenta em forma ficcional o salto de um período histórico para um período ahistórico: "Uma idéia dolorosa, a de que a partir de um determinado ponto preciso do tempo a história deixaria de ser real. Sem se dar conta, a totalidade do gênero humano teria de repente perdido a realidade. Tudo o que teria acontecido após já não seria mais de forma nenhuma real, mas já não poderíamos perceber isso. Nossa tarefa e dever no presente seria descobrir esse ponto e enquanto não o tivéssemos ele estaria prestes a perseverar na destruição atual".

Para o escritor, sem que os homens tivessem se dado conta, teria ocorrido um desaparecimento incrível: tudo aquilo que havia marcado o passado, a memória, a vivência, a historicidade impregnada nas coisas, nos gestos, nas palavras, teria desaparecido como num passe de mágica. Talvez a humanidade, demasiadamente envolvida e inundada pelas mensagens da comunicação, não teria tido chance de perceber este ponto e quando se deu conta a história já tinha ido embora.

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Algo aconteceu que mudou radicalmente nas consciências a concepção de passado; algo introduziu-se de forma que o passado tenha se tornado uma categoria fictícia, imaginária e mesmo "fabricada". Os homens já não têm a lembrança, o relato, a narrativa de que fala Walter Benjamin mas teriam agora modelos prontos, terminados, fabricados em série de representações do passado e estas se sobreporiam às imagens realmente vividas.

O fim da história tem como consequência a dilaceração de tudo o que outrora fazia parte do repertório dos pesquisadores. A começar pela arquitetura, cujo historicismo tornou-se a "canibalização aleatória de todos os estilos do passado e o jogo de alusão estilística casual"(Jameson,1984,p.77ss). Posteriormente, nas demais "ciências humanísticas modernas" a história passou a ser vista como um espaço em que operava-se um abandono do sentido de continuidade e memória e o desenvolvimento da prática usurpatória, já apontada também por Eco quando fala da passadização da cultura norte-americana, em que a falsificação da memória é construída através de uma visão tendenciosa do passado.

Desaparece a "manipulação de classe com fins de imposição de uma verdade ideológica, de manter a "alienação" dos dominados, de sonegar informações relevantes e institui-se a manipulação aleatória e livre de tudo. Todos os objetos tornam-se peças disponíveis, adaptáveis a qualquer intenção, meros componentes arbitrariamente organizáveis para a intenção da construção artificial. Manipula-se para alterar e adulterar o passado, fazendo com que sujeitos retrospectivamente e após a morte transformem seus atos e feitos, como também no uso presente desses mesmos dados, que passam a sofrer uma livre e arbitrária utilização para os mais diversos fins. O uso indiscriminado do passado, ao mesmo tempo que desmorona a possibilidade de reconstrução histórica e de recuperação de documentos e fontes, altera também o próprio sentido da antiga historicidade.

Desconectados do sentido da agregação factual (tendendo a um futuro previsível ou desejável), os fatos políticos e culturais presentes, de repercussão macro-social, passam a repercutir não mais linearmente mas agora em todas as direções, difusamente. Tudo isso não deixa de provocar uma sensação de vazio pelo "desaparecimento do sentido". Os atos políticos rompem com o sentido maior, as ações coletivas não conseguem mais capitalizar maciçamente as pessoas (agora dispersas, não mais reunidades num projeto), nada mais repercute como expressão de uma tendência. É a "velha história" que, apesar de extinta, excita ainda o imaginário dos vivos. A nostalgia do passado alimenta o espírito "retrô" do presente.

Para um realidade eletrônica e saturada de técnica, que expurga o passado e a memória, mas também a historicidade, a política e a guerra, os homens precisam buscar novamente no passado, longínquo como recente, os objetos que ainda estão carregados de uma certa dose de emocionalidade, de realidade e sentido para ocupar um espaço presente esvaziado, congelado e sem orientação alguma. As reconstruções de guerras, de lutas, de períodos marcados por fortes rivalidades, conflitos que orientavam o agir, passam a ser o contraponto de um presente ainda não inteiramente assimilado, aceito.

A pós-modernidade é fundamentalmente uma reordenação das noções de espaço e tempo. A uma compressão da categoria espaço opera-se um

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investimento maciço na categoria tempo. Tempo não como tempo da história ou passado, tempo de envelhecimento, mas dinâmica. (A compressão do espaço, o fim da geografia já foram expostos na Segunda Parte: "A transformação da cidade". Aqui interessa o investimento na categoria "tempo").

2. O tempo

O tempo é o vetor dominante da cultura técnica e das tecnologias de comunicação. Ter tempo, ganhar tempo, obter o melhor tempo, são hoje marcas de uma cultura da alta velocidade. A rapidez impõe-se como necessidade e a circulação de bens e mercadorias torna-se alucinante. As experiências, as atividades, as vivências condensam-se cada vez mais, sendo possível viver mais intensamente (isto é, quantitativamente muito mais experiências) que se vivia no passado.

O tempo está diretamente vinculado à linguagem da televisão e dos media eletrônicos, pois é o seu determinante rítmico. É derivação e causa da rapidez das imagens, do declínio da leitura e da superficialização de toda a voda social. O que realizam os sistemas de comunicação e em especial a televisão é a redução da experiência à presentificação total do cotidiano.

A técnica paralisa e os sistemas de informação esvaziam toda a pulsação vital dirigida que estaria associada anteriormente ao processo histórico. Opera-se uma estratégia de petrificação ou congelamento do presente por um mecanismo da própria perpetuação desse presente.

Para Raulet, as imagens numéricas da TV já não conhecem mais nem antes nem depois; o tempo pára de criar continuidade da experiência, as imagens seguem-se umas às outras como momentos arbitrários, captações cambiáveis de momentos que que já não respeitam nenhuma hierarquia cronológica.

Visto de outra forma, a dinâmica da alta velocidade e de ritmo alucinante do processo comunicacional, especialmente da televisão, faz com que mesmo as informações relativas ao passado tornem-se excessivas e por isso redundantes e esvaziadas."As sociedades que nada mais esperam de um acontecimento futuro e que acham cada vez menos confiança na história, enterram-se atrás de suas tecnologias prospectivas, atrás de seus estoques de informação e nas imensas redes alveoladas da comunicação, onde o tempo foi liquidado pela circulação pura. Essas gerações jamais despertarão de seus sarcófagos subterrâneos". (Baudrillard, 1985, p.15).

A noção de tempo, portanto, que impera nesta nova era não tem mais nada a ver com a sequência passado-presente-futuro, marcante fundamentalmente para a periodização do Iluminismo, exatamente porque para este a trajetória da humanidade poderia ser sintetizada em um antes (processo que se desenrolou), uma agora (sua interferência radical), para a construção de uma realidade que estaria por vir.

O mundo marcado pela técnica, ao contrário, refuta todo este ordenamento da lógica social. Não há passado porque a história, como grande empresa humana, foi extinta, assim como não há futuro exatamente porque a demolição da utopia do vir-a-ser, do destino ou de um projeto tornaram

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impossível a construção de uma realidade para além desta. Tal fato encontra nos indivíduos um correspondenrte homólogo, que é o que se verá na próxima parte do texto, a saber, a condição esquizofrênica do homem nesta era.

3. A política

Antes do período moderno, a política definia-se como atos e vontades do soberano. Eram os inúmeros jogos, artifícios, golpes, astúcias de que fala Maquiavel e que correspondem a uma concepção do agir político como teatralização diante dos demais membros da sociedade. A era moderna vai abrir, com a liquidação dos monarcas ou o esvaziamento de seu poder político, a fase da representação. Instala-se o conceito de povo como soberano, de vontade popular, de representatividade, de delegação, de opinião pública. É a fase de ouro da cena política, em que os governados acreditam na possibilidade de os governantes agirem em seu nome, na viabilidade de construção de um estado fundado na democracia de uma transparência política.

Na nova fase política (fim da modernidade), esta dissolve-se por ser incorporada pelo sistema de comunicação ou as próprias instituições políticas tornam-se meios de comunicação.

Nossa época é marcada pelo desaparecimento ou perda de importância das instituições intermediárias que configuravam o quadro político do século passado e da primeira metade deste século; opinião pública, esfera pública, sindicatos entram em progressivo descrédito assim como conceitos de cidadania e direito. O desaparecimento do espaço público, o fim das grandes mobilizações de massa como formas de ostentação política, a crise da demonstração política ocorrida através da estetização fascista, o declínio dos sindicatos, dos movimentos ideológicos, todos estes fatos convergem para a ruptura dos componentes mediadores instalados entre o povo e seus governantes.

Fim da representação, fim das instituições intermediárias e também fim do homem político. Com a expansão e absorção dos media, os políticos tornam-se atores destes sistemas com peso e importância pequena. São substituídos por técnicos nas tomadas de decisões e as definições políticas escapam ao seu controle porque são determinadas por pareceres de especialistas, estudos específicos e investigações externas ao debate propriamente político. Ao mesmo tempo, o cenário clássico da política tornou-se espaço de micropolíticas de lobbies e de vantagens marginais e oportunistas.

A política na era das altas tecnologias é o território sem a dimensão das grandes mudanças, das radicais alterações. Ou então: sem a interferência ativa dos atores, partidos e organizações. As transformações espetaculares da história de certos países, de regimes inteiros ocorreu como estravazamento explosivo sem liderança, como explosão incontrolável, como fantástica violência das coisas. Desaparecem os atores e, como lembra Virilio, as mães da Praça de Mayo são uma demonstração de que os verdadeiros atuantes, de fato, estão ausentes. Da mesma forma, em São Paulo, a descoberta de ossadas de antigos inimigos do regime vem para comprovar que no momento de esvaziamento da política só os fantasmas de uma política desaparecida é que conseguem exercer o papel de atores.

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Em lugar dos esquemas duais, das relações de classes e de dominação, impõe-se agora a dominação da máquina, impessoal, exercida pela técnica, como fruto do mais avançado da "racionalização com vista a fins" de que falava Max Weber. A ela estão todos igualmente submetidos. Altera-se, correspondentemente, agora também o status dos "condenados da Terra". Os que eram marginalizados e que poderiam, no princípio socialista, capitalizar um potencial de revolução e de destruição do sistema (pobres, negros, velhos, minorias étnicas, sexuais, sociais etc), são puramente "denegados" já enquanto conceito: deixam de existir, não interessam ao sistema, são sua "parte maldita", não há mais quem advogue em seu favor.

Dentro do mesmo raciocínio, o inimigo na acepção clássica também desaparece. A Guerra do Golfo, no início de 1991, deu exemplos disso: ali o inimigo é apenas uma abstração, uma idéia, um "mal indefinido". Saddam Hussein é somente a materialização oportuna, bode expiatório deste inimigo abstrato: o desvio, a fuga de rota, o desequilíbrio estrutural, o entrave de funcionamento.

Por isso, a solução é técnica, clínica, cientificamente calculada, e o inimigo, erro de produção, falha do sistema. O campo que ingressamos é o da transpolítica, não o das "anomias" durkheimnianas mas das anomalias, aberrações sem consequência. (Baudrillard, 1978, 1983). O grande divisor de águas também aqui são os meios de comunicação. Eles tornam-se o novo palco da política. Primeiro, enquanto unidades de produção de informações para grandes massas e como sistema que engloba todos os componentes da vida social e os reinterpreta segundo seus próprios modos de ver e trabalhar; toma o lugar do palanque público e como "palanque eletrônico" é para onde convergem todos os discursos políticos clássicos.

Os políticos falam para os media na esperança de que estes repassem sua imagem para o grande público e o façam de forma benevolente. A ação, portanto, deste "componente intermediário" é decisiva. Política reduz-se a mera publicidade. Diante das câmeras, os políticos não discutem, não trocam opiniões, não tratam de programas, estratégias, linhas de ação de governo; não tratam de ações, alterações pequenas ou grandes a serem empreendidas mas tornam-se componentes de um grande processo publicitário em que funcionam frases de impacto e jogadas espetaculares, em que interessa levar o público ao êxtase e à fascinação, num jogo em que devem ser tão ou mais espetaculares que os próprios homens de televisão. Os critérios, portanto, são agora de agilidade, habilidade e boa presença no vídeo.

Como desapareceram os temas da política, não há mais necessidade que o homem político realize atos ou programas que tenham a ver com uma transformação ou o investimento na situação nacional. Isto fica com a programação do próprio aparelho administrativo e as estruturas que funcionam indiferentes aos sujeitos.

Não dirigindo as políticas, as economias, as estratégias sociais mas funcionando apenas como álibis humanos diante de um sistema de racionalidade técnica, desprovido de poder, os homens não precisam de fato mais se comprometer com qualquer mudança substantiva.

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4. O Estado orbital

Desaparecidas as instituições intermediárias, reduzido o papel do homem e das classes, a máquina estatal auto-regulada entra num ciclo "orbital". É a satelização, de que fala Baudrillard, em que o mundo do controle é dirigido a partir do sideral; o Estado como excrescência política não prevê a troca e produz pânico e terror; fim das intermediações e flutuação das responsabilidades.

O comportamento deste tipo de Estado da era tecnológica é mais notório em questões como a ameaça nuclear, os atentados terroristas e nas situações internacionais e planetárias de guerra. A instância política decide a partir de informações distantes da opinião pública e elaboradas por equipes criadas especialmente para esse fim. Torna-se máquina decisória com retroalimentação própria.

Mais recentemente, diante da própria transformação que sofreram os sistemas de comunicação, incluindo neles as redes de jornais, rádio, televisão e revistas, que passaram a ser sistemas auto-referentes, o próprio Estado torna-se também meio de comunicação. Medium de comunicação, na era técnica, não se restringe mais à infra-estrutura e às instalações físicas dos próprios sistemas de comunicação, mas torna-se categoria genérica, abstrata e difusa. É pólo irradiador de informações e comunicados, buscando construir e difundir imagens e fantasias de si mesmos.

Ultrapassando a situação em que o Estado era dependente dos media para sua projeção no campo internacional, hoje este tornou-se seu próprio medium. A Guerra do Golfo, mais uma vez, é o exemplo mais claro deste objetivo, numa situação em que as forças chamadas "aliadas" usaram-se de uma estratégia de informação muito diferente da utilizada pelos norte-americanos no Vietnã. Tratava-se agora de excluir toda influência crítica ou negativa dos media institucionalizados, retirando-se daí também parte de seu poder. O Estado - neste caso, o Pentágono - tornou-se o próprio medium, produzindo notícias, interferindo exclusivamente na forma de o mundo tomar conhecimento e formar sua opinião acerca do desenvolvimento da guerra. A guerra propriamente dita não foi de conhecimento de ninguém, já que o Estado como medium de comunicação, providenciou ele próprio a sua verdade.

5. O "locus" do poder

Se o poder no Estado transpolítico deixa de ser troca e é apenas violência do pânico e do terror, o poder propriamente dito não está menos ainda nos espaços institucionalmente definidos como tal.

Já não se pode mais interpretá-lo como um território em que ele se encontra associado à figura do governante, como na época de Maquiavel; tampouco como multiplicação e difusão molecular, num conceito microfísico de Foucault. A nomeação, a qualificação do poder leva à sua própria anulação. O marxismo, no momento em que se tornou oficial e aceito pela academia, perdeu sua violência teórica e crítica. Da mesma forma, os partidos comunistas, uma vez autorizados e participantes da vida política esvaziam-se. O que não dizer então dos sindicatos e das grandes associações trabalhistas, como a AFL-CIO

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dos Estados Unidos, que pela sua oficialização não têm nenhuma força contestatória ou peso de desafio político. E assim ocorre também com as minorias: no momento em que se institucionalizam perdem sua agressividade e violência. Trata-se de cristalizações, petrificações, em diferentes exemplos da lógica de que a institucionalização é morte e a persistência enquanto movimento é o que mantém a pulsação vital.

Tudo indica que o poder é algo flúido, deslocante, flutuante, transitório e, acima de tudo, indepentente do desejo, da manipulação, da administração, do controle dos agentes. Uma massa, por exemplo, pode alguns dias ou semanas antes de uma eleição inverter totalmente as expectativas das enquetes de opinião e surpreender com um resultado imprevisto ou com uma votação maciça em um candidato inesperado. Ela usa-se de uma forma de poder que não se acreditava estivesse concentrando, exatamente porque sua fragmentação supunha uma forma de não-poder. Mas no resultado da eleição constatou-se o uso de um poder através dos efeitos que provocou; nenhuma direção prévia as organizou e a massa impôs um "não" coletivo que se materializou num momento dado.

Assim, o poder é algo que, por princípio, não aparece, ou melhor, só aparece em seus efeitos. Nunca está onde se convenciona situá-lo, como tampouco reduz-se às instituições que buscam fixá-lo, nomeá-lo ou localizá-lo. É algo de natureza muito mais abstrata, que não está necessariamente com aqueles que ocupam postos na administração ou nas grandes empresas ou na sociedade de forma geral.

Um artigo na imprensa, uma matéria jornalística, uma declaração de uma figura eminente, um livro, um acontecimento no exterior, qualquer um desses fatos pode ter ou provocar um grande impacto na situação política, derrubar governos e alterar circunstâncias anteriores. Não porque seus autores o conseguissem intencionalmente ou munidos de algum poder, mas porque puderam, sem o perceber, captar uma aspiração coletiva e genérica e a transformar em um ato sintético de impacto. O poder apareceu através exatamente desse impacto.

Da mesma forma que um produto cultural torna-se independente de seu autor uma vez que é posto no mercado ou ganhe difusão pública, este mesmo produto, por si próprio, pode ou não ter repercussões que redundem em alguma forma de poder. A intencionalidade do autor em nada pode alterar isto.

A lógica da circularidade, em que os fatos são emitidos por sistemas e meios de comunicação e depois novamente refratados por uma massa de receptores e enviados de volta à televisão, formando o modelo de rotatividade, mina, como já mencionado, a idéia de manipulação e de influência determinada. Lyotard diz que em lugar da velha clássica unilateralidade na transmissão de mensagens há uma forma agonística de se jogar com a linguagem. "Os átomos são colocados em encruzilhadas de relações pragmáticcas mas também deslocados por mensagens que os atravessam num movimento perpétuo; quando percebe uma deslocação, cada parceiro sofre um golpe que suscita um contragolpe. Ôtomos realizam a estratégia e modificam a relação das respectivas forças. O que se pode fazer é agravar um deslocamento e até desorientá-lo para se obter um golpe inesperado" (1986,p.30).

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Estamos diante, portanto, neste exemplo, de uma lógica das irrupções repentinas, surpreendentes, das viradas espetaculares que não podem ser administradas como imaginava a velha teoria do poder. nem utilizadas como capital. Ninguém pode se considerar dono de uma irrupção repentina das massas, nem responsável consciente e deliberado por uma virada surpreendente em seu comportamento. O poder é conquistado casualmente por certos grupos, massas, organizações mas logo em seguida desaparece novamente. O fenômeno brasileiro das Diretas-Já, no início dos anos 80, em que houve grande mobilização popular nas ruas das grandes cidades, significou também uma forma de cristalização do poder nas mãos de uma massa, sem que isto pudesse ser atribuído a nenhum partido, de nenhum agente. As massas por si assumiram o direito do não e posteriormente, uma vez terminado o movimento, já não era mais possível rearticulás-la, exatamente por este caráter fluido do próprio poder, de não estar no lugar onde se desejaria que estivesse.

III. O SER ENFRAQUECIDO

1. Assassinato de Deus

Nas páginas precedentes, a descrição feita da TV foi elucidativa para caracterizar o traço de "errância" do mundo atual (V. para isso: Primeira Parte, "O antiiluminismo"): a TV não dá uma versão dos fatos que transmite, ela os cria; não há um sentido falso alterando um autêntico. A questão do sentido é que já não se coloca. Tudo torna-se fábula.

No capítulo anterior, da mesma forma, a história e os acontecimentos jornalísticos haviam se tornado fábula. No dia-a-dia dos media são construídas novas fábulas e o componente de verdade desses fatos (cenas de rua, choques violentos, flagrantes de cinegrafistas), como álibi da notícia, é usado para resgatar um indício de veracidade no mundo fictício. Na edição, as cenas "autênticas" embaralham-se, diluem-se, perdem-se, alteram-se como a cor dos objetos ao sofrer a mudança da fonte de luz: vale apenas seu componente formal para fazer parte imaginária de outro mundo.

A auto-referencialidade dos meios de comunicação constrói diariamente novas estórias para que o público as apreenda. No mundo como fábula não há mais experiência autêntica, já que, como visto, a idéia de verdade e de autenticidade caem fora desta lógica.

Em Habermas e Weber, igualmente, o fim da metafísica (Deus está morto, fim do interesse nas causas "últimas", mundo trabalhado como ficção) conduz à perda de sentido.

Para o primeiro, o final da metafísica ocorre com a diminuição da respeitabilidade do sagrado. O sagrado, no passado, não estava nivelado à vida cotidiana, mas numa posição acima dos homens e sobrevivia de forma secularizada tanto na aura, através da arte, como nas tradições filosóficas e religiosas. O nivelamento começou com o desenvolvimento da racionalidade do mundo técnico e com ele ocorre o que Weber chama de "perda de sentido": desaparece a graduação da racionalidade entre o sagrado e o profano.

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O nível de racionalidade do sagrado sempre esteve abaixo da racionalidade da ciência cotidiana mas sua estrutura intelectual para ele sempre havia sido melhor. Havia um enraizamento do místico e do religioso de tal forma que suas orientações valorativas permaneciam impermeáveis às experiências dissonantes na esfera do cotidiano. A profanização da cultura burguesa faz desaparecer a "força irracionalmente vinculante" do místico e volatizou-se o núcleo de convicções básicas, culturalmente sancionadas, que não necessitava de argumentos. (Habermas,1981,p.499).

A estrutura de comunicação da modernidade fez ruir as visões de mundo integradoras e socializadoras. Para Habermas, as ideologias eram respostas às frustrações modernas, à carência ou déficit do mundo vivido pela modernização social. Elas buscavas salvar os momentos expressivos ou prático-morais reprimidos ou pós-postos no padrão capitalista da racionalização.

Eliminando-se os vestígios auráticos do sacro e volatizado este tipo de produção de imaginação criadora, que foram as imagens de mundo, a forma de entendimento torna-se tão transparente que a prática comunicativa cotidiana não garante mais espaço algum para o poder estrutural das ideologias. (idem, p.501).

Parece, contudo, que o pensamento de Habermas não atinge o momento particularmente atual. Isso porque: (1) a religiosidade não parece ter desaparecido de fato; o que acontece é que ela abandona o campo das entidades metafísicas e volta-se aos "bezerros de ouro" da sociedade de consumo, num primeiro momento, e às possibilidades de usar os equipamentos eletrônicos e computadores, num segundo, que tornam-se, eles também, formas "mitificadas" de uma nova religiosidade.

Por outro lado, (2) desaparece a força integradora das ideologias mas aparece a "força integradora das redes", agora sem nenhum conteúdo filosófico, político, mas marcada pela performance, pelo agir técnico operacional, pelo fascínio tecnológico, pela magia dos botões, alavancas e sistemas.

A morte de Deus e o fim do sentido têm ainda mais um desdobramento. Arthur Kroker acha que ocorreu o assassinato de um Deus que de fato nunca existiu. O sujeito filosófico foi liquidado duas vezes. Primeiro, pelo desaparecimento da ontologia, como vimos até o momento, e depois, pelo "impossível conhecimento do assassino de um poder que não existe". A espécie humana, então, é objeto de uma dupla negação. Sua negação própria enquanto entidade que se acreditava substantiva, enraizada, com suas estruturas estáveis, e uma segunda, pela impossibilidade de localizar o detonador dessa própria liquidação da ontologia. Se Deus jamais existiu, como então imaginar seu assassino, já que matar algo que não existe é o mesmo que não matar? Logo, a humanidade esteve sempre envolta em um crime fictício, o que se matou foi apenas uma ilusão e ela se depara agora com uma "verdade" da natureza frágil, impotente, solitária diante de estruturas maiores e mais determinantes.

Cai por terra, portanto, pelo visto até agora, o conceito platônico-metafísico de homem enquanto estrutura fixa e consistente na cultura e na história. Ascende, ao contrário, o conceito de um homem enfraquecido como dizia Heidegger: "do ser como tal não resta mais nada, trata-se um ser que não

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tem mais nenhum enraizamento no tempo e no espaço, ou seja, um ser que não é mais "arbóreo" mas vagueante pelo globo sem mover o corpo, um ser rizotômico, nômade" (Deleuze/Guattari,1987).

Já não existe mais a expectativa de um caráter pessoal (Personhaftigkeit), de um significado individual e de um sentido existencialmente dicisivo. O homem existe mas nada mais há por trás dele.

2. Multiplicação e fracionamento infinito

A unidade do sujeito está estilhaçada. As metáforas para tal descrição são diversas. Usa-se o clone, a fractalidade, o espelho que se quebra, o estilhaçamento ( cf. Baudrillard, l987a, l987b, l988).

No primeiro caso, o sujeito da era informático-computacional é representado pelo clone: divide-se em múltiplos iguais é multiplicidade de egos como numa cultura biológica. Sua diferença é possível - e fabricada - ao infinito.

A metáfora do espelho leva a um raciocínio analógico. O espelho foi usado por Jacques Lacan para caracterizar uma fase no desenvolvimento da criança em tenra idade em que ela antecipa imaginariamente a apreensão e o domínio da unidade corporal. A unificação opera-se com a identificação com a imagem do semelhante como forma total. É uma diferença interna que permite à criança, distinguindo seus limites, abrir-se à cena do imaginário e à representação. Portanto, a fase do espelho em Lacan é a fase constitutiva do ego, em que de um ser dividido, visto como composto por partes separadas, chega-se à concepção de um ser unitário.

A nova sociedade produz no campo mais difuso e genérico a "quebra do espelho"; é a transparência do sujeito que explode em fragmentos, em que vemos refletir nossa imagem.

O conceito de clone ou de multiplicação de idênticos significa a multiplicação sempre do mesmo e o abandono da lógica de transcendência; é a lógica horizontal da duplicação em oposição à anterior, vertical, da relação entre um enraizamento no espaço e no tempo e suas repercussões no abstrato.

O efeito é o desaparecimento do outro. Não se tem mais a necessidade de ser, de falar, de apresentar, de mostrar-se para o outro. A referência agora é somente o si mesmo. Cada um desenvolve por si próprio suas imagens de si e do mundo que o odeia. O outro torna-se "bizarro, sem qualquer mistério" (Lipovetsky, l988, p.151). Já não choca mais, é-se absolutamente indiferente a ele. A lógica do clone significa que só há o assemelhar-se a si mesmo, encontrar-se em toda parte. São os sujeitos que sorriem para si próprios de que fala Baudrillard em América. Uma sociedade em que desaparecendo o outro só sobram os replicantes.

Da mesma forma, o self projeta-se para si mesmo na forma do look (cenário de vestuário). São os indivíduos que têm obsessão de provar sua própria existência, tem angústia de se manifestar, de se exprimir publicamente, mas não de ocupar a rua de forma política. Igualmente as situações públicas,funcionam não mais para participantes observarem, apreenderem, conhecerem o que está sendo exposto. É o próprio grupo, o conjunto, a coletividade que funciona como demonstração material de sua própria

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existência. Participar nos acontecimentos sociais ou culturais passa a ser uma forma de sentir-se vivo, de provar a si mesmo que não se é defunto, matéria morta, fóssil...

A existência já não é mais algo pressuposto, implícito,dado como necessariamente verdadeiro. Ela precisa de provas constantes e cada vez mais contundentes. No mundo fragmentado, a coletividade é o que fascina e o próprio aparecimento do coletivo que é emocionante. As pessoas vão para assistirem a si mesmas.

Também as máscaras tornam-se a riqueza de facetas de cada um. Na descrição do sujeito fractal, Baudrillard afirma que o ser humano tornou-se uma sucessão de máscaras que se sobrepõem umas às outras e que, suprimida a última, só restam "células sem qualquer transcendência".

3. A desestabilização dos sujeitos

A grande transformação provocada pelo mundo marcado por nossos duplos tecnológicos, pelas máquinas que instituem uma nova ordem de organização da sociedade, um novo tipo de relacionamento: o sujeito se destabiliza, para voltar a se reestabilizar no mundo das tecnologias.

O universo das tecnologias cria uma nova posição e um novo espaço de interação neste mundo. Se se era localizado num determinado espaço e na marca de um certo tempo cultural, as novas tecnologias redimensionam estes marcos, redispondo a questão do tempo e do espaço de forma absolutamente nova. Outrora se dizia que o homem mantinha uma relação de alienação com a máquina. Esta funcionava como sua negação, era aquilo que fazia com que o homem, através do trabalho, se envolvesse num processo de estranhamento de si mesmo. No mundo atual, ao contrário, o que ocorre é uma total interpenetração, um amalgamento entre os dois. O homem integra-se no universo eletrônico e passa a fazer parte de um grande circuito. Diz Lyotard, que na televisão os telespectadores não são mais consumidores, usuários ou sujeitos que "a fazem", mas peças componentes, intrínsecas, in put/out put, feed back e recorrência; só há transformação, troca de informação.

No novo mundo, o homem situa-se como uma peça, um componente permanentemente atravessado, perfurado, penetrado pelas redes, pelos sistemas de comunicação no chamado "universo proxenético" (Baudrillard) e ao mesmo tempo encapsulado e retomado em relação a outros universos. A proxenética da informação é um complexo de fluxos e circuitos: é a proximidade de todos os lugares, a circularidade de questões e respostas, problemas e soluções, a condutibilidaede absoluta. Um universo marcado pelo domínio, pelo controle, pelo comando, em que o espaço vital humano reduz-se ao ecrã, o sujeito torna-se um operador, seu carro, cabine informatizada, e toda a vida exterior passa a ser vista como uma tela. Estamos falando da "encefalização eletrônica", um espaço é absolutamente distinto do da sociedade na modernidade.

A proxenética da informação introduz esse novo conceito de proximidade, segundo o qual o homem já não é mais responsável pela produção de seus próprios limites. Para Jean Baudrillard, está aí exatamente o novo tipo de esquizofrenia, nesta demasiada proximidade de tudo, do ambiente,

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da inevitável promiscuidade das relações que se apoderam do indivíduo e de seu íntimo. Ele se torna aberto a tudo e é transparência absoluta . (Baudrillard, 1990).

Se no antigo mundo social a identidade (cruzamento de aspirações individuais com jogos sociais) era vista como algo fixo, marcado por uma posição na cultura, na sociedade, na história e no universo de valores, este mesmo cruzamento hoje é questionado, já que a identidade assume uma forma totalamente flutuante. Ela é troca constante de identidades diversificadas, variadas, sem conduzir a nenhum conflito existencial. Analisando as relações dos homens desta época com os computadores, Mark Poster constata que estes introduzem novas possibilidades de jogar com a identidade, removem antigos papéis sociais, desentabilizam hierarquias e mesmo dispensam o sujeito, deslocando-o no espaço e no tempo. Este pode ser qualquer pessoa e ninguém, pode inventar aleatória e ficticiamente qualquer conjunto de dados de identificação que na verdade não se é mais nenhum deles exatamente.

O mesmo fato ocorre com a contraposição da modernidade entre ser alienado/ser consciente. O conceito de alienação supunha a possibilidade de seu oposto, um si mesmo coerente, não-fragmentado, voltado a um projeto ou à produção de um futuro. Na realidade das novas tecnologias, contrariamente, tem-se um ser fragmentado, não mais marcado pela alienação mas pela instabilidade esquizofrênica, que será vista mais adiante.

Em vez de projetos e utopias, na nova era estamos diante de um "ser realizado": o indivíduo está realizado; suas dimensões heróica e utópica não têm mais para que existir, já que ele está operacionalizado, realizado. Isto marca o fim de tudo, o fim da metáfora do sujeito. O indivíduo tem tudo que deseja, e o que ele dispõe, o satisfaz; ele não tem mais necessidade de transcendência, de futuro, de sonho. Ele não tem mais a história projetiva. (Baudrillard, 1989). Como Nietzsche, em Assim falava Zaratustra, a terra tornou-se pequena e sobre ela pode saltitar o último homem, aquele que torna tudo pequeno.

4. A nova esquizofrenia

Mas a grande marca distintiva da mudança de era está na transformação radical da relação com o tempo e é isso que vai definir o caráter "esquizofrênico" do homem da nova era.

A esquizofrenia em Lacan é descrita a partir da experiência da temporalidade, vista como sequência de três momentos distintos (passado, presente, futuro). O que assinala o caráter patológico é a ruptura dessas divisões, a vivência de passado como se fosse presente e o embaralhamento das categorias num conceito de presente perpétuo.

Fredric Jameson estende ainda mais este conceito. Para ele, a quebra da temporalidade libera o presente de ações e intenções, que o centrariam e o tornariam espaço da práxis. Assim separado, ele absorve o sujeito com fantástica vivacidade; o poder do significante, neste isolamento do presente, é opressivo, tem intensidade extraordinária e forte carga afetiva.

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Em seu texto sobre o pós-modernismo e o capitalismo tardio, Jameson descreve a experiência de uma jovem esquizofrênica como paradigma do homem atual. Segundo o relato, uma jovem, que estava no campo, sai para dar um passeio e no momento em que passa por uma escola, ouve uma canção alemã. As crianças tinham aula de música. A jovem, então, pára para ouvi-la e aí apossa-se dela uma estranha sensação, difícil de descrever, um "sentimento incomodante de irrealidade". Ela sente que já não mais reconhece a escola e que esta se transforma em um barraco do período de guerra. As crianças que cantavam agora são prisioneiras e estão sendo forçadas a cantar, como se a escola e a criança, dizia ela, tivessem sido separadas do resto do mundo. Ao mesmo tempo, ela vê um campo de trigo, cujos limites não pode mais distinguir: a vastidão amarela brilhando ao sol e as crianças, presas nos barracos cantando, tomam-na com uma ansiedade fantástica, de tal forma que ela se põe a soluçar.

O fato serviu para que o autor ilustrasse o tipo de embaralhamento de tempos que provoca a vivência patológica com as tecnologias na era atual. O presente do mundo, diz ele, o significante material coloca-se diante do sujeito com redobrada intensidade, associado a uma misteriosa carga afetiva, que, no caso da jovem, era de caráter negativo. Mas pode-se muito bem imaginar o sentido positivo de euforia, de alta intensidade intoxicatória ou alucinógena, provocada por este tipo de relação com o tempo.Para ele, o mundo perde a densidade e vira "pele lustrosa, visão estereoscópica, agitação de imagens fílmicas sem densidade".(Jameson,l984)

Assim se configuraria, portanto, o "presente perpétuo" da era das novas tecnologias de comunicação. Em vez de passado/presente/futuro, coloca-se a diluição do passado num presente e a ausência de qualquer devir possível: só há um tempo, o da vivência do êxtase, da emoção, do entusiasmo, do impacto, do agora. É uma forma de trabalhar a cultura e os dados culturais, em que se investe tudo nessa fascinação do presente, na momentaneidade e no processo de cristalização do imediato. São os jogos de azar e vertigem que marcam essa nova relação do homem com o mundo e não mais o de competição e expressão, dentro da terminologia de Caillois.

Sente-se, portanto, que não se trata apenas da alteração de alguns componentes, da transformação de aspectos ou da superação de uma visão modernista do mundo em direção a algo que seja pura e simplesmente seu aprofundamento e sua transformação. Estamos diante de uma total superposição de outro universo, de novas coordenadas de espaço e tempo e de uma nova posição do homem dentro deste novo universo. Antes, ele dominava a máquina, ou então, via-se num conjunto em que ele e a máquina eram ao mesmo tempo produto e produtor. Hoje, a situação é distinta. Ele é parte, componente, peça de um sistema complexo, amplo, universal de alta sofisticação tecnológica mas não só como terminal, que concecta com outros indivíduos ou com a própria máquina. Ele é esta rede, tela perfurada através do qual tudo passa e nada o transforma.

Fora da rede, ele está isolado, fechado como em uma cápsula. É o que alguns autores chamam de "homem-bolha", conjunto de próteses e proteções que substituem as defesas biológicas naturais; complexo de assepsia total e eliminação de todos os germes, e, com isso, a eliminação do próprio caráter

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humano dos indivíduos. "O homem perde sua sombra, é iluminado e superexposto". (Baudrillard).

Resta ainda a indagação sobre os destinos das angústias, do tédio e da melancolia, que marcavam o caráter da modernidade, especialmente no seu período de crise (final do século XIX) na presente sociedade em que aqueles valores tendem a desaparecer. De forma bastante prematura, o Teatro do Absurdo já havia apontado as marcas da tragédia do homem moderno: o vazio, o isolamento, a solidão e o desespero.

Mas não só isso: o homem da nova era é indiferente, destrutivo, suicida. Indiferente porque nada mais o choca. A capacidade de se interessar pelo mundo externo declina com a perda de importância do outro e da realidade. Cínico em relação às estratégias e aos projetos de ação e intervenção, já que o declínio das ideologias e das utopias acabou com os projetos futuros, o sentido da ação política, a vontade de mudança.

A indiferença deve-se também à ameaça radical de destruição do planeta, associada à falência do social e do ontológico. Recolhido na sua própria interioridade, voltado às ocupações eletrônicas que se fecham num sistema computadorizado, sem mais a cidade, o espaço geográfico, o vizinho, mas principalmente sem mais a crença religiosa, a convicção política, os ideais sociais, o homem se sente, como nunca, radicalmente só e entregue a sua própria miséria.

Daí as emoções da era serem marcantemente emoções-limite, como o êxtase, o choque, a violência, a explosividade radical. Nietzsche falava no niilismo completo, de dois tipos de niilistas: os passivios, dirigidos pelo desespero de seus próprios instintos, e os suicidas, que preferiam o nada ao nada preferir.

A marca do momento é de posturas radicais extremas, totais e a crise das formas modernistas como a representação artística, o conceito de literatura, de política, de jornalismo, de cultura como um todo. Daí a impossibilidade de existir a melancolia, a angústia, a dor no sentido como se tinha na modernidade.

A nova era suprime os componentes da realidade filosófico-existencial, como se apaga um programa de computador, desaparecendo, inclusive, o universo em que tinha sentido a própria melancolia e angústia da época. O homem telemático não tem sequer o direito a essas sensações porque são categorias que já não fazem mais parte do seu mundo; só o tédio lhe resta como sensação de vazio existencial, tédio de tudo já ter sido visto, tédio de viver a vida como reprise interminável de sensações já sentidas, como espaço de onde não brota mais nenhum novo.

E o conceito de "novo" que ainda se retém na era tecnológica é o da modernidade. Tem-se racionalmente como verdadeiro o declínio da arte, da política, da filosofia mas não se abre mão de seus critérios de valor, de seus princípios de funcionamento, de suas noções de sentido. É isso que marca também a total perda de referências de milhares, milhões de homens na atualidade, que já não conseguem mais identifica-se com o mundo atual e, menos ainda, trabalhar com seus parâmetros. É o que mantém uma relação de assincronia no sentido de Bloch (V. para isso: Marcondes, l988, cap.1), que

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torna os homens destes tempos simultanea e anacronicamente inseridos em várias épocas históricas; pessoas com cabeças dos anos 60 circulando livremente e se chocando com frequência com outras dos anos 80 ou 90. Essas "trombadas cronológicas" indicam o quanto confuso e indecifrável para a maioria ainda é o presente. Mais do que indecifrável, é insuportável sentir que seu tempo desapareceu repentinamente e as novas regras excluem qualquer retorno ao período precedente. As modas retrô, como visto, atendem a esse grande contingente dos inconformados com a pura e simples eliminação do "molde" de suas culturas pela nova era e com sua colocação à margem, completamente expurgados do novo social que se implantou. Excluindo-se os componentes espirituais e existenciais da vida, a angústia e o sofrimento não têm mais a que se referir.

A angústia é componente do universo da modernidade. O homem da era tecnológica e informatizada já não encontra mais nenhum referencial para sua insatisfação além do tédio radical. Sequer a categoria da insatisfação ainda sobrevive. Os novos conceitos, extraídos da lógica da própria técnica (desarranjo, desajuste, obsolescência, quebra de funcionamento, colocação fora de uso, abandono, sucata) dão uma noção do novo caráter da crise existencial.

IV. CULTURA PASTICHE E VAZIA

1. Cultura do cinismo e da indiferença

Juergen Habermas descreve a realidade social como o jogo entre duas esferas que se relacionam mutuamente: o sistema e o mundo vivido (Lebenswelt). Este segundo é o que é produtor de sentido e espaço das possibilidades de ação; encerra a esfera da vida privada assim como a da opinião pública. É o armazém do trabalho interpretativo de gerações precedentes, do culturalmente transmitido e linguisticamente organizado. É onde a tradição faz contrapeso aos desacertos da comunicação.

O mundo vivido é o meio para a reprodução simbólica da vida assim como o horizonte formador de conceitos. No contacto com o "sistema" (todo estruturado segundo princípios funcionais de eficiência e desempenho), que submete a seus imperativos a forma de vida doméstica e autoregula-se a si próprio, o mundo vivido torna-se "colonizado". É aí que a reprodução simbólica entra em perigo, ocorrendo o empobrecimento da cultura prática comunicativa com a penetração da racionalidade no domínio da ação. A proposta do autor alemão, portanto, visualiza um conflito entre um sistema, enquanto organização, e um mundo que se comporta de forma relativamente imprevisível e que detém em si um componente "ativo" no processo social. Joga com elementos do passado para se afirmar no presente. Se ele é reprodução simbólica da vida, contém, por esse mesmo motivo, um componente de criatividade e de recuperação dos enquadramentos que o sistema busca continuamente lhe impor.

A questão, portanto, para Habermas, está na diluição do nó que se encontra no processo comunicativo, quando o mundo vivido submete-se ao sistema. Uma vez desfeito este nó, os sujeitos potencialmente capazes podem

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desenvolver novas formas de comunicação e superar as tendências restritivas e uniformizantes do social.

Habermas é um dos únicos autores da contemporaneidade que ainda prestigia a possibilidade de uma autonomia de indivíduos e de uma esfera de vida. Outras tendências teóricas vão no sentido de encarar cultura como uma totalidade e uma progressiva perda de significado e de importância dos indivíduos. É o caso, por exemplo de Fredric Jameson e de Eberardt Knoedler-Bunte.

Para o primeiro, a prodigiosa expansão do cultural por todo o reino do social dá-se de tal maneira, que tudo na nossa vida social, desde o valor econômico e o poder estatal até as práticas e a própria estrutura do psiquismo, tornaram-se "culturais". Para o segundo, ocorre na atualidade uma situação em que a fantástica expansão do social na política, nas empresas e na economia criou uma nova ordem social, que poderia chamar-se "sociedade cultural".

Uma sociedade cultural é uma realidade em que as diferentes esferas anteriormente autônomas (o econômico, o político, o social), mesclam-se num mesmo tipo de linguagem, a da cultura. Esta deixa de ser alguma coisa localizada no espaço acima do social para ser integrante da própria generalidade da vida em sociedade. Tudo é perpassado pelo componente "cultural", a cultura torna-se "matriz dominante de tudo", definindo bases inclusive das próprias identidades individuais.

E de que cultura trata-se na sociedade da técnica ? Num primeiro momento, da chamada "cultura do vazio". O pensamento filosófico, a reflexão sobre os fundamentos, as origens, os conceitos e as significações do agir, do real, do sujeito ou mesmo de uma totalidade parecem perder o sentido; instaura-se o "cansaço da teoria". Não se tem mais a mesma paciência para ouvir discursos filosóficos ou críticas densas de processos sociais ou individuais. O princípio da prática, da ação, do movimento, da participação sobrepõe-se ao da reflexão, do questionamento, da investigação dos princípios.

A ironia da cultura é marcada por componentes tais como o pastiche, a ridicularização, a nostalgia, o humor e a morte

Quem chamou atenção para o caráter pastiche de nossa cultura foi Jameson. Neste modo cultural, desaparece o sujeito, o estilo pessoal, privado, particular, que diferenciava um autor na multidão. As formas de cultura pastiche ridicularizam os maneirismos, os exageros, a excentricidade mas de forma distinta do paródico, já que não há mais a motivação oculta deste, seu impulso satírico, sua graça, nem o sentimento latente da norma atrás de si. Pastiche é um mimetismo de outros estilos, uma mistura de tendências sem lei ou princípio, que não têm necessariamente relação consigo mesmas.

Além do fim dos estilos pessoais, os da ridicularização dos maneirismos, faz parte do pastiche também a nostalgia. A cultura passa a e caracterizar-se pelo cultivo mórbido do que já passou. Não de trata só da ausência do componente histórico (visto no sub-item "História"); vive-se o passado por força da ausência geral e difusa de participação no presente, porque o momento presente, deslocando o referencial para o agir instrumental-operacional, destilou todos estes componentes da vida moderna de tal forma que a realidade perdeu muito de seu charme.

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A moda funciona como o modelo clássico desta circulação contínua de signos do passado. Ela é a própria ressurreição espectral de formas "que extrai frivolidade da morte e modernidade do déjà vu" (Baudrillard). É um tipo de carroussel do tempo em que os componentes, os estilos, as diferenças alternam-se de forma infinita recompondo-se em momentos distintos como caleidoscópios mas sem nenhuma inovação efetiva.

Também são flagrantes na literatura as consequências da cultura pastiche. É o tempo do artificialismo dos personagens, da dificuldade cada vez maior de escrever e, na televisão - no produto narrativo das telenovelas - da produção da "deformação cancerígena do relato" (Requena). A literatura perde seu eixo preciso e vaga por territórios indeterminados, oscilantes e flutuantes. Em um mundo em que destituiu-se o herói e sua função épica resta somente uma pulverização dos atos sociais, dos agentes numa indiferença absoluta do mundo, do real, das circunstâncias.

O comportamento das pessoas diante das novas formas culturais pós-iluministas é marcantemente de "indiferença". Há como que uma humorização geral e trabalha-se tudo sem se levar nada a sério. É a cultura da leveza, do light, do sentido cômico na política, na publicidade, na literatura, nas ciências humanas, em suma, a produção social de cultura acaba por incorporar um desprezo cínico que circula no social de forma ampla.

A "cultura do cinismo e da indiferença" é filha da era da chantagem e da ameaça de explosão do planeta. Após os incidentes históricos de 1945, a humanidade não mais voltou a ser a mesma; desapareceu a confiança no futuro e as perspectivas das massas, acirradas com a questão da Guerra Fria, tornaram-se ainda mais céticas.

O desaparecimento do ontológico, do histórico, do sentido que os homens davam à vida leva também a que qualquer violência na atualidade dispa-se do caráter "ideológico". Diferente das violências no passado (marcadas especialmente pelo traço claramente social, reivindicatório, de luta de classes) não mais se refere a projetos a ela externos, tornando-se, ao contrário, violência pura.

Baudrillard, interpretando os incidentes praticados pelos hooligans em competições esportivas, afirma que esta violência surge da tela, das imagens idênticas, da castração de todos os componentes explosivos dentro dos meios de comunicação. Seria produto da ausência de acontecimento, do vazio político e do silêncio da história. Se tudo isto está morto, o componente vivo que ainda soçobra neste território é o da violência pura em que espectadores agora invadem e tomam a cena. Passam a ser eles próprios o espetáculo de uma cultura veiculada pelos meios de comunicação que já é pura "cultura morta".

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Alguns monumentos da cultura morta podem ser visivelmente observáveis. Beaubourg é um dos casos sempre lembrados: reanimação artificial, "incinerador que absorve energia dos acontecimentos e os tritura" (Baudrillard). Mas cultura é também, além disso - e pelo que se expôs acima - sede insaciável de vivência contracenando com máquinas produzindo simulacros de experiência no campo da generalidade. No território de signos, que transitam livremente e em escala mundial, sobrevive, quase que por conta própria, um pulsar desesperado e incontrolável, assim como imprevisível e inadministrável, de um comportamento das massas.

2. Coletividade interativa

Outro conceito próximo é o da musealização do mundo. Os museus tornaram-se atração de massas e isto como decorrência da civilização técnica. Neles, o original deixa de ser o objeto a ser visto e a própria situação é que passa a encenar originalidade no observador. Se antes havia uma aura, que dotava a obra de arte de um brilho especial, hoje ela transferiu-se para toda a cena do museu, onde cultua-se exatamente aquilo que na vida cotidiana desapareceu, que é exatamente um conceito de vivência estética total.

A coletividade fascina-se por si mesma, a performance é o componente principal. Cada um sente-se si próprio componente do conjunto que assiste. Na era eletrônica investe-se no "espírito interativo" em que o indivíduo pode se transportar à cena e dentro dela viver, inclusive com as mesmas tensões, angústias e emoções dos personagens originais.

Uma marca clara, por exemplo, dos videogames - e que separa radicalmente a relação que hoje se tem com eles da que se tinha antes com a televisão, o cinema, a literatura, o teatro, a dança ou qualquer outra forma artística - é que neles as pessoas passam a "entrar nos jogos", a vivenciá-los, a estar ao lado dos heróis e a sofrer com eles os mesmos tipos de pressão, jogo emocional e angústia. O envolvimento é dentro da cena. Não se está mais numa posição cômoda e segura de quem apenas assiste, como nas formas clássicas de arte e comunicação em que, por mais força, emotividade e penetração que pudesse ter a representação, o espectador era sempre alguém que estava de um lado enquanto que os atores permaneciam do outro. A separação, apesar de não material, permanecia clara em todos os momentos. Aqui, o perigo está também no agir errado, inapropriado, indevido com a operação eletrônica. Um erro pode causar consequências e nisso o participante é responsável. Trata-se de uma mudança qualitativa excepcional.

3. O corpo e a morte

A culturalização geral da vida tem também seus desdobramentos nas formas de sexualidade, nas relações com o corpo e com a morte, pois a sociedade eletrônica, pela relação que cria com sistemas visuais, operacionais e interativos, trabalha essencialmente com o psiquismo. Se no chamado "mundo real" a sexualidade carregou-se de pânico - a chantagem com a aids, o desvio para práticas masturbatórias - na civilização eletrônica o princípio da abstratificação do sexo irá estender-se também para outras formas imateriais. Isso significa que as diferenciações sexuais tornam-se irrelevantes (inversão de

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estereótipos, sobreindexação artificial de signos distintivos para marcar o ocaso da diferenciação).

Esta indiferenciação, iniciada nas lutas de emancipação feminina, que buscavam a equiparação ao homem (ao comportamento masculino) foi radicalizada pela cultura eletrônica. Ao corpo sexualmente igualado soma-se o corpo fisicamente reduzido, um corpo que, como em Kafka, torna-se um objeto estranho ao homem, uma barata.

É uma tendência que foi originalmente apontada por MacLuhan, que via nos meios de comunicação formas de extensão dos membros e dos sentidos humanos. Hoje ela ganha importância na medida que os sistemas de comunicação funcionam como seus substitutos modernos, mais eficientes, chegam mais longe.

A "mentalização" absoluta dos processos sociais tem a ver com um desinvestimento do componente físico do corpo. Isso se chocaria, naturalmente, com a chamada "cultura do narcisismo", o sobreinvestimento exacerbado na cultura física e/ou estética. Mas, ao contrário, neste caso, os indivíduos passam a buscar a recuperação nostálgica e fictícia daquilo que foi culturalmente desinvestido.

Há perda de importância do corpo como espaço de sensações, trocas, toques, contacto, carícias - isto é, da "cultura para o outro' (para a vaidade, a inspiração sexual) - e sobreinvestimento nele como máquina, local de exercitação de "cultura" e transformação em máquina produtiva (equivalente de uma estrutura maquínica de funcionamento, rendimento, empenho). Corpo, como um prolongamento maquínico de um cérebro, reduzido a um componente de circuito eletrônico num processo de comunicação.

A exclusão do componente especificamente humano/animal do espírito da perfeição técnica elimina, da mesma forma, a consideração da iminência da morte. Só seres vivos morrem, vivenciam o processo genético de nascimento, crescimento, multiplicação, envelhecimento e morte; as máquinas e/ou a visão de mundo maquínica só pode ver homens como equipamentos, sistemas de ação orientados a fins socialmente relevantes.

Walter Benjamin dizia que há alguns séculos, na consciência de todos, a idéia de morte perdeu a onipresença e sua força plástica. A sociedade burguesa alcançou um efeito lateral: subtraiu de seus membros a visão do processo de morte.(Benjamin,1936,p.70)

Em 1936, quando Benjamin escreveu esse texto, a humanidade ainda não havia testemunhado a experiência da chantagem atômica. Se naquela época a idéia de morte havia perdido sua força e sua presença plástica e se os homens, a visão de seu processo, hoje ela tornou-se onipresente mas com outro tipo de "força plástica": o trágico é vivenciado por todos mas a morte foi denegada, age-se como se ela não existisse, entrou no terreno da trivialidade.

Quando a morte perde sua eficácia simbólica, seu efeito de choque, sua radicalidade sobre a vivência cotidiana, toda a cultura perde, ao mesmo tempo, o componente trágico (a seriedade). A banalização da morte evoca o comportamento irônico-humorístico, cínico, que se vê em todos os espaços outrora tidos como sérios (jornalismo, política, ciências).

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A recuperação do "ser para a morte"(Heidegger) ou a restituição do sentido trágico da experiência estão no plano do agir segundo um princípio de "continuidade no tempo". A civilização da técnica trabalha no sentido do empastelamento dessas noções. Viver o aqui e agora sobrepõe-se ao existir para um objetivo.

O humor pós-moderno tem a ver com uma atitude cínica em relação a esses mesmos fins; toma-se a crise da modernidade, do Iluminismo, da razão como crise de qualquer possibilidade de ação orientada a fins socialmente relevantes. A confusão estabeleceu-se porque derrubado o paradigma deste sentido da ação, acreditou-se que haviam terminado todos os sentidos possíveis, o que é o mesmo que a barbárie.

A barbárie contemporânea é mais desconfortante porque trabalha com situações, regras, comportamentos que transcendem os limites do conhecido e atuam num momento da pós-história. Enquanto não se tem os instrumentos e meios para se trabalhar esse novo, complexo, nebuloso enredamento de homens, instituições e idéias, tudo continuará a parecer um imenso amontoado paradoxal, indescritível e arrasador.

4. O processo econômico

As repercussões da nova forma de organização do social também fazem-se sentir no campo da economia. Componentes que outrora faziam parte de um quadro fixo, material, historicamente determinado das relações de produção entram hoje numa era de flutuações, oscilações livres, indeterminações, num quadro que poderia ser chamado de "orbitalização genérica".

Isso já pode ser sentido pelo componente "informação" no processo econômico. De uma participação relativamente discreta no início da expansão capitalista, ela ascendeu rapidamente a status cada vez mais decisivos no processo produtivo. A ela se associa o papel atribuído à inteligência.

No século XIX, a inteligência acoplava-se ao modo de produção, impondo uma "organização racional do trabalho", instituindo um processo de mensuração das operações necessárias à produção, criando uma equação de desempenho máximo e eliminando todos os resquícios de erros, imperfeições e retardamento que caracterizavam o componente humano nesse processo.

A partir do início do século XX, ela desloca-se do trabalho e passa a atuar diretamente sobre o produto e a imagem de empresa, através de mecanismos como publicidade, marketing e formas de "relações públicas". É o momento em que o capitalismo expande-se em escala mundial, é combatido pela criação de Estados socialistas e por um forte movimento operário internacional.

Apesar disso, sua expansão continua mais ou menos inalterada, atravessando guerras, chegando até o pós-guerra como uma organização que mesmo reduzindo a nada os componentes de um pensamento liberal, constituiu-se como forma econômica dominante, monopolista, cartelizada.

Uma terceira fase do uso da inteligência no processo produtivo reconhece-se agora após o declínio das concorrências no mercado

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internacional, a fixação e a consolidação de grandes e macroempresas multinacionais, que passam a investir na inteligência para se firmarem como instituições sociais equiparando-se e, em alguns casos, substituindo o próprio Estado e demais instituições de amplo alcance. A inteligência industrial abandona agora o produto, passando ao trabalho de constituição de imagens abstratas dos serviços públicos que executa. Estes passam a ser o "benefício social" de sua existência enquanto empresa para a obtenção de lucro, quando o Estado retira-se progressivamente de cena.

Trata-se de uma crescente volatização do objeto, no qual a inteligência investiu durante a expansão e consolidação do capital. Mesmo este, sofre um desdobramento mais ou menos similar, na medida em que também desacopla-se do processo produtivo e passa a funcionar como componente abstrato de toda a produção. É o momento em que desprende-se do trabalho, da produção, da geração pura e simples do lucro para tornar-se uma espécie de lógica ou ordem hegemônica, difusa sobre todo o sistema.

O processo é caracterizado por "circulação frenética", e os capitalis giram, proliferam, multiplicam-se apenas pelo fato de estarem circulando. (Baudrillard, 1986, p.18). Sobre nossas cabeças, capitais e demais componentes macro-sociais planetários escapam à nossa realidade. (idem). A economia como um todo torna-se orbital; a informação funciona como seu veículo preferencial. Ao lado disso, como já apontado, a própria cultura, que estava ancorada em processos sociais determinados, histórica e geograficamente situados, torna-se uma espécie de desdobramento social geral da estrutura do capital. Ela própria se torna seu "lado humanizado".

O investimento maior das empresas já não está mais na qualidade, na marca, muito menos na utilidade de suas próprias mercadorias, mas exatamente na construção da abstração pura. A imagem publicitária, a imagem formada através do trabalho de marketing, de relações públicas orienta-se para a constituição de núcleos genéricos e difusos em torno do nome de empresa. Tudo sugere que a própria produção, pelo fato de funcionar por si mesma, independente da necessidade de novos investimentos, abre mão do interesse principal do grande capital para investir no plano do imaginário puro. É a engenharia de imagens, estilos, representações que passam, estes sim, a serem produtos propriamente.

Mas o processo de volatização e de flutuação indeterminada não atinge somente o capital e a produção. O deslocamento do eixo de importância do homem para os sistemas técnicos tem seu reflexo também na própria estrutura da produção em que a robotização, a mecanização, a automação contribuem para que a estrutura industrial seja progressivamente assumida por organismos e equipamentos eletrônicos. É a máquina que funciona por si mesma. A metáfora aplica-se tanto à unidade produtiva propriamente dita como ao aparelho de Estado e demais instituições sociais.

Trabalhar nesta unidade industrial deixa de ser, do ponto de vista do trabalhador, uma relação de reciprocidade em que um produtor precisa contar com uma parcela de mão-de-obra para dar conta do produto e o trabalhador necessita do pagamento das horas-trabalho efetivamente gastas (salário) para sobreviver. Trabalhar e receber salário tornam-se componentes místicos do sistema, espécie de ingresso, senha, para poder mesmo "entrar no mundo" do

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consumo e das mercadorias. O trabalho na era da técnica torna-se uma concessão.

A trama que se cria na sociedade da técnica e da sofisticação eletrônica é tal que os elos que ligam indivíduos entre si passam a ser igualmente abstratos. Da mesma forma que não se tocam, não se sentem fisicamente, outros componentes do processos social de produção igualmente "espiritualizam-se". As operações financeiras são realizadas através de todo um conjunto de mecanismos abstratos e em geral puramente verbais; somas de dinheiro, trânsito, compra e venda de moedas, de bens financeiros executam-se plenamente e bem à distância. A moeda, que já havia perdido seu lastro material na equivalência ouro através do papel-moeda e depois mais ainda com o cheque, torna-se ainda mais abstrata nas operações com cartões de crédito eletrônicos e com transações em que o dinheiro praticamente não aparece. Apenas sua circulação é sentida. É um processo virtual exatamente porque de fato não existe mas demonstra seus efeitos.

Esse mecanismo alucinante de girar no vazio atravessa todos os componentes da economia. Os entrelaçamentos das grandes corporações, o funcionamento autônomo da máquina produtiva, as formas de propriedade pulverizadas ou emaranhadas em múltiplas organizações que se entrecruzam dentro de um mesmo conglomerado demonstram, por sua vez, que o esquema antigo e original de um capitalista ou de uma família proprietária de uma empresa desaparece através da volatização de todo o regime de propriedade. As empresas como as instituições sociais clássicas tornam-se espécies de "bens comuns" apesar do regime de propriedade dita privada.

O lucro sobrevive como condição inerente de todo o processo de produção mas dilui-se enquanto componente explosivo da relação capital-trabalho. Torna-se um fato "natural", discretamente disseminado em todos os sistemas produtivos como uma espécie de componente necessário de sua própria existência. O valor, que originalmente encontrava-se agregado à própria mercadoria e que era mensurável pelas horas-trabalho despendidas e pela qualidade da mão-de-obra necessária à sua produção, da mesma forma como já se sentia época do capitalismo concorrencial, desagrega-se dos componentes materiais.

Não haveria mesmo porque o processo produtivo manter-se preso a padrões materiais, a um enraizamento na cultura, na sociedade numa época em que as transformações sociais, a velocidade, a volatização, a abstratificação dos fatos através da informação revolucionaram radicalmente o quadro social. Também a economia torna-se muito mais estratosférica, virtual, imaginária, orbital, como uma espécie de sangue circulante num organismo planetário genérico e difuso, no qual os homens têm acesso indireto e periférico.

O sistema gira, o fundo econômico internacional distribui-se por diversas economias do planeta e seu gerenciamento significa nada mais do que a confirmação da própria ordem internacional de poderes e privilégios, que se eterniza através do sistema técnico-informacional da atualidade. Tudo funciona como uma regra de dependência e interrelações múltiplas em que todos estão necessariamente envolvidos.

O fato de algumas nações ascenderem e outras decaírem em sua posição dentro do sistema internacional não significa de forma alguma alteração

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importante no funcionamento desse sistema, mas um deslocamento, uma comutação de posições como as do jogo de xadrez que, em última análise, estão presas e submetidas a regras fixas e a limites espaciais determinados.

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Terceira PartePARA ONDE VAI O HOMEM

1. Teorias e estratégias

1.1. Corrente histórico-humanista, voluntarista

1.1.1. A esquerda hegeliana

É a corrente a mais diretamente herdeira do pensamento iluminista, cujo marco teórico está na filosofia idealista clássica, especialmente em Kant, Hegel e Marx. A lógica dominante é a da dialética, o valor básico funda-se no humanismo e a perspectiva estratégica centra-se no sujeito histórico, capaz de atuar sobre o socius e alterar a situação histórico-social dada na direção da construção da utopia terrena. A proximidade com o pensamento religioso não é casual. Em Hegel, a realização da história está na consecução do princípio da Idéia. Marx opera o que chamou da "inversão hegeliana", quando ao desvirar Hegel, que estaria de ponta-cabeça, passa a afirmar que não é das idéias que surgem os desenvolvimentos histórico-sociais mas estes, ao contrário, é que produzem as idéias e o social, ou seja, a superestrutura.

O traço religioso aparece ainda de outra forma, através das proposições históricas. A história aparece como "redenção", salvação de toda uma classe social oprimida e marginalizada, que vai encontrar seu paraíso na sociedade futura comunista. Os princípios filosóficos que orientam a ação e a ética deste tipo de visão de mundo são a alienação, a repressão, a dominação. O pensamento marxista desdobrou-se em duas vertentes principais que foram o materialismo dialético e o materialismo histórico. O primeiro, que encontrou sua experimentação e realização efetiva no plano da história soviética, estava muito mais voltado para a implantação de um Estado socialista e teve em Lênin seu representante mais importante. O segundo, em que a filiação em Hegel e à esquerda hegeliana é mais evidente, encontrou seu representante principal no jovem Lukács, que nos anos 20 desenvolve a oposição teórica à orientação socialista da ordotoxia soviética.

Em Georg Lukács reaparecem os princípios filosóficos desenvolvidos por Marx em sua fase jovem e os conceitos mais próximos aos Manuscritos econômicos e filosóficos. Dele irão se desenvolver os estudos teóricos mais fecundos da intelectualidade européia de lingua alemã da primeira metade do século, a chamada Teoria Crítica da Sociedade, que, de um lado influenciada pelo pensamento de Freud e, de outro, pelo pensamento hegeliano, vai compor aquilo que mais tarde caracterizaria a crítica ao Iluminismo e aos desdobramentos da técnica, como a repressão e a dominação especialmente no pós-guerra.

A época do pós-guerra foi marcante também para a "guinada" teórica do próprio Lukács, que passou a se alinhar de forma radical e ortodoxa ao pensamento stalinista, fato não acompanhado pelos seus originais seguidores.

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O pensamento marxista deste início da segunda metade do século teve como teóricos mais importantes, dentro da vertente humanista, além dos reminiscentes da Escola de Frankfurt, Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty e Henri Lefèbvre. Isso porque, a partir dos anos 50, na própria França iria se originar a ruptura dentro do pensamento teórico, inclusive entre os marxistas, dando origem ao pensamento estruturalista, que produziria seu próprio corpo de pensadores.

De qualquer forma, os descendentes de Lukács terminariam como os teóricos de Frankfurt, sem deixar herdeiros. A esquerda freudiana, que teve como principais representantes nos anos 20 Bernstein, Reich, Fromm e Bernfeld (cf. estudo detalhado em Marcondes, 1988b), e que teve como figuras proeminentes nos anos 40 e 50, da mesma forma, os teóricos de Frankfurt, resultaria nos anos 70 e 80, numa nova corrente, já despida dos vícios da psicanálise da cultura e do consumo, ingênua ou incapaz para dar conta dos desdobramentos do capitalismo avançado de pós-guerra. Essa corrente é hoje liderada por Alfred Lorenzer. É ele que vai dividir nos anos 80 com Jacques Lacan a proeminência no cenário internacional da psicanálise de esquerda. Se a contemporaneidade tem dois seguidores fundamentais do pensamento de Freud, que souberam avançar e atualizar sua teoria, estes são Lorenzer e Lacan. Ao grupo de Lorenzer pertencem também Helmut Dahmer e Klaus Horn.

Em relação aos representantes da Teoria Crítica, seu desenvolvimento iniciou-se a partir dos anos 30 na República de Weimar. Depois do exílio nos Estados Unidos e, mais tarde, de volta à Alemanha, seu pensamento concentrou-se na sociedade de pós-guerra e na expansão fantástica dos meios de comunicação e nas formas sofisticadas de repressão e domínio. A Teoria Crítica passou a trabalhar em profundidade conceitos como repressão, totalitarismo e mundo administrado. Desenvolveu estudos sobre a sociedade de consumo, as formas de manipulação e consciência manipulada. Criticou o posicionamento, na opinião de seus teóricos, submisso de toda uma grande faixa de classe média, que assumiria uma postura de "consciência feliz" dentro de sua ignorada infelicidade nas malhas de um sistema de dominação injusto e frustrante.

No que diz respeito aos meios de comunicação, desenvolveram mais densa e amplamente a reflexão e a teorização sobre os novos processos de industrialização do bem cultural e de reificação da cultura, em que os objetos do homem passaram a se tornar seus senhores. Foram os primeiros a questionar, mesmo antes do desenvolvimento do estruturalismo, as possibilidades de um ego forte, como pretendia a psicologia do ego, especialmente de Karen Horney nos Estados Unidos, como sendo uma ilusão conciliatória do homem com o meio hostil.

A rejeição ao desenvolvimento da técnica e seus desdobramentos como formas de opressão e de desconhecimento do homem enquanto tal seria realizada por Herbert Marcuse de forma radical. Se Adorno e Horkheimer haviam desenvolvido as teses mais contundentes da teoria crítica dos anos 40 e 50, é no final dos anos 60 que a efervescência estudantil e política nas sociedades capitalistas mais avançadas destacariam a figura de Marcuse, especialmente em território norte-americano.

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Na Alemanha desponta também nessa época e pela primeira vez, o nome de Juergen Habermas, tido como um fruto tardio desta mesma escola e cujo desenvolvimento da fase madura correspondeu a uma ruptura com a tradição clássica desta mesma escola.

Há que se considerar também, antes de se fazer um comentário mais intensivo da obra de Habermas, outra corrente alemã moderna - que teve sua produção marcada especialmente nos anos 70 e 80 em Berlim junto à revista Aesthetik und Kommunikation e cuja posição teórica rompe com o pensamento clássico de Frankfurt e de seus seguidores mais modernos, especialmente Oskar Negt, Alexander Kluge e Dieter Prokop - a saber, o grupo em torno de Eberhardt Knoedler-Bunte (já mencionado na Segunda Parte, "Coletividade interativa") cuja visão tende a uma nova captação do social como um processo que transcende um campo específico da realidade para se tornar uma dimensão que cobre e alinhava todas as demais definições do social. O conceito de sociedade cultural é a ruptura com os conceitos tornados clássicos pela Teoria Crítica, como indústria cultural, indústria da consciência (Hans Magnus Enzensberger).

Mais ainda, esse grupo passa a refletir radicalmente as possibilidades individuais e coletivas numa realidade que passou a ter que conviver com a chantagem nuclear. Esta variável, de forma nenhuma secundária ou descartável, não estava presente nos teóricos de Frankfurt e não aparece com destaque na teoria de Habermas.

1.1.2. A teoria de Juergen Habermas

A proposta formulada pelo autor alemão, apresentada de forma muito resumida, significaria a recuperação da razão onde ela desviou seu desenvolvimento e a retomada da comunicação, ou seja, da fala, eliminando as barreiras que a impedem de se expandir plenamente. Para Habermas, a razão é um conceito que não está inutilizado do ponto de vista histórico e estratégico; deve-se encontrar uma maneira de melhor distribuí-la. Para isso é preciso que se repense as formas de uso da razão e as possibilidades de manifestação dos sujeitos na sociedade. Esse processo supõe uma nova estratégia que já não tem mais nada a ver com a filosofia da consciência - ou seja, a teleologia clássica cujos representantes principais eram Lukács e Adorno - tampouco com a filosofia do sujeito autoconsciente de Marx, que havia chegado a uma aporia.

Para Habermas, a saída do dilema encontra-se na mudança do paradigma filosofico hegeliano clássico para o linguístico, o da ação comunicativa e do mundo vivido, articulado como sistema. A nova proposta epistemológica baseia-se em dois clássicos da sociologia não-marxista: Émile Durkheim e G.H. Mead.

De Durkheim, Habermas extrai dois componentes fundamentais. O primeiro é o fato de que a integração social deve ser vista com o algo necessariamente associado à integração sistêmica. Não existe uma percepção de mundo subjetivo, próximo, marcado pelas relações sociais diretas e palpáveis, sem a vinculação deste com um processo maior, despersonalizado, impessoal. Em segundo lugar, de Durkheim Habermas extrai também a

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concepção de força do mundo sagrado. É deste mundo que se origina a autoridade moral das normas sociais. Por derivação, o autor alemão irá buscar exatamente aí uma espécie de "reserva cultural e tradicional dos indivíduos", que poderia torná-los capaz de fazer frente a uma imposição racionalizante e massificante de um sistema anônimo.

De G. H. Mead, Habermas vai obter a estratégia comunicativa. É dele a idéia de que o discurso garante o processo de individuação. No processo comunicativo é que se instaura a possibilidade de espaços recíprocos de auto-reprodução e de empatia. Uma comunidade ideal de comunicação é aquela onde há identidade de indivíduos no universal e no particular. A comunicação, portanto, pode funcionar, segundo ele, como uma espécie de ligação, mediação entre os interesses e as possibilidades individuais e sua realização no plano macro-social.

Está nestes dois autores, portanto, a fonte para a construção de uma nova postura teórica, segundo ele, mais adaptada aos tempos atuais e que trabalha pela reconstituição de algo que ficou perdido no desenvolvimento da razão.

Indo mais a fundo nas intenções de comunicação, Habermas interessa-se por lingüistas norte-americanos, em especial, Austin e Searle, e pela teoria dos atos da fala, que irá servir de suporte aos seus próprios projetos de comunicação. Esta teoria assinala que a fala é marcada por dois componentes básicos, o conteúdo proposicional e a força ilocucionária.

A teoria argumentativa de Habermas tem dois planos distintos. Um, o da racionalidade comunicativa e outro, o dos próprios princípios da argumentação. A primeira refere-se a uma força racional-comunicativa vinculante, que advém de atos ilocucionários em virtude de um sistema de conexões com razões e na possibilidade de um reconhecimento intersubjetivo, baseado na convicção racional e não na força. Diz ele, que a dissolução do núcleo arcaico-normativo dá lugar a uma imagem de mundo, à universalização do direito e da moral e à aceleração dos processos de individuação.

É possível através disso, portanto, que os indivíduos ainda se constituam como sujeitos. Para isso, é preciso que reconquistem a dimensão da comunicação, obtível por este conhecimento intersubjetivo de que fala o autor, a partir de um processo de entendimento mútuo em que os interlocutores reconheçam-se como indivíduos válidos e dignos da consecução do próprio projeto.

Habermas é iluminista na medida em que vê o desmoronamento dos processos sagrados, sua "deslinguistização", como um mecanismo capaz de tornar os indivíduos, a partir daí, autônomos, e, por este meio, conquistarem um espaço de relevância no social. Sua teoria da argumentação é marcada por quatro requisitos de validade na linguagem e pelos objetivos que se deve considerar para o atingimento desses fins:

A inteligibilidade (compreensão), definida como o conhecimento prévio anterior que os interlocutores devem possuir para obter entendimento; a verdade, ou a aceitação da validade do regime de verdade do sistema sócio-cultural; a autenticidade, apresentada como a questão das "intenções dos atores", que devem coincidir com o que eles "realmente pensam". Aqui situa-se

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o problema ético da sinceridade e da retidão. Não há regras universais e os componentes do acordo são puramente convencionais.

Por fim, a justiça, que trata da correção do ato da fala em relação ao contexto normativo. Os atores, neste caso, devem ter elementos para poder avaliar, discernir entre normal e patológico, real e imaginário, ser e aparência.

Em todos esses princípios, a estragégia do autor, que representa a resposta alemã às exigências de uma ação dentro de uma sociedade caracterizada por influências radicais e altamente transformadoras das novas tecnologias de comunicação, está marcada pela esperança de um reeguimento da razão. Em algum ponto, o desenvolvimento da racionalidade desviou-se do caminho e tendeu à racionalidade com vista a fins (Zweckrationalitaet, de Weber), e ao desencanto universal.

É preciso, segundo Habermas, recuperar a razão e isto se daria através do entendimento entre os homens. É a estratégia de bom senso, em que os agentes voltariam a repensar seus planos e projetos a partir de uma postura representada pela dotação de autonomia e capacidade de intervenção de homens historicamente localizados.

1.2. Corrente estruturalista

Originária da França de meados dos anos 50, a corrente estruturalista aparece como uma reação à visão humanista e voluntarista da história e dos processos sociais. Tenta corrigir a interpretação do mundo até então marcada pelo forte investimento no sujeito. Contrariamente, desloca o sujeito a um plano secundário e torna as estruturas o centro de referência das análises e interpretações. Instala a imperiosidade dessas mesmas estruturas e, segundo seu princípio, importa saber como a máquina, o mecanismo funciona.

As corrente historicista tinha caráter genético, interpretava os fatos a partir de seu desenvolvimento e transformação, tomando por base uma postura evolucionista de inspiração dialética. Aqui, ao contrário, não vêm mais ao caso as determinações de natureza nem importam as projeções futuras mas apenas os componentes fixos, como eles são e estão.

O estruturalismo tem origem na França e assinala uma ruptura no desenvolvimento intelectual, antes fortemente marcado pela tradição hegeliana ( o responsável pela disseminação de Hegel na França havia sido Kojève, que na década de 30 passou seus conhecimentos a alunos como Klossowski, Bataille, Lacan, além de um significativo grupo de intelectuais de esquerda). Inicia-se com o ingresso de Claude Lévi-Strauss no College de France e, posteriormente, com a criação da revista Tel Quel, e seu desdobramento literário no Nouveau Roman de Alain Robbe-Grillet. Principais figuras dessa orientação teórica foram o próprio Lévi-Strauss, Rolan Barthes, Michel Foucault, o primeiro Jean Baudrillard, Louis Althusser e, de certa forma, Jacques Lacan.

Se conforme os princípios literártios do Nouveau Roman, os objetos passavam a adquirir status de autonomia, o sujeito da ação desaparecia, operava-se uma recusa da continuidade cronológica clássica e descartava-se a metáfora antropológica, na psicanálise lacaniana, o homem deixava de ser o próprio centro, não organizava seu destino, que, ao contrário, era já traçado de

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antemão pelo Outro: o lugar organizado como teia estruturante do sujeito. Constituindo-se como sujeito dividido, o homem experimenta uma "perda essencial de si mesmo", cria uma máscara, passa a ser representado, traduzido em termos linguísticos.

Lacan separa na história individual do infans um momento marcado pelo domínio do imaginário e outro, em que o infans acede ao mundo social dado através da linguagem, portanto, no território do simbólico. A partir daí, torna-se um sujeito "clivado", já que assume uma natureza que é dada externamente pelo Outro e guarda a instância do imaginário como um território perdido.

As estratégias políticas e teóricas de filiação lacaniana investem no simbólico ou no imaginário. No primeiro, a figura mais conhecida do pensamento político é Louis Althusser, que tenta fazer uma fusão entre marxismo e psicanálise e colocar em prática seu projeto através de uma releitura d'O Capital, de Marx. Sua interpretação supõe a exclusão de todos os componentes historicistas que até então haviam composto a interpretação marxista européia, apresentando uma leitura interna do texto de Marx, de forma a justificar que este, na idade madura, não era mais hegeliano e havia mesmo rompido com Hegel, passando a analisar, a partir de então, nos moldes estruturalistas.

Sua veemência maior está em deslocar a posição clássica do sujeito no marxismo; para ele, os homens não fazem a história, isto é, a história não é feita por homens singularmente situados mas por classes sociais ou, mais precisamente, pelas próprias "relações de produção". Seria ingênuo, dizia ele, acreditar que pelo trabalho de homens, através de sua força conjunta organizada e consciente, se pudesse revolver ou transformar a história.

O erro de Althusser, entretanto, estaria na inexorabilidade da sociedade sem classes como desdobramento necessário da própria sociedade capitalista. Contra o fatalismo historicista de Lukács, que dizia que a sociedade de classes estava grávida de sua própria superação na sociedade sem classes, Althusser contraargumentava a implantação de uma sociedade socialista como uma estrutura que se sobrepunha à do capital.

Outra derivação do pensamento lacaniano, agora através da exploração do imaginário, é de Félix Guattari e Gilles Deleuze, que tentam reencontrar a natureza humana através da investigação da condição psíquica pré-simbólica, isto é, do estágio do homem ainda não ocupado pelo discurso social e genérico. Esta fase é apreensível através do discurso do psicótico, cuja manifestação seria o puro inconsciente. O esquizofrênico, como um caso clínico de regressão à fase pré-simbólica, permitiria o pleno afloramento deste campo até hoje tão desconhecido e supreendente do imaginário.

Mais genuinamente político dentro da escola lacaniana é Cornelius Castoriadis, que através da sua Instituição imaginária da sociedade propõe, superando os vícios e as formas ultrapassadas do marxismo clássico, uma releitura do social e do sujeito nele inserido. Para ele, a categoria fundamental desse próprio sujeito é a da autonomia. Através dela, "meu discurso deve tomar o lugar do discurso do Outro", ou seja, deste discurso estranho que está em mim e que me domina". (Castoriadis, 1975,p.124)

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Trata-se de dar condições ao homem para sobrepor-se ao discurso social e genérico ou a este "lugar estruturado como teia", para não se deixar dominar pelos fantasmas. Sobrevive, portanto, na estratégia estruturalista, especialmente nestes que acreditam no investimento no imaginário, a possibilidade de que homens concretos possam superar o conjunto maior apesar da força e da determinação deste sobre suas vidas.

1.3. Corrente pós-moderna

Embora derivado essencialmente do estruturalismo, o pós-modernismo rompe também com esse modelo. Não há mais sujeito que se autonomize mas a crença num homem enfraquecido, ainda que em alguns autores, passível de uma identidade.

O modelo mais sintético desta visão de mundo está na Sociedade Frankenstein, já exposto no início da Segunda Parte (3º paradigma de Lucien Sfez) e no item "Teoria em ruinas: Nova teoria da comunicação".

Há aqui tanto os estusiastas (norte-americanos) das novas tecnologias de comunicação e informação, dos computadores, da inteligência artificial, da capacidade de máquinas ocuparem o lugar de homens, como os críticos (em geral, europeus) da supremacia técnica.

O "novo homem" é um tipo plenamente integrado à máquina. O exemplo mais esclarecedor está na cultura dos hackers nos Estados Unidos, os programadores cuja vida toda é orientada conforme a centralidade no computador. Cultura, filosofia, literatura, mundo de vida próprios os mantêm apartados do resto da sociedade mas ligados visceralmente à máquina.

A Sociedade Frankenstein é marcada pelo investimento no superficial, na crença no imprevisível, no indeterminado. Instala-se a perda das referências filosóficas clássicas - datada da modernidade - na filosofia, na arte, na política, na história, nas ciências humanas, ficando em seu lugar uma precedência da técnica, um uso instrumental da ciência, o domínio amplo e genericamente abrangente dos meios de comunicação, que passam a recontar e a reordenar a história, a política e a cultura. Como já mencionado, o sujeito se fractaliza e o comportamento é cínico, indiferente, autocentrado. As fontes principais são Nietzsche, Heidegger e Weber.

As estratégias deste terceiro tipo de paradigma são diferentes de autor para autor. Jean Baudrillard propõe a ressurreição do princípio do Mal (a ordem existe para ser desobedecida), a crença no gênio maligno das massas, dos objetos, da paixão. Para ele, toda estrutura que exorcisa sua negatividade corre o riso de reversão total; é no Mal que está a vida.

A concepção de Mal aqui tem caráter difuso, genérico e destituído de conotação negativo-moral que geralmente lhe é atribuída. Por exemplo, a sedução. Esta investe contra o terror e a violência da interpretação, que marcaram não somente o princípio e as primeiras manifestações teórico-filosóficas do Iluminismo mas em particular a psicanálise a as ciências sociais contemportâneas. Tratava-se de fazer uma leitura do psíquico ou do social, conforme o caso, enquadrando-os dentro de uma lei maior, que dava ou não

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autoridade ao fato estudado, na medida em que correspondesse a este princípio da lei maior.

Em oposição a isso, a estratégia da sedução aponta que a jogada verdadeira está no domínio das aparências; não há o campo das profundidades, não há o jogo entre uma aparência falsa e enganosa e uma essência que estaria em seu fundo, obscura, desonhecida. Não há a estratégia do desvelamento. É na aparência, ao contrário, que as coisas se dão e é só ela que contém as leis desses mesmos fatos. É o espaço do jogo, das cartadas, da paixão pelo desvio. (Ver, com mais detalhes, em: 3. Os conceitos da Era Frankenstein, 2. Superfície).

Através deste procedimento, Baudrillard procura destituir de qualquer validade as tentativas de homens, classes, agrupamentos, nações, de controlar, de administrar os fatos, de tentar subordiná-los a visões de mundo, em suma, de a razão sobrepor-se aos fatos legitimando-os ou não conforme seus princípios. Ao contrário, os fatos em si ocorrem independente do desejo dos homens e têm dinâmica própria e incontrolável. São realizadores das "estratégias irônicas", não se subordinando às aspirações controladoras da razão e rindo-se de qualquer investida da dominação racional. São as massas, o objeto, a paixão.

As massas realizam, de forma mais ou menos espontânea, sem direção ou programação externa, o humor silencioso, ludibriando as estatísticas, não desejando, delegando o exercício do poder, exercendo assim uma soberania passiva, opaca. Apesar dos políticos, dos meios de comunicação, dos estudos "científicos" de seu comportamento, elas mantêm-se incaptáveis, improgramáveis, imprevisíveis e por isso soberanas.

Também o objeto, que os homens tentam apropriar e submeter às suas leis, exerce, segundo ele, também uma estratégia irônica, e se comporta independentemente em relação àquilo que lhe queiram imputar. Reage, rebela-se, nega o homem e afirma-se enquanto autonomia cínica aos investimentos do aprisionamento e da domenticação.

O saber científico não passa de uma construção fictícia e o homem investe seu objeto exatamente daquilo que ele lá quer ver. Imune a isso, o objeto trapaceia, vinga-se, "faz o jogo" do pesquisador, impondo no silêncio de sua superioridade, a sua vontade.

A paixão está, como a sedução, no extremo oposto da pornografia e do erótico. Enquanto num só há o obsceno, o desvendamento frio, absoluto, o congelamento e a morte do sexo, no outro há a surpresa, o inefável, o inesperado, a ruptura da viciosidade e do esvaziado.

Jean-François Lyotard, que primeiro sintetizou, difundiu e tornou moeda corrente universal a "condição pós-moderna", retoma, na obra seguinte, L'Inhumain, positivamente os destinos da modernidade. Se pós-modernidade havia sido o desmoronamento dos metarrelatos, o fim da possibilidade de uma ciência marcada ou legitimada por um discurso filosófico e político maior, cabe agora nesta obra, segundo ele, repensar as condições da própria modernidade.

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Pós-moderna aqui torna-se a reescrita das características reinvindicadas pela modernidade; não rompe com ela, já que é seu "fruto tardio". Nessa reescrita, exclui-se a pretensão de basear a legitimidade da ciência e da técnica no projeto de emancipação da humanidade. Para ele, há uma continuidade possível da modernidade através da "perlaboração" (Durcharbeiten), que é um trabalho sem fim e sem vontade. Não se está aqui sendo guiado por um conceito de meta; não obstante, sua perlaboração não deixa de ter finalidade. (Lyotard, l988,p.39). Ele coloca-se aqui naturalmente também contra a posição de Gianni Vattimo, que fundamenta a pós-modernidade dentro da postura nietzschena, como algo genuinamente distinto, ou seja, não como superação da modernidade já que "superação" era uma categoria da extinta modernidade.

O projeto moderno, diz ele, diferente do mito, não funda sua legitimidade no passado mas no futuro. Não se trata de projetar a emancipação humana mas de projetar o futuro como tal. O que se tem aqui, assim, é uma recusa às propostas finalistas e humanistas que estavam embutidas no conceito de modernidade. Não há mais uma utopia a se atingir mas, mesmo assim, há um trabalho a se realizar com vistas a um futuro. Desaparece o apoio no passado, a força sustentadora dos pensamentos de outras épocas. A noção de projeto, associada a um fim histórico determinado, é deixada de lado em defesa de uma noção de "programação".

Não obstante, outra corrente ganha cada vez mais corpo nas ciências do homem. Derivada diretamente dos centros de pesquisa mais avançados em "inteligência artificial" nos EUA, seus teóricos espelham fielmente os pressupostos de uma Sociedade Frankenstein em que as máquinas, por fim, substituirão o homem em tudo, inclusivwe no pensar e no agir. Os robôs, cada dia mais sofisticados, comporiam, segundo eles, uma geração de super-máquinas, cuja perfeição se sobreporia aos humanos.

Contra esses "novos filósofos" argumenta Lucien Sfez com base no bom senso e no senso comum. Para ele, não se pode acreditar nem seguir as propostas futuristas dos teóricos da inteligência artificial - cuja intenção de programar o homem é fazer com que todas as atividades humanas tornem-se passos, estágios de um processamento eletrônico-cibernético -, pois jamais darào certo, exatamente por não considerar dois componentes absolutamernte humanos nas ações e nas decisões, o bom senso e o senso comum.

É pelo bom senso que os indivíduos sabem selecionar no que é oferecido aquilo que lhes pode servir e deixar o resto às fantasias dos sábios, intelectuais e poderosos. A aliança homem-máquina-homem, mesmo momentânea e servindo ao bem-estar atual, pode muito bem ser denunciada enquanto tal.

Por outro lado, é o senso comum que desafia as decisiões desses mesmos sábios. É aquele "não bem escandido" que está exatamente nos campos que fogem às programações, previsões e controles. A conversação ordinária, por exemplo, é o que põe obstáculo à linguagem artificial; é no exercício da língua e da fala que é possível a rejeição desse universo. Junto com a lingua falada e as instituições há o espaço para a interpretação como territórios em que se pratica o exercício da recusa pura e simples da submissão.

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Apesar da aparente semelhança, não há aqui nenhuma proximidade com a proposta da primeira estratégia, a habermasiana, de constituição de uma teoria do agir comunicativo. Lá buscava-se a restituição de um discurso racional por homens que se respeitassem como sujeitos, buscando pelo consenso formas comunicacionais contra a imperiosidade abstrata e burocrática do sistema. Aqui não há qualquer alusão à restituição da esfera pública, da racionalidade perdida, muito menos do projeto de modernidade. A lingua falada é a expressão mais viva da incontrolabilidade e da impossibilidade de transformação do homem em máquina ou da dominação da linguagem humana pela máquina.

As instituições, elas também, marcam, na maneira como compreende Sfez, pontos de insubmissão dos indivíduos a esquemas de maquinização. Mas é na interpretação (entendida de forma muito peculiar) que o autor expõe mais nitidamente o campo desta rejeição pura. Por ela, o texto, diferente das formas clássicas de hermenêutica já criticadas anteriormente, já não vem mais em primeiro lugar, seguido de comentários, que o explicam até esgotá-lo. Não é um texto com referência interna e imóvel como uma torre de marfim mas interpretar é aqui um trabalho com renovação e repetição, retomada e retorno num mesmo movimento.

Através da interpretação, o autor tenta resgatar a idéia do movimento sobre a cristalização, do vivo sobre o morto. Sfez critica Simon, da escola tautológica da Inteligência Artificial, por confundir símbolo com signo. Para este, ambos não passariam apenas de diferentes graus da mesma coisa. Contrariamente, Sfez argumenta que entre símbolo e signo há uma distância infinita, que é a mesma que separa regra de regulamento, dizer do dito e lei do contrato. Desaparecendo a distância, mergulhamos no mundo unidimensional. (Sfez, 1988,p.352-3).

Ora, o símbolo - categoria menosprezada pelos "novos filósofos" - não é apenas duplicação do signos mas uma "reserva", através da qual o signo faz sentido; é a função simbólica o que assegura coesão a um mundo comum.

Nas formas cada vez renovadas de acesso ao texto, exatamente também como negação da submissão à imagem, já que esta não remete a conceitos, vamos ver as possibilidades de uma contínua expansão e dilatação daquilo que é sistematicamente comprimido na sociedade da técnica.

O retorno da palavra, da reflexão, do exercício intelectual coloca-se como estratégia viável para se fazer frente a uma sociedade que já liquidou o Iluminismo e ameaça com a destruição plena da razão através do império absoluto e totalitário das imagens.

2.O oráculo de Freud

No volume Neue Folge der Vorlesungen zur Einfuehrung in die Psychoanalyse (Nova série de lições sobre a Psicanálise), Sigmund Freud reúne entre os ensaios apresentados, um intitulado "A dilaceração da personalidade psíquica", datado do início dos anos 30. O ensaio termina com uma frase que se tornou posteriormente objeto de especulações teóricas entre intelectuais, visando interpretar o que Freud realmente havia dito. A frase no original é: "Who Es war, soll Ich werden"(Onde era o id, lá devo vir-a-ser).

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O contexto em que faz a afirmação é o da prática psico-terapêutica, cuja intenção é, segundo ele, reforçar o ego, torná-lo independente do superego e ampliar seu campo de percepção e, assim, aumentar sua organização de tal forma que possa apropriar-se de uma nova parte do id. Está claro, portanto, que se trata de um projeto cultural baseado no primado da razão (do eu racional). Esta deve estender seu território, domesticando ainda mais elementos do campo livre indomesticado, "puro", dando ao homem condições de ter mais controle sobre suas práticas irracionais, imprevisíveis e perigosas. A razão deve tornar-se senhora da natureza bruta.

Aqui encontramos um Freud iluminista, que busca o domínio das forças cegas, a colocação do místico sob controle e a liquidação do anticientífico. Trata-se de domar o lado animal e submetê-lo à lógica do racional. Na linguagem de Platão, é o cavalo branco que passa a dominar o negro. De qualquer forma, tornar o ego independente do superego é o projeto da psicanálise que quer se livrar dos tradicionais fantasmas que incomodavam a mente dos homens, principalmente no final do século passado e no começo deste, em que a moral, a tradição, os valores conservadores sobrepunham-se incondicionalmente à vontade individual das pessoas. Caberia então à psicanalise fazer desabrochar um homem liberado de todos estes "senhores " que o escravizavam.

Na década seguinte, Theodor W. Adorno já via a frase com suspeita. Dizia ele, que o mandamento continha algo de estoicamente vazio e inevidente: "O indivíduo preso à realidade, são, é tão pouco imune às crises como é, no econômico, aquele que troca seus negócios racionalmente. A consequência socialmente racional torna-se também individualmente irracional".(Adorno, 1955).

O contexto em que Adorno faz a crítica a Freud é o do ataque à psicologia do ego, especialmente definida por Karen Horney, que nos Estados Unidos obteve grande sucesso em sua intenção de construir um ego forte, cuja pretensão seria a de se sentir aliviado e não dominado pelas correntes sociais. Dava uma ilusão de soberania numa sociedade que o status da massa tendia cada vez mais a ser característica do homem moderno.

A interpretação dada por Jacques Lacan seguiria um caminho distinto: "ali onde se estava, ali, como sujeito, devo vir-a-ser". O id aqui poderia ser substituído por um genérico Outro lacaniano e a categoria do eu tornava-se um atributo do sujeito, o qual o eu deve almejar. Em Lacan, além de eu (je) existe a categoria do "moi" que supõe um estágio ou uma situação de identidade controlada, dominada e negada pela onipresença do Outro.

Cornelius Castoriadis tenta atualizar e recuperar a leitura lacaniana da frase de Freud, dizendo que o ego, a consciência e a vontade devem tomar o lugar das forças obscuras que em cada um dominam, agem e o fazem atuar. Consciência e vontade representam, para o autor grego, uma tentativa de "resgatar" o Lacan do (mal-) entendido estruturalista, recolocando-o dentro do hegelianismo das metas e dos fins. É a capacitação do sujeito pela consciência e pela intenção a superar o poder de uma totalidade sobre ele. Desaparece, aqui a idéia de que existe um mundo administrado, uma indústria cultural que se sobrepõe aos indivíduos isoladamente tornando-os massa. Diferentemente,

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existe um "moi" que ainda não despontou para a a possibilidade de sua transposição à categoria de um sujeito.

Segundo a leitura de Peter Sloterdijk, Heidegger reinventaria a frase como: "Wo Man war, soll Eigentlichkeit werden", substituindo a palavra Es (o id) pelo termo Man, que significa em Heidegger o tipo marcado pelo ego fraco, fútil, vazio do homem-massa. Eigentlichkeit significaria, ao contrário, a possibilidade de realização do Dasein, do sujeito que transcende estas limitações, esta "pequenês" do homem moderno. Corresponde para ele àquela circunstância que exigimos quando construímos nossa existência (Dasein) num contínuo de consciência.

A leitura de Sloterdijk remete novamente à possibilidade de um ego, de uma consciência, de uma vontade, como Castoriadis, só que aqui trata-se de trancender uma situação de submissão em que a máquina ocupa o lugar do homem. O elemento opressor, muda de figura e de caráter, assim como altera-se a própria ordem da frase. Desaparece a categoria do Es, a instância não-civilizada de cada um, e entra em cena a categoria de Man, o lado público, a mediocridade, o caráter médio e massa dos indivíduos.

Finalmente, a discussão é novamente levantada, apesar de não ser citada a frase, por Sherry Turkle no seu livro O segundo eu (1984). Lá ela discute a contraposição entre homem e máquina como uma atualização da mesma questão colocada por Freud, de onde havia o id, lá o ego deve avançar mais (pág.265). Aqui, discutem-se as teorias da inteligência artifical e questiona-se o estatuto da razão, na medida em que o investimento progressivo e cada vez mais maciço neste campo chegou à produção destas máquinas-homens, que seriam assim a quintessência da razão, o iluminismo em sua aberração trágica. Mais trágica ainda porque a razão escapa ao domínio e à esfera do homem e é incorporada pela máquina.

O que sobraria do homem, portanto, na idade tecnológica? Se não pode concorrer, em termos de racionalidade, com a máquina e os sistemas técnicos, pois estes já demonstraram ser mais completos e insuperáveis, e sua tendência, a de dominar cada vez mais esses campos, à razão humana não resta outra saída senão conformar-se com seu status de inferioridade limitada e provisoriedade. Não é por aí, naturalmente, que a contenda será ganha.

O caminho da reabilitação humana, sem dúvida, não é este, "sob o signo da razão", visto que esta já desloca-se para outro campo, não-humano. O homem só pode diferenciar-se da máquina, manter sua autonomia, sua identidade, sua diferença em relação ao componente técnico possuindo exatamente todos os atributos que a máquina nunca poderá ter, ou seja, a alma e o espírito. A máquina jamais poderá sentir dor, chorar, sofrer, apaixonar-se, ter reações emocionais, espirituais, inesperadas, mesmo cínicas, irônicas, pois são fatos que em tempo algum poderão ser representados, codificados, programados, traduzido para uma linguagem técnica dos computadores.

Ir em busca do homem é reverter ou mesmo negar a frase freudiana. Já não se trata mais do Wo Es war soll Ich werden, na medida em que o Ich, a parte racional (pelo menos enquanto racionalidade de ações e decisões; nunca, naturalmente, enquanto bom senso ou senso comum), tornou-se privilégio da máquina e o homem como sujeito perdeu sua soberania, tornou-se um "ser emagrecido". Por outro lado, aquele campo que exatamente Freud buscava

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ocupar cada vez mais pelas investidas do ego, o emocional-natural, é o que hoje aparece como a fonte única e mais segura para a nova identidade do homem na era eletrônica. Assim, a frase hoje precisa ser lida de outra maneira, a saber: Wo Es war, soll Es doch bleiben, onde estava o id (e aqui por id interpretamos a parte emocional, afetiva, irrealizável pelo sistema técnico), lá e exatamente lá é que ela deve permanecer.

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