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Natal, 2013

Jáder Ferreira LeiteMagda Dimenstein

(Organizadores)

CDD 81,1

Reitora Ângela Maria Paiva Cruz

Vice-Reitora Maria de Fátima Freire de Melo Ximenes

Diretora da EDUFRN Margarida Maria Dias de Oliveira

Vice-diretor da EDUFRN Enoque Paulino de Albuquerque

Conselho EditoralCipriano Maia de Vasconcelos (Presidente)

Ana Luiza MedeirosHumberto Hermenegildo de Araújo

John Andrew FossaHerculano Ricardo Campos

Mônica Maria Fernandes OliveiraTânia Cristina Meira Garcia

Técia Maria de Oliveira MaranhãoVirgínia Maria Dantas de AraújoWillian Eufrásio Nunes Pereira

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

Editor Helton Rubiano de Macedo

Revisão Paula Frassinetti dos Santos

Editoração eletrônica Fabrício Ribeiro

Capa Marcela Dimenstein

Supervisão editorial Alva Medeiros da Costa

Supervisão gráfica Francisco Guilherme de Santana

Pré-impressão Jimmy Free

Divisão de Serviços Técnicos

Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede

Estudos linguísticos diferenciados: da linguística ao ensino de língua materna / organização Maria Assunção Silva Medeiros, Célia Maria de Medeiros. – Natal, RN: EDUFRN, 2013.

504 p.

ISBN: 978-85-425-0052-3

1. Linguística. 2. Ensino. 3. Língua materna. I. Medeiros, Célia Maria de. II. Medeiros, Maria Assunção Silva.

RN/UF/BCZM 2013/16 CDU 410

Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRNAv. Senador Salgado Filho, 3000 | Campus Universitário

Lagoa Nova | 59.078-970 | Natal/RN | Brasile-mail: [email protected] | www.editora.ufrn.br

Telefone: 84 3215-3236 | Fax: 84 3215-3206

Uma notícia está chegando lá do Maranhão. Não deu no rádio, no jornal ou na televisão.

Veio no vento que soprava lá no litoral de Fortaleza, de Recife e de Natal.

A boa nova foi ouvida em Belém, Manaus, João Pessoa, Teresina e Aracaju

e lá do norte foi descendo pro Brasil Central Chegou em Minas, já bateu bem lá no sul!

Aqui vive um povo que merece mais respeito! Sabe, belo é o povo como é belo todo amor.

Aqui vive um povo que é mar e que é rio, E seu destino é um dia se juntar.

O canto mais belo será sempre mais sincero. Sabe, tudo quanto é belo será sempre de espantar.

Aqui vive um povo que cultiva a qualidade, ser mais sábio que quem o quer governar!

A novidade é que o Brasil não é só litoral! É muito mais, é muito mais que qualquer zona sul.

Tem gente boa espalhada por esse Brasil, que vai fazer desse lugar um bom país!

Uma notícia está chegando lá do interior. Não deu no rádio, no jornal ou na televisão.

Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil, não vai fazer desse lugar um bom país!

(Notícias Do Brasil – Os pássaros trazem) Milton Nascimento

Desta gente que eu vivo perto, Sou sertanejo da gema

O sertão é um livro aberto Onde lemos o poema da mais rica inspiração

Vivo dentro do sertão E o sertão dentro de mim,

Adoro as suas belezas Que valem mais que as riquezas dos reinados de Aladin.

(O retrato do Sertão) Patativa do Assaré

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Ao Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA/UFRN)

Ao Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPGPSI/UFRN)

Sumário

Prefácio ................................................................................................13

Apresentação .......................................................................................19

01 A formação em Psicologia para a atuação em contextos rurais .....................................................................27Jáder Ferreira Leite, João Paulo Sales Macedo, Magda Dimenstein e Cândida Dantas

02 A categoria juventude em contextos rurais: o dilema da migração ..................................................................57Otacílio de Oliveira Jr. e Marco Aurélio Máximo Prado

03 Juventude no semiárido nordestino: caminhos e descaminhos da emigração .....................................89Karla Patrícia Martins Ferreira e Zulmira Áurea Cruz Bonfim

04 Jovens de ambiente rural e urbano e sua relação com projetos de vida ................................................................117Daniela Dias Furlani e Zulmira Áurea Cruz Bonfim

05 Modos de vida cigana e toxicodependência: desafios e perspetivas no cuidado em saúde mental em Portugal .........143Joaquim A. Costa Borges

06 Psicologia Social e Ambiental em Unidades de Conservação do Amazonas ......................................................171Marcelo Gustavo Aguilar Calegare e Maria Inês Gasparetto Higuchi

07 Massacre no acampamento Terra Prometida – Felisburgo/MG: o papel da Psicologia frente ao trauma psicossocial .............................................................201Fabiana de Andrade Campos e Bader Burihan Sawaia

08 Intervención psicosocial junto a poblaciones desplazadas por el conflicto armado en Colombia .....................................223Omar Alejandro Bravo

09 Construíndo barragens e masculinidades: pesquisa em Psicologia Social em um canteiro de obras de uma hidroelétrica na fronteira do RS-SC ................................245Priscila Pavan Detoni e Henrique Caetano Nardi

10 Mulheres e psicotrópicos: subjetivação e resistência em trabalhadoras rurais assentadas ..............................................273Nathália Nunes e Araújo, Rebeca da Rocha Siqueira Nepomuceno, Rafael Figueiró, Leonardo Mello

11 A seca e sua relação com o bem-estar das famílias rurais do noroeste do Rio Grande do Sul ...........................................303Eveline Favero, Jorge Castellá Sarriera, Melina Carvalho Trindade, Francielli Galli

12 Agricultura Familiar Orgânica: em busca de qualidade de vida no âmbito do desenvolvimento rural mais sustentável .......................................................................333Yldry Souza Ramos Queiroz Pessoa e João Carlos Alchieri

13 Políticas públicas quilombolas e produções identitárias: percursos históricos e conflitos políticos ................................357Saulo Luders Fernandes e Julia Minossi Munhoz

14 Povos indígenas e o espaço acadêmico: uma articulação para se pensar a produção do conhecimento ..........................385Zuleika Köhler Gonzales e Neuza Maria de Fátima Guareschi

15 A Psicologia Comunitária no contexto ameríndio: a educação mitológica Guarani na indissociabilidade ensino, pesquisa e extensão .....................................................407Ana Luisa Teixeira de Menezes

16 Uma experiência de Psicologia Social Comunitária na comunidade de Barra de Mamanguape .............................425Thelma Maria Grisi Velôso, Flávia Palmeira de Oliveira, Iara Cristine Rodrigues Leal Lima, Jacqueline Ramos Loureiro Marinho, Lucélia de Almeida Andrade

17 Psicologia Comunitária e comunidades rurais do Ceará: caminhos, práticas e vivências em extensão universitária .....453Verônica Morais Ximenes e James Ferreira Moura Júnior

18 O trabalho escravo contemporâneo a partir de uma análise foucaultiana de documentos da OIT.......................................477Geise do Socorro Lima Gomes e Flávia Cristina Silveira Lemos

Prefácio

No final de 1974 os moradores da fazenda Mucatu, no municí-pio de Alhandra, na Zona da Mata, sul da Paraíba, decidiram

não aceitar a expulsão da terra, onde moravam e plantavam há várias gerações. O novo proprietário da fazenda queria a terra desocu-pada para plantar cana-de-açúcar com incentivos do governo fede-ral, através do PROALCOOL. Dez anos depois do massacre às Ligas Camponesas perpetrado pelo golpe militar de 1964, na Paraíba era a primeira vez que agricultores se organizavam para enfrentar uma imposição que os levariam às condições precárias de vida nas perife-rias das cidades. Resistiram à pressão violenta do novo proprietário da fazenda que usava pistoleiros, a polícia militar e a polícia federal para pressionar as famílias de agricultores que moravam nessa terra. A fazenda Mucatu acabou sendo desapropriada pelo governo federal e seus moradores permaneceram na terra, onde estão até hoje.

Em todo esse processo as pressões sobre os agricultores foram muito fortes, vindas não só do proprietário da terra, mas também de várias instâncias do Estado. Eles contavam apenas com o apoio de setores da igreja católica local. Em um momento muito tenso, onde os agricultores estavam em dúvida sobre como

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continuar resistindo à expulsão da terra, um deles, o Sr. Pedro Vieira, disse: “Nós precisamos procurar saída onde não tem porta. Se formos procurar saída onde tem porta feita vamos continuar cativos”.

Procurar saída onde não tem porta. Essa é uma frase emble-mática, pois ela propõe que se vá além do que já está dado, esta-belecido. Isso é muito mais do que a simples reprodução física e econômica das pessoas, é muito mais do que simplesmente sobre-viver. É ousar procurar por novos sentidos à vida individual e cole-tiva. É tentar exercitar e propor novas possibilidades. Isso ocorre no interior de uma luta por terra. Talvez, nada surpreendente.

A frase do agricultor Pedro Vieira, e o desafio que ela con-tém, talvez dialogue com as formulações clássicas e imemoriais de Terra Mãe, Terra Sagrada, Terra Santa, Terra de Origem. Afinal, as questões humanas em torno da terra não se resumem apenas a sua dimensão estritamente econômica ou a um aspecto isolado da História, mas se referem a modos de pensar e tocar a vida, no que isso tem de concreto e de imaginário, de individual e de coletivo, de escravidão e de liberdade, de passado e de futuro, de reprodução e de criação, de dependência e de autonomia.

As questões da terra marcam a história humana. As opções, as experiências, os dilemas, os equívocos humanos sobre formas de viver sempre tiverem e continuam tendo as questões da terra como um de seus elementos de referência. Minimizar ou desqua-lificar as questões humanas em torno da terra, principalmente dos que nela vivem e trabalham mais diretamente, é um equívoco, pois empobrece a perspectiva das procuras por caminhos mais largos, mais oxigenados e mais integrados entre a ousadia da criatividade humana e as possibilidades que a Natureza disponibiliza. Qualquer violência ou desprezo nessa relação penaliza os humanos, incre-mentando a fragilidade de nossas vidas, potencializando nossas

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mediocridades e equívocos, exacerbando os mais variados tipos de violência dos humanos entre si e contra a Natureza.

Negligenciar a importância da questão da terra pode signifi-car uma adesão acrítica à obsessão moderna pelo mundo urbano e a transformação da terra e da natureza em mercadoria a serviço dos interesses de lucro imediato do grande capital, tidos como formas inexoráveis de viver e produzir.

No Brasil, em oposição a essa lógica, tem se apresentado os movimentos que lutam por uma democratização do acesso à terra e às condições adequadas para fazê-la produzir. Seus atores princi-pais têm sido os agricultores com pouca ou sem terra e grupos de famílias pobres vindos das periferias urbanas.

Esses movimentos, assim como as lutas por demarcação das terras indígenas e das comunidades quilombolas ressaltam que é impossível uma democracia consistente em um país como o Brasil, onde a propriedade da terra está concentrada numa minúscula parcela das elites econômicas. Vale lembrar que democracia é algo que também vai muito mais além das racionalidades das normas sociais e de sua institucionalização. Democracia se refere também ao exercício concreto de novas possibilidades de formas de viver e produzir, na busca de superação dos limites impostos pelas formas já experimentadas. Democracia é também a possibilidade de novas tentativas humanas de buscar relações mais harmoniosas e gratifi-cantes das pessoas entre si e delas com a Natureza.

Nessa perspectiva, esses movimentos têm buscado viabili-zar uma agricultura que tem sido chamada de agricultura familiar ou agricultura camponesa, de tal forma que a propriedade ou o uso da terra, assim como o trabalho produtivo, estejam vinculados à família. A agricultura familiar contém, nela mesma, uma diversi-dade de situações e condições de produção, de maneira que numa mesma comunidade é possível encontrar formas de trabalho fami-liar bastante diferenciadas entre si.

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Essa diversidade de situações permite à agricultura fami-liar ter características importantes: do ponto de vista econômico, segundo vários estudos já realizados, a agricultura familiar tem uma produtividade, por área plantada, e uma absorção de mão de obra maior do que nos grandes estabelecimentos rurais; as peque-nas e médias propriedades rurais são responsáveis, na maior parte, pela produção dos mais variados produtos agrícolas, em particular dos produtos agropecuários da cesta básica da população brasi-leira. A diversidade de iniciativas produtivas da agricultura fami-liar e a extensão pequena da propriedade, entre outros aspectos, permitem um manejo mais cuidadoso do meio ambiente. Além disso, o incentivo à agricultura familiar permite um resgate da cul-tura e do saber camponês, desqualificados pelos mecanismos de submissão e dominação a que essa população tem sido submetida. Por consequência, esse incentivo produz a possibilidade das pes-soas reorientarem o próprio sentido que dão à vida, percebendo-se, então, como sujeitos que podem começar a se responsabilizar por suas escolhas e decisões.

Ao se falar em agricultura familiar se está falando do grupo familiar como um todo (homens e mulheres; pais e filhos; crian-ças, jovens, adultos e velhos), o que remete a todas as discussões e embates sobre as relações de gênero e de gerações que se dão na sociedade como um todo e que na agricultura familiar tem suas singularidades.

A complexidade e heterogeneidade da agricultura familiar se revelam, principalmente, no cotidiano de sua existência, atra-vés das relações sociais vividas no âmbito das comunidades locais, em que os fatores que aproximam e diferenciam as pessoas entre si indicam a existência de avaliações e expectativas distintas sobre os limites e possibilidades da agricultura familiar como forma de organizar a vida produtiva e social, a partir de um pedaço de terra disponível para viver.

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O Brasil foi produzido, enquanto país, como decorrência de uma forte e violenta luta pela terra, desde o início. Nosso país foi e tem sido produzido pela desigualdade social, em que a manu-tenção de condições precárias de vida, para uma grande parte da população, tem sido condição para a manutenção dos mais varia-dos tipos de privilégios de um reduzido grupo social, que detém a propriedade da terra, da riqueza produzida, do conhecimento, da informação e das decisões políticas. Ainda hoje, a alta concentra-ção da propriedade de terras no Brasil, em mãos de um pequeno grupo social, uma das maiores taxas de concentração de terras do mundo, revela e confirma essa situação.

Durante toda a história de dominação, submissão e des-qualificação dos setores populares da sociedade brasileira sempre existiram a resistência e a luta de grupos organizados desses seto-res contra a continuidade dessa história. No campo, essa luta teve início com a resistência indígena, continuou com a luta dos negros contra a escravidão e depois com as lutas de parte da população rural por condições mínimas de sobrevivência e dignidade. Nessas histórias de dominação e resistência, as questões da propriedade, posse e uso da terra sempre estiveram presentes, até hoje.

Por isso mesmo, a questão da terra, também no Brasil, marca direta ou indiretamente nossa história social, política, econômica, cultural e, portanto, marca como nossas subjetividades têm sido produzidas.

Em um mundo onde o que vale é a economia em larga escala e a grande maioria da população é transformada em uma “galera” de consumidores e do popular se aproveita apenas aquilo que pode ser transformado em mercadoria, propor que setores dessa popu-lação se tornem protagonistas de suas próprias histórias parece ser mesmo uma tentativa de procurar saída onde não tem porta. Uma tentativa de exercitar outras possibilidades de viver coletivamente,

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de produzir e de se relacionar com a Natureza. É afirmar que outro mundo é necessário. Se é possível, vamos ver na prática.

A luta pela democratização de acesso à terra e às condições para fazê-la produzir objetiva fecundar a terra e a vida de todos. Não é essa a destinação ética mais forte da Psicologia: contribuir para a criação de processos de fecundação da vida para criar novas vidas? É algo assim que este livro pretende: fecundar o debate sobre a relação entre Psicologia e as questões da terra.

Genaro IenoJoão Pessoa/PB, janeiro de 2013.

Apresentação

Desde que iniciamos nossas investigações sobre os movi-mentos sociais no campo, notadamente o Movimento

dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), sob a perspectiva da Psicologia Social, temos nos deparado com uma enorme lacuna de participação da Psicologia nessas discussões, especialmente no que diz respeito às ruralidades, aos modos de subjetivação, aos proces-sos psicossociais e identitários no âmbito dos contextos rurais.

Enquanto algumas disciplinas das ciências sociais, a exem-plo da Sociologia e Antropologia, vêm contribuindo significati-vamente para pensar processos sociais e culturais no meio rural brasileiro, a Psicologia ainda não efetivou sua entrada nesse debate. Sua tradição de ciência e profissão eminentemente urbana gerou um vazio de reflexões e de aproximações sobre importantes agentes da sociedade brasileira que produzem sua existência em relação – seja de integração, de conflito e contradições, de aproximações e paradoxos – com a terra e com o campo brasileiro.

Desse modo, o presente livro, inédito na área, vem contri-buir para gerar reflexões, compartilhar pesquisas e experiências profissionais desenvolvidas com diversos atores sociais que vivem

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e trabalham no campo, que têm uma importante relação com a terra tanto em termos da elaboração de sua história, de construção de laços identitários e de produção de suas subjetividades quanto de engajamento em lutas sociais que visam alterar o jogo de forças políticas que, historicamente, excluiu grande parcela da população do campo do direito de viver de modo digno, de fazer da terra e do campo seu lugar de vida, de trabalho e de exercício de cidadania.

Os capítulos do livro contemplam propostas advindas de várias regiões do país e abordam inúmeras problemáticas que a questão da terra e das ruralidades suscita nos cenários tanto regio-nais quanto nacional. Como são diversas as formas de inserção social dos agentes que vivem no meio rural brasileiro, são também os temas aqui discorridos. Os seus autores, alinhados a referen-ciais teóricos variados, estão vinculados a instituições de ensino de nível superior de várias regiões do país e a importantes programas nacionais de pós-graduação de Psicologia (níveis mestrado e dou-torado), sendo que considerável parte do material resulta de inves-tigações desenvolvidas nesses programas (teses e dissertações), como também de projetos de extensão universitária e de exercício profissional. Contribuem, ainda, dois autores internacionais que nos apresentam particularidades dessas questões, a partir de expe-riências oriundas da Colômbia e Portugal.

O primeiro capítulo, de autoria de João Paulo Sales Macedo, Jáder Ferreira Leite, Magda Dimenstein e Cândida Dantas, des-taca importantes eixos para se pensar o processo de formação em Psicologia considerando os contextos rurais, haja vista termos pre-senciado uma crescente interiorização dos cursos de graduação no país, bem como uma presença do profissional de Psicologia em cidades de pequeno e médio porte, com características rurais marcantes.

Otacílio de Oliveira Jr. e Marco Aurélio Máximo Prado tra-zem, no segundo capítulo, um tema certamente instigante, qual

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seja pensar a categoria juventude no meio rural brasileiro, tendo como ponto de ancoragem os dilemas e impasses vividos por essa juventude em torno do fenômeno da migração.

Seguindo o tema da migração, agora no contexto de jovens rurais do sertão cearense, Karla Patrícia Martins Ferreira e Zulmira Áurea Cruz Bonfim, no Capítulo 3, abordam os conflitos que essa juventude se depara entre partir e ficar em sua terra natal.

O Capítulo 4, de autoria de Daniela Dias Furlani e Zulmira Áurea Cruz Bonfim articula aspectos psicossociais, ambientais e projetos de vida com jovens que vivem em realidades distintas (urbana e rural), no Estado do Ceará.

Psiquiatra de larga experiência na rede de saúde mental de Portugal, Joaquim A. Costa Borges, no capítulo cinco, apresenta--nos uma experiência bastante interessante resultante de seu acompanhamento à população cigana que vive naquele país. O autor destaca a necessidade de reconhecimento das particularida-des dos modos de vida cigana para uma intervenção qualificada no tocante aos problemas vividos em torno da toxicodependência e dos transtornos mentais que atingem a referida etnia.

No Capítulo 6, Marcelo Gustavo Aguilar Calegare e Maria Inês Gasparetto Higuchi relatam suas experiências de pesquisa com comunidades amazônicas situadas em Unidades de Conservação e, sob a perspectiva da Psicologia Social e Ambiental, apontam para a necessidade de uma atuação interdisciplinar e mesmo transdis-ciplinar na medida que a Amazônia se insere numa realidade bio e socioambiental bastante complexa, em que políticas governamen-tais, discursos e práticas ambientalistas e de conservação da natu-reza atuam sistematicamente nesses espaços.

Fabiana de Andrade Campos e Bader Burihan Sawaia, no capítulo sete, aliam os aportes teóricos da Psicologia sociohistó-rica e da Psicologia da libertação para discutir, por meio da cate-goria trauma psicossocial, o fenômeno da violência no campo,

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tão marcante na sociedade brasileira, mais especificamente do massacre empreendido contra os trabalhadores sem terra do Acampamento Felisburgo, em Minas Gerais, no ano de 2004.

O Capítulo 8, de autoria de Omar Alejandro Bravo, também apresenta uma discussão sobre a violência no campo, mas tomando o contexto colombiano, em que famílias camponesas vêm sendo historicamente desalojadas de suas terras dentro da complexa rede de violência que gira em torno das ações do Estado, de grupos para-militares e do narcotráfico. O texto propõe, ainda, uma reflexão sobre o alcance das intervenções psicossociais com os grupos que sofrem o efeito dessa violência.

Questões de gênero são destacadas no capítulo nove, em que Priscila Pavan Detoni e Henrique Caetano Nardi problemati-zam as masculinidades produzidas em torno da vivência de homens na construção de uma usina hidrelétrica em uma região rural nos limites dos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Os auto-res se alinham a pensadores como Michel Foucault e Judith Butler para ressaltar como os atores sociais em questão se produzem como sujeitos generificados em meio ao jogo discursivo e performático no âmbito das relações de poder.

Nathália Nunes e Araújo, Rebeca da Rocha Siqueira Nepomuceno, Rafael Figueiró e Leonardo Mello, autores do capí-tulo dez, relatam-nos uma pesquisa empreendida sobre modos e vida e estratégias de cuidado em saúde com mulheres de um assen-tamento rural do Estado do Rio Grande do Norte. Os resultados a que chegaram destacam como essas mulheres, a despeito dos modelos hegemônicos de medicalização da vida como forma de enfrentamento dos problemas de saúde, singularizaram estratégias de cuidado no interior do grupo, resgatando tanto os saberes que orientam historicamente sua existência quanto os produzidos em articulação com o movimento social ao qual se integraram, no caso, o MST.

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O fenômeno da seca é uma realidade presente pratica-mente em todas as regiões brasileiras, gerando perdas materiais e psicológicas para inúmeras famílias do campo. É sobre o impacto dessas perdas no bem-estar de famílias agricultoras que vivem na parte noroeste do Rio Grande do Sul e com base na Teoria de Conservação de Recursos, que Eveline Favero, Jorge Castellá Sarriera, Melina Carvalho Trindade e Francielli Galli abordam no Capítulo 11. Destacam, ainda, as estratégias de enfrentamento e os recursos utilizados em torno dessa problemática.

Yldry Souza Ramos Queiroz Pessoa e João Carlos Alchieri discutem no Capítulo 12 como o modelo de agricultura orgânica familiar, desenvolvido em algumas regiões do Brasil, de base agro-ecológica e com preocupação voltada para a saúde dos trabalhado-res, pode ser gerador de qualidade de vida para as famílias rurais que se envolvem com esse modelo produtivo.

As novas produções identitárias em meio às políticas públi-cas relativas aos territórios quilombolas são tema de reflexão do Capítulo 13. Saulo Luders Fernandes e Julia Minossi Munhoz reve-lam um imbricado processo entre antigos e novos modos de sub-jetivação, na medida que os espaços e territórios das comunidades negras rurais passam a ser repensados e/ou fortalecidos enquanto território quilombola.

No Capítulo 14, Zuleika Köhler Gonzales e Neuza Maria de Fátima Guareschi resgatam importantes questões indígenas em nosso país a partir de algumas indagações: como os povos indíge-nas são incorporados no espaço acadêmico? Que concepções de produção do conhecimento orientam o debate sobre o tema? Para tanto, fazem uso de relatos de suas experiências enquanto docentes e pesquisadoras universitárias no sul do país.

Ana Luisa Teixeira de Menezes apresenta-nos no Capítulo 15 uma rica experiência no âmbito da Psicologia comunitária que, por meio da relação ensino, pesquisa e extensão, coordenou um

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conjunto de atividades com a aldeia Mbya Guarani denominada Ka’a guy Poty, localizada no interior do Rio Grande do Sul. A autora aponta a importância da vivência comunitária na aldeia e da educa-ção mitológica vista enquanto um potente modo de conhecimento do povo Guarani como aspectos fundamentais para fortalecimento das reflexões e interveções no campo da Psicologia comunitária.

No Capítulo 16, Thelma Maria Grisi Velôso, Flávia Palmeira de Oliveira, Iara Cristine Rodrigues Leal Lima, Jacqueline Ramos Loureiro Marinho e Lucélia de Almeida Andrade apresentam o relato de uma intervenção psicossocial realizada na Comunidade de Barra de Mamanguape, pertencente ao município de Rio Tinto, Estado da Paraíba. A experiência com a comunidade, que tem sua base de produção por meio da pesca e coleta de mariscos, deu-se por meio de estratégias participativas e teve a preocupação de pôr em diálogo os saberes envolvidos (acadêmicos e da comunidade) na ação de extensão para daí, possibilitar a produção de novos conhe-cimentos que venham contribuir com o protagonismo dos atores envolvidos no enfrentamento dos dilemas vividos no cotidiano do grupo.

Conhecido nacionalmente por sua trajetória e esforço de construção de uma Psicologia Comunitária crítica, comprometida socialmente com comunidades urbanas e rurais que vivem a reali-dade da pobreza, e libertária em sua ação teórico-política, o Núcleo de Psicologia Comunitária (NUCOM), vinculado à Universidade Federal do Ceará, é apresentado no Capítulo 17 por Verônica Morais Ximenes e James Ferreira Moura Júnior. Os autores destacam os fundamentos teóricos e políticos que norteiam as ações do NUCOM e historiam os trabalhos desenvolvidos em comunidades rurais do Estado do Ceará.

Por fim, no Capítulo 18, Geise do Socorro Lima Gomes e Flávia Cristina Silveira Lemos trazem para o debate um tema certa-mente atual e preocupante: o trabalho escravo no campo brasileiro.

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A discussão que trazem parte de uma análise de como o trabalho escravo contemporâneo é tratado nos documentos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e, à luz da genealogia foucaul-tiana, argumentam como determinados documentos, por meio dos discursos que veiculam, acabam por produzir determinadas “ver-dades” em meio aos jogos de poder.

Estão aí inúmeras contribuições para se pensar modos de articulação, pontos de aproximação da Psicologia com a diversi-dade que habita o campo brasileiro. Esperamos que este livro possa alavancar novas ideias e reflexões. Intervenções, questões de pes-quisa, aprendizados e encontros com os atores que vivem no meio rural certamente hão de germinar e fazer crescer. Desejamos que a presente obra possa contribuir com essa germinação.

Natal/RN, janeiro de 2013.Jáder Ferreira Leite e Magda Dimenstein

A formação em Psicologia para a atuação em contextos rurais

Jáder Ferreira Leite João Paulo Sales Macedo

Magda Dimenstein Cândida Dantas

Historicamente, a Psicologia tem voltado seu olhar quase que exclusivamente para a população urbana. Os habitantes

das grandes cidades têm sido alvo privilegiado da sua intervenção profissional, além de tornarem-se objeto de estudos e pesquisas no campo psicológico.

Embora estudos historiográficos de Antunes (2004) indi-quem a existência de trabalhos isolados como o realizado por Helena Antipoff, no ano de 1940, com educação de crianças na zona rural, ou, mais particularmente, os do campo da Psicologia Social Comunitária, a partir das décadas de 1960 e 1970, em assen-tamentos sem-terra, tribos indígenas ou mutirões, a maioria das pesquisas sobre o desenvolvimento da profissão no país explicita a interdependência entre o processo de modernização brasileira e

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a expansão do campo profissional1. Considerando ser a urbaniza-ção uma das principais características desse processo, justifica-se em parte a centralização das ações da Psicologia em cidades com características predominantemente urbanas, locais de circulação do grande capital e polos de desenvolvimento industrial.

Nesse sentido, Mello (1975), em pesquisa sobre a atuação do psicólogo no estado de São Paulo, afirma: “[...] a Psicologia só tem encontrado aplicação nos grandes centros urbanos ou nas áreas industrializadas, vale dizer, nas mais ricas, e do ponto de vista cul-tural, mais próximas dos modelos que os países desenvolvidos ofe-recem” (Mello, 1975, p. 35).

Em 1988, em um dos mais completos levantamentos nacio-nais, organizado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), dos 58.277 psicólogos em atividade profissional, 75% estavam concen-trados na região sudeste e 69% em grandes capitais, com exceção dos estados do Maranhão e de Santa Catarina. Segundo os auto-res do estudo, os fatores que explicariam a fixação dos psicólogos nas capitais seriam o próprio mercado de trabalho, caracterizado pela maior possibilidade de absorção profissional, e as condições de vida favoráveis encontradas nessas cidades. Somado a isso, des-tacam que a formação em Psicologia naquele momento acompa-nhava a tendência de concentração das instituições de ensino na região Sudeste e nas grades metrópoles nacionais. Diante desses resultados, os autores indagam:

Somos – ou estamos sendo – profissionais urbanos, metropolitanos. Por quê? Seriam os psicólogos desne-cessários no interior? Seriam exclusivos dos habitan-tes das capitais os problemas que levam as pessoas e

1 Antunes (1999; 2004) e Pessotti (1988) apontam para a importância da aplica-ção de conhecimentos e técnicas psicológicas em questões relacionadas à orga-nização do trabalho, em especial a com o processo de industrialização brasileiro na década de 1930.

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organizações ao gabinete dos psicólogos? (Rosas, Rosas & Xavier, 1988, p. 39).

Em seguida, indicam que a interiorização deverá ocorrer como forma de aumentar a clientela atendida pelos profissionais, ou mesmo como o intuito de ampliar e/ou renovar o mercado de trabalho (Rosas et al., 1988). Assim, percebe-se que mesmo apre-sentando o perfil urbano como característica predominante da Psicologia, os autores consideram importante avançar para outros espaços territoriais, tanto como forma de ampliar seu leque de ações quanto como garantia de uma reserva de mercado impor-tante para o futuro da profissão.

Mesmo com essas considerações, a formação e atuação dos psicólogos continuaram voltadas para contextos eminentemente urbanos. O processo de “interiorização da profissão” parece ser impulsionado apenas posteriormente, com o ingresso de psicólo-gos em campos não tradicionais e há pouco desenvolvidos, com especial destaque para o setor do bem-estar social que impulsio-nará de forma efetiva o processo de interiorização, além da expan-são do sistema de ensino superior brasileiro em direção às cidades de pequeno e médio porte. Diante disso, o presente texto trata dos desafios da formação acadêmica e profissional para qualificar a atuação dos psicólogos em cidades de pequeno e médio porte, com características marcadamente rurais. Para tanto, estrutura-mos o texto da seguinte forma: inicialmente, abordamos o pro-cesso de interiorização da Psicologia, tanto nos termos de entrada de profissionais em municípios de médio e pequeno porte quanto da abertura de cursos de formação de psicólogo nesses espaços. Num segundo momento, trataremos do processo histórico e social vivido pelo Brasil no tocante ao conjunto de lutas sociais travadas em torno da democratização da terra, aspecto de fundamental importância para a compreensão do atual modelo de organização do meio rural, dos grupos e atores sociais que nele vivem. Por fim,

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apresentaremos alguns eixos que consideramos importantes tanto para a atuação profissional quanto para o processo de formação de psicólogos para atuarem nesse contexto.

O processo de interiorização da Psicologia e o meio rural

Dois aspectos marcaram a entrada da Psicologia no século XXI, no contexto brasileiro: a interiorização da profissão e dos cur-sos de formação em Psicologia por todo o território nacional.

Sobre o primeiro aspecto, registra-se que dos 236.100 psicó-logos inscritos no Sistema Conselhos de Psicologia de todo o país, 48% atuam nas cidades do interior, destacando aquelas de médio e pequeno porte, enquanto 32% estão localizados nas capitais (Bastos, Gondim, & Rodrigues, 2010). Quanto ao funcionamento da formação de psicólogos, observa-se que dos 510 cursos existen-tes, 52% estão localizados nas cidades do interior enquanto 48% estão nas capitais. Especificamente sobre os cursos localizados no interior, pelo menos 105 funcionam em municípios de médio porte (100 a 300 mil hab.), 59 cursos estão em municípios de médio--pequeno porte (50 a 100 mil hab.) e 35 cursos em municípios de pequeno porte (menos de 50 mil hab.) (Macedo, 2012).

A tendência à interiorização do exercício profissional e das agências formadoras em Psicologia é resultado tanto da estrutura-ção de uma rede de serviços ligados ao campo do bem-estar social, ou seja, fruto da municipalização das políticas de saúde e assistên-cia social, quanto pela implantação de projetos e outros dispositivos de reforma e expansão da educação superior, que no setor público efetuou-se pelo REUNI e o PRONATEC e no setor privado advém da busca por novos mercados, especialmente na região Nordeste, com incentivos do PROUNI e o FIES.2

2 Quanto ao REUNI, trata-se do Programa de Apoio a Planos de Expansão e Reestruturação das Universidades Federais, com vistas a expansão e

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Outro aspecto deve ser levado em conta em relação ao pro-cesso de interiorização da educação superior no Brasil: o movi-mento de transição e reestruturação urbana de vários municípios brasileiros de médio porte (Macedo & Dimenstein, 2011). De acordo com Sanches (1999) é cada vez mais presente no cenário brasileiro a parceria de agentes públicos e privados com projetos de planeja-mento urbano para promover localidades de menor porte popula-cional como mais atrativas para investimentos no setor comercial, empresarial e financeiro.

Assim, cidades que apresentam determinada vocação eco-nômica e produtiva tornam-se alvo de investimentos e planeja-mento urbano, na perspectiva de qualificar determinados espaços como mais vantajosos, com exigências de maior segurança, incen-tivos fiscais e maior rentabilidade para a instalação de grandes empresas e demais investidores. O principal objetivo desses inves-timentos é o trabalho de redefinição da imagem de cidade dessas localidades, para que as mesmas se constituam em polos de desen-volvimento local e regional no país, capazes de capitanear mais recursos, investimentos em infraestrutura, criação de empregos, atrair turistas e gerar novos negócios (Sanches, 1999).

interiorização da educação superior no Brasil, sendo que até o momento foram criados 48 campi e 10 universidades federais em todo o território nacional. O PRONATEC assemelha-se ao REUNI, no entanto seu foco é o ensino técnico. Com relação ao PROUNI e o FIES, ambos são programas de acesso à educação superior no setor privado, que prevê a concessão de bolsas de estudo integrais e parciais, no caso do primeiro, e o financiamento das mensalidades dos cursos de graduação e pós-graduação, a serem reembolsados pelos estudantes poste-riormente ao seu término, no caso do segundo. Para muitos, esses quatro dis-positivos de ampliação do acesso à educação superior compõem os pilares da Contrarreforma universitária em curso no país, pois orquestra uma expansão que beneficia diretamente o setor privado da educação, com isenções fiscais e pagamento de dívidas públicas, enquanto no setor público aprofunda a pre-carização já existente, devido à falta de financiamento e implantação de uma lógica de gestão voltada para o mercado, com impactos no trabalho docente sob a marca do produtivismo e captação de recursos externos para as universidades.

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As próprias Instituições de Ensino Superior (IES) (universi-dades, centros de ensino e faculdades), no seu processo de interio-rização, têm tido um papel importante na redefinição da imagem das cidades. Em função disso, tal setor constitui hoje uma das prin-cipais estratégias estruturantes do desenvolvimento local e regio-nal de várias regiões do país, seja com a formação de profissionais e mão de obra técnica e especializada, seja ainda pela transferência de tecnologias para as novas localidades produtivas do país (Paula, 2006; Elias, 2007).

Com relação à Psicologia e ao movimento de aproximação com a realidade dos municípios menor porte, indagamos por qual direção essa participação tem se dado. Tal aproximação tem levado em conta as novas dinâmicas espaciais e o surgimento de novas formas de sociabilidade, como também as relações sociais que o processo desenvolvimentista tem induzido nesses municípios? Temos considerado as transformações nos modos de vida da popu-lação, ou seja, nos processos de subjetivação, nas relações sociais e de trabalho, e nas relações de pertencimento e de identidade com o lugar, contribuindo com a produção de sujeitos mais participa-tivos e reconhecedores dos seus direitos e aspirações, ou simples-mente temos repetido nosso feito histórico de selecionar e adaptar pessoas no objetivo de melhorar seu padrão de respostas frente ao mundo do trabalho (este cada vez mais precarizado) e as exigências e intempéries da vida?

Sabemos como se deu a primeira aliança entre a Psicologia e o Estado brasileiro, ocorrida no início do processo de industria-lização em 1930, em que nossa ciência inspirou confiança à nação em diagnosticar e orientar a força de trabalho do país (Motta, 2004). A participação da Psicologia como elemento importante no processo de desenvolvimento brasileiro, ocorrido desde o Estado Novo, é fruto do abandono, pela burguesia industrial nascente daquela época, “das normas tradicionais de dominação da classe trabalhadora e adesão aos princípios da Psicotécnica da Psicologia

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Racional para intensificar o processo de modernização da relação trabalhador-capital” (Motta, 2004, p. 139). Assim, foram criados diversos institutos, laboratórios/núcleos de pesquisa e departa-mentos de assessoria técnica, a exemplo do IDORT3 e do ISOP4, ligados à administração pública, a educação básica e superior e a federação das indústrias para a aplicação de serviços de orientação vocacional e seleção de pessoal, com base no exame das aptidões e do caráter, além de ações de treinamento e capacitação profissional (Penna, 2004).

Tais iniciativas em torno da atividade psicotécnica, em con-junto com outras atreladas às novas demandas do mercado como o psicodiagnóstico e o atendimento clínico, constituíram as bases para associar a presença da nossa profissão aos grandes centros urbanos e capitais brasileiras. Assim, nossa profissão passou a ser demanda em seus consultórios, organizações de trabalho, insti-tuições escolares, e serviços de saúde mental e assistência social, algumas vezes, para solucionar e dar suporte para as inabilidades e desadaptações de indivíduos frente às condições e os modos de vida nos grandes centros urbanos: desemprego, insegurança no trabalho, recolocação e orientação profissional, concorrência social, fragmentação e isolamento social, violência, criminalidade, dentre outros.

Por outro lado, sabemos que os entrelaçamentos entre Psicologia e Estado na atualidade são outros. A própria aproxi-mação dos psicólogos com as políticas públicas a partir da década de 1990 dão prova de que os espaços de exercício de sua prática

3 Instituto de Organização Racional do Trabalho – IDORT, criado em 1931 na ci-dade de São Paulo. O IDORT corresponde a primeira instituição psicométrica criada no país com a finalidade de acelerar a industrialização (Penna, 2004).

4 Instituto de Seleção e Orientação Profissional – ISOP, criado em 1947 na cida-de do Rio de Janeiro. O ISOP foi criado pela Fundação Getúlio Vargas (1944) que, mais tarde, tornou-se o primeiro curso de pós-graduação em Psicologia no Brasil (Penna, 2004).

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profissional diversificaram-se. Passamos tanto a ser demandados para intervir sobre indivíduos de outros extratos sociais quanto a nos preocupar com a saúde e a organização social de grupos e populações. Mas com que propósito, a serviço do quê, agenciado com quais relações de poder?

Sabemos que as políticas públicas, especialmente aquelas de cunho universalistas, foram estabelecidas, a partir da Constituição de 1988, como resultado da luta pela garantia de direitos de gran-des parcelas da população. Assim, as políticas públicas são muito mais do que apenas a garantia de serviços e ações inclusivas pelos aparelhos do Estado; seu princípio fundante é o fortalecimento das instâncias de participação, movimento popular e controle social, portanto, visa o processo de construção de cidadania e produção de sujeitos políticos.

No entanto, o processo de implantação das políticas uni-versalistas no Brasil é contemporâneo à instituição da agenda e do Estado neoliberal. As ações da política neoliberal priorizam, basi-camente, o corte dos gastos sociais e a desmontagem dos serviços públicos em vários setores, além do aprofundamento da ação do capital privado e financeiro na regulação dos mercados nacionais. Na prática, isso significa tanto a diminuição do papel e da presença do Estado frente aos problemas sociais que marcam a realidade bra-sileira, resultando, como refere Yamamoto (2007), na oferta de ser-viços desqualificados para uma população desqualificável; quanto à imposição de uma agenda micropolítica aos operadores/trabalha-dores das políticas públicas para serem postas em prática à popu-lação em geral. Caracterizando melhor esse último aspecto, além de desregulamentar o dever do Estado de ofertar bens e serviços e minimizar direitos sociais e políticos, o neoliberalismo também produz um modo hegemônico de subjetivação com formas de per-cepção, modos de afecções/sensações e de pensar e agir no mundo, profundamente, marcados por interesses privatizantes. Com isso, de cidadão passamos a condição de consumidor; de sujeito da ação

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transformamo-nos em sujeitos empreendedores, ou seja, sujeitos capazes de, por conta própria, resolver problemas, desobrigando o Estado do seu dever (Carvalho, 2009).

Nesse caso, precisamos ter clareza de como operamos nosso fazer técnico, no sentido de quais posturas ético-políticas coloca-mos em prática ao ingressarmos no campo das políticas públicas. A depender de como realizamos nossas ações profissionais, pode-mos tanto exercer ações de garantia de direitos e cidadania, como foco de resistência a lógica neoliberal, ou como formas de controle da vida. Assim, precisamos estar atentos para que o ingresso dos psicólogos nas políticas públicas não se reduza a apenas a amplia-ção de mercado de trabalho para nossa profissão. É preciso ampliar o debate sobre qual modelo de políticas públicas nos associamos na atualidade. Não podemos perder de vista o risco imposto pela lógica neoliberal de conformação das políticas públicas que, sob a marca do progresso e do desenvolvimento, busca como solução para a questão social do nosso país o gerenciamento da pobreza e das comunidades.

Diferente da primeira aliança entre a Psicologia e o Estado brasileiro em que se buscava contribuir com o desenvolvimento da nação diagnosticando e orientando a força de trabalho do país, na atualidade, tal aliança, pode facilmente capturar nossa ciência e profissão, de modo a prestar relevante contribuição, efetivando a estratégia biopolítica5 de gerenciamento da população para a pro-dução de sujeitos ao mesmo tempo saudáveis, participativos, pro-dutivos e autoempreendedores (Passetti, 2003).

5 Conceito criado por Michel Foucault para dar visibilidade ao regime político que toma a vida em seu aspecto biológico, subjetivo e social como objeto de intervenção. Com a biopolítica não apenas os indivíduos tornam-se foco de in-tervenção dos diversos aparelhos do Estado, mas também as populações, por meio de mecanismos de regulação e controle, ou seja, de gestão e governo de condutas e subjetividades (Foucault, 2008).

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Tais questões tornam-se ainda mais urgentes, meio ao cená-rio de interiorização da profissão e da formação de psicólogos em todo o país. Na verdade, a aproximação dos psicólogos com os muni-cípios de médio e pequeno porte, em que a sede desses municípios tem estreita relação com seu meio rural, fez com que entrássemos em contato com uma realidade nova para nossa categoria profis-sional. No geral, são localidades que apresentam: a) alto índice de população rural (44,93%), cuja atividade produtiva principal é a agricultura familiar, destacando-se ainda a pecuária familiar e a atividade pesqueira, ou o extrativismo vegetal e mineral; b) fragili-dade econômica e administrativa, resultando na dependência das ações e programas do governo federal; c) respostas insuficientes às necessidades da população, devido às práticas de gestão de base centralizadora, autoritária e clientelista; e d) uma realidade popu-lacional que concentra problemas sociais básicos, como: mortali-dade infantil, analfabetismo, trabalho infantil, desnutrição, fome, pobreza, dificuldades de transportes, especialmente de desloca-mento das comunidades rurais à sede do município e desemprego; e ainda convive com problemas típicos de grandes centros urbanos, como: aumento da criminalidade e violência, aumento do índice de doenças crônico-degenerativas, gravidez na adolescência, mortes no trânsito (motociclistas), prostituição, consumo e tráfico de dro-gas (Macedo & Dimenstein, 2011).

Quanto ao meio rural propriamente dito, especificamente nas áreas de assentamentos e ocupações de terra, comunidades ribeirinhas, quilombolas, reservas indígenas, as dificuldades não são diferentes. Pelo contrário, os problemas sociais básicos referi-dos a pouco se agravam bem mais, isso sem falar da dificuldade de acesso aos serviços de saúde e educação, além da insegurança fun-diária e o convívio com inúmeras situações de conflitos e violên-cia no campo, a exemplo da exploração da mão de obra, o trabalho escravo, a violação de direitos e a exploração no trabalho, a violên-cia contra a ocupação e posse de terras, as situações de expulsões e

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despejos e demais conflitos em tempos de seca e estiagem por con-trole e posse de água, e em áreas de garimpo, mineração, reservas indígenas, extração de madeira e preservação ambiental.

Muitos desses conflitos resultam em violência direta con-tra as famílias e comunidades, com roubos, agressões e ameaças de morte, além de prisões, torturas e assassinatos, como temos visto em várias regiões do país, em especial no Norte. Para o ano de 2012, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) contabilizou 1.364 conflitos no campo e 36 assassinatos. Já em 2011, os dados são de 1.363 conflitos e 29 assassinatos (CPT, 2013). Para a compilação desses dados, a CPT considera as situações de luta por terra, água e direitos tra-balhistas. É preocupante o fato de que há um crescimento, desde 2008, tanto dos conflitos quanto dos assassinatos.

Mesmo que não haja uma política que advogue ou demar-que a participação do profissional de Psicologia nessas questões, especialmente no tocante ao tema da terra, enxergamos uma variada gama de oportunidades para seu exercício profissional que vem se dando por um amplo campo: equipamentos institucionais de educação, saúde, assistência social, assistência técnica e exten-são rural, Organizações Não Governamentais (ONGs), cooperati-vas de prestação de serviços com os trabalhadores da agricultura familiar, movimentos sociais do campo, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA, Comissão Pastoral da Terra – CPT e Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB etc.

No entanto, tem sido por meio da Política de Saúde, com a implantação de serviços da atenção primária em saúde e saúde mental (Unidades Básicas de Saúde/UBS, Núcleos de Apoio a Saúde da Família/NASF e Centros de Atenção Psicossocial/CAPS), e da Política de Assistência Social, com os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS), nos municípios de médio e pequeno porte, que a população do campo tem tido acesso de maneira mais

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efetiva aos serviços dos psicólogos. Assim, os profissionais da Psicologia vêm sendo confrontados com novos sujeitos e realida-des que passam a demandar sua atuação. Por isso a urgência de pensarmos como temos nos filiado as políticas públicas no Brasil, principalmente envolvendo as lutas sociais e a questão da terra no contexto rural.

Lutas sociais, democratização da terra e contextos rurais no Brasil: percurso inacabado?

Enquanto muitos países optaram pelo modelo da agricul-tura familiar através da realização de uma política de reforma agrá-ria, o desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro deu-se pela manutenção de sua estrutura fundiária, conservando o lati-fúndio e modernizando-o com pesados investimentos com vis-tas ao aumento de produtividade garantida com a introdução de novas tecnologias, créditos e insumos e baseado na monocultura de exportação.

Graziano da Silva (1994) apresenta duas características fun-damentais do que nomeia de modernização dolorosa do campo brasileiro: a primeira, que aconteceu de forma bastante desigual, permitindo uma forte concentração na aquisição de créditos e de insumos aos grandes proprietários de terra, como também bene-ficiou empresas urbanas a se tornarem proprietárias de terra. A segunda característica foi a geração de uma forte exclusão. Se de um lado promoveu a concentração de riquezas nas mãos de uma elite agrária e uma consequente industrialização do campo, por outro lado inviabilizou o projeto de inúmeros trabalhadores rurais, lançando-os numa miséria profunda e num êxodo rural sem pre-cedentes, fato que promoveu quase uma inversão entre a popula-ção urbana e rural no país. Linhares e Silva (1999) destacam que

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na década de 1940 a população urbana no Brasil era de 31,2% e na década de 90 passou para 75,4% do total de habitantes.

Apesar de sermos o quinto país do mundo em extensão ter-ritorial, temos 170 milhões hectares de terras que deveriam per-tencer ao Estado e à União, portanto, terras públicas que poderiam ser utilizadas para a reforma agrária. De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), dos 850,2 milhões de hectares que perfazem a área total do país, 102,1 milhões são de unidades de conservação ambiental, 128,5 milhões são de terras indígenas, 420,4 milhões de área total dos imóveis cadastra-dos no INCRA e 29,2 milhões de área ocupada por águas territoriais internas, áreas urbanas e ocupadas por rodovias, além de posses a serem regularizadas. Somando tudo dá um total de 680,2 milhões de hectares, restando 170 milhões de terras devolutas, ocupadas ile-galmente por “proprietários”: grandes latifundiários que possuem áreas maiores do que seus títulos legais indicam (Oliveira, 2004).

Nesses termos, convivemos com uma estrutura fundiária6 em que somente “1% dos proprietários detêm 46% de todas as ter-ras do país” (Mauro & Pericás, 2001, p. 70). Essa alta concentração resulta também na concentração de poder econômico, político e simbólico, criando estruturas de sujeição da população rural, con-sequentemente, institui uma “dinâmica perversa que bloqueia tanto o esforço para aumentar a produção e a produtividade no campo, quanto as tentativas de melhorar o nível de vida da popula-ção rural, e, sobretudo, seu grau de participação no processo polí-tico democrático” (Mendonça, 2006, p. 78).

Com o período do milagre econômico, em meio à ditadura militar, a economia brasileira cresceu de forma surpreendente, ao mesmo tempo que a política de arroxo salarial foi intensificada.

6 Por estrutura fundiária compreende-se a maneira como as propriedades agrá-rias estão organizadas, em termos do número, tamanho e distribuição social, além da forma de acesso da propriedade sobre a terra (Hoffmann & Ney, 2010).

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Entre as principais distorções desse período estava o aumento da concentração fundiária em escalas até então não verificadas, com a “mancha dos latifúndios se expandindo para a Amazônia e todo o Norte do Brasil” (Nakatani, Faleiros & Vargas, 2012, p. 228). Os grandes proprietários, que já não tinham interesse na produção de alimentos para o mercado interno, acabaram por optar pela expor-tação de uma produção especializada e subsidiada pelo governo militar: celulose e papel, álcool, carne de aves, suco de laranja e derivados de soja (Belik, 2007).

Outra grande distorção que marcou fortemente esse perí-odo foi o empreendimento de uma aceleração da industrialização sem a realização de reformas estruturais que respondessem à ques-tão social. Ou seja, pretendia-se avançar na acumulação capitalista sem realizar qualquer mudança social. Isso sem dúvida aprofun-dou os problemas sociais nas grandes cidades e, principalmente, no campo (Fernandes, 2008).

Para Nakatani et al. (2012, p. 227), convivemos nos anos de 1960 e 1970 com um doloroso processo de modernização, cujo resultado foi a “derrota de qualquer proposta de uma efetiva reforma agrária, optando-se por um desenvolvimento capitalista no campo com a manutenção de uma estrutura fundiária pretérita”. É nesse contexto que surge o agronegócio com um pesado com-plexo industrial voltado para a agricultura. O agronegócio ganhou força no Brasil justamente com a crise na década de 1980 e a eco-nomia nacional buscou nesse setor soluções para reequilibrar sua balança financeira.

O agronegócio se constitui pela entrada de empresas transnacionais financiadas pelo sistema financeiro na agricul-tura, fazendo das diversas empresas do setor um bloco que passou a interferir e alterar o modo de produção agrícola no país (MST, 2007).

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Com esse incentivo, as áreas colhidas de cana-de-açúcar foram ampliadas de 2.607.628ha para 4.272.602ha, a área destinada à soja de 8.774.023 para 11.487.303, e o número de bovinos abatidos de 9.572.534 para 13.374.663, entre 1980 e 1990.7 Assim, reverteu-se o saldo comercial brasileiro que estava negativo, porém, com drás-ticos efeitos para a industrialização e a própria agricultura, pois o dinheiro foi destinado apenas para pagamento e rolagem da dívida externa, indicando o esgotamento do padrão de financiamento da agroindústria com base nos recursos do tesouro nacional, além de intensificar ainda mais a estrutura fundiária predatória (Nakatani et al., 2012; Belik, 2007).

Com a retomada do crescimento econômico nos anos 1990 e 2000 assistiu-se ao quadro de retomada do desenvolvimento agrícola, impulsionado pelo agronegócio, com a reestruturação do setor. Inicialmente, fortaleceu-se a distribuição e a organização da produção, com base em padrões de qualidade internacionais, e posteriormente, houve a adoção de tecnologias e investimentos no acesso de novos mercados (Belik, 2007). O resultado foi o aumento da produção e das áreas destinadas à soja, que saiu de 11.487.303ha para 23.327.296ha, de cana-de-açúcar, que foi de 4.272.602 para 9.076.706ha, do número de cabeças de gado abatidas, de 13.374.663 para 29.278,095, e aves, que foi de 962.029.422 para 4.776.233.239, no período de 1990 e 2010.8 O aumento da produção do setor foi acompanhado de mudanças nas relações com demais elos da cadeia, refletindo no crescimento de fusões e internacionalização dos mercados com a participação em commodities9 (Nakatani et al., 2012).

7 Recuperado em 10 dezembro 2012, de www.ipeadata.gov.br.

8 Recuperado em 10 dezembro 2012, de www.ipeadata.gov.br.

9 São produtos provenientes de cultivo ou de extração e por serem mercadorias de nível primário, propensas à transformação em etapas de produção, apresentam nível de negociação global, ou seja, são reguladas pelo mercado internacional com base no capital financeiro mundial (Sraffa, 1977).

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Nesse caso, salvaguardado as devidas possibilidades de desenvolvimento sustentável no setor agrícola e sua importância na economia nacional, em vez de avançarmos sob um processo de reforma agrária, no objetivo de permitir um movimento de demo-cratização da terra, por meio do seu acesso e constituição dos assentamentos rurais – espaço esses que podem, de acordo com Ieno (2007), oportunizar uma melhoria na qualidade de vida da população rural, historicamente excluída em nosso país –, aumen-tamos a concentração fundiária no Brasil na última década, espe-cialmente no âmbito da reprimarização da economia, demandado por um mercado crescente por combustíveis (biodiesel), minérios (especialmente o ferro) e alimentos, enquanto na produção mais diretamente voltada ao mercado interno (milho, arroz, feijão e trigo), a área de cultivo pouco se ampliou.

Por outro lado, surgiu nos últimos anos outra importante questão geradora de novas tensões no setor agrário brasileiro: a entrada do capital estrangeiro na aquisição de terras para agroe-nergias, alimentos e matérias-primas. Trata-se de uma nova fase da mundialização da economia em que a especulação imobiliária no campo fortalece o problema da questão agrária no país, consti-tuindo assim um novo obstáculo para a política de desapropriação de terras com vistas a uma reforma agrária que atende à necessi-dade da população brasileira (Nakatani et al., 2012).

Não de outra forma, o agronegócio e a estratégia de expansão das exportações primárias estabelecidos pelo Governo transformou a política agrária brasileira em mera peça acessória da política eco-nômica. Essa opção fortaleceu a centralidade e o poder do latifún-dio, aprofundando a exclusão social e os conflitos no campo, além de provocar graves problemas ambientais. Nesse caso, percebe--se a política de assentamentos rurais como “um corpo estranho, como também o são várias normas setoriais de proteção ao meio ambiente (código florestal), proteção à saúde (não contaminação

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dos agrotóxicos e demais poluentes) e ações de proteção ao traba-lho etc.” (Delgado, 2011, p. 32).

Se não fosse a luta e resistência dos trabalhadores sem--terra, ribeirinhos, castanheiros, indígenas e quilombolas, entre outros tantos, teríamos a presença bem mais agressiva por parte do capital e os representantes que compõem os grandes projetos da agroindústria atingindo não somente os povos tradicionais que vivem nessas áreas, como assim tem acontecido por décadas e décadas, mas também se “articulando com diversas formas de inte-resses econômicos locais, por vezes predatórios, potencializando situações de conflito e ameaças” (Alarcon & Guerrero, 2012, p. 27).

Ademais, não podemos esquecer que o papel do Estado tem sido por demais tímido em relação à proteção dos povos tradicio-nais, posseiros e trabalhadores rurais em geral, que são quem têm resistido frente à nova ordem global de fazer do país uma superpo-tência econômica, à custa de muita exploração, assédio, violência e expulsões de pessoas do campo, do seu local de vida e de trabalho, com os quais constituem a história e a memória do seu povo e cos-tumes (Moreira, 2005). Como exemplo, Alarcon e Guerrero (2012, p. 28) reporta-nos ao debate do próprio modo como muitos pro-gramas e políticas setoriais governamentais, em especial àquelas executadas pelo INCRA, entendem a população do campo “como obsolescências históricas que precisam ser trabalhadas para ascen-der à modernidade”.

Desse confronto entre, de um lado a busca de industriali-zação e modernização do meio rural e, do outro, a resistência de atores do campo por meio de seus movimentos sociais, torna-se importante considerar que o tema da luta pela terra não caducou nem representa um atraso em relação ao processo de capitalização de todas as esferas da vida no nosso país. Para sustentar tal argu-mento, Sauer (2010) apresenta, pelo menos, três pontos: primeiro, que é preciso entender o rural não em sua relação dicotômica ou

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oposta ao urbano, mas como espaço de interações, tensões e inter-câmbios; em segundo lugar, que os atores participantes dessa luta revestem-se de uma ação política que está para além da conquista da terra. Nas palavras do autor: “transcendem à luta pelo acesso aos meios de produção e se transformam em um processo de cons-trução de sujeitos políticos, recriando relações sociais e transfor-mando o espaço rural na constituição de uma nova ruralidade” (Sauer, 2010, p. 36). Por fim, que a terra conquistada pode se tornar espaço de trabalho, portanto de identidade, assim como um lugar de reconstrução de vida, cidadania e dignidade.

Além disso, o meio rural tem se convertido num espaço extremamente diversificado em seu modo de configuração, pas-sando a incorporar uma série de transformações a depender de contextos sociais, culturais e regionais, de modo a apreender novas ruralidades em curso. Tais transformações não ocorrem em opo-sição aos contextos urbanos, mas estão em franca interação com os mesmos. Carneiro (2012), a partir da realidade por ela estu-dada, destaca que novos elementos vêm sendo incorporados pelo meio rural, tais como o desenvolvimento de atividades não agríco-las, a exemplo do turismo, da sua definição como espaço de resi-dência alternativo aos inúmeros problemas dos centros urbanos, bem como de sua defesa por meio da constituição de um ideário ambientalista.

Trata-se, portanto, de uma discussão sobre o tipo de ação desenvolvimentista que está em curso no contexto rural brasileiro e latino-americano. Ainda mais se considerarmos o contexto de inte-riorização da educação superior e o papel que ela tem desempe-nhado na redefinição da imagem das cidades de médio e pequeno porte, bem como da realidade do campo. Inseridas nessas locali-dades, em meio as suas especificidades e problemas, apoiamo-nos em Sousa Filho (2006) com suas reflexões sobre a universidade e sua missão, para pensarmos de que maneira as Instituições de Ensino Superior têm indagado sobre as carências, potencialidades

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e situações-limites vividos no contexto rural: que contribuições, ações e estratégias a universidade tem oferecido à realidade do campo para o enfrentamento da questão agrária e de luta pela terra? Que sugestões têm sido apresentadas à sociedade e aos poderes públicos? Que diálogos as instituições de ensino podem sustentar com os diversos segmentos sociais, discutindo questões relevantes para a população local, sobre os projetos de assentamentos rurais, a agricultura familiar, a educação e saúde no campo, o agronegócio e os conflitos no campo?

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Circunscrevendo esses questionamentos em torno da Psicologia e sua relação com o contexto rural e a questão agrária, buscamos em Martín-Baró (2009) suas indagações sobre como temos contribuído com os problemas cruciais de nossos povos, com a bagagem teórica e experiência prático-profissional que dis-pomos hoje.

De que maneira nossas teorias e práticas psicológicas têm se preocupado (ou mesmo se ocupado em suas intervenções) com o rural? Partimos da compreensão do rural como espaço idealizado e bucólico, com atraso e modos de vida a serem superados pelo pro-gresso, ou como um espaço conflitivo, marcado por dinâmicas e processos variados, diversos, permeado por situações de exploração e de desapropriação de direitos? Daí a importância de nossa cate-goria profissional e dos cursos de formação de psicólogos, especial-mente aqueles localizados nas cidades de médio e pequeno porte, se envolverem com o contexto das ruralidades, para que possamos avançar na proposição de uma Psicologia mais próxima e compro-metida com a realidade e as necessidades em que vive nossos povos.

Desde que deu início o debate sobre o compromisso social da Psicologia, com diversos questionamentos sobre a função e rele-vância do seu trabalho em relação ao compromisso com a sociedade

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brasileira, pesquisadores, agências formadoras, sistema conselhos, sindicatos e demais entidades da profissão propõem atividades acadêmico-científicas e de intercâmbio profissional para qualificar a atuação dos psicólogos diante das mais diversas situações de desi-gualdade e iniquidade que sofre a população.

Foi assim que avançamos com articulações importantes entre a Psicologia e os setores progressistas da saúde (movimento de reformas psiquiátrica e sanitária), educação, assistência social, segurança pública e demais grupos de militância voltados para a proteção da criança e do adolescente, da mulher e do idoso, diversi-dade sexual, direitos humanos e movimento sindical. Isso resultou não só num maior entendimento da nossa categoria profissio-nal frente ao campo das políticas públicas, como contribuiu para uma maior empregabilidade para os psicólogos no setor público (Vasconcelos, 2009).

Porém, cabe o registro de que o envolvimento da Psicologia com as chamadas áreas emergentes e as necessidades da grande maioria da população brasileira, apesar dos avanços, esteve vol-tada, quase que exclusivamente, para o contexto urbano. E mesmo com o desenvolvimento de Determinadas pesquisas e experiências de intervenção refletindo sobre as possíveis contribuições dos psi-cólogos às populações do campo, ainda assim é tímida a presença da Psicologia no contexto das ruralidades (Martins et al., 2010).

Apesar dessa timidez, podemos identificar algumas expe-riências acumuladas de trabalho desenvolvidos por psicólogos na questão da terra, em que comparecem um conjunto de aportes teó-ricos e metodológicos que se tornaram essenciais para a garantia de uma atuação comprometida com a transformação da realidade de opressão vivida pelos trabalhadores e trabalhadoras do campo, pelos povos indígenas e remanescentes de quilombos.

Tais aportes vêm, em grande medida, do campo da Psicologia Social e da Psicologia Comunitária (Lane, 1994; Martín-Baró,

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1996; Campos, 1999; Góis, 2005; Brandão & Bonfim, 1999; Ieno Neto, 2007), com trabalhos em torno das categorias de estudo da Psicologia Social, tais como identidade, atividade e consciência, bem como dos processos comunitários de organização participa-tiva e emancipação (Lane, 1994; Lane & Sawaia, 1995; Ieno Neto et al., 1985).

Outro campo marcadamente presente são as contribuições advindas da Educação Popular (Freire, 1987, 2005), com as ações de alfabetização de jovens e adultos, dos círculos de cultura, com vistas a um processo de tomada de consciência dos mecanismos de exploração vividos pelos agricultores familiares na sua relação de trabalho com a terra.

Um terceiro campo tem relação com os Direitos Humanos (Zenaide, 2006) na busca pela garantia do direito de acesso à terra, nas denúncias de violação de direitos sofridos por trabalhadores que lutam por terra, em busca da permanência no seu território ou do seu reconhecimento.

Entendemos que na atuação do profissional de Psicologia, bem como no seu processo de formação, algumas diretrizes neces-sitam ser perseguidas para que possamos avançar no compromisso social dessa ciência e profissão:

1. Conhecer a dinâmica histórica, social e política do nosso pais no que tange ao conjunto de lutas sociais deflagradas em torno da democratização e do acesso à terra. O Brasil se configura mundialmente como um dos países de maior concentração fundiária do mundo e isso impacta diretamente na produção da existência de inúmeros trabalhadores e trabalhadoras que vivem no campo. Aqui, entendemos ser fundamental apreender a heterogeneidade que se formou no meio rural brasileiro por meio dos variados modos de relação com a terra, bem como dos processos sociais gerados nesse contexto.

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2. Considerar que os trabalhadores e trabalhadoras do campo são portadores de uma diversidade cultural, econômica e regional nesses modos de relação com a terra e o meio rural, fato que reverbera também em diferentes modos de subjetivação, cons-tituídas em meio às particularidades históricas e culturais das quais são portadores. Leite e Dimenstein (2011, 2010) apontam como muitos dos trabalhadores envolvidos nas lutas dos movi-mentos sociais, a exemplo do MST, acabam por incorporar, não raro de modo conflitivo, novas modalidades subjetivas quando de seu contato com o processo de formação política mediado por essas agências de luta, ou seja, novos modos de subjetivação são forjados no encontro entre a trajetória de vida desses atores e sua entrada na militância política.

3. Contribuir com o debate sobre os processos sociais do campo, os movimentos sociais rurais e as novas ruralidades, bem como sobre o campo das políticas públicas relativas ao meio rural, a exemplo da reforma agrária e da assistência técnica e extensão rural. Nesse debate, cabe um posicionamento de que a política de reforma agrária, longe de representar um retrocesso face ao modelo dominante do agronegócio ou de que seja vista como mera medida compensatória, consiste em uma conquista fun-damental àqueles que da terra precisam para poder construir novas possibilidades de vida no meio rural. Nesses termos, con-cordamos com Sauer (2010, p. 38): “A luta social pela realização de uma reforma agrária está, portanto, baseada, em primeiro lugar, na busca de instrumentos que gerem emprego e renda, criando melhores condições de vida no meio rural”.

4. Reconhecer a necessidade de uma articulação com outras áreas do conhecimento, numa postura dialógica com os variados cam-pos do saber direcionados para o meio rural. Há uma gama de reflexões advindas do campo científico e profissional que tem auxiliado na compreensão dos processos sociais, culturais, políticos e econômicos do campo. Notadamente, podemos citar diversos ramos da Sociologia e Antropologia, das Ciências Agrárias, Economia, Direitos Humanos, Educação popular

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entre outros. É imprescindível, nessa articulação, considerar os saberes da tradição e da cultura na qual estão imersas as pessoas do campo, sob pena de termos uma visão distorcida e descolada de sua realidade e de suas visões de mundo.

5. Apostar numa atuação generalista do psicólogo. Se a atuação com o meio rural nos impele a um exercício inter e multidis-ciplinar, do mesmo modo, um conjunto de demandas que se voltará para o profissional de Psicologia terá natureza bastante heterogênea (demandas no campo da saúde, educação, orga-nização social das famílias, gestão da produção, cultura, lazer, arte etc.). Assim, torna-se fundamental fortalecer um processo de formação desse profissional pautado numa concepção gene-ralista que orienta o campo da Psicologia.

Considerações finais

Sem dúvida alguma que estamos diante de um campo de discussões recente na Psicologia, embora possamos dizer que as contribuições até aqui produzidas são inquestionáveis.

É forçoso reconhecer, dado o cenário atual, que nossas agendas de pesquisa, ações de extensão e atuação profissional necessitam incorporar as questões levantadas no presente capítulo, a exemplo do processo de interiorização da formação e atuação em Psicologia, das novas ruralidades que se desenham no campo bra-sileiro e da diversidade de atores sociais e dos processos de subjeti-vação inaugurados.

As possibilidades de atuação do psicólogo no que diz respeito ao meio rural e toda diversidade que ele se reveste são múltiplas. O cotidiano de vida das pessoas dota-se de uma hetero-geneidade e intensidade que permite uma variedade de interlocu-ções com tal riqueza. O que se apontou, até aqui, pode ser tomado como ponto de partida ou de reflexão para proposições outras. Desdobramentos podem surgir e o convívio com as comunidades

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pode suscitar inúmeras ideias de aproximação e de diálogo com o saber e o fazer psicológico. Para tanto, não podemos perder de vista a proposição de que esse saber e fazer não estão desarticulados de concepções políticas que podem estancar ou potencializar a eman-cipação dos atores envolvidos.

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A categoria juventude em contextos rurais: o

dilema da migração

Otacílio de Oliveira Jr. Marco Aurélio Máximo Prado

O presente texto é fruto de pesquisa sobre a migração juve-nil e a trajetória de jovens rurais que teve como objetivo

investigar como jovens migrantes, filhos de agricultores familiares, davam sentido ao seu percurso migratório. Em diferentes discur-sos, a criação de melhores condições econômicas junto à terra tem sido apontada como reversão do processo migratório juvenil, pois permitiria a realização de projetos de vida no campo como opção legítima e passível de ser vivida. A reversão da migração também permitiria equacionar uma crise de reprodução da agricultura fami-liar, fruto do esvaziamento das zonas rurais que a migração juvenil geraria. As variáveis que garantiriam uma resolução das dificulda-des de reprodução da agricultura familiar têm sido consideradas como sinônimo de resolução do conjunto de problemas enfrenta-dos pelos jovens nesses contextos. A permanência dos jovens, por

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sua vez, contribuiria para a manutenção de modos de vida singu-lares erigidos em torno da agricultura familiar. Há, portanto, uma forte associação entre crise da agricultura familiar, juventude rural e migração.

Essa associação faz com que os jovens rurais e seus projetos sejam considerados apenas a partir desse prisma. Fora desse con-junto de associações que pressupõe a permanência como um valor inequívoco, o discurso dos jovens é deslegitimado, pois apontaria para a sedução da cidade e a desvalorização dos modos de vida vin-culados à ruralidade.

No entanto, os sentidos atribuídos à migração podem reve-lar projetos diversos que incitam a repensar o campo no espaço de disputa por diferentes discursos e sociabilidades. Nem todos esses posicionamentos juvenis são a princípio contraditórios ou hostis à permanência e aos modos de vida vinculados à pequena agricul-tura. Mas exigem que a capacidade reflexiva desenvolvida pelos jovens em seu cotidiano (Heller, 1977) seja encarada como possibi-lidade legítima de entendimento da questão.

Tendo isso em vista, nos propomos neste capítulo a discutir como a categoria juventude rural tem sido construída em torno do tema da migração. A temática migratória gera discursos inflama-dos, seja como argumento na defesa das minorias do campo, seja contribuindo para a sua expulsão. Como consequência, a categoria migrante aparece nos discursos, sobretudo naqueles que transitam cotidianamente, como algo marginal ou maldito. Não buscamos uma posição de neutralidade, mas suspender o peso de posiciona-mentos que cercam esse debate é um esforço que visamos enfrentar. Pode-se objetar o risco de legitimarmos projetos desenvolvimentis-tas que contribuem para o reforço da concentração fundiária e da opressão de diferentes grupos ao dar relevo aos discursos de jovens migrantes. No entanto, o risco se justifica quando a compreensão nasce do desejo de buscar alternativas que considerem os discursos

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juvenis legítimos e os incluam na definição de projetos de defesa da agricultura familiar.

O fenômeno da migração rural na história brasileira

O tema da migração rural urbana é bastante marcante na cultura brasileira. Há todo um imaginário constituído por ima-gens, romances, filmes e canções. A figura central que sintetiza todas essas manifestações presentes em obras como Vidas secas de Graciliano Ramos ou no cancioneiro de Luiz Gonzaga é o retirante nordestino. Fugindo do flagelo das secas, ele migra com sua família para a cidade grande. Sua condição é frágil. Vem miserável, sem nenhuma garantia. Junto a todos os reveses que permeiam as traje-tórias dos migrantes empobrecidos, existe uma marca. O migrante como portador de mau agouro.

Mas o que justifica essa presença tão marcante do migrante no imaginário brasileiro? O que causa a simpatia e ao mesmo tempo o horror? Podemos dizer que o que imprimiu essa marca foi o contingente maciço de pessoas que deixaram as regiões rurais entre as décadas de 1960 e 1980. Nesse período, o êxodo rural bra-sileiro contabilizou 27 milhões de pessoas. “Poucos países conhe-ceram movimentos migratórios tão intensos, quer se considere a proporção ou a quantidade absoluta da população rural atingida” (Camarano e Abramovay, 1999, p. 1). Assim, muitos de nós somos descendentes ou fazemos parte dessas pessoas que vieram para as cidades em busca de algo. Muitas histórias circulam e trazem em seu bojo um cheiro de terra.

Esse fenômeno, tão significativo como podemos perceber, motivou diferentes estudiosos a compreender o que ocorria para além dos andrajos da figura dos migrantes. Num momento em que o país intensificava a sua industrialização, um contingente grande de pessoas oriundas das zonas rurais tornava-se trabalhador urbano.

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Destacamos os estudos seminais de Antônio Cândido, Os Parceiros do Rio Bonito publicado em 1964 e A Caminho da cidade de Eunice Durham publicado em1973 como tentativas frutíferas de entender esses fenômenos. Resgatamo-los não apenas pelo seu interesse his-tórico, mas pela contribuição teórica que nos oferecem instrumen-tos para o entendimento da persistência do processo migratório. Principalmente ajudam-nos a compreender o lugar subalterno dos pequenos produtores do país e como a migração vai se instituciona-lizando como forma de sobrevivência dessas mesmas populações.

Entre meados da década de 1940 e 1950, Cândido (2001) estudou a condição social e as formas de sociabilidade dos chama-dos caipiras, em sua maioria pequenos agricultores, agregados ou posseiros de uma porção extensa do território brasileiro numa área que recobria parte dos estados de São Paulo, Minas, Mato Grosso, Goiás e Paraná. Num período de intensificação da industrialização do país, no qual cidades como São Paulo e Rio recebiam um grande afluxo de migrantes provindos das zonas rurais. Um dos principais interesses do autor era compreender o processo de transformação dos modos de vida dessas populações. Quais eram os impactos da economia de mercado e seus bens de consumo sobre grupos que durante pelos menos um par de séculos gestaram uma forma relati-vamente autônoma de se reproduzirem, ainda que num equilíbrio precário entre as suas necessidades e os recursos do meio físico? Para responder a essa questão foi realizada uma reconstituição his-tórica da sociabilidade caipira a partir do estudo de suas formas de ocupação da terra, das técnicas de produção utilizadas, dos laços de solidariedade e dos seus recursos alimentares, portanto, de sua cultura. A partir desse quadro, Cândido (2001) propôs uma análise das mudanças que essa população sofria em face do fortalecimento da civilização urbana. No nosso caso, interessa-nos apenas desta-car de forma o mais sintética possível as contribuições teóricas do autor para o entendimento da migração rural-urbana.

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Durham (1973) por sua vez, realizou durante a década de 1960, um extenso estudo sobre o processo de integração das popu-lações rurais brasileiras ao cenário de intensificação de industriali-zação do país. Tendo como pano de fundo uma revisão de autores que discutiam o impacto da expansão capitalista com as zonas rurais, como o já citado Cândido (2001), analisou dados demográfi-cos do período e realizou diversas pesquisas de campo com migran-tes de origem rural:

O nosso problema fundamental é analisar as transforma-ções que devem ocorrer no comportamento e na cultura das populações envolvidas na expansão de um sistema que, se de um lado aumenta a pobreza e desagrega a base tradicional de existência das populações economica-mente marginais, de outro incorpora percentagens dessa mesma população como mão de obra necessária ao seu próprio desenvolvimento (Durham, 1973, p. 9).

Desse modo, seus interesses se concentravam em entender o processo de intensas transformações sociais pelo qual uma popula-ção historicamente marginal representada por pequenos agriculto-res passava naquele período. Seu enfoque compreendia o processo migratório como parte inerente ao processo de modernização do país1. Tendo em vista a contribuição desses dois autores, precisa-mos então partir de um entendimento mínimo de como se consti-tuía a economia de subsistência reproduzida por esses grupos.

Para Cândido (2001), a existência de um determinado grupo depende do equilíbrio relativo entre as suas necessidades e os recursos do meio que permitem satisfazê-las. A manutenção desse equilíbrio requer do grupo soluções “mais ou menos adequadas

1 Posição um pouco divergente de Cândido (2001). Este último demarcava de for-ma mais incisiva a necessidade de valorização desses grupos através de incenti-vos públicos como reforma agrária.

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e completas, das quais depende a eficácia e a própria natureza daquele equilíbrio. As soluções por sua vez dependem da quanti-dade e qualidade das necessidades a serem satisfeitas” (Cândido, 2001, p. 28). Nesse sentido, destaca-se a importância da media-ção do grupo para a satisfação dessas necessidades. Não apenas mediação, mas as próprias necessidades são socialmente criadas a partir da relação entre os humanos e o meio natural. O equilíbrio social dependerá da correlação entre as necessidades e suas possi-bilidades de satisfação. Os momentos de crise seriam justamente a impossibilidades de correlacioná-las. O impulso gerador da socie-dade humana seria justamente o aparecimento “de necessidades sempre renovadas e multiplicadas, a que correspondem recursos também renovados e multiplicados para satisfazê-las, dando lugar a permanente alteração dos vínculos entre homem e meio natural” (Cândido, 2001, p. 29).

Dessa forma, a manutenção de tal equilíbrio para cada grupo depende de uma organização social (nesse caso, diferentes práticas de ajuda mútua) que permita a exploração do meio físico em busca de recursos de subsistência, os quais, por sua vez, permi-tem se aproximarem ou não da satisfação das necessidades postas. Como o próprio autor destaca, essas equações simplificadoras per-mitem pensarmos em fórmulas para o equilíbrio grupal no tocante à subsistência. Ora, podemos nos perguntar: o que justificam fórmulas tão reducionistas? Nas quais a cultura parece funcionar como um “conjunto orgânico”? Ainda que o autor em diversas pas-sagens reforce o caráter sociocultural das manifestações humanas, sua preocupação é de cairmos num relativismo extremo. O reco-nhecimento de traços culturais disfuncionais tem em vista apontar aspectos que dificultariam não somente a integração dos grupos, mas principalmente a sua sobrevivência. É por isso que ele recorre à ideia de mínimos sociais e vitais:

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De qualquer modo, há para cada cultura, em cada momento, certos mínimos abaixo dos quais não se pode falar em equilíbrio. Mínimos vitais de alimenta-ção e abrigo, mínimos sociais de organização para obtê--los e garantir a regularidade das relações humanas. Formulados nesses termos, o equilíbrio social depende duma equação entre o mínimo social e o mínimo vital. [...] Dir-se-á, então, que um grupo ou camada vive segundo mínimos vitais e sociais quando se pode, veros-similmente, supor que com menos recursos de subsis-tência, a vida orgânica não seria possível, e com menor organização das relações não seria viável a vida social: teríamos fome no primeiro caso, anomia no segundo (Cândido, 2001, pp. 32-35).

Os mínimos sociais seriam o mínimo de relações sociais ou de organizações grupais que permitem a existência desses gru-pos em face às suas condições precárias de existência. Sem isso, o que teríamos seria uma anomia, pois a ausência de organização de ajuda mútua dificultaria bastante a sobrevivência, seja ela física ou de ordem mental. Esses mínimos sociais são representados pelo trabalho empreendido pela família conjugal, os laços de obrigação presentes nas relações de parentesco e compadrio e por último, os laços de vizinhança. Essas relações geram vínculos de solidariedade e permitem a reprodução de populações que vivem num isolamento parcial, se mobilizando não apenas para a organização do trabalho como organizando festas e momentos diversos de lazer. Seu isola-mento é relativo, pois sempre houve o contato com o comércio das vilas na busca de produtos impossíveis de obtê-los através da pro-dução doméstica. Além disso, Durham (1973) chama-nos a atenção que essas características se reproduziram nas diversas manifesta-ções dos pequenos agricultores brasileiros no período.

Desse modo, a existência dos pequenos agricultores pode ser entendida como um esforço de manutenção de mínimos sociais

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e vitais de existência. Suas formas de organização social e cultural competem para essa manutenção. Dentre essas formas, a mobili-dade para novas terras à medida que as antigas perdiam sua ferti-lidade e se fragmentavam com a herança dos filhos e netos, foi um recurso importante, o que engendrava um processo de povoamento disperso desses grupos. Isso permitia não apenas um rendimento maior da produção frente às técnicas utilizadas como que o patri-mônio familiar fosse conservado a partir da aquisição de novas por-ções do território:

[...] uma característica importante da antiga vida caipira era a presença de terras disponíveis, que desempenha-vam papel duplo e de certo modo contraditório. De um lado, constituíam fator de reequilíbrio, na medida que permitiam reajustar, sempre que necessário, situações tornadas difíceis economicamente pela subdivisão da propriedade, devida herança, ou pela impossibilidade de provar os direitos sobre a terra. Estes fatores, aliás, eram mais poderosos como estímulo á mobilidade do caipira do que a instabilidade pura e simples, que se tem querido explicar, inclusive da mestiçagem com o índio; mas cujas principais determinantes são sociais, sobre-levando o caráter precário dos títulos de propriedade (Cândido, 2001, p. 109).

A economia de subsistência no Brasil sempre existiu à mar-gem da grande lavoura, forma de trabalho livre numa sociedade voltada para a exportação de produtos agrícolas. Essa existência se contrapõe ao trabalho considerado pesado e mal pago do latifún-dio, marcado principalmente pelo uso de mão de obra escrava. Esse conjunto de trabalhadores livres divididos entre ex-latifundiários empobrecidos, emigrados, mestiços e libertos viviam marginal-mente ao sistema econômico colonial (Franco, 1997). Sua exis-tência fora permitida em grande parte pela abundância de terras

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não ocupadas disponíveis. À medida que suas famílias cresciam e que a exploração do solo com técnicas rudimentares inviabilizava a produção, novas terras eram buscadas e novos agrupamentos eram constituídos. Destaca-se assim como a mobilidade vai se con-figurando um recurso institucionalizado nessas populações para reproduzirem suas formas de vida (Durham, 1973, p. 52):

A ocupação de grande parte do território nacional havia sido feita por uma população predominantemente livre, dedicada em parte à agricultura, em parte à criação, voltada para uma economia de subsistência, mantendo relações precárias com as áreas urbanas e as áreas de pro-dução agrícola mercantil.

Mais tarde, a legalização das propriedades e o aumento da densidade demográfica impediram que esse equilíbrio fosse resta-belecido. As terras passaram a ser valorizadas e adquiridas pelas agroindústrias nascentes. A aquisição legalizada da terra benefi-ciava aqueles que participavam do sistema político e administra-tivo (Ibidem). Dessa forma, o fazendeiro ou o latifundiário, ao incorporar terras ocupadas através da posse dos títulos de proprie-dade, transformou esses trabalhadores livres em posseiros e agre-gados, desconhecendo dessa forma seu direito legítimo à terra. Estabelecem-se assim novos padrões de propriedade e dominação de forma a integrar subalternamente os pequenos agricultores ao sistema político nacional.

Esse processo de subordinação se aprofunda. A introdução da exploração comercial da grande propriedade pela empresa rural e mercantil gera a expansão da economia monetária para territórios que se dedicavam a uma economia exclusivamente de subsistência. Os trabalhadores antes mantidos numa relação de dominação que se sustentava num plano moral e político representado por laços de lealdade com o fazendeiro passam também a se submeterem a uma relação de espoliação econômica.

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Além disso, a introdução de bens de consumo modificou a equação anterior entre necessidades dos grupos e sua satisfação. As necessidades anteriores circunscritas a níveis próximos dos míni-mos vitais passam a se elevar. Aquilo que antes era produzido no âmbito doméstico passa a ser obtido através da compra e venda. Isso faz com que precisem trabalhar mais para vender cada vez mais. Em consequência, as relações vicinais de ajuda mútua que juntamente à mobilidade concorriam para a reprodução de suas formas de vida diminuem diante do aumento da necessidade de individualização do seu trabalho e obrigam a reorganizar seus vín-culos: “Quem não faz assim deve abandonar o campo pela cidade, ou mergulhar nas etapas mais acentuadas de desorganização, que conduzem a anomia”(Cândido, 2001, p. 213).

A falta de terras livres e o desconhecimento de técnicas mais produtivas fazem com que o equipamento tradicional não possa satisfazer as novas necessidades criadas. Assim, as necessi-dades são multiplicadas enquanto os seus meios de satisfação são insuficientes. Com isso, destaca-se o reforço da condição de um equilíbrio precário nas formas de reprodução social dos pequenos agricultores. Ademais, esse contexto permitiu processos de compa-ração social que criou novos hábitos. O trabalhador que descobre técnicas menos árduas e mais eficientes começa a achar insupor-tável a tarefa que executa com técnicas agora vistas como rudi-mentares. Sem a possibilidade de comparação, essas tarefas eram simplesmente aceitas. Somado a isso, as práticas e usos associados à urbanidade começam a circular como signo de prestígio pessoal. Os meios de comunicação começam a disseminar novos valores e objetos de consumo.

Nesse sentido, há possibilidades variadas no que tange a resistência e assimilação. Disso vai depender da situação fundiária, o que implica o tamanho da propriedade, a situação quanto à posse da terra, se estamos falando de um sitiante, de um agregado ou posseiro, de como se reorganiza o trabalho familiar e, em última

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instância, da flexibilidade e disposição para se adequar às novas formas de trabalho, o que nesse momento significou abandonar padrões de sociabilidade.

É justamente nessa dinâmica complexa que a migração para as cidades aparece como uma possibilidade de enfrentamento dos dilemas vivenciados. No interior das dificuldades de satisfação de uma gama de necessidades com os meios existentes está, num extremo, a fome e num outro, o fascínio por novos valores e hábi-tos. Sem esquecermos, é claro, do preconceito e desvalorização dos seus meios de vida.

Diante do contexto apresentado, a migração se torna mas-siva. O antigo recurso da mobilidade usado como estratégia de conservação das formas de vida se imbricou às novas necessidades impostas. Podemos dizer que a migração vai cada vez mais se ins-titucionalizando como forma de enfrentamento das dificuldades vivenciadas. Para Durham (1973), essa tradição migratória pode ser entendida como um recurso tradicional para aliviar tensões econô-micas e sociais. A incorporação dessas formas de vida à economia monetária implica na conservação da mobilidade espacial como um recurso adaptativo importante:

Numa cultura de mínimos vitais qualquer variação nas condições de trabalho, clima, solo, relação com o patrão, representa frequentemente a diferença fundamental entre subsistência e fome. É este fator que torna a mobi-lidade uma característica tão generalizada da vida rural brasileira (Ibidem, p. 120).

Desse modo, ao se constituir como uma tradição migrató-ria, esse mecanismo torna-se uma “solução” para diferentes tipos de problemas, de tensões características do funcionamento da vida tradicional, como dificuldades econômicas e conflitos familiares. Podemos entrever diferentes formas de subordinação relativas às

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posições de gênero, orientação sexual, entre outros, que têm na mobilidade uma tentativa de resolução.

Quase meio século depois, ainda que muitas transforma-ções tenham ocorrido em nossa sociedade, a pequena agricultura continua marginalizada em nosso país. Os incentivos à grande empresa rural apenas se intensificaram ao longo desses anos. Como nos diz Wanderley (1996), a história do campesinato brasileiro é um esforço de luta constante para se manter próximo aos míni-mos vitais e sociais discutidos por Cândido em 1964. No interior dessa resistência, a mobilidade espacial sempre se conservou como um recurso importante para a reprodução da sociabilidade desses pequenos agricultores. Ao mesmo tempo, atesta a sua subalterni-dade e falta de interesse público:

Evidentemente, não é possível generalizar esta situação limite – isto é, este padrão correspondente aos mínimos vitais e sociais – para o conjunto do campesinato brasi-leiros, em seus diversos momentos e em todo o território nacional. Porém, mesmo considerando que as formas da precariedade são diferenciadas, os camponeses tiveram, de uma maneira ou de outra, que abrir caminho entre as dificuldades alternativas que encontravam: subme-ter-se à grande propriedade ou isolar-se em áreas mais distantes; depender exclusivamente dos insuficientes resultados do trabalho no sítio ou completar a renda, trabalhando no eito de propriedades alheias; migrar temporária ou definitivamente (Wanderley, 1996, p. 9).

Mesmo diante da manutenção desses dilemas, o estudo da migração rural-urbana deixou de figurar entre os interesses prio-ritários dos estudiosos sobre o tema: “Tudo se passa como se o esvaziamento social, demográfico ou econômico do campo fosse uma fatalidade inerente ao processo de desenvolvimento ou como se acreditasse que o fenômeno estudado já tivesse perdido sua

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importância quantitativa” (Camarano &Abramovay,1999, p. 1). O que é confirmado ao realizarmos uma revisão sobre o tema. A não ser alguns estudos de casos sobre a condição juvenil no campo que serão apresentados, não foi encontrado nenhuma pesquisa sistemá-tica do ponto de vista demográfico sobre a migração rural-urbana no país desde a publicação de Camarano e Abramovay em 1999. Os dados analisados naquela pesquisa tiveram como base o Censo de 1991 e a Contagem Populacional de 1996. Cobriram o período que vai da década de 1950 a meados de 1990. Há um intervalo de quase duas décadas entre o panorama traçado por esses autores e o momento presente. Contudo, é notória a persistência do fenômeno do ponto de vista quantitativo na década de 1990. Entre 1990 e 1995, o movimento migratório rural-urbano foi de 5,5 milhões de pes-soas. O êxodo rural brasileiro no período é, sobretudo, nordestino: “De todos os migrantes rurais do país, 54, 6 % saíram do Nordeste entre 1990 e 1995, o que representou 31, 1 % da população que vivia na zona rural da região no início da década” (Ibidem, p. 5).

Tendo em vista a importância dessa temática para o enten-dimento das condições de vida das juventudes rurais, queríamos demarcar como o processo migratório se constitui como uma dinâ-mica histórica e estrutural das populações rurais pauperizadas no Brasil. Essa demarcação busca situar a trajetória dos jovens rurais como parte integrante de um extenso histórico de subordinação dos pequenos agricultores. Em tal narrativa, pudemos perceber a migração como um fenômeno contraditório, pois ao mesmo tempo que permite a reprodução das formas de vida vinculadas à pequena agricultura reforça a sua condição de precariedade.

Juventude rural como categoria social

A definição do que seria juventude rural enquanto cate-goria distintiva de outras experiências juvenis tem apontado para a necessidade de investigar os contextos específicos nos quais a

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categoria tem sido construída e o sentido que ela assume para os atores sociais (Castro, 2006). Em vez da busca por uma determi-nação unívoca do que seria juventude, estamos considerando-a como uma forma de conferir sentido à hierarquia geracional e às relações de poder que esta enseja. Conjuntamente às desigualdades econômicas, raciais e de gênero, existem desigualdades geracionais que determinam diferentes formas de subordinação e interpela-ção do poder. Desse modo, juventude seria vista como uma forma suis generis de dar sentido à hierarquia geracional através de uma série de atribuições sociais conferidas aos mais jovens em relação a outras categorias em nossa sociedade (Bourdieu, 1983).

Nas pesquisas sobre o tema, a categoria juventude rural se apresenta principalmente sobre duas matrizes analíticas: uma que enfatiza a dimensão geográfica onde residem os jovens pes-quisados enfatizando a relação com o território ao qual pertencem (jovens do sertão, jovens ribeirinhos, entre outros) e outra que leva em conta o processo de socialização dos jovens em algumas ocupa-ções (jovens agricultores, jovens empresários rurais entre outras) (Weisheimer, 2005). A partir dessas óticas, com destaque para a das ocupações, a participação da juventude rural nas demais esferas sociais fica invisibilizada.

Essa invisibilidade pode ser pensada à luz de três dimen-sões. A primeira pela visão estereotipada dos jovens rurais a partir de uma visão urbana de juventude, a qual pressupõe uma cultura propriamente juvenil e de adiamento de papéis e responsabilida-des dos adultos, principalmente quanto ao trabalho. Assim, como é comum aos jovens rurais trabalharem e casarem desde cedo, mui-tas vezes sem um período grande de escolarização, não são vistos como jovens. Como consequência, têm sido privados de políticas públicas específicas (Carneiro, 2005b). A segunda dimensão dessa invisibilidade refere-se ao lugar de subordinação desses jovens nas próprias comunidades em que vivem, o que tem sido responsá-vel por uma lacuna na representação política dessa população no

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espaço público da sociedade (Stropasolas, 2006). Como salienta esse autor, os jovens e as mulheres, o que ele chama de “outros” do espaço rural, veem seus desejos, visões e expectativas relegadas a um segundo plano, predominando, dessa forma, os interesses de segmentos hegemônicos da sociedade rural. Uma terceira dimen-são refere-se justamente às matrizes apontadas por Weisheimer (2005) anteriormente. A ênfase nos aspectos econômicos e formas de socialização voltadas para o trabalho agrícola podem invisibili-zar dinâmicas complexas nas quais os jovens participam.

A despeito dessa invisibilidade, diferentes autores têm se preocupado em apreender a categoria de uma forma mais abran-gente. Para esses (Abramovay, Silvestro, Cortina, Baldissera, Ferrari &Testa, 2001; Brumer, 2008; Carneiro; 1998, 2005; Castro, 2005, 2006, 2009; Durston, 1998; Strapasolas, 2004, 2006; Wanderley, 2007; Weisheimer, 2005) compreender a juventude rural como categoria implica analisar o espaço de reprodução social no qual se constituem e as tensões e rupturas que apontam para diferentes possibilidades de socialização.

A pertença a uma ruralidade representada pela filiação à agricultura familiar e às mudanças ou crises que esse modelo vem sofrendo tem se refletido na maneira como a própria juventude no campo tem sido entendida. Como aponta Weisheimer (2005) têm predominado “enfoques que destacam a diversidade das formas em que a modernização e a complexificação social do rural afetam a juventude” (Ibidemp. 17). Desse modo, teríamos, por um lado, uma caracterização da agricultura familiar, camponesa ou tradicional, como um modo de vida que comporta relações de poder específicas nas quais os jovens ocupam posições determinadas no interior de uma hierarquia própria. Por outro, esse modo de vida tem sofrido um processo de aprofundamento de dificuldades econômicas de reprodução e falta de políticas públicas consistentes que contri-buam para sua sobrevivência (Abramovay et al., 2001). Somado a isso, uma série de mudanças de valores e questionamento desses

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modos de vida (Carneiro, 1998; Strapasolas, 2006) tem revelado rupturas nas relações de poder concebidas como tradicionais. É no interior desse debate entre ruptura e continuidade, entre possibi-lidades de reprodução e esvaziamento do campo que a categoria juventude rural tem sido analisada e construída como objeto de estudo. Dado esse enfoque, a migração tem sido considerada um grande dilema para a juventude e, em consequência, para a repro-dução da agricultura familiar enquanto um modo de vida distinto e legítimo.

Diante desse dilema, as explicações correntes para o fenô-meno migratório dos jovens rurais têm se posicionado ora confe-rindo um peso maior às dificuldades de reprodução econômica e dificuldades de acesso a terra, ora acentuando transformações no que tangem a individuação dos projetos juvenis ou então ressal-tando mudança de valores que tem como resultado a interpelação da hierarquia familiar.

Para Durston (1998) a definição da categoria juventude rural significa inter-relacionar as particularidades do ciclo de vida, o desenvolvimento do espaço de reprodução do trabalho familiar (hogar paterno)2 e as mudanças nas relações intergeracionais: “Ainda que a elaboração de projetos individuais seja uma impor-tante e particular característica juvenil, na família rural a con-gregação destas estratégias se vê fortemente condicionadas pelos objetivos e estratégias da autoridade paterna” (Ibidem,p. 7). Mesmo que em sua concepção juventude seria um período de formulação de projetos de vida mais individualizados com vistas à assunção de papéis condizentes à vida adulta, no caso da juventude rural, o espaço de reprodução social da unidade familiar passa a ter um peso determinante na construção destes projetos.

2 Na definição corrente na literatura sobre o tema no Brasil, autoridade paterna seria o termo mais correto para designar a relações de poder organizadas em torno da figura chefe de família.

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O modelo de Durston (1998) para explicar a condição da juventude rural parte da ideia de autoridade paterna como epicen-tro das relações de poder nas quais os jovens se inserem e a partir das quais tecem suas escolhas e transitam na hierarquia familiar até assumirem a posição de adultos. A posição juvenil estaria localizada no interior de relações de subordinação no qual a figura do chefe de família teria maior poder sobre os outros membros do grupo familiar. Ele seria responsável pelo gerenciamento da unidade pro-dutiva, o que lhe permite maior controle sobre os recursos, legiti-mando, dessa forma, sua ingerência. Tal controle se estende para decisões sobre problemas cotidianos do grupo familiar que envol-vem desde a divisão de tarefas à sucessão hereditária, ao controle sobrea circulação de mulheres e jovens nos espaços públicos.

Ainda para Durston (1998), a condição juvenil rural deve ser entendida a partir da relação entre uma crescente pressão demo-gráfica sobre a terra e os mecanismos de autoridade paterna. A menor quantidade de terra fértil disponível por membro do grupo familiar implica num maior controle do chefe de família sobre seus filhos com o intuito de gerar mais recursos. Isso ocorre num con-texto em que a fragmentação das propriedades nas sucessivas gera-ções faz com que a herança se torne irrelevante como mecanismo de controle. Essa dinâmica somada às possibilidades de emprego fora da dinâmica familiar aumenta as possibilidades dos jovens se rebelarem.

Tal condição expõe uma crescente tensão entre o que pode-ria ser considerado um modo de vida tradicional frente a novas possibilidades de emprego e educação tendo a cidade e a busca de trabalhos não manuais como horizonte principalmente para as jovens. Frente ao exacerbamento da migração feminina e juve-nil, o celibato masculino3 apareceria como um risco para os jovens

3 O termo celibato masculino refere-se à presença de inúmeros homens solteiros de forma quase compulsória pela ausência de mulheres solteiras disponíveis em

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que permanecem vinculados à terra comprometendo por seu turno, a reprodução social da agricultura familiar. Essa dinâmica que combina pressão demográfica sobre a terra, novos empregos e questionamentos nas relações de poder seria para o autor uma forma de entendermos a migração. O aumento dos estudos como parte dos projetos juvenis e a existências de diversidades ocupa-cionais tensiona a organização do modelo calcado na autoridade paterna, principalmente revelando conflitos entre a formulação dos projetos dos jovens e a família.

Castro (2005, 2006) parte de princípios similares para o entendimento da condição juvenil no campo. O que difere da aná-lise anterior é o maior detalhamento da autoridade paterna como categoria que permite elucidar a condição juvenil. Nos estudos de caso realizados pela autora, ser jovem significava ocupar um lugar de subordinação no interior de uma hierarquia de gênero e gera-cional que se refletia na divisão do trabalho agrícola em diferen-tes formas de inserções e participação na sociedade. A hierarquia interna à família foi fortemente associada às relações de poder em que mulheres e jovens ocupam posições de inferioridade submeti-das à figura do chefe de família. Os jovens estariam expostos a um intenso controle a partir do qual seriam muito vigiados, com des-taque para as relações entre rapazes e moças. Todos esses mecanis-mos, de desvalorização do trabalho, de redes de vigilâncias sobre os jovens, sendo estes vistos como pouco confiáveis, podem ser enten-didos, como propõe Castro (2006), como mecanismos de autori-dade paterna, tendo como principal foco as jovens, excluídas dos processos de produção agropecuária, da sucessão da herança e dos espaços de decisão.

seu território de existência. Esse fenômeno ocorre em comunidades rurais em que a taxa de migração feminina é maior que a masculina. Como consequência, muitos jovens não encontram parceiras.

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Dessa forma, juventude rural seria uma categoria singu-lar para perceber como se dão as relações de poder no campo e as disputas e conflitos envolvidos na sua construção. Além disso, a migração rural-urbana, um problema comumente associado aos jovens rurais, torna-se um elemento fundamental para compreen-dermos a especificidade dessa condição juvenil. A migração seria o elemento central que aglutinaria os dilemas da juventude do campo.

Através do cruzamento de dados censitários, Abramovay e Caramano (2001) apontam o envelhecimento da população rural no Brasil, seguido da migração juvenil com maior proporção femi-nina como dinâmicas que tem apontado para o esvaziamento do campo e destruição de modos de vida singulares, uma vez que a reprodução de novas gerações de agricultores tem sido comprome-tida. Tendo isso em vista, Castro (2009) defende que não se deve tratar a questão da migração, a despeito das especificidades do con-texto local, sem tratar dos problemas enfrentados pelos pequenos produtores. “(...) os problemas enfrentados pelos jovens são antes de tudo problemas enfrentados pela pequena produção familiar e as suas muitas formas de reprodução, como as difíceis condições de vida e produção” (Castro, 2009, p. 222).

Nesse contexto, a autora aponta à necessidade de se repen-sar a ideia de sair e ficar como movimentos definitivos dos jovens e observá-los, a partir das múltiplas formas em que se apresentam, podendo significar estratégias familiares de manutenção da terra, ou mesmo de se afastar da autoridade paterna. Diante da impor-tância da unidade familiar para se pensar as estratégias de saída e de permanência, essa autora chama a atenção para dois aspectos. Por um lado, a migração seria concernente à dificuldade de repro-dução econômica na agricultura familiar. Por outro, ainda que sofra implicações das dificuldades econômicas como demonstrado por Durston (1998), estaria havendo uma mudança nas relações de poder que se organizam sob o modelo da autoridade paterna, o que

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tem indicado que o êxodo também pode significar um rompimento com o controle e a vigília que principalmente as jovens vivenciam, o que seria realçado pela migração juvenil feminina, pois estariam mais expostas a essa forma de regulação.

Se autores como Castro (2005, 2006, 2009) e Durston (1998) destacam as dificuldades de reprodução econômica e as tensões nas relações de poder organizadas a partir da autoridade paterna como elementos para o entendimento da condição juvenil no campo, Carneiro (1998) enfatiza outra faceta para seu entendimento. Sem desconsiderar as determinações econômicas e o papel da unidade familiar, essa autora dá relevo ao processo de modernização e estreitamento das relações campo-cidade como fundamentais para a análise dos problemas em questão. Como consequência, temos a construção de novas identidades nas quais valores rurais e urbanos fazem parte da construção das pertenças dos jovens. Os projetos de vida seriam resultado da tensão entre laços com a cultura de origem e o espelho da cultura urbana. “O que resultaria na ambiguidade de quererem ser ao mesmo tempo diferentes e iguais aos da cidade e aos da localidade de origem” (Carneiro, 1998, p. 279).

Tradicionalmente quando a reprodução social se concen-trava apenas no trabalho agrícola, ocorria em muitos casos, por exemplo, o privilégio de um irmão na herança da terra como forma de compensação pela responsabilidade de manutenção dos pais até o final de suas vidas. Fatos como esses apontavam a maneira como interesses coletivos se sobrepunham aos interesses individu-ais e eram legitimados pela autoridade paterna. Assim, a migra-ção significava principalmente uma estratégia de conservação do patrimônio familiar. A partir das décadas de 1960 e 1970 com um estreitamento das relações campo-cidade e transformações no modelo familiar, há uma conformação de famílias nucleares com restrição do número de filhos. Em tal contexto, de quebra gradativa do relativo isolamento econômico e maior integração dos valores da sociedade urbano-industrial, passam a ser estimulados projetos

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voltados para “melhorar de vida” (Carneiro, 1998 p. 102). A valoriza-ção dos estudos passa ser uma estratégia importante para a formu-lação de projetos que têm o imaginário da cidade como horizonte, principalmente no caso das jovens. Em consequência, o que se per-cebe é o aumento do espaço de inviduação para a construção de projetos de vida na qual a reprodução da unidade familiar deixa de ser o único determinante.

Nesse sentido, as transformações ocorridas começam a romper com alguns padrões tradicionais abrindo espaço para pro-jetos individuais. O que essa autora propõe é que essas mudanças combinadas à valorização dos estudos e estratégias de saída do campo não apareceriam como polos dicotômicos à pertença rural, mas se congregariam na formulação desses projetos. O desejo de ficar significaria certo compromisso com valores familiares asso-ciados à ruralidade e as aspirações quanto à saída representariam a possibilidade de individuação dos projetos juvenis. Seria dessa ambiguidade que resultariam novas identidades sociais a serem investigadas.

A solidariedade intergeracional nas construções dos proje-tos dos jovens como apontado por Carneiro (2005) pode ser um indício para investigação sobre a importância das diferentes gera-ções nas construções dos projetos juvenis. Ainda que possa haver conflito, as mudanças de valores correntes podem envolver os membros da família como um todo. A ideia de um conflito ou rup-tura entre jovens e os projetos familiares pode ser atenuada diante de mudanças de valores que envolvem todos os membros da uni-dade doméstica. Desse modo, o êxodo não poderia ser encarado apenas como resultado dos impasses da reprodução da agricul-tura familiar frentes ao quais, por princípio, as gerações anterio-res se esforçariam por combatê-los. A migração deveria também ser entendida a partir da conformação de diferentes projetos que envolvem, ainda que de maneira distintas, toda a família. O que,

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por conseguinte, nos remete para a necessidade de investigação das situações específicas.

Os projetos dos jovens para a autora aparecem, então, como uma síntese entre campo e cidade, o que a autora chama de ideal rurbano expresso no desejo concomitante de sair e de ficar tendo em vista diferentes ocupações. O desejo de permanência não pres-suporia necessariamente a assunção da profissão de agricultor. Para a autora, mesmo que a terra permaneça como propriedade familiar, dificilmente o trinômio terra-família-agricultura continuará como um valor estruturante da ordem moral e econômica da atual gera-ção de jovens.

No interior desse debate entre reprodução e crise, entre continuidade e ruptura, no qual o jovem torna-se ator privilegiado, a migração feminina e juvenil tem sido considerada o fenômeno mais significativo das mudanças ocorridas. Pesquisas como de Abramovayet et al. (2001) demonstram o desinteresse das jovens pela permanência associada à produção agrícola. Num universo de 10.000 propriedades do oeste foi entrevistada uma amostra repre-sentativa de 116 famílias. Dentre estas, apenas 1/3 das jovens mani-festaram o desejo de continuar as profissões dos pais contra 69% dos rapazes entrevistados. Estudos de caso como os apresentados durante a exposição também indicam como o viés de gênero nos fenômenos migratórios. Para Stropasolas (2004), estaria ocorrendo uma série de mudanças na pequena agricultura ou agricultura familiar principalmente no que tange a alguns valores que seriam estruturantes de sua organização como o casamento. “A conjuga-ção entre patrimônio fundiário, a família, e um sistema de valores culturais reproduziam desigualdades entre gênero e geração e essa engrenagem representava uma unidade indissolúvel no processo de reprodução social do campesinato” (Stropasolas, 2004, p. 250). No entanto, a divisão social da agricultura familiar e o lugar subor-dinado da mulher nos espaços de decisão têm sido questionados.

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A mudança de valores tem se revelado principalmente na recusa das jovens em se casar e constituir família com filhos de agri-cultores “Para as moças, uma vida como esposa camponesa conhe-cendo outras alternativas possíveis pode ser rejeitada ou objeto de resistência diante das aspirações de vida em outro meio cultural e ocupacional” (Stropasolas, 2004, p. 255). A migração nesse sentido, principalmente para as mulheres, seria resultado de um maior pre-paro ao enfrentamento da vida urbana, questionando o que seria entendido como servidão camponesa. Principalmente para as moças, as possibilidades de conseguir uma independência finan-ceira, de controle do próprio dinheiro, de sair das redes de vigilân-cia, aparecem como a alternativa mais eminente de ruptura (Castro, 2006; Stropasolas, 2004, 2006). Nesse sentido, a dedicação aos estudos tem significado importante estratégia de rompimento com os laços descritos anteriormente. Essa combinação entre estudo e novos valores, somada às dificuldades econômicas, faz com que a autoridade muitas vezes exercida pela ameaça de deserdamento perca força. O casamento vincula-se, assim, menos ao patrimônio e mais ao estilo de vida.

A questão que se colocaria não seria estritamente uma con-traposição do rural versus o urbano, mas como o estreitamento das relações campo-cidade tem feito circular discursos que permitem a interpelação das relações de poder. Não estaríamos diante sim-plesmente de valores urbanos que passam a invadir o rural, mas de uma dinâmica na qual formas de comparação social impulsionadas por transformações nas relações de gênero e geracionais têm levado as mulheres e os jovens a repensarem os seus direitos em diversos contextos. Ainda que haja a desvalorização de diferentes modos de vida por uma hegemonia urbanocêntrica, não devemos descon-siderar processos de comparação social que podem levar a novas sínteses como propõe Carneiro (1998) ou o questionamento mais incisivo das relações de subordinação como aponta Stropasolas (2004, 2006) e Castro (2006) em relação às jovens.

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Nesse sentido, diante da fragilidade econômica do pequeno agricultor e na busca de modelos contra-hegemônicos à exploração capitalista corremos o risco de naturalizar relações de poder sem nos preocuparmos com a própria dinâmica e autodeterminação dos grupos. Dito de outra forma, a luta política pela reforma agrária e o direito ao acesso a terra deve ser acompanhada pelas conquis-tas de outros direitos que apontem para relações mais equânimes entre os gêneros e as gerações. Diante da importância do fenômeno migratório para o debate sobre juventude rural torna-se necessária uma análise mais detida sobre o tema e suas implicações para o entendimento da juventude rural.

Juventude rural e migração: impasses e articulações

Do exposto até o momento, podemos depreender que a juventude rural tem sido pensada a partir de três pontos-chave: pri-meiramente o jovem rural é filho de pequenos agricultores e seus dilemas são fruto da sua pertença a essa forma de produção econô-mica e modo de vida particular. A pequena agricultura ou familiar está vivenciando uma crise de reprodução como consequência de dificuldades econômicas e mudança de valores. Por conta disso, a migração juvenil aparece como um problema fundamental para a reprodução social dos agricultores por um lado, e para a construção do futuro dos jovens, por outro.

Como nos demonstra Weisheimer (2005), talvez falte uma definição mais precisa para a designação juventude rural. O aumento das rendas não agrícolas e as mudanças no campo têm levado a uma diversidade na qual a agricultura familiar, ainda que bastante representativa, não pode subsumir a complexidade do rural:

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Disso resulta que hoje em dia nem todos os jovens rurais são necessariamente agricultores, assim como entre os jovens agricultores há uma grande variedade de situa-ções, como relacionadas à propriedade ou não da terra em que trabalham. Os impactos disso são evidentes nas diferenças entre esses jovens quanto às possibilidades que se apresentam a cada um deles (p. 7).

Mesmo se falando de uma diversidade de situações, per-manece um enfoque centrado em variáveis econômicas, que se iluminam uma gama de situações, obscurecem outras. Os jovens são definidos pela relação que estabelecem com o trabalho agrícola a partir do lugar que ocupam na divisão social do trabalho e nas tensões decorrentes, como indica a busca por outras ocupações no campo ou na cidade. Além desse enfoque, a pertença a um modo de vida concebido de forma homogênea passa a ser um denomi-nador das experiências juvenis. Ainda que os dilemas da pequena produção agrícola, com suas hierarquias de gênero e geracionais, sejam um importante analisador das relações no campo, as expe-riências juvenis têm se resumido a necessidades objetivas que têm como substrato a ideia de resistência e apoio à agricultura familiar como forma de produção ou modo de vida. Diante do diagnóstico de crise da agricultura familiar, estaria depositado nas vicissitudes das trajetórias dos jovens o futuro da produção familiar. É como se, mantidas boas condições econômicas de existência e fazendo alguns ajustes na hierarquia interna da família poderíamos garantir tal futuro. As situações dos jovens do ponto de vista da permanên-cia ou da saída são consideradas efeito de condições estruturais que atingem os pequenos produtores. As trajetórias juvenis seriam um indicador do problema e parte da solução.

Como demonstra Weisheimer (2005) em sua revisão sobre a categoria, haveria um consenso mínimo no campo de estudos sobre a juventude rural

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[...] quanto ao papel estratégico dos jovens para o desen-volvimento agrário e rural. A continuidade da profis-são agrícola depende da reprodução com base familiar, isso porque a sucessão tende a ser endógena, com pelo menos um filho sucedendo o pai na administração da unidade produtiva, sendo pouco frequente a adesão a essa atividade por pessoas sem vivência familiar nesse ramo (p. 18).

Brumer (2008) em outra revisão sobre a categoria juventude rural reforça o mesmo argumento. As transformações apontadas seriam concebidas como responsáveis por uma crise de reprodução da agricultura familiar com reflexos na identificação negativa dos filhos/as de agricultores com o trabalho agrícola e seus benefícios, que conjugam mudanças de valores e falta de incentivos,

Como o ingresso na atividade agrícola, como produtor familiar, na maioria dos casos é endógena – isto é, são os próprios agricultores familiares que geram seus sucesso-res –, a emigração dos jovens e sua visão relativamente negativa da vida no meio rural revela a existência de uma crise de reprodução social (Ibidem, p. 7).

As experiências juvenis são concebidas dentro desse enqua-dre a despeito da diversidade de dinâmicas construídas cotidia-namente, seja no plano concreto da existência, seja nos projetos vislumbrados. Não desconsideramos as relações de subordinação das áreas rurais frente a uma hegemonia das cidades, no entanto, parece ser mais legítimo o rural almejado pelos jovens rurais desde que ele aponte para a relação positiva com um modo de vida cam-ponês. As análises muito estruturais centradas principalmente numa defesa, ainda que justificável, da agricultura familiar correm o risco de invisibilizar arranjos complexos e plurais que podem ser objeto de identificação para muitos jovens. Desse modo, podemos

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perceber um contexto de disputas por diferentes projetos de socie-dade em que o jovem torna-se um ator fundamental. As suas esco-lhas, seus dilemas ou formas de subordinação são vistos como um processo que coloca em jogo tais projetos em disputa. E por isso se tornam objeto de preocupação.

Por isso, no interior desse debate entre ruptura e crise de um modelo de sociabilidade considerado como legítimo ou dese-jável, a migração torna-se um grande problema. Como consequên-cia, parecem estar determinadas de antemão as implicações da migração juvenil. Assim, diante da ênfase dada à migração e sua imbricação com as dinâmicas da agricultura familiar para pensar a condição juvenil no campo, Castro (2009) faz um alerta:

A cobrança da permanência e continuidade dos jovens no campo como valorização e possível reversão do qua-dro de esvaziamento do meio rural recorrente em algu-mas pesquisas recentes sobre o tema e no âmbito das políticas públicas – deve problematizar esse olhar que percebe no jovem o ator heroico da transformação social (Ibidem, p. 234).

A associação entre juventude rural e reprodução da agri-cultura familiar relaciona diretamente permanência com conti-nuidade dos modos de vida camponês e saída com esvaziamento das zonas rurais. O problema desse argumento é justamente o peso analítico que tem se dado à juventude como futuro das sociedades rurais.Desse modo, há uma ênfase na categoria juventude como futuro dos modos de vidas centrados na pequena propriedade sem uma consideração mais detida dos projetos em disputa e da sua legitimidade para os jovens.

O que podemos depreender dessas considerações é que a migração tem sido considerada de forma bastante ambígua. Se por um lado, o jovem é forçado a migrar devido às agruras da reprodução

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econômica na agricultura familiar ou se rebelando contra relações de dominação, o que nos atentaria para legitimidade das trajetórias desses jovens, por outro lado a migração seria considerada um pro-blema, pois ameaçaria a continuidade de um modo de vida singular. Por mais que o jovem seja visto sob certo ponto de vista como uma vítima do processo, em diferentes discursos ele também é o agente de uma saída perniciosa também para as cidades. As más condi-ções econômicas e o baixo nível de escolaridade fariam com que a inserção de jovens na zona urbana se faça de forma subalterna, ocupando empregos de baixa remuneração e em condições ruins de moradia e habitação. Esse discurso, banalizado pelo senso comum reforça que a migração é responsável pelo aumento dos proble-mas urbanos. Além disso, haveria outro conjunto de argumentos, para o qual a legitimação dos fluxos migratórios com destinos às cidades contribuiria, pelo menos ideologicamente, para a expul-são das populações rurais e, em contrapartida, reforçaria a opres-são do latifúndio e a agroindústria. Dessa forma, a mobilidade dos jovens rurais é vista como, no mínimo, uma questão para quem se dedica ao estudo da ruralidade. O que se destaca em muitas análi-ses é o lugar do migrante como objeto das correntes migratórias. O migrante em pouca medida é ator do seu processo de mobilidade.

Nesse sentido, precisamos construir estratégias para que o campo seja um espaço de direitos diversos para aqueles que alme-jam construir suas vidas nesses lugares. Diante da fragilidade da agricultura familiar frente a outros modelos de desenvolvimento agrícola como o par latifúndio-agronegócio, precisamos dar con-dições aos pequenos agricultores, mas entendendo a especifici-dade dos contextos e as opções e constrangimentos que se colocam para a juventude. A construção de uma relação de identidade entre migração juvenil e crise da agricultura familiar ancorada em estu-dos acadêmicos e ações institucionais pode gerar novas formas de controle e subordinação que, em primeira estância, estariam a ser-viço de discursos democráticos e igualitários.

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O desafio para novas pesquisas é pensar um sujeito da migração, de modo que a análise trate o princípio da fixação de forma mais cuidadosa. Não basta apenas afirmar a rejeição a esse princípio e, ao mesmo tempo, lançar mão de categorias que em seu conjunto circunscrevam o ficar como única alternativa desejá-vel. Isso não significa necessariamente o reforço à subordinação e a expulsão de populações do campo. Precisamos dar legitimidade ao processo e à importância de compreender a migração a partir de como o jovem se posiciona frente a essa temática e como seus projetos podem ou não revelar diferentes projetos de sociedade. É necessário apostar num sujeito migrante que tenha algo a dizer do seu movimento e das questões que o impulsionam a se deslo-car. Assim, em vez de tomar a migração juvenil apenas como um problema a ser enfrentado, precisamos tomá-la como um objeto de debate que possa apontar para um rural desejante e desejável, como espaço para utopias. Sobre quais espaços de sociabilidade desejados no campo o processo de migração pode dar pistas? Nesse sentido, importa menos a realização imediata desses anseios que a possibilidade da construção de uma utopia juvenil, ainda que frágil, vacilante, ante as dificuldades enfrentadas. A migração tem sido considerada mais um desvio de certa trajetória desejada do que uma possibilidade rica de reflexão sobre os problemas viven-ciados e as possibilidades de construção de territórios rurais plurais e abertos a direitos diversos.

A busca pelas cidades, ou o imaginário que ela gera, se per-niciosos por um lado, podem instaurar uma lógica de equivalência de direitos e, a partir dessa, desnaturalizar relações de subordina-ção vivenciadas pelos jovens rurais. O desafio é pensarmos como essa comparação pode criar estratégias que visem à transformação dessas relações, já que a migração, ainda que aponte rupturas em padrões hegemônicos dos meios rurais, pode reforçar a ideia de que nesses espaços tais transformações não são possíveis. Nossa aposta é de que os processos de comparação social realizados na trajetória

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dos sujeitos migrantes podem nos dar pistas sobre que projetos estão em questão e suas possibilidades de realização.

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Juventude no semiárido nordestino: caminhos e

descaminhos da emigração

Karla Patrícia Martins Ferreira Zulmira Áurea Cruz Bomfim

“Agora pensando segui ôtra tria, chamando a famia, começa a dizê:

eu vendo meu burro, meu jegue e o cavalo, nós vamo a São Paulo, vivê ou morrê...

Nós vamo a São Paulo, que a coisa tá feia; Por terras aleias nós vamo vagá.

Se o nosso destino não fô tão mesquinho, Pro mêrmo cantinho nós torna a vortá”

(Patativa do Assaré, A triste partida)

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Introdução

O poema “A triste partida”, do poeta cearense Patativa do Assaré, que veio a ser brilhantemente musicado por Luiz

Gonzaga, traduz a dor do sertanejo em deixar sua terra e o desejo de um dia, se o destino permitir, voltar ao seu lugar de origem. Sobre isso, durante muitos anos, foi muito fácil culpabilizar a seca como única responsável pelo grande número de emigrações nordestinas rumo aos grandes centros urbanos do país, mesmo sendo esta um evento climático natural de regiões semiáridas, portanto previsível e até, de certo modo, esperada, apesar de nunca desejada.

No entanto, percebemos atualmente que o interesse e a necessidade de jovens do campo tornarem-se emigrantes têm diminuído gradativamente. São vários os fatores relacionados a esse fenômeno, entre eles o notável inchaço dos maiores centros urbanos, o que muda a política de incentivo à migração, que foi uma das bases para a construção das grandes cidades, com mão de obra barata e abundante vinda do campo. Outro fator tem sido a necessidade de estimular uma revalorização da agricultura, já que os jovens se afastavam cada vez mais desse tipo de atividade a ponto de se temer, para o futuro, um colapso no abastecimento.

Há algum tempo percebemos que a juventude do meio rural vem recebendo mais atenção, por causa do desinteresse desses jovens em continuar no campo e, sobretudo, pela falta de estímulos à atividade agrícola, já que historicamente esta tem sido completa-mente desvalorizada em nosso país, sobretudo quando falamos de uma agricultura familiar.

Acontece que por falta de políticas públicas adequadas para a valorização do campo e melhoria das condições de vida, a solução mais buscada durante muito tempo foi a emigração para os gran-des centros urbanos, o que nem sempre trazia aos emigrantes uma boa condição de vida. Muitas vezes apenas era trocada a miséria

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do campo pela miséria da cidade, trazendo ainda diversas outras consequências tanto em nível socioambiental e econômico, como em nível psíquico, gerando sofrimento por causa de fatores como desenraizamento, falta de apropriação espacial, perda dos parâme-tros identitários existentes nas comunidades de origem, por causa do fato de sermos, na cidade grande, apenas mais um na multidão.

Este capítulo se propõe a apresentar uma breve reflexão sobre a emigração, baseando-nos na nossa experiência nordestina e cearense. Pensamos em seus aspectos históricos, econômicos e subjetivos, sobre o semiárido sertanejo e sua relação com a seca, “personagem” historicamente culpabilizada pelos deslocamentos de milhares de famílias para os grandes centros urbanos.

A discussão será feita a partir da realidade do Ceará, nossa área geográfica de estudo, estado reconhecido como um impor-tante exportador de mão de obra.

Procuramos trazer uma discussão sobre a condição de vida dos jovens do sertão semiárido cearense, partindo de nossas pes-quisas e intervenções nesse contexto. Também apresentamos um pouco de como percebemos as mudanças que vêm ocorrendo nos últimos anos e que têm influenciado na qualidade de vida da juven-tude no meio rural.

Aspectos da migração nordestina

A história do Brasil é marcada pelo grande fluxo migratório interno, sobretudo das regiões Norte e Nordeste para os grandes centros urbanos, principalmente da região Sudeste, como também para as áreas rurais do Sul e Sudeste do país. O Ceará, estado situ-ado na área do Polígono das Secas1, tem sua história marcada pela difícil condição climática à qual grande parte da sua população

1 É denominado Polígono das Secas uma área de 950mil km2, que compreen-de mais da metade da região Nordeste, indo do Piauí a Minas Gerais. Essa

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rural está submetida e pelas estratégias de sobrevivência desenvol-vidas por esta para resistir aos impactos causados pelas variações climáticas, principalmente no sertão semiárido.

Chamamos de semiárida a região submetida a um clima caracterizado pela insuficiência de precipitações pluviométricas, temperaturas elevadas e fortes taxas de evaporação, onde essas precipitações apresentam-se, além de insuficientes, com uma irre-gularidade temporal e espacial, podendo apresentar, assim, longos períodos de estiagem.

Os fenômenos migratórios internos geraram uma grande mudança social na medida em que as cidades, e aqui no Brasil, algumas cidades, foram efetivamente o polo de atração de todo este contingente humano, com todas as consequências de desenraizamento familiar, margina-lização e demais sequelas sociais de todos conhecidas (Albuquerque, 2002).

Em relação ao Nordeste, a seca tem sido culpabilizada pela miséria em que vivem muitas famílias rurais, sendo há muito tempo o pretexto utilizado para justificar a preservação de uma lucrativa agricultura parasitária que privilegiou os grandes proprietários na manutenção e reprodução das arcaicas formas de dominação polí-tica. A seca, no entanto, mesmo evidenciando a miséria em que vivem muitos agricultores, não pode ser considerada a única causa do sofrimento enfrentado pela população rural. O que ocorre é que fatores como difícil acesso ao trabalho remunerado, baixo nível de escolaridade, entre outros, caracterizam a vulnerabilidade dessas pessoas às variações climáticas.

Deve-se estar atento, então, acerca da estreita relação entre vulnerabilidade social, impactos climáticos, emigração do

delimitação já é uma revisão e foi feita pelo governo federal em 1951, através da lei nº 1. 348.

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semiárido e êxodo agrícola2. Considera-se que o conceito de vul-nerabilidade diz respeito à fragilidade do indivíduo ou sociedade em se proteger contra determinada situação de risco, ameaça ou problema, o que a deixa mais susceptível aos efeitos negativos do fator estressante. Percebe-se que a seca pode ser considerada um fator estressante, pois, apesar de ser um evento climático natural de regiões semiáridas, agrava e põe em evidência a difícil situação em que vive grande parte da população cearense, devido à falta de políticas adequadas para a região, o que tem, ao longo da nossa história, deixado a população à mercê das condições da natureza.

Observa-se ainda uma desvalorização do trabalho agrícola em consequência dos difíceis problemas enfrentados pelos peque-nos agricultores para se manterem no campo, por causa das polí-ticas que privilegiaram os grandes produtores e a mecanização da agricultura em detrimento de uma agricultura familiar, que favo-reça condições dignas de subsistência, apesar de esse tipo de pro-dução ser ainda hoje de extrema importância para o abastecimento do país. Faz-se necessário, desta forma, uma continuação e maior valorização da cultura agrícola entre as famílias.

A decisão de emigrar, então, é tomada quando o sujeito conclui que haverá uma série de vantagens concretas no lugar para onde se dispõe a partir, como melhor salário, mais oportunidades de emprego, estudo etc. Entretanto, de acordo com Toniatti (1978) há também um conjunto de fatores subjetivos que influenciam o julgamento do sujeito em relação às vantagens de emigrar.

Para que se possa falar sobre a migração é preciso que se pense nesse fenômeno como resultado de um processo histórico de nossa sociedade. A idéia de que a emigração nordestina como algo “natural” deve ser desmistificada e historicizada; faz-se necessário,

2 Utiliza-se a expressão “êxodo agrícola” para fazer referência ao abandono do tra-balho na agricultura e para diferenciá-lo do êxodo rural, sendo este último con-siderado o deslocamento de localidades consideradas rurais para áreas urbanas.

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dessa forma, estar atento aos fatos históricos que se relacionam com a migração, pois como salienta Silva (2004): “Nenhum projeto presente se sustenta sem o conhecimento do passado. Na dialética entre presente, passado e futuro estão os elementos para qualquer ação transformadora da realidade social”.

O Ceará tem sua história marcada pela emigração. Considerado exportador de mão de obra, é um dos maiores respon-sáveis pela emigração nordestina. Falar sobre estes deslocamentos, portanto, faz parte da própria história do estado e de seu povo, acostumado a se deslocar para outras regiões do Brasil. Sobre os números que atestam o grande fluxo migratório no Ceará, Holanda (2005) afirma:

Os últimos resultados do censo 2000 apresentam núme-ros que reforçam o aumento dos fluxos migratórios inte-restaduais entre os diversos estados, em especial o Ceará que ao longo dos últimos 10 anos foi responsável por “expulsar” milhares de cearenses para diversos estados do país. De fato, os números atestam que 1.592.756 cea-renses emigraram, representando uma diferença para mais de 16,8% em relação ao censo de 1991. A posição do Ceará como um dos seis estados maiores responsáveis pela emigração nordestina, não é verificada apenas no censo de 2000. De fato, os censos de 1950, 1960, 1970, 1980 e 1991 também mostram dados sobre a relevância do estado como um dos grandes exportadores de mão de obra para as demais regiões e estados (Holanda, 2005).

Entretanto, o censo de 2010 já apresenta mudanças neste quadro. Segundo os dados levantados, há atualmente uma migra-ção de retorno e o Ceará é o principal estado a receber os migran-tes de retorno. Então nos questionamos: o que está acontecendo? Presenciamos um importante momento no cenário econômico e político do país e também do estado. Antes, no entanto, de

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comentarmos as possíveis causas do retorno, de acordo com a nossa perspectiva, gostaríamos de apresentar alguns motivos envolvidos na decisão entre o partir e o ficar, encontradas a partir de uma pes-quisa realizada por nós em 2006 (Ferreira, 2006), em que levanta-mos a partir do relato de adolescentes, estudantes do último ano do ensino médio, os motivos que influíam a decisão de emigrar ou não.

Ficar ou partir? Motivos da migração

Em 2006, realizamos uma pesquisa no município de Tauá, no Ceará, com jovens que estavam cursando o último ano do ensino médio. O objetivo da pesquisa foi investigar a relação afetiva des-ses jovens com o entorno e sua influência na decisão de emigrar ou não. Eles estavam na iminência da construção da identidade de emigrantes. Muitos já tinham passagens compradas e alguns até mesmo promessas de emprego nas cidades de destino.

A pesquisa foi realizada em duas etapas: na primeira, para identificar a relação afetiva com o entorno, utilizamos os mapas afetivos (Bomfim, 2003), um método que buscou avaliar a afetivi-dade dos jovens com a comunidade a partir de desenhos e metáfo-ras. Na segunda etapa, com a intenção de aprofundar nos motivos que influenciavam a decisão de partir ou ficar, trabalhamos com os três grupos focais. Para a análise dos dados dessa etapa, utilizamos a análise de conteúdo categorial (Bardin, 1991).

O grupo que participou da pesquisa era composto por 63 jovens de ambos os sexos, com idades entre 18 e 25 anos, estudantes do último ano do ensino médio de três escolas públicas do muni-cípio e que eram moradores tanto da sede como das comunidades rurais.

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Tabela 1 – Caracterização dos sujeitos da pesquisa

Variáveis Categorias F %Sexo Feminino 41 65%

Masculino 22 35%

Idade Entre 18 e 21 anos 58 92%Entre 22 e 25 anos 05 8%

Local de moradia Sede do município 39 62%Comunidades rurais 24 38%

Escola Mons. Odorico 14 22%Liceu de Tauá 29 46%

Ceja 20 32%

Trabalha Sim 49 78%Não 14 22%

Exerce atividade agrícola Sim 24 38%Não 39 62%

Pertence a grupo ou associação Sim 17 27%Não 46 73%

A amostra dos grupos focais foi composta por 3 grupos de voluntários (G1, G2 e G3). Cada grupo pertencia a uma das três escolas pesquisadas. A escolha dos sujeitos (S1, S2, S3...) foi feita através de procedimento não probabilístico do tipo intencional. Nesse tipo de amostragem, “o grupo de sujeitos é constituído con-forme critérios preestabelecidos sobre as características que esses elementos devem ter para pertencerem à população” (Almeida & Freire, 1997). Os critérios de seleção dos grupos fizeram referência às idades dos participantes, escolas, nível de escolaridade, local de moradia, condições econômicas semelhantes.

Apresentaremos neste capítulo relatos dos jovens sobre os motivos que influenciavam a sua decisão no momento dessa pes-quisa. A partir de então poderemos discutir sobre o que acredita-mos que mudou na configuração do estado e o que acreditamos

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que poderia ser modificado ainda para melhorar a qualidade de vida da juventude no campo.

Os três grupos focais estão identificados como G1, G2 e G3 e os sujeitos que participaram de cada grupo, como S1, S2, S3...

Motivos que influenciam a decisão de ficar

Medo do desconhecido

O medo do desconhecido está relacionado à insegurança causada pela incerteza com relação ao lugar estranho. Esse medo se contrapõe aos laços afetivos estabelecidos no lugar de origem, quando o jovem tem uma estrutura familiar bem consolidada e não sabe se encontrará uma equivalente no possível lugar de destino. Observamos isso na fala de dois sujeitos, mesmo que ambos sai-bam que se não encontrarem formas de se manterem na cidade de origem, como fonte de trabalho, renda e oportunidades de estudo, terão que partir para outro lugar em busca de “melhores condições de vida”:

G3: S6 - Eu particularmente não penso assim. Eu vejo diferente das outras pessoas, porque geralmente as outras pessoas querem sair daqui pra procurar uma vida melhor. Eu não. Eu prefiro ficar aqui. Por quê? É como se fosse um risco, assim como eu posso me dar bem em outra cidade eu posso não me dar. Vou enfrentar difi-culdades, muitas vezes sozinha, sem parente e nada e muitas vezes por causa das dificuldades as pessoas aca-bam se envolvendo em tráfico, esse tipo de coisas. Não é o caso de todo mundo, mas muita gente que vai sair de sua cidade trabalhar em algum lugar encontra muitas dificuldades. (Sexo feminino, 17 anos).

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No relato dessa jovem, verificamos haver uma análise em relação aos riscos que poderá enfrentar, salientando que a falta de apoio da família, a falta de ter alguém por lá para ajudar pode levar o sujeito ao envolvimento com a marginalidade, mencionado por ela como relação com o tráfico. No relato que se segue, um jovem expressou seu medo do desconhecido, através dos questionamen-tos: “Como será lá? Será mais difícil?” Ele deixa transparecer o sen-timento de insegurança ao mesmo tempo que relata os motivos da emigração e deixa perceber que, apesar do medo do desconhecido, se prepara para partir caso não surjam oportunidades no município de origem:

G2: S1- Em relação ao que a cidade oferece...mas a ques-tão é por dois motivos, certo? Por questões... não é por querer sair de perto da família, sair pra outra cidade, mas o que leva é isso! O que leva mais gente é ir em busca do que a cidade não oferece. E a gente sabe que também, se a gente tiver uma oportunidade, apesar de não ser o que a gente quer, mas se existe essa oportunidade o que a gente imagina é o seguinte: como será lá fora? Será mais difícil? Será muita a burocracia, será que eu vou ganhar o suficiente pra me manter e pagar uma faculdade? Tudo isso é... mexe! (Sexo masculino, 18 anos)

Apego ao lugar

O primeiro sujeito citado a seguir expressa seu afeto pela cidade, deixando claro que se houver alguma oportunidade, mesmo que não seja exatamente o que ele deseja, prefere se manter na cidade. Pensa em fazer faculdade e, mesmo não tendo no muni-cípio o curso que gostaria de fazer, diz que se passar para algum outro curso prefere ficar porque ama a cidade e que não queria par-tir. Termina sua fala, entretanto dizendo que se nada der certo, vai ter que partir:

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G2: S3 - Se surgir uma proposta de emprego que dê pra eu me manter aqui. Até porque aqui... Eu amo Tauá, eu gosto muito daqui, eu não queria sair daqui. Claro que se aqui tem faculdade, se eu conseguir passar no vesti-bular. Não é isso o que eu queria pra mim... mas como todo lugar tem suas dificuldades, né? Dando certo eu arrumar um emprego por aqui, eu quero continuar aqui, porque aqui eu vou estar perto da minha família. (Sexo feminino, 17 anos).

G2: S4 - Até falar de ir embora, de morar fora pra melho-rar a vida de gente muita gente quer, mas vamos ver que tem gente que não quer de jeito nenhum ir embora. Agora eu nasci e me criei nessa cidade e não queria ir embora daqui, mas às vezes você saindo, você consegue um futuro melhor. Ficando às vezes consegue, às vezes não consegue... (sexo masculino 20 anos).

Os relatos acima caracterizam a relação de apego ao lugar (Giuliane, 2004), marcada pelo sentimento de pertencimento, como foi verificado nos mapas afetivos (Bomfim, 2003).

Medo de se afastar da família

A família representa o porto seguro, o aconchego. Nestas falas revela-se o medo do desligamento, de ter que se virar em uma cidade grande sem o apoio dos parentes, representado, sobretudo, pela figura da mãe que gera, nutre e protege. São citados o apoio e aceitação que o jovem sabe que não encontrará no lugar de destino:

G1:S2 - Pois eu vejo assim: acho que se minha mãe fosse comigo eu não ia lembrar daqui, não. Mas como a minha mãe vai ficar, tem dia que eu já choro, já de agora. Eu sei que vai ser difícil... mas eu vou. (Sexo feminino, 18 anos)

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G1:S1 - Tem dias que eu sinto muita falta da minha mãe, que eu sou muito apegada a ela. Ela é muito minha amiga, mas eu só tô aqui ainda porque eu tenho um esposo e tenho um filho de 4 anos, aí eu também não posso ir, mas eu vou concluir o segundo grau e aí no pró-ximo ano eu vou, com meu esposo e o meu filho. (Sexo feminino, 19 anos)

G1: S3 - Eu sinto saudade da mãe. Tem dias que eu tô com saudade de lá, mas eu sei que quando eu chego lá eu fico com saudade daqui, fico lembrando... (sexo masculino, 20 anos)

Ao emigrar se estabelecem várias rupturas afetivas, como com o lugar, a família, amigos, hábitos e costumes locais. Tudo isso gera uma instabilidade e muitas vezes apenas pensar nessas ruptu-ras gera uma desestabilização e estresse.

Motivos que influenciam a decisão de partir

Foram encontradas algumas razões que influenciariam para que o jovem optasse pela emigração. Foram estipuladas categorias principais: o desemprego; o subemprego; o desejo de fazer facul-dade e o incentivo de quem já partiu.

Desemprego

A falta de emprego foi bastante citada, apesar de depois com o aprofundamento das discussões do grupo ter perdido um pouco a força de sua importância para a categoria subemprego. Porém fica marcado o desejo de conseguir emprego, com carteira assinada e que lhes proporcione todos os direitos trabalhistas estipulados por lei:

G1: S1 - Eu acho assim, que a maioria prefere sair por-que a falta de emprego aqui é muito grande, no Brasil

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inteiro a falta de emprego é grande, mas eu acho que aqui a dificuldade é maior, então quando a gente com-pleta assim uma idade de 18 anos, a gente tem vontade de trabalhar de ter vida própria, de ganhar seu próprio dinheiro, então tem que sair pra melhorar de vida. Acho que por isso muitos pensam em sair e vão. (Sexo femi-nino, 19 anos).

G1: S3 - Eu já eu acho do mesmo jeito que ela falou aqui, é por causa da falta de emprego. Eu mesmo já fui, com 18 anos, eu fui pra São Paulo. Aqui o cara fica aqui e emprego aqui é difícil demais. A gente quer brincar e tal, tem que gastar dinheiro todo final de semana e dinheiro aqui é muito pouco, corre muito pouco. Aí lá eu morei mais de um ano, um ano e pouco e depois vim embora. Depois fui embora pra Fortaleza de novo. Mas se eu tivesse emprego aqui, não saía daqui não. Ficava aqui em Tauá mesmo. Eu gosto daqui, mas o motivo é só esse mesmo: desemprego. (Sexo masculino, 20 anos).

G2: S4 - Eu sou de acordo assim, sabe? Se eu não encon-trar um emprego que dê pra eu se manter, eu tenho que sair. Não tendo um emprego pra se manter, eu vou ter que sair pra outro lugar, atrás de um emprego melhor. (Sexo masculino, 20 anos).

Subemprego

A categoria subemprego surgiu a partir do aprofundamento das discussões dos grupos focais, quando foi mostrado aos jovens que, apesar de nos relatos eles falarem que a principal causa da emigração era a falta de emprego, 78% deles havia respondido nos questionários que exercia atividade remunerada. Foi solicitado, dessa forma, que eles esclarecessem melhor esse fato, assim, foram

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relatadas as difíceis condições de trabalho às quais os jovens se encontram submetidos no município. Essa categoria foi subdivi-dida em: humilhação no trabalho; baixos salários; vontade de ter horário; o sonho da carteira assinada; a ameaça do desemprego.

a) Humilhação no trabalho

A humilhação no trabalho surgiu em vários momentos e de várias formas. Nas outras subcategorias que serão apresentadas na categoria subemprego encontra-se a marca da humilhação, porém preferiu-se subdividir por uma questão de clareza. Nas falas apre-sentadas a seguir, encontra-se a humilhação no trabalho, como desvalorização do sujeito, encontram-se as marcas do sofrimento ético-político (Sawaia, 1999) em que o outro, nesse caso, o patrão trata o jovem como inferior, subalterno, sem valor:

G3: S2 - Tenho que trabalhar, quando chega no final do dia é humilhado, no final do mês é humilhado e no final do mês ganha pouco (sexo masculino 18 anos).

G1:S7 - Eu trabalho em casa de família. A gente trabalha muito, muitas vezes é maltratado e ganha muito pouco. É humilhado, porque existe muita humilhação em quem trabalha em casa de família e é o emprego que tem mais aqui em Tauá (sexo feminino, 17 anos).

G1:S4 - Eu já trabalhei em uma casa que o filho da minha patroa me bateu. Eu não fiz nada. A minha mãe também não fez nada. Mas não é porque ele era filho da minha patroa que ele tinha que me bater, né? Mas é a vida... (sexo feminino, 18 anos).

G3:S1 - Nem durmo direito. A gente não pode exigir nada. Diz ele que tem 40, 50 pessoas atrás da vaga da

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gente. Por isso, não tem...não tem emprego, por isso que a pessoas tem de aceitar (sexo masculino, 19 anos).

b) Baixos salários

Percebe-se nesta subcategoria a marca do sofrimento ético--político, encontra-se a humilhação do trabalhador, através da des-valorização do seu trabalho, com baixos salários e o desrespeito às leis trabalhistas:

G1:S1 - Aqui o pessoal desvaloriza muito quem trabalha em casa de família, nunca vi ninguém falar que ganhasse mais de cem reais. (Sexo feminino, 19 anos).

G2:S4 - Aqui se você ganha cento e cinquenta, você morre de trabalhar, tem que trabalhar o dia inteiro e até à noite. (Sexo masculino, 20 anos).

G3: S2 - Eu, na oficina, ganhava 40 por semana, traba-lhava das seis horas...trabalhava das seis às quatro horas. Aí final de semana passava, depois o patrão queria que eu trabalhasse sete horas, aí eu comecei a trabalhar até seis horas e ele queria que eu trabalhasse mais. Só pra ganhar 40 por semana? Só o aluguel da casa eu pagava 40! (Sexo masculino, 18 anos).

c) Vontade de ter horário

Este tópico faz referência ao desejo dos jovens de terem uma carga horária de trabalho bem definida e respeitada. O que não tem ocorrido, como podemos observar através dos relatos.

Observa-se a exploração do trabalhador e, ao mesmo tempo, uma resignação do jovem que se submete à exploração.

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Nestes casos, de forma diferente, a emigração poderia ser vista como algo potencializador para a decisão de mudar a sua condição de explorado.

G3:S5 - Eu tenho vontade de ter horário. Final de semana, eu trabalho dia e noite. (Sexo feminino, 19 anos).

G3:S1- Olhe, eu, de segunda a sábado, eu trabalho... eu entro de 5:30 e saio 5:30 da tarde. De 5:30 da manhã às 5:30 da tarde. E no sábado entro 5:30 e saio 8 ou 9 horas da noite! (Sexo masculino, 19 anos).

G3:S5 - Eu trabalho em um salão. Salão de cabeleireira. Eu só tenho horário de chegada, de saída eu não tenho. Eu já cheguei a sair 11h da noite. De 7 da manhã às 11 horas da noite! (Sexo feminino, 19 anos).

d) O sonho da carteira assinada

O desrespeito às leis trabalhistas no município é um fator que influencia a vontade do jovem de procurar outro lugar, onde tenha grandes empresas que ofereçam aos trabalhadores direitos básicos como carga horária de 8 horas diárias, salário de acordo com o mínimo estipulado para todos os trabalhadores, vale-transporte, etc. Todos esses direitos, com os quais eles não estão contando na sua atual situação, podem ser resumidos no sonho do trabalho com carteira assinada, pois ela representa a imagem de ter seus direitos assegurados. Nos relatos que seguem, pode-se verificar a situação de exploração no município e fica também marcada a intenção de emigrar em busca de oportunidades de conseguir a tão almejada “carteira assinada”.

G2:S1- Por isso que é difícil a gente ficar por aqui, a opor-tunidade de emprego aqui é pouco, a gente quer sair,

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quer melhorar o emprego e trabalhar em um lugar que assine a carteira da gente, que cumpra as leis como as leis são. Aí é bom! A gente se satisfaz, a gente trabalhando num lugar desses. (Sexo masculino, 18 anos).

G3:S2 - Aqui se você chegar pra um gerente de uma loja e pedir pra assinar a carteira, o gerente manda logo você embora. Você tá logo é pedindo sua demissão! (Sexo masculino, 18 anos).

G1: S1 - Em cidades maiores tem mais oportunidade de emprego, o emprego é com bom salário, com carteira assinada e aqui não. É difícil ter assim emprego com car-teira assinada. Assinam a carteira, mas você não ganha aquele salário. (Sexo feminino, 19 anos).

Observa-se a exploração no trabalho e, por causa disso a avaliação negativa que os jovens fazem da cidade, levando-os a desejarem ir para uma outra em busca de mais oportunidades e de respeito. A crença de que na cidade grande as condições são melho-res é expressa na fala do sujeito 1 do grupo 1 (G1:S1), apresentada anteriormente.

O desejo de estudar

Estudar, cursar uma faculdade faz parte dos sonhos dos jovens entrevistados. Nos três grupos focais, os envolvidos fize-ram referência a estudar como uma das formas de “mudar de vida”, de sair da sua condição de excluído e explorado. Nesse desejo, há uma potência de ação (Sawaia, 1999), que vai em busca de agir e transformar a realidade. É colocado no relato dos jovens que um dos fatores que estimulam o deslocamento para outras regiões é o fato de que no município de Tauá existiam apenas três cursos para

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quem desejava fazer estudos universitários. Os três estão relacio-nados ao ensino, sendo eles: Química, Biologia e Pedagogia.

G1:S2 - Muita gente quer se deslocar daqui porque a faculdade não tem aqui tanta faculdade que tanta gente quer. E aí afora tem muito tipo de faculdade e aqui em Tauá não tem, mas aí os jovens vão mais é colocar na cabeça: ah eu vou sair, vou me embora pra Fortaleza, pra São Paulo, de lá vou trabalhar e vou fazer uma faculdade melhor. (Sexo feminino, 18 anos)

G2:S1 - Com relação à faculdade lá fora, é... seria interes-sante se tivessem outros cursos aqui, porque aí isso tam-bém já ia fazer com que os jovens já não mais tentassem ir embora, nesse caso, pra tentar uma faculdade. Como o que tem aqui é Química, Biologia e Pedagogia a maioria não quer. (Sexo masculino, 18 anos).

G2:S2 - Acho que é isso, a falta de oportunidade pra quem tá querendo chegar mais além, porque muitas vezes ele vai fazer um curso, mas não é o que ele está querendo, ser professor, quando chega no final é aprovado, mas não é o que ele queria. (Sexo feminino, 19 anos).

G1:S2 – Eu vou terminar o segundo grau aqui e no pró-ximo ano eu vou pra Fortaleza, morar com a minha mãe e minha vontade é essa também, de concluir uma facul-dade. (Sexo feminino, 18 anos).

Observa-se que os jovens que preferem continuar morando no município ficam com poucas oportunidades, tendo que se sujei-tar ao que é ofertado na cidade, seguindo muitas vezes uma profis-são pela qual não optariam se tivessem chance de escolha.

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G2: S1 - Eu vou fazer Química. Tô tentando. Se passar no vestibular, vou cursar. Não é meu sonho fazer Química, mas é a opção que nós temos aqui, ao nosso alcance e eu passando, talvez eu consiga um emprego aqui que dê pelo menos pra me manter até eu terminar o curso. Aí, tem gente que como não se enquadra em nenhuma dessas áreas dos cursos, aí vai embora e você tenta em outro local, mas muitas vezes acontecem os imprevis-tos e você nem consegue, né? Por isso que eu vou tentar me destacar, não era o que eu queria, mas pode ser que isso futuramente possa me trazer vários benefícios. Sexo masculino, 18 anos).

G2: S2- Eu fiz Química, porque no caso só tinha Química e Biologia, Pedagogia já tava lotada. Eu não queria fazer faculdade pra professor. Fiz pra Química, mas eu mesma disse pra minha mãe: eu botei Química, mas é difícil eu conseguir passar na primeira fase, vou tentar...se passar, continuo. Não gosto da matéria, mas vou tentar assim mesmo. (Sexo feminino, 19 anos).

Um fator relevante é que os estudantes fazem uma estreita relação entre trabalhar e estudar. Trabalhar para poder cursar uma faculdade, trabalhar para pagar uma faculdade, enfim, não foi observada em nenhum depoimento uma expectativa com a uni-versidade pública. Isso mostra o quanto o acesso a ela está afas-tado do imaginário deles. Esse fator é consequência das seleções cruéis, que têm excluído cada vez mais os jovens provenientes das escolas públicas e do surgimento de diversas faculdades particula-res, que podem ser pagas a um menor valor que a maioria, apesar de ser um investimento ainda caro para esses jovens, principal-mente com os baixos salários aos quais estão sujeitos no municí-pio. Mesmo quando falam em estudar fora, vem a ideia de sair para

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conseguir um trabalho que lhes proporcione pagar uma faculdade e se manterem.

G1: S2 - Eu quero ir pra São Paulo. Uma que eu já vou, no ano que vem eu já vou, se Deus quiser, mas quando eu chegar lá, eu quero... eu vou com o meu pensamento assim: chegar lá, trabalhar uns dois, mais ou menos um ano ou dois anos se for preciso, pra mim concluir uma faculdade. Que é o meu sonho é concluir uma faculdade. Não vai ser logo de início, mas quando eu chegar lá vou logo trabalhar pra concluir uma faculdade. (Sexo femi-nino, 18 anos)

G1: S4 - Ah, eu penso em ir é pra São Paulo, pra arrumar emprego melhor, ver se eu faço uma faculdade porque aqui, não arruma trabalho que dê pra fazer uma facul-dade, o problema é minha mãe deixar, minha mãe não quer. (Sexo feminino, 18 anos).

G3: S2 - Acho que também o desenvolvimento. Aqui em Tauá se você vive, nasce, cresce, morre aqui, você não conheceu nada, não aprendeu nada! (Sexo masculino, 18 anos).

A influência de quem já partiu

Esse fator caracteriza-se pela influência de parentes e ami-gos que já emigraram. Para o jovem que no momento se encontra no processo da tomada de decisão entre o ficar e o partir, esse fator tem grande relevância. Saber de histórias de pessoas que se des-locaram para as grandes cidades e conseguiram trabalho, renda e certo status, enfim alcançaram seus objetivos, estimula para que haja novas emigrações. Pode-se verificar isso no relato dos jovens apresentados a seguir.

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G3:S2 - Meu irmão foi pra São Paulo trabalhar lá. Lá ele chegou e começou a trabalhar de... fazendo entrega de pão, ganhava 450, só fazendo entrega no horário comum e tudo. Com dois meses que ele tava lá passou a trabalhar na (nome de empresa) e tá ganhando 800 reais. E agora ta com sete meses que ele ta lá, com dois meses, quase três meses ele já tá ganhando 800 reais. Aí optar por tá aqui, não. Por isso que eu também pretendo ir, pretendo não, já era pra mim tá lá, sabe? Eu ainda não fui porque eu não consegui o apoio do diretor, não consegui o apoio do diretor, não deu pra mim viajar, mas se eu passar por média, no dia 2 eu viajo! Já estou com emprego, casa certa, é só viajar. (Sexo masculino, 18 anos)

G2:S1- Eu tenho um primo que saiu daqui, trabalhava de pedreiro. Ele saiu daqui, foi vender com meu tio numa firma. Aí ele saiu. Fez um curso de cabeleireiro, tá num salão lá que é bem frequentado e agora, até agora ele já conseguiu levantar uma casa de primeiro andar e com-prou dois carros, já com o dinheiro! (Sexo masculino, 18 anos)

Acreditar ser possível “vencer” na cidade grande impulsiona a emigração, pois o jovem se desloca não somente porque a sua cidade de origem não lhe oferece condições de crescimento e satis-fação pessoal, mas por acreditar que em um outro lugar, na outra cidade ele poderá alcançar o que almeja e nesse processo a história de vitória do outro tem grande importância.

Algumas considerações sobre o momento atual

Emigrar é uma decisão importante que envolve vários aspec-tos da vida do indivíduo. Essa decisão é permeada pelos afetos, pois ao afastar-se de seu lugar de origem, distancia-se também de pessoas

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queridas, de seu modo de vida, de sua cultura. Entretanto, as condi-ções de exclusão e as dificuldades para alcançar algumas metas e rea-lizar sonhos na cidade de origem têm levado, ao longo da história do país, milhares de nordestinos a se deslocarem para os grandes cen-tros urbanos, o que tem contribuído para o inchaço das cidades que hoje se encontram com dificuldades para oferecer a seus moradores condições adequadas de moradia, de trabalho, de estudos e oportu-nidades. Encontra-se nas grandes cidades um cenário marcado por um grande número de indigentes, pela poluição ambiental, violência e pelo estresse gerado pelo modo de vida urbano.

Nesses caminhos de migração, sobretudo a de nordestinos, a seca tem sido acusada como a grande responsável pelos deslo-camentos. Observa-se, porém, que o fator que levou aos desloca-mentos em massa, mesmo nos períodos de grande estiagem, foi principalmente a situação de vulnerabilidade social à qual as popu-lações sertanejas se encontravam e se encontram expostas.

Hoje, os jovens do semiárido ainda se afastam do trabalho agrícola, para não ter em sua história de vida a repetição das difi-culdades pelas quais passaram seus familiares. O desejo de estudar e de ter um trabalho que lhes garanta renda fixa e os direitos traba-lhistas assegurados, alimenta a possibilidade de ficar cada vez mais longe das condições de vulnerabilidade do pequeno agricultor.

Verifica-se, porém, que os jovens enfrentam outras dificulda-des geradas pela falta de oportunidades na cidade de origem que, se forem somadas aos sonhos e projetos de vida que são característicos da juventude, fazem com que a emigração acabe por se apresentar ainda como uma boa saída, apesar de já ser em bem menor número.

Identificamos, na pesquisa, emigrantes em potencial, diferen-tes do sertanejo que, por causa de sua vulnerabilidade à seca, perde sua lavoura e tem que ir a procura de nova fonte de renda. Emigrantes em potencial porque ainda não haviam saído, mas que estavam na imi-nência de ir em busca de novos caminhos, novos lugares.

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Um dos fatores que influencia na decisão entre o emigrar ou não, é a estima relacionada ao lugar. Essa categoria foi apresentada por Bomfim (2003) e pode ser considerada positiva ou negativa influenciando as ações dos indivíduos em seu entorno.

A estima positiva expressa afetos positivos dos habitantes em relação ao entorno, o espaço torna-se um lugar cheio de signifi-cados que potencializam a ação do jovem nesse ambiente.

A estima negativa, por sua vez, traz desde sentimentos de rejeição ao lugar até sentimentos contraditórios, que confundem os indivíduos, despotencializando suas ações para a contribuição da construção de melhorias no entorno.

(...) a estima é um indicador da ação do indivíduo na cidade e de sua participação cidadã. A estima pode ser tomada como eixo orientador da implementação de ações que pretendam buscar o envolvimento da popu-lação em questões urbanas e ambientais (Bomfim, 2003, p. 206).

Para os jovens que participaram da pesquisa, a decisão de partir não era algo fácil, pois havia uma relação de apego à cidade, apontada através da estima deles em relação às suas comunidades, que foi verificada, de acordo com Ferreira (2006), ser mais posi-tiva do que negativa destacada pelo sentimento de pertencimento, o que pode dificultar a adaptação em outro local, gerando sofri-mento. O apego à família também foi outro fator que interferiu na decisão de partir e a separação pode também gerar um desequilí-brio emocional e sofrimento.

O que ficou claro na pesquisa é que a emigração era estimu-lada não apenas pelo desemprego, mas pela falta de oportunidades de estudo e a desvalorização do sujeito enquanto trabalhador. A exploração e a humilhação percebidas eram gritantes e podem ser vistas como expressão do sofrimento ético-político.

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Nesse caso a emigração poderia, por vezes, ser vista como uma potência de ação ou de padecimento (Sawaia, 1995). No pri-meiro caso, a emigração potencializa quando o jovem procura uma transformação da condição de explorado à qual está submetido. No segundo, quando a emigração é feita sem uma intenção transfor-madora, ou seja, quando o jovem é simplesmente levado pela ação do fluxo migratório já existente, reforçando a sua situação de sofri-mento ético-político.

Atualmente, como já relatamos anteriormente, tem sido registrado um retorno dos emigrantes nordestinos às suas cidades de origem. O Ceará, segundo dados do censo de 2010 (IBGE, 2012), foi o estado que mais recebeu de volta seus filhos que, historica-mente espalhados por diversas partes do mundo, têm voltado para casa em virtude da falta de oportunidades nas grandes cidades, da crise econômica em diversos países e, principalmente graças aos investimentos feitos para o crescimento econômico do Nordeste nos últimos anos.

De acordo com o jornal O Povo (2012, abril, 28), o censo rea-lizado em 2010 pelo IBGE (2012) demonstrou que mais de 500 mil pessoas voltaram para o Estado. Esse número é equivalente a 46,6 % do total da emigração de retorno no país. Esse índice refere-se a pessoas que nasceram no estado em que residiam no momento da pesquisa, mas que habitavam em outro local cinco anos antes.

Um dos pontos que percebemos como de extrema impor-tância para a manutenção dos jovens em suas cidades de origem foi o acesso à educação, através das políticas de expansão e inte-riorização das universidades, tanto as do âmbito federal, estadual, municipal e também as do setor privado. Isso tem dado aos jovens a perspectiva de novas oportunidades de atuação já que a agricultura familiar, apesar de ainda ser de suma importância para o abasteci-mento interno do Brasil, perdeu muito a sua força em decorrência da histórica falta de investimentos nessa área.

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Em relação à educação, não podemos deixar de citar tam-bém os esforços feitos para a construção de uma educação con-textualizada para o semiárido, deixando de lado uma educação baseada nos parâmetros de outras regiões do país, o que gerava um sentimento de desvalorização de localidades do semiárido e de valorização de outras regiões.

Nesse âmbito, destacamos o trabalho da Rede de Educação do Semiárido Brasileiro (RESAB), que busca contribuir para um conhecimento maior do próprio lugar em que se vive, descobrindo muito mais do que é transmitido pela mídia– lugar apenas de seca, de pobreza, falta de perspectivas – e que tem gerado preconceitos e desvalorização das regiões semiáridas, como lugar apenas de seca, de pobreza, falta de perspectivas, pois dessa forma, quem gostaria de permanecer neste lugar?

Busca-se, dessa forma, desmistificar uma educação refor-çadora de uma simbologia negativa sobre a região semiárida bra-sileira e que tem fortalecido “um modelo de educação colonialista que sempre privilegiou a cultura externa e desconsiderou os poten-ciais locais” (Souza, 2005, p. 25). A mesma autora cita um trecho do projeto “Inclusão e Universalização em Qualidade da Educação no Semiárido Brasileiro” da RESAB:

A educação no Semiárido brasileiro jamais prestou um serviço condizente à viabilização da melhoria das con-dições de vida no contexto em questão; por outro lado, as políticas assistencialistas desintegradas não foram suficientes para enfrentar o ciclo de geração de pobreza e frear o ciclo migratório das populações do Semiárido para outras regiões do país. Os currículos desarticulados do contexto local e propagadores de que outras regiões são melhores que o Semiárido funcionam sempre como um passaporte para a saída e para o inchaço nas perife-rias urbanas. (Souza, 2005, p. 26).

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O semiárido é uma região com características próprias, cheias de belezas e dificuldades e que precisa de políticas adequa-das para diminuir a vulnerabilidade de seus habitantes às variações climáticas, como qualquer outra região.

É necessário, no entanto, que os governantes estejam aten-tos às necessidades dos jovens, não apenas às básicas de sobrevi-vência, mas aos sonhos e anseios da juventude em seus projetos de vida (Furlani & Bomfim, 2010). É preciso que haja, além de escolas e de um ensino de qualidade, formação técnica e ensino superior que amplie os horizontes e para que os jovens tenham condições de ingressar no mercado de trabalho.

Com relação ao trabalho, não basta apenas empregar. Lembramos que 78% dos jovens entrevistados disseram ter emprego remunerado, porém, entre estes 75% pensa em emigrar. É necessário que haja uma fiscalização das empresas para que os direitos dos trabalhadores sejam respeitados. Os municípios pre-cisam fornecer subsídios para o crescimento de vagas no mercado de trabalho interno. E é preciso que haja um projeto de educação com os empresários e empregadores sobre o respeito aos direitos dos trabalhadores.

Como muitos municípios do sertão têm ainda como princi-pal fonte de renda a agricultura, é necessário que os seus dirigen-tes estejam atentos ao abandono do trabalho agrícola por parte da juventude e se prepare para receber o número de jovens que estão vindo das comunidades rurais para as sedes em busca de educação e trabalho. É necessário também que a cidade possibilite bem-estar através de uma melhor infraestrutura que garanta uma melhor qualidade de vida. Verificamos que há uma carência da população jovem quanto a equipamentos de lazer e de socialização.

Uma alternativa seria a elaboração de planos a partir da participação popular, nos quais os jovens possam falar sobre seus anseios e necessidades, nos quais a população possa refletir sobre a

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sua condição de vulnerabilidade e sobre os problemas que enfrenta no seu cotidiano. É necessário que se dê importância ao que as pes-soas têm a dizer sobre sua realidade e criar condições sustentáveis de vida para a juventude para que os laços de convivência comuni-tária, já conquistados, possam ser ampliados.

Referências

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Jovens de ambiente rural e urbano e sua relação com projetos de vida

Daniela Dias Furlani Zulmira Áurea Cruz Bomfim

Tendo como base a Psicologia histórico-cultural encaramos o homem como aquele que constrói e é construído pela his-

tória, assim como, no decorrer de sua vida, afeta e é afetado por condições externas a ele num movimento dialético das dimen-sões objetivas e subjetivas. Assim, Sawaia (2012) argumenta que a Psicologia é cada vez mais necessária e requerida para discussão em torno de políticas públicas e cabe a nós, muitas vezes, obser-var como pano de fundo essas políticas públicas e possibilidades de superações de desigualdades sociais.

Em consonância com tal realidade, discutiremos neste capí-tulo a realidade psicossocial de jovens de ambiente rural e urbano e as possíveis relações com seus projetos de vida, considerando fato-res subjetivos e objetivos que se relacionam ao processo de escolha desses sujeitos quando tecem esses projetos.

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Enfatizaremos a afetividade, sentimentos e emoções, para a compreensão dessa relação com a dimensão subjetiva que envolve o processo de escolha dos jovens por levar em conta que “Emoção, linguagem e pensamento são mediações que levam à ação, portanto somos as atividades que desenvolvemos, somos a consciência que reflete o mundo e somos a afetividade que ama e odeia este mundo [...]” (Lane, 1994, p. 62),

Um dos grupos estudados originou-se de um ambiente rural litorâneo, em Cruz, município localizado ao norte do Estado do Ceará, distando 243 km da capital (em linha reta). O outro grupo foi composto por jovens que viviam em ambiente urbano, na cidade de Fortaleza. A partir dessas duas realidades de vida (rural e urbana) procuramos traçar relações entre fatores ambientais, psi-cossociais e projeto de vida.

Os desafios vividos pela juventude hoje no Brasil tanto nas capitais quanto em populações oriundas de contextos rurais jus-tifica que debrucemos especial atenção às perspectivas de futuro desses jovens no seu cotidiano, no ambiente em que vivem, consi-derando questões políticas, sociais, econômicas, e culturais.

Nesse sentido, emoção e a criatividade envolvidas no pro-cesso de delineamento dos projetos de vida desses jovens se relacio-nam com “[...]dimensões ético-políticas da ação transformadora, de superação da desigualdade, e que trabalhar com elas não é cair na estetização das questões sociais, ou solipcismo, mas sim um meio de atuar no que há de mais singular da ação política emanci-padora” (Sawaia, 2009, p. 366).

Juventudes e projeto de vida

A abordagem histórico-cultural apreende a juventude não como uma fase normativa do desenvolvimento humano, mas antes disso: como uma criação histórica que é atribuída de significações e interpretações humanas. Acreditamos na necessidade de superação

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dessas visões naturalizantes, onde a fase de vida da juventude é compreendida tão somente por uma série de mudanças psíquicas e biológicas, sem levar em conta parâmetros históricos e culturais de diferentes épocas.

Ozella (2003) cita significados de compreensão da juven-tude a partir da visão da Psicologia histórico-cultural, onde a juventude é entendida como processo: “[...] uma visão longitudi-nal e histórica como parte de um processo de desenvolvimento, de transição para a vida adulta” (Ozella, 2003, p. 23). Assim como: “[...] resultado de uma construção social; dependente das relações sociais estabelecidas durante o processo de socialização, incluídos aqui fatores econômicos, sociais, educacionais, políticos e cultu-rais” (Ozella, 2003, p. 23).

Compreendemos que as questões referentes ao projeto de vida para jovens torna-se um assunto de maior importância na medida em que eles vivenciam um contínuo processo de constru-ção de si, traçando caminhos para a realização de seus projetos. Definimos projeto de vida como: “[...] eixos orientadores que sig-nificam uma visão de futuro, a partir do aqui-agora de perspecti-vas, planos, anseios a respeito de trabalho, profissão, vida familiar e desejos relevantes que conferem sentido de vida para uma pessoa” (Furlani & Bomfim, 2010).

O projeto como conduta organizada com o intuito de se alcançar finalidades específicas é definido por: “[...] antecipação no futuro dessas trajetórias e biografia, na medida que busca, atra-vés do estabelecimento de objetivos e fins, a organização dos meios através dos quais esses poderão ser atingidos” (Velho, 2003, p. 101). O projeto situado no presente também se refere a um futuro que é antecipado e incorpora um passado presentificado. Também não se desvincula da realidade (meio social e outros indivíduos) e por isso se constrói em acordo com esta. É o que Velho (2003) designa

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como sendo a negociação com a realidade, com a qual o indivíduo se depara ao elaborar e refletir sobre seu projeto.

O referido autor salienta que mesmo sendo os projetos algo de cunho particular, é notável a interação dos sujeitos dos projetos com outros indivíduos de modo que possam partir do que Velho (2003) chamou de campo de possibilidades. Esse campo é circuns-crito dentro de uma realidade histórica, social e cultural que se torna o fundo, enquanto o projeto ocupa o lugar de figura para esse indivíduo. Uma pessoa pode ter projetos diferentes e até mesmo contraditórios. Isso pode ser compreendido quando se leva em conta que essa realidade que subjaz o projeto faz parte do que se denomina sociedade complexa.

Na sociedade complexa, coexistem diferenciados estilos de vida e visões de mundo. Nesta realidade de multiplicidade os indi-víduos também se mostram a partir de uma pluralidade, na medida em que assumem vários papéis a partir de diferentes planos em que transitam (trabalho, família, amigos, comunidade, grupos religio-sos etc.). Aqui fazemos um paralelo com o conceito de Identidade metamorfose, de Antônio Ciampa (2001), onde o indivíduo assume vários personagens que viabilizam uma infinidade de possibilida-des de existência, que acompanham a construção permanente da identidade do sujeito, explicitando seu caráter processual e dinâ-mico. E, assim como as pessoas mudam, seus projetos também estão passíveis de transformações. Em uma relação dialética, tam-bém entendemos que os projetos mudam as pessoas.

Velho (2003) também faz referência ao termo metamorfose quando faz a designação de potencial de metamorfose dos indiví-duos das sociedades complexas, que se caracterizam, entre outras coisas, a partir de uma intensa troca cultural. Fenômenos como: migrações, viagens, encontros internacionais, cultura e comunica-ção de massa etc.

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De forma enganosa, uma grande cidade, com seus múlti-plos estímulos, parece ofertar muitas possibilidades de escolha para o sujeito. Nela existem milhares de pessoas convivendo em espaços comuns, mas que, na maioria das vezes, estão imersas em seus mundos particulares, como uma expressão individualista de existência.Torna-se comum nos espaços urbanos a questão da apartação social, divisão nítida (econômica) entre espaços dos ricos e espaços dos pobres.

As condições da sociedade atual têm facilitado ou não tal capacidade humana? Essa questão se relaciona diretamente com a capacidade de tecer projetos de vida, sendo essa problemática, mais especificamente com o público jovem, algo que elegemos como um ponto importante a ser investigado.

Para Giddens (2002), quando o sujeito “toma conta de sua vida” ele entra em contato com o risco de enfrentar a diversidade decorrente das possibilidades abertas. Porém, somente dessa forma, alcançará a plenitude de uma vivência ativa e compromis-sada com seu eu. O autor propõe então a reflexividade do eu. A prá-tica de tal reflexividade poderia ser compreendida de maneira que

A cada momento, ou pelo menos a intervalos regulares, o indivíduo é instado a se autointerrogar em termos do que está acontecendo. Começando com uma série de perguntas feitas conscientemente, o indivíduo se acos-tuma a perguntar “como posso usar este momento para mudar?” (Giddens, 2002, p. 75).

A mudança individual perpassa a do grupo a qual esse sujeito faz parte já que quando um sujeito pensa sua escolha esta não se desvincula do outro. E quando esse mesmo sujeito de forma contínua não reflete sobre suas escolhas consideramos que aí se envolve uma realidade de alienação que segundo Sawaia (2009, p. 368) “[...] torna cada um contrário a todos os outros, cada qual

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imaginando satisfazer seu desejo com a destruição do outro, perce-bido como obstáculo aos seus desejos [...]”.

Assim, o autoquestionamento é necessário para que o indi-víduo seja o autor de sua vida e se envolva com potências de ação e não de padecimento (Sawaia, 2009). Vale ressaltar que na condição da modernidade a pluralização de escolhas torna-se algo que per-meia a vida das pessoas de forma intensa. Se o sujeito não conse-gue lidar com inúmeras escolhas, pode esbarrar em conflitos que o imobilizem para ações transformadoras como também podem refletir aspectos sociais de alienação. A reflexividade pode então vir a ser uma alternativa saudável para que as pessoas estejam mais conscientes de si e da realidade social nos tempos atuais.

Quando pensamos acerca da liberdade e da escolha como inerentes à condição humana (Sartre & Ferreira, 2004), é necessário vincular que a existência de uma pluralidade de escolhas não signi-fica que todos têm alcance a todas as escolhas. Essas são influencia-das pelas variáveis socioeconômicas, assim como pelas influências dos grupos sociais. A limitação sobre o direito de escolher pode cau-sar tanto sofrimento psíquico quanto restrição de aspectos objeti-vos como a moradia (Sawaia, 2012, p. 366). Ao processo de escolha também se vincula a angústia quando o sujeito percebe que sua escolha também se relaciona com um compromisso que envolve os outros. Para Sartre e Ferreira (2004) a angústia se relaciona com a responsabilidade refletida em ação que o homem tem perante toda a humanidade. Se o homem é ação seu projeto de vida representa o micro e o macro de uma realidade social.

Giddens (2002) atribui importância ao que designa pla-nejamento estratégico da vida, que pode ser entendido de forma análoga, na mesma perspectiva do que focamos como projeto de vida. De acordo com o autor: “O planejamento da vida é um meio de preparar um curso de ações futuras mobilizadas em termos da biografia do eu” (Giddens, 2002, p. 83). Pensamos então que

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problematizar a temática do projeto de vida na juventude, possi-bilitando uma prática de reflexividade, é um modo de preparar o jovem para o futuro, reconstruindo seu passado e estando compro-missado com seu presente.

Afetividade como categoria de estudo

Com base na possibilidade de interação entre fenômenos sociais e psicológicos, elegemos a categoria de afetividade nesse estudo para refletirmos sobre as relações possíveis entre as emo-ções e os aspectos sociais referentes aos grupos de jovens em foco.

Epistemologicamente, o conceito de afetividade na consti-tuição do conhecimento foi subjugado ao que é negativo e pato-lógico. Existe uma clara cisão, entre o emocional e o racional, estabelecendo assim uma nítida dicotomia entre o intelecto e a emoção. A perspectiva histórico-cultural, contrária à dicotomia entre corpo e alma, vem se opor também a esta cisão – razão e emo-ção) – assim como qualquer outra dicotomia proposta por alguma teoria.

A autora Bader Sawaia (1999) investiga a categoria da afe-tividade explicitando uma tentativa de resolução das dicotomias entre subjetividade e objetividade, razão e emoção, interno e externo, indivíduo e social, entre outras, tão presentes na ciência psicológica. Pela afetividade rompe assim com o paradigma racio-nalista e positivista, que se reflete no fato de que questões referen-tes ao racional ao longo da história da ciência sempre obtiveram um lugar de destaque nos diversos campos do saber. Em contrapar-tida, estudos que tratassem da emoção e da afetividade não eram evidenciados, mas, relegados ao âmbito da loucura, já que eram desconhecidos e tidos como aspectos que extrapolavam o controle e o que a sociedade impunha como norma. Ou seja, emoções e sen-timentos eram tidos como algo que possibilitava um não controle, uma desordem dos fatos.

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Sawaia (2002) usa o termo afetividade, então, como fenô-meno ético-político, unindo ética, política e afetividade no sentido de demarcar uma ontologia e caracterizar a dimensão social do afeto e a dimensão humana da ética, por isso é uma categoria trans-disciplinar. Além disto, constitui-se um eixo orientador de obser-vação e de análise.

Um dos autores em que Sawaia (2002) se fundamenta para tratar de tal questão é o psicólogo russo Lev S. Vigotski. Percebe que a obra desse autor produz um efeito real sobre a teoria das emoções. Vigotski (2001) se ocupa da questão do psiquismo como sendo constituído por um todo integrado, sendo a emoção uma de suas partes que se conecta com todas as outras. Ele aborda o tema das emoções e mostra que uma séria desvantagem do tradicional antagonismo entre razão e afeto é o fato da Psicologia se deparar com a dificuldade de se explicar a gênese do pensamento, incluindo os seus motivos e as suas necessidades.

Segundo o autor: “Para compreender a fala de outrem não basta entender suas palavras – temos que compreender o seu pen-samento. Mas nem isso é suficiente – também é preciso que conhe-çamos sua motivação” (Vigotski, 2001, p. 188). Essa ideia se associa à defendida pelo autor de que todos os pensamentos que antece-dem as falas têm uma tendência afetivo-volitiva, ou seja, são gera-dos por emoções.

Percebemos o afeto como algo que se encontra na base das escolhas humanas. Como se ele assumisse a posição de uma força motriz que interfere nas atitudes dos indivíduos. Os afetos inter-ferem nos pensamentos, que por sua vez irão influenciar as esco-lhas, atitudes e opções que priorizamos ao longo de toda a nossa existência. Ação e pensamento são motivados. Essa ideia está em conformidade com a visão não dicotômica entre razão e emoção. A emoção é, pois, a base dos pensamentos e das ações, como se fosse o combustível que impulsiona o movimento de um automóvel.

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Como enunciou Vigotski (2001), a tendência afetivo-volitiva está por trás do pensamento. Então, não se concebe um pensamento que não seja motivado.

Sawaia (2002, p. 7) conclui que “[...] a afetividade tinha o potencial de ser um microcosmo, onde se cruzam, num processo de transmutação, o social e o psicológico, permitindo, dessa forma, analisar questões sociais, sem perder o homem de carne e osso”. Sawaia (1999) propõe que o estudo da afetividade pode ser um meio de se compreender o problema da desigualdade social e a dialética da inclusão/exclusão social. Essa perspectiva coloca as emoções como algo de cunho social, e, portanto, como um fenômeno histó-rico, que por sua natureza se encontra em constante devir. A autora explica que o sentido de classificar as emoções como uma questão ético-política serve para que a Psicologia possa introduzir o sujeito nas análises econômicas e políticas necessárias para o desenvol-vimento social do país. Assim, a ética passa a englobar aspectos psicológicos sociais e políticos. A organização social influencia na maneira como as pessoas se tratam intersubjetivamente. O sofri-mento analisado ético-politicamente vem denunciar questões sociais que envolvem relações de opressão/opressor, dominador/dominado, que ocorrem nas vivências cotidianas das pessoas.

Bomfim (2003) propõe uma metodologia de apreensão dos afetos, os mapas afetivos1, uma forma de construção de sentidos movidos pelos afetos, que avaliam como as pessoas se posicionam diante de uma cidade, do bairro ou comunidade, ou de qualquer tipo de ambiente onde vivem que seja um território emocional que gera significados. Assim, a afetividade com o lugar pode conjugar dimensões importantes quando se almeja investigar realidades sociais das relações das pessoas com seus lugares.

1 Essa foi a metodologia utilizada na pesquisa da dissertação de mestrado intitu-lada Juventude e afetividade: Tecendo Projeto de vida pela construção dos mapas afetivos, mestrado em psicologia da UFC.

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Com base nessa metodologia, construímos os mapas afe-tivos de jovens de ambientes rurais e urbanos, relacionando esses afetos com seus projetos de vida. Para isso, foi solicitado aos jovens que desenhassem como percebiam e sentiam o ambiente a qual faziam parte. A seguir, apresentamos o desenho de um jovem morador do ambiente rural que ilustra uma imagem de contraste.

Figura 1 – Desenho apresentado a partir do instrumento gerador do mapa afetivo tendo como imagem o Contraste

Quando indagado sobre seus projetos de vida, manifesta vontade de terminar seus estudos e se qualificar com um curso de informática. Considera que tais projetos são fáceis de realizar. A imagem suscitada com o mapa afetivo correspondeu a de con-traste porque o respondente expressa qualidades positivas do lugar onde mora, relacionando-as com o turismo, no entanto, afirma não querer permanecer morando na localidade por falta de traba-lho. Justifica o desejo de morar em outro município onde lhe fosse ofertado melhores oportunidades. Quando solicitado a responder ao quesito 3 do mapa afetivo (“Caso alguém lhe perguntasse o que pensa sobre sua cidade, o que você diria?”) o respondente afirma:

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“Em certos momentos bons em outros ruins, principalmente em administrações”. Essa insatisfação em relação ao lugar é comple-mentada pela resposta do quesito posterior, onde compara seu município com “um carro velho que só funciona no empurrão”.

Esse jovem, na ocasião da pesquisa, não exercia um trabalho efetivo, a não ser ajudando sua mãe fazendo crochê (trabalho infor-mal). Percebe-se, portanto, que a busca por trabalho é o fator moti-vador do respondente, assim como dos outros jovens de ambiente rural, que tem como consequência não ter vontade de permane-cer no lugar onde vive. Em relação à comunidade, responde não se considerar pertencente a ela, não participando de nenhum grupo. O que de certa forma contribui com a perspectiva de deixar o lugar de origem. Um dos desenhos representativos da relação de projetos de vida de jovens do ambiente urbano nessa imagem de contrastes pode ser vista a seguir.

Figura 2 – Desenho apresentado a partir do instrumento gerador do mapa afetivo tendo como imagem o Contraste

Os contrastes de sentimentos da jovem são observados no significado que ela atribui ao desenho. Foi percebido não só na imagem de contraste gerada a partir do mapa afetivo, mas também

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durante a entrevista quando questionado sobre seus projetos de vida. A jovem afirma: “Eu, assim, eu nunca pensei em fazer facul-dade né, meu pai que sempre falou pra mim e até pra minha irmã que também não queria fazer faculdade não. Mas, assim, ele sempre fala que é pra gente fazer e tal, mas assim meu pai é bancário, e uma coisa que eu coloquei na minha cabeça é que eu quero ser bancária, coloquei na minha cabeça que quero passar no concurso do Banco do Brasil e ser bancária. Quem sabe depois de eu ter passado no concurso do Banco do Brasil eu faça uma faculdade assim, eu quero fazer Artes Cênicas. Meu pai também é contra. Ele fala assim, não tem que fazer alguma coisa que dê dinheiro, não sei quê.... Mas aí eu passando no Banco do Brasil né, aí eu posso fazer a faculdade de Artes Cênicas”. Aqui percebemos contrastando o que a jovem deseja realizar em sua vida, com os valores parentais. Sendo estes últimos confusos em relação aos seus próprios projetos de vida.

Em relação ao significado do desenho escreve: “Bom, pri-meiro tem um rio poluído. Eu acho Fortaleza suja. Depois tem um assaltante, a violência aqui é muito grande. Mas tem uma pessoa de braços abertos, as pessoas daqui são muito acolhedoras”. Nesse caso, o contraste de sentimentos em relação ao lugar pode ser decisivo em relação à dúvida expressa pela respondente durante a entrevista ao responder sobre seu desejo de permanecer morando em Fortaleza, onde mora há um ano: “Tenho vontade de voltar... sei lá às vezes tenho vontade de voltar, às vezes de ficar, não sei ainda...”.

Questionamos então como se fragilizam os projetos de vida de jovens que vivem em ambientes expostos a situações de exclusão social em contextos rurais e urbanos. Acreditamos que a catego-ria afetividade, posta em destaque neste estudo, é relevante para essa investigação por dar subsídios para compreensão da realidade de jovens frente aos seus projetos de vidas. Lane (1994) apontou que: “[...] a relevância atribuída ao racional, em nossa cultura, sub-mete as emoções ao seu contrário fazendo com que aquelas não

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verbalizadas sejam reprimidas vindo a constituir inconscientes” (Lane, 1994, p. 60).

Essa repressão das emoções pode estar correlacionada com a cultura capitalista dominante, que pretende obscurecer as desi-gualdades sociais e legitimar as relações de opressão por que passa a maioria da população. Acrescenta-se ainda a realidade de instru-mentalização dos afetos e do corpo em nossa sociedade. Sawaia (1999, p. 106) afirma que: “Saúde e felicidade são mercadorias com-pradas em prateleiras, sob receita médica”. É o poder da técnica, que segue a lógica do capital. Verificamos as complexas relações entre aspectos individuais e sociais, configurados em uma interde-pendência interacional, que nos mostra uma realidade de desigual-dade social que vem reproduzindo processos de exclusão.

A exclusão não é um estado que se adquire ou do qual se livra em bloco, de forma homogênea. Ela é um processo complexo configurado nas confluências entre o pensar, sentir e o agir e as determinações sociais mediadas pela raça, classe, idade, gênero, num movimento dialético entre a morte emocional (zero afetivo) e a exaltação revolucionária (Sawaia, 1999, p. 110-11).

A compreensão do processo de inclusão e exclusão social no contexto rural e urbano dos jovens estudados é fundamental para a busca de ações em diversos âmbitos que possam minimizar ou erradicar os efeitos das desigualdades sociais. Os aspectos afetivos desvelados no contexto da vida cotidiana desses jovens podem ser tomados como ponto de avaliação de suas reais necessidades, assim como do nível de implicação destes com o lugar.

A implicação revela o compromisso histórico dos homens, na medida em que os jovens têm a possibilidade de se tornar sujei-tos críticos que fazem e refazem uma época, anunciando e denun-ciando situações de opressão, contribuindo dessa forma com

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transformações sociais. Nesse sentido, Freire (1980) lembra que a realidade passa a ser desvelada, desmistificada quando o sujeito sai da posição ingênua e passa a ter um olhar crítico da realidade, transcendendo situações limites e tornando possível a superação de opressões desumanizantes.

Modos de vida rural e urbano

Enfocamos os modos de vida rural e urbano e sua relação com os projetos de vida de jovens com o intuito de não reforçar o privilégio que a Psicologia tem dado a questões do urbano em detrimento do rural, já que não é lugar comum nessa ciência o trato com as questões de sujeitos que vivem em ambientes rurais (Albuquerque, 2002). Para isso também enfocamos as característi-cas da cidade na contemporaneidade, para que possamos contex-tualizar os modos de vida e suas repercussões sobre a subjetividade humana.

Park (1979) argumenta que a cidade vai além dos aspectos meramente físicos e objetivos. Enfatiza os processos de relações interpessoais que perpassam a distância de uma cidade, entendida como resultado de algo produzido pelos homens que, como seres agentes, imprimem suas marcas por meio dos costumes, tradições e hábitos que vão construindo ao longo de sua trajetória histórica e social. Rolnik (1994) também considera a cidade como resultado da ação humana, já que a considera “[...] uma obra coletiva que desafia a natureza” (Rolnik,1994, p. 8). A cidade pressupõe então um sentido de coletividade, apesar de nela existirem diversas individualidades.

Difícil é a demarcação entre ambiente urbano e rural em um mundo que se torna cada vez mais urbano (Véras, 2000). A cidade “[...] condensa diferentes facetas ligadas ao mundo econômico, à vida social, à cultura, atingindo os modos de vida, as subjetivida-des, a comunicação, a questão do território e da alteridade” (Véras, 2000, p. 9).

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Em relação aos processos de segregação, compara a cidade a “[...] um mosaico de pequenos mundos, que se tocam, mas não se interpenetram” (Park, 1979, p. 67). Essa divisão de mundos gera exclusão social, que afeta principalmente a vida da população mais frágil economicamente. A exclusão social na dinâmica da cidade pode ser vista nitidamente na divisão de bairros dos ricos separados dos bairros que concentram pessoas pobres, onde a infraestrutura das moradias é bastante precária.

Rolnik (1994, p. 52) diz que “Do ponto de vista político, a segregação é produto e produtora do conflito social. Separa-se por-que a mistura é conflituosa e quanto mais separada é a cidade, mais visível é a diferença, mais acirrado poderá ser o confronto”.

Passam a existir aí os “muros invisíveis” como resultado de uma demarcação social de exclusão entre classes de pessoas que, mesmo vivendo em única cidade, não convivem de forma natu-ral, espontânea no que diz respeito ao tráfego nos mesmos lugares dessa cidade. Em algumas cidades, os bairros de ricos e de pobres se localizam em espaços próximos, o que muitas vezes leva a um aumento da violência urbana, já que, como mencionamos, a convi-vência entre os diferentes grupos não é pacífica.

Um aspecto interessante apontado por Park (1979) é que os sentimentos dos habitantes de uma cidade são percebidos em aspectos do físico da cidade. Ou seja, a cidade acaba agregando em si aspectos, qualidades dos seus habitantes. O autor utiliza o con-ceito de vizinhança, que significa “[...] uma localidade com senti-mentos, tradições e uma história” (Park, 1979, p. 34). A vizinhança facilita o desenvolvimento de sentimento local dos habitantes de uma cidade.

Em relação às grandes cidades, Park (1979) argumenta que o sentimento de vizinhança é desfavorecido no sentido de perder muito de sua significância por causa de certos aspectos peculiares à vida citadina. Por exemplo, o desenvolvimento, tanto dos meios

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de transportes, como os de comunicação, facilita a movimentação dos habitantes das cidades, o que faz com que a mobilidade deles seja rápida e frequente. Logo, a intimidade da vizinhança tende a ser dispensável. Nos centros urbanos, onde o modo de vida das pessoas pressupõe essa mobilidade diária, verifica-se uma menor intimidade entre os cidadãos. Porém, segundo Park (1979), isto já é notado de forma contrária nos lugares de segregação populacional, como as colônias raciais e de imigrantes.

Outro aspecto da cidade, como demonstra Park (1979), é o que se refere à cidade como o espaço de possibilidades diversas para o homem, lugar onde exercer escolhas, opções e vocações. A comparação da cidade com um ímã, feita por Rolnik (1994), em que a cidade exerce a capacidade de atrair incessantemente milhares de pessoas através de uma força magnética constante, é bastante útil quando pensamos nas múltiplas facetas da cidade que geram a atração de pessoas. Dentro da multiplicidade de opções que a cidade vai ofertar, os homens, por meio de competição pessoal, poderão ser selecionados conforme suas condições específicas. A isso se relaciona o processo de racionalização das ocupações.

O fenômeno de pessoas que são atraídas para as cidades não é algo recente. Como apontou Rolnik (1994), já na época do declí-nio do feudalismo, os camponeses, mesmo sem uma perspectiva concreta de trabalho nas cidades, fugiam do campo, movidos por um sentimento de libertação.

Usando o termo mobilidade, Park (1979) compara o homem citadino com o camponês. Explica que mobilidade tem como corre-lativo o termo isolamento, representando um caráter e uma condi-ção. Salienta que não precisa necessariamente existir um obstáculo físico para ocorrer mobilidade ou isolamento. A própria educação ou os meios de comunicação podem interferir nesse quesito.

Rolnik (1994) relaciona a revolução industrial com a fomen-tação dos movimentos migratórios para as cidades. Segundo a

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autora, as cidades são: “[...] transformadas em polos de atração para massas de imigrantes de regiões e países os mais variados, as cidades passaram a ser sinônimos de heterogeneidade cultural e étnica” (Rolnik, 1994, p. 79). Dessa forma, as características das cidades urbanas que se tornam mais intensas a partir dos avanços industriais afetam a condição de vida das pessoas que se deslocam de seus ambientes de origem em busca de novas oportunidades de trabalho. Com relação ao Brasil, a migração ocorre não somente entre estados, mas também entre países. Um exemplo disso é a his-tória de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, que foram palco de imigração de italianos, espanhóis e portugueses. Rolnik (1994) denuncia um caráter contraditório das cidades industriais, que é o fato do aumento da violência. Refere que o avanço industrial é ao mesmo tempo avaliado como potência de criação e de destruição.

As condições contextualizadas de cada tipo de homem (rural ou urbano) influenciam em seus modos de vida e, portanto, na orga-nização de distintos grupos sociais no lugar onde moram. Além do que, a vida nas grandes cidades faz com que as relações se tornem impessoais e racionais, o que, segundo Rolnik (1994) leva à definição de interesses movidos por dinheiro, sendo este o centro e a causa das grandes resoluções econômicas, sociais e políticas. Isso nos leva a pensar que a economia também interfere nos processos de mobili-dade das populações, que são levadas a permanecer ou não no lugar onde moram de acordo com as mudanças no âmbito econômico.

Park (1979) argumenta que, nas grandes cidades, ao mesmo tempo em que se multiplicam as oportunidades das pessoas de terem contato com seus semelhantes e com outras instituições, a qualidade desses contatos é de transitoriedade e instabilidade. Compara a habitação das pessoas na cidade com a permanência de indivíduos em um grande hotel. Sugere que as relações íntimas e permanentes, próprias de comunidades menores, são substituídas por relações casuais e fortuitas.

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A cidade pode abarcar o diferente, a alteridade em alguns casos, mas isso não significa dizer que realmente existam espaços igualitários para todos. Como já foi analisado, a segregação e exclu-são social são vividas de forma intensa nas metrópoles. Na realidade de exclusão social presente nas grandes cidades, a diferença do outro é transformada em inferioridade. O que pode ser visto como antagô-nico, já que poderíamos supor que nas cidades, que possuem diversi-dades tão grande de lugares, haveria de ter espaço para todos.

Como avaliou Véras (2000, p. 18): “Se a cidade global tem a face de muitos lugares, marcas de outros povos, diferentes culturas, por ser lugar de imigração, é também espaço de não lugares, do transitório, do não identitário e histórico”.

Um exemplo que aqui se faz oportuno avaliar é a migração de sertanejos para as metrópoles. Muitos deles se deslocam de seus lugares de origem para fugir da seca com a esperança de uma vida melhor. Ocorre que na maior parte dos casos não são bem suce-didos em seus objetivos e passam a compor o cenário de fome e pobreza típico das grandes cidades. São desenraizados cultural-mente e jogados na dureza da vida urbana que não os absorve no mercado de trabalho.

O espaço urbano, cenário de desigualdade social, provoca o desenraizamento cultural de migrantes, mas não só deles; boa parte da camada popular também sofre essa exclusão. Segundo Darmergian (2001), há um processo de eliminação da heterogenei-dade em prol da heteronomia da vontade. A sociedade despreza o dessemelhante tentando eliminá-lo em muitas situações.

Considerando ambas as realidades (rural e urbana) encon-tramos relações significativas entre o ambiente dos jovens estuda-dos e seus projetos de vida, a partir dos motivos afetivo-volitivos, entendidos como a base das palavras e do pensamento expressos pelos jovens imersos em relações sociais existentes em sua cultura (Vigotski, 2001).

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Onde eu quero e posso viver? Como eu quero e posso viver? O que eu quero e posso fazer?

Nenhum vento sopra a favor de quem não sabe para onde vai (Sêneca).

Concordamos com pressupostos existencialistas que, bus-cando entender a existência humana, admitem que o homem é seu projeto e existe escrevendo sua vida na medida que realiza tal projeto (Sartre & Ferreira, 2004). Assim entrevistamos jovens para conhecer seus projetos de vida almejando entender se eles estabe-leciam estratégias para alcançá-los no lugar em que viviam, e se achavam que tais projetos eram concretizáveis, entre outras ques-tões (Furlani, 2007).

Em sua maioria os jovens tiveram como projeto de vida concluir os estudos, fazer uma faculdade, ter um trabalho e/ou emprego fixo e constituir uma família. Levantamos a questão de que muitos jovens não possuíam condições de ter clareza sobre o que pretendiam para o seu próprio futuro e que tal fato integra condições objetivas e subjetivas. Nossa experiência apontou que os jovens envolvidos na pesquisa retrataram vidas, depoimentos e sig-nificados que revelaram que a “A desigualdade social se caracteriza por ameaça permanente à existência. Ela cerceia a experiência, a mobilidade, a vontade e impõe diferentes formas de humilhação (Sawaia, 2012, p. 360)”.

É pertinente ao tema projeto de vida para os que vivem a juventude, e muitas vezes se constitui um grande desafio. O jovem, que comumente é um ser questionador, traz em si um grande potencial para ser o grande autor de sua vida. No entanto, as difi-culdades por que passa, sejam elas de cunho individual (crises existenciais, alterações de humor, modificações hormonais etc) ou de cunho social (situação socioeconômica, desigualdades sociais,

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crise de valores etc.), podem influenciar na atuação consciente e planejada desse jovem em sua própria vida.

A diferenciação dos jovens moradores de ambiente urbano para rural não resultou em uma diferenciação completa de seus projetos de vida. Contudo, observaram-se influências do ambiente em que residem em relação a algumas características específicas de seus projetos de vida. Identificamos que os jovens do ambiente rural tendem a buscar mais cedo o trabalho, em relação aos jovens do ambiente urbano. Observou-se ainda que estes trabalhos eram, em geral, informais, sem a garantia de direitos trabalhistas, o que lhes gera uma insegurança em relação ao lugar em que moravam.

Percebemos uma grande queixa dos jovens do ambiente rural sobre a dificuldade de encontrar trabalho no lugar que viviam. Esse fato se relaciona com o projeto deles de pretender morar em outro lugar, na tentativa de buscar melhores oportunidades de tra-balho. Muitos afirmaram que, se não fosse por esse fato, gostariam de permanecer morando lá mesmo. Já em relação aos jovens do ambiente urbano, identificamos uma queixa em relação à violência urbana, à qual estão cada vez mais expostos, gerando sentimentos de contraste em relação ao lugar que habitam. Ao mesmo tempo em que gostam do lugar, devido às características atrativas dele (praias, clima quente, hospitalidade das pessoas etc.), sentem-se mal com assaltos, crimes e violência. A violência urbana que amedronta – não só aos jovens – provoca um sentimento de desconforto, medo, insegurança, que leva a certa imobilização das pessoas em geral. Os jovens, foco específico desta pesquisa, expressaram muitas vezes o fato de não conhecerem verdadeiramente sua cidade por causa do medo de transitar pelas ruas. Os jovens do ambiente urbano expressaram um maior desejo de ingressar na faculdade do que os jovens do ambiente rural. Consideramos que isso não se relaciona somente com a situação financeira dos jovens; relaciona-se, tam-bém, com o fato de o meio urbano oferecer mais alternativas para o ingresso no ensino superior, instigando quem está perto a almejar

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uma participação nesses níveis mais avançados da educação. Ao passo que, em um ambiente rural, onde não existem faculdades e universidades, ocorre o desinteresse a partir da impressão de que esse projeto seja distante de suas realidades.

Consideramos que a falta de perspectivas dos jovens para construir projetos de acordo com as referências que encontram se relaciona tanto com aspetos individuais como com condições adversas do meio social pelo qual estão imersos. Parece existir, então, uma relação entre condições sociais específicas de ambien-tes diferentes e a maneira como cada um se posiciona, o que per-mite fazer escolhas e vivenciar situações (Matheus, 2003).

A desigualdade econômica que impera atualmente em nossa sociedade leva à exclusão social, que é experimentada pelos jovens como ameaça que fragiliza seus projetos de vida.Tanto os jovens do ambiente rural quanto os do ambiente urbano pertencem a classes sociais economicamente mais desfavorecidas, compondo um qua-dro de vulnerabilidade social. Quando os jovens demonstraram falta de criatividade e motivação para projetar planos, objetivos e metas diversificadas para suas vidas percebemos e identificamos o sofrimento ético-político (Sawaia, 2012).

O imediatismo de limitar-se a questões pessoais de um pre-sente imediato demonstrado pelos jovens que pouco refletiram sobre suas vidas, restringindo os projetos ao que lhes parecia mais possível de conquistar – profissão, trabalho e família, revelou-se uma realidade dos jovens de ambos os ambientes (rural e urbano).

A participação dos jovens em grupos de iguais (religiosos, esportivos, artísticos ou sociais) possibilita a troca de experiências, que leva à aprendizagem, ao autoconhecimento, aos sentimentos de bem-estar, ao crescimento pessoal, à motivação, à liberdade e à criatividade que facilitam a expressão de seus projetos levando em conta que “o outro é indispensável à minha existência, tal como

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aliás ao conhecimento que eu tenho de mim” (Sartre & Ferreira, 2004, p. 221).

Costa (2004) argumenta que uma das consequências decor-rentes da crise da modernidade consiste no fato de que o indivíduo encontra-se diante do enfraquecimento de instâncias, tais como: a família, o trabalho e a religião. Ou seja, atualmente não existe mais tão nítido um padrão a ser seguido, prevalecendo as multipli-cidades de normas, condutas e modelos. Com o detrimento dessas instituições, Costa (2004) mostra que o indivíduo passa a se basear em dois eixos de suporte: o narcisismo e o hedonismo. Narcisismo entendido como individualismo exacerbado e o hedonismo como uma consequência da dinâmica identitária narcisista. O sujeito tende a se envolver apenas com compromissos particulares, além de permanecer preso ao presente. É incapaz de antecipar proble-mas, questões a serem pensadas, não exercendo muito a capaci-dade de elaborar projetos de vida.

Costa (2004) defende a ideia de que as instâncias tradicio-nais não deixaram completamente de exercer domínios sobre os indivíduos. O que passou a ocorrer foi o que denominou de “priva-tização” de tais instâncias. Ao invés de serem eleitas universais, pas-sam a atuar a partir de uma multiplicidade, tendo efeito de acordo com cada caso, não vigorando de modo homogêneo. Assim, pen-samos como um ponto favorável à liberdade que o sujeito tem de poder se adequar a uma pluralidade de valores, tradições e padrões de comportamento.

Já a autora Costa (2012) designa rede de apoio social (famí-lia, escola, pares e comunidade) como fator de proteção para jovens se desenvolverem de forma saudável mesmo diante de condições adversas e aponta que o papel dessa rede e sua influencia na vida da juventude brasileira que vive em condições de vulnerabilidade social.

Concordamos com a advertência de Sawaia (2012, p. 370) de que “a consciência/sentimento de que nossa potência de passar da

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passividade à atividade só é possível por meio do outro que nos torna comprometidos socialmente, não por obrigação, mas como ontologia”.

Assim, políticas públicas que considerem uma de rede de apoio social como fator de proteção para jovens se desenvolverem de forma saudável mesmo diante de condições adversas, deve ser um eixo prioritário do Estado. Envolvidos nessa rede de proteção, os jovens tendem a elaborar seus projetos de vida de forma mais estruturada e crítica.

O potencial do jovem para mobilização, reflexão, busca de superação de desafios que gerem mudanças pessoais e grupais deve ser aproveitado e incentivado por educadores e por profissionais de diferentes áreas. Acreditamos que esse é um dever e um desafio em nossa sociedade atual, principalmente num país como o Brasil, em que os jovens representam uma grande parcela da população.

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Modos de vida cigana e toxicodependência: desafios e perspetivas no cuidado em

saúde mental em Portugal

Joaquim A. Costa Borges

[…] Maria Gomes Pimentel […] de Vila Nova da Rainha no Brasil, cúmplice no assassínio do marido só foi condenada a dez anos de exílio em Angola, enquanto que duas ciganitas,

com cinco e dez anos de idade, foram exiladas para toda a vida, juntamente com a mãe viúva, apenas por serem ciganas.

(Boxer, 1965, p. 202)

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Introdução

Entre os anos de 1989 e 2012 registramos na clínica pública e privada a presença de pessoas de etnia cigana e de mestiços1,

filhos de cruzamentos entre ciganos e brancos, com a problemá-tica da toxicodependência e distúrbios psiquiátricos. Conhecida a nossa experiência clínica em Portugal com essa etnia, surgiu o con-vite para integrar, em regime de voluntariado, o Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre a Etnia Cigana – Grupo de Trabalho Sina, em 1997, através de Sérgio Aires, coordenador nacional da Rede Europeia Antipobreza para as Minorias Étnicas, que integrava enti-dades públicas e privadas de diferentes áreas (Saúde, Educação, Segurança Social, Justiça etc.), cuja maior preocupação se centrava nas questões de saúde pública ligadas à etnia. Esse grupo fazia parte da Rede Europeia SASTIPEN – palavra que significa “Saúde” na lín-gua Romaní2 –, composta por parceiros nacionais públicos e pri-vados de solidariedade social (ONGs) e países da União Europeia como Espanha, Portugal, França, Itália, Grécia, Bélgica, República da Irlanda e Reino Unido, sendo que a Hungria, a Roménia, a República Checa e a Bulgária tinham, inicialmente, o estatuto de observadores. Todo este trabalho obteve, à época, financiamento por parte da União Europeia, dadas as preocupações generaliza-das ante a discriminação dessa etnia no espaço comunitário que era percepcionada como sendo mais distónica que os imigrantes do Brasil, África e Europa de Leste.

Em Portugal, o Grupo Sina procurou, num espírito de cul-tura de rede, reflectir estratégias e formas de intervenção concerta-das no que concerne aos problemas com que a etnia se confrontava. O convite para integrarmos o grupo revelou-se tão enriquecedor

1 Conhecidos dentro da etnia como “presuntos”.

2 Romani – idioma principal do povo cigano.

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quanto questionador das práticas tradicionais se considerarmos essa experiência como alteridade à prática clínica com a maioria paya3. Um dos objectivos do Grupo Sina era promover com as pes-soas ou grupos que se encontravam em situação de exclusão, por um lado, e com os agentes de intervenção (profissionais, trabalhado-res sociais, dirigentes de instituições particulares de solidariedade social), por outro, a integração social, a organização de serviços e outras actividades que visassem primacialmente a expressividade cultural, económica, psíquica, física e ética das pessoas dessa etnia. Esse grupo de trabalho cessaria funções em 2006 com o fim do financiamento dos projectos por parte da União Europeia. A partir dessa data, por falta de fundos, deixaram de existir políticas con-cretas que visassem o apoio à etnia cigana. Um dos maiores proble-mas, actualmente e à época, da comunidade cigana era e é o abuso de estupefacientes por parte dos jovens da etnia.

O modus vivendi dos Roma4

Existe atualmente consenso em considerar o povo cigano como sendo oriundo do Punjab, na Índia. Daí teriam se dissemi-nado pelo Próximo Oriente e pela Europa, chegando aos Balcãs na Idade Média. Um século depois os ciganos estavam na Península Ibérica, entrando em Portugal em 1498. Poucos anos depois (1516), Luís da Silveira lhes dedica uma poesia, recolhida por Garcia de Resende no seu Cancioneiro geral. Em 1521 Gil Vicente faz repre-sentar no Paço Real de Évora perante o “muito alto e poderoso Rei D. João, o terceiro deste nome” (Vicente, 1965, p. 641) a Farsa das ciganas, em que o autor situa erroneamente a origem da etnia na Grécia. Martina, uma das ciganas da peça, refere numa corrup-tela do castelhano: “De Grecia sumuz hidalgaz por Diuz. Nuestra

3 Paya – nome usado pelos ciganos para designar a sociedade branca.

4 Roma – é um exónimo no português para ciganos.

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ventura que fue cuntra nuz, Por tierraz estrañaz nuz tienen perdi-daz” (Ibidem, 1965, p. 645).

Na sua itinerância e possuindo aptidões excelentes para o negócio e comércio, os ciganos prestaram serviços notáveis à sociedade europeia. Durante centenas de anos, quando não exis-tiam hipermercados, as novidades chegavam ao mundo rural tra-zidas por eles. Caraterizaram-se desde o início pela sua errância e nomadismo revelando atualmente, e devido à pressão da socie-dade maioritária, tendência para a sedentarização. Mantiveram ao longo de vários séculos as suas tradições, quase sempre discrimi-nadas pelos povos não ciganos. As referências negativas e depre-ciativas em relação a esta etnia são uma constante, assim como as perseguições e as tentativas de assimilação por parte da maioria, consubstanciadas na profusão de leis persecutórias, sobretudo na Península Ibérica. Ainda hoje a discriminação é notória, havendo comerciantes que, para afastar os ciganos das suas lojas, colocam nas suas vitrines sapos de louça, considerados portadores de infor-túnio pela etnia.

Há autores como Moscovici (2009) que comparam a diás-pora cigana à judia. Ambos os povos foram vítimas do holocausto nazi, durante a Segunda Guerra Mundial. Estima-se terem sido exterminados cerca de 500.000 ciganos nos campos de concen-tração entendendo-se que este número peca por defeito (Fraser, 2000). A perseguição ao povo judeu terá acalmado substancial-mente após a guerra, não podendo o mesmo ser dito em relação aos Romaní. “Los gitanos fueron probabelmente los primeros refugia-dos de Europa” (Rodríguez, 2011, p. 59).

Trata-se da principal minoria étnica da Europa, composta por doze milhões de indivíduos, concentrados maioritariamente no leste europeu. É, contudo, de salientar, que o Brasil é o segundo país do mundo com a maior população de ciganos (um milhão), só ultrapassado pela Roménia (Rodríguez, 2011). Em Portugal,

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segundo a European Comission against Racism and Intolerance, (2002), a população cigana era constituída nessa altura por 50.000 a 60.000 indivíduos maioritariamente concentrados na zona urbana de Lisboa, bem como no litoral atlântico e em algumas localida-des do interior que fazem fronteira com Espanha (Almeida, A et al., 2001). Esse número não é fiel. A Constituição Portuguesa, e a maioria das europeias, impede a existência nos dados de recensea-mento da população de fatores que identifiquem raça, etnia ou cor por serem potencialmente discriminatórios. Quando uma criança é registada nenhum desses dados consta, o que favorece o desco-nhecimento generalizado em relação a essa minoria. Os dados dis-poníveis são provenientes das autarquias, nem sempre fidedignos, uma vez que surgem relacionados com pedidos de auxílio, nomea-damente para a obtenção do Rendimento Social de Inserção5 (RSI) e de habitação social.

Os ciganos são um dos grupos socialmente mais desfa-vorecidos (Aires, S. & Alves, I., 2003). Essa estado potencia a sua extrema fragilidade no enfrentamento da atual crise económica. Acrescem os problemas de integração na sociedade maioritária que essa comunidade sempre teve ao longo dos séculos, como a exclu-são social, a existência de um medo enraizado face aos ciganos, medo esse eivado de preconceito e alicerçado em estereótipos que os consideram uma “corja” de ladrões e preguiçosos. Esses receios são motivados, essencialmente, pelo desconhecimento genera-lizado das suas especificidades étnicas numa cultura que, desde tempos imemoriais, puniu a diferença denegando-a.

Velhas e novas derivas (toxicodependência e crise socio-económica) afetam neste momento a construção da identidade cigana, as regras de parentesco, a autoridade e as suas crenças. As gravíssimas medidas de austeridade previstas para o orçamento

5 Rendimento Social de Inserção, RSI, apoio do estado português para os indiví-duos e famílias sem qualquer outro rendimento.

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do estado 2013 potenciam a precariedade altamente penalizadoras para a população em geral e, particularmente, para os grupos sociais desfavorecidos como os ciganos. De acordo com o Relatório da Primavera 2012, do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) “Os efeitos da crise socioeconómica, nomeadamente, na saúde mental são bem conhecidas. As principais manifestações são precoces e caracterizam-se por perda de autoestima, depressão--ansiedade e risco de comportamentos suicidas” (OPSS, 2012, p. 16). O mesmo relatório faz uma comparação a priori com exemplos recentes da realidade grega que apontam para um forte aumento das infecções por HIV nos consumidores de drogas injectáveis, o que deverá colocar Portugal numa situação de alerta ante essa pos-sibilidade. O mesmo relatório refere que “em Portugal e Espanha se observou um excesso de mortalidade significativa para o grupo etário dos 15 aos 64 anos” (OPSS, 2012, p. 20). Considerando que a pirâmide etária da etnia é composta por uma população muito jovem, esses dados agora revelados são alarmantes.

Valores e modos de organização

A família exerce uma função básica nas relações sociais da comunidade cigana, sendo o eixo da organização social e da vida quotidiana. Vivem ligados a um grupo amplo de parentesco e dessa ligação advém a sua identidade e formação de personalidade. Nesse conceito próprio de família, há que ter em conta não só os que vivem debaixo do mesmo teto, mas também os parentes mais afastados no espaço, apesar de haver sempre uma procura de proxi-midade entre os elementos da mesma família.

“O bem da família e o apoio aos seus membros sobressai e domina outros princípios morais e qualquer outro aspeto da vida quotidiana” (Arbex, 1999, p. 16). Têm uma vida social fechada, centrada no clã, onde se pratica a endogamia (Frazer, 2000, p. 40), ou praticava, o que protegia os elementos do núcleo familiar. Esse

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funcionamento endogâmico, cada vez mais em desuso, terá prote-gido a etnia da assimilação pelos gachó6 ao longo dos séculos.

De hecho, a lo largo de su devenír histórico los gitanos se han visto obligados a vivir com una doble tensión: la tendência a la endogamia para mantener la identidad comunitária, com los riesgos que comporta, y la tendên-cia a una mínima adaptación al contexto geográfico, de riesgo también evidente (Rodriguez, 2011, p. 53).

A família cigana tem como função a socialização dos seus elementos, a cargo das mulheres, delegando-se pouco na escola. A figura da mãe é fundamental mantendo uma comunicação muito próxima com os filhos. O pai exerce a autoridade e mantém maior distância na relação com os mesmos. A ambos compete a transmis-são dos valores próprios da etnia: respeito, fraternidade, coerência, liberdade e eficácia (Rodríguez, 2011). Nas comunidades ciganas o reconhecimento social da maioridade dá-se mais cedo. Nas rapa-rigas com a menarca, nos rapazes com a primeira ejaculação. O seu processo de maturação é mais acelerado que nos não ciganos. Desde muito cedo começam a trabalhar havendo distinções entre os trabalhos a desempenhar de acordo com o género. O valor eco-nómico das crianças ciganas é elevado porque desde cedo contri-buem para o aumento do rendimento do agregado familiar.

O casamento é uma instituição basilar na comunidade. Considerado pela sociedade paya como sendo somente uma união de facto, é sentido como fulcral pela comunidade, abrindo a porta à idade adulta. A par com os batizados, é o grande momento de festa da comunidade cigana. O casamento precoce obriga a uma assun-ção de responsabilidades que provoca uma aceleração na obtenção de maturidade dentro e fora do grupo. O casamento é combinado

6 O termo gachó, deriva do caló, dialeto ibérico da etnia cigana, usado para refe-rir, pejorativamente, os brancos, os “outros”. Evoluiria no português para “gajo”.

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pelas famílias aquando da infância. A taxa de fecundidade é muito elevada e a comunidade é constituída maioritariamente por jovens dos seis aos vinte e cinco anos (Arbex, C., 1999).

No que diz respeito à educação, a etnia tem uma das maio-res taxas de abandono escolar do país, por causa do isomorfismo da escola pública portuguesa, impreparada para a multiculturalidade. Por outro lado, as caraterísticas da cultura cigana conduzem ao seu isolamento face ao resto da população e promovem a sua resistência à integração nas comunidades escolares. O seu escasso autocon-trolo emocional, a maior prevalência do emocional sobre o racio-nal e a menor motivação para o pensamento abstrato (Rodríguez; 2011), leva a que as crianças frequentem a escola até aprenderem a ler e a escrever, uma vez que contar cedo é interiorizado, na sua educação familiar ligada ao negócio. A ida à escola é obrigatória para a atribuição do RSI.

Existem escolas, nomeadamente as TEIP (Território Educativo de Intervenção Prioritária) com turmas compostas por meninos ciganos. Cedo perceberam que o trabalho com eles e as respetivas famílias não poderia passar pela figura do diretor de turma (professor responsável pelo grupo/turma), sendo a comuni-cação estabelecida através de um mediador cigano, figura da etnia, que transmite informação aos pais sobre a vida escolar das crian-ças. As rotinas escolares e o cumprimento de horários são difíceis para a etnia, habituada a contar o seu tempo pelos ritmos da natu-reza, ao sentir e não ao cumprir, justificando essa forma de estar na vida o elevado absentismo escolar dos meninos e meninas ciganos. Dentro da comunidade existe uma fraca valorização da escola, que consideram desviar as crianças da contribuição para o sustento da família, não sendo o conhecimento escolar em si valorizado uma vez que a sua tradição cultural não sente necessidade da prática discursiva científica.

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Para a comunidade cigana a família é o espaço privilegiado de transmissão de conhecimento, aquele que considera adequado a um dos seus membros, feito essencialmente pelas mães, em casa. A educação formal das meninas é considerada desnecessária. A ida à escola rouba tempo à família e as impede do auxílio às mães nas suas tarefas, seja a leitura da sina, na mendicidade ou nos trabalhos domésticos: “la chabordi (a catraia) faz-me muita falta no trabalho da casa, por isso eu não a deixo ir à escola. O “chavorrillo” (rapazito) se quiser pode ir, mas também nos faz falta, porque sempre sai e volta com alguma coisita que nos ajuda a governar” (Pinto, 2000, p. 68). Para as meninas da etnia, o acesso à escola é particularmente difícil, o que explica a existência de uma taxa de analfabetismo superior entre as mulheres. Há, felizmente, um grupo minoritário que acede a estudos superiores em Portugal. Entre outros exem-plos, um dos municípios, no centro do país, tem como prefeito um cigano, licenciado em Direito.

Povo desde cedo dedicado à errância e ao nomadismo, às caravanas familiares percorrendo os caminhos da Europa, ligados ao chão que pisam, à natureza, à vida ao ar livre, não será de estra-nhar que suas atividades económicas sejam consentâneas com essa forma de estar na vida. A sua existência desde sempre se desenvol-veu em estreito contacto com a natureza, na dedicação às ativida-des cénicas, à leitura da sina, à agricultura, por curtos períodos de tempo, à cestaria, à venda de gado e à pequena metalurgia.

Há que ter em conta o posicionamento cultural do povo cigano face ao trabalho, que não é visto como uma possibilidade de ascensão económica ou social, ou de promoção pessoal, somente como um veículo de sobrevivência do próprio e da família. Se a sub-sistência estiver assegurada, o trabalho deixa de ter justificação e o cigano dedica-se aquilo que para si é fundamental: agir o viver. Procuram trabalhos que assegurem um rendimento imediato e que lhes permita mobilidade e flexibilidade de horário. A valorização do que nos rodeia é feita por essa etnia de uma forma substancialmente

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diferente da sociedade maioritária. A liberdade, um dos mecanis-mos identitários dos ciganos, confronta os valores primordiais do capitalismo, o que habitualmente produz nos empregadores payos hostilidade em relação à contratação de ciganos.

Em Portugal existem alguns sinais que levam a acreditar numa possibilidade de mudança. Por um lado, as associações ciga-nas têm proliferado e mostrado sensibilidade perante a necessi-dade de formação profissional dentro da etnia, sem diferenciação de género, por outro, e de uma forma impositiva, a atual legislação portuguesa exige que todos os detentores do RSI prestem quinze horas semanais de trabalho comunitário como condição sine qua non para a obtenção dessa prestação social. Verifica-se também um maior recurso ao microcrédito para pequenos negócios (Almeida et al., 2001) nomeadamente por parte das mulheres ciganas, para a criação de microempresas de trabalhos domésticos.

No que diz respeito à habitação, o povo cigano prefere a vida a céu aberto, modus vivendi profundamente enraizado nas suas tradições, ou numa casa térrea, com acesso fácil ao chão, para ele familiar enquanto possibilidade de caminho a percorrer. A grande maioria continua sem condições mínimas no que diz respeito à habitação e existe falta de sensibilidade das autarquias relativa-mente às especificidades culturais da etnia e à sua necessidade de pertença à terra. A vida em apartamentos, em bairros sociais, ver-dadeiros guetos, localizados perto de lixeiras ou zonas industriais poluídas não tem facilitado a sua integração (FSG7, 2007).

Dentro da comunidade existe uma valorização do patriarca, enquanto fiel depositário de experiências de vida, o sábio que pode orientar os mais novos. Regra geral, o mais velho de um determi-nado acampamento ou comunidade assume o papel de tio que decide, em última análise, o que o clã deverá fazer. As mulheres,

7 FSG – Sigla para Fundación Secretariado Gitano

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enquanto veículo de transmissão da cultura cigana, agrafa8 por excelência, são valorizadas. É com a mãe que se dá o processo de socialização primária, e é com esta que as crianças ciganas passam mais tempo. O casamento é combinado precocemente pela família havendo um tabu em relação a casamentos entre ciganos e gachó, situação esta que é mais restritiva no que concerne às mulheres, valorizadas enquanto rainhas do lar, organizadoras das tarefas domésticas, mas às quais nunca é reconhecida maioridade. Uma mulher cigana não pode trabalhar fora de casa sem a companhia do marido ou de um homem da família ou, ainda, sem outras mulhe-res ciganas.

Apesar dos condicionantes apontados anteriormente, a importância do género na etnia consolidou-se através da forma-ção profissional de mulheres, no planeamento familiar e econo-mia doméstica, bem como a sua capacitação como mediadoras socioculturais, o que conduziu à constituição da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas em 2001, com sede na cidade de Setúbal (Almeida et al., 2001).

A comunidade cigana portuguesa tem se aproximado nos últimos tempos da Igreja Evangélica de Filadélfia, que se tem reve-lado um espaço alternativo de apoio ao grupo na resolução de conflitos internos e no afastamento do mundo das drogas (o seu sucesso é deveras relativo). A participação no culto é também vista como lugar de transmissão de normas e condutas relacionadas com os cuidados de saúde, especialmente álcool e tabaco nas mulheres, bem como na toxicodependência dos homens.

8 Agrafa – cultura sem escrita, veiculada pela oralidade.

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Modus operandi das sociedades capitalistas e o modo de vida cigano

Considerando que capitalismo designa um modelo de orga-nização social e económica, sendo também usado, num plano his-tórico, como a antítese do socialismo, diferenciando-se deste pelo seu carácter individualista, pela motivação do lucro, baseando-se na propriedade privada, na livre iniciativa e empreendedorismo, nenhum desses pressupostos tem enquadramento no modo de viver da sociedade cigana. Orientam a sua vida tendo em conside-ração a sobrevivência do clã, se um tem todos têm, se não existe, não existe para ninguém. O pseudorracionalismo económico, a ânsia de criar riqueza e forçar lucros especulativos, que modelam a mentalidade capitalista, sobretudo na atual vertente ultraliberal – remotamente plasmada nas ideias calvinistas e em Lutero, ele próprio antissemita e anti-rom9 – é profundamente antagónico do sentir cigano.

Ameaçadoramente livres numa sociedade sedentária, amantes dos espaços e dos caminhos, ligados por um sentimento intrínseco de liberdade típico da sua cultura, o cumprimento de horários imposto pelos empregos convencionais afasta a etnia desde logo do mainstream. O desapego em relação a valores mate-riais é desde logo consubstanciado na forma como vivem o luto. As posses do morto são destruídas, todos os cacharros10 que a viúva acumulou ao longo da vida em comum são destruídos. Do morto nem o nome se pode guardar, sob pena de o mesmo vir ensombrar a vida dos vivos e não ter paz na sua vida no além. Os familiares sobrevivos com o mesmo nome devem alterá-lo, não vá a alma do defunto ouvir o seu nome ser pronunciado e sentir-se conjurado

9 Rom – Povo cigano, em Romaní.

10 Cacharros – peças de louça vistosas e coloridas muito apreciadas pelas mulheres ciganas.

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a regressar, pondo em perigo o “equilíbrio” existente entre os dois mundos. A viúva não pode voltar a casar e deverá levar uma vida de recato, abstendo-se de participar nas festas ciganas (Pinto, 2000).

Assim, no modo de ação típico da cultura cigana, os valo-res capitalistas não são enquadráveis. Povo livre por excelência, no seu quadro de representações mentais o dinheiro não tem qualquer valor que não no imediato. Vale para prover o sustento da família, extensa ou nuclear, no hoje e agora. Guardar para amanhã suscita azar, num povo profundamente supersticioso, com dificuldade em entender a visão gachó que incita à poupança, a uma vida regrada de trabalho, imposta por uma sociedade disciplinar. Caraterizam-se por uma lógica imediatista, ganhar hoje, gastar hoje. O passado não preocupa e o futuro não angustia. Na comunidade não existe uma prática de reserva de lucros ou acumulação de capitais. A esta-bilidade não surge como uma necessidade premente, só o presente interessa. Tradicionalmente ligados a atividades que lhes permi-tam a subsistência quotidiana, partilhadas entre toda a família, em que cada um cumpre a sua função de prover o clã, culturalmente não revelam tendência para atividades que envolvam muitas horas e ligadas a horários rígidos, provavelmente porque “não há, por parte da população, uma consciência da necessidade de apreen-são dos mecanismos de mercado-concorrência, relação qualidade/preço – de aperfeiçoamento dos produtos fabricados, enfim, das exigências da economia de mercado” (Pinto, 2000, p. 80), daí que a maior parte dos negócios seja realizada dentro da própria comu-nidade, através de troca direta. Durante muito tempo a fazenda era medida a olho e não tendo o metro como padrão de referência.

Dedicam-se à cestaria, feita pelos homens adultos, mas a concorrência de cestos fabricados a baixo preço na China tem difi-cultado a venda desses artigos. A progressiva rarefação da matéria--prima, obtida nos canaviais, por causa de um aumento crescente do nível de poluição dos rios portugueses, tem também obstaculi-zado esta atividade.

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A comunidade cigana vive de costas orgulhosamente volta-das para os ideais burgueses, de vida regrada, dedicada ao trabalho e na subsistente criação de mais-valias assentes na valorização da propriedade, noção a qual são alheios, o que explica a legitimidade do furto aos olhos dos ciganos, encarado somente como luta pela sobrevivência.

A toxicodependência e a saúde mental entre os ciganos

De uma forma geral as comunidades ciganas não procuram os serviços de saúde excepto em casos limite. Para a comunidade, saúde, é sinónimo de ausência de doença. Recorrem às urgências hospitalares em situações graves, sendo alheias à prevenção. Na toxicodependência e na saúde mental essa situação é assaz notória.

De uma maneira geral os ciganos têm uma relação proble-mática com a doença, que é assustadora e vivida com medo, daí os mitos e lendas transmitidos pela oralidade, por exemplo, uma família com um membro canceroso esconde essa realidade dado que as suas crenças consideram esse tipo de doença uma maldição de Deus. Revelam, igualmente, fraca consciência em relação à pos-sibilidade de prevenção e tratamento, daí que qualquer problema de saúde seja vivido como um luto.

As crianças ciganas crescem, maioritariamente, num ambiente insalubre, sem acompanhamento higieno-sanitário, sem vacinas, não só pelo receio em relação dos seus efeitos, como também devido à forma como os pais entendem o tempo, assu-mido como entidade ligada aos ciclos da natureza e não ao tempo medido por Greenwich. O esquecimento de prazos e datas não é considerado relevante. A noção de espaço e tempo é difusa.

A alimentação é deficiente e irregular com uma notória exiguidade de pratos quentes. O exercício físico não é praticado quer por crianças quer por adultos. Os hábitos de higiene pessoais

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são descurados, o banho diário quase não existe e o vestuário não é cuidado. É comum a existência de acidentes como queimaduras, quedas, atropelamentos, feridas com instrumentos domésticos, fraturas, bem como a ingestão de produtos de limpeza, medica-mentos e outros produtos tóxicos (há relatos em Espanha de crian-ças mortas com overdose acidental quando na família se trafica). Na raiz do problema está o abandono das crianças e a falta de super-visão dos adultos, deixando-as entregues à sua sorte, obrigando-as a “desenrascar-se”. Desde que nascem que a sua autonomia é incen-tivada. É comum um rapaz de doze anos conduzir o carro do pai. As atividades preventivas são nulas e escassa é a possibilidade da sua implementação. A saúde não os preocupa desde que a sua ausên-cia não se manifeste através do surgimento de doença. O médico é procurado só quando esta se manifesta para resolver o problema tão pronto quanto possível.

É nesse contexto que, em Portugal, cessam, sobretudo a partir de 2008, início da crise económica, os programas da União Europeia. Neste momento não existem, praticamente, programas de prevenção com as camadas populacionais mais desfavorecidas, nomeadamente nos ciganos. Houve um alheamento notório da política governamental face às desigualdades sociais e um desin-vestimento, com todas as consequências para a saúde pública, desse tipo de lacuna, nessa população.

O recurso dos elementos da comunidade aos serviços de assistência médica é baixo. A par disso, não deveremos esquecer a ausência de documentação legal por uma parte dos ciganos, que não tem sequer cartão de cidadão. Essa situação é conveniente para os poderes instituídos uma vez que os desonera de responsabilida-des sociais.

Está enraizado na sociedade portuguesa o estereótipo do cigano ladrão e traficante de droga. Na realidade, o tráfico de droga em Portugal não é um monopólio da comunidade cigana. Dentro

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dela é residual. O tráfico de droga afeta apenas alguns dos seus membros. Da nossa experiência clínica ressalta uma percentagem reduzida de ciganos dedicados ao tráfico, cerca de 5%. Deverá ser tido em linha de conta o maior peso demográfico dos grupos juve-nis na comunidade cigana, o que pode sobredimensionar o pro-blema de tráfico e/ou consumo de drogas como o tabaco, o álcool, o haxixe, a heroína e a cocaína.

Inicialmente, o tráfico de drogas surgiu na comunidade como mais uma forma de dinheiro rápido e imediato para prover o sustento da família alargada. Numa primeira fase conseguiram uma separação quase assética em relação aos produtos que traficavam. A comunidade rege-se por leis próprias, obedecem à sua medida aos tribunais, mas resistem ao seu reconhecimento. A “lei cigana” é um conjunto de princípios que emergiram da tradição, passados pela oralidade, sobretudo através das matriarcas, condicionando e determinando toda a vida social. Tem inerente uma ética especí-fica, referindo-se a regras e mestria no negociar. O tráfico de drogas tratava-se somente de mais uma possibilidade de mercancia. Os problemas começaram a surgir quando os jovens ciganos passaram a consumir os produtos que vendiam. O maior prejuízo que teve a entrada dos ciganos no comércio de droga foi o incremento expo-nencial de toxicodependentes entre a população mais jovem, o que forçou uma profunda mudança nas suas caraterísticas identitárias, sobretudo no respeito por causa dos mais velhos. As disrupções familiares ligados ao consumo de drogas têm um forte impacto na etnia. São, sobretudo, os homens casados que abusam do consumo de estupefacientes motivados, inicialmente, pela forma fácil de obter sustento para a família, depressa se deixando tentar pelo con-sumo do que era somente suposto comerciarem.

A cultura cigana em si encerra um conjunto de fatores que potenciam o consumo de substâncias psicoactivas. As crianças ciganas crescem num clima de permissividade face aos consumos. Como o risco do consumo não é entendido no seio da comunidade,

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elas não são protegidas. Existe uma falta de conhecimento do alcance que o consumo desse tipo de substâncias e outras, como o café, tabaco ou álcool podem ter. Desde cedo a educação para o excesso e a predominância do emocional sobre o racional dificul-tam a tomada de posições meditadas ante os consumos, dado que a oferta é inevitável. A família cigana típica considera que o consumo de tabaco e álcool pelos jovens do género masculino é sinal de viri-lidade e honradez, promovendo o abuso11. A parentela, por um lado é permissiva, por outro, perante o consumo de estupefacientes, tem atitudes antagónicas. Ou tenta esconder ou ameaçam com a morte, expulsão de casa ou outros castigos. No fundo, o que predomina é um sentimento de impotência. Nas famílias em que essas subs-tâncias circulam com normalidade não existem cuidados no sen-tido de impedir as crianças de lhes aceder, pululando as mesmas pelas casas como produtos inócuos. A incorporação no tráfico de menores de idade facilita um eventual consumo futuro. Por outro lado, ficando sozinhas durante parte do dia, em meios sociais des-favorecidos em que essas substâncias circulam com liberalidade, a possibilidade de consumo aumenta. Desse modo, a comunidade cigana de repente acordou para uma realidade diferente. Alguns dos seus jovens tornaram-se toxicodependentes. O cigano usuá-rio de drogas tem fraca visibilidade face ao cigano traficante. Esse facto tem vindo a ser camuflado o que origina outro problema. O encobrimento, com as doenças potencialmente associadas ao con-sumo, hepatite, síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA) etc., produz preocupações e, consequentemente, inibem a procura de apoios terapêuticos.

Existe uma enorme dificuldade em fazer estimativas sobre o número de toxicodependentes de etnia cigana. As famílias escamo-teiam o consumo por vergonha, por ser uma fonte de conflitos ou

11 As raparigas, na cultura tradicional cigana, estão inibidas do consumo de álcool e de tabaco.

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pela necessidade de preservar a imagem do clã. Em termos médios, o toxicodependente cigano tem uma idade de consumo mais pre-coce que em outros grupos sociais e, quando chegam aos centros de assistência, fazem-no em idade mais tardia e em situações pesso-ais mais complicadas. Se tivermos em linha de conta o casamento precoce, facilmente se percebe que, na maioria dos casos, quando procuram ajuda, já são pais de famílias numerosas que têm de sustentar, levantando a situação os mais variados problemas. As crianças desses agregados familiares são um grupo de risco a ter em conta. Numa comunidade em que a família e os valores a ela associados são fundamentais, a desestruturação provocada pelos casos de toxicodependência têm consequências avassaladoras, com impacto nos mecanismos de controlo social, colocando em causa, muitas vezes, o prestígio e a autoridade dos mais velhos. Essa situ-ação agrava-se com as doenças associadas ao consumo. Na clínica pudemos comprovar indicadores preocupantes de aumento dos casos de infeção com vírus da imunodeficiência humana (VIH), especialmente homens, que mantêm relações sexuais com os seus cônjuges, sem qualquer tipo de proteção.

Na nossa prática clínica verificou-se que o consumo de drogas ilícitas é de 99% entre os homens ciganos e 1% entre as mulheres, o que contrasta notoriamente com a realidade paya, em que o rácio dos usuários é de 75% entre os homens contra 25% de mulheres (Borges, 2005). Ao longo dos anos de prática clínica, 219 usuários de etnia cigana e 23 “presuntos” – designação dada pelos próprios aos filhos de casamentos mistos – chegaram à nossa con-sulta psiquiátrica com questões associadas à toxicodependência.

Da prática clínica ressaltam alguns dados epidemiológicos que passamos a apresentar:

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Tabela 1 – Alguns dados epidemiológicos

Id. média de procura da primeira

consulta

Género N.º de filhos por

casal

Escolaridade

Masc. Fem. Analfabetos 4 anos

6 anos

9 anos

12 anos

Ciganos 27 anos 99% 1% 3,1 32% 34% 28% 6% 0%

Mestiços 29 anos 87% 13% 1,4 0% 6% 42% 48% 4%

Tabela 2 – Dados de consumo, overdose e tentativa de suicídio

Tóxicos mais usados Consumo médio de heroína por dia

OverdoseTentativa

de suicídioHeroína

Heroína +

Cocaína

Heroína +

Álcool

Heroína +

BZDFumado Injetado

Ciganos 52% 19% 21% 8% 2 gramas 1,4 gramas 30% 12%

Mestiços 48% 16% 18% 18% 1,2 gramas 1 grama 25% 30%

Tabela 3 – Comorbilidade psiquiátrica

Comorbilidade psiquiátrica

AlcoolismoDistúrbios de personalidade

Doenças afetivas

EsquizofreniaDebilidade

mentalNeuroses

Sem distúrbios

Ciganos 40% 8% 21% 9% 8% 6% 8%

Mestiços 15% 45% 15% 8% 0% 0% 17%

Tabela 4 – Patologias orgânicas

Doença orgânica

Hepatopatias HIV+ Epilepsia Tubercolose Asma

Ciganos 83% 6% 5% 6% 0%

Mestiços 76% 0% 8% 8% 8%

Embora essa amostra possa ser considerada como desequili-brada, 219 ciganos versus 23 “presuntos”, poderão problematizar-se diferenças a considerar entre ambos os grupos em questão.

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Realizando uma avaliação grosseira dos dados da amostra, parece verificar-se a existência de diferenças entre ciganos e mes-tiços, sendo que os últimos apresentam padrões condizentes com uma aculturação/assimilação face à etnia dominante. Se não veja-mos: a comorbilidade psiquiátrica é de 92% nos ciganos, 83% nos mestiços, se comparada com 80% nos brancos (Marques-Teixeira, 2000). Também no índice de natalidade os ciganos diferenciam--se significativamente quer dos mestiços quer da restante popula-ção portuguesa. No que respeita às hepatopatias os ciganos estão sobrerrepresentados (83% nos ciganos, 76% nos mestiços e 60% nos brancos). O consumo médio diário de heroína nos ciganos é sensivelmente o dobro dos brancos (Borges, 2000). A tentativa de suicídio é manifestamente inferior nos ciganos por fatores culturais próprios que o associam à vergonha e à fraqueza. As substâncias tóxicas mais usadas e a ocorrência de overdoses não são disseme-lhantes nas três populações consideradas.

Num estudo realizado no Estabelecimento Prisional do Porto (Gomes, 2001), verificou-se que a toxicodependência afeta gravemente uma camada essencialmente jovem da etnia cigana. Comparando essa população com a estudada por nós é de real-çar que a prevalência de VIH é o dobro nos detidos (12% versus 6%). Não existem diferenças significativas no rácio entre géneros, na escolaridade, na idade de início de consumo e no tipo e via de administração de tóxicos. Contudo, o mais devastador é que, repre-sentando os ciganos apenas 0,5% da população portuguesa, 6% dos encarcerados são dessa etnia! (A justiça serve quem?…).

Aptidões relacionais no seguimento dos ciganos e adesão terapêutica

O técnico de saúde que se disponha a trabalhar com a etnia deve ter certas características, como ser pessoa de ideias abertas, tolerante e ter consciência da sua etnicidade. Isso o levará a não

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impor valores, atitudes e comportamentos. Ao conhecer as atitudes e valores do mundo cigano, o terapeuta saberá o que perguntar e como perguntar. Há questões delicadas e áreas em que se deve res-peitar o silêncio. Por exemplo, é um disparate, para além de insulto grave, investigar a sexualidade de uma mulher cigana, ou mesmo se ela fuma.

O trabalho clínico com ciganos é diferente da outra rotina psicoterapêutica. O primado da psicoterapia de “insight”, baseada na confrontação e conhecimento de si próprio, deve dar lugar a uma maior diretividade, pois isso é aceite como um sinal de autori-dade e sabedoria. Devem-se estabelecer regras e prescrições claras e instituir tarefas e objectivos coerentes ao tratamento e à pessoa. Os aspectos educacionais e de suporte são importantes. É acon-selhável envolver no tratamento a unidade familiar alargada. Os ciganos lidam com o jovem dentro da perspectiva cultural da inter-dependência familiar. Assim, as figuras de autoridade familiares, pais, avós ou tios, consoante os casos, devem ser envolvidas na tera-pia. O clínico deve saber resistir à adversidade.

O êxito no tratamento da toxicodependência é em si mesmo baixo. Nos ciganos, a procura de ajuda dá-se em deses-pero, depois do fracasso dos sistemas naturais familiares, pelo que frequentemente é pedido ao terapeuta uma solução rápida, quase mágica. Nos ciganos há também a expectativa de que a desintoxi-cação é o tratamento em si próprio. À parte estas condicionantes, não descortinámos diferenças significativas na adesão ao trata-mento, se comparadas com a população maioritária. Persistimos em falar que o cigano não procura o “serviço”, procura antes um terapeuta “afamado”, a quem seja outorgado a autoridade e “sabe-doria”. Acreditamos que no tratamento de ciganos a Terapia de Grupo, com pacientes ciganos e não ciganos, seja mais produtiva que a Psicoterapia individual. Os grupos de autoajuda, como os Narcóticos Anónimos, serão igualmente úteis, desde que mistos e com a coordenação de elementos ciganos.

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Saúde e comunidades ciganas (o futuro – que esperança?)

Na nossa visão, a atuação das estruturas de Saúde, no que diz respeito à intervenção em comunidades ciganas, deverá ter como pontos fundamentais a prevenção, o tratamento e a des-centralização de serviços. No tocante à prevenção, deverão ser desenvolvidos programas de vacinação, saúde escolar, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, planeamento familiar e, sobretudo um esforço acrescido na prevenção e tratamento de transtornos mentais e/ou toxicodependência. No que concerne ao tratamento deverá incidir numa articulação das comunida-des com os Cuidados de Atenção Primária (Centros de Saúde e Unidades de Saúde Familiar), Hospitais Psiquiátricos, Equipas de Tratamento e Unidades de Alcoologia do Instituto da Droga e da Toxicodependência, Instituto Público (IDT, IP), equivalentes no Brasil aos CAPS-AD. Os serviços deverão ser descentralizados apostando-se na criação de postos avançados de saúde junto das comunidades ciganas mais relevantes.

Para se operacionalizarem essas estratégias, deverá ter-se em conta que as comunidades ciganas não recorrem aos serviços de saúde para prevenir doenças, mas sim em casos-limite, dirigindo--se maioritariamente às urgências hospitalares. Qualquer projecto de intervenção com essa etnia deverá levar os serviços a criar nos próprios bairros e/ou acampamentos postos avançados de saúde/locais de referência preparados para informar, orientar, criando pontes de confiança que incentivem as populações a recorrer, ini-cialmente, aos Centros de Saúde que teriam a função de triagem primária.

Tendo como certo que as populações ciganas por tradição procuram mais a “pessoa” do que o “serviço”, enfermeiros comu-nitários, animadores psicossociais etc., poderão, pela sua prática nesses locais de referência, desenvolver um ambiente propício

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à intervenção. A Saúde como outros serviços não poderá intervir sem ter em conta as necessárias ligações às estruturas e serviços da comunidade, como sejam a Escola, as Autarquias, as Igrejas, as Instituições Particulares de Solidariedade Social e outras estrutu-ras que operam localmente.

Deverá realçar a necessidade de se criarem suportes de infor-mação sobre saúde (hábitos saudáveis, prevenção, locais de acesso a tratamentos etc.), bem como estabelecerem-se canais privilegiados de ligação com os órgãos de comunicação social. Nos ciganos mais carenciados, a rádio é o principal meio de comunicação e entreteni-mento, veículo privilegiado de transmissão de informação e conhe-cimento a ser tido em linha de conta. A nossa colaboração com a REAPN tornou vívida a importância da rádio Vallecas-Madrid que incorpora programação vocacionada para a etnia e produzida por ciganos.

É de capital importância que haja com regularidade acções de Educação para a Saúde adaptadas a esse tipo de população, ver-sando diversos temas que os inquietam enquanto unidade cultu-ral, utilizando para isso meios e materiais adaptados, para além de técnicos formados e sensibilizados para esse “sentir e agir” diferentes dos da maioria. No caso da toxicodependência, esse modelo permitiria uma intervenção clínica de maior qualidade. Articulando-se com as Equipas de Tratamento, e se possível, com a existência de mediadores ciganos com formação específica na área da Toxicodependência, criaria-se uma rede Cuidados de Atenção Primária-Equipas de Tratamento do IDT, IP, o que facilitaria o acesso ao tratamento, qualificando-o.

Nas Equipas de Tratamento do IDT, IP haveria necessidade de se realizar formação especializada, tendo em conta factores como cultura, história e tradição cigana a par com a organização social da família. Essa formação deveria, igualmente, fazer uma ade-quada sensibilização para as doenças sexualmente transmissíveis e

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hepatites, treinando aptidões clínicas específicas para o manejo de toxicodependentes ciganos.

Esses técnicos deveriam atender ciganos e não ciganos e estar em articulação permanente, quer com o Centro de Saúde, quer com o “posto avançado” no terreno. Estes deveriam, nas Equipas de Tratamento do IDT, IP à medida que a sua experiência se enri-quecesse, fazer trabalho de supervisão aos colegas, de modo a que, num futuro próximo, qualquer terapeuta pudesse trabalhar com qualidade (e sem os temores que provêm dos mitos), com jovens ciganos toxicodependentes.

Considerações finais

Após esta análise sobre a situação da comunidade cigana portuguesa, com enfoque na problemática da toxicodependência e dos transtornos mentais associados, com análise de factores endó-genos e exógenos que conduziram à actual situação, o futuro afi-gura-se como extremamente preocupante. Num país em profunda crise socioeconómica, em que os cortes estatais acontecem a um ritmo alucinante, navegando o país em águas muito conturbadas, os cortes orçamentais impostos ao Serviço Nacional de Saúde per-mitem-nos considerar que a comunidade cigana, a par com outras franjas desfavorecidas da população portuguesa, sofrerá muito nos próximos tempos.

Numa época em que se antevê o desaparecimento das Equipas de Tratamento, com canalização dos usuários para Centros de Saúde onde é, igualmente, atendida toda a restante população, sem profissionais devidamente preparados para as especificidades dessa minoria da população e de outras, onde o atendimento não poderá ter, necessariamente, a qualidade e o tempo que sempre tem nos serviços especializados, resultados nefastos são previsíveis.

O Relatório de Primavera 2012 do Observatório Português dos Sistemas de Saúde traça o retrato de um país com um Serviço

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Nacional de Saúde em sérias dificuldades, com problemas graves de sustentabilidade no médio prazo, com uma previsão de aumento de patologias ligadas ao contexto de crise económica, com referências aos problemas que os cortes impostos na comparticipação medi-camentosa do estado trará à população, levando-a a ter que optar entre a toma regular de medicação ou a alimentação.

De acordo com a lei de bases do Sistema Nacional de Saúde (SNS):

Capítulo III, do Serviço Nacional de Saúde, Base XXIV, Caraterísticas

O Serviço Nacional de Saúde caracteriza-se por:

a) Ser universal quanto à população abrangida;

b) Prestar integradamente cuidados globais ou garantir a sua prestação;

c) Ser tendencialmente gratuito para os utentes, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos;

d) Garantir a equidade no acesso dos utentes, com o objectivo de atenuar os efeitos das desigualdades eco-nómicas, geográficas e quaisquer outras no acesso aos cuidados;

e) Ter organização regionalizada e gestão descentrali-zada e participada (Lei n.º 48/90 de 24 de Agosto, Lei de bases da Saúde, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro).

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Essa lei da República Portuguesa é hoje uma ficção. Apoiando-se na suposta insustentabilidade do SNS, adivinha-se o desmantelamento do mesmo, incluindo o dos serviços como o IDT, IP, vocacionado para os problemas de álcool e drogas, nomeada-mente aos grandes grupos capitalistas, atribuições que antes per-tenciam ao estado conduzindo a uma inevitável proletarização dos trabalhadores da saúde. Tornam-se comuns as notícias de remu-nerações de enfermeiros a dois euros e meio a hora e de médicos a cinco euros a hora. As consequências da crescente privatização des-ses serviços levarão a uma elitização da prestação de cuidados de saúde, que passarão a orientar-se por preocupações economicistas, descurando princípios humanistas que deveriam estar no centro das atenções e que são a base da Lei de Bases do SNS. Os ricos no futuro terão acesso aos melhores cuidados de saúde, pagando-os, e aos pobres restará a procura de serviços públicos desvitalizados. Assim, abandonados ficarão os “filhos do vento”12.

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12 Nome pelo qual se autodesignam os ciganos.

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Psicologia Social e Ambiental em Unidades de Conservação do Amazonas

Marcelo Gustavo Aguilar Calegare Maria Inês Gasparetto Higuchi

Falar em Unidade de Conservação é falar sobre espaço e lugar, seja como arena de acontecimentos sociais ou como loca-

lidade geográfica. Esse repertório de identificação do lugar e das pessoas que nele estão inseridas manifesta processos sociocultu-rais distintos, que são compartilhados coletivamente. Dessa forma, cada lugar contém subjetividades designadas a ele e aos seus habi-tantes. A clássica dicotomia urbano-rural, por exemplo, mesmo que ainda em uso, já não contempla a necessária complexidade presente nessa divisão. No estado do Amazonas não é costume popular se referir à zona não urbana como sendo zona rural. Essa linguagem é mais utilizada por acadêmicos que, por meio de deter-minados vieses teóricos, apontam diferenças entre características e modo de sociabilidade da vida no contexto urbano, em contraposi-ção àquelas do contexto rural. Em decorrência dessa compreensão,

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que podemos afirmar ser prioritariamente de cunho sociológico, alguns discursos governamentais também utilizam essa lingua-gem. Por exemplo, nas políticas educacionais, apontam-se diretri-zes voltadas às escolas sediadas nas cidades, e outras direcionadas especificamente às escolas rurais. Já a referência simbólica popu-lar, utilizada para toda a região que compreende o espaço fora de Manaus e proximidades, é simplesmente o interior.

Além da capital Manaus, existem inúmeras cidades do inte-rior localizadas ao longo da calha de vários rios principais, como o Negro, o Solimões, o Japurá, o Madeira, o Purus e o Juruá. Os rios na Amazônia são marcos referenciais importantes que carac-terizam não apenas localidades, mas também identidades. À beira desses rios e de seus afluentes estão localizadas inúmeras comu-nidades, onde muitos amazonenses têm constituído suas famílias, seus modos e meios de vida pela agricultura e o extrativismo de recursos naturais. É nesse contexto socioespacial que essas pessoas constroem seus saberes a respeito da natureza e vivido segundo a intensidade dos laços de parentesco. Tal qual a denominação dada aos lugares, a denominação dessas comunidades depende do ponto de vista adotado. Nos discursos governamentais e acadêmi-cos, é comum encontrarmos a designação “comunidades rurais” ou “comunidades ribeirinhas”. A primeira pelo mesmo motivo já mencionado: do viés teórico adotado como referência. A segunda, conforme explana Lima (1999), é decorrente do programa introdu-zido pela igreja católica para organização política dos assentamen-tos rurais, cuja estratégia era a transmissão da noção de direitos comuns de residência e uso comunal dos recursos naturais, voltada às populações que viviam à beira dos rios.

Em particular no estado do Amazonas, esse movimento era conhecido como MEB (Movimento de Educação de Base), que desde os anos 1960 veio incentivando os moradores de localida-des isoladas a formarem comunidades. Entretanto, ao pisarmos em uma dessas comunidades rurais/ribeirinhas, não é comum os

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moradores atribuírem essa linguagem ao local onde vivem. Como em todo o interior, a população simplesmente utiliza o termo “comunidade” para designá-las.

O que apresentaremos neste capítulo é o trabalho que esta-mos desenvolvendo nessas comunidades no interior do Amazonas, que estão localizadas dentro de Unidades de Conservação (UCs), o que lhes confere um status diferenciado e exige algumas consi-derações antes de empreender nossas pesquisas. Iniciamos nossa discussão referente ao fato de estarmos lidando com territórios configurados como áreas protegidas, cuja gestão é de responsabi-lidade governamental. Esses territórios são habitados por grupos que possuem uma cultura e modo de vida particular, genericamente denominados de povos ou comunidades tradicionais, mas que se investigada a identidade autoatribuída, encontraremos designa-ções diferentes daquelas estabelecidas por enquadramentos acadê-micos ou políticos. Por lidarmos com esses segmentos sociais e em regiões amazônicas distantes de centros urbanos, nos deparamos com questionamentos científicos e metodológicos que deflagram dois aspectos centrais: as condições de produção do conhecimento na Amazônia são bastante particulares e necessitam ser seriamente observadas; a barreira disciplinar deve ser transposta para o estudo das questões socioambientais amazônicas, por causa do seu alto grau de complexidade. Por fim, explanaremos a respeito dos traba-lhos desenvolvidos nas UCs, cuja abordagem da Psicologia Social e Ambiental tem contribuído para trazer um viés mais completo e abrangente da vida social nessas comunidades.

Áreas protegidas e Unidade de Conservação

Para Diegues (2004), a ideia de criar áreas protegidas é man-ter intactos pedaços do mundo natural, puro e primitivo, sendo uma das principais estratégias mundiais adotadas para conservação da natureza. Esse conceito é de origem norte-americana do século

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XIX e se baseia na compreensão de vida selvagem ameaçada pela civilização urbano-industrial, destruidora da natureza – o que o autor chama de mito da natureza intocada. No entanto, Medeiros, Irving e Garay (2006) argumentam que no Brasil o modelo de áreas protegidas não foi simples cópia daquele norte-americano, pois o contexto brasileiro exigiu reconfigurações do modelo. Os autores apontam três fatores: a) a dimensão continental, pluricultural e megadiversa do país exigiu necessidades de adequação do modelo; b) o viés preservacionista e o conservacionista (com participação da sociedade civil)1 caminharam paralelos; c) a preservação/con-servação serviu também como instrumento geopolítico.

Fazendo uma retrospectiva, Medeiros (2006) explica que entre os séculos XVI e XIX não havia instrumentos jurídicos ou políticas estatais que denotassem qualquer organização para deli-mitação de áreas a serem protegidas. Durante esse período, houve algumas iniciativas isoladas, verticalizadas e que se dirigiam à prote-ção dos recursos renováveis de valor econômico. Segundo Medeiros et al. (2006), a delimitação de parcelas do território nacional para a conservação da natureza, pelo ou com o aval do Estado, foi um fenômeno típico do período republicano, iniciando mais especifi-camente a partir dos anos 1930. Com a Constituição de 1934 (Art. 10), a natureza ganhou status de patrimônio nacional e o poder público teve como tarefa e dever protegê-la. Com isso, a estrutura administrativa estatal incorporou um aparato jurídico e institucio-nal para gestão de áreas protegidas, que deixou como legado a lógica de categorização dessas áreas em função dos objetivos e finalidades

1 Segundo Diegues (2004), essas duas abordagens a respeito do mundo natural têm origem norte-americana no século XIX e influenciam o mundo até o pre-sente. O preservacionismo aponta para a reverência à natureza para sua apre-ciação estética e espiritual, devendo-se protegê-la contra o desenvolvimento moderno, industrial e urbano e, por isso, as áreas naturais devem estar isentas da presença humana. O conservacionismo aponta para a conservação dos re-cursos naturais pelo seu uso racional, adequado e criterioso, o que abre a possi-bilidade da presença humana nas áreas naturais.

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de sua criação. Como resultado desse momento histórico, alguns dispositivos legais foram instituídos, tal como o primeiro Código Florestal de 1934. Por meio deste, criou-se a modalidade dos Parques Nacionais, sendo o Parque Nacional de Itatiaia o primeiro a ser instituído, em 1937. Posteriormente, outras tipologias distin-tas de áreas protegidas também foram criadas, cada uma em um contexto e época diferentes, como veremos a seguir.

Atualmente, há no Brasil um modelo de proteção de áreas naturais segundo duas formas diferentes. A primeira se refere às Áreas de Preservação Permanente (APPs) e as Reservas Legais (RLs), ambas regidas segundo o Código Florestal recém-aprovado em 2012 (lei nº 12.727), que após fervorosas discussões de cunho científico e político sucedeu àquele de 1965 (e ao anterior de 1934). A segunda está ligada às UCs, que agregam áreas protegidas terri-torialmente demarcadas e com dinâmicas de uso e gestão bem defi-nidas, cuja regulamentação vem pela lei nº 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC, 2011). Em função de nos últimos anos ter crescido o apelo à conservação ambiental no Brasil, as Terras Indígenas (TI) e os territórios com remanescentes de comunidades dos quilombos – ambas modali-dades territoriais estabelecidas pela Constituição de 1988 (Art. 231 e Art. 68, respectivamente), também passaram a ser consideradas áreas de conservação da natureza. Isso é justificado da seguinte maneira: tais territórios são habitados por povos e comunidades tradicionais, que possuem mecanismos conservacionistas implíci-tos em suas práticas de uso dos recursos naturais. Apesar de ques-tionável, é comum encontrarmos nos discursos governamentais a equiparação e agregação desses territórios com as áreas protegidas.

Essas denominações e territorialidades encontram critérios e orientações no Snuc, o qual foi debatido por quase 10 anos antes de ser sancionado, em função das muitas controvérsias, jogo polí-tico e interesses de distintos grupos. Tal lei veio suprir a necessi-dade de um sistema de criação e gerenciamento mais integrado,

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que regulamentasse e agregasse distintas modalidades de UCs. Como definição, temos que uma UC é:

Espaço territorial e seus recursos, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequa-das de proteção (SNUC, 2011, p. 5).

Existem duas modalidades de UCs: as de proteção integral e as de uso sustentável. A primeira se propõe a preservar a natu-reza, permitindo apenas o uso indireto dos recursos naturais, mas sem autorizar a presença humana. São cinco modalidades: Estação Ecológica (Esec), Reserva Biológica (Rebio), Parque Nacional (Parna), Monumento Natural, Refúgio de Vida Silvestre. Já a segunda tem como objetivo compatibilizar a conservação da natu-reza com o uso sustentável de parcela dos recursos naturais, o que abre permissão do uso destes segundo condições particulares pelas populações residentes. São sete modalidades: Área de Proteção Ambiental (Apa), Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie), Floresta Nacional (Flona), Reserva Extrativista (Resex), Reserva de Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS)2 e Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Cada uma dessas doze modalidades foi criada em um contexto histórico diferente, resul-tado da mobilização de distintos atores sociais, mas agregadas pelo Snuc ao longo do intenso debate de sua formulação, aprovação e alterações (Medeiros, 2006).

2 Segundo Calegare (2012), as Resex foram criadas nos anos 1980, pelos movi-mentos sociais dos seringueiros do vale do rio Acre associados aos de outras re-giões amazônicas, com objetivo de garantir a defesa de suas áreas de reprodução socioeconômica. As RDSs, cuja primeira foi criada no estado do Amazonas nos anos 2000, têm como principal característica a cogestão da área por cientistas, administradores e população local, uso participativo e sustentado dos recursos naturais.

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Diegues (2004) relembra que no caso brasileiro, até meados dos anos 1980, as áreas protegidas criadas no Brasil tinham forte viés preservacionista e, por essa razão, as populações residentes foram completamente desconsideradas. Houve casos em que essas populações foram expulsas de seus territórios, outros em que houve muitos conflitos sociais e até de recusa de saída da área. Portanto, a criação de um sistema que abarcasse UCs de usos sustentável já foi um avanço significativo à delimitação das áreas de proteção ambiental.

As UCs podem ser municipais, estaduais ou federais. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) é o órgão responsável pelo gerenciamento das UCs fede-rais. No caso do estado do Amazonas, há o Sistema Estadual de Unidades de Conservação – Seuc (lei complementar nº 53/2007) e o órgão gestor é o Centro Estadual de Unidades de Conservação (Ceuc). Essa legislação estadual comporta algumas modalidades diferentes de UCs de uso sustentável, não presentes no Snuc: as Reservas Particulares de Desenvolvimento Sustentável (RPDS), os Rios Cênicos e a Estrada Parque. Já em relação às UCs municipais, no caso de Manaus, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas) é o órgão responsável pela gestão das áreas. Segundo dados da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (s/d), em 2012 havia no Amazonas 35 UCs federais (14,29% do território), 41 UCs estaduais (12,06%), 18 UCs municipais (1,19%) e 140 TIs (27,07%), o que mostra que 54,61% do estado estava constituído por áreas protegidas. Além disso, 97,7% do território possuía cobertura vegetal, o que o torna um dos estados mais conservados do país – e fora do eixo do “arco da destruição” da Amazônia. Outras áreas estão ainda em vias de homologação, o que denota claramente a política governamental de criação de áreas de proteção.

É no contexto de lugares denominados UCs que estamos desenvolvendo nossos trabalhos, procurando compreender os

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modos de viver e morar dessas pessoas. Como vimos, no universo das áreas protegidas há um forte debate a respeito da permanência de habitantes nessas localidades e, por outro lado, da função que eles exercem para a conservação ambiental. A discussão de quem são essas pessoas ainda permanece em pauta até hoje, apesar de avanços significativos tanto de cunho acadêmico quanto de reco-nhecimento governamental, como veremos a seguir.

Povos e comunidades tradicionais

Segundo Diegues (2004), Barreto Filho (2006) e Calegare (2010), o termo populações tradicionais passou a ser utilizado no Brasil em função de alguns fatores. O primeiro deles foi pelas dis-cussões no âmbito do conservacionismo internacional a partir dos anos 1960, quando a IUCN3 admitiu haver algumas exceções de ocu-pação de povos nativos4 em áreas protegidas, dividindo-as segundo a permissão ou não de atividades humanas. Com a emergência de conflitos sociais nessas áreas, a evolução dos debates, o advento da noção de desenvolvimento sustentável e a realização de even-tos sobre o tema, passou-se a reconhecer que tais populações eram parte do ecossistema e seus conhecimentos fundamentais a sua

3 Sigla em inglês da União Internacional para Conservação da Natureza.

4 Para Diegues (2004), a confusão dos termos populações/ sociedades/culturas/ comunidades tradicionais é decorrente também das diferentes vertentes teóri-cas utilizadas em Ciências Sociais, dentro da quais se encontram produções que enunciam que tais segmentos sociais se caracterizam como part society, folk society, peasant, ecossistem people. Além das distinções teóricas, há também as traduções dos termos para o português que geram confusões. Como esclarece Calegare (2010, p. 193), “organismos internacionais (Banco Mundial, IUCN etc.) utilizam a palavra indigenous, native e tribal people. A tradução para português de indigenous não corresponde exatamente a ‘indígena’, podendo significar também ‘nativo’. Em função dessa variação, o ‘[população] tradicional’ pode ser a tradução para indigenous people, dependendo do contexto em que é utiliza-do. Daí uma primeira confusão não apenas terminológica, mas conceitual. No Brasil, em geral, povos indígenas é utilizado com o significado de ‘etnia’. E ‘tra-dicional’ designa tanto os indígenas quanto os não indígenas”.

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conservação. Em outras palavras, os saberes tradicionais, expressos entre outras formas pelo uso/manejo de recursos naturais dessas populações, passaram a ser considerados como práticas históricas de adaptação que refletiam níveis de sustentabilidade ecológica. Desse modo, no caso brasileiro também houve a importação des-sas discussões, que trouxe tanto o viés preservacionista mais estrito quanto abordagens conservacionistas sobre a função das popula-ções residentes nas áreas de proteção.

O segundo fator do uso do termo no Brasil foi a tradição do pensamento social brasileiro, que aponta para a formação de culturas regionais distintas, que Ribeiro (1995) chama de culturas rústicas e as descreve como sendo a cultura crioula, caipira (no interior, mas no litoral é a caiçara), cabocla, sertaneja e sulista. Como resume Arruda (1999), essas culturais regionais seriam o resultado das diferentes formações do Brasil, por causa de cir-cunstâncias econômicas, geográficas, históricas, biofísicas, entre outras, que engendraram características genéricas e particulares às populações que as representam. Essa produção nacional, aliada àquelas discussões internacionais a respeito dos povos nativos, ser-viu de base para a defesa de Diegues (2004) do que seriam as cultu-ras e sociedades tradicionais no Brasil – cuja produção acadêmica e engajamento político estavam voltados à defesa da permanência de habitantes em UCs. Em sua obra, o autor recapitula abordagens em ciências sociais a respeito da influência mútua cultura/ambiente e do campesinato histórico, mostrando que tais teorias acentuam a diferenciação de certos grupos sociais segundo critérios distintos: a) se são autônomos ou não em relação à sociedade capitalista e qual o grau de dependência; b) se a cultura está mais ou menos atrelada ao modo de produção capitalista ou à pequena produção mercantil; c) do grau de relação com a natureza, que define sua ter-ritorialidade; d) como, além do espaço de reprodução econômica e das relações sociais, o território é também o lócus das representa-ções e do imaginário mitológico desses grupos.

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Desses critérios gerais, o autor defende que as culturas e sociedades tradicionais no Brasil possuem uma série de caracterís-ticas particulares que as definem enquanto tais, alertando para o fato de não haver um tipo ideal que exista em estado puro e que a cultura é dinâmica e está em constante transformação. Segundo Diegues e Arruda (2001), são exemplos de sociedades tradicionais: açorianos, babaçueiros, caboclos/ribeirinhos amazônicos, caiça-ras, caipiras/sitiantes, campeiros (pastoreio), jangadeiros, panta-neiros, pescadores artesanais, praieiros, quilombolas, sertanejos/vaqueiros, varjeiros e indígenas. Em suma, alguns desses segmen-tos sociais são aqueles que habitavam as áreas demarcadas há gera-ções e que deveriam ganhar visibilidade dentro das políticas de conservação in situ.

Com o avanço das discussões acadêmicas nacionais e inter-nacionais, da crescente compreensão da aliança entre conservação da biodiversidade com a sociodiversidade e do paulatino reconhe-cimento governamental, temos um terceiro fator para uso de popu-lações tradicionais: a apropriação do termo pelos segmentos sociais designados enquanto tais. Conforme ressaltam Lima e Pozzobon (2005) estes “incorporaram a marca ecológica às suas identidades políticas como estratégia para legitimar novas e antigas reivindi-cações sociais” (p. 45). Para Diegues e Arruda (2001), essa carac-terização tem legitimado identidades diferenciadas e servido para a reivindicação de direitos territoriais e culturais específicos. Na mesma linha, Little (2004) também argumenta a respeito do uso sociopolítico do termo por grupos defendendo seus interes-ses, especialmente aquele referente ao uso do território. Segundo aponta Calegare (2010), essa paulatina visibilidade das populações tradicionais fez que passassem a ser considerados não apenas aque-les grupos no contexto das UCs, mas também outros segmentos sociais que se enquadram nessa definição e que vinham reivindi-cando direitos há anos, como por exemplo, os atingidos por barra-gens, as quebradeiras de coco babaçu, os pescadores artesanais etc.

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O primeiro reconhecimento formal do governo brasileiro foi em 1992, com a criação do Conselho Nacional de Populações Tradicionais (CNPT) pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), mas não houve con-senso de quem eram essas populações (Barreto Filho, 2004). Nem mesmo com o Snuc se chegou a um acordo, sendo inclusive vetado o inciso XV do Art. 2, que trazia uma definição de quem eram as populações tradicionais (Little, 2004). No entanto, entre 2004 e 2006 houve crescente visibilidade, lutas políticas, alianças estra-tégicas e assunção dos espaços institucionais, que garantiu que grupos organizados – cujas lutas por direitos e reconhecimento vinham desde os anos 1980 – tivessem participação ativa nos tra-balhos abertos pelo governo brasileiro para a formulação de uma legislação específica a esses segmentos. Esse trabalho coletivo resultou na elaboração e publicação do Decreto nº 6040/07, que Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Por meio desta, chegou-se a uma definição formal de quem são os povos e comunidades tradi-cionais, descritos no Art. 3:

Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhe-cem como tais, que possuem formas próprias de organi-zação social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultu-ral, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmi-tidos pela tradição (para. 3).

O marco legal representou um avanço para uma definição clara no reconhecimento desses grupos, apontando para uma explí-cita política pública que garantiria, em tese, condições de inclu-são social, exercício da cidadania e equidade social. Como aponta Almeida (2008) para o caso amazônico, há em todo esse território inúmeras lutas de grupos que estão buscando reconhecimento,

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organizando-se em movimentos sociais (formalmente organiza-dos ou não) para reivindicação de direitos sociais e ao território. Segundo o autor, isso tem configurado as muitas identidades cole-tivas na Amazônia. No entanto, ainda não existem avaliações da efetividade da aplicação dessa lei.

Retomando a existência de povos e comunidades tradicio-nais no contexto das UCs, Vianna (2008) descreve que inicialmente estes eram completamente desconsiderados, sendo invisíveis nes-ses territórios. Posteriormente, foram considerados como ilegais ou invasores para, finalmente, conquistarem o status de guardiões da floresta, responsáveis pela manutenção da biodiversidade por meio de suas práticas tradicionais de baixo impacto ambiental. Essa transformação veio, em parte pela evolução da ideia de Prestação de Serviços Ambientais (PSA), pela qual se aponta que os habitan-tes dessas áreas devem ser remunerados pelas funções que exercem na conservação dos recursos naturais. Essa foi uma das justificas que serviu de base para a criação do Programa Bolsa Floresta no estado do Amazonas, que por sua vez, se tornou modelo para o pro-grama federal Bolsa Verde.

Considerando esse contexto socioambiental, fica visível que há questões bastante complexas e que não se restringem a uma ou outra área do conhecimento. No plano das UCs, já existe a defesa da etnoconservação (Diegues, 2000), que consiste na aliança de sabe-res de ciências sociais e naturais aos conhecimentos tradicionais, tendo em vista a conservação da natureza. Em relação aos povos e comunidades tradicionais, vimos que tal rótulo vem abarcar inú-meros grupos da sociedade, que dependendo de sua história, con-texto geográfico e de lutas políticas, se configuram de um modo completamente distinto uns dos outros. Os temas relativos às UCs e aos povos e comunidades tradicionais não necessariamente são confluentes – havendo inclusive marcos legais diferentes para cada um deles. Na prática, isso se reflete em sérias dificuldades na ges-tão das UCs, divergência de interesses (intragovernamentais, de

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movimentos sociais etc.), conflitos sociais, controle excessivo no uso dos recursos naturais, falta de acessos a direitos sociais, sobre-posição de áreas demarcadas, entre muitos outros.

O método em questão

No caso amazônico, estamos lidando com um cenário de alta bio e sociodiversidade, presentes em uma área continental, que exige que enfrentemos alguns desafios na condução de pes-quisas: a) dispor de condições logísticas apropriadas para percorrer longas distâncias e enfrentar as intempéries ambientais; b) tra-balhar com equipes interdisciplinares, uma vez que o foco são as questões socioambientais que abarcam uma multiplicidade disci-plinar de pontos de vista. Adiante exploraremos em detalhes essas colocações.

Sabemos que o método, em ciência, pode ser entendido como o caminho para se chegar a um objetivo. No entanto, a impo-nência da Amazônia faz com que tenhamos que ponderar que esse percurso científico não seja apenas de ordem interna, isto é, das teorias e procedimentos técnico-práticos. Existe uma série de externalidades presentes em todos os estudos, que raramente são consideradas nos aspectos metodológicos e que influenciam dire-tamente nas condições de produção do conhecimento.

A primeira delas é a dimensão continental da Amazônia, cujo bioma ocupa praticamente 60% do território nacional5 e que

5 Santos (2012) explica que há duas Amazônias: o território amazônico e a bacia amazônica. O território amazônico é composto pelos seguintes países, com as respectivas porcentagens de contribuição da área à Amazônia: Bolívia (10,9%), Brasil (65,7%), Colômbia (5,3%), Equador (1,6%), Guiana (0,1%), Peru (12,6%), Venezuela (0,7%), Suriname (1,9%) e Guiana Francesa (1,2%). No Brasil, isso re-presenta quase 60% do território nacional e recebe o nome de Amazônia Legal, que representa todos os estados da região norte mais Mato Grosso e Maranhão. Já a bacia amazônica é composta pelo eixo Amazonas-Solimões-Ucayali, com os afluentes do lado direito e esquerdo. A extensão desse eixo é de 6.727km e a descarga é de 176.000 m3/segundo, o que o torna o mais volumoso do mundo.

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faz com que tenhamos que percorrer longas distâncias para chegar-mos a algumas localidades. Em particular no estado do Amazonas, não há praticamente estradas ou rodovias construídas, sendo os rios os únicos percursos possíveis por onde transita a população da região. Isso faz com que o veículo principal de viagens seja o barco, que demora dias para alcançar certos destinos relativamente próximos numa medida linear. Em nossas experiências, já parti-cipamos de trabalhos em que levamos oito dias para chegar até o local desejado. Isso implica em ponderar três aspectos-chave: a) ter condições logísticas disponíveis para as equipes de pesquisa, como barco e voadeiras (pequena embarcação de metal com motor de popa); b) dispor de alto orçamento para gastar com aluguel de veículos náuticos, combustível e piloto com saber de navegação local, além de alimentação, hospedagem, equipamentos, remédios etc.; c) ter tempo para estar em campo, sem meio de comunicação externa, e desobrigando-se de afazeres pessoais e profissionais no local de residência. A soma desses fatores faz com que pesquisas na Amazônia sejam extremamente onerosas, o que nem sempre é compreendido pelas agências financiadoras e, consequentemente, não haja verbas suficientes para sua concretização.

A segunda externalidade se refere às intempéries ambien-tais desse bioma. Na Amazônia a sazonalidade das estações varia apenas entre verão (seca) e inverno (chuvas). Além disso, o ciclo das águas varia conforme a região, obedecendo à seguinte sequên-cia: enchente, cheia, vazante e seca. Essas variações trazem difi-culdades de locomoção, pois o nível das águas pode estar muito baixo ou muito alto e, com isso, simplesmente não se chega em determinadas localidades, que ficam isoladas por um bom período do ano. Também trazem dificuldades seja pelo enfrentamento do

Ao se considerar o rio Marañon como o formador do rio Amazonas (aquele do lado peruano, cujo nome muda ao entrar no território brasileiro), então é con-siderado o rio mais extenso do mundo, superando o rio Nilo.

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calor forte ou das fortes chuvas, o que fragiliza a saúde e disposição dos pesquisadores. A sazonalidade determina também a disponi-bilidade de alimentos nas comunidades, pois há períodos em que pode haver fartura ou escassez de frutas, peixes, farinha etc. Por sua vez, esses ciclos temporais e climáticos trazem influência na inci-dência de insetos e outros animais, o que em determinadas regiões torna o trabalho extremamente sofrido, desmotivador e com riscos à saúde e à vida. Tais condições fazem com que se escolham cuida-dosamente os períodos de viagens a campo, o número de dias de permanência, a aquisição de materiais de apoio e a quantidade e tipo de alimentação e água a serem levados.

Essas externalidades do caminho a ser percorrido, que causam fascínio e temor aos pesquisadores que se aventuram na Amazônia, exigem uma motivação e modo de agir diferentes do tra-dicional fazer científico. O pesquisador que trabalha nessas regiões do país deve levar em conta todas essas condições de produção do conhecimento, para que seja possível fazer ciência. Caso tais aspec-tos não sejam levados em conta no delineamento das pesquisas, então a atividade científica simplesmente não será executada.

Além desses aspectos do ambiente físico, há também de se considerar aqueles do ambiente social, pois o pesquisador se depa-rará com códigos e culturas particulares dos povos e comunidades tradicionais que habitam as várias regiões amazônicas. Além das características inerentes a cada grupo em si, há também peculia-ridades psicossociais que ocorrem em função dos rios, da área e do estado onde vivem essas pessoas. Podemos considerar que isso tudo é o que constitui aspectos textuais da realidade social ama-zônica. A respeito daqueles contextuais, Calegare (2012) nos lem-bra de que há uma série de elementos conjunturais que permeiam transversalmente a vida dos amazônidas, como por exemplo, as políticas desenvolvimentistas e sociais governamentais, as ideias de desenvolvimento sustentável, as mudanças climáticas e o con-servacionismo. Texto e contexto formam um intrincado enredado,

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que tornam as comunidades ribeirinhas amazônicas um complexo campo de estudos interdisciplinares.

Esse cenário socioambiental pleno de particularidades faz com que tenhamos que reconsiderar as internalidades científicas em três aspectos: a) reconhecer a limitação de cada disciplina e partir para a interdisciplinaridade (e/ou transdisciplinaridade); b) considerar outras formas de conhecimentos e estabelecer o diálogo de saberes; c) ponderar procedimentos que aliem métodos quan-titativos e qualitativos para alcançar uma visão mais holística do objeto de estudos. Expliquemos tais afirmações.

Uma única disciplina não dá conta de compreender a complexidade da realidade amazônica, pois são inúmeros fatores envolvidos na composição desse cenário: geofísicos, biológicos, históricos, psicossociais etc. Como ressaltam Calegare e Silva Jr. (2012), as ciências naturais possuem arcabouço teórico e recursos metodológicos para estudar uma parcela desse ambiente. As ciên-cias humanas e sociais, por outro lado, dispõem de outros saberes que torna possível abordá-lo por outros ângulos. Se analisarmos as produções em Psicologia e Psicologia Social, veremos que estas são ainda incipientes quando relacionadas aos temas amazônicos. Portanto, estamos diante de uma limitação de nossa área de origem: não dispomos de referenciais teóricos e metodológicos adequados à realidade amazônica, o que nos está conduzindo a adaptações e criação de novos pontos de vista e práticas mais apropriados a esse universo. Nossa base é oriunda da Psicologia Social e Ambiental, de onde tiramos conceitos, teorias e práticas que nos inspiram a percorrer e elaborar novos caminhos. Sem desconsiderar concei-tos originados na antropologia e sociologia, que muito fortalecem nossa atuação.

Diante disso, nos vemos frente à necessidade de trabalhar com equipes interdisciplinares por dois motivos: o primeiro, pela própria limitação de cada disciplina científica em estudar um

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objeto tão completo; o segundo, pelas externalidades expostas anteriormente, que fazem com que os pesquisadores se unam para conseguir verba e organizarem expedições científicas. Calegare e Silva Jr. (2012) lembram que a interdisciplinaridade pode ser com-preendida segundo três pontos de vista: como nova inteligibilidade, como interseção metodológica ou como diálogo entre saberes. Isso significa que o trabalho interdisciplinar não envolve apenas a par-ticipação de profissionais de distintas áreas numa mesma equipe e local, mas a circulação de conhecimentos entre eles para que, a par-tir disso, se articulem objetivos, conceitos e maneiras de proceder nas pesquisas. Pelo menos no estado do Amazonas muitas inves-tigações já estão sendo empreendidas dessa maneira, apesar das muitas dificuldades inerentes ao genuíno trabalho interdisciplinar.

Se por um lado há essa interação entre cientistas, por outro há a troca de saberes entre eles e os povos e comunidades tradicio-nais, que Diegues (2004) e Leff (2012) chamam de diálogo de sabe-res. Por meio deste, consideram-se os conhecimentos tradicionais6 como uma ciência tão válida quanto aquela científica. Isso envolve questionar tanto a supremacia quanto a neutralidade, objetividade e universalidade científica, dando voz aos mitos, superstições, sabe-res locais e senso comum dos povos amazônicos. Em termos prá-ticos, isso significa que os participantes de uma pesquisa não são meros informantes, mas interlocutores na construção do conheci-mento. Seu envolvimento no delineamento das atividades cientí-ficas é fundamental, sendo importante respeitar sua organização social, suas práticas cotidianas e seus saberes propriamente ditos.

6 “O conjunto de saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural e sobrenatu-ral, transmitido oralmente, de geração em geração. Para muitas dessas socieda-des, sobretudo para as indígenas, há uma interligação orgânica entre o mundo natural, o sobrenatural e a organização social. Para tais comunidades, não há uma classificação dualista, uma linha divisória rígida entre o ‘natural’ e o ‘social’, mas sim um continuum entre ambos” (Diegues & Arruda, 2001, p. 31).

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Recapitulando, vimos que há uma série de externalida-des que influenciam diretamente na produção do conhecimento. Discutimos também que a complexidade das questões socio-ambientais amazônicas explicita a incompletude científica e disciplinar, sendo necessário não apenas buscar a inter e/ou trans-disciplinaridade, mas o diálogo de saberes para conjugar conheci-mentos científicos e tradicionais. Por fim, resta-nos apontar que para apreender a realidade amazônica de maneira mais abrangente possível, em nossa prática profissional estamos lançando mão da aliança de diversos métodos, o que Günther, Elali e Pinheiro (2011) chamam de abordagem multimétodos e Minayo (2005) de triangu-lação de métodos. Por meio dessa interação, busca-se captar distin-tos aspectos de um objeto de estudo e, desse modo, ter uma visão mais completa dos fenômenos investigados.

A eleição das técnicas e instrumentos de pesquisa depen-derá dos objetivos de cada projeto, do tempo disponível em campo, das condições logísticas, do local visitado e das condições de apli-cabilidade nas comunidades ribeirinhas. De modo geral, temos tido em nosso repertório a observação participante com registros escrito e fotográfico, entrevistas espontâneas e semiestruturadas, questionários, reuniões comunitárias e outras técnicas de abor-dagem grupal, como mapas cognitivos com elaboração de croqui socioespacial e de diagnóstico participativo com interlocutores específicos.

Levantamentos socioambientais

Nem sempre as UCs são homologadas com base em conhe-cimento a respeito das condições de flora, fauna e população resi-dente da área demarcada. Em especial as UCs de uso sustentável que estão sendo criadas a partir da demanda dos habitantes de uma região, que solicitam aos órgãos competentes (no caso do Amazonas, ICMBio ou Ceuc) a demarcação do território. De modo

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geral, isso acontece como uma estratégia de proteção aos recursos naturais para uso dos moradores, impedindo a entrada de invaso-res. Em algumas localidades a entrada massiva de mineradores, madeireiros e pescadores industriais trouxe consigo práticas dele-térias da floresta e a gradual diminuição de possibilidades de sus-tento das populações locais. Por isso, a criação de uma UC de uso sustentável veio como uma estratégia não apenas para conservação da natureza, mas para garantir o uso dos recursos pelas famílias dessas áreas. No estado do Amazonas, nossa experiência nos mos-tra que em muitos casos os gestores de órgãos públicos estimula-ram a mobilização dos moradores para a criação da UC. Diante das condições e benefícios apresentados, muitos acabaram decidindo por criar uma modalidade de UC de uso sustentável, escolhendo entre a gerência federal ou estadual.

Os conhecimentos a respeito da bio e sociodiversidade de uma UC, quando não disponíveis a priori de sua homologação, requerem um levantamento diagnóstico específico desses elemen-tos, os quais servirão para a realização de um Plano de Manejo, que segundo o Snuc (2011), no seu Art. 2 é definido como:

Documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessá-rias à gestão da unidade (p. 6).

Esse documento técnico é elaborado com base em pesqui-sas de diagnóstico da área, onde se levantam dados a respeito de uma série de itens que servirão para delimitar as zonas de uso dos recursos naturais, as regras de convivência e os planos de uso na UC. Vejamos um exemplo, para deixar mais claro todo esse pro-cesso. No caso da Resex do Baixo Juruá, a mobilização que lhe deu origem iniciou em 1997, fruto da interação da população local e

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da igreja católica para preservação dos lagos. A homologação da área aconteceu apenas pelo decreto de 1/8/2001, com publicação no Diário Oficial da União. Seu plano de manejo foi publicado ape-nas oito anos depois (MMA, 2009) e é composto por: diagnóstico da fauna, dos recursos pesqueiros, dos recursos florestais, do meio ambiente físico, do uso do solo, caracterização socioeconômica, plano de utilização e programas, zoneamento, diagnóstico rural participativo, projeto especial de ecoturismo e cenários. Cada um desses itens foi levantado por equipes diferentes e, após a junção de todas as informações, formulou-se o documento final publicado pelo governo, que contém dados gerais de caracterização e gestão da UC, do contexto regional e dos programas de sustentabilidade ambiental e socioeconômica.

A caracterização socioeconômica descrita nesse plano de manejo teve como base o levantamento socioambiental realizado pela equipe do Laboratório de Psicologia e Educação Ambiental (Lapsea) do Inpa, publicado como relatório técnico (Higuchi, Ribeiro & Theodorovitz, 2006). Outros levantamentos socioam-bientais também foram realizados em outras UCs, a saber: Resex Auati-Paraná (Higuchi et al., 2008a), Resex do Lago do Capanã Grande (Higuchi et al., 2008b), Flona de Pau-Rosa (Higuchi et al., 2009), Resex do rio Unini (Higuchi & Theodorovitz, 2010) e Resex do rio Jutaí (Higuchi et al., 2011). Todas estas estão localizadas no estado do Amazonas, mas são UCs federais7.

Esses levantamentos socioambientais foram realizados a pedido dos gestores das áreas, que necessitavam de pesquisadores especializados para realizar tal tarefa. Muitos gestores são jovens concursados, em geral com formação em ciências naturais e vindos

7 A Resex Auati-Paraná foi homologada em 7/8/2001, a Flona de Pau-Rosa tam-bém em 7/8/2001, a Resex do rio Jutaí em 16/7/2002, a Resex do Lago do Capanã Grande em 3/6/2004 e a Resex do rio Unini em 21/6/2006. Apenas a Resex do rio Jutaí teve o plano de manejo publicado oficialmente em abril de 2011, mas tornado público em outubro de 2012.

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de outras regiões do país, que necessitam estabelecer parcerias com instituições de pesquisa ou consultorias para fazer os diagnósticos de suas áreas. Em nosso caso, as atividades que empreendemos tive-ram como finalidade não apenas subsidiar a elaboração do plano de manejo de cada UC, mas desenvolver e ampliar nosso campo de atuação em comunidades ribeirinhas amazônicas. Nossa intenção foi criar estratégias de pesquisa para fornecer dados qualificados, que contivessem uma abordagem bastante abrangente e completa a respeito da vida social das comunidades dessas áreas.

Dentro daquilo que nos propomos, levantamos informa-ções a respeito do ambiente físico e social, considerando que ambos fazem parte de uma mesma realidade e são importantes no enten-dimento da relação pessoa-ambiente. Inclui-se nesse diagnóstico indicadores ecológicos, socioculturais e político-administrativos nas comunidades de cada UC. Podemos exemplificar a partir dos seguintes aspectos: localização e mapeamento da comunidade, dados demográficos de uma parcela amostral dos residentes, con-dições de infraestrutura das casas e da comunidade, uso de energia, meios de comunicação, saneamento básico (água, esgoto sanitário e destino do lixo), transporte, acesso a bens e serviços sociais (pre-vidência e assistência social, pagamento por serviços ambientais), condições da oferta de educação e atendimento à saúde, práticas produtivas (agricultura, pesca, extrativismo, coleta, manufatura, criação de animais, manejo, serviços, comércio), renda, uso de pro-dutos madeireiros e não madeireiros, lazer, nutrição, organização sociopolítica, atividades comunitárias, dificuldades e resolução de conflitos, expectativas de mudança ou permanência na comuni-dade, significado atribuído ao lugar, sentimento de pertencimento e apropriação do lugar, posse e propriedade da terra, satisfação e insatisfação (apego ao lugar), percepção ambiental sobre a floresta amazônica, entendimento sobre áreas verdes, conhecimento de leis e normas ambientais, percepção sobre o uso sustentável da floresta

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e manejo florestal, percepção das mudanças climáticas e uso social dos recursos naturais.

Um dos diferenciais de nossa proposta de levantamento socioambiental é trazer contribuições de algumas áreas das ciên-cias humanas e sociais, para revelar o modo de vida dos povos e comunidades tradicionais das UCs, destacando nossa compreen-são a respeito da interação pessoa-ambiente. Ao investigarmos a percepção ambiental, entendida como a forma como as pessoas vivenciam suas relações com o ambiente em todos os aspectos em seu entorno, isto é, geofísicos, psicossociais, econômicos, cultu-rais etc. (Kuhnen & Higuchi, 2011), estamos buscando compreen-der como elas pensam e agem no e com esse ambiente. Isso nos dá subsídios para entender as cognições e afetos em relação ao lugar em que vivem, que orientam de forma direta e indireta as práticas cotidianas e os comportamento de cuidado (ou não) com a floresta. Por outro lado, também temos tornado explícito a dificuldade de acesso a bens e a serviços sociais, as estratégias de reconhecimento e as formas de organização dos moradores dessas comunidades, o que tem revelado uma dinâmica comunitária de luta por direitos e melhoria da qualidade de vida.

Todos esses aspectos integrados têm nos feito refletir sobre a constituição das identidades dessas pessoas, que envolvem nuan-ces ambientais, culturais, psicossociais e políticas, que não são facilmente apreendidas pelas teorias de identidade de um modo holístico. Isso tem nos levado ao questionamento das teorias vigen-tes, pois cada uma delas parece dar acento maior a uma dessas nuances da realidade vivida pelos povos e comunidades tradicio-nais amazônicos, considerando esse aspecto preponderante como o fator essencial da constituição identitária. No entanto, temos visto que é preciso debater com mais profundidade as teorias de identidade, ponderando-se o contexto no qual surgiram e se, por conta disso, são adequadas aos casos amazônicos.

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Do ponto de vista prático, essa nossa atuação não aconteceu isolada, como se os aspectos da vida social não tivessem ligação com aqueles ambientais. Muito pelo contrário, todas nossas pes-quisas foram realizadas em parceria com o Laboratório de Manejo Florestal (LMF) do Inpa, cujas equipes eram compostas por pro-fissionais de distintas áreas para realizar o inventário florestal. Do mesmo modo, os pesquisadores do LMF também tinham seus inte-resses científicos particulares nessas UCs: conhecer as característi-cas da floresta amazônica em cada região do Amazonas e ter dados a respeitos da dinâmica do carbono. Essa aliança entre inventário florestal e levantamento socioambiental tem apontado que não é mais plausível considerar apenas um ou outro aspecto da realidade de uma UC, isto é, as características da floresta desconectada das particularidades do modo de vida daqueles que nela habitam. Esse trabalho integrado tem mostrado que a floresta é importante para seus habitantes, ao mesmo tempo que seus habitantes são impor-tantes para a floresta. Portanto, só faz sentido realizar pesquisas científicas que repercutam não apenas para a ampliação de conhe-cimentos, mas especialmente que reflitam em algum tipo de bene-fício e melhoria para aqueles que vivem naqueles ambientes.

O desenvolvimento da atuação conjunta entre pesquisado-res de diferentes áreas tem gerado alguns frutos para além das UCs estudadas. Atualmente, os trabalhos de inventário florestal realiza-dos pelo LMF contam com a presença de uma equipe socioambien-tal, por entenderem que a Amazônia tem múltiplas dimensões e é fundamental dispor de conhecimentos vindos das ciências huma-nas e sociais. Essa integração científica tem se tornado realidade também em outros âmbitos. No estado do Amapá, por exemplo, o diagnóstico socioambiental para elaboração do plano de manejo da Floresta Estadual (Flota-AP) está sendo realizado por instituições de pesquisa e gestão política entre 2011 e 2012, com assessoria de pesquisadores do Lapsea. A importância de um bom levantamento será trazer benefícios às comunidades dessa área, no momento

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em que forem efetivados o plano de manejo florestal e a venda de créditos de carbono pelo Redd+8. No caso do inventário florestal nacional, que está em vias de ser realizado em todo país por meio do MMA/Serviço Florestal Brasileiro (SFB), este também conta com o levantamento socioambiental, cujo delineamento técnico teve a participação do Lapsea.

Como prosseguimento de nossas atividades em UCs, esta-mos atualmente desenvolvendo projeto em parceria com outro grupo de pesquisadores de tecnologia da madeira, o Laboratório de Engenharia e Artefatos de Madeira (Leam) do Inpa e Associação Agroextrativista do Auati-Paraná (Aapa)9, os quais propuseram alternativas tecnológicas de uso sustentável da madeira caída. Com essa atividade interventiva, nos propomos a desenvolver um guia de monitoramento e avaliação psicossocial e sociocultural dessa iniciativa entre os moradores. Para tanto, foram elaborados indi-cadores socioambientais adequados à realidade dos povos e comu-nidades tradicionais de uma UC, para mensurar as transformações psicossociais geradas a partir dessa proposta pioneira de uso desse recurso madeireiro, contemplando dimensões sociais, econômicas, ecológicas, comunitárias e capacitação e organização do trabalho. Essa iniciativa conjunta está sendo acompanhada com expectativa

8 Redd plus é a sigla para uma das estratégias de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que significa Redução de Emissões pelo Desmatamento e Degradação Florestal, em países em desenvolvimento, incluindo o papel da conservação, do manejo florestal sustentável e do aumento dos estoques de car-bono. Isso inclui uma contrapartida financeira às comunidades locais onde os planos de Redd+ forem firmados, pelo importante serviço ambiental prestado à conservação da natureza.

9 Nosso projeto faz parte do programa DCR e tem financiamento Fapeam/CNPq, intitulado “Transformações no modo de vida dos habitantes da Resex Auati-Paraná a partir da introdução de uma estratégia de desenvolvimento sustentá-vel”. O projeto da Aapa, com verba Proderam, intitula-se “Aproveitamento da madeira de árvores caídas para geração de renda e melhoria da qualidade de vida das comunidades tradicionais na Resex Auati-Paraná, Amazonas – Brasil”. Este possui apoio e parceria do LMF e Leam, sob a chancela do projeto INCT/Madeiras da Amazônia, financiado pelo CNPq, Fapeam, Finep e Edutecam.

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pelo ICMBio, pois poderá servir de unidade demonstrativa para replicação em muitas outras UCs, garantindo geração de renda às famílias e sustentabilidade ambiental.

Considerações finais

Nossas atividades de pesquisa nas comunidades do interior do Amazonas, mais especificamente aquelas localizadas em UCs, não se restringem a mera ampliação de conhecimentos científicos a respeito de determinados segmentos sociais. Estamos tratando de produzir saberes em parceria com todos os agentes sociais envol-vidos, sejam esses cientistas de outras áreas, gestores públicos ou habitantes locais, norteados pelo compromisso de trazer benefícios e melhorias aos moradores dessas áreas, direta ou indiretamente e em curto, médio ou longo prazo.

A discussão a respeito da conservação da natureza envol-vendo diretamente a população residente de áreas protegidas tem avançado nos últimos anos. No entanto, ainda é preciso desenvol-ver muitas outras produções acadêmicas e estratégias que integrem proteção da natureza e atendimento aos anseios e necessidades dos habitantes locais. Nesse sentido, a Psicologia Social e Ambiental tem mostrado sua contribuição nos trabalhos interdisciplinares, por possuir recursos teórico-metodológicos para realizar boas lei-turas da realidade, intervenções apropriadas e delineamento de diretrizes integradoras de ação.

Agradecimento

Agradecemos à Fapeam/CNPq pela concessão de bolsa de estudos do programa de desenvolvimento científico regional (DCR) ao primeiro autor.

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Massacre no acampamento Terra Prometida – Felisburgo/

MG: o papel da Psicologia frente ao trauma psicossocial

Fabiana de Andrade Campos Bader Burihan Sawaia

O massacre contra trabalhadores rurais sem terra, ocorrido no ano de 2004, no acampamento Terra Prometida, locali-

zado no município de Felisburgo, encerra mais uma cena de terror e violência contra os povos do campo no Brasil. A impunidade, o não atendimento às vítimas, o esquecimento e a banalização dessas ocorrências têm se caracterizado como práticas comuns na reali-dade brasileira. A transformação desse cenário e das consequên-cias por ele geradas traz implicações para a Psicologia enquanto ciência e profissão e nos coloca a problematizar seu papel frente aos processos de transformação social. Para refletir sobre isso, pre-tendemos utilizar contribuições de autores que compartilham de uma visão sócio-histórica, a fim de compreender a composição dos afetos que configuram o trauma psicossocial.

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Desse modo, o objetivo deste capítulo será apresentar uma breve revisão da literatura na área para familiarizar o leitor sobre os estudos e intervenções psicossociais em casos de violência extrema e sobre a política de produção de afetos; posteriormente, iremos apresentar a intervenção psicossocial realizada; o contexto do mas-sacre, a partir da perspectiva de reconstrução da memória histó-rica; a metodologia adotada, baseada nos pressupostos da pesquisa participante, da psicologia sócio-histórica e da libertação; a aná-lise de sentido e significado baseada na teoria vigotskiana para em seguida tecer as considerações finais.

O papel da Psicologia em casos de violência extremada

Os estudos relacionados às formas de violência extre-mada, tais como guerras, massacres, torturas etc., tratam tanto da dimensão psicológica – afetos, mecanismos de defesa, sofrimento e adoecimento mental – quanto da dimensão social: o cenário his-tórico, terrorismo de Estado e suas interferências na vida social, a conformação da memória histórica etc. Ambas as dimensões estão intrinsicamente relacionadas, de forma que não podem ser com-preendidas separadamente, portanto iremos tratar de fenômenos psicossociais.

Ao analisar os efeitos da violência sobre a saúde mental de povos da América Latina e Caribe, Pederson (2006, p. 1192) chama atenção para a necessidade de se pensar o contexto regional em que os acontecimentos são processados e suas consequências, ou seja, “fazer as vinculações entre eles e as estruturas sociais e econômi-cas mais abrangentes em que se originam”. Segundo ele, é impor-tante avaliar a efetividade das intervenções psicossociais existentes para que se possa pensar, também, na criação de novas formas. Ele nos convida a valorizar as estratégias recuperadoras previamente

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existentes na comunidade, assim como estimular para que outras sejam despertadas.

[...] formas espontâneas de melhorar o apoio social (e.g. festivais comunitários, cerimônias religiosas e públicas, reuniões sociais em torno de acontecimentos importan-tes etc.), grupos de autoapoio (i.e., organizações comu-nitárias de viúvas e mulheres) e também sistemas de crença que oferecem a base para a criação de significado do trauma vivido. Preservar e fortalecer essas formas cul-turais de apoio para curar e enfrentar o problema devem constituir a prioridade das intervenções psicossociais (Pedersen, p. 1196, 2006).

Segundo Pedersen (2006, p. 1190), atualmente, a nomencla-tura Transtorno de Estresse Pós-Traumático é utilizada por espe-cialistas que argumentam a universalidade de algumas reações, enquanto outros sugerem que os “acontecimentos traumáticos têm significados e efeitos muito mais amplos, variados e complexos do que os reconhecidos pela nosologia ou pela prática psiquiátrica convencional”, daí a importância de estudos culturais mais pro-fundos. Porém, o autor considera que houve uma vulgarização do conceito trauma, o que dificulta a objetividade de seu estudo. Ele sugere cautela para analisá-lo. Sua argumentação vai de encontro à determinação sociopolítica dos acontecimentos. Ele alerta para o perigo da medicalização dos fenômenos sociais, pois de acordo com ele, as omissões das origens sociais da dor e do sofrimento levam à ampliação das desigualdades. Pedersen (2006) considera relevante o atendimento psicológico às vítimas, porém como maior necessidade a intervenção no contexto social que gera a repetição dos círculos de violência e impunidade.

Martín-Baró (1988) utiliza o termo trauma psicossocial para tratar das afecções da guerra prolongada na vida da popu-lação em El Salvador. Ele sugere o termo para enfatizar o caráter

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essencialmente dialético dessa ferida que depende da experiência particular do indivíduo, da sua participação específica nesse acon-tecimento e de seu pertencimento a um grupo ou classe social. Para ele, ao falar de trauma psicossocial devem ser considerados dois aspectos:

(a) que a ferida que afeta as pessoas tem sido produ-zida socialmente, isto é, suas raízes não se encontram no indivíduo, mas na própria sociedade, e (b) que a sua natureza é alimentada e mantida na relação entre o indi-víduo e a sociedade, através de diversas mediações ins-titucionais, grupais e inclusive individuais. O que tem conseqüências óbvias e importantes na hora de deter-minar o que se deve fazer para superar estes traumas (Martín-Baró, 2000, p. 78).

Portanto, a práxis psicossocial não deve ser reduzida ao tratamento psicoterápico sob o risco de tornar-se mero paliativo apaziguador das relações desumanizantes. Deve, ao contrário, ser ampliada na sua dimensão social, política, numa perspectiva trans-formadora das próprias relações violentas que produzem efeitos traumáticos.

Dessa maneira, ele aponta os caminhos de um trabalho ini-cial que conta com um intenso projeto de despolarização, desideo-logização e desmilitarização. O que, tomado para o nosso trabalho, significa a ampliação da consciência política e a reconstrução da memória histórica. Nas palavras do autor: “deve-se, finalmente, esforçar-se para educar pela razão e não pela força, de maneira que a convivência se funde na complementariedade mútua para resol-ver os problemas e não manter a violência como única alternativa” (Martín-Baró, 1988, p. 81).

Dentro desse debate, uma fonte inspiradora é o trabalho da Equipe Clínico-Grupal do Grupo Tortura Nunca Mais. Eles pro-duzem uma clínica social ampliada, que não restringe o trabalho

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psicológico ao nível do psiquismo individual, ou seja, a intervenção psicossocial leva em consideração a determinação política e social da produção do sofrimento. A investigação dos fatos, a recuperação da memória coletiva, a denúncia e a luta política são dimensões importantes para o trabalho psicológico. Segundo Cecília Coimbra:

A denúncia, o tornar público, retiram-nos do território do segredo, da clandestinidade, do privado. Com isso, saímos do lugar de vítima fragilizada, despontenciali-zada e ocupamos o da resistência, da luta, daquele que passa a perceber que seu caso não é um acontecimento isolado; ele se contextualiza, faz parte de outros e sua denúncia, esclarecimento e punição dos responsáveis abre caminho e fortalece novas denúncias, novas inves-tigações. A dimensão coletiva desse caminho se afirma e, com isso, temos a possibilidade de começar a tocar na impunidade; de mostrar que tal quadro – onde as punições nunca acontecem – pode ser mudado, pode ser revertido (Coimbra, 2001, p. 5).

Conforme a autora, a luta contra a impunidade tem um caráter pedagógico-social, com função de criar novas formas de subjetividade que não reproduzam e reiterem formas de violência que foram forjadas historicamente. Embora considere que a repa-ração econômica seja um direito dos violentados e torturados, ela afirma que esse direito deve ser acompanhado por outros: “deve estar aliado às lutas para que se possa construir não somente outras formas de viver, de existir, outras sensibilidades, mas uma outra memória histórica diferente da que nos tem sido imposta pela cha-mada história oficial” (COIMBRA, 2001, p. 6).

Autores que trabalham no contexto das ditaduras e pós--ditaduras da América Latina, tais como Riquelme, Amati, Agger e Jensen, Becker e Calderón, e Vidal (1993) apontam para a par-ticularidade psicopatológica produzida em contextos de violência

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extremada e, portanto, a especificidade do tratamento terapêutico e da atuação profissional, que devem considerar, sobretudo, o fator político. Nessa perspectiva, Riquelme (1993) apresenta cinco tare-fas relacionadas à práxis psicoterapêutica e à intervenção social, resumidamente, seriam elas:

1) Compreender os mecanismos de influência e penetração psico-lógica da vida cotidiana produzidos pelo terror;

2) Compreensão histórica da violação dos direitos humanos (na América Latina e no mundo);

3) Necessidade de aprender com os processos psicoterapêuticos desenvolvidos em outras situações de terrorismo e violências extremadas;

4) Criação de outras formas de acesso às experiências traumáticas tendo em vista que “o idioma habitual não conta com expres-sões para fazer comunicável a experiência do terror [...] falta estrutura de comunicação para a dor da tortura que se autoper-petua no vitimado”;

5) Falar de direitos humanos em casos de violência organizada sig-nifica falar de saúde psicossocial (Riquelme, 1993, p. 11-14).

Riquelme enfatiza a importância de não relegarmos tais acontecimentos ao esquecimento, ao contrário, devemos revelá-los à percepção pública (publicizar as experiências). Além disso, ele fala da necessidade da participação geral da sociedade em termos de reflexão e amadurecimento como estratégia de recuperação e reestruturação da ética social (Riquelme, 1993, p. 15).

Portanto, o papel da psicologia abrange tanto o atendimento direto às vítimas, potencializando reflexões coletivas, quanto a publicização do acontecimento, através de intervenções políticas, jurídicas e sociais, com objetivo de criar mecanismos preventivos

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e formação de consciência social, assim a intervenção psicossocial abrange três níveis:

1) Pessoal: atendimento clínico-individual às vítimas;

2) Comunitário: formações grupais, coletivas com possibilidade de refletir sobre o passado, presente e projetar o futuro, ampliado na dimensão de historicidade;

3) Político: publicização do acontecimento: intervenções políti-cas, jurídicas e sociais, com objetivo de criar mecanismos pre-ventivos e formação de consciência política.

Composição dos afetos no trauma psicossocial

A partir do resgate das obras de Espinosa e Vigotski, Sawaia (2006; 2011) busca valorizar a dimensão política da produção dos afe-tos, isto é, conjunto de sentimentos e emoções produzidos e deter-minados pelas e nas relações históricas da sociedade. A afetividade está na base dos sistemas políticos e são utilizadas, manipuladas e construídas de modo a produzir sujeitos autônomos ou heterôno-mos, submissos ou libertários, medrosos ou corajosos, enfim, tris-tes ou alegres, dependendo das conjunturas societais e das formas de desenvolvimento do conjunto da sociedade. De acordo com a autora, sofrimento psicossocial produz “a fixação do modo rígido do estado físico e mental que diminui a potência de agir em prol do bem comum, mesmo que motivado por necessidades do eu, gerando, por efeito perverso, ações contra as necessidades coletivas e, consequen-temente, individuais”. (Sawaia, 2006, p. 50).

Este sofrimento corrói o sistema de resistência social. Age rompendo o nexo entre o agir, o pensar e o sentir. [...] As condições favorecedoras da sua disseminação são a miséria, a heteronomia e o medo. Sua forma de contágio é o isolamento social. A sequela que deixa é a

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passividade, o alcoolismo e o fatalismo, a vergonha e o medo, o que o faz ser confundido com preguiça e irres-ponsabilidade (SAWAIA, 2006, p. 50-51).

Posteriormente, Sawaia (2011) vai desenvolver a noção de sofrimento ético-político.

[...] o sofrimento ético-político retrata a vivência coti-diana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. Ele revela a tonali-dade ética da vivência cotidiana da desigualdade social, da negação imposta socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se da produção material, cultural e social de sua época, de se movimentar no espaço público e de expressar desejo e afeto (Sawaia, 2011, p. 106).

O sistema político dominante faz uso de poderosas cargas emotivas para manutenção do poder. Além da coerção física, direta e objetiva, o poder é mantido também pela manipulação das emo-ções, dos sentimentos, ou seja, da subjetividade, é isso que deno-minamos como política de produção de afetos.

São diversas as manifestações subjetivas e afetos (sentimen-tos e emoções) que constituem quadros de trauma psicossocial pro-duzidos pelo sistema político em contextos de violência extrema.

Riquelme (1993) vai falar dos tons cinza e opacos de uma época a ser superada quando o medo – agente de coerção da socie-dade em geral e durante um longo tempo – é dominante. Segundo o autor, as vítimas de violência organizada apresentam a experiên-cia da destruição da confiança básica, vergonha e sentimento de “cumplicidade inconsciente de seus verdugos”. Ele fala da subordi-nação (indivíduos passivos e submissos) ao terrorismo – da adap-tação geral da população aos processos de violência, [ao que Martín

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Baró (2000) chama de ‘normal anormalidade’, produzida pelo ter-rorismo de Estado]. Fala da dor da tortura que se autoperpetua no vitimado. Riquelme aponta para o sentimento de insegurança “de quem se sente expulso de sua terra e sem lugar no mundo”. Enfim, profundas marcas de sofrimento, depressão, “danos psíquicos e físicos ‘infernais’” (Riquelme, 1993, p. 11-15). Martín-Baró, em seus estudos durante a guerra em El Salvador, encontrou sentimentos de passividade, fatalismo e resignação.

O contexto do massacre e a Intervenção Psicossocial no acampamento Terra Prometida

De acordo com o relato dos trabalhadores acampados, na manhã do dia 20 de novembro de 2004, 18 pistoleiros armados inva-diram o acampamento rural Terra Prometida, localizado na cidade de Felisburgo, no Vale do Jequitinhonha (MG), assassinaram cinco pessoas e feriram gravemente 12, entre estas um menino de apenas 12 anos de idade. A mando do fazendeiro Adriano Chafik (réu con-fesso), que já esteve preso e logo depois foi libertado, os capangas ainda atearam fogo nos barracos das famílias, ameaçaram de morte toda a comunidade e soltaram os porcos do chiqueiro, que foram fuçar sobre os mortos. Esse conteúdo faz parte da memória coletiva da comunidade.

O conflito de terra passa pela questão comum na região do Vale do Jequitinhonha, que é um espelho do modo de uso das terras no Brasil: expropriação, exploração e expulsão de trabalhadores. Posseiros desbravadores expulsos pela grilagem de terras1; coro-nelismo e mandonismo na relação dos fazendeiros e agregados. A fazenda Nova Alegria tem esse histórico quando o neto do primeiro

1 Grilagem de terras: forma que indivíduos, fazendeiros ou capitalistas tomam terras alheias mediante falsas escrituras de propriedade. Esse nome advém da prática de fechar grilos em gavetas, juntamente com os falsos documentos para lhes dar aparência de antigos.

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proprietário, Adriano Chafick, assume da sua família o mando sobre as terras, decide mudar o modelo de produção da fazenda: de agricultura familiar para pastagem de gado. Para isso, expulsa os trabalhadores agregados (muitos nascidos na própria fazenda) e em troca da saída compulsória o fazendeiro oferece casas de pouco valor na periferia da cidade de Felisburgo.

A organização do MST na região está relacionada à insa-tisfação dessas famílias e de outras sem terra e em maio de 2002 os trabalhadores rurais sem terra ocupam a fazenda. A área total é compreendida em 1.182 hectares de terra, desse total, 569 hectares foram reconhecidos como sendo terras devolutas pelo ITER/MG, local onde as famílias estavam acampadas a dois anos e meio e onde se encontravam no dia do massacre.

Em 2009, foi assinado decreto presidencial, pelo então governo Lula, destinando a área para a reforma agrária sob os quesitos: graves danos ambientais e gravíssima tensão social no campo, promovidos pelos proprietários. Porém, ainda não houve desapropriação, pois a juíza federal Rosilene Maria Clemente de Souza Ferreira da 12ª Cível e Agrária de Belo Horizonte funda-menta, a partir da Medida Provisória 2.183-56/2001 criada pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que “terra ocupada não pode ser desapropriada”. Para agravar a situação, nesse momento há um mandado de reintegração de posse concedido pelo Desembargador Hilton Queiroz (TRF1 – Brasília – DF) e as famílias se encontram com ordem de despejo. Por fim, após oito anos, o julgamento do massacre está previsto para ocorrer em abril de 2013, no município de Belo Horizonte.

Durante o período de 2006 até 2008 realizamos visitas ao acampamento. A demanda por uma intervenção psicológica par-tiu do próprio MST. Logo na primeira visita, verificamos, con-forme havia sido relatado pela secretaria estadual do Movimento, que as famílias encontravam-se em uma situação traumática. Não

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dormiam à noite, queixavam-se e temiam novos ataques. Os mora-dores nos revelaram que embora já tivessem sido convocados inú-meras vezes pela Justiça, pela polícia, pelas câmaras municipais, etc. para prestarem depoimentos, eles nunca haviam sido chama-dos a falar do massacre sob o ponto de vista do sofrimento.

Buscamos reconstruir a história do massacre a partir da ela-boração da memória coletiva dos trabalhadores rurais, com obje-tivo de: a) compreender e explicitar o processo dos acontecimentos traumáticos daí decorrentes; b) possibilitar a reelaboração dos sig-nificados; c) potencializar a reparação do tecido social; d) envolver a comunidade em um processo grupal que permita um espaço de reflexão sobre os acontecimentos traumáticos e as possibilidades de superação.

A metodologia empregada foi da pesquisa participante e os métodos e técnicas desenvolvidos nas intervenções psicossociais foram inspirados na abordagem Sócio-Histórica e na Psicologia da Libertação.

Iniciamos um trabalho no acampamento a partir do resgate da história da ocupação, do massacre e de seu desencadeamento até os dias de hoje. Realizamos grupos de entrevistas com a maior parte dos acampados; iniciamos a coleta de história de vida com alguns deles. Além disso, visitamos um grupo de ex-acampados que retornaram para a cidade de Felisburgo, e reconstruímos as histó-rias das mulheres viúvas do massacre. No entanto, toda essa expe-riência revelou a necessidade de aprofundar e sistematizar melhor o trabalho. Muitas questões levantadas não foram devidamente elaboradas. Pudemos notar que existem conflitos estabelecidos nas relações comunitárias que estão relacionados aos impactos causados pelo massacre, tais como: medo, (auto) culpabilização das vítimas e das lideranças, sentimento de injustiça, sofrimento e adoecimento mental.

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Relato do sofrimento na perspectiva das vítimas

Através de reuniões em grupos propusemos aos trabalha-dores que relatassem os acontecimentos relacionados ao massacre e as suas consequências em suas vidas, especialmente no que diz respeito ao sofrimento. Posteriormente, realizamos um trabalho de organização e devolução das entrevistas com objetivo de formar um reconhecimento coletivo dessas produções e fortalecer assim um sentido comum, fortalecendo também a dimensão histórica do massacre. A partir desse material realizamos análise de sentido e significado, baseada na teoria vigotiskiana exposta por Sawaia (2009), destacando e compreendendo os afetos revelados na for-mação grupal, composta por jovens e adultos, homens e mulheres.

Devemos ressaltar que enfrentamos resistências, silencia-mentos e recusas, fenômeno que alguns autores denominam como silêncio em relação ao terror (Riquelme, 1993). Uma das narrati-vas representa esse silêncio diante do sofrimento provocado pelo terror: “Tem coisas nessa história que a gente nunca divide com ninguém”.

Logo nas primeiras entrevistas os trabalhadores afirmaram que, em geral, não compartilhavam entre si o sofrimento provo-cado pelo massacre. Demonstraram dificuldade em iniciar a fala, e em geral, as narrativas foram curtas, marcadas por intenso sofri-mento, interrompida ou acompanhada por choro. Das crianças, o mais gravemente atingido, o menino que até hoje carrega uma bala alojada na cabeça, recusou-se a nos dar seu depoimento, ape-sar de aproximar-se de nós na reunião de jovens que propusemos. Do mesmo modo, uma das cinco viúvas mostrou muita resistência em falar sobre o assunto, apesar de nos receber muito bem, com extremo carinho, nos oferecer comida e estadia. Para ela, falar sobre o tema, o marido assassinado e o sofrimento decorrente disso era muito difícil.

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Em geral, os depoimentos revelaram a cena traumática, cruel e violenta do massacre. E um fato importantíssimo: na maior parte dos relatos a cena do trabalho precede a cena do terror. Tal como descrevem os trabalhadores, o terror começa logo de manhã, por volta de 10 horas e 30 minutos. “Acabei de plantar um feijão, dez e meia eles começaram a atirar”.

Os capangas chegaram, capturaram o senhor que fazia a guarita do acampamento e soltaram os foguetes, uma forma pró-pria do Movimento reunir os trabalhadores no centro do acam-pamento. Desse modo, quem estava plantando na roça, torrando farinha, cuidando de animais, fazendo comida etc., abandonou a atividade e foi se reunir. Os trabalhadores se deparam com a cena de terror: um capturado, tiroteio intenso, trabalhadores caindo mortos no chão, outros feridos, uns tentando ajudar os outros e sendo ameaçados, perseguição às lideranças e aos moradores anti-gos agregados da fazenda. Uma criança foi baleada e ameaçaram matar todo mundo. Alguns ameaçados fugiram para a mata, prin-cipalmente as senhoras mais velhas com as crianças. Os homens tentaram voltar para salvar ou ajudar amigos feridos, escondê-los no mato.

Eu vi na hora que eles chegou, eu tava fazendo comida. Aí eu só vi os companheiros gritando assim: ‘Oh gente! Vem pegando o Seu Geraldo’. Aí eu peguei e saí de dentro de casa, deixei a comida lá no fogo, que eu ia levar pro meu marido comida, que ele tava trabalhando fora, aí eu saí deixei lá no fogo e fui ver. Quando eu cheguei lá perto, aí ele já tava com Seu Geraldo e pedindo pra gente afastar senão derrubava nois, que já tinha derrubado Zé Aguiar, Seu Miguel, Seu Tuzinho, pai de Joaquim. Aí, ficaram pedindo pra nois afastar, e eu ainda perguntei se eles não tinham fé em Deus, aí eles falou assim: ‘Afasta senão cês cai do mesmo jeito que os outros!’. Aí eu fiquei

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segura no Lineu, que tem cinco anos, o menino vendo tudo o que tava acontecendo, e ele ainda fala: ‘Oh mãe, eu vi Zé Aguiar morrendo’ [chora].

‘Não encosta não, senão a senhora vai morrer quei-mada!’. Aí eu saí correndo, mais meu menino, aí nois foi né? E foi já tinha um bocado lá, os outros eu nem vi não... Só vi os que tava morto, Seu Miguel, Zé Aguiar e Seu Joaquim. Já tudo morto, já vi eles tudo morto encos-tados nas barracas. Aí, nós correu lá, aí não vi mais nada, porque não dei conta, corri embora pra lá. [...] E eu vivo num sufoco, eu não posso ver tiro, quando eu vejo tiro, acho que eles outra vez. Quando eu tô na rua, quando eu vejo o tiro pipocar eu, eu sento no chão, com aquela impressão, né? Fico imaginando, nossos companheiros tudo, acostumado tudo junto, quatro anos e tanto que a gente vive sofrendo, né? Desde lá da mata a gente vem sofrendo. E pra chegar aqui e acontecer uma coisa dessa né? Mas Deus não vai deixar, toma conta do céu e da terra, de toda parte ora por Ele.

Alguns ainda tentaram voltar para buscar pertences nas barracas, mas foram ameaçados. Os capangas ainda atearam fogo em todos os barracos, a maioria teve perda total de documentos e pertences de valor.

Aí, quando cheguei lá que eu vi que tinha Miltão, aquele Bila, e que vinha com isqueiro riscando as tochas de fogo e jogando aquelas tochonas na barraca do povo, e dava aquelas risadonas, aí que eu vi meus companheiros tudo morto lá e eu fiquei assim... gritava e chorava.

Eles pôs fogo em minha barraca, queimou tudo que eu tinha, não ficou nada, né? E eu sai correndo.

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Na medida que socorriam alguns, os trabalhadores vol-tavam para buscar outros. Muitos feridos, baleados, haviam sido escondidos no mato. Foram achados pelo gemido. Além dos assas-sinatos, das ameaças, de atearem fogo nas barracas, os pistoleiros ainda abriram o chiqueiro e soltaram os porcos sobre os mortos, mais uma forma de humilhação instaurada na cena do massacre:

eles abriram o chiqueiro e soltou os porco dos sem terra tudinho, e os porco desceu e os porco é vai fuçando, comendo o sangue de Seu Chico e fuçando. eu fui lá, toquei os porco pra lá, panhei umas enxada e, e... jogando aquele sangue que tava, que não podia por a mão e oiando. E com um pouco baixou um pé d’água, e a enxurrada descendo assim, e Seu Chico caiu assim de cabeça de bruço, e a enxurrada foi entrando dentro da boca dele e nariz dele, e não podia pôr a mão, eu fui puxando, tirando as enxurrada assim de lado, ó.

O povo ainda ficou muito tempo na estrada, sem amparo público. De acordo com os depoimentos, se tivesse sido socorrido a tempo, um dos trabalhadores baleados poderia ter sobrevivido. Começou a chover, a polícia chegou, prenderam os trabalhadores em cima de um caminhão e foram impedidos de sair, com fome, molhados e humilhados.

Então, quando aconteceu o massacre, aí foi a parte que eu mais sofri. Primeiro, porque eu não tava aqui, tinha saído pra viajar e quando eu voltei, já encontrei. Porque só cheguei aqui umas cinco horas, que eu só vi os cor-pos caídos ali no chão e os barraco tudo queimado, o sangue descendo assim ó, chuva. Isso não sai do meu pensamento, aquela chuva de sangue descendo, a chuva lavando o sangue. Lá em Felisburgo eu tinha encontrado uma multidão de pessoas na porta do hospital. Quando nós paramos e que saimo do carro, o pessoal já vinha

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encontrar, já um perguntando “e meu marido como é que tá? E o outro e meu filho?”. Então assim, um querendo notícia, que tava lá na cidade querendo notícia e nós tava chegando e não tinha notícia direito. Aquele desespero. Aí, nos viemos pra aqui. E quando chegamos aqui na estrada, tava um caminhão com um pessoal em cima, chovendo. A polícia não deixava que saísse as mulher, as criança com quem conseguiu voltar pra pegar os ferido e pegou alguma roupa de cama tudo molhado em cima do caminhão, as criança com fome, todo mundo com fome, molhado e ali a polícia não deixava sair, porque a polícia já tinha chegado um pouco antes. Nós descemos aqui, chega a ver os companheiro caído, os barraco tudo queimado. Pra mim isso já foi o cúmulo, não conseguia assim, a gente não consegue nem pensar, né?

A análise dos dados revela mecanismos, sentimentos e rea-ções psicossociais já estudados na literatura consultada, seriam eles: silêncio em relação ao terror, ao sofrimento e suas consequên-cias psicológicas; sentimento de medo, raiva, ódio; sentimento de injustiça; mecanismo de autoculpabilização das vítimas; piora das relações comunitárias, quebra de confiança básica, perda da ale-gria, desânimo; insônia, depressão etc. Tendo em vista que nosso trabalho ainda está em andamento, iremos focar na análise da culpa, um dos afetos dominantes que configuram o trauma psicos-social entre os acampados.

(Auto) culpabilização das vítimas

De acordo com a análise das narrativas, a culpa aparece como um dos sentimentos mais fortes vividos pela comunidade. A partir do massacre foi desencadeado um mecanismo de (auto)culpabilização das vítimas, afeto encontrado por pesquisadores

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em outras comunidades que sofreram violência, de acordo com Gaborit (2009):

“Muitas vezes, os próprios familiares foram culpabilizados pelos vitimadores por meio de afirmações e acusações buscando assim justificar as suas ações” (Beristain, 2000, p. 103 como citado por GABORIT, 2009, p. 255).

A inversão produzida pela História Oficial, a partir de uma visão dominante, tende a culpabilizar as vítimas e “suspeitar” de seus sentimentos (Gaborit, 2009, p. 255). Nesse sentido, o autor afirma: “[...] a memória desses eventos coletivos, da ótica das víti-mas, tem como primeira finalidade fundamentar o direito a ver-dade, já que a falsidade destrói qualquer tipo de identidade, assim como a integridade moral e cultural das comunidades” (Gaborit, 2009, p. 249).

Em nosso campo de trabalho, o processo de culpabilização aparece em diversos momentos nas narrativas dos trabalhadores e diz respeito aos variados níveis de relações sociais estabelecidas:

a) base-liderança: uma culpabilização da liderança pela base do Movimento em relação ao ocorrido;

b) representantes públicos e moradores da cidade de Felisburgo acusando os trabalhadores de serem culpados pelo massacre por serem ocupantes de terra;

c) polícia ao buscar evidências de que o incêndio poderia ter sido produzido intencionalmente ou não pelos próprios trabalhado-res, na medida que utilizavam querosene nas lamparinas;

d) a comunidade e os próprios sujeitos se culpabilizando.

De acordo com Gaborit (2009), esse mecanismo produz perda da confiança básica e estabelecimento de acusações, o que pode levar à desestruturação da comunidade e à desmobilização da luta.

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Algumas narrativas exemplificam esse mecanismo. Em uma das suas falas iniciais, a principal liderança feminina coloca a culpa como principal sofrimento lado a lado com a própria experiência do massacre. Ela sugere que alguns moradores da comunidade consideram que ela teve um papel desencadeador em relação ao massacre: “Ah, ele (um dos capangas) participou do massacre, con-tribuiu para fazer o massacre por que ele ficou com raiva de XXX (liderança-feminina)” (fala da entrevistada que sugere como alguns consideram que ela teve um papel desencadeador em relação ao massacre).

Assim, ela descreve um jogo de acusações que começou a ocorrer após o massacre, no sentido de culpabilizar as lideranças da própria ocorrência do massacre. Daí a impotência para falar sobre isso, para compartilhar os sentimentos. Compreendemos que nessa relação o sentimento de culpa vai se perpetuando, impedindo-a de desenvolver seu papel enquanto liderança, a produzir como antes nas relações comunitárias, provocando adoecimento, e uma tris-teza notável a cada dia.

É quebrada a confiança, uma relação básica entre liderança e base. A liderança sente-se perseguida, a base desprotegida culpa a própria liderança e a si mesma. As próprias vítimas desenvolvam esses sentimentos contra os seus.

A polícia exercia esse papel também, procurando provas de que os próprios trabalhadores foram culpados pelo massacre ou por partes relacionadas a ele, tal como no caso dos incêndios dos barracos, perguntando se eles usavam querosene para acender as lamparinas, podendo alegar a hipótese que ao invés de serem incendiados pelos capangas, os próprios trabalhadores teriam sido culpados pelo incêndio, ou mesmo que poderia ter sido um aci-dente, por causa do descuido com querosene.

Os trabalhadores demonstraram uma situação de confusão dos seus sentimentos em relação ao massacre, à comunidade e aos

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criminosos. Essa ambiguidade significa que é preciso se justificar diante do massacre, como se o sujeito fosse o culpado pelo acon-tecimento. Após o massacre a comunidade questiona sua própria legitimidade e se autoculpabiliza pela sua decisão política de ocu-par a terra, eixo central de formação da comunidade. São descritos sentimentos de impotência, temor, bloqueio e desânimo.

De modo geral, os trabalhadores demostraram desconhe-cimento em relação às consequências psicológicas e psicossociais decorridas a partir do massacre, assim como dificuldade em com-preender e lidar com as reações provocadas por tal acontecimento.

Considerações finais

A violência contra trabalhadores rurais sem terra constitui estratégia política despotencializadora da luta pela terra na medida que produz um conjunto de afetos negativos que configuram o trauma psicossocial. Essa estratégia política se caracteriza por sua longa duração e tem sido utilizada por longo período histórico, afe-tando diversas gerações e mantendo o ciclo de reprodução do poder e da dominação privada da terra a partir de interesses restritos que excluem grandes parcelas da população ao uso produtivo e social da terra.

Pudemos verificar que não tematizar o acontecimento e não compartilhar o sofrimento decorrente fortalece a falta de compreensão das verdadeiras causas do massacre, assim como o desconhecimento em relação às suas possíveis consequências psi-cológicas conduz a uma banalização das manifestações traumáti-cas. Nessa perspectiva, é fundamental compreender o significado que os trabalhadores atribuem ao massacre e trabalhar na expan-são do conhecimento deles em relação ao ocorrido. Ao rememora-rem o acontecimento, os sujeitos falam das emoções suscitadas no momento do massacre e dos sentimentos conformados posterior-mente, refletem sobre a questão da ocupação de terras e sobre a

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falta de justiça. A intervenção psicossocial torna possível a análise consciente da situação a partir de uma dimensão sócio-histórica: a reflexão sobre a posição do trabalhador nesta sociedade.

Consideramos que o sofrimento e a traumatização não se curam ou esvaecem com o tempo, eles têm que ser reelaborados para que se interrompa. Deve haver transformações, tanto no sen-tido político, para que a causa determinante e desencadeante ter-mine seu ciclo violento, a saber, os próprios eventos violentos que produzem traumatizações, quanto no sentido de reconstituir uma sociedade violentada e livre das alienações a respeito dessa própria violência, já que os afetos negativos produzidos nessas relações bloqueiam o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, produzem nefastas e perversas experiências (des) humanas e têm efeito transgeracional.

Compreendemos assim que a Psicologia pode intervir em uma terapêutica comunitária a partir da produção de reflexões cujo objetivo é ampliar a formação da consciência em relação ao fato ocorrido e as suas consequências. Permitir que os trabalhadores compreendam que o processo histórico de produção de violência ultrapassa a experiência específica ocorrida ali.

Frente ao silenciamento, temos que desenvolver ações de publicizar produções de narrativas, memórias e expressões diver-sas (subjetivações) a partir das quais seja possível a quebra, a ruptura, do silenciamento. Assim a vergonha pode ser convertida em orgulho, o medo em coragem, o isolamento em socialização, politização.

Desse modo, reverter o trauma psicossocial significa pro-duzir consciência reflexiva e potencializar o agir. Esse deveria ser o papel da Psicologia. A arte e a política são apontadas como cami-nhos mediadores desses processos de transformações das dimen-sões psicossociais que incluem as esferas do pensar, agir e sentir.

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Intervención psicosocial junto a poblaciones

desplazadas por el conflicto armado en Colombia

Omar Alejandro Bravo

Introducción

La violencia política en Colombia, a diferencia de la mayoría de los países de América Latina, se mantuvo de forma inin-

terrumpida, desde la propia formación del estado nacional. A pesar de mantener ciclos más o menos definidos, vinculados a la apari-ción y/o la salida de escena de los diferentes actores armados o al reacomodo de relaciones entre los ya existentes, la resolución de diferencias políticas y sociales a través de la vía armada ha sido una constante en la historia del país (Melo, 1992).

Las poblaciones en situación de vulnerabilidad ven acre-centada esa condición en función de esta realidad. La enorme can-tidad de víctimas del conflicto, que se expresan en un significativo

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número de muertos, desaparecidos y desplazados, se concentran entre la población afrodescendiente, campesinos y pueblos indíge-nas, principalmente. Al mismo tiempo, son los jóvenes y las muje-res los principales grupos afectados, dentro de este cuadro general anterior (García Sánchez, 2012).

Estas poblaciones sufren los efectos sociales y psicológicos que se desprenden de esta situación, lo que exige la necesidad de definir políticas de reparación de carácter psicosocial, que dimen-sionen una amplia gama de demandas y necesidades.

En lo que hace a la población desplazada en particular, la masividad y gravedad de los problemas vinculados a esta realidad demanda intervenciones amplias que incluyan atender a la salud mental de los afectados.

El propósito de este texto es discutir los alcances y propósi-tos de estas intervenciones y, en lo que hace a los aspectos teóricos, colocar en una cierta tensión el uso de la noción de comunidad y de la dimensión psicosocial, premisas conceptuales estas que suelen estar presentes en este tipo de estrategias. Esta necesidad surge de la demanda puntual planteada por el Grupo de Acciones Públicas (GAPI) de la universidad Icesi, que atiende a poblaciones desplaza-das como consecuencia del conflicto armado en la ciudad de Cali, Colombia, y se enmarca en una investigación en curso que trata de los procesos de producción de memoria en familiares de vícti-mas de desaparición forzada, teniendo a la victimología como eje común para ambas cuestiones.

Las venas abiertas de Colombia

Intentando acotar de alguna manera la descripción de los ciclos de violencia en Colombia, de forma de considerar los epi-sodios principales que afectan y condicionan la situación actual, cabe destacar el período denominado como La violencia, conside-rado por muchos autores como una de las causas principales de la

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situación política contemporánea (Pécaut, 2012). Este ciclo se ini-cia en el año 1948, cerrándose de forma parcial en 1953, y tuvo como disparador el asesinato de Gaitán, candidato liberal que intentaba introducir reformas sociales y políticas en el país que perjudicaban los intereses de los sectores sociales más poderosos.

Posterior a este crimen, se sucedieron acciones de asesinatos, persecución y exterminio entre sectores liberales y conservadores que provocaron alrededor de 200.000 muertes y el desplazamiento de poblaciones campesinas que fueron colonizando regiones del país poco habitadas. En este marco se crean grupos guerrilleros de filiación liberal y de izquierda que se desmovilizan parcialmente en el año 1953, producto de una amnistía ofrecida por el gobierno (Molano, 1985).

El mantenimiento de las condiciones de inequidad social y política hace que algunos grupos insurgentes continúen activos; posteriormente, en los años 70’, surgirán los dos principales grupos guerrilleros actuales: el Ejército de Liberación Nacional (ELN) y las Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC). Otros gru-pos guerrilleros aparecieron años más tarde, pero accedieron a pro-cesos de paz que llevaron a su posterior desmovilización. Las FARC y el ELN iniciaron, en varias oportunidades, negociaciones tendien-tes a su desmovilización e inclusión en la vida política colombiana, pero las mismas nunca llegaron a buen término. El exterminio del movimiento político conocido como Unión Patriótica por partes de agentes del Estado y paraestatales, que cobró más de 5000 muertes entre los años 1984 y 1991, acabó con la principal iniciativa en ese sentido (Palacios, 2008).

En los años 80`, junto a la consolidación de las guerrillas aparece el narcotráfico como un nuevo actor social, económico y armado. Teniendo como principal foco de tensión la disputa por la tierra, los grupos narcotraficantes, junto con algunos gran-des propietarios rurales y sectores del Estado, conforman grupos

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paramilitares que rápidamente crecen en número y presencia en varias regiones del país. Contrariamente a sus propósitos declara-dos, estos grupos paramilitares no tienen como objetivo principal combatir a la guerrilla, sino apropiarse de grandes concentraciones de tierra, asesinando, desapareciendo o desplazando a sus propie-tarios, y eliminar cualquier atisbo de oposición a estas acciones de concentración económica, incluyendo aquí a sindicatos, organiza-ciones sociales y de derechos humanos, principalmente.

Una vez cumplidos sus objetivos, estos grupos, organiza-dos como Autodefensas Unidas de Colombia (AUC), ingresan a un proceso de desmovilización en el marco de la denominada Ley de Justicia y Paz, del año 2005 (Colombia, 2005). A pesar de que los grandes bloques paramilitares y sus cabecillas se desmovilizan, accediendo a generosos beneficios jurídicos y penales, el paramili-tarismo se mantiene activo en forma de grupos más pequeños que tienen el propósito de evitar los tímidos intentos de reparación a las víctimas y de devolución de los bienes y propiedades sustraí-dos. En la actualidad, estos actores armados conviven con los dos grupos guerrilleros mencionados que, aunque disminuidos mili-tarmente, mantienen presencia y capacidad bélica en amplios sec-tores del país, y con las fuerzas del Estado, cuyas acciones atentan con frecuencia contra la población civil y los derechos humanos en general.

Producto de esta situación, se presenta en Colombia un número elevado de víctimas que se expresa en cifras significativas y alarmantes. En lo que hace a la población desplazada, la Consultoría para los Derechos Humanos y el Desplazamiento (COHDES) señala que entre los años 1985 y 2009 la cantidad de personas que debie-ron abandonar su hogar y su trabajo por causa de la violencia fue de aproximadamente 4.900.000 (COHDES, 2012).

El número de desaparecidos, registrada en un período simi-lar de tiempo, es de aproximadamente 51.000 personas, según el

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informe titulado “Rompiendo el silencio: en búsqueda de los desa-parecidos en Colombia” (Working Group Education Found, 2012).

Por otra parte, el Centro de Educación y Educación Popular (CINEP, 2010) indica que el número de asesinatos políticos regis-trados en los últimos 20 años fue de 53016; la cantidad de secuestra-dos fue de 35449, considerando el mismo lapso de tiempo.

Amnistía Internacional (2008) destaca que las víctimas per-tenecen en su mayoría a las poblaciones en situación de vulnerabi-lidad, principalmente indígenas, afrodescendientes y campesinos.

La Primera Conferencia Internacional sobre la Indemnización a las víctimas Inocentes de Actos de Violencia, ocurrida en la ciudad de los Angeles en 1968, trazó la línea funda-mental de los derechos de las mismas y las obligaciones del Estado frente a ellas. Entre otras recomendaciones, se destacó la necesidad de compensar y reparar a las víctimas, exigencia esta que se amplió en sucesivas disposiciones jurídicas internacionales.

La Asamblea General de las Naciones Unidas, en su reso-lución 40/34, definió con claridad a las víctimas, así como destacó la necesidad de establecer mecanismos judiciales y administrati-vos que permitan efectivos procesos de reparación y justicia. Así mismo, se incluyó la exigencia de prestar asistencia material, psico-lógica, médica y social de forma amplia, a través de personal debi-damente capacitado (Naciones Unidas, 1985).

De esta forma, se entiende por víctimas a

las personas que, individual o colectivamente, hayan sufrido daños, inclusive lesiones físicas o mentales, sufrimiento emocional, pérdida financiera o menoscabo sustancial de sus derechos fundamentales, como conse-cuencia de acciones u omisiones que no lleguen a consti-tuir violaciones del derecho penal nacional, pero violen normas internacionalmente reconocidas relativas a los derechos humanos (Naciones Unidas, 1985).

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Por otra parte, y en relación específica a las poblaciones des-plazadas por la violencia, el Estatuto de Roma, al definir los crí-menes a ser considerados como de lesa humanidad, destaca a la deportación o el traslado forzoso, incluyendo aquí a “…la expulsión de personas de la zona donde están presentes legítimamente sin motivos autorizados por el derecho internacional, entendiéndose aquí que la deportación supone cruzar fronteras nacionales y que el traslado forzoso, no” (Corte Penal Internacional, 1985).

El amplio campo de la victimología

La victimología es un campo relativamente reciente, confi-gurado en torno a una serie de discursos y prácticas diversas. Entre otros motivos, esta visibilidad de la víctima y su incorporación activa en los procesos judiciales se vio históricamente postergada por la manera tradicional en que el derecho moderno ecuacio-naba los conflictos, donde el Estado substituía a las víctimas en el papel de agredido y disponía de los medios y las condiciones para el enjuiciamiento y castigo del ofensor (Foucault, 1980). La voz de la víctima, cuando escuchada, era en general considerada en la producción de las pruebas necesarias para el juicio, estando así su palabra acotada a una demanda específica y circunscripta a una determinada etapa procesal.

Dussich & Anderson (2008) definen a la victimología como

el estudio de personas que son víctimas de crímenes y otras acciones que causan sufrimiento; es el estudio de los hechos de la victimización, cómo las agencias o los aparatos del Estado responden en casos de victimización y cómo ayudan a que la víctima se recupere física, finan-ciera y emocionalmente (p. 17).

Los autores ofrecen tres razones básicas que justifican este campo: una razón moral, basada en la pertinencia y necesidad de

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ofrecer ayuda y protección a las personas victimizadas; razones legales, basadas en el derecho penal y civil, principalmente; y razo-nes científicas, dada la necesidad de explicar las conductas huma-nas involucradas en esos hechos.

La victimología reconoce una seria diversa de antecedentes históricos, situados en su mayoría en la Europa de los años 30 y 40. Mendelsohn, abogado rumano, es considerado el primero en utili-zar este término en el año 1940, en el marco del estudio realizado a víctimas de violaciones en Rumania. En el año 1948, von Hentig analiza la vulnerabilidad de determinadas personas y/o grupos, por lo que Mendelsohn, pocos años después, propone que a par-tir de este objeto de interés se constituya una nueva ciencia social (Dussich & Anderson, 2008)

Durante los años 70, en Estados Unidos aumentan los pro-gramas de atención a las víctimas que incluían, principalmente, la restitución y la asistencia a las mismas. Las numerosas asociacio-nes y grupos destinados a apoyar estas iniciativas permitieron que la victimología se incorporase de forma creciente a los procesos y las instituciones jurídicas, ampliándose también este campo por la incorporación de psicólogos, psiquiatras, trabajadores sociales y sociólogos.

Esta ampliación y consolidación de la victimología no está exenta de polémicas, dadas las diferentes formas de entender el rol de las víctimas. Como ya fue dicho, el lugar de las mismas en los procesos judiciales estuvo tradicionalmente centrado en la necesi-dad de rescatar su testimonio para la producción de pruebas. Más tarde, los procesos de reparación permiten que estas voces cobren otra visibilidad y alcances, abriéndose así una dimensión reivin-dicatoria de los derechos vulnerados y los daños económicos, psi-cológicos, morales, entre otros, ocasionados por la injuria sufrida, colocándose por momentos en una cierta tensión con el Estado y la administración de la justicia.

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De esta forma, se colocan en discusión a los propios proce-sos sociales y políticos que determinaron esos hechos, así como la necesidad de establecer mecanismos de reparación que incluyan procesos de verdad, reparación y justicia, con el fin de atender a las demandas de las víctimas y evitar a futuro la repetición de esos hechos. Por estos motivos, las voces y la participación de las mis-mas no se reducen ya a dar respuesta puntual a las demandas de juristas y peritos, limitando su representación a sus abogados.

El propio hecho de constituirse en un actor colectivo, no ya individual, otorga otra dimensión a los hechos en cuestión y una potencia política diferente a estos actores. Esto permite rescatar del olvido y la impunidad a ciertos delitos que, fundamentalmente cuando cometidos por agentes del Estado, enfrentaban serias difi-cultades para su juzgamiento.

Por otra parte, el poder de los actores sociales responsa-bles, directa o indirectamente por estos crímenes, hacía que con frecuencia las propias víctimas fuesen colocadas en un lugar de sospecha y rechazo, principalmente por motivos ideológicos. Más aún, en determinados casos, y a partir de un cierto reconocimiento social y poder político de los victimarios, los mismos podían rei-vindicarse como víctimas que reaccionaron frente a una amenaza u ofensa, diluyéndose así la diferencia entre víctima y victimario, como sucede actualmente en Colombia con los autores de viola-ciones masivas a los derechos humanos. (Girón & Cepeda, 2008).

Así mismo, según los mismos autores, los medios de comunicación enfatizan la condena y visibilidad de los crímenes cometidos por ciertos actores sociales (guerrilla y narcotráfico, principalmente), siendo que, con frecuencia, “…se intenta ocultar, minimizar o justificar las acciones perpetradas por agentes esta-tales o paraestatales contra personas o grupos estigmatizados por razones sociales, económicas o políticas” (Girón & Cepeda, 2008, p. 83).

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De esta forma, el lugar activo de las víctimas en los procesos judiciales actuales coloca en cuestión la definición de la responsa-bilidad de los victimarios, así como la de los espacios de expresión de los perjudicados y del sentido y forma de las condenas emitidas.

Por estos motivos, la propia denominación de víctima se pone en discusión, ya que, a pesar de que permite reconocer la vivencia sufrida y su impacto, puede generar “…estigmatización, vergüenza, culpa y una sobre identificación con la construcción social que se hace de la víctima como una persona carente de recur-sos y sin posibilidades de continuar su proyecto de vida, o como alguien que deja de lado el lugar activo en su proceso personal.” (Ospina, 2008, p. 130). Por ese motivo, esta autora reivindica el uso de los términos afectados y afectadas, ya que poseen una menor carga peyorativa.

En relación con estas dificultades destacadas, en el contexto colombiano actual se intenta instalar una particular noción de repa-ración que condiciona las posibilidades de una lectura apropiada de los sucesos que produjeron el daño, ya que se parte del principio de que los hechos juzgados han sido superados en lo que hace a la situación social y política que los permitió y al poder de los actores armados que la ejecutaron. La desmovilización de los grupos para-militares responsables por la mayoría de los crímenes cometidos contra la población civil en los últimos treinta años, como ya fue comentado, no implicó la desaparición de este actor armado, dado que la persecución a los defensores de derechos humanos, sindica-listas y opositores políticos se ha mantenido.

En particular, esta violencia se ha dirigido en los últimos años contra líderes e integrantes de colectivos de campesinos que reclaman la devolución de sus propiedades, al amparo de una ley reciente que habilita al reclamo y restitución de sus bie-nes y a la reparación por los perjuicios sufridos (Colombia, 2012). Estas propiedades han pasado en general por procesos jurídicos y

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administrativos que dificultan estas acciones restitutivas, al haber tenido las mismas varios propietarios, que en ocasiones las parce-laron y dividieron, multiplicándose así los dueños de los terrenos y estableciéndose una relación difusa entre los ocupantes actuales y los apropiadores. Caso se consigan demostrar los derechos sobre los bienes usurpados, la presión de los actores armados, como ya fue mencionado, constituye el obstáculo último y principal para las víctimas.

Los propietarios legítimos sufren también con frecuencia las consecuencias del desplazamiento forzado, que implicó para ellos una pérdida de capitales culturales y sociales (Flaschsland, 2003)2 más allá del perjuicio económico. De vivir en un medio campesino, sujeto a varias carencias pero en general signado por condiciones laborales y de relación social que implicaban para el sujeto una relación directa con su identidad y dignidad, se pasó a subsistir en condiciones de extrema precariedad, en asentamientos provisorios e irregulares situados en la periferia de las grandes ciudades, donde las formas de ganar el sustento pasan por eventuales y limitadas ayudas oficiales, subempleos o directamente la mendicidad.

Así, “…los saberes y competencias, de gran riqueza en la vida anterior, ante la imposibilidad de recontextualizarlos, empujan al desempeño de oficios mal remunerados” (Afrodes, 2008, p. 27). De esta forma, es posible observar en las esquinas de las principales metrópolis del país, a familias enteras que se identifican como des-plazados por la violencia y que solicitan apoyo económico por su condición.

Por todo esto, Herrera Carassou (2006) considera que existe una quiebra de personalidad de la persona que abandona su lugar de existencia para incorporarse a un medio urbano en condicio-nes de marginalidad, marginalidad esta que no es solo social sino

2 Estos capitales, en el análisis de Bourdieu, son los que permiten el ejercicio de poder de los sujetos en un campo de acción social determinado.

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también psicológica. Lira (2008), destaca los efectos devastadores que esta situación provoca en los niños, que se manifiesta en irri-tabilidad, angustia, miedos y ansiedad, entre otros síntomas. Así mismo, “…las redes familiares y sociales próximas, que pueden dar-les apoyo y contención, casi siempre se ven afectadas por la misma situación.” (p. 73).

Los hijos de estos campesinos desplazados con frecuencia deben entonces tramitar su adolescencia en estas condiciones de vulnerabilidad, lo que los expone también a situaciones de violen-cia urbana. Así mismo, la distancia de estos jóvenes con sus con-diciones anteriores de existencia, hace que el retorno a su antigua forma de vida y relación social encuentre un obstáculo adicional.

Quintero Mejía & Ramírez Giraldo (2009) encontraron entre personas desplazadas lo que denominaron como síndrome de amenaza, que implica una interrogación dolorosa sobre las cau-sas de su situación actual y el reemplazo de los sentimientos de simpatía y solidaridad por la sensación permanente de miedo. De esta forma, “…los lazos de amistad que entrañan la estima de sí y el reconocimiento del otro se derrumban y, con ello, se hunde la esfera de la subjetividad ciudadana” (p. 54).

Esta sensación de amenaza contribuye a dificultar la trami-tación de los sucesos traumáticos vividos. Sierra Uribe (2009) ana-liza tres categorías de duelo presentes en población desplazada que padece estas dificultades: el duelo suspendido, donde las tentati-vas de construir lazos sociales en el nuevo lugar de vida se limitan al interior de los grupos sociales que padecen de los mismos pro-blemas, lo que complica elaborar ese duelo; el duelo cristalizado, caracterizado por la negación del hecho y de la construcción de planes para el futuro; y el duelo aplazado, donde una cierta urgen-cia cotidiana exige que la persona se niegue a hablar de lo suce-dido en función de atender a las necesidades básicas propias y de su grupo familiar.

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García Sánchez (2012) analiza los efectos particulares que el desplazamiento genera en poblaciones afrodescendientes colom-bianas. A la vulneración inicial de su condición de sujetos indivi-duales y colectivos, motivadora de su salida obligada de su lugar de existencia, se agregan los comportamientos y discursos racistas y clasistas con que las instituciones responsables de velar por sus derechos suelen exhibir.

Por todo esto, es oportuno relacionar esta condición de víc-timas con procesos estructurales de violencia que, según Galtung (1998), se expresan en tres dimensiones principales: la estructural, que comprende a las inequidades sociales, económicas y políti-cas; la violencia directa, que incluye a la agresión física, principal-mente; y la cultural, que valida a las anteriores a través de discursos y prácticas de carácter clasistas, machistas y/o xenofóbicos, entre otros. Considerando esta dimensión en su amplitud y complejidad, se pueden entender los procesos de victimización más allá de la simple relación entre víctima y victimario, para poder enmarcarlos en las dinámicas sociales y políticas de las que hacen parte.

Esto permite también disminuir los riegos de lo que Germani (1971) considera como la subordinación de una cultura a otra, definida como una asimilación, que contiene tres dimensio-nes de análisis: la de adaptación, vinculada a las funciones que la persona emigrada desempeña en su nuevo espacio social; el de la participación, que refiere a la recepción que la comunidad le brinda al sujeto; y la de aculturación, que tiene que ver con la adquisición de modos de comportamiento propios del lugar donde habita.

En este sentido, el concepto de integración es superador del anterior y ofrece subsidios apropiados para intervenciones de carácter más amplias y efectivas. Esta noción de integración supone un doble movimiento: de la persona hacia la comunidad y de la comunidad hacia los sujetos y grupos afectados. Esto disminuye los riesgos de que los sujetos deban asimilarse forzosamente a su

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nuevo espacio social, resignando su cultura, costumbres y formas de vínculo y, del lado de la comunidad, permite que la misma visu-alice a estas poblaciones en una dimensión más amplia que la de simples víctimas, objetos de piedad o sospecha, pero siempre un “otro” ajeno y extranjero.

De esta forma, se puede evitar también los efectos del marco jurídico actual que, según García Sánchez (2012), permite descon-siderar la posibilidad de soluciones estructurales a estas problemá-ticas, al otorgarle a los desplazados una condición de migrantes, que pueden recomponer sus condiciones de vida a través de un simple y temporal apoyo económico.

Sobre la dimensión psicosocial y comunitaria de los procesos de reparación

Con suma frecuencia, a la hora de diseñar políticas dirigidas a la reparación de víctimas, se invoca el término psicosocial que, de tan repetido, se torna ilusoriamente obvio. Esa banalización del término, que permite congregar una amplia gama de dispositivos teóricos y prácticos, indica por esto la necesidad de colocarlo en discusión. En el caso particular de las poblaciones desplazadas, los efectos de esa condición y las formas de intervención derivadas, es pertinente incluir en esta reflexión a la noción de trauma y la dimensión comunitaria, igualmente mencionadas de manera habi-tual frente a estas problemáticas.

La dimensión psicosocial significa una aproximación entre dos campos que la ciencia, en la tradición moderna, se ocupó histó-ricamente de separar en disciplinas, métodos y teorías específicos. La psicología social, en sus varias vertientes, intentó colocar esta separación en discusión, pero no llegó a definir un marco teórico común, sufriendo también una sub-clasificación entre las denomi-nadas psicología social psicológica y la psicología social sociológica,

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dependiendo del énfasis otorgado a un lado u otro de la polaridad externo – interno o social – subjetivo (Alvis Rizzo, 2009).

Lo psicosocial suele ser entendido, desde la intervención, como una sumatoria de aspectos que deben incluir cuestiones psi-cológicas, económicas y jurídicas. No obstante, estas tres dimen-siones se consideran con frecuencia de forma aislada, siendo entonces la intervención considerada de carácter integral en la medida en que atienda a las mismas, cada una de forma particular e independiente.

Ante problemáticas complejas, como las que plantea en Colombia el desplazamiento forzado, este tipo de intervención incluiría un espectro amplio de especialistas, donde unos aten-derían los aspectos psicológicos (principalmente desde la noción de trauma y su superación a través de su simbolización); otros se ocuparían de los aspectos económicos, por medio de subsidios y ayudas materiales y otros de la parte jurídica, por medio de la asis-tencia legal a las víctimas.

En relación a esta cuestión particular del trauma, Laplanche & Pontalis (1981) lo definen como un acontecimiento en la vida del sujeto que se caracteriza por su intensidad, como por la incapa-cidad del individuo de responder adecuadamente, observándose un trastorno que provoca efectos patógenos en la organización psí-quica del individuo.

Esta noción de trauma está inscripta en “…un paradigma físico-energético particularmente relevante en la teoría psicoana-lítica, que permite suponer que la simbolización de esa experien-cia traumática operaría a manera de una descarga que permitiría devolver el equilibrio al sistema.” (Bravo, 2011, p. 4).

Desde esta perspectiva, el trauma puede ser procesado independientemente de las condiciones sociales en que se produjo y reproduce, en la medida en que el sujeto pueda hablar del suceso que lo motivó. No obstante, estos procesos de simbolización no

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llegan a tener un efecto terapéutico si no se inscriben también en un otro social que considere ese suceso traumático como parte de un proceso histórico común, como parte de una memoria colectiva que reconoce ese evento traumático como una agresión al cuerpo social en su totalidad. Sin esto, no es posible su superación, inclu-sive porque se mantienen las posibilidades de que dichos eventos se repitan. De esta forma, el proceso terapéutico, reducido a una dimensión intrapsíquica, apunta a producir la resignación frente a la pérdida sufrida y no su superación.

Contra esta lógica, Martín Baró (2003) sitúa el trauma en una dimensión psicosocial, definiéndolo como “…un daño particu-lar infringido a una persona, a través de una circunstancia excep-cional. El trauma social es la huella que ciertos procesos históricos pueden dejar en poblaciones enteras afectadas. El trauma psicoso-cial es producido socialmente.” (p. 261).

De esta manera, se considera al trauma desde tres aspectos principales: su carácter dialéctico, en tanto inserto en un sistema de relaciones sociales; la necesidad de atender a las causas socia-les que lo generaron, y la suposición de que, si se mantienen las condiciones sociales que lo produjeron, se conservará su potencial patogénico.

Por este motivo, Alvis Rizzo (2009) destaca la necesidad de que las intervenciones psicosociales sitúen lo asistencial y lo eco-nómico como parte de una dimensión psicosocial amplia, en tanto operan como una reparación posible al daño sufrido por el sujeto y suponen un reconocimiento social del daño sufrido, que tiene efec-tos subjetivos.

De esta forma, las dimensiones psicológica y social mostra-rían dos lados de una misma realidad que se relacionan de forma dialéctica, siendo inseparables la una de la otra. Así, la reparación económica y el apoyo legal a las víctimas tendrían efectos reparato-rios también en lo psíquico, en la medida en que se inscriban en un

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marco de relaciones signado por el respeto a los sujetos y poblacio-nes objeto de las mismas, en lo que hace a su derecho a ser consi-derados como actores con capacidad de opinión y decisión en estos procesos y estén insertas en políticas más amplias que atiendan a las condiciones estructurales que generaron esa situación inicial.

Esta comunidad de objetivos e intereses, que permiten la movilización y participación de los afectados por estas problemá-ticas, no se produce de forma simple, por la mera existencia de problemas comunes. Bauman (2006) considera que las personas sometidas a condiciones de existencia signadas por el temor, la vio-lencia y la falta de relaciones amplias y solidarias, tienen pocas con-diciones de desarrollar vínculos comunitarios, entendiendo que los mismos suponen lazos sociales fraternos y significan una cierta comunidad de deseos y proyectos en el grupo que los sostienen.

En un sentido similar, Sartre (2004) diferencia entre series y grupos, siendo las primeras meras agrupaciones de personas sin un propósito común y estando los segundos definidos por un sentido colectivo de pertenencia y acción. El paso de la serie al grupo se produce en la medida en que se creen esas condiciones colectivas, existiendo siempre la posibilidad de retornar a la situación anterior.

Considerando esta dimensión relacional de manera diná-mica y compleja, Montero (2008) define a la comunidad como “…un grupo en constante transformación y evolución que en su interrelación genera un sentido de pertenencia e identidad social, tomando sus integrantes conciencia de sí como grupo, y fortaleci-éndose como unidad y potencialidad social. (p. 207).

Duque Daza (2010), diferencia la noción de comunidad pre-moderna, caracterizada como idílica y donde las diferen-cias sociales y conflictos parecen no existir, de las que denomina comunidades de sentido, no definidas por algún carácter territorial común sino por los intereses, identidades y nociones colectivas de

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pertenencia. La actitud de resistencia frente a una amenaza externa sirve para consolidar esas características grupales.

La noción de lo comunitario, entonces, está vinculada a una identidad colectiva que define y permite cierto tipo de lazos sociales caracterizados por vínculos solidarios y fraternos. Esta identidad colectiva no significa negar o relegar la singularidad de cada uno de sus integrantes; por el contrario, ofrece posibilidades más amplias de que esas dimensiones subjetivas se desplieguen de manera más amplia, permitiendo así que los sujetos puedan movi-lizar sus deseos y demandas.

A partir de estos principios mencionados, es posible pensar un concepto de salud mental que no se limite al ámbito tradicio-nal de la práctica clínica individual entendiendo que, así como los padecimientos psíquicos se producen en la relación social, es tam-bién en los lazos sociales comunitarios donde existen elementos reparatorios y preventivos para estos malestares. De esta forma, las intervenciones dejan de ser patrimonio exclusivo de los profesiona-les, siendo también la propia comunidad una voz autorizada en lo que hace a la planificación, sentido y desarrollo de las actividades.

En definitiva, una intervención de carácter psicosocial, en este caso dirigida a víctimas del conflicto armado en Colombia y en particular a grupos y personas desplazadas de su lugar de ori-gen, debe respetar ciertos presupuestos básicos, de alguna forma ya enumerados pero que cabe reiterar aquí a manera de conclusión.

En primer lugar, respetar el lugar de las víctimas como suje-tos activos en estos procesos de reparación y justicia, acción esta que también tiene que ver con la salud mental de los afectados, que de esta manera ven reconocidas su condición de ciudadanos y se evita las denominaciones posibles de sospechosos o de incapaces sociales, mero objetos de piedad y conmiseración.

Así mismo, es preciso que se produzcan procesos de cons-trucciones de memoria individuales y colectivas que permitan

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resignificar las causas estructurales de la violencia sufrida y el carácter colectivo de los daños.

Las intervenciones deben tener un carácter amplio, consi-derando que las varias modalidades de las mismas (jurídicas, eco-nómicas, de salud mental, entre otras) hacen parte de un mismo proceso, siendo que cada una influye en las otras y convergen en un propósito común de rescate de la ciudadanía y la dignidad de las personas afectadas.

El principio de integración, que supone un doble movi-miento de la comunidad hacia los afectados y de ellos hacia la comunidad, debe imponerse a la tradicional noción de reinserción o reintegración, basadas en general en el desconocimiento de las particularidades, demandas y deseos de ambos actores sociales.

Por último, es necesario que todos estos procesos manten-gan una lectura abarcadora y crítica de las razones profundas, his-tóricas y socio-económicas, de los hechos sucedidos, de manera de impulsar procesos políticos que impidan su repetición.

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Construindo barragens e masculinidades: pesquisa

em Psicologia Social em um canteiro de obras

de uma hidroelétrica na fronteira do RS-SC

Priscila Pavan Detoni Henrique Caetano Nardi

Introdução

Neste capítulo exploramos a experiência do trabalho de campo1 em um canteiro de obras na fronteira entre os esta-

dos do Rio Grande do Sul e Santa Catarina no Sul durante dois anos.

1 O trabalho de pesquisa de campo foi realizado para a produção da dissertação de mestrado em Psicologia Social e Institucional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul pela primeira autora (Detoni, 2010), orientada pelo segundo autor. Esse texto reelabora elementos da pesquisa de campo e se construiu na busca de pensar a especificidades da pesquisa neste contexto.

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Buscaremos, aqui, descrever e analisar a construção das masculi-nidades de uma população nômade que ocupou uma cidade tem-porária para a construção de uma usina hidrelétrica. Esta pesquisa embasou-se nas teorizações de Michel Foucault e Judith Butler. A metodologia foi guiada pela abordagem etnográfica e pela análise das formações discursivas que sustentavam os modelos de mascu-linidades construídas pelo e no trabalho e na relação com as carac-terísticas nômades desse grupo de trabalhadores. O corpus foi constituído basicamente por observações de campo e entrevistas. Descrevemos ao longo do estudo como são construídas subjetivi-dades marcadas por uma hierarquia do masculino em um contexto caracterizado por uma homossociabilidade heteronormativa.

Nosso trabalho buscou reconstituir o processo de instalação do canteiro de obras desde a mobilização para a vinda e instalação desses trabalhadores, passando pela organização da cidade tempo-rária até o movimento de desmobilização/desmontagem e migra-ção para outro local. O processo de mobilização/desmobilização remete para a chegada e saída dos trabalhadores, o que implica em deslocamentos entre uma obra e outra e a subsequente composição de uma cidade temporária e de uma população específica. O des-colamento geográfico e demográfico, nesse caso, se configurou na construção de um canteiro de obras em antigas propriedades rurais de pequeno porte na área de várzea no entorno da construção da represa em questão.

Acreditamos ser necessário pontuar os deslocamentos da própria pesquisa em descrever, analisar o percurso feito pelas esco-lhas de operadores, relatos e observações no campo da Psicologia Social, entendo os sujeitos como produtos de determinadas cons-truções sociais. Este estudo permitiu conhecer melhor os aspec-tos particulares dos processos de construção das masculinidades, tomando como linha de análise as condições de possibilidades para as experiências de si em uma cidade de homens, na qual são rei-teradas e/ou alteradas as balizas para sua constituição enquanto

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sujeitos produzidos numa experiência localizada, histórica e assu-mindo a denominação de “barrageiros” em razão da migração labo-ral para construção de barragens.

Barrageiros/ migrantes/ itinerantes: vida e trabalho

Quem não é um acaso na vida? (Lispector, 1998, p. 18)2

Quem habita um canteiro de obras de uma usina hidrelé-trica? De que forma? Essas são questões centrais tanto para os/as trabalhadores/as quanto para os/as visitantes que chegam a um canteiro de obras. Desde o primeiro contato indagamos sobre as histórias de vida de quem participa dessa construção. Essas pessoas não são só meros frutos do acaso, mas de um contexto de vida e de trabalho marcado por uma fusão de migrantes e locais. Embora existam semelhanças nas trajetórias dessa gente que segue as bar-ragens, ao realizar a análise, nos demos conta do risco de falar das trajetórias de uma forma homogênea, o que poderia mutilar a com-plexidade de trajetórias singulares. Como forma de lidar com esse risco, buscaremos sempre que possível apontar para a diversidade de composição do grupo de trabalhadores, pensando em todos os sujeitos que compuseram o campo durante as observações.

A precarização das condições de vida e a necessidade de tra-balhar faz com que famílias inteiras tomem um movimento itine-rante de migração dentro do setor hidrelétrico (Duarte, 2009), o que

2 Essa questão é do livro A hora da estrela, que traça a história da personagem central – Macabeia – uma nordestina que vem para o Rio de Janeiro em busca de oportunidades. Utilizamos a frase para fazer alusão ao deslocamento desses homens, pois a maioria deles é fruto de acasos e da produção de descasos que fazem como que partam do Nordeste do Brasil.

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foi chamado pelos trabalhadores de “Seguir barragem”. Finda uma obra, eles seguem para outra. Esse nomadismo está intimamente associado ao cenário social, econômico e político que molda a cena brasileira e internacional3 e que marca as relações de trabalho.

O espaço de trabalho dentro do canteiro de obras se instalou na forma de uma cidade temporária, a qual contava com estrutura semelhante à de uma cidade pequena com mercado, transporte, serviços de saneamento e saúde. Nesta pesquisa o canteiro de obras foi composto por cerca de 2.000 homens alojados, totalizando 3.500 trabalhadores/as diretos/as, e 5.000 indiretos/as que iam e vinham diariamente de ônibus das regiões próximas, sendo que o trabalho era ininterrupto e dividido em três turnos de oito horas. O número de trabalhadores/as variou no período de nossa pes-quisa de campo conforme as demandas de trabalho da construção da hidrelétrica. Os homens representavam 90% do contingente de trabalho, somente 10% eram mulheres e destas somente 12 ficavam nos alojamentos internos, todas as outras moravam nas cidades vizinhas.

Boa parte desses trabalhadores foi trazida por meio de ônibus agenciados por um recrutador da construtora na região Nordeste do Brasil ou através do SINE (Sistema Nacional de Empregos), em especial dos estados do Piauí e do Maranhão, onde o nível de desemprego e as condições socioeconômicas impulsio-navam a busca de sustento em outras regiões. Isso explica porque os nordestinos representavam 60% do total dos trabalhadores/as dessa obra, mesmo ela estando localizada na região Sul do Brasil, no oeste de Santa Catarina, fronteira com o Rio Grande do Sul. A lógica que orientava o recrutamento da construtora, de acordo com nossas entrevistas, se sustentava na ideia de que os nordestinos

3 As grandes empresas de construção civil brasileiras partilham as concorrências nacionais e internacionais e contam com um plantel de trabalhadores nômades que seguem essas obras no Brasil e no exterior.

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procuravam e permaneciam nesse tipo de trabalho pesado porque “aguentavam mais”, por trazerem em sua história de vida uma série de dificuldades que faziam com que fossem mais resistentes. As falas dos/as recrutadores/as assim como dos trabalhadores, de que mesmo quem trabalha nas roças do Sul muitas vezes não conse-gue aguentar o trabalho duro da maioria das atividades realizadas em uma construção como essa, reforçam a ideia. Não se trata aqui de emitir juízo de valor sobre essas afirmações que reforçam este-reótipos e disputas regionais, mas sim de apontar para a maneira como as masculinidades se constroem também a partir das inser-ções regionais e que são essas divisões/hierarquias que vão orga-nizar inclusive a distribuição dos trabalhadores nos alojamentos. Suportar o trabalho duro é um atributo ligado à virilidade, tanto que os trabalhadores são denominados no masculino, como barra-geiros. Assim, essa resistência maior ao trabalho duro – atribuída aos nordestinos – também entra como um elemento importante na construção das hierarquias das masculinidades nesse contexto de trabalho específico.

Ocupar um lugar itinerante, principalmente do ponto de vista dos locais (dos sedentários) se configurava numa posi-ção “marginal” e carregava um sentido pejorativo, a interpelação “os barrageiros” por parte dos/as habitantes das cidades vizinhas comportava uma carga moral de desvalorização e desconfiança. Se por um lado, os trabalhadores aceitavam a designação barrageiros, por outro, a tratavam com deboche, como forma de rechaçar os estigmas colados a essa insígnia e de atenuar/transformar o sen-tido pejorativo que os identificava naquele lugar. Duarte (2009), ao utilizar a denominação “trabalhadores migrantes”, pontua que as relações estabelecidas com o local das obras e os grupos que as compõem necessitam incorporar os efeitos das mudanças cons-tantes e organizar de forma material e imaterial, principalmente na relação com seus locais de origem, suas famílias e seu traba-lho. As pesquisas com populações migrantes, como é o caso dos

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barrageiros, implicam em acompanhar as dinâmicas próprias das trajetórias de vida nas suas conexões com as comunidades que se constroem e descontroem continuamente, adicionando um fluxo distinto da pesquisa se comparada com a pesquisa com populações sedentárias.

A denominação êmica “barrageiros” carrega um caráter per-formático (Butler, 1993, 1997), uma vez que os constrói como sujei-tos trabalhadores amalgamando um conjunto de estigmas em torno desses trabalhadores e que é incorporada por eles de forma parado-xal, pois implica também em estratégias de construção de si a partir de um processo de reversão do estigma. Essa nominação não só se refere às características do trabalho na obra, mas também à insta-bilidade da sua condição de vida marcada pelo trabalho pesado/braçal e o suposto não compromisso e cuidado com o lugar que temporariamente habitam porque estariam sempre em trânsito. O peso da nominação era evidente nos relatos, pois quando na região próxima à obra acontecia algum ato de vandalismo e/ou violên-cia, os moradores locais atribuíam toda desordem aos barrageiros. Tudo que acontece supostamente de ruim eles (os próprios traba-lhadores) se olhavam e diziam rindo: “Quem fez isto? Os barragei-ros! Foi os barrageiros, por que é sempre os barrageiros. Só pode ter sido um daqueles barrageiros” (Diário de campo). As atribuições negativas contidas na designação desses trabalhadores fazem com que eles assumam a defesa dos outros perante pessoas que não são de seu grupo e até ironizem essa condição estigmatizada.

Um dos efeitos dessa partilha entre nômades e sedentários se evidenciava na dificuldade de acesso deles às Unidades Básicas de Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) dos municípios locais e no recebimento de medicamentos e preservativos. Esse processo de exclusão era decorrente de um entendimento equivocado da chamada “adscrição territorial e regionalização” do SUS, que teria como prioridade a população local e não a itinerante. Tudo isso convergia para aumentar a vulnerabilidade do ser “barrageiro”/

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migrante/itinerante, pois eles já ocupavam a posição de margem no contexto da população local. Afinal, sua origem não era de nenhum dos municípios do contorno da obra e esses corpos/essas vidas eram tratados/as como passageiros/as, pois seu destino era “seguir bar-ragem”. No de formulação de políticas de saúde, escolhe-se quem deve ser privilegiado com a atenção à saúde e à segurança. Segundo Foucault (2002), os poderes reguladores operam uma oposição entre o corpo social/burocracia de Estado, perpassando a socie-dade e reinstalando discursos biológicos/racistas. Nesse contexto, os barrageiros, ao mesmo tempo que eram úteis enquanto força de trabalho, não tinham a legitimidade plena de cidadania perante o Estado por não estarem situados dentro de um lugar circunscrito.

Seriam, então, necessárias políticas públicas que dessem maior ênfase às populações itinerantes? Ou poderia se conside-rar os barrageiros como uma “população especial” como algumas minorias que reivindicam seus direitos (como as minorias raciais e/ou sexuais)? Ou rever a própria noção de adscrição de território? O que afinal caracteriza essa população? Como se organiza o traba-lho? Quais suas necessidades específicas?

Conforme algumas histórias de seguidores/as de barragens, quando uma pessoa da família vem trabalhar dentro do canteiro de obras, logo traz e indica conhecidos e parentes. Independentemente de serem profissionais com formação específica ou não, a maioria deles recebe formação profissional de forma informal e/ou regula-mentada no canteiro de obras. Essa formação se relaciona com as hierarquias entre os trabalhadores: eles começam como ajudantes, depois passam a ocupar o lugar de pedreiros e, com alguns anos de experiência, se tornam mestres de obra responsáveis por uma equipe de trabalho, o que faz com que tenham um papel decisivo na escolha das pessoas com quem trabalham. Esse aspecto da orga-nização do trabalho aponta para uma relação intrínseca entre os relacionamentos pessoais e as relações de trabalho. Assim, os que ingressam na obra geralmente são designados peões, que ficam

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sob a chefia de um encarregado e este, por sua vez, é coordenado por um supervisor que geralmente possui conhecimentos técnicos específicos de cada função. Os peões recebem seu pagamento con-forme as horas trabalhadas – por isso são chamados horistas – e ficam nos alojamentos a eles destinados, onde dividem um quarto e dois banheiros entre seis homens. Os encarregados e os traba-lhadores que lidam com maquinário mais específico (operadores) geralmente recebem por mês e têm privilégios nos alojamentos, sendo que cada quarto e banheiro comportam duas pessoas. Os encarregados, por causa da sua posição, podem ser chamados fora do seu horário de trabalho para tomar uma decisão ou resolver algum problema em relação à equipe ou às atividades, precisando assim estar alertas ao que acontece durante as vinte e quatro horas de funcionamento da obra. A maioria dos encarregados e supervi-sores já passou pelo lugar de peão, indicando assim a forma como essa itinerância pode se tornar uma forma de vida que se desenha durante toda a trajetória profissional de alguns trabalhadores.

Ao pensarmos nas relações de poder nesse contexto de tra-balho a partir de Foucault (2007), há necessidade de colocar em suspensão a relação fixa “dominante-dominado”, pois não dá conta de explicar as características que separam os homens nessa cidade. Nem mesmo existe uma diferença salarial significativa entre peões e encarregados, não obstante o fato de ser encarregado preconizar uma estabilidade maior no percurso de seguir essas obras. A renda derivada do trabalho, no período da pesquisa, costumava se situar entre 850 a 2.000 reais conforme a periculosidade da função e dos riscos a que se submetem, bem como das horas extras que faziam e da escolaridade que possuíam. Muitos trabalhadores não traziam sua documentação quando se instalavam no canteiro de obras e a maioria não tinha registro/comprovação da escolaridade. Em razão dessa ausência de documentação – que se constituía em outra característica desse nomadismo – eles prestavam uma prova, uma testagem padrão, a partir da qual costumava ser avaliado o nível de

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escolaridade. Para incrementar a escolaridade eram oferecidos os cursos da Educação de Jovens e Adultos – EJA – na obra. Esse enca-minhamento era feito pelo setor de Psicologia dentro do canteiro de obras, uma vez que existia a exigência de níveis de escolaridade mínimos4 para o desempenho de cada função, por exemplo, para exercer a função de encarregado é necessário ter o ensino médio. Quando a escolaridade não é suficiente eles acabavam executando funções auxiliares. Nestes últimos anos ocorreu nessa obra o fato ter mais vagas do que candidatos no ramo da construção civil para realizar a parte “bruta” da construção mostrando, possivelmente, uma mudança das características da força de trabalho. Não falta-vam supervisores que tivessem escolaridade e soubessem lidar com as questões de engenharia na obra, mas faltavam peões para execu-tar as tarefas mais braçais.

Durante a realização da pesquisa foram entrevistados 15 trabalhadores. Todos eles estavam alojados no canteiro de obras, tinham idades entre 22 e 56 anos, o que demarcava a diferença de gerações, além da experiência de 1 a 30 anos em canteiros de obras; e possuíam um tempo de alojamento na obra que variava de 4 meses até 3 anos (no momento das entrevistas a obra tinha começado há 3 anos e seria concluída dentro de mais 2 anos). A maioria dos entrevistados era casada e possuía uma família que morava em outro local. Foram entrevistados: 3 trabalhadores do Maranhão, 3 da Bahia, 3 do Paraná, 2 do Piauí, 2 de Santa Catarina, 1 do Rio Grande do Sul e 1 de São Paulo. Todos foram acessados por meio da escola: 2 deles estavam no processo de alfabetização ofere-cido pela escola do EJA, 6 frequentavam o Ensino Fundamental e 7

4 A escolaridade mínima exigida para todos os cargos é que se tivesse completado a 2ª série do Ensino Fundamental, ou seja, que os/as trabalhadores/as soubes-sem ler para identificar as instruções e as indicações dentro do canteiro de obra. Contudo, muitos trabalhadores não eram alfabetizados, então, eles assinavam um termo de compromisso se responsabilizando em estudar para manter o emprego.

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frequentavam o Ensino Médio. A continuidade da escolarização era valorizada pela possibilidade de mudança de cargo e salário.

A especificidade da pesquisa, em contexto não tipicamente urbano e com população itinerantes não deixa de ressaltar a função do Estado no controle da população. Para que a cidade temporária pudesse se instalar, como os endereços não são fixos, a exigência de ter documentos se tornava mais importante no esquadrinhamento e direção da conduta da população. Na obra e no contexto das sociedades nacionais modernas, só podemos existir, só somos con-siderados cidadãos e cidadãs, como apontam os estudos de Butler (1997, 2003, 2004, 2009) e Foucault (1988, 2006), ao sermos inter-pelados pela lei. A primeira interpelação é a exigência da certidão de nascimento, pois precisamos ter um nome, já designado como feminino ou masculino. Em segundo lugar, ter uma naturalidade (um local de nascimento). Em terceiro, ter uma atividade profissio-nal. Esses componentes se inscrevem na identidade, no Cadastro de Pessoa Física (CPF no nosso País) e na carteira de trabalho. Mas para trabalhar, faz-se necessário comprovar conhecimentos através da escolaridade, sem contar uma série de documentos que eram produzidos pelas avaliações5 feitas na entrada desses trabalhado-res nesse canteiro de obras. Os documentos conferiam a eles um lugar de sujeito, da mesma forma como os blocos e os quartos dos alojados também possuiam números, bem como os crachás iden-tificatórios utilizados no canteiro de obras. A seguir analisaremos os relatos e as observações buscando identificar as especificidades dessa população, sobretudo, como a hierarquia das masculinidades se constituiu nessa cidade de homens nômades.

5 Para entrada no canteiro de obras são realizadas avaliações médica, psicológica e técnica.

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Composição da pesquisa – blocos de concreto, vigas e compensados

Toda obra de uma usina hidrelétrica passa por processos de modificações/(des)construções através de escavações, explosões de rochas, abertura de estradas, alagamento de áreas. Ao mesmo tempo, vai-se estruturando uma construção, não só civil, mas humana. Os homens trabalhadores que se encontram nesse espaço vão construindo as formas como performam as masculinidades, as quais trazem na sua composição uma série de elementos que são edificados pelas formas como eles exercem a profissão, a sexuali-dade, se relacionam com o próprio corpo, com os colegas de tra-balho e de alojamento e com a paternidade, entre outros aspectos.

Pensar como se dão as construções das masculinidades dentro dos jogos de verdade de uma determinada época e local implica inicialmente em definir o que entendemos por gênero. Judith Butler (1997) entende gênero como algo que performamos em um contexto social marcado por relações de poder específicas, pois para nos tornarmos inteligíveis devemos emergir como sujei-tos generificados. E para cada gênero, atributos são designados/constituídos de/pela cultura, os quais, apesar de serem sugeridos ou impostos pelo regramento de gênero, também são contestados e reinventados no interior dos jogos de poder e verdade que marcam cada contexto específico. Assim, partimos do pressuposto de que as masculinidades são construídas e sujeitas às relações de poder no interior das quais emergem. Nesta análise fizemos uma esco-lha teórica baseada nos estudos que consideram as masculinidades como plurais (Rodriguez, 2006; Seffner, 2006; Connell, 2003, 2006; Clímaco, 2008). Essa escolha buscou ser coerente com o trabalho de campo, uma vez que de acordo com os relatos dos trabalhado-res barrageiros, existem atributos masculinos que classificavam os homens em “mais machos”, “menos machos” e, também, “aqueles que não querem ser machos” (Diário de campo).

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Em duas entrevistas, mais especificamente, surgiu esta divi-são de homens: os “mais machos” e os “menos machos”. Os “mais machos” estariam ligados à lógica heteronormativa da masculini-dade tal como concebida por Connell (1995) como a masculinidade hegemônica, ou seja, caracterizada por uma virilidade dominante e heterossexual. E os “menos machos” que estariam relativamente em desvantagem em alguns aspectos, mas que se utilizavam de outros atributos das masculinidades para se sustentar no lugar de homem como, por exemplo, os papéis de trabalhador honesto e provedor responsável.

O trabalho e as formas de organização desses homens mos-traram que o canteiro de obras se constituía em espaço significativo onde se configuravam formas de ser homem/trabalhador/prove-dor, mesmo que, em boa parte das situações, eles estivessem dis-tantes das mulheres e filhos/as. Nessas situações, a importância do trabalho como forma de sustentar a família e resistir às tentações do recurso à prostituição ou dos relacionamentos extraconjugais balizava diferentes masculinidades. Cabe ressaltar que nem todas as atribuições associadas às masculidades emergiam nos enuncia-dos de forma uniforme. Assim, quando os homens/trabalhadores entrevistados eram interrogados sobre como era viver numa cidade de homens, uma das primeiras questões que apareciam era de que o canteiro constituía-se em um lugar voltado para o trabalho e a disciplina e, por essa razão, o exercício da sexualidade precisava ser vigiado e deveria ser suspenso. Por essa razão os relatos enfatiza-vam que a necessidade de buscar relações sexuais deveria ser exer-cida fora da cidade de homens.

Nos relatos e na forma de organização da cidade temporá-ria existiam delimitações físicas e morais buscando garantir que a sexualidade ficasse do lado de fora dos muros do canteiro de obras. Concomitantemente à contenção, existia a exaltação de uma sexu-alidade que deveria ser praticada de maneira ativa, aliviando a pres-são do “instinto” do macho. Essa sexualidade deveria ser regulada

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não só pelas normas das instituições do trabalho e da família, mas fundamentalmente pelo risco de comprometimento do salário. Essa relação é tão forte nos relatos que as casas de prostituição no entorno da obra eram chamadas de “foias”, porque ali ficava depo-sitada uma parcela significativa da “folha de pagamento”.

Essas trajetórias genereficadas, como mostrou a tese de Leal (2008) sobre os caminhoneiros, se assemelham aos riscos da itinerância na vivência da sexualidade dos barrageiros, onde o deslocamento espacial os coloca em diferentes universos (Duarte, 2009; Detoni, 2010), os quais se reconfiguram para acolher esses trabalhadores. Instalam-se assim, nas proximidades da cidade temporária uma série de serviços que estão associados à manuten-ção da masculinidade hegemônica, sobretudo, o trabalho sexual de mulheres e o acesso ao consumo de bebidas alcoólicas, as quais se configuram como formas de lazer. Como dissemos anteriormente, essa população de homens, por não compor as estatísticas da popu-lação local, não é alvo das políticas de prevenção, o que faz com que seja vítima de uma dupla vulnerabilidade, ou seja, tanto progra-mática (pela ausência de programas e serviços) como individual, uma vez que a masculinidade hegemônica está ligada ao necessário exercício de uma sexualidade viril e da ideia que o sexo heteros-sexual protege da contaminação pelo HIV. Connell (1995) já rela-cionava a masculinidade hegemônica com a epidemia da AIDS no final da década de 1980. Tanto que a Política Nacional voltada para as DSTs/AIDS (Brasil, 1999) lista as seguintes populações na matriz de risco e vulnerabilidade: pessoas presas, usuários de drogas inje-táveis, profissionais do sexo, caminhoneiros e garimpeiros (Leal, 2008). Nos relatos sobre as experiências sexuais dos barrageiros, encontramos similaridades com os modos de vida de garimpeiros, como Barrientos (2005) e Eckert (2001) descreveram, e também dos caminhoneiros de Leal (2008). As práticas sexuais, nestas pes-quisas, são associadas às condições precárias de trabalho à falta de atendimento de saúde voltado para esses contingentes masculinos

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em deslocamento. Afinal, como já afirmamos, as intervenções e propostas de intervenção não incluem esses sujeitos itinerantes, apesar de sabermos que as relações sexuais respondem por 58% dos casos de AIDS em homens (Medrado, 2004).

Os barrageiros mencionaram riscos associadas ao recurso da prostituição, além do fato de sua mobilidade possibilitar relacio-namentos extraconjugais. Nos relatos, a possibilidade da “traição” da esposa e/ou namorada implicaria em riscos ligados às doenças sexualmente transmissíveis, mas em momento nenhum falaram de como poderiam se cuidar, se prevenir. Assim, a contaminação parece estar mais associada a um risco moral do que às relações sexuais não protegidas. A referência ao sexo protegido só emerge nas falas de profissionais da saúde presentes no canteiro de obras e nos treinamentos e das campanhas ministrados pelo GAPA (Grupo de Apoio aos Portadores da AIDS). A dificuldade de lidar com a sexualidade no canteiro de obras perpassa também os/as profissio-nais de saúde do canteiro de obras, uma vez que nas campanhas, além das informações sobre o uso do preservativo, também se ressalta o direito dos trabalhadores em buscar o preservativo nos postos de saúde, uma vez que o ambulatório médico da obra não dispõe de preservativos para todos. Esse aspecto reforça o que já afirmamos de que tanto para os/as responsáveis da empresa como para os trabalhadores existia uma separação nítida entre trabalho e sexualidade, assim, em um ambiente homossocial heteronorna-tivo, a sexualidade deveria ser situada fora da obra. Contudo, em nosso último período de trabalho de campo, evidenciamos que a lanchonete/mercado ligada ao canteiro de obra estava vendendo preservativos, o que não acontecia antes. Ao perguntarmos a razão da venda, nos foi relatado que esse foi um dos pedidos do setor de Psicologia e do ambulatório médico, o que pode ter sido um efeito gerado por nossas perguntas sobre a questão no decorrer da observação participante. Embora não possamos afirmar, podemos

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inferir que a atividade de pesquisa permitiu desnaturalizar a dico-tomia trabalho no interior do canteiro/sexualidade fora.

Tomando como princípio epistemológico que toda pes-quisa é uma intervenção (Rocha & Aguiar, 2003), o fato de termos realizado entrevistas e também feito a devolução das observações produziu a reflexão nos trabalhadores e administradores/as sobre aspectos naturalizados no contexto do canteiro de obras. Como os enunciados sobre as formas de ser homem viril apontavam para uma valorização do risco implicando em atividades de trabalho sem a proteção de equipamentos, essa virilidade mágica que pro-tegeria do trabalho também se repetia como forma de “proteção mágica” nas relações sexuais. O que tensionava posições da organi-zação desse espaço nos casos de busca de aconselhamento com os/as profissionais de saúde dentro da obra em casos, por exemplo, de sintomas de DSTs e necessidade de assumir outra paternidade fora do casamento e retornar para sua família, movimentos esses que resultavam em abandonos do trabalho.

Durante a pesquisa um modelo de homem viril, forte, cora-joso e sempre disposto sexualmente foi o que mais se apresentou, entretanto, o homem que se orgulhava de controlar desejos eróti-cos em respeito à família, à religião e a si mesmo, também estava presente. Assim como, embora de forma não verbalizada, obser-vamos a presença de adereços típicos femininos dentro dos aloja-mentos masculinos como esmaltes e maquiagens. O que possibilita pensar que outros jogos e performances de gênero poderiam acon-tecer sem ser verbalizados ou, ainda demarcando formas de manter a hierarquia da masculinidade em brincadeiras como, por exemplo, de pintar as unhas dos “menos machos” ou dos que “não querem ser machos”. Formas essas que buscavam ensinar e marcar o que é e quem pode ser homem.

Além disso, existiam masculinidades que não emergiram nas entrevistas de pesquisa, mas que apareceram nas observações

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durante as conversas na hora do almoço e que apontam para a exis-tência de práticas homoeróticas dentro do canteiro de obras. O que trouxe à tona a discussão da temática, durante a devolução da pes-quisa, que conseguiu apontar a existência de relacionamentos não heterossexuais. Estes, entretanto, ocupavam um lugar marginal e deveriam seguir mais fortemente as recomendações para todos nas prescrições trabalhistas institucionais de que não se deve misturar sexualidade e trabalho, ou seja, um corpo para o prazer e outro para a labuta.

Seguir barragens: aprendendo masculinidades para trabalhar e morar no mundo

Começar a “seguir barragens”, como o caso de alguns traba-lhadores entrevistados que estão na sua primeira obra, é uma posi-ção desconfortável, o iniciante às vezes é referido como “cabaço” na obra. Cabaço é a expressão pela qual estes trabalhadores chamam os novatos ou aqueles sem muita experiência, o que designaria sua inferioridade, pois cabaço seria coisa de mulher e, portanto, uma posição abaixo daquela ocupada pelos mais machos. Os cabaços estariam ainda aprendendo as regras do saber tácito no trabalho na construção de barragens e também os modelos de virilidade. A virilidade aqui está ligada a sua função na hierarquia do trabalho e não às regras da ética do trabalho, como ética do provedor, a qual esteve associada historicamente, no Brasil, às atribuições mascu-linas (Jardim, 2001; Nardi, 2006). Nesse plano dos cabaços e dos que descabaçam, a alusão sexual é evidente, pois perder o cabaço é perder a virgindade. Encontramos aqui a lógica descrita por Daniel Welzer-Lang (2001), quando afirma, a partir do trabalho de Maurice Godelier, que a casa dos homens (nossa cidade dos homens) marca um lugar de aprendizagem da dominação das mulheres e que essa aprendizagem passa pela dominação/violência de homens sobre outros homens, reproduzindo uma hierarquia das masculinidades.

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Seguir barragens também implica em trabalhar e morar no mesmo lugar. Os alojamentos costumam ser organizados conforme a afinidade e pelo fato desses homens já se conhecerem de outras obras, mas o fator mais importante para tal organização ainda se refere aos estados (locais) de origem. A partir daí, pode-se perceber como as divisões territoriais organizam as populações e subjetivam esses trabalhadores, ainda que eles estejam literalmente fora dos contextos delimitados pelas regiões e estados do País. Os grupos vão sendo organizados primeiramente de acordo com a regiona-lização, além de haver uma hierarquia central daqueles que têm mais tempo de obra. Então, cabe aos novatos, além desse esforço de inclusão, seguir as regras da empresa, que são, basicamente, evi-tar barulho, não usar bebidas alcoólicas e substâncias psicoativas nos alojamentos, e manter o ambiente limpo. Além dessas regras e da forma como as normas próprias de cada quarto são combina-das, é preciso seguir as prescrições dos mais velhos. Então, quem chega depois precisa se adaptar às combinações anteriores de cada quarto. Como apresentam estas falas: “Eu sou acostumado, não tem mais problema não. O problema é assim, nós estamos em seis cada quarto, e hoje um sai entra outro, um que a gente não conhece, e até adaptá com ele, ele se adaptá, domesticá ele, né? (ri)” (Entrevistado 2). “O último que entra, entra na regra. Obedece a regra que já tá, que já tá funcionando, que já tá seguindo” (Entrevistado 4).

As relações hierárquicas e de dominação também são atra-vessadas por relações de solidariedade, mais horizontais, as quais se constroem nos alojamentos, pelo tempo de convívio que, às vezes, é marcado por anos de trabalho, interrompidos somente entre uma construção e outra. Alguns barrageiros até dizem que ali é que se encontra a sua primeira ou segunda família. Contudo, existem homens que não conseguem estabelecer esse tipo de rela-ção. Nessas situações se reproduzem jogos de dominação onde um é considerado superior ao outro, construindo categorias que os classificam como “mais machos” e “menos machos”, como já foi

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apontado. Esses jogos são marcados pelas “brincadeiras” e formas pejorativas pelas quais alguns homens denominam outros como forma de fortalecer sua dominação nos grupos e “ensinar” a ser homem como eles, ou seja, aguentarem o trabalho duro, o desloca-mento geográfico e cultural, somado à falta da família.

Os trabalhadores entrevistados evocaram e diferenciaram suas regionalizações como marcadores de si – “lá em tal lugar (principalmente no Piauí e no Maranhão) as relações se dão de tal maneira, aqui (no canteiro) é diferente”. Como dissemos, esses homens alojados não estão aleatoriamente dispostos nos quartos. Eles se distribuem conforme suas origens regionais e seus postos de trabalho. Nos relatos a seguir eles mostram que existem vários tipos de homens alojados segundo os marcadores sociais que ocu-pam, como neste caso em particular, a regionalização: “[...] se lida com gente que você não conhece. Você tem que ter um controle muito, muito grande mesmo. Em lidá com gente de todo o tipo, de todos os lugares, de todas as nações. Alojamento às vezes tem, cada lugar, cada país é de um jeito. [...] Morá aqui é bom, é que tem muita gente que tem problema de colega de quarto, daí você tem que lidá, que nem eu falo com você, tem gente de todos jeitos. Eu vim com gente conhecida, mas fiquei em outro quarto, devia tu ficá com quem tu já conhece pra você falá a mesma língua da pessoa. Não é fácil vivê com gente do Paraná, da Bahia, não sei da onde, não sei dá onde... E aí você tem que ter muita calma, muita calma, por isto tem gente que perde a cabeça, dá uns ‘esporros’ e vai embora. Mas eu, graças a Deus, pelo menos no quarto que eu moro um colega meu lá é maranhense e a gente se dá bem” (Entrevistado 15) .

Essa fala carrega as diferenças de cada estado do Brasil, os quais tomam para o entrevistado a dimensão de nação, pois exis-tem diferenças culturais importantes entre esses homens alojados, inclusive na forma como se expressam e se comunicam, e esse é um fator que provoca atritos dentro dos alojamentos, como a defesa de cada um por seus costumes, por vezes em detrimento dos outros.

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Uma mostra disso são as disputas de volume de som entre músicas regionais no horário permitido. Eles travam uma competição entre os ritmos regionais: um bloco ouve sertanejo, outro forró e pagode; outro aprecia as músicas gauchescas, tudo isso junto aos sons dos violeiros e gaiteiros que fazem parte do grupo de trabalhadores.

Por mais que exista uma tentativa entre os trabalhadores barrageiros e da própria administração dos alojamentos em orga-nizá-los conforme uma divisão regional, nem sempre essa distribui-ção é possível, uma vez que precisa haver adequação às demandas de trabalho. Os contratos – “fichamentos” – vão ocorrendo e nem todos conterrâneos chegam juntos, como evidencia esta fala: “É meio complicado por que é seis homens em um quarto assim, seis culturas, seis estados, várias culturas diferentes. Às vezes a gente encontra parceiro agradável” (Entrevistado 12).

Lidar com as diferenças regionais que ficam expressas nas músicas, na alimentação, no vestuário, nas diferentes formas de organizar o quarto. Tudo isso gera uma série de disputas entre esses homens no espaço de moradia. É interessante a comparação do alojamento com colégios internos, quartéis e outros lugares que vão fazendo essa conexão de deslocamentos conforme o gênero. Partindo da comparação da escola-internato descrita por Foucault, podemos pensar como se organizam os alojamentos e de como esses corpos são distribuídos nos espaços destinados à lógica da produção (Foucault, 2001, p. 24):

[...] ao mesmo tempo as arquiteturas, as disposições dos lugares e das coisas, a maneira como se arrumam os dor-mitórios, cuja vigilância é institucionalizada, a própria maneira como se constroem e se dispõem no interior de uma sala de aula os bancos e as carteiras, todo o espaço de visibilidade organizado com tanto cuidado (a forma, a disposição das latrinas, a altura das portas, a calçada aos cantos escuros), tudo isto, nos estabelecimentos

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escolares, substituí – para fazê-lo calar – o discurso indiscreto da carne que a direção de consciência impli-cava. [...] tanto mais silenciosa, quanto mais vigoroso o policiamento do corpo [...] fala-se o mínimo possível, mas tudo, na disposição dos lugares e das coisas, designa os perigos desse corpo de prazer. Dizer dele o menos possível, só que tudo fala dele.

Os alojamentos são lugares de vigilância desse corpo fabril, as masculinidades ficam cerceadas não só pelas regras institucio-nais, mas também pelas prescrições internas constituídas pelas combinações desses homens, seja especificamente nos seus quar-tos, seja nos blocos ou áreas de circulação coletiva. E ali se dão as condições de possibilidades de construção das masculinidades, pois ali se aprende a ser homem, a partir de diferentes culturas, de modelos de homens, de barrageiros.

Como viemos discorrendo, a maioria desses trabalhadores interpelados como barrageiros são do Nordeste e vêm seguindo essas obras em busca de oportunidades de emprego e melhores condições de vida. Os alojamentos, tanto internos quanto externos, nos quais se instalam, são elementos centrais para a vinda desses homens, e esses lugares configuram a construção de sujeitos, o que muitas vezes possibilita outras condições de vida, como fica expresso na fala deste entrevistado baiano: “[...] Tem alojamentos que têm muitas pessoas, eu vi casos que teve pessoas que chego aqui até chorô quando viu o padrão de vida daqui, até chorô, o pessoal lá da minha terra, que tu tem a família e não tem nem comida pra comê. O alojamento aqui é muito bom, cada quarto aqui, até o alojamento dos peão tem dois banheiro em cada quarto, suíte dentro dos quartos, cama boa, col-chão bom, o piso é muito bom. Tem lugares que é muito pior, eu já trabalhei em empresas que tem que dormi no chão, colchãozi-nho fininho, comida malfeita por pessoa que não tinha condições nenhuma de fazer comida. Você vai aqui, você vê o refeitório que é

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maravilhoso. Assim os alojamentos aqui é maravilhoso, só falta ar condicionado nos quartos” (Entrevistado 10).

No contexto da busca de melhores condições de vida e tra-balho, o lugar do provedor é enunciado quando se fala nas rela-ções familiares, sempre tendo em foco que a maioria deles tem uma família que mora longe, assim a função do trabalho emerge como possibilitadora do sustento para a família distante. Nem todos entrevistados formaram ou “fizeram” uma família como eles dizem, mas a maioria dos entrevistados assim se constitui, como por exemplo: “fiz minha família no Paraná (Entrevistado 5), no Ceará (Entrevistado 2), na Bahia (Entrevistado 10).” O fato de cons-tituírem uma família com esposa (um casamento não formal, com filhos/as) os torna legitimamente homens. Aos solteiros ou àqueles que estão namorando cabe seguir o script esperado para essa mas-culinidade que se institui dentro da matriz heteronormativa.

A forma como a instituição família é regulada e se mantém pelo tempo, mesmo com mudanças estruturais, faz com que ainda o homem seja reconhecido como o responsável pelo sustento dessa família e em especial desses/as filhos/as (Lyra, 2004). Quando esses trabalhadores falam da masculinidade, precisam mencionar as suas famílias e a saudade que sentem delas e o quanto essa constituição de família os produz enquanto sujeitos. Conforme relatam alguns entrevistados, exercer a “paternidade à distância” é um elemento essencial. Eles o fazem através dos telefonemas e/ou via internet pelos aconselhamentos feitos aos/às filhos/as. E essa paternidade reafirma o papel de homem no canteiro de obras, o que justifica inclusive a superação das dificuldades encontradas no trabalho. Alguns trazem a família, mesmo sabendo das dificuldades da famí-lia em se adaptar em diferentes lugares. Outros preferem que a família não os acompanhe, porque isso implica no deslocamento e na adaptação da esposa e dos/as filhos/as na escola. A hierarquia dos postos de trabalho também influencia na distância da família. Geralmente os encarregados ou supervisores trazem as famílias,

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por contarem com um suporte financeiro mais estável (pois não são horistas) para poder manter os gastos com a mudança e com a adaptação das mesmas.

É importante destacar que os barrageiros em razão da itine-rância constroem uma ideia de família que não é a nuclear, o grupo de trabalho é como uma extensão da família tradicional e mesmo uma reprodução dessa família na obra, que se configura pelas rela-ções de solidariedade que se estabelecem entre os trabalhadores mais antigos e funciona como suporte material e afetivo que per-mite lidar com as dificuldades da mobilidade. As falas a seguir posicionam esse lugar de uma família estendida que se forma no seguimento de uma obra após a outra, e que eles vão construindo ao construírem a si mesmos: “Longe de casa, longe da família, a gente que vem do norte e vem pra cá e não tem como passá, têm os ami-gos que a gente se vê, é como irmão, como a família da gente, é que vai acostumando, mas nunca é como uma família, vai mudando, por exemplo, tem pessoas que eu nunca vi e vai chegando, vai mudando. A gente acostuma” (Entrevistado 8).

Apesar da rotatividade de pessoas, algumas delas sempre se mantêm acompanhando as outras. Então, enquanto acompa-nhávamos o cotidiano desses/as trabalhadores/as, percebemos a proximidade entre eles, tanto durante as refeições ao se cumpri-mentarem como quando no ônibus quando cantavam as músicas ao se deslocar, músicas que formavam as trilhas sonoras de deter-minada obra, como se a nostalgia fizesse parte da reafirmação desse lugar de barrageiros. Eles se conhecem e se reconhecem e vão tornando aquele lugar da obra um lugar possível para existirem e se constituírem como sujeitos, para explicar a dimensão de percorrer esse itinerário de “seguir barragem”, “trabalhando e morando pelo mundo”, como nos descreveram os entrevistados.

Como apresentamos ao longo do texto, as análises com-puseram-se de elementos que tomam partes fundamentais da

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edificação dessas masculinidades: a atividade sexual heterosse-xual; o trabalho pesado e arriscado ligado à construção civil; a con-vivência nos alojamentos; a relação de prover a família e de assumir o lugar da paternidade; a corporeidade masculina e as relações de amizade/solidariedade que se constroem durante o processo de ir percorrendo as construções dessas obras – “seguindo barragens”. Visualizamos diferentes modos de ser homem, apesar de existirem modelos hegemônicos de masculinidade conectados à matriz hete-ronormativa que reproduzem as hierarquias do masculino e as rela-ções de dominação, estas são tensionadas e reformuladas quando conectadas aos diferentes marcadores sociais, à época, ao local e às relações que se estabelecem dentro da continuidade e da estabili-dade que existe na itinerância dos/as seguidores/as de barragens (Detoni, 2010).

Nessa direção, buscamos abordar a vida desses homens alo-jados que se deparam com incertezas sobre o que vão fazer quando a construção acabar. Para que lugares irão? Como vai ser esse outro lugar? A partir das conversas informais no campo, pudemos per-ceber movimentos para outra obra. Então eles diziam um ao outro e até para a pesquisadora que estava ali por um período curto: “Quem sabe nos encontramos na [obra tal]6?”. Essa frase fala da continuidade daquele espaço que é referência para a produção des-ses sujeitos, mesmo que alguns trabalhadores acabem voltando por um tempo para suas famílias e depois voltem a “fichar” e “seguir barragens”, como aparece nesta fala: “[...] eu saio e volto, saio e volto” (Entrevistado 2).

Para que essa obra e essas vidas fossem/sejam possíveis, há um processo quase que contínuo de construção, desconstru-ção e reconstrução. O termo construção de masculinidades per-mite explicitar o que o campo trouxe, pois, ao mesmo tempo que

6 Usamos “obra tal” para não identificar o local, mas tratavam-se de duas obras que estavam em fase inicial no Norte do País.

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existe a manutenção das perfomances masculinas hegemônicas, elas sofrem tensões, oposições e reestruturações. É impossível ser um homem com todos os atributos conferidos ao ideal de mascu-linidade/virilidade. Por exemplo, não há como frequentar assidua-mente “as foias” – as casas de prostituição – e ser um bom provedor. Comprovar a virilidade é mostrar-se mais homem diante dos outros homens, especialmente pela atividade sexual, mas não só por ela, mas também ao se arriscar e testar a força no trabalho perigoso da construção dessa usina hidrelétrica, assim como provar que resiste às tentações e mantém a fidelidade à esposa. As masculinidades que constroem e, ao mesmo tempo, são construídas por esses barrageiros/migrantes/itinerantes são hierárquicas, mas também heterogêneas, assim como os canteiros de obras.

O trabalho por si só está em constante (re) produção e transformação. Contemporaneamente traz o desenraizamento dos sujeitos como parte do processo neoliberal (Castel, 1998), como se a mobilidade se constituísse como natural e universal. Ainda, temos como elementos centrais para a caracterização deste trabalho espe-cífico na construção de barragens as disputas que percorrem os âmbitos territoriais, culturais, políticos e profissionais como aque-les que se referem às questões ambientais e a proteção da popu-lação local, emblematicamente representadas pelo Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB. Nessa disputa política não se visibilizam os sujeitos que percorrem essas obras que também tra-zem suas memórias e precisam reinventar suas identidades atra-vés desses deslocamentos e que são estigmatizados pela condição nômade, entretanto, não há espaço para que essa tensão seja traba-lhada neste texto.

Terminando a obra: a pesquisa e a itinerância

A pesquisa com populações itinerantes mostra como as ter-ritorialidades se refazem e reproduzem disputas e hierarquias nos

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coletivos de trabalhadores. As masculinidades, nossa questão de análise, se constroem/são reiteradas nesses lugares. A desnaturali-zação das posições “sedentárias”, evidentes nessas cidades tempo-rárias, de certa forma, escancara as categorias que organizam a vida urbana e povoam nossas formas de pensar e fazer pesquisa. O que encontramos não é o mesmo, mas é povoado pelo mesmo. A busca de se re-construir e de se sustentar como sujeitos nesses espaços outros torna possível visibilizar elementos da construção das vidas e das masculinidades bastante naturalizadas em nosso cotidiano. Esses cotidianos que reiteram a norma de gênero e as hierarquias sociais, no contexto da itinerância, são obrigados e se refazer a cada nova obra. Ao se reinstalar eles evidenciam seu caráter socialmente construído, permitindo com que compreendamos de forma mais clara, por vezes, as regras que nos constituem.

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Mulheres e psicotrópicos: subjetivação e resistência

em trabalhadoras rurais assentadas

Nathália Nunes e Araújo Rebeca da Rocha Siqueira Nepomuceno

Rafael de Albuquerque Figueiró Leonardo Cavalcante de Araújo Mello

Introdução

A discussão que propomos neste capítulo é resultado de um trabalho de conclusão de curso realizado por estudantes de

Psicologia no ano de 2011, em um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A discussão centra-se no debate a respeito dos processos de singularização que permitem novos modos de existir em um grupo de mulheres do assentamento Resistência Potiguar, com foco no modo como elas se relacionam com a saúde, particularmente no que se refere ao uso de medica-mentos psicotrópicos. O assentamento escolhido para a pesquisa

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está localizado no município de Ceará-Mirim, no estado do Rio Grande do Norte.

A pesquisa teve duração de três meses e contou com a cola-boração de 33 mulheres, as quais concederam entrevistas semies-truturadas e participaram de três rodas de conversa. Foi através da observação participante e da análise da fala das participantes que pudemos refletir sobre as estratégias de enfrentamento das dores e problemas cotidianos, bem como sobre os modos de vida experien-ciados naquela comunidade.

O capítulo versa, a partir da ótica da Análise Institucional (Baremblitt, 1992), sobre como determinados modos de vida e estratégias de cuidado, com especial foco na saúde, se colocam como potencializadores de uma condição de sujeitos protagonistas de seus cotidianos, a partir das noções de autoanálise e autogestão. Para essa discussão, serão trazidas à tona vozes de autores que dia-logam sobre os processos de medicalização em nossa sociedade, e formas de resistência a esse processo, numa perspectiva de que esses atores se reapropriaram de um saber sobre si, sobre seu cole-tivo, que em algum momento histórico lhes foi negado, lhes foi adjetivado enquanto saber falso.

Dessa maneira, esse capítulo se apresentará em três momen-tos. No primeiro será feita uma discussão acerca dos modos de vida na sociedade contemporânea e os seus atravessamentos no con-texto rural, em especial, em contextos em que há um movimento de militância social presente. Em seguida, será discutida a experiência da pesquisa que fundamentou esse ensaio, buscando evidenciar as ferramentas teórico-metodológicas utilizadas pelos pesquisadores nesse processo investigativo/interventivo, e, no terceiro e último momento, apresentaremos o que consideramos alguns resultados, frente ao que inicialmente propomos. O texto inteiro é uma cos-tura que mescla a fala de algumas mulheres do contexto investi-gado com o diálogo com autores que compõem nosso arcabouço

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teórico-metodológico, além de contar também com sensações e experimentações dos pesquisadores/autores.

Os modos de existir na sociedade contemporânea

Ao refletirmos sobre o momento atual de nossa sociedade, é impossível não nos afetarmos com a rapidez dos processos, das transformações, e da própria vida. Bauman (2009) relaciona o ime-diatismo de nossa sociedade contemporânea com o que ele chama de “vida líquida”. Na sociedade líquido-moderna, as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes por-que as condições de ação e estratégias de reação envelhecem rápido demais, tornando-se obsoletas: nada mantém a forma por muito tempo. Aqui a vida é precária, pautada por incertezas constantes. Essa mesma sociedade líquida promete uma felicidade fácil, “que pode ser obtida por meios inteiramente não heróicos e que devem estar, tentadora e satisfatoriamente, ao alcance de todos (ou seja, de todo consumidor)” (Bauman, 2009, p. 65).

Relacionamos isso ao que Pelegrini (2003) fala acerca do imediatismo dos tempos atuais, que está associado ao sucesso dos medicamentos, de modo que predomina, agora, sob a ordem do imediato, a exigência de se alcançar, o mais rápido possível, o modelo ideal. Em 1930, por exemplo, não se via tamanha busca por substâncias entorpecentes (Canabarro & Alves, 2009), o que coloca em debate o atual funcionamento de nossa sociedade. Nessa urgência, o processo, antes de constituir-se em trajetória para uma meta, passa a ser vivido como obstáculo a ser superado, fazendo surgir, dessa forma, a droga como solução viável. Diante disso, os medicamentos psicotrópicos passam a ser utilizados como formas de “livrar-se” das dores e aflições desse novo modo de vida da socie-dade contemporânea.

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Noto e Galduróz (1999) discorrem sobre o uso de drogas psi-cotrópicas e a prevenção no Brasil, dando destaque às diferenças de padrão de consumo entre homens e mulheres, contexto no qual as drogas ilícitas, especificadamente, a maconha e a cocaína são mais consumidas por homens, e os medicamentos psicotrópicos (ansio-líticos, anfetaminas etc.) são preferidos pelas mulheres.

Sobre o significado do uso dos medicamentos para as mulhe-res, Carvalho e Dimenstein (2004) afirmam que a recorrência a essa estratégia representa algo imprescindível no enfrentamento de seus problemas, o que explica o alto consumo. O ansiolítico, segundo as autoras, funciona como um vigia permanente do desespero des-sas mulheres, passando a ser um instrumento na luta contra suas angústias e desequilíbrios emocionais. Podemos pensar, então, que o significado do uso de medicamentos psicotrópicos, muitas vezes, gira em torno da falta de capacidade que elas avaliam não ter diante dos problemas diários, o que as leva a procurar um recurso encora-jador ou algo para esquecer.

Na visão de Tavares (2009), por meio da medicalização irres-trita, objetiva-se silenciar a voz do sofrimento, remediando os sin-tomas visíveis, desconsiderando a dimensão simbólica e subjetiva dessas formas de mal-estar. Nesse sentido, frente a essa sociedade silenciadora, esses indivíduos vivenciam o mais forte sentimento de desamparo, constituindo-se, em um modelo identitário, no qual as revoluções encontram-se enfraquecidas.

Mastroianni et al. (2008), numa análise do conteúdo de pro-pagandas de medicamentos psicoativos, constatam que os medica-mentos antidepressivos constroem uma ideia de depressão como uma sintomatologia feminina, bem como nas propagandas de ben-zodiazepínicos, medicamentos com propriedades ansiolíticas e hipnóticas. Já a imagem de homens adultos ou idosos, geralmente, aparecem nas propagandas de medicamentos neurolépticos. Essa representação tendenciosa e estereotipada da mulher ocasiona

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a formação de um protótipo de depressão e de ansiedade, o que pode levar os médicos à “patologizarem” suas pacientes enquanto depressivas e ansiosas, quando elas estão, na verdade, com proble-mas circunstanciais e/ou transitórios. O apelo das propagandas de medicamentos, conforme concluiu esse estudo, é refletido na prescrição médica, conduzindo ao viés de distúrbios mentais e de gênero, bem como a supermedicalização das doenças mentais.

No meio rural, as discussões no tocante a saúde mental apontam que o sofrimento psíquico dos agricultores tem sido uma realidade (Domingues, 2007). A questão do sofrimento psíquico no meio rural tem sido debatida já há algum tempo no cenário acadê-mico. Segundo Levigard e Rozemberg (2004), no leque de proble-mas de saúde dos trabalhadores rurais, a queixa de nervoso tem sido comum, corroborando as estatísticas mais gerais da sociedade. Ainda segundo os autores, as recentes mudanças ocorridas no campo, com a extinção da policultura e sua consequente desterri-torialização e falência de inúmeros agricultores, colaborou para as mudanças nos padrões de morbidade e mortalidade da população rural, incluindo aqui o aumento de doenças mentais em trabalha-dores rurais.

Diante de tal contexto, o uso de medicamentos (calmantes) entre trabalhadores rurais vem sendo apontado como problemá-tico no campo da saúde (Rozemberg, 1994; Levigard & Rozemberg, 2004). De acordo com Rozemberg (1994), em pesquisa realizada com agricultores foram encontradas 26 marcas de fantasia de drogas de ação no sistema nervoso central em apenas 28 pessoas entrevistadas.

Assim, frente às angústias contemporâneas, o uso de algum psicofármaco parece ser a solução mais interessante, aliviando nossas principais preocupações (Canabarro & Alves, 2009). Como consequência, temos uma diminuição da capacidade de autonomia das pessoas diante da maioria das situações de dor e sofrimento,

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desligando-as da vida do sujeito, reduzindo a mero problema orgâ-nico (Tesser, Neto & Campos, 2010), constituindo assim, um pro-cesso de medicalização social.

A medicalização social se caracteriza por essa expansão do campo da biomedicina, transformando experiências e comporta-mento humano em problemas médicos (Tesser, 2006).Trata-se de um fenômeno que se caracteriza pelo uso insdiscrimado de psico-trópicos diante das dificuldades e angústias contemporâneas. De uma maneira geral, podemos dizer que se trata de um processo complexo, que transforma vivências e sofrimentos (antes adminis-trados de outras maneiras) em necessidades médicas (Tesser et. al., 2010). Apesar de geralmente estar centrado na profissão médica, a medicalização não se restringe a ela, podendo estar em todas as profissões de saúde capazes de categorizar sofrimentos em diag-nósticos e oferecer explicações naturalizantes (Tesser et. al., 2010).

Poderíamos pensar, considerando o que expusemos a res-peito do papel do medicamento dentro da sociedade, que as subs-tâncias psicotrópicas podem agir na vida dessas mulheres como inibidor das suas capacidades de refletir e pensar sobre seus modos de vida, visto que fazer o uso dessas substâncias representa uma escolha por um modo singular de lidar com a dor, o qual exclui outras formas de enfrentamento.

O uso demasiado de psicotrópicos contribui para a perda da capacidade de refletir – tanto dos profissionais de saúde quanto dos próprios usuários – sobre outras possibilidades de tratar esses problemas. Nessa ótica, podemos pensar que os psicotrópicos também fortalecem o engessamento da profissão do médico, limi-tando-a a um modelo técnico de cuidado, que exclui contemplar outros modelos de atuação.

Seguindo esse raciocínio, articulamos o nosso problema de pesquisa em torno de uma problemática que já foi explorada através outras pesquisas: o uso de psicotrópicos.Optamos por investigar a

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dinâmica do uso de psicotrópicos no meio rural, tendo em vista a própria escassez de pesquisas nesse contexto. Escolhemos investi-gar a questão em um assentamento rural vinculado ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o que nos convida a refletir sobre a relação saúde-doença no interior dos movimentos sociais. Dessa forma, questionamos: Como vem ocorrendo o uso de psico-trópicos em assentamentos do MST? Quais os fatores que se rela-cionam a esse problema?

Caminhos trilhados

Para nortear a pesquisa, adotamos como embasamento teó-rico-metodológico a Análise Institucional, entendendo-a como um conjunto de saberes que propõe a criação de dispositivos para que o coletivo se reúna e debata acerca de seu cotidiano, descobrindo a maneira como determinados efeitos antiprodutivos são a conse-quência do não saber das contradições da estrutura e da função do sistema, como um desvio das forças revolucionárias (Baremblitt, 1998). Nessa direção, a análise institucional propõe uma análise das forças que compõem o social, atentando para aquilo que se coloca enquanto instituído, dado, congelando os processos de mudanças, tentando favorecer possíveis forças instituintes (que apresentam o novo, a transformação), potencializando, assim, os grupos e coleti-vos (Baremblitt, 1992).

A partir dessa direção epistemológica, fomos nos apro-priando do método cartográfico que direcionou nosso posicio-namento diante do fenômeno que nos dispusemos a estudar. A cartografia, como o próprio nome indica, busca dar conta de um espaço pensando as relações possíveis entre territórios, capturando intensidades e atentando para o jogo de transformações desse espaço. A cartografia está interessada em experimentar movimen-tos/territórios, novos modos de existência, sempre a favor da vida, dos movimentos que venham a romper com o instituído (Kirst,

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2003). Para tanto, é preciso estar atento aos discursos, gestos, fun-cionamento, o regime discursivo operante (Mairesse, 2003).

Partindo dessa perspectiva, lançamos mão da observação participante do território onde vivem essas mulheres, no sentido de capturar esses momentos, intensidades, discursos, etc. Queiroz et al (2007) afirmam que, na observação participante, o pesquisador analisa a realidade social que o rodeia, tentando captar os conflitos e tensões existentes. Desse modo, tem a oportunidade de unir o objeto ao seu contexto, contrapondo-se ao princípio de isolamento pelo qual somos ensinados na ciência tradicional.

No decorrer de nossas visitas ao assentamento, fizemos uso de diários de campo enquanto instrumento de registro das informa-ções/impressões sobre o campo, compreendendo essa ferramenta como estratégia didático-pedagógica, na medida que proporciona autorreflexão das ações de si ao detalhar as pessoas, objetos, luga-res, conversas e impressões do campo (Frizzo, 2010).

Assim, tentamos captar o cotidiano do assentamento Resistência Potiguar, mais especificamente do grupo de mulheres desse assentamento. O dia a dia, as conversas, os modos de vida e as forças que compõem esse cenário foram nosso foco na tentativa de mapear, cartografar essa paisagem psicossocial.

O Resistência Potiguar nos foi apresentado no mês de agosto de 2011. Após alguns dias de familiarização do campo, pude-mos expor nossa proposta de pesquisa a alguns moradores, dando início à jornada de três meses no assentamento que, conforme já informado, está localizado na zona rural da cidade de Ceará-Mirim, no estado do Rio Grande do Norte. Realizamos entre uma a duas visitas por semana, quase sempre no período da tarde e, algumas vezes, pela manhã. Além da observação participante, realizamos entrevistas semiestruturadas com mulheres a partir de 18 anos. A entrevista semiestruturada tem por finalidade propor alguns ques-tionamentos básicos sobre o tema em questão, com a capacidade

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de permitir certa liberdade pra explorar outros caminhos e respos-tas de forma mais livre (Manzini, 2004).

Procuramos traçar uma relação atravessada por afetos: em nossas visitas, não seguíamos à risca o roteiro das entrevistas, pelo contrário, buscávamos respostas aos nossos questionamentos atra-vés de uma conversa que normalmente durava entre 30 a 40 minu-tos. Nas três rodas de conversa realizadas, cada uma na casa de uma moradora diferente, contamos com um número que variou entre 9 e 12 mulheres por encontro. O nosso objetivo nas rodas de conversa era aprofundar a discussão dos temas levantados nas entrevistas, porém mais focado nas perguntas referentes à história das assen-tadas, criando, assim, condições de diálogo entre os participantes, propiciando um momento de escuta e de circulação da palavra (Afonso & Abade, 2008). Essa estratégia é produtiva para promover a reflexão e discussão sobre um determinado tema. As rodas dura-vam em torno de uma hora e meia, sempre havendo rotatividade entre as casas: durante três semanas as rodas de conversa acontece-ram na casa de três moradoras, em ruas diferentes.

O assentamento conta com um número de 53 famílias. O número de mulheres entrevistadas foi de 33 das aproximadamente 65 que ali vivem. Passamos em todas as casas das quatro ruas, porém, devido à localização do assentamento ser relativamente distante de Natal, e a pouca disponibilidade das mulheres, em vir-tude da jornada de trabalho, não pudemos entrevistar todas.

Aos poucos, fomos conhecendo uma a uma e construindo uma relação que ultrapassava a de pesquisador e pesquisado. Pudemos perceber alguns campos de forças que atravessam o assentamento, acompanhar como essas mulheres percebem seus cotidianos e como percebem o mundo, bem como nos emocionar com a vida que se mostra sempre em suas diversas faces.

O assentamento localiza-se a 20 minutos da cidade de Ceará-Mirim, se o trajeto dá-se de carro ou moto táxi. Existe há

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pouco mais de sete anos, em uma área cercada por grandes cana-viais e engenhos. A maior parte daquelas famílias veio do acampa-mento que ficava “do outro lado da pista”, próximo ao ponto onde hoje está o assentamento. Essa mudança de acampamento para assentamento trouxe em si grandes novidades para esses campone-ses: no assentamento, a conquista pela terra está concluída, a luta foi vencida.

Sobre a realidade dos assentamentos, temos que “se cons-tituem em espaços diferenciados de relação com o Estado e é essa relação diferenciada que faz existir o assentamento e, por conse-quência, os assentados, como segmento social diferenciado de outros camponeses” (Caniello & Duqué, 2006, p. 634 como citado em Leite et al., 2004, p. 111)

Segundo as entrevistadas, passar pelas dificuldades e pelos medos da época das barracas até a conquista das casas constituiu--se numa grande vitória. A fala de Dona Célia1, por exemplo, esclarece: “Nas barracas era bem pertinho da pista, ninguém dor-mia direito, tinha medo de tocarem fogo. A gente ficava acordada vigiando. Aqui é mais seguro, mas lá se juntavam mais, era mais unido”. Outra assentada afirma: “Eu gostava de morar nas barracas, só não gostava quando chovia (risos)”. E Dona Maria C. comple-menta: “Lá era uma correria danada, todo dia tinha o que fazer, mas agora tá melhor por causa da casa e do trabalho”.

É um lugar de muito sol durante o dia e, segundo as morado-ras, frio à noite. Uma paisagem campestre encantadora para olhos viciados em cenários urbanos. Uma comunidade rural que nos pre-senteia diariamente com um pôr do sol inspirador, que esconde, à primeira vista, as dificuldades e questões que atravessam a vida dessas famílias. Essa imagem remete-nos a Ademar Bogo (2000), complementando nossa fala, diz que a estética está presente em

1 Todos os nomes usados neste capítulo são fictícios.

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tudo que fazemos e que a beleza dos assentamentos se faz de uma obra de arte real que não está ali para ser comercializada, mas para apontar caminhos de reconstrução da vida.

Alguns resultados

Essa seção será apresentada em três partes, que dizem res-peito ao cotidiano e modos de vida traçados pelas mulheres do Resistência Potiguar. As partes estão discriminadas de acordo com os temas analisados, frente ao referencial por nós adotado, quais sejam: Vida Maria, Modos de vida rural e processos de autogestão, e Os processos de subjetivação militante.

Vida Maria

Após a nossa inserção no campo, chegamos a um resultado que não se assemelha às pesquisas realizadas em contextos urba-nos e até mesmo rurais. As entrevistas mostraram que o consumo de psicotrópicos no assentamento é insignificante: apenas uma mulher utiliza medicamento psicotrópico, de um total de 33 entre-vistadas (3%).

Trata-se de uma assentada de 43 anos, Dona Maria L., viúva, uma mulher de poucas palavras, agricultora e dona de casa. Dona Maria L. tem 10 filhos, dos quais sete moram com ela. Está no assentamento desde sua ocupação, tendo permanecido um ano no acampamento. Relatou utilizar um serviço de saúde próximo ao assentamento para se consultar. Confessa ter problemas de pres-são e de estresse, causados, segundo ela, após a morte do marido, que passou meses no hospital, gerando uma situação de sofri-mento para a família. A moradora usa medicamento psicotrópico (Bromazepam) há três meses. Dona Maria L. diz: “Mas é só um por dia”, demonstrando certa cautela em falar sobre o assunto.

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Entre os medicamentos mais utilizados pelas entrevistadas, estão os analgésicos para dor de cabeça, dor de coluna e dor de bar-riga, mencionados em 11 entrevistas, mas sempre em caráter de uso esporádico. Em seguida, temos os anticoncepcionais, citados por seis mulheres.

O baixo consumo de psicotrópicos no assentamento logo nos direcionou alguns questionamentos: será que o assentamento não tem acesso aos serviços públicos de saúde? Isso indica que essa comunidade enfrenta um baixo índice de problemas? Quais estra-tégias são utilizadas para lidar com o sofrimento psíquico?

Segundo as entrevistadas, há acesso aos serviços de saúde, bem como há a oferta de medicamentos psicotrópicos. Todas as entrevistadas, inclusive Dona Maria L., usuária de psicotrópico, apontaram uma Unidade Básica de Saúde localizada em um povo-ado vizinho ao assentamento como referência em atendimento à saúde; também citaram o Hospital de Ceará-Mirim, infor-mando, porém, que por ser mais afastado, recorrem menos a ele. Questionadas sobre qual serviço de saúde era mais utilizado por elas, Dona Dalva afirmou “Nós vamos pro posto lá na Primavera2, que fica aqui perto. Tem um ônibus que passa aqui na pista e deixa a gente lá perto. Outra companheira complementa: “Lá a gente faz preventivo, essas coisas. Quando é uma coisa mais séria eu vou pra Ceará-Mirim, pro hospital”.

É relevante destacar que, segundo os dados coletados, a comunidade não enfrenta menos problemas em relação a outros grupos, como bem ilustra a fala de Dona Dalva: “É... problema tem em todo canto, né? Aqui não é diferente dos outros... mas aí vai fazer o quê?”. Em uma roda de conversa, onde estiveram nove mulheres, surgiram falas emocionadas, entre momentos de risos, que nos diziam sobre a vida delas. Dona Maria H. rememora: “Com doze

2 Pequeno povoado.

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anos eu ia pra escola escondida (risos), com medo de apanhar do meu pai, porque tava deixando de trabalhar”; Dona Ruth diz: “Perdi meus pais e meu filho, é muita dor”. Dona Maria R. relata: “Perdi minha mãe e meu menino, aqui recebo apoio do meu marido”.

Essas falas das moradoras explicitaram algumas angústias vividas pelo povo do assentamento: a perda de familiares, a infân-cia difícil, as dificuldades na criação dos filhos, os obstáculos na organização do coletivo. O que nos chama atenção é a escolha delas em utilizar outras estratégias para lidar com isso. Estratégias essas que vão no sentido oposto à medicalização das dores cotidianas através do consumo de psicotrópicos. Como Dona Dalva afirma: “Bota é a trouxa na cabeça, que se a gente for se levar só pela tris-teza, a gente não vive”.

Nesse sentido, passamos a investigar outras possibilidades explicativas para o baixo uso de psicotrópicos no assentamento. Como explicar esse fenômeno que contraria as pesquisas relacio-nadas ao tema? É o que tentamos explicitar no próximo tópico.

Modos de vida rural e processos de autogestão

Quanto às estratégias utilizadas para lidar com as doenças dentro do assentamento, podemos considerar que o contexto rural aqui representa um forte determinante no modo como essas pes-soas cuidam da própria saúde e da saúde de sua família. As espe-cificidades do cenário rural, naquilo que diz respeito à cultura do saber popular, contribui para que a população que vive no campo opte, muitas vezes, por estratégias de cuidado com a saúde advin-das do saber do povo campesino, representada, por exemplo, na confecção de medicamentos caseiros com produtos manipulados no quintal de suas casas.Os efeitos produzidos por esse modo de vida no campo podem ser identificados na fala das moradoras ao serem questionadas sobre as estratégias que usavam para enfrentar as dificuldades e dores do cotidiano.

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O uso de chás, para fins medicinais, por exemplo, mostrou--se predominante entre as falas das entrevistadas, no que diz res-peito ao tratamento de dores de cabeça, barriga e também para efeito calmante, estando presente em 18 entrevistas (54%).

Dona Maria R. relata que, ao ter perdido um filho com 10 dias de resguardo, ficou meio “agoniada” na época, mas não che-gou a fazer uso de psicotrópicos, pois diz ter recebido apoio de seu marido nesse momento de luto. Acrescenta, ainda, que atualmente faz uso de chá, mas só quando tem dor de barriga. Dona Fátima também faz uso de chás, dando preferência ao de pitanga e capim santo, o qual, segundo ela, lhe ajuda a diminuir as dores de cabeça. Relata que quando se estressa desconta nos cigarros que ela mesma prepara e nas outras pessoas; a moradora acrescenta “eu arengo3 mesmo, aí depois fica tudo bem”.

Ainda sobre o consumo de psicotrópicos, uma das entre-vistadas afirmou já ter feito uso, mas decidiu interrompê-lo por vontade própria, pois entendeu não haver mais necessidade de dar continuidade ao tratamento. Diz Dona Dalva:

Eu já tomei esses remédios tarja preta4 uma vez por causa do meu problema de pressão, né, pra que eu não fique nervosa e ela suba, mas não gostei não, me deu uma leseira e eu não quis [...] quando eu não tô com sono, eu tomo um chazinho ou qualquer coisa e vou dor-mir... pronto [...] Dormir eu já durmo, não tem pra quê eu tomar remédio pra isso (Dona Dalva).

As entrevistadas também destacaram a religião enquanto elemento importante na superação dos sofrimentos. Algumas

3 Expressão típica da região, cujo exato significado não corresponde necessaria-mente ao seu verbo – arengar (disputar, falar) –, mas ao sentido de brigar, arran-jar confusão.

4 Tarja preta: nome popularmente conhecido dos medicamentos psicotrópicos.

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moradoras reuniam-se semanalmente para rezar um terço na casa de uma das companheiras, o que também servia como um momento em que elas podiam se reunir pra conversar. Além disso, há relatos de outras assentadas que afirmam rezar quando se depa-ram com algum problema.

Dona Celma, quando questionada sobre quais estratégias utilizava para lidar com o estresse ou algum sofrimento, responde:

Quando eu tô estressada assim com a vida, com as coi-sas, eu não tomo nenhum remédio não [...] o que eu faço é gritar (risos), né? Grito com os meninos com o marido, às vezes eu faço é chorar mesmo... às vezes saio por aí andando sem rumo e só volto pra casa quase de noite na hora da janta quando tô já relaxada mesmo (Dona Celma).

O conteúdo do depoimento dessa moradora foi comparti-lhado pela maioria das companheiras que participavam da nossa roda de conversa, em falas como a de Dona Celma: “Ah, quando tem algum aperreio mais assim (grande) [...] eu vou é trabalhar, adiantar os serviços, sempre tem alguma coisa pra fazer dentro de casa ou fora”, e ainda outra assentada acrescentou: “eu choro né, desabafo com alguma amiga, [...] a gente faz caminhada quase todo dia, é bom que emagrece o corpo e fica com a cabeça leve (risos)”.

Entre depoimentos e risadas, as assentadas foram acres-centando experiências de superação, de problemas enfrentados, os quais, segundo elas, foram vencidos apenas pela força de vontade e apoio mútuo por parte dos assentados. Em nenhum momento foi relatado o uso de medicamento enquanto busca por solução de algum problema vivido por elas, mas sim por indicação médica, o que para algumas não foi suficiente para prosseguir com o uso.

Durante nossa inserção no assentamento, foi possível observar um sentimento de solidariedade entre as moradoras,

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solidariedade esta típica de pequenas comunidades, o que propor-ciona uma relação de ajuda mútua entre elas. Essa relação pode ser representada pela fala de Dona Vilma:

A gente sempre aqui conta também uma com a outra, já passamos por algumas coisas juntas, desde a época do acampamento [...] hoje por cada uma ter sua casa é mais difícil se encontrar, mas a gente tenta se reunir quando dá pra conversar (risos). (Dona Vilma).

Para muitas, a relação que se estabelece entre as compa-nheiras de assentamento serve como suporte para as angústias vivi-das, produzindo uma rede de apoio capaz de fortalecer cada uma das moradoras frente às adversidades da vida.

Nesse sentido, percebemos que acontecem no assentamento processos de ajuda mútua, ou seja, apoio emocional e acolhimento ao colega/indivíduo em sofrimento. Esse tipo de atenção pode evoluir no sentido de abarcar questões mais amplas como vida social, lazer, cultura, política e até mesmo os projetos de vida das pessoas, configu-rando assim uma prática de suporte mútuo (Vasconcelos, 2008).

A ajuda mútua tem sido considerada uma importante estra-tégia de empoderamento, entendendo este enquanto um aumento no grau de autonomia e poder pessoal de grupos historicamente excluídos (Vasconcelos, 2008). Ao optar por essa estratégia de empo-deramento, as moradoras apostam no saber e na capacidade de ação delas próprias, já que, concordando com Vasconcelos (2003), os gru-pos possuem um saber valioso sobre suas situações de vida, sendo capazes de colocá-lo em prática em seus cotidianos para pensar não só sua condição de saúde e respectivo tratamento, como suas pró-prias vidas. Nesse sentido, ressaltamos aqui o quanto o saber popu-lar, nesse coletivo, vem operando como potencializador do cotidiano das moradoras do assentamento Resistência Potiguar.

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Para pensar a importância dessa questão convêm alguns apontamentos. Sabemos que, historicamente, presenciamos um processo de invalidação do saber/fazer dos grupos e coletivos humanos, e simultâneo surgimento e fortalecimento do lugar ocu-pado pelos experts em nossa sociedade. Particularmente na moder-nidade, assiste-se a uma descapacitação dos indivíduos e coletivos de gerirem seus próprios problemas, de resolverem suas questões cotidianas, dada a posição ocupada pelos saberes ditos científicos/especializados (Baremblitt, 1992). É nesse sentido que as diferen-tes correntes da análise institucional, segundo Baremblitt (1992), se propõem a devolver ou deflagrar os processos de autoanálise e autogestão (processos esses em contínua inter-relação) a diferentes agrupamentos humanos, favorecendo, ou fazendo com que sejam mais bem sucedidos os processos revolucionários. Baremblitt (1992) conceitua a autogestão como algo que é ao mesmo tempo o processo e o resultado da organização que os coletivos se dão para gerenciar sua vida, e autoanálise, que seria o processo de re-apro-priação de um saber acerca de si mesmos, suas necessidades, dese-jos e demandas, termos esses próprios da análise institucional, que nos direciona a uma aposta no coletivo, no grupo.

Nesse sentido, entendemos que o modo de funcionamento do assentamento, tendo vista sua história de vinculação ao MST, e o processo de militância e luta pela terra, opera no sentido de produzir modos de vida transversalizados pela prática da autoa-nálise e autogestão, valorizando o saber e a capacidade de ação de seus atores. Nessa mesma direção, cabe destacar que nossa postura enquanto pesquisadores-interventores é a de provocar, potenciali-zar tais movimentos. A roda de conversa como método, por exem-plo, abre espaço para o diálogo entre essas mulheres acerca do tema que lançamos ao grupo e aquilo que o próprio grupo lança pra nós, com o objetivo de problematizar as questões referentes ao uso de psicotrópicos através das trocas de experiências entre as mulheres

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a partir de suas narrativas, na tentativa de produzir espaços de dis-cussão e problematização do cotidiano.

Os processos de subjetivação militante

A discussão que fizemos até o momento ajuda a entender-mos que no assentamento temos um movimento diferente daquele observado nos contextos urbanos (e até mesmo em alguns contex-tos rurais), no que diz respeito aos modos de organização, e gestão do cotidiano.

Tendo em vista esse ser um assentamento que possui uma história atravessada por um movimento social, acreditamos que isso contribuiu para que a comunidade pudesse preservar deter-minados modos de vida, bem como produzir outros processos de subjetivação que possam reafirmar esse movimento que vai contra as modelos de subjetivação hegemônicos.

O MST apresenta-se como uma investida de uma nova pos-sibilidade de pensar a organização da nossa sociedade, visto que tem o compromisso de “articular com todos os setores sociais e suas formas de organização para construir um projeto popular que enfrente o neoliberalismo, o imperialismo e as causas estruturais dos problemas que afetam o povo brasileiro” (MST, 2011, s/p).

Nesse contexto, temos que um dos interesses da Psicologia pelo movimento se dá justamente através da ótica que o vê como um campo de estudos que produz modos de subjetivação diferen-ciados. Assim, compartilhamos com Leite e Dimenstein (2006) o conceito de subjetividade, a qual foge à concepção de um sujeito psicológico abstrato, interiorizado e em dicotomia com os proces-sos sociais.

Ao assumirmos que nossas noções acerca da subjetivi-dade se compõem a partir da compreensão desta como processo histórico, político, social, cultural, assumimos, também, que este

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conceito abandona as clássicas definições cunhadas por escolas tradicionais da Psicologia, Sociologia e Medicina. Nestas escolas clássicas de pensamento, a subjetividade é compreendida em ter-mos de uma experiência universal, racional, natural, que permeia o mundo privado, o âmago de cada ser, trazendo em suas conceitua-ções traços fortes das características das chamadas ciências moder-nas (objetividade, neutralidade, replicabilidade, etc.). Assim, ao abandonarmos essa noção clássica, que situa a subjetividade em nível puramente individual e natural, a recolocamos, epistemologi-camente, como uma realidade que tem origem social. No seio dessa discussão, concordamos com Leite e Dimenstein (2002, pp. 116-117):

A subjetividade é um fato social construído a partir de processos de subjetivação, o qual é engendrado por determinantes sociais – históricos, políticos, ideológi-cos, de gênero, de religião, conscientes ou não. Dessa forma, em diferentes contextos culturais, diferentes sub-jetividades são produzidas.

A subjetividade, sob esse ponto de vista, apresenta-se como plural, não sendo, assim, resultado de estruturas fixas (Guattari, 1992), mas sim de um processo de produção, a partir de disposi-tivos como a ciência, a política, a mídia etc., tendo, portanto, um caráter industrial, ou seja, “fabricada, modelada, recebida, con-sumida” (Guattari & Rolnik, 1986, p. 34). Para os autores, os pro-cessos de subjetivação não só são históricos como dizem respeito ao modelo de sociedade que se tem. Em nosso modelo capitalista, por exemplo, os processos de subjetivação ocorrem em função dessa sociedade. A subjetividade é forjada socialmente levando em conta os valores que dizem respeito ao modo de vida capita-lista: assim, cria-se uma subjetividade para o consumo, atravessada pela lógica Capital X Trabalho, alienante e produtora de exclusões. Nesse sentido, os autores trazem a perspectiva de que os processos

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de subjetivação capitalísticos são produzidos em escala industrial, homogeneizando maneiras de existir e de pensar.

Porém, se por um lado temos esse processo de despotencia-lização dos coletivos em favor de uma subjetividade capitalística, por outro, de acordo com Guattari e Rolnik (1986), temos a possi-bilidade de criar novos modos de vida. Maneiras verdadeiramente autênticas de existir, pensar e se organizar, ao que os autores deno-minam processos de singularização:

O que vai caracterizar um processo de singularização (que, durante certa época, eu chamei de “experiência de grupo sujeito”), é que ele seja automodelador [...] Essa capacidade é que vai lhes dar um mínimo de pos-sibilidade de criação e permitir preservar exatamente esse caráter de autonomia tão importante (Guattari & Rolnik, 1986, p. 46).

Nesse sentido, entendemos e apostamos na ideia de que os movimentos sociais, nesse caso o MST, pode operar processos de subjetivação diferenciados, favorecendo processos de singulariza-ção. Leite e Dimenstein trazem uma importante discussão sobre os processo de produção de subjetividade no MST:

Entendemos que sua produção pode voltar-se tanto no sentido de reprodução de modelos dominantes das rela-ções sociais, como também de criação de espaços de rup-tura, de modelos que redefinem o campo social. Nessa ótica, o MST está sendo entendido enquanto um movi-mento social que, ao defender um modelo de organiza-ção coletiva da sociedade e das subjetividades, coloca-se como um agente de subjetivação, com o qual os traba-lhadores acampados passam a ser afetados por meio de falas, rituais, programações e mobilizações no cotidiano do acampamento (Leite, 2003 como citado em Leite & Dimenstein, 2006, p. 21).

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O MST, nessa perspectiva, passa a ser visto enquanto um potente regime de subjetivação em que as ações coletivas e o pro-cesso de formação postos em curso possam vir a desembocar num modo de subjetivação militante que atinja todo seu âmbito (Leite & Dimenstein, 2011).

Em consonância com esse pensamento, Guattari e Rolnik (1986) pontuam a importância dos movimentos sociais contem-porâneos: “Enquanto os movimentos que pretendem desembocar numa transformação social combaterem, com práticas e referên-cias arcaicas que veiculam uma visão maniqueísta, a onipotência da produção de subjetividade capitalística, eles estarão deixando o campo totalmente livre para essa produção” (Guattari & Rolnik, 1986, p. 49), o que reforça a ideia de que novos processos de subjeti-vação se fazem também necessários a um projeto de transformação social de maior amplitude.

O processo de singularização, conforme definem Guattari e Rolnik (1986), propõe a ideia de revolução molecular enquanto processos revolucionários que dizem respeito à produção de con-dições de uma vida não só coletiva, mas também da encarnação da vida para si próprio, tanto no que diz respeito ao campo material quanto também no subjetivo.

Guattari e Rolnik (1986, p. 42) defendem que os equipa-mentos coletivos como, por exemplo, os centros de saúde, cons-tituem o Estado numa função ampliada, situando-se enquanto os operários de uma máquina de formação de subjetividade capitalís-tica, incidindo nas “montagens” da percepção, memória, produ-zindo “modos de como se trabalha, se ama, se trepa, como se fala etc.”. Há ainda uma tentativa de eliminação do que o autor chama de processos de singularização, pois tudo deve ser classificável e enquadrado em algum ponto de referência. Essa produção de sub-jetividade “desconhece dimensões existenciais da existência como a morte, a dor, a solidão [...]. Um sentimento como a raiva é algo

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que surpreende, que escandaliza” (1986, p. 43). E, acrescentamos, que é passível de se medicalizar.

Entretanto, essa estratégia de controle social se choca com fatores de resistência, segundo apontam Guattari e Rolnik (1986), capazes de produzir processos de diferenciação permanente. Nesses termos, identificamos a produção de subjetividade dentro desse processo de resistência, resistência essa encarnada nas práti-cas, cotidiano, e na própria proposta política do MST.

Assim, embora estejam postas formas hegemônicas capi-talistas de produção de subjetividades, temos, em contrapartida, movimentos de potência dentro do assentamento. As histórias de vida contadas durantes os três meses que permanecemos no assen-tamento diziam de vidas marcadas por lutas, conquistas, esperas, resistências.Como por exemplo, a história de Dona Vera, primeira moradora do assentamento.

Eu fui a primeira a chegar aqui, quando eu cheguei, aqui não era nada. Lá no acampamento eu lembro do meu neto bem pequeno brincando ainda nas barracas...hoje ele já tá um rapaz. Ah! As coisas eram muito difíceis na época, a gente veio pra cá sem ter nada ainda, aqui era tudo vazio, dai aos poucos foram fazendo as casas, daí hoje tá assim, n/é? A minha até ficou escondida aqui [...] A minha neta estuda na escola de Rio dos Índios, essas semana a gente não foi porque a escola tá em greve [...] Eu comecei a ir pra escola esse ano pra aprender a ler, daí vou com minha neta no ônibus que passa aqui na pista toda noite (Dona Vera).

Dona Vera foi a nossa última entrevistada; ela hoje tem 83 anos e nos contou histórias de uma vida marcada por lutas. A bata-lha, segundo ela, começou desde criança, quando tinha que car-regar lata d’água na cabeça. Histórias como a de Dona Vera foram sendo repetidas em nossos encontros. Talvez pela faixa de idade

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das mulheres que participaram de nossas rodas ser entre 40 e 70 anos, ouvíamos muitas histórias sobre dias difíceis, em que “não havia tempo pra brincar, só sabiam o que era trabalhar”, como dizia Dona Dalva.

E Dona Maria H. acrescentava:

Eu não fui criança não, eu não sabia o que era brincar como esses meninos que tão aí fora brincando de bola. Na minha época não importava se era criança, se era adulto, todo mundo tinha que cuidar dos bichos, cuidar da casa, levar água no jumento [...] o que eu fazia que era acertar passarinho com baladeira (Dona Maria H.)

Dona Maria H., durante a entrevista, filosofa: “Eu trabalho todo dia, no roçado, não tem tempo ruim, [...] o homem às vezes parece que é que nem caramujo, que em vez de se esticar se enco-lhe, mas tem mais é que falar mesmo”. Dona Maria H. referia-se ao momento em que os moradores conquistaram a terra, que, a seu ver, fez com que eles se acomodassem que nem caramujo den-tro de sua concha. A moradora, ao dizer que “tem mais é que falar mesmo”, reivindicava que as pessoas deviam ser mais ativas e ques-tionadoras – para o que acrescentamos: tal como ela é.

Essa fala de Dona Maria H. nos provocou desde o primeiro instante servindo como ponto de partida para discutirmos os dife-rentes processos de subjetivação em curso na contemporaneidade, aqui exemplificados nos modos de vida do trabalhador rural, e no processo de produção do militante dentro do MST tendo em vista que a militância não se configura enquanto algo pontual, mas diz de uma posição do sujeito no mundo. Apesar de atualmente estar mais afastado do MST, haja vista a conquista da terra, o assenta-mento Resistência Potiguar teve, em sua gênese, uma intensa rela-ção com o MST.

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Leite e Dimenstein (2011) remetem a Paiva (2003), para quem o processo de formação militante é um tema que os movimentos sociais consideram importante para a conquista da autonomia e para a emancipação e a liberdade humana (Paiva, 2003 como citado em Leite & Dimenstein, 2011). As mulheres do assentamento costu-mavam falar sobre militância ou formação militante, mencionando reuniões que aconteciam durante o período de acampamento:

Eles faziam umas reuniões lá com a gente, ia um pes-soal pra lá [referindo-se ao acampamento] ou a gente ia lá pra Ceará-Mirim. Daí eles ensinavam umas coisas pra gente, às vezes tinham uns cursos sobre agricultura, sobre cozinhar com resto de alimento...essas coisas, sabe? Ensinavam mais as coisas pra gente (Dona Dalva).

A maioria das mulheres referia-se ao MST da mesma forma como Dona Dalva.Elas viam o movimento como importante para o processo de formação de um coletivo, principalmente, pelos proje-tos e cursos realizados durante a época do acampamento.

Tendo em vista que o assentamento existe há 7 anos, pode-mos pensar que durante esse tempo foram se configurando outras formas de organização e de produção de subjetividades. As mulhe-res carregam a lembrança do tempo de acampamento enquanto uma época difícil, mas ao mesmo tempo boa, de muita união e luta. Dona Dalva nos contava:

A nossa vida é só luta mesmo, só Deus sabe o que a gente passou nas barracas pra depois conseguir essa terra [...] A gente era bem unidas na época das barracas, porque a gente precisava se organizar. Todas essas coisas foram difíceis mas é bom pra gente valorizar o que a gente tem hoje [...] A gente aprendeu muito com aquela época (Dona Dalva).

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Diante dessas considerações, a partir do olhar das moradoras sobre o processo de ocupação e as vivências dentro do movimento, defendemos que o MST operou como um importante potencializa-dor na produção de processos de singularização daqueles agricul-tores, atuando na formação de uma posição de resistência que até hoje mostra-se presente naquela comunidade. Tal constatação nos transporta ao pensamento de Rolnik (2001, p. 4):

A resistência, hoje, tende a não mais se situar por opo-sição à realidade vigente, numa suposta realidade para-lela; seu alvo agora é o princípio que norteia o destino da criação, já que, como visto, esta tornou-se uma das principais – senão a principal – matérias-primas do modo de produção atual. O desafio está em enfrentar a ambigüidade dessa estratégia contemporânea do capita-lismo, colocar-se em seu próprio âmago, associando-se ao investimento do capitalismo na potência criadora, mas negociando para manter a vida como princípio ético organizador. Este é um desafio que se coloca atualmente em todos os meios, com problemas específicos em cada um deles.

Frente a isso, podemos pensar que a resistência se coloca na vida, não sendo algo inventado, fictício, mas sim um processo que se constitui a partir do momento em que se cria novos devires e formas de se libertar daquilo que nos captura, a todo momento, para um lugar de homogeneização. Resistir, nesse contexto, pode ser compreendido como uma prática cotidiana, exercida por sujei-tos que podem ou não estar inseridos em um movimento social.

Podemos também pensar que a escolha por estratégias de cuidado em saúde que diferenciam-se dos modelos impostos pelo capitalismo representa-se como uma posição criativa. Não usar psi-cotrópicos, acreditar e inventar outras formas de existência diz da invenção de linhas de fuga, ou seja, rupturas por quais é possível

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ampliarmos nosso território, sem deixarmos de fazer parte dos agenciamentos que nos compõe, e a partir disso, ampliar nossas possibilidades, para que se possam criar espaços para novas formas de expressão, escapando ao poder que oprime o indivíduo, inven-tando um modus operandi mais potente e afirmativo (Deleuze, 2004).

É possível, em modelo de conclusão, pensarmos que os modos de vida daquelas mulheres vêm de uma construção histó-rica, atravessados por fatores que foram determinantes na produção de uma posição de resistência frente aos modelos de produção de subjetividade capitalísticos.Pensar sobre saúde no Assentamento Resistência Potiguar é pensar sobre vidas que se reinventam, movi-mentam-se, resistem e vivem.

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A seca e sua relação com o bem-estar das famílias

rurais do noroeste do Rio Grande do Sul1

Eveline Favero Jorge Castellá Sarriera

Melina Carvalho Trindade Francielli Galli

Introdução

Um dos problemas que mais têm relevância para as famílias rurais do Rio Grande do Sul é a seca e que historicamente

tem afetado grande número de pessoas, especialmente na por-ção Noroeste desse Estado. No entanto, embora sendo a seca um problema antigo, ocorreram poucos avanços em políticas públicas

1 Capítulo derivado da tese O impacto psicossocial das secas em agricultores familiares do Rio Grande do Sul: Um estudo na perspectiva da psicologia dos desastres, de autoria de Eveline Favero, bolsista do CNPq no Programa de Pós-graduação em Psicologia, UFRGS.

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para a minimização de suas consequências econômicas e sociais. Observa-se, nesse sentido, uma tendência para a adoção de medi-das governamentais paliativas, como a prorrogação de dívidas e a aprovação de linhas de crédito emergenciais para as famílias rurais (Câmara dos Deputados, 2010).

As secas não causam apenas prejuízos econômicos e sociais. Dentre as suas consequências, estão também os impactos psicoló-gicos. Bosch (2004), por exemplo, identificou que durante perío-dos de secas prolongadas ocorrem mudanças na relação entre os casais, especialmente no que diz respeito à comunicação. O marido passaria a conversar menos com sua esposa e surgiriam sintomas de estresse e depressão, principalmente naquele indivíduo que é o chefe da família. As gerações mais novas teriam mais dificuldades financeiras para enfrentar períodos prolongados de seca, segundo a autora, o que faz com que comumente migrem para buscar traba-lho nas grandes cidades, provocando assim rupturas de laços fami-liares e sociais (Bosch, 2004).

Embora diferentes tipos de crises financeiras ocorram com frequência – e muitas delas tenham sérias implicações econômicas e sociais – são poucos os estudos que abordam os efeitos psicológi-cos desse tipo de evento. De acordo com Ünal-Karagüven (2009), uma crise financeira se instala quando recursos necessários para a sobrevivência não estão disponíveis, desencadeando assim um processo de estresse psicológico. O termo “recursos” compreende os “objetos, condições, características pessoais e energias que tem valor para a sobrevivência, direta ou indiretamente, ou que ser-vem como meio de atingir esse fim” (Hobfoll, 1998, p. 54). Hobfoll delimitou essa dimensão a partir da valorização atribuída por uma ampla classe de indivíduos a respeito de determinados recursos, sendo esses percebidos como salientes tanto para as pessoas em geral, quanto para o indivíduo.

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Os recursos dividem-se entre instrumentais e simbólicos, podendo ser classificados em: a) Recursos primários: alimentação e abrigo, os quais estão relacionados à sobrevivência; b) Recursos secundários: senso de conhecimento e domínio de determinado fenômeno, bem como assistência à saúde e transporte. Os recur-sos secundários aumentam a probabilidade de obter e proteger os recursos primários; c) Recursos terciários: status social e apoio social, estando apenas simbolicamente vinculados com a necessi-dade de sobrevivência. Tais recursos possuem um valor que mantem o sentimento de se estar distante da pobreza e, consequentemente, da falta de alimentação e abrigo (Hobfoll, 1998).

O estresse psicológico, por sua vez, foi definido por Hobfoll (1989) como uma reação a um ambiente no qual existe pelo menos uma dessas situações: a) a ameaça da perda de recursos concretos; b) a perda desses recursos; c) a ausência de ganhos após o inves-timento de recursos. Ambos, percepção e perda real, ou a falta de ganhos, seriam suficientes para produzir estresse. Perder recursos é mais importante do que obter ganhos no que se refere ao grau de impacto no bem-estar, sendo considerado o principal ingre-diente no processo de estresse (Hobfoll, 2001; Hobfoll & Lilly, 1993; Ünal-Karagüven, 2009). A percepção da perda envolve a avaliação cognitiva da situação e não apenas a perda real, sendo a primeira diretamente relacionada com a intensidade do estresse percebido pelo indivíduo (Lazarus & Folkman, 1984).

Desse modo, adequar recursos pessoais, sociais, econômi-cos e ambientais com demandas externas é sempre um desafio para a manutenção do bem-estar, determinando a direção e os resul-tados das respostas psicológicas ao estresse (Hobfoll, 1989). Um longo período de crise financeira, por exemplo, pode causar perdas contínuas e uma alta demanda por recursos, afetando os mecanis-mos de coping, os quais desempenham um papel importante nas reações dos indivíduos nessas situações (Lazarus & Folkman, 1984; Ünal-Karagüven, 2009). No caso da atividade agrícola, a perda

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de recursos financeiros pode ocorrer por diferentes razões como, por exemplo, o preço dos produtos, oscilações climáticas como falta ou excesso de chuvas, granizo e vendaval (Logan & Ranzijn, 2008). Além disso, não é apenas o agente externo que determina o grau de perdas, mas também as características do contexto (Ünal-Karagüven, 2009), como, por exemplo, a disponibilidade de recur-sos de enfrentamento sejam eles materiais, sociais ou psicológicos.

A teoria Conservation of Resources (COR) postula que os indivíduos utilizam estratégias de coping específicas para cada situação, uma vez que o coping está diretamente “embebido” do contexto (Hobfoll, 2001; Ünal-Karagüven, 2009). O termo coping foi definido como um esforço cognitivo ou comportamental para lidar com situações que são percebidas como estressantes (Lazarus & Folkman, 1984), sendo que estilos de coping proativos, junta-mente com recursos tais como status socioeconômico, controle pessoal e apoio social, têm sido considerados fundamentais para a resiliência ao estresse (Hobfoll, 1989).

De acordo com o modelo de COR o processo de conservação de recursos é o produto tanto das condições de vida como um todo, quanto das circunstâncias crônicas ou agudas que levam à perda de recursos. Quando faltam recursos de enfrentamento, a tendência é que seja gerado ou desencadeado um processo de perdas. Diante das perdas, os indivíduos adotam estratégias de conservação de recursos, ou seja, utilizam os meios disponíveis de maneira a aper-feiçoá-los e com isso, gerar novos recursos que possam reabastecer e compensar as condições de perdas agudas ou crônicas. Quando o esforço para conservar recursos não produz os resultados espe-rados, ocorrem consequências emocionais e funcionais negativas, gerando perdas secundárias, o que leva ao agravamento das cir-cunstâncias crônicas ou agudas e a diminuição dos recursos dis-poníveis. Nessa condição, uma crise se instalaria, desencadeando um processo de estresse psicológico (Hobfoll, 1989/2001; Hobfoll & Lilly, 1993; Kaniasty & Norris, 1995).

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O processamento de recursos como o apoio social desem-penha um papel importante no enfrentamento do estresse quando considerado o coping como um esforço não apenas individual, mas também comunitário. Muitos eventos estressantes, e aqui se pode citar os desastres, são experimentados coletivamente e acabam por esgotar recursos tanto individuais, quanto sociais (Hobfoll, 1989). O modelo de conservação de recursos leva em conta que: a) mui-tos estressores têm um componente interpessoal; b) os esforços individuais de coping podem afetar o ambiente social; c) ações de coping, na maioria das vezes, requerem interação com outras pes-soas (Hobfoll, 1989, 2001). Em relação ao apoio social em desastres, Norris e Kaniasty (1996) constataram que as pessoas que enfren-taram melhor o furacão Hugo e o Andrew, por exemplo, foram as que dispunham mais de apoio social, como pessoas com quem con-versar e com quem resolver problemas. Desse modo, o apoio social nos ajuda a interpretar os fatos como menos estressantes e mesmo quando interpretamos um fato como muito estressante, o apoio social pode nos ajudar a enfrentá-lo.

A teoria de conservação de recursos (Hobfoll, 1989) pode ser aplicada na análise das perdas e estratégias de coping frente a situações de desastres. Muitos estudos na área de desastres mos-traram que a perda de recursos é um forte preditor para a mobili-zação de estratégias de coping (Hobfoll, 2001; Norris, Perilla, Riad, Kaniasty, & Lavizzo, 1999). As secas são eventos coletivos que, além das consideráveis perdas econômicas, redução na disponibilidade de recursos necessários para a sobrevivência como água, alimentos e outros, podem gerar crises individuais e sociais, com consequ-ências significativas na autoestima e bem-estar (Boeckner, Bosch, & Johnston, 2003; Bosch, 2004; Logan & Ranzijn, 2008). Elas se diferenciam de outros desastres como enchentes e incêndios pela sua dimensão temporal (Boeckner et al., 2003). Nesse sentido, as famílias que atravessam as secas podem desenvolver altos níveis de estresse psicológico quando se deparam com o declínio nos

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ganhos agrícolas, bem como com a falta de controle sobre o evento e suas consequências difusas, sendo importante considerar que o bem-estar das famílias rurais está diretamente relacionado com o sucesso na produção agrícola (Logan & Ranzijn, 2008).

Considerando a ocorrência de secas em algumas regiões do Rio Grande do Sul, especialmente na região Noroeste e, con-sequentemente, perdas agrícolas e de recursos de sobrevivência familiar, este trabalho objetiva: a) analisar, com base na Teoria de Conservação de Recursos (Hobfoll, 1989, 2001), como as per-das ocasionadas pelas secas exercem influência sobre o bem-estar familiar; b) identificar as estratégias de coping e os recursos utiliza-dos pelos agricultores para lidar com o evento.

Método

Participaram do estudo sete agricultores num total de seis entrevistas, considerando que uma delas foi concedida pelo casal. Todos residiam na zona rural do município de Frederico Westphalen, RS, sendo três do sexo feminino (papel familiar = mãe) e quatro do sexo masculino (papel familiar = pai). Os participantes estavam casados e possuíam de um a dois filhos no momento da pesquisa. A idade variou de 33 a 51 anos (M = 42; DP = 5,22), com faixa de renda entre um e acima de quatro salários mínimos. Todos os participantes possuíam ensino fundamental incompleto. Como critério de inclusão, utilizou-se trabalhar na agricultura e morar na zona rural do município escolhido (onde há incidência de secas) há pelo menos cinco anos e ser maior de 18 anos.

A seleção dos participantes se deu por meio dos seguintes procedimentos: 1) Primeiramente foi aplicado um questionário quantitativo com 198 agricultores, o qual fazia parte do estudo de tese da primeira autora. Os participantes desse estudo responde-ram no questionário se gostariam ou não de conceder uma entre-vista, e, em caso afirmativo, forneceram seu número de telefone; 2)

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Foram sorteados um total de 20 participantes dentre os que haviam respondido afirmativamente; 3) Estes foram contatados pela ordem de sorteio e o número de entrevistas realizado até atingir o critério de saturação dos dados. Adotou-se a entrevista semiestruturada, seguindo um roteiro que abordava os seguintes assuntos: percep-ção do desastre, seca e bem-estar familiar, sentimentos relaciona-dos ao desastre, apoio social, preparo familiar e estratégias para lidar com a seca. Para a coleta de dados biosociodemográficos foi utilizado um breve questionário.

Os agricultores entrevistados desenvolviam as seguin-tes atividades agrícolas: produção de leite, cultivo de porongo para fabricação de cuia, cultivo de amendoim e agroindústria de rapadura, fabricação de carvão, cultivo de fumo, cultivo de grãos (milho, feijão, soja). Para fins de análise e para preservar a identi-dade dos participantes, seus nomes foram substituídos por partici-pante P1F, P2F, P3M, P4M, P5M, P6M e P6F, sendo M = masculino e F = feminino.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), através do Protocolo número 2010003. As entrevistas foram rea-lizadas após autorização dos participantes e seu consentimento expresso por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e da autorização para a gravação de áudio, conforme os critérios éti-cos para a pesquisa com seres humanos que constam na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 1996).

Após transcrição das entrevistas na íntegra, os dados foram analisados pelo método qualitativo de Análise de Conteúdo (Bardin, 1979), com auxílio do programa Atlas.ti, versão 5.6. Realizaram-se as seguintes etapas de análise: a) leitura e discussão de cada caso, buscando identificar características gerais e especificidades; b) exploração e codificação, por meio da classificação das falas em unidades de análise independentes; c) agrupamento das unidades

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em categorias analíticas, resultantes daquelas propostas a priori (dedutivo) em consonância com as que emergiram do contexto dos dados (indutivo); d) tratamento dos resultados, por meio da des-crição das categorias analíticas e do estabelecimento de relações entre elas; e) interpretação do sentido adquirido entre as unidades e categorias no contexto do estudo. As unidades de sentido, a cate-gorização final e a interpretação dos resultados foram obtidas por consenso entre três juízes.

Resultados e discussões

Os resultados das entrevistas foram agrupados em cate-gorias analíticas, descritas na Tabela 1, compostas de unidades de análise, identificadas e extraídas da fala dos participantes. A seguir, descreve-se cada uma das categorias.

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Quadro 1 – Categorias relativas à seca no contexto da família agrícola

Categoria analítica Unidades de análise

Descrição física do desastre

– falta de água– clima abafado – secam as plantas– falta de chuva– seca a terra– sol forte

Percepção do desastre

– a seca é esperada– a vida seria melhor sem a seca – o desastre é ruim para a agricultura– traz prejuízo– a seca é recorrente

Impactos objetivos da seca

– alteração da rotina familiar– redução nas atividades de lazer– dificuldades financeiras– restrições na dieta alimentar – falta de água para consumo humano, animal e

higiene pessoal

Impactos subjetivos da seca

– desânimo– desespero– insegurança– impotência– tristeza– aborrecimento – preocupação– prejuízo no sono

Estratégias para lidar com o desastre

– autocontrole– antecipar plantio– corte de gastos– buscar uma fonte de renda alternativa – buscar novas possibilidades para lidar com o

desastre (irrigação)– saída do campo – utilizar recursos externos– acostumar-se com o desastre

Apoio social– apoio familiar– apoio dos amigos/outros– ajuda externa (pública)

Descrição física do desastre

Ao serem solicitados a falarem sobre a seca, os partici-pantes passaram a descrevê-la a partir de suas características e

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consequências, como por exemplo, “falta de chuva, morre tudo, seca a terra... Falta água, fica abafado... Falta umidade no ar. Morre a planta, a árvore e tudo” (Participante 1 Feminino = P1F).

Os agricultores definem a seca do ponto de vista da agricul-tura, relacionando o desastre com suas implicações na atividade agrícola, na modificação do ambiente em que vivem e como algo distinto da normalidade física. Ao mesmo tempo em que descre-vem a seca, apontam suas consequências, tais como: “tu faz as planta (sic), pastagem pras vacas, essas coisas, praticamente não desenvolve nada, não cresce, falta de água, né, e, para tudo” (P5M).

Teoricamente existem diferentes definições para seca, como por exemplo, secas meteorológicas, secas agrícolas, secas econômicas e ainda secas de recursos hídricos (Pereira, Cordery, & Iacovides, 2002). Observa-se na fala dos participantes uma compre-ensão global do fenômeno a partir de suas experiências empíricas, sendo que a descrição física da seca é acompanhada pela dimensão do prejuízo que ela traz (carência de diferentes tipos de recursos primários), como pode ser observado na seguinte fala: “termina a água, daí, termina a pastagem pra quem tem gado, seca a planta, não tem, não dá nada (P6M)”, ao mesmo tempo em que relacionam seus impactos com as consequências psicológicas e no bem-estar familiar, aspectos que são abordados nas demais categorias.

Percepção do desastre

Relativo à percepção do desastre, os participantes descreve-ram a seca como um evento esperado por causa da sua recorrência e que traz prejuízo, conforme as falas a seguir: “a gente se dá conta que está acontecendo e sempre é esperado” (P1F) e “a seca é uma coisa que vai trazer prejuízo com certeza” (P3M).

Desse modo, a percepção que os participantes têm da seca é de um evento esperado e negativo, sobre o qual têm pouco controle,

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especialmente, quando relacionado com as suas consequências, ou seja, as perdas reais na agricultura.

Então, a seca pra nós é o inimigo maior na agricultura porque tu planta (sic) esperando que cresça e não desen-volve nada, né. Então pra nós é uma das piores coisas assim (P5M).

Para Slovic (2010), a população de um modo geral possui uma concepção ampla de riscos, qualitativa e complexa, que incor-pora considerações, tais como medo, incerteza, potencial catastró-fico, controlabilidade, equidade, risco para as futuras gerações, etc. Ao mesmo tempo em que os participantes reconhecem que a seca é um desastre esperado, também assumem a dificuldade de contro-lar os seus impactos na agricultura e que, obviamente, resultam em prejuízos para a família em diferentes aspectos.

No caso da seca, não está presente a ilusão de invulnera-bilidade, o que é muito comum frente ao risco de desastres, espe-cialmente aqueles de caráter súbito e com consequências incertas. Nesse sentido, Paez, Fernández e Martín Beristain (2001) referiram que quando as pessoas sabem que os efeitos negativos de um evento afetam a todos de maneira indiscriminada, como no caso da seca, a tendência é não mostrarem ilusão de invulnerabilidade e, nesse caso, perceberem o risco de ser afetadas pelo desastre.

Impactos objetivos da seca

Os participantes referem que um dos principais impactos da seca é no setor financeiro e, consequentemente, isso traz impli-cações para o bem-estar, através de preocupação, aborrecimento e prejuízo no sono, além de dificuldades de higiene e prejuízos na ali-mentação. Em relação aos impactos financeiros destacam: “reflete que tu perdendo a safra tu perde (sic), tu não tem (sic) salário, tu não tem (sic) do que viver” (P1F). E ainda:

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Tu planta (sic) pra dar, gasta pra tu botar (sic) na lavoura, e não, depois não dá nada. A gente se sente mal, né, aborrecido. Como que tu vai (sic) pagar alguma dívida? Vai (sic) tirar de onde pra pagar se não dá na lavoura? É triste. (P6F)

Em relação aos efeitos da seca no bem-estar, Boeckner et al. (2003) constataram que este último declina quando ocorre o desas-tre, e está relacionado com o decréscimo nos ganhos financeiros, o alto nível de estresse, menor contato social e maior incidência de adoecimento, especialmente entre os mais velhos, em épocas de seca. Os autores também referiram que o estresse financeiro é frequentemente um dos aborrecimentos diários que as famílias têm que lidar. Somando-se a outras dificuldades, decorrentes ou não das secas, o estresse financeiro pode se tornar agudo ou crô-nico. Staniford et al. (2009), numa pesquisa com citricultores, veri-ficaram que as dificuldades financeiras, decorrentes das secas ou oscilações de mercado, são a principal fonte de estresse para essa população.

Foi possível constatar, a partir do estudo com os agricultores familiares do Rio Grande do Sul, que a seca é um evento que não permite à família se organizar financeiramente, diante da dificul-dade de prever a sua duração e consequências, bem como diante da recorrência do desastre muitas vezes em anos consecutivos. Um dos aspectos relatados como reflexo do desastre é o acúmulo de dívidas relacionado com a perda da produção e a consequente falta de dinheiro para a subsistência familiar e manutenção das ativida-des na propriedade, assim como para saldar os compromissos da safra anterior e investir no próximo processo produtivo:

A preocupação. Sempre a gente tem compromisso, e quer pagar. E quando chega de madrugada a gente se acorda e se lembra. E vamos pagar amanhã com o quê? Se o dinheiro que vem é da lavoura, se não vem da lavoura

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é muito pouco [...]. Mas vêm acumulando de um ano pra outro, de um ano pra outro... vêm acumulando (P4M)

Recorrer a estratégias que levam ao acúmulo de dívidas, segundo Roncoli et al. (2001), só acontece quando as famílias esgo-taram outros recursos e estratégias para lidar com o desastre. Para os autores, esta é uma estratégia das famílias mais pobres, que posteriormente acabam tendo que vender produtos por um baixo preço para pagar suas dívidas.

A seca também interfere na rotina diária, levando algumas famílias a terem que providenciar água e alimentação para seus membros e para os animais. Além de aumentar a preocupação, aumenta também o volume de trabalho diário:

Interfere, porque perde tempo atrás de buscar água e o pasto morre, aí tem que providenciar outra comida, e pra gente também falta verdura, falta fruta, até perde, de repente, tipo o feijão, coisas assim, arroz, né... (P1F).

Sobre o aumento de volume de trabalho mencionado pela participante, outros aspectos também podem contribuir. Roncoli et al. (2001) verificaram que, diante das perdas agrícolas, por exem-plo, é normal os agricultores terem que replantar suas lavouras, o que dobra a necessidade de esforços para produzir naquele perí-odo. Isso também foi constatado no contexto deste estudo, sendo o replantio da lavoura uma estratégia de enfrentamento dos preju-ízos do desastre (Favero, 2006).

Dificuldades de higiene e lazer também foram menciona-das pelos participantes: “ah, mas desde a higiene, desde a água, você não tem água, como é que você vai ter higiene? Nunca” (P6F), ou:

Tu vai (sic) sair de casa pra ir (sic), digamos assim ó, se fosse à festa domingo lá, tá, vamos sair, vamos à festa.

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Agora tá (sic) tudo calmo, tá (sic) tudo quieto, tudo é fresquinho, é frio, nada de perigo de incêndio, nada, mas se for quente tu vai (sic) sair o dia inteiro, a vaca está passando sede, o terneiro de repente pega sol, morre do calor, e assim vai indo tudo, a casa tu fecha (sic), aquilo vira um perigo de pegar fogo, daí tu sai (sic) e a cabeça fica em casa (P1F).

Verifica-se que a seca traz várias implicações em diferentes domínios do bem-estar familiar e que embora seus prejuízos possam ser mais bem avaliados pela dimensão financeira, os agricultores estudados evidenciaram outros aspectos pertinentes. Constatou-se que também são importantes os impactos na higiene, lazer, rotina diária, descanso e alimentação, de modo que o bem-estar das famí-lias rurais não pode ser avaliado apenas pelos aspectos objetivos, mas também pelos subjetivos.

Impactos subjetivos da seca

Os entrevistados relataram vários sentimentos decorrentes do desastre, tais como, desânimo, aborrecimento, preocupação, desespero, insegurança, impotência e tristeza: “dava aquela sensa-ção assim de faltar tudo né, porque tu estás vendo aí que está mor-rendo tudo, tu esperas o quê? Dá um desespero né! Por que, o que mais? É, é uma pena!” (P3M) e “a gente sempre tem um sentimento, né? Vê (sic) a lavoura morrendo dia por dia, e sabendo que não dá pra fazer nada, né?” (P4M).

A gente sempre se sente mal porque olha tudo o que a gente trabalha, se esforça e... e ver o sol, que o sol vai levando tudo, o trabalho da gente, né, isso é difícil da gente... dá vontade até de desistir de ser agricultor (P3M).

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Faltando água dá uma sensação de insegurança, de que tu não vais ter de repente com o que sobreviver e que vai te faltar a renda, a renda gera em cima disso ali, mor-rendo as plantas, as coisas, se foi, faltou água, morre o gado, morre tudo... (P1F).

Pode-se constatar que as mudanças objetivas que ocorrem no ambiente em decorrência da seca se refletem em mudanças subjetivas para os agricultores, o que ficou evidente na fala dos participantes. Desse modo, observa-se um vínculo estreito entre o agricultor e a natureza, de modo que as consequências objetivas são sentidas subjetivamente e expressas por meio de suas falas.

Autores como Staniford et al. (2009) encontraram sintomas depressivos e afetivos ao analisar os impactos da seca em citriculto-res do Sul da Austrália. Dentre os sintomas estavam: sentir-se mal, tristeza, perda da motivação, ideação suicida, isolamento, nega-tivismo, baixa autoestima, além de frustração, desapontamento e irritabilidade. Se comparados esses resultados com os do estudo atual, pode-se perceber muita semelhança entre os dois contextos. No entanto, não foi mencionada ideação suicida ou irritabilidade, ao passo que os participantes deste estudo referiram o sentimento de impotência diante da seca e insegurança quanto ao futuro, o que pode estar relacionado à percepção da seca como um fenômeno incontrolável (Logan & Ranzijn, 2008).

O estresse por fatores financeiros está também relacionado aos prejuízos no sono de acordo com Bosch (2004), dado corrobo-rado pelos entrevistados deste estudo: “Ah interfere (referindo-se ao bem-estar). Interfere porque a gente já fica preocupado (sic), né, não dorme, às vezes não... porque a preocupação a gente sempre foi de nunca negar conta né. [...] Chega o dia, e daí?”( P3M).

Pode-se constatar que a seca é um desastre com potencial para afetar a saúde psicológica dos agricultores. Dentre os senti-mentos evidenciados, estão a impotência e a insegurança quanto

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ao futuro, bem como o desânimo e a tristeza. Destaca-se que o quanto uma seca se prolonga no tempo e o quanto de prejuízo ela causa, são variáveis importantes a serem considerados na análise do bem-estar para esta população.

Estratégias para lidar com o desastre

Partindo do contexto estudado, os participantes afirmaram não estarem preparados para lidar com a seca, por causa da sua condição econômica, verbalizando nos seguintes termos: “acredito que não” (P6M) e “mais ou menos. Não muito. Até pelo poder aqui-sitivo, né” (P1F).

Nesse sentido, uma expressão utilizada para descrever a maneira de lidar com o desastre é “ir levando”:

Não tem o que fazer, tem que ir indo, vai levando, vai fazendo como e o que dá porque não tem alternativa [...] se não for muito grande até que... mas agora, se der uma seca grande mesmo não (P3M).

A expressão “ir levando” pode estar indicando uma necessi-dade dos participantes de se acomodarem à nova situação e, então, com o passar do tempo poder decidir o que fazer diante das mudan-ças no contexto de vida. Pela característica de imprevisibilidade da seca, ela acaba se configurando num desastre que dificulta a tomada de decisão. É difícil precisar quando irá acabar e contabili-zar as suas consequências inicialmente. Além disso, de acordo com Hobfoll (1989), indivíduos que têm poucos recursos tendem a usar o coping passivo, de modo a tornarem-se menos vulneráveis para a perda. A perda de recursos é um importante fator de risco para o bem-estar subjetivo para Hobfoll, de modo que a tendência do indi-víduo é tentar minimizá-la em situações de estresse, por meio do mecanismo de conservação de recursos. Desse modo, utilizar uma

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estratégia de coping passivo não é o mesmo que não fazer nada, uma vez que existe uma intencionalidade neste comportamento.

Dentre as estratégias de coping, os participantes também mencionaram fazer uso do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) como uma alternativa de renda em épocas de seca: “ah, isso a gente faz, a gente faz empréstimo, a gente faz aqueles PRONAF investimento, essas coisas é o único ganho, aí a gente consegue repor alguma coisa” (P2F).

No entanto, o objetivo do programa é apoiar financeira-mente atividades agropecuárias e não agropecuárias exploradas mediante emprego direto da força de trabalho do produtor rural e de sua família (Rocha et al., 2008), não se tratando de um programa de compensação de renda. Desse modo, políticas públicas específi-cas para o caso da seca são de fundamental importância neste con-texto, especialmente porque poder contar com mais uma fonte de apoio social não é apenas relevante do ponto de vista financeiro, mas também psicológico, na medida em que pode auxiliar as famí-lias a vislumbrarem novas perspectivas de futuro e a perceberem que há mecanismos de apoio social disponíveis.

A partir da experiência com o desastre, as famílias também desenvolveram algumas estratégias de coping ativo, focado na reso-lução do problema, de maneira a minimizar seus efeitos, tais como: “primeiramente a gente se prepara quando tem previsão de seca, plantar mais cedo” (P4M) e “primeiro de tudo, procura nessa época não gastar muito, né. A gente sempre não conta com a produção lá na frente. E daí, a gente sempre economiza” (P5M), ou ainda “comecei a produzir mais leite e a aumentar a produção de leite” (P5M), de modo a ampliar a diversificação dos ganhos. Observa-se na fala dos participantes que ao mesmo tempo em que a seca traz o sentimento de insegurança quanto ao futuro, ela também pro-voca nos agricultores uma atitude clara de antecipação de futuro. A estratégia de antecipação de futuro é uma característica da agência

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humana para Bandura (2006), que se reflete em autoeficácia e con-trole pessoal sobre as circunstâncias de vida e representa um fun-cionamento psicológico positivo diante das adversidades.

Todavia, está também presente nas falas dos participantes uma aceitação do fenômeno, sobre o qual não teriam amplo con-trole: “tem que ir lidando com ela, né? Esperando que amanhã ou depois chova, né? E a gente endireita tudo de novo” (P4M), ainda “olhar pra Deus mandar chuva pra tu fazer (sic) alguma coisa? É né, o que tu vai (sic) fazer?” (P6F). Esse dado pode estar refletindo o sentimento de desamparo aprendido ou fatalismo, ou seja, um estado de pessimismo que resulta de se explicar um evento negativo através de fatores estáveis, internos e globais. Esse tipo de interpre-tação da realidade leva à desesperança, à depressão e a diminuição do esforço de enfrentamento e tem suas raízes na cultura, a qual fornece as explicações e significado para a maioria dos aconteci-mentos (Aronson, Wilson, & Akert, 2002).

Autores como Wenger e Weller (1973) descreveram que repetidas crises com mais ou menos a mesma magnitude (como ocorre com a seca no contexto estudado) causariam o que chama-mos de “subcultura do desastre”, ou seja, a diminuição da percep-ção do risco e a consequente aceitação do seu potencial de perdas. O desenvolvimento da subcultura também funcionaria como uma estratégia de mitigação dos efeitos do estresse (Coêlho, 2007), o que pode ser observado nas seguintes afirmações: “tô (sic) acostu-mado já com ela. Cada segundo ano dá uma seca. A gente tá (sic) meio preparado pra isso aí” (P4M) e, “ah, nós já acostumamos né, todos os anos se vier seca a gente até nem estranha muito mais, né” (P5M).

Ainda no sentido de lidar com o estresse, uma participante fez referência a uma estratégia de coping cognitivo: “ultimamente até aprendi a me controlar, mas antigamente eu sofria muito, eu até perdia o sono” (P1F). A definição de coping implica no fato de

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que as ações não são classificadas de acordo com seus efeitos, mas com as características do processo podendo estar relacionadas, por exemplo, com elementos internos (coping focado na emoção), na tentativa de reduzir um estado emocional negativo, ou mudar a avaliação da situação de estresse (Krohne, 2002).

No que diz respeito à perspectiva de futuro, a irrigação foi apontada como uma maneira de minimizar os impactos do desas-tre: “a minha ideia é fazer irrigação pelo menos um pouco da pasta-gem, né. Pra nessa época da seca tu teres um pedaço lá que tu pode (sic) irrigar pra não faltar alimento pra vaca” (P5M). No entanto, as famílias referiram não ter recursos financeiros para isso.

Um participante mencionou a saída do campo como possí-vel estratégia para lidar com a seca, mas, no contexto da entrevista, também referiu outros fatores que influenciam a sua intenção de sair do campo. Autores como Logan e Ranzinjn (2008) observaram ter havido um declínio no interesse pela vida no ambiente rural por causa de fatores como a seca, falta de serviços básicos, enfraqueci-mento das comunidades, baixo preço dos produtos e o aumento do desejo por educação e oportunidades de emprego. Assim se expres-sou a participante: “o que a gente pensou é em ir embora. Arrumar um emprego, ou coisa assim” (P6M).

Observa-se que algumas das estratégias adotadas pelas famílias têm sua origem na própria experiência com o desastre, já prevendo que ele possa ocorrer, e isso faz com que antecipem cul-tivos, cortem gastos e façam economias quando da iminência de uma seca. A diversificação das atividades é um meio de minimizar possíveis perdas, de modo que nem todos os ganhos sejam afetados com o desastre. Constata-se assim que as estratégias adotadas obje-tivam a minimização do estresse por meio do aumento do controle sobre a situação.

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Apoio social

Em relação ao apoio social, os participantes fizeram refe-rência ao apoio da família, dos amigos e outros e à ajuda externa. Foi possível identificar dois tipos de apoio, o psicológico e o finan-ceiro. Quanto ao primeiro, a família é considerada a principal fonte de apoio: “a família um consola o outro, agora no caso, digamos assim, prefeitura, Estado, governo federal, essas coisas, muito pouco” (P1F), e ainda “ah, da família sim. Porque toda a família sente” (P3M). Os amigos também fazem parte da rede de apoio psi-cológico em épocas de seca:

Conversa. A gente conversa, assim, só que pedir ajuda não, a gente faz diálogo entre os amigos, o que acontece, o que eles perdem, o que a gente perde, o que a gente, né, só que buscar ajuda fora não (P2F).

Em relação ao apoio social, Marotta (2010) enfatizou que, em desastres, família e vizinhos devem ser estimulados a falar sobre sua experiência, promovendo assim apoio e conforto uns para com os outros, desencadeando o fator curativo do altruísmo e promo-vendo a resiliência natural e eventual recuperação. Observa-se que a população estudada não referiu buscar ajuda psicológica, o que é comum para populações rurais em razão de questões de estigma e dificuldades de acesso (Boyd, Quevillon, & Engdahl, 2010; Logan & Ranzijn, 2008), de modo que a família e os amigos desempenham um papel crucial na recuperação psicossocial em desastres.

Sobre o conteúdo das conversas informais entre vizinhos e amigos em épocas de seca, um participante referiu: “ah, a gente conversa, mas daí é tudo lamento, né. A gente só lamenta, não tem outra coisa a fazer” (P6M). Logan & Ranzijn (2008) também cons-tataram em sua pesquisa com mulheres da zona rural, que em épo-cas de seca o clima é o principal assunto nas conversas informais.

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Quanto ao apoio financeiro, os participantes falaram sobre a ajuda emergencial do governo: “é, se consegue, assim tipo, uma prorrogação, pro (sic) ano que vem. No ano que vem você tem que pagar igual” (P6M). Não foram encontradas referências a programas permanentes de minimização dos impactos da seca nas famílias, embora, se saiba que as consequências desse desastre costumam perdurar no tempo (Pereira et al., 2002) e que o apoio social, ou seja, a percepção de que existe ajuda disponível com a qual se pode contar para atender nossas necessidade (Hobfoll & Vaux, 1993), é um importante elemento no processo de manutenção da saúde e bem-estar em períodos de dificuldades.

A seca e o bem-estar dos agricultores familiares do Rio Grande do Sul

Constatou-se pela análise dos dados que quando uma seca ocorre as suas consequências afetam, especialmente, os recursos de sobrevivência familiar, por meio de perdas e de dificuldades diá-rias, causando impacto na saúde e bem-estar. Frente a isso, as famí-lias utilizam estratégias de coping, as quais variam de acordo com a disponibilidade de recursos familiares e apoio social, podendo ser estes suficientes ou não para dar conta das demandas do contexto. As famílias também podem acessar outros recursos disponíveis como os comunitários e diferentes tipos de ajuda externa, sendo importante que possam ter a garantia de recursos alternativos para a minimização dos impactos do desastre.

Diante disso e tendo como referência Hobfoll (2001), a Figura 1 apresenta um modelo de compreensão da seca no contexto da família rural, buscando sistematizar como ocorre o processo de perdas desencadeado pelo desastre e a consequente utilização de recursos de enfrentamento pelos agricultores estudados.

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Figura 1 – O uso de recursos pelos agricultores familiares afetados pelas secas e sua relação com o bem-estar

Nota: Adaptado de Hobfoll (2001).

Foi possível observar no relato dos participantes que as famílias buscam lidar com as consequências do desastre, primei-ramente utilizando recursos próprios, acessando posteriormente a ajuda de parentes, vizinhos e comunidade, para por fim, quando se esgotam esses recursos, buscar a ajuda externa por meio do auxílio governamental. Dependendo dos recursos familiares e das caracte-rísticas do desastre, bem como dos seus impactos, algumas vezes

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é possível obter resultados positivos e, assim, diminuir o tempo de exposição ao estresse. Por outro lado, quando recursos primários e secundários são escassos, a tendência é que as famílias necessitem de auxílio público para minimizar as consequências negativas do desastre.

A disponibilidade de ajuda externa, além de ser um fator protetor para os impactos psicológicos da seca, quando adequada, pode levar as famílias a obterem resultados positivos em seus esfor-ços para lidar com o desastre, além de devolver-lhes a perspectiva de futuro, um fator importante para o funcionamento psicológico positivo. Do contrário, as famílias poderão não alcançar os resul-tados pretendidos com seus esforços, levando ao agravamento das perdas e do tempo de exposição ao estresse para além inclusive da duração do desastre em termos meteorológicos. Nesse último caso, pode-se citar como exemplo o endividamento que leva a perdas secundárias, ou seja, a perda de outros recursos importantes para a sobrevivência, vindo a prolongar o período de exposição ao estresse e influenciar negativamente o contexto de vida familiar mais amplo. Por outro lado, resultados positivos podem levar a ganhos secun-dários que aumentam a disponibilidade de recursos de coping e influenciam positivamente na vida da família, mantendo a crença de eficácia para lidar com o desastre, um fator importante para a manutenção da saúde psicológica.

Quanto a utilizar recursos coletivos de coping, é importante considerar que as estratégias comunitárias quase sempre tendem a gerar ganhos positivos se comparadas ao uso da ajuda externa, como, por exemplo, a que provêm de doações e medidas emergen-ciais. Norris e Kaniasty (1996) referiram que o apoio recebido pode ser uma ameaça para a autoestima quando utilizado de maneira inadequada, pois não desenvolve o empoderamento pessoal e comunitário. Além disso, esse tipo de ajuda tende a ser paliativo ou a se retirar antes mesmo dos problemas terem sido solucionados, o

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que não significa que não seja um tipo de apoio necessário, mas que não irá permanecer no longo prazo (Dass-Brailsford, 2010).

Por outro lado, a mobilização comunitária mantém a per-cepção de apoio social a qual tem relação direta com a manutenção da saúde psicológica e do bem-estar (Norris & Kaniasty, 1996), ao mesmo tempo em que a recuperação do indivíduo está diretamente relacionada com a recuperação comunitária (Boyd et al., 2010). Por exemplo, uma família que necessita fazer uso de recursos externos como o financiamento para a sua sobrevivência devido às perdas na produção agrícola está assim adquirindo uma dívida e, por sua vez, futuramente poderá ter de vender algum bem para pagá-la. Do contrário, uma família que necessitou de água durante uma seca e, juntamente com outras famílias com o mesmo problema, mobilizou-se para conseguir a construção de um poço artesiano, na próxima seca esse mesmo problema certamente será minimizado, pois foi adquirido um importante recurso que gera não apenas água, mas também fortalecimento do apoio comunitário por meio da mobilização coletiva.

Por fim, o apoio social mobilizado no âmbito da comuni-dade, para ter efeito positivo no bem-estar, precisa também ser disponibilizado de maneira igualitária (Norris & Kaniasty, 1996). O apoio social nasce das relações sociais, as quais promovem ou facilitam a preservação de outros recursos importantes (Hobfoll, 1989). Quando adequado, promove no indivíduo o senso de com-petência para lidar com situações estressantes (Norris & Kaniasty, 1996), tornando-se assim um aspecto fundamental na manutenção da saúde em desastres.

Considerações finais

O presente capítulo teve como objetivo analisar como as perdas ocasionadas pelas secas exercem influência sobre o bem--estar dos agricultores e identificar as estratégias de coping e os

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recursos utilizados pelas famílias rurais para lidar com o evento. Buscou ainda estabelecer relações entre esses diferentes aspectos, de modo a compreender o desastre seca no contexto de vida das famílias rurais.

Constatou-se a necessidade de que as políticas para a seca não sejam direcionadas apenas aos impactos econômicos do desas-tre, mas que também ofereçam apoio psicossocial às famílias afe-tadas, pois as consequências objetivas do desastre são também vividas subjetivamente pelos agricultores. Numa sequência de perdas, perceber algum tipo de ganho é importante para a redução do estresse num contexto de alta demanda por recursos, de modo que as políticas sociais poderiam contribuir tanto na manutenção dos recursos essenciais para a sobrevivência quanto no desenvolvi-mento de programas de fortalecimento das famílias frente a desas-tres futuros. Desse modo, políticas públicas para o caso da seca, em caráter permanente, poderiam auxiliar na redução dos impactos do desastre, minimizando a exposição das famílias ao estresse não apenas através da manutenção dos recursos mínimos de sobrevi-vência, mas como fonte de apoio socialmente reconhecida, man-tendo-se disponível no longo prazo e ampliando as perspectivas de futuro para as famílias.

Observa-se no contexto de estudo a ausência de políticas públicas de longo prazo e a presença de medidas emergenciais. Estas não funcionam como um recurso de apoio social disponível que mantém também a percepção dos agricultores em poder con-tar com este importante recurso, pelo seu caráter momentâneo e não articulado. Embora instrumentais, são medidas que não pos-sibilitam aos agricultores se organizarem de maneira a controlar as consequências do desastre pelo fato de serem disponibilizadas ape-nas depois da ocorrência da seca e quando os prejuízos já tomaram proporções significativas.

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Embora não tenha sido o foco do estudo, os participantes referiram que as pessoas mais jovens têm dificuldades de perma-necer na agricultura, o que interfere na disponibilidade de mão de obra familiar uma vez que a unidade familiar é a base desse tipo de estrutura produtiva (Logan & Ranzijn, 2008). A justificativa para isso, segundo os participantes, está na pouca atratividade pela vida no campo, sair para estudar e não regressar mais, além de que, atu-almente, em muitas regiões do brasil está sendo possível residir no campo e trabalhar na cidade, onde os jovens encontram melho-res condições de trabalho e rendimentos do que os alcançados na agricultura.

Dentre as limitações do estudo está o fato de que inicial-mente alguns dos participantes apresentaram dificuldades para responder à entrevista, utilizando respostas como “não sei respon-der”, ou frases curtas. Desse modo, foi difícil manter o roteiro da entrevista, tendo-se que encontrar a maneira mais adequada de se perguntar a mesma coisa para cada entrevistado em específico e desse modo facilitar o desenvolvimento do diálogo entre entre-vistador e entrevistado. Conversando com os participantes desco-briu-se que eles pensavam que havia uma resposta certa para cada pergunta e esclarecer que não existia resposta certa facilitou com que verbalizassem seu ponto de vista.

Em relação ao trabalho do psicólogo com comunidades rurais, cabe mencionar que a maioria dos profissionais, além de viver em cidades, foi treinada para trabalhar com populações urba-nas, de modo que muitos aspectos devem ser considerados antes de se analisar uma realidade que de certa forma é estranha à Psicologia. Viver no campo é estar ligado diariamente a eventos incontroláveis como o clima e a oscilação dos preços dos produtos, por exemplo. A exposição ao risco é por si só uma fonte considerável de estresse e a ocorrência de qualquer tipo de desastre deve ser considerada ao se tratar de saúde psicológica, pois o bem-estar dessa população está diretamente relacionado com o sucesso produtivo da unidade

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familiar (Logan & Ranzijn, 2008) e, obviamente, com a capacidade de ter controle sobre as consequências dos infortúnios climáticos. O grau de perdas, a disponibilidade de recursos e a percepção de apoio social configuram-se também em importantes indicadores de saúde mental em populações rurais.

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Agricultura Familiar Orgânica: em busca de qualidade de vida no âmbito do desenvolvimento

rural mais sustentável

Yldry Souza Ramos Queiroz Pessoa João Carlos Alchieri

Introdução

O modelo predominante norteador do desenvolvimento rural brasileiro, desde a II Guerra Mundial, está sinalizando indi-

cadores de esgotamento socioambiental. Esse cenário deve-se não somente ao desgaste dos recursos naturais, mas também à degra-dação da fauna e flora, além das consequências deletérias à saúde do agricultor.

Pretende-se contribuir com o conhecimento acerca da Agroecologia, sugerindo que esse novo enfoque científico seja uma estratégia voltada para uma agricultura mais sustentável. Desse modo, aponta-se como um tipo de agricultura que apresenta

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adequado manejo da terra, tornando-se um trabalho que valoriza o saber fazer do agricultor, dignificando-o socialmente.

Ademais, considerando-se o aumento da procura por ali-mentos saudáveis no mercado, a produção orgânica revela-se como uma promissora alternativa para o desenvolvimento sustentável. Esse cenário constitui-se relacionado a uma maior conscientiza-ção ecológica, que anuncia um novo horizonte para redefinir-se as bases da atividade agrícola no país.

A adoção de práticas orgânicas prevê mudanças observadas tanto na qualidade dos alimentos quanto na saúde dos trabalhado-res. É relevante destacar ausência do uso de agrotóxicos no cultivo e liberdade do agricultor para gerir sua produção. Logo, o caminho sugere uma sociedade guiada por um comportamento com base ecológica e social mais justa.

Refletir sobre a qualidade de vida do agricultor familiar torna-se necessário evidenciar as peculiaridades do mundo rural, dentro do conjunto cultural de cada comunidade. Para tanto, rela-cionar qualidade de vida e AOF (Agricultura orgânica e familiar) possibilita a promoção de valores sociais, aumento da autonomia dos agricultores e uma percepção positiva acerca do estado geral de saúde da família.

No meio rural, a QV (Qualidade de Vida) se relaciona ao grau de conhecimento dos agricultores de que suas necessi-dades podem ser supridas através de práticas agroecológicas. Alicerçadas em relações sociais e familiares capazes de promover o resgate cultural e melhorar as condições de vida do trabalhador do campo. Nessa perspectiva, o vínculo que o agricultor constrói com sua atividade laboral e o reconhecimento da sociedade, não lhe relegando a papel secundário no processo produtivo, apre-senta-se como um elo importante na promoção da qualidade de vida no contexto da AOF.

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Agricultura orgânica e familiar: uma proposta sustentável

No Brasil rural, as condições de vida e de trabalho expres-sam-se comprometedoras. A modernização agrícola brasileira, sob a ordem do agronegócio, incentiva a agricultura convencional1. O maior ponto de vulnerabilidade é a sua dependência do uso insus-tentável de recursos naturais renováveis e não renováveis (Weid, 2012). Desenvolve-se sob a ideia de maximização da produtividade, intensa jornada de trabalho, exploração do meio ambiente e coloca o futuro da alimentação em situação de risco.

Concomitante a esse modelo de desenvolvimento, emerge um movimento global norteado a defender e a promover manei-ras sustentáveis de produção de alimentos. Por não aceitar os pre-ceitos da agricultura convencional esse processo inicialmente foi chamado de “agricultura alternativa”. Somente a partir de 1990, especialmente na América Latina, essa nomenclatura foi alterada pela “Agroecologia” (Duque; Mello, & Araujo, 2012). Trata-se de um novo modelo de agricultura com base no sistema de sustentabili-dade2, na produção de alimentos e na preservação dos recursos naturais (Franco Netto et al., 2009), restaurando a resiliência e a força dos agroecossistemas.

Em contraposição ao sistema convencional que usa o emprego intenso de capital e trabalho mecânico, a Agroecologia privilegia o trabalho qualificado empregado em pequenas unidades de gestão familiar. Assim, as condições de vida do homem podem ser estudadas e inseridas na saúde dos ecossistemas, enaltecendo a

1 O termo agricultura convencional aqui utilizado se refere à agricultura pratica-da dentro da perspectiva do Padrão Técnico Moderno (PTM).

2 Conforme Altieri (2009, p. 77), “sustentabilidade é compreendida como a capa-cidade de um sistema de manter sua produtividade quando submetido a estres-ses e perturbações, então, de acordo com princípios básicos de contabilidade, os sistemas de produção que danificam a estrutura do solo ou exaurem seus nutrientes, matéria orgânica ou biota, são insustentáveis”.

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sustentabilidade socioambiental que tenha como norte o respeito à vida e à diversidade sociocultural das populações.

De forma mais explicita, há existência de experiências de práticas alternativas no meio rural, com características de susten-tabilidade no cultivo de alimentos, preservação ambiental e maior qualidade de vida no campo, a exemplo da agricultura familiar e agricultura orgânica, viabilizando relações entre o campo e a cidade. Essa relação é no intuito de incluir equidade de oportu-nidades, justiça social, segurança alimentar e crescimento econô-mico (Franco Netto, et al., 2009).

A Agricultura Familiar (AF) é, indiscutivelmente, a base sociocultural que generaliza a alternativa agroecológica, uma vez que mais de 1,4 milhões de agricultores espalhados pelo mundo optaram pelos princípios Agroecológicos. Depois de estudos reali-zados em vários projetos constatou-se que houve aumentos médios de 100% na produtividade e 400% em condições transitórias nos sistemas manejados de acordo com o enfoque agroecológico (Weid, 2012).

Entende-se por Agricultura Familiar um modo de produ-ção que abarca particularidade relacionada à força de trabalho. Constitue-se basicamente de origem familiar, cujos membros da família são os principais responsáveis pelas tarefas agrícolas, de maneira que “a unidade familiar se entrelaça e se confunde com a unidade produtiva” (Ribeiro, 2009, 53). Compreende-se que a agri-cultura familiar passou a existir como um novo paradigma coletivo integrador em oposição ao empresário rural produtivista, tecnicista e predador, consequentemente, opondo-se à agricultura patronal3.

Segundo Muller (2011, p. 198), “a agricultura de lógica familiar, por sua maior capacidade de cumprir com o papel da

3 Conforme Ribeiro (2009), tem como características: organização centralizada, completa separação entre gestão e trabalho e ênfase nas práticas padronizáveis.

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multifuncionalidade, tem demonstrado estar mais próxima ao ide-ário de uma agricultura sustentável”. Heuser (2003, p. 101) ressalta a melhoria da qualidade de vida dos agricultores familiares com o resgate das maneiras mais fidedignas de lidar com o meio “sobre-tudo nas relações de trabalho, com a valorização não só daquilo que é obtido a partir desse esforço humano, mas também do próprio processo laboral”.

A agricultura familiar é a que mais se adapta às característi-cas da Agricultura Orgânica (AO), essencialmente por apresentar, em geral, área de plantio pequena, por ser diversificada, autossus-tentável e, principalmente, por ter mão de obra disponível. A AO é um sistema produtivo que rompe com o Padrão Técnico Moderno4 e é um instrumento de um projeto social focado para o desenvol-vimento da AF. Na sua constituição busca questionar os resulta-dos do referido padrão produtivo sobre as condições de vida. Seu objetivo principal volta-se para a melhoria da qualidade de vida dos produtores e dos consumidores. Garante no processo produ-tivo a sustentabilidade ambiental, com desenvolvimento e promo-ção social da atividade agrícola. Revela-se atenta às relações que articulam os conceitos sobre saúde, partindo do pressuposto que a qualidade de vida é uma construção cultural multidimensional. Ademais, os agricultores familiares têm, por meio de práticas de uma AO, a possibilidade de agregar valor aos seus produtos em fun-ção de sua diferenciação ecológica.

4 O Padrão Técnico Moderno (PTM) da agricultura, ao priorizar altos ganhos de produtividade, suscitou crises em três dimensões: na dimensão econômica, mediante a elevação da eficiência tecnológica e comercial, incentivando a su-perprodução, cujas consequências ocorreram sobre o dinamismo da atividade produtiva; na dimensão social, uma vez que a modernização enfocou a grande propriedade agrícola tradicional, minimizando a necessidade da força de tra-balho; e, por último, na dimensão ambiental, com o uso excessivo e indiscrimi-nado dos agrotóxicos, com o risco de um sério desgaste de recursos naturais e humano (Azevedo, 2004).

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Neste paradigma, a Agricultura Orgânica Familiar (AOF) é regida pelo norte da agricultura familiar, acrescentando-se à premissa de uma agricultura orgânica. O sistema de AOF surgiu em oposição ao sistema convencional, que indica o uso maciço de agrotóxicos, objetivando aumentar a produtividade e, por con-seguinte, o lucro. Além do mais, colabora para a contaminação ambiental e compromete a saúde dos agricultores e dos consumi-dores pela quantidade acentuada de resíduos químicos nos alimen-tos (Cuenca, Moreira, Nunes, Mata, Guedes, Barreto, Lopes, Paz, Silva & Torres, 2007).

Em contraposição, os produtos produzidos na AOF proveem do trabalho coletivo familiar com valor nutricional equilibrado e isentos de venenos cujo consumo se relaciona com a promoção da saúde humana. São produzidos mediante atividade laboral que incentiva relações socioculturais salutares, bem como entrelaçam vínculos entre a promoção de um desenvolvimento rural mais sus-tentável e o resgate da qualidade de vida no campo. Diante desta premissa percebe-se a crescente conquista dos produtores familia-res orgânicos ganhando cada vez mais espaço junto aos consumi-dores, formando um novo nicho de consumo.

A Oceania aglomera os países com as áreas mais extensas de produção orgânica, seguido da Europa e da América Latina. Ressalta-se que a produção orgânica também é cultivada nos demais continentes, porém em áreas menores, equivalentes a 5% (Willer, 2010). O Brasil revela-se como o país mais promissor na produção orgânica do mundo. Há 90 milhões de hectares agriculturáveis, sem mencionar as áreas de produção convencional que se encontra em transição para a agricultura orgânica (Planeta Orgânico, 2010).

A região brasileira que agrupa o grande número de pro-priedades que cultivam a agricultura orgânica é o Nordeste com 42.236 propriedades. Conforme França, Del Grossi e Marques (2010), o Nordeste abarca 50% dos estabelecimentos de AF do

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país totalizando 2.187.295 hectares, sendo em média 13 hectares por estabelecimento agrícola. O Estado da Paraíba reúne cerca de 3.362 propriedades e cerca de 450 famílias paraibanas sobrevivem da Agricultura Familiar Orgânica e colocam o estado no primeiro lugar no ranking da região Nordeste nesse tipo de produção. Dados do Ministério da Agricultura (Mapa) revelam que a Paraíba tem a maior área plantada por esse segmento da região, cerca de 149 hec-tares (Oliveira, 2012).

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, por meio do Censo Agropecuário 2006, divulgado somente no ano de 2009, na distribuição dos estabelecimentos produto-res de orgânicos por grupo de atividade econômica, os estabele-cimentos com plantios de lavoura permanente e de horticultura/fruticultura figuravam com proporções de 10,4% e 9,9% em 2006, respectivamente.

Entre 1996 e 2006 aumentou a participação dos estabe-lecimentos da agricultura familiar que passaram de 85 para 88% do total. Houve um aumento de 412.598 esta-belecimentos familiares (de 9,9%) e uma diminuição na área total de menos de 1% [...], bem como percebemos que houve aumento na participação do valor bruto da agricultura familiar de 38% para 40% e em todas as regi-ões do país, especialmente no Norte e Nordeste, onde o crescimento foi de 11% e 9%, respectivamente (IBGE, 2006, p. 10).

Por isso, a AOF favorece a conciliação entre os aspec-tos complexos5 desejados e a supervisão e domínio do processo e

5 Os aspectos complexos são compreendidos como sustentabilidade econômica, social e ecológica.

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organização6 de trabalho necessário. É relevante a maximização da utilização de modelos de produção orgânica no desenvolvimento da agricultura familiar, especialmente junto aos produtores de menor nível de capitalização. Porquanto, o trabalho na AOF é rele-vante, pois incorpora os preceitos ecológicos, econômicos e sociais de sustentabilidade (Gemma, 2008). Portanto, a AOF volta a sua atenção para o resgate cultural na medida que enaltece o saber tra-dicional do agricultor familiar.

Diante disso, surge um momento de debate para a inclu-são do agricultor no mercado econômico e desenvolvimento rural mais sustentável, aspectos que também permeiam as discussões de qualidade de vida. Todavia, a relação entre qualidade de vida e tra-balho deve ser analisada focada em condições sociais, econômicas, políticas, psicológicas e antropológicas. Por isso ela se configura como importante por abarcar uma gama de fatores que perpassam o âmbito exclusivamente laboral, envolvendo, muitas vezes, quali-dade de vida.

Saúde e Qualidade de Vida do trabalhador rural

Falar sobre saúde implica um olhar amplo e detalhado. A palavra saúde pode remeter a múltiplos sentidos, dependendo da cultura, do momento histórico e do indivíduo. Nesse sentido, Ferreira (2008, p. 103) diz que “a noção de saúde e doença é tam-bém uma construção social, pois o indivíduo é doente segundo a classificação de sua sociedade e de acordo com os critérios e moda-lidades que ela fixa”.

6 A organização do trabalho é entendida neste trabalho como aquela que “define a estrutura ‘horizontal’ que especifica as fronteiras dos ‘postos’ (as máquinas, ferramentas utilizadas), e sobretudo as tarefas atribuídas com os procedimentos correspondentes” (Montmollin & Leplat, 2007, p. 42).

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A partir da segunda metade do século XX inicia-se uma mudança no modelo cartesiano-positivista até então dominante na saúde. Os próprios profissionais da saúde identificaram a necessi-dade de mudança no sistema e começaram a construir uma nova visão do conceito de saúde, ou melhor, “promoção da saúde”. A expressão “promoção da saúde” foi evidenciada pela primeira vez em 1945, quando o historiador e médico Henry Sigerist a citou como uma das tarefas da medicina. Sigerist defendia uma ação integrada entre políticos, lideranças sindicais, trabalhadores e patrões, edu-cadores e médicos. Essa união de esforços objetivava implementar políticas e programas de saúde, que seriam facilitados quando as necessidades básicas do indivíduo (emprego, saúde, educação, vida social) fossem satisfeitas (Pordeus et al., 2002).

Segundo Guimarães (1996), até os primeiros cinquenta anos do século XX, apesar das distintas concepções existentes sobre a saúde, dava-se destaque às enfermidades e aos meios de curá-las. Um exemplo disso é a recorrência na literatura da ideia de que a saúde é concebida apenas como a ausência de doença (Saforcada, 1992; Paim & Almeida Filho, 1998). A saúde foi conceituada em ter-mos ‘positivos’ em 1948 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como: “Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença” (OMS, 1987).

Após Sigerist direcionar o rumo e a direção desse modelo de atenção à saúde, diversos documentos e eventos respeitáveis foram surgindo e confirmando as bases da promoção da saúde. Nesse sen-tido, destacam-se, segundo Buss (2000a):

• InformeLalonde(1974):Representouomarco inicialderefe-rência para as políticas públicas no campo da saúde, ou seja, para se entender o conceito de saúde é preciso levar em consi-deração quatro componentes – biologia, humano, ambiente e estilo de vida.

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• DeclaraçãodeAlmaAta (1978):Trouxeo slogan “Saúde para todos no ano de 2000” que diretamente reforçava que a saúde é um direito humano fundamental e uma das mais importantes metas sociais mundiais.

• CartadeOtawa(1986):AssumiuadefiniçãodesaúdedaOMSeafirmava que a equidade em saúde é um dos focos da promoção de saúde.

• Declaração de Adelaide (1988): Seu tema principal foram aspolíticas públicas saudáveis que significam o interesse e preo-cupação de todas as áreas das políticas públicas em relação à saúde e sua igualdade, além dos compromissos com o impacto de tais políticas sobre a saúde da população. O principal obje-tivo dessa declaração foi criar um ambiente favorável para que as pessoas possam viver vidas saudáveis.

• IIIConferênciaInternacionalsobrePromoçãodaSaúde(1991):Destacou a relação intrínseca entre saúde e ambiente em todos os aspectos: físicos, sociais, econômicos e políticos.

• DeclaraçãodeJacarta(1997):Enfatizouosurgimentodenovosdeterminantes de saúde, como acesso aos meios de comunica-ção, globalização e degradação ambiental. Ressalta-se que foi a primeira conferência a incluir o setor privado no apoio à promo-ção da saúde.

Pode-se compreender que as conferências trouxeram importantes contribuições para que ao conceito de saúde fossem integradas características sociais, econômicas, políticas e culturais, que perpassam a herança genética, o biológico. O que leva a refletir que esse conceito de saúde divulgado pela OMS em 1948 foi sendo diluído ao longo desses eventos, com exceção da Carta de Otawa, e ao mesmo tempo recebendo inúmeras críticas. Esse conceito da OMS, longe de ser uma realidade, simboliza um compromisso, um horizonte a ser perseguido. Remete à ideia de uma “saúde ótima”, possivelmente, inatingível e utópica já que a mudança e não a

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estabilidade é predominante na vida. Saúde não é um “estado está-vel”, que uma vez atingido sempre será mantido.

Consoante inúmeras discussões a esse respeito, destaca--se Dejours (1986) que desconsidera a saúde e a doença como um processo. Não existem em estado “completo’”. Segundo ele saúde “não é estado de bem-estar, mas um estado do qual procuramos nos aproximar” (Dejours, 1986, p. 8). Winslow (1920 como citado em Czeresnia & Freitas 2003, p. 17) já dizia que “a saúde se dá com o aperfeiçoamento da máquina social, a qual assegura ao indivíduo, dentro da comunidade, um padrão de vida adequado à manuten-ção da saúde”. Já Sigerist (1946 como citado em Czeresnia & Freitas 2003, p. 17) dizia que “saúde se promove proporcionando condições de vida decentes, boas condições de trabalho, educação, cultura física e formas de lazer e descanso”. Assumido o conceito da OMS, nenhum ser humano (ou população) será totalmente saudável ou totalmente doente.

Desta forma, a saúde não está em completo estado de equilí-brio e sim dinâmico. O estado de completo bem-estar parece supor uma existência sem angústia, desconsiderando que os erros, os fra-cassos, as infidelidades não fazem parte de nossa história. Como diz Dejours (1986, p. 8) “o estado de saúde não é certamente um estado de calma, de ausência de movimento, de conforto, de bem--estar e de ociosidade. É algo que muda constantemente”. A própria compreensão de saúde tem alto grau de subjetividade na medida que indivíduos e sociedades consideram ter mais ou menos saúde dependendo do momento, do referencial e dos valores que atri-buam a uma situação. Saúde não é um simples resultante de estar ou não doente, mas sim a resposta complexa às condições gerais de vida a que as diferentes populações estão expostas (Rouquairol, 1994).

Nesse sentido, Paim e Almeida Filho (1998) enfatizam a necessidade de um marco teórico conceitual capaz de reconfigurar

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o campo social da saúde, atualizando-o face às evidências de esgo-tamento do paradigma científico que sustenta suas práticas. Os autores propõem um movimento ideológico que possa articular--se a novos paradigmas científicos capazes de abordar o objeto complexo saúde-doença-trabalho, respeitando sua historicidade e integralidade.

Pode-se compreender que o conceito de saúde não deve se restringir somente a aspectos biológicos. Envolve também fatores determinantes de saúde, condições históricas, sociais, econômicas, políticas, culturais e individuais. As condições individuais, por sua vez, comportam um alto grau de subjetividade. Por isso, a saúde vai além do orgânico, pois nela há algo de singular, tornando-a um conceito dinâmico, amplo e complexo.

Conforme Cunha e Panúncio-Pinto (2005, p. 5) defendem que há uma relação entre a saúde e o contexto social que se encon-tram inseridos os indivíduos, a saber:

A realidade do ambiente material (física, química, bio-lógica), a realidade afetiva, relacional e familiar (psico-lógica) e a realidade social (organização do trabalho). Defendem que a saúde, para cada homem, mulher ou criança, é ter meios de traçar um caminho pessoal e ori-ginal em direção ao bem estar físico, mental e social. (grifo dos autores)

Esses caminhos são desenhados ou traçados em direção à busca pela saúde em termos do bem-estar físico, repouso corporal, e saciamento das necessidades básicas do homem. Em se tratando do bem-estar psíquico “os meios de alcançar a saúde estão ligados à liberdade que é deixada ao desejo de cada um na organização da sua vida” (Cunha, & Panúncio-Pinto, 2005, p. 5). Por fim, o bem--estar social consiste no agir com liberdade, seja individual ou cole-tivamente, sobre a organização do trabalho.

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Salienta-se que não existe a necessidade de criar um novo paradigma frente aos já existentes. Deve-se empenhar em adotar uma visão global da realidade, absorvendo as contradições como complementos necessários à vida. Essa linha de pensamento pro-porciona um conceito mais amplo de saúde que conduz à cons-trução de práticas sociais mais abrangentes. Possam modificar os modelos assistenciais vigentes buscando alternativas mais eficazes para entender a vida com qualidade para assim contribuir com a plena realização do potencial de saúde dos indivíduos e comunida-des em todo o mundo.

Uma característica relevante é que os pressupostos saúde e qualidade de vida surgem comumente explorados. O desafio aqui foi relacionar esses conceitos à Agricultura Orgânica e, mais pre-cisamente, à Agricultura Familiar Orgânica (AFO). Importante mencionar que no Brasil esses dois modelos são bastante próximos porque em torno de 90% dos produtos orgânicos produzidos no país são derivados da Agricultura Familiar (AF) (MAPA, 2008). A noção de Qualidade de Vida (QV), ainda em construção, é extre-mamente rica em dimensões subjetivas, compreendidas dentro de uma percepção ampla e multicultural (Minayo, Hartz, & Buss 2000). Analisando o meio rural a partir da agricultura, percebe--se que o padrão produtivo determina mudanças significativas na saúde social e ambiental, refletindo-se na qualidade de vida dos agricultores.

A Constituição da República Federativa do Brasil (Brasil, 1989) menciona o termo QV, porém o faz apenas em cooptação com o meio ambiente ao analisar os riscos de impacto sobre ele. No Capítulo VI – Do Meio Ambiente, ela dita em seu Art. 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Seu Parágrafo 1º, inciso V, relaciona QV com a incumbência do poder público para:

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“V – Controlar a produção, a comercialização e o emprego de téc-nicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”. Observa-se não existir um conceito do que é ter qualidade de vida sadia, mas indícios de fatores que intervêm sobre ela. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a qualidade de vida como “a percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto de sua cultura e dos sistemas de valores em que vive e em relação a suas expectativas, a seus padrões e as suas preocupações” (Lima, & Fleck, 2008, p. 116).

Sennett (2008) conceitua QV mediante dois fatores: capa-citação (combinações possíveis de coisas que uma pessoa está apta a fazer ou ser) e funcionalidades (as várias coisas que uma pessoa faz ou é). Portanto, a QV é capaz de ser analisada em termos de capacitação para obter funcionalidades, desde as mais incipien-tes (comer adequadamente, ter saúde, abrigo etc.) às que abarcam patamares maiores de necessidades (autorrespeito, integração social, participação na vida da comunidade). A compreensão do conceito dessa autora atingirá todas as áreas, sobretudo a social, que na maioria das vezes é relegada a um segundo plano em bene-fício da econômico-desenvolvimentista.

Em busca da sustentabilidade da AOF, com a preservação do meio ambiente, o agricultor necessita possuir em seu ambiente de trabalho QV, que se caracteriza por sua natureza abrangente. Estar diretamente atrelada àquilo que o próprio trabalhador sente e percebe, acerca da sua “saúde física, o seu estado psicológico, o nível de independência, suas relações sociais, suas crenças pessoais e a relação com aspectos significativos do meio ambiente” (Fleck, 2008, p. 25). Nessa perspectiva, pode-se inferir que a QV no meio rural encontra-se pautada considerando-se as maneiras certas de manejo adequado da terra proposto pela AFO.

Esse sistema produtivo visa a autossustentação da pro-priedade agrícola, disponibilidade de infraestrutura que possua

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saneamento básico, acesso aos meios de educação e saúde, oferta de produtos saudáveis e balanceados, e preservação da saúde ambiental e social. Questiona as repercussões negativas do sistema moderno de produção de alimentos e se aproxima da noção em busca de Qualidade de Vida.

Os conceitos de QV rural, ecologia e meio ambiente não se amparam sem a presença do homem do campo. O caminho indica uma sociedade norteada por uma causa baseada nos pilares ecoló-gico e social como saída para a crise na agricultura e como opção ao desenvolvimento rural sustentável. Entende-se que esse é res-paldado em três pilares essenciais: econômico, social e ambiental e seu eixo central é a Qualidade de Vida do agricultor.

No domínio econômico a AOF configura-se como uma estratégia de oferta de produtos saudáveis que tem aumentado de 10% ao ano no mercado interno e entre 20% a 30% no mercado externo (SEAGRI, 2004), criando oportunidades para os peque-nos produtores adentrarem no mercado. A renda dos produtores elevou-se 65% de 2000 a 2009, e isso reflete uma condição cres-cente de produtividade, da produção final dos produtos agrícolas e do aumento do mercado exportador. No que diz respeito à esfera social, a AO significa para a agricultura familiar uma estratégia de sustentação do modo de vida rural, da própria condição de social.

Ocorre valorização do saber tradicional do trabalhador rural e o respeito à sua integridade cultural. Em relação ao domí-nio ambiental, a AOF preocupa-se em manter a diversidade bio-lógica e o meio ambiente saudável isento de insumos químicos, utilizando energia renovável. Nessa mesma direção a AFO revela ser um caminho de promoção de valores sociais e de Qualidade de Vida no campo, com repercussões também importantes sobre as condições de vida no meio urbano. Acredita-se que a QV no meio rural se correlaciona ao grau de conhecimento dos agricultores de que suas necessidades podem ser supridas, assim como dos

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recursos disponíveis de maneira sustentáveis. A sustentabilidade, na AFO, precisa ser compreendida de maneira dinâmica e o desen-volvimento deve implicar limites para concretização do bem-estar econômico para se alcançar um bem-estar social e ambiental.

Relações e processo de trabalho no contexto rural

O processo de trabalho é o cruzamento entre o homem e o campo, através do qual aquele utiliza sua energia e força, para transformar, manter, ou produzir bens necessários à sua sobre-vivência. A afinidade que ele estabelece com o meio ambiente, a forma como se apropria da natureza e a transforma, resulta tam-bém no processo saúde-doença. Na agricultura familiar orgânica, as relações produtivas são oriundas dos elos familiares e não apoia-das na condição de salário. Consequentemente, observa-se a não geração de mais-valia, o que caracteriza um perfil não capitalista (Tavares, 1984). Além disso, tem a finalidade à reprodução social da família e da unidade produtiva e não o acúmulo de dinheiro.

Abarca etapas diferentes de acordo com o desenvolvimento do crescimento familiar modificando conforme o tempo da relação entre trabalho e consumo (Kautsky, 1998). O modo como o traba-lho na Agricultura Familiar Orgânica (AFO) é executado configura--se como uma atividade consciente e é gerido pelo homem adulto (marido, pai), que adquire características de chefe do processo produtivo, uma vez que apresenta domínio de um saber agrícola específico.

Trata-se de um saber fazer passado no ambiente de traba-lho, o que significa um aprendizado que abarca desde a dimensão simbólica, educativa, ao processo de trabalho da AOF. Nessas con-dições, a transmissão do saber é mais do que transmissão de téc-nicas, ela envolve valores e construção de papéis (Menezes Neto, 2003). O trabalho no campo é extremamente dinâmico e cheio de

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sentido. Não é apenas “um teatro aberto ao investimento subje-tivo”, ele é também um espaço de construção do sentido, portanto, da conquista da identidade, continuidade e da historicização do sujeito (Dejours, Abdoucheli & Jayet, 1997, p. 143).

Configura-se um espaço agrícola, bem como espaços de interações sociais de gênero e gerações. Trata-se também de um ensino focado na socialização dos filhos no mundo adulto, na lógica do trabalho e da produção. Pode-se analisar o processo de trabalho na agricultura familiar orgânica através de dois elementos: a) a divisão do trabalho entre os diversos membros da família e b) a intensidade da utilização das diferentes frações de mão de obra, tanto na unidade de produção quanto fora dela.

Os sistemas de produção de olerícolas7 e frutas orgâni-cas são divididos em múltiplas fases ou subsistemas que são fre-quentemente partilhadas por toda a família. Por sua vez, essas fases admitem inúmeras tarefas que precisam ser organizadas ao longo do tempo. Ressalta-se que o momento de transformação das tarefas idealizadas em trabalho concreto define-se como o mais importante nesse processo. Isso implica afirmar que só haverá um produto final se houver uma interpolação da força humana. Na agricultura é aproveitada a força de trabalho de todos os compo-nentes da família. Contudo, os afazeres das mulheres na agricul-tura são, geralmente, em tempo parcial, porque elas também são responsáveis pelas tarefas domésticas (Karam, 2004).

Pode-se afirmar que as relações de poder no âmbito da AFO predizem as condições de participação tanto dos homens como das mulheres nos lugares de decisão acerca do destino da sociedade em direção da construção do desenvolvimento rural sustentável. Analisa-se que os produtos cultivados passam por certificação e são classificados com indicador de segurança alimentar. Sua produção

7 Comumente conhecidas como hortaliças e que engloba culturas folhosas, raí-zes, bulbos e tubérculos.

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não compromete o meio ambiente e as gerações futuras. A AFO garante condições de vida menos precárias para o produtor, que tem percebido que a agricultura convencional pode prejudicar sua Qualidade de Vida e de sua família.

Importa destacar que a agricultura de base agroecológica colabora para uma melhora na renda, na satisfação das necessida-des dos agricultores e na sua qualidade de vida. Percebe-se que esse sistema de produção determina uma reorganização das relações dos homens entre si e com a natureza, estimulando laços de coope-ração e participação, além de exigir um manejo adequado do solo, das plantas e das águas.

Adicionalmente, a AOF oferece meios de produção susten-tável que podem diminuir a fome e a miséria e gerar a soberania e a segurança alimentar e nutricional da população. A proposta é ainda uma estratégia de suscitar a dignidade social dos agriculto-res e minimizar os riscos ambientais relacionados à produção de alimentos.

Considerações finais

Fundamentalmente, destaca-se a importância de reco-nhecer métodos intersetoriais para promover a saúde e o desen-volvimento sustentável. A zona rural deve ser um lugar em que os especialistas da área de saúde trabalhem com outros profissionais, objetivando melhorar a qualidade de vida do agricultor e a preser-vação do meio ambiente. Com efeito, é primordial compreender a agroecologia enquanto estratégia de promoção da saúde para o desenvolvimento de novas agriculturas.

Avaliando o Brasil como um país de base agrícola, repensar o meio rural e a AOF como atividade primária fundamental revela-se como tática imperativa para edificar as propostas de segurança ali-mentar e de promoção da saúde e da sustentabilidade. A AOF é um

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caminho para a preservação ambiental, para o melhoramento das condições de vida e para o incremento econômico no meio rural.

No que se refere à Qualidade de Vida no campo, observa--se que sua análise abarca condições e estilos de vida do agricultor. Sua proximidade com a natureza, o uso de seu conhecimento e as relações interpessoais construídas no trabalho coletivo respaldam uma reflexão importante acerca da Qualidade de Vida no campo. Em relação ao processo produtivo, é predominante uma relação de gênero constituída hierarquicamente, mas não de soberania por-que o saber é compartilhado por todos os membros da família. Por fim, esse tipo de reflexão é importante porque permitirá aos pes-quisadores compreender que o meio rural é um espaço para reco-nhecimento social e preservação da saúde ambiental e humana.

Compreendida como alternativa produtiva, a AOF pro-move desenvolvimento rural em busca da sustentabilidade, con-figurando-se como de um sistema agrícola socioambiental viável. Não pode ser observada somente como uma práxis que recusa o uso de venenos, mas sim um novo caminho associando o agricultor, o trabalho e o campo numa articulação sob um ponto de vista mais ecológico.

Portanto, é um espaço de semear-se a promoção de saúde tanto dos produtores quanto dos consumidores, situando o desen-volvimento mediante práticas agrícolas alternativas que preserve os ecossistemas. Tratando-se de importante área para os pesquisa-dores compreenderem que o meio rural é também um vasto campo para o reconhecimento social e preservação da saúde ambiental e humana.

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Políticas públicas quilombolas e produções identitárias:

percursos históricos e conflitos políticos

Saulo Luders Fernandes Julia Minossi Munhoz

Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de

ser uma begônia. Ou uma gravanha. Usar algumas palavras que não tenham idioma

Manoel de Barros (O livro das ignorãças, 2010, p. 300).

O presente capítulo pretende realizar uma reflexão acerca das políticas públicas quilombolas e suas repercussões nas pro-

duções identitárias e processos de subjetivação das comunidades negras rurais implicadas nesse processo. Questionar o percurso das políticas quilombolas em nosso país não se torna apenas uma

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reflexão sobre as normativas e leis que se constituíram e se fazem presentes, mas é preciso pensar como tais enquadres repercutem nas relações comunitárias e nas produções do ser e fazer-se negro no Brasil. É refletir de que forma as políticas de identidade, com seus aparatos institucionais e jurídicos, delineiam e atuam como estratégia de manutenção e cooptação das fronteiras dos planos possíveis e inventivos das identidades políticas das comunidades negras. Identidade política compreendida aqui como processo de grupos minoritários que investem na construção de valores, cren-ças e sentidos que agregados a um projeto político coletivo galguem ganhos de direitos e participação política que historicamente foram negados.

Assim, este capítulo propõe analisar as estratégias adotadas pelo Estado, por meio de suas políticas de identidade, para cooptar os planos inventivos dos processos de subjetivação dos movimen-tos sociais e grupos minoritários, que configuram linhas de fuga que escapam e resistem às produções homogeneizantes do poder.

É no espaço da falta que se produz o processo inventivo, é no não lugar atribuído aos excluídos que jorra a fonte de potência criativa e de resistência. Como afirma Deleuze (2010, p. 161):

Os povos não preexistem. De certa forma o povo é o que falta, como dizia Paul Klee. Será que existia um povo palestino? Israel diz que não. Sem dúvida existia um, mas isso não é o essencial. Pois a partir do momento em que os palestinos são expulsos de seu território, na medida que resistem, eles entram num processo de construção de um povo.

É nesse lócus de resistência que também atuam as estraté-gias de dominação e cooptação do novo, enquanto válvula propul-sora de captação desejante para esfera do mesmo.

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Quilombos e seu percurso histórico: estratégias de luta e produção de linhas de fuga

Compreender o percurso das políticas quilombolas requer a reconstrução do conceito de quilombo no perpassar histórico dos negros no Brasil, que desde sua chegada apresentam-se incluídos enquanto força produtiva, explorados para engendrar a riqueza da nação e expropriados enquanto sujeito de direitos.

Os primeiros registros do conceito de quilombo datam do ano de 1740 quando o Conselho Ultramarino, como afirma Leite (2008), na tentativa de desqualificar e instituir um lugar de mar-ginalidade ao quilombo, o descreve ao rei de Portugal como: “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despo-voada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”. Essa conceituação reduz o quilombo a um caráter pejo-rativo que nega sua organização político-econômica e o caracteriza de forma marginal nos campos de atuação e produção da realidade colonial do país.

Tal caracterização marginal do quilombo configura compre-ensões binárias falaciosas do fenômeno em dois campos estanques: os de dentro, que constituem e participam do processo na consoli-dação das relações sociais instituídas; e os de fora, que na distância encontram-se a parte do processo de produção da realidade. Como se existisse um fora marginal que não engendrasse linhas contínuas de tensão, transformação e enfrentamento com as formações ins-tituídas. Tal compreensão dicotômica enrijece o fazer histórico e produz entendimentos dos quilombos, como pontua Leite (2008), como espaços de alguns negros fugidos que sem organização polí-tica e produção econômica potencial para implicar relações com o universo colonial dos brancos, refugiam-se em pequenos ranchos, isolados geograficamente e marginalizados economicamente na

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imagem do pilão, como instrumento que reduz a produção econô-mica diversa do quilombo ao espaço da subsistência.

Desqualificar e lançar os processo de resistência como par-ticipação periférica na produção da realidade são estratégias de desviar olhares para aqueles que como via marginal questionam e reinventam processos de desterritorialização na promoção de campos subjetivos emergentes. Na era colonial, como afirma Arruti (1997), os quilombos não só implicavam relações políticas de acor-dos e enfrentamentos com o império, mas atuavam diretamente na economia política, na produção de fumo e alimentos para mer-cadores da região e população circunvizinha, bem como na emer-gência de uma economia subjetiva (Guattari & Rolnik, 2008), que engendrava novos modos de sociabilidade e processos de subjetiva-ção, que ao se processar questionavam a ordem social vigente.

Os quilombos podem ser compreendidos como agências de resistência dos marginalizados no período colonial. Local de encontros híbridos, como apresenta Arruti (1997), entre negros, índios e desfavorecidos que na tentativa de resistir ao sistema polí-tico econômico vigente configuraram formas de sociabilidade que fugiam às regras postas pelo modelo normativo, na luta contra as formas de exploração e expropriação estabelecidas. Essas produ-ções resistentes apresentaram-se nos campos fronteiriços da dife-rença, no encontro de grupos marginalizados que ao agenciarem suas vivências diversas produziram outras formas de sociabilidade.

Com a efetivação da acumulação de riquezas realizada pelos países colonizadores, calcada na força escrava e na exploração das colônias, fortalece-se o capitalismo nos grandes centros, que por necessidades de expansão econômica lançam-se sobre as colônias e as insere, como aponta Fernandes (2008), na dita ordem compe-titiva. Ordem essa que exigia para seu desenvolvimento a queda do regime colonial e instauração do “trabalho livre”.

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Os senhores, como afirmam Calheiros e Stadtler (2010), ao constatarem que a abolição da escravatura estava por vir, para manterem-se no poder político e econômico no país, articulam e aprovam em 1850 a Lei de Terras. Lei essa que institui a aquisição de propriedades somente por meio da compra e venda de terras. Como se apresenta no artigo 1o dessa lei: “Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por título que não seja o da compra”.

É por meio desse aparato jurídico, como afirma Martins (2009), que os senhores proprietários de terras, em um processo de exclusão contínua, marginalizaram negros e índios, que sem condi-ções de adquirir propriedades por meio da compra submeteram-se ao trabalho livre para os mesmos senhores. As mesmas populações que no início do Brasil serviram como mão de obra escrava para a produção do país, agora, novamente são incluídas perversamente e de forma precária enquanto força de trabalho, e excluídas enquanto sujeitos políticos de direitos.

Muitos negros “livres”, como afirma Almeida (2009), con-tinuaram a exercer atividades nas mesmas fazendas nas quais tra-balhavam no período escravista, agora sendo pagos, ou doados pedaços de terras pelos senhores para o cultivo de subsistência. Mudam-se as configurações, porém as relações de opressão, humi-lhação e subserviência ainda perduram, o que levou muitos negros a fugirem para as terras ditas “de ninguém”, constituindo novos ordenamentos comunitários de resistência, mesmo fora do regime colonialista. Tal afirmativa indica que o conceito de quilombo não deve estar enraizado enquanto processo organizativo fadado ao período colonial, ele se fez e se faz presente nas comunidades cada qual em seus caminhos e percursos históricos singulares.

Nesse contexto de marginalização, as comunidades negras são integradas no emergente Estado brasileiro, como afirma Fernandes (2007), como aqueles que não possuem as capacidades adequadas para nova ordem social do trabalhado livre. Na história

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oficial, os negros aparecem como sujeitos passivos diante dos fatos e os retrata como aqueles que foram submetidos e que atuaram com papéis marginais frente à grandeza dos atos históricos pro-duzidos pelos senhores que trouxeram o dito progresso da nação. Talvez devêssemos lançar nossos olhares às produções marginais como espaços de produções inovadoras e desviantes, que no ato de resistir possibilitam outras trajetórias e formas de organização da vida e das relações.

Essas contradições apontam para o fato de como a história oficial ilegítima a luta dos povos excluídos, que, contrário ao poder do Estado, produziram e produzem as lutas e as linhas históricas. Histórias essas que com suas narrativas margeiam os fatos oficia-lizados e irrompem como ecos lançados no passado que ressoam nos ouvidos do presente. Como afirma Benjamim (1994, p. 224): “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele realmente foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência tal como ela relampeja no momento de um perigo”.

Essa história retratada por vozes marginais é a que deve-mos proliferar, promovendo campo da pluralidade histórica trans-formando-a em histórias. Histórias – essas – que não são regidas, como aponta Benjamin (1994, p. 229), por um: “tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”, de memórias, contos, cantos, corpos e narrativas.

Com base nessa história marginal é que os ecos do passado percorrem o imaginário social e irrompem em outro fazer cotidiano na realidade presente. O negro marginalizado que entoava seus cânticos de resistência no passado reivindica sua voz no presente ao requerer direitos e reconhecimento de suas lutas e formas alteras de viver. Esse percurso de enfrentamento forja nos anos 1930, como afirma Leite (2008), a Frente Brasileira Negra, consolidada como uma das mais importantes organizações de luta contra o racismo.

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Em linhas de fortalecimento do movimento negro, em mea-dos dos anos 1960 e 1970 os intelectuais, a sociedade civil organi-zada e os movimentos sociais, empunharam lutas e bandeiras para democratização das políticas públicas no país. Os questionamen-tos se acirram também quanto ao papel político e o direito à terra das populações tradicionais. Nesses processos de reivindicação estruturam-se estratégias de problematização e ressignificação do conceito de quilombo, que de espaço marginalizado é retomado como dimensão de luta política de grupos que foram negados a terra e com ela os direitos e a posição de cidadão.

Atualização política do quilombo: identidades inventivas e processos de subjetivação

A tentativa de ressignificação do conceito de quilombo, que ganha corpo nos anos 1970, é compreendida como estratégia política de grupos minoritários que se apresentam historicamente marginalizados. Excluídos historicamente dos direitos sociais e marginalizados quanto ao universo simbólico, que por meio de seus aparatos semióticos legitima e reproduz a ordem do branco opressor e imprime sobre os negros o estigma de uma segunda categoria. Retomar o conceito de quilombo de forma inventiva é produzir projeto político coletivo que promova a proliferação de formas de existência antes negadas e oprimidas.

De acordo com Deleuze e Guattari (2008) e Deleuze (2010), produzir para si o direito de constituição enquanto grupo minori-tário é constituir territórios políticos de existência, que imprimem linhas desviantes às construções hegemônicas dadas, na tentativa de ruptura às produções legitimadoras. O processo de produção de outro para si que foge às rígidas linhas identitárias é lançar-se em um devir minoria que almeja em seu bojo configurações subjetivas emergentes, que em linhas de fuga, realizam pontos de clivagem nas relações simbólicas e sociais instituídas.

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Como afirma Santos (2000) ao se referir aos processos de produção identitária dos grupos minoritários, quem procura rei-vindicar uma identidade é aquele que se encontra em uma situ-ação de subordinação, mas que ao se referir enquanto outro que difere das estruturas hegemônicas as questiona e as enfrenta. Por isso aponta os processos identitários políticos como uma ficção necessária que autentica a diferença dos grupos que estão em uma situação de carência frente aos que se estabelecem como modelos a serem seguidos.

Os territórios emergentes que se constituem enquanto pro-jeto político de grupos minoritários se fazem por meio de consti-tuições criativas, de espaços de desterritorialização que produzem significados e formas alternativas de ação e busca por direitos dife-renciais frente à realidade reificada. Tais processos se engendram e são apanhados no espaço da falta em que se encontram tais grupos. É no campo desse não lugar ocupado, ainda por fazer, que emerge os territórios da resistência. Como afirma Deleuze (2010, p. 161): “O que é preciso é pegar alguém que esteja ‘fabulando’, em flagrante ‘delito de fabular’. Então se forma, a dois ou em vários, um discurso de minoria”. Fabular no sentido de criar, pelas necessidades e con-dições que lhes são dadas, espaços de enfrentamento e emergência de novos territórios subjetivos que possibilitem apanhar um devir minoritário que questiona a ordem social.

Os processos de constituição de identidades políticas são aqueles que procuram oferecer aos grupos arcabouços simbólico e semiótico para ações que produzam esferas de negociação e linhas de enfrentamento frente ao Estado e às instituições, na produção de campos de ação que insiram e auxiliem tais grupos a configura-rem, de forma autônoma, um espaço de participação política.

Nesse sentido, podemos afirmar que nem toda identidade é política. Ela pode, enquanto categoria de identidade social, interfe-rir nas relações e práticas da vida cotidiana. Porém, para tornar-se

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uma identidade política, necessita-se “fabular”, como diria Deleuze (2010), e lançar-se sobre um projeto que procure alterar as linhas maquínicas para uma produção subjetiva que foge às linhas duras legitimadas, na produção de políticas que efetuem voz e ações para grupos que se situam marginalizados sócio-historicamente.

A ressignificação do conceito de quilombo pode ser enten-dido como processo político inventivo do movimento negro como tentativa de engendrar processos de subjetivação desterritoriali-zados que permitem agregar novas formas de atuação aos grupos negros rurais. Grupos esses que por meio desse novo sentido de ser negro lançam-se na luta pela terra e por direitos sociais.

O movimento negro, ao retomar o conceito de quilombo como forma insurgente de definição e prática sobre as comunida-des negras rurais, possibilita novo espaço de luta e resistência, entra em processo de produção identitária política, em um devir mino-ria, que procura pelas linhas de fuga criar formas atuais de produ-ção subjetiva, com outros valores e sentidos, ao povo negro. Com esse modelo inventivo é que o movimento procura, por meio de seu lócus social desfavorecido, buscar a negociação com o Estado e a consolidação de políticas públicas que atendam suas necessidades.

Por vezes, esse modelo inventivo, quando inserido nos apa-ratos do Estado, pode perder sua capacidade criativa e constituir-se como modelo de esquadrinhamento a ser seguido. Devemos pen-sar as políticas públicas e sua efetivação como agenciamentos de mudanças, mas sempre em perspectivas que as ultrapassem para além das políticas, em processos de desterritorialização constan-tes que escapem aos territórios já apropriados e codificados pelo Estado e seus espaços micropolíticos de ressonâncias.

As políticas públicas seriam a expressão desse conflito de grupos minoritários e o poder do Estado, que ao produzirem linhas de fuga, como afirma Deleuze e Guattari (2008), configuram em territórios já postos segmentos ainda por explorar, em um processo

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de subjetivação desterritorializada, em continuidade as formações instituídas, que procuram em linhas duras estabelecidas, ramificar--se nas entranhas micropolíticas e sobrecodificar as linhas desvian-tes, na tentativa de captura e reterritorialização dessas produções criativas e resistentes.

Como afirmam Deleuze e Guattari (2008, p. 108):

Todo centro de poder tem efetivamente estes três aspec-tos ou estas três zonas: 1) sua zona de potência, relacio-nadas com segmentos de uma linha sólida dura; 2) sua zona de indiscernibilidade, relacionada com sua difusão num tecido microfísico; 3) sua zona de impotência, rela-cionada com os fluxos quanta que ele só consegue con-verter, e não controlar nem determinar. Ora, é sempre do fundo de sua impotência que cada centro de poder extrai sua potência: daí sua maldade radical e sua vaidade.

É nesse espaço de impotência do não controle dos centros de poder que se produzem o novo, no qual os processos de subje-tivação resistentes acontecem, mas é também nesses campos que atuam as linhas de captura que procuram cooptar as formações insurgentes para dentro dos sistemas de controle.

Da legitimação do Art. 68 ao retrocesso da Instrução Normativa do INCRA 49/2008

A promulgação do Art. 68 da constituição de 1988 pode ser compreendida nesse processo de enfrentamento entre grupos minoritários que requerem para si novas formas de produção sub-jetiva e efetivação de direitos frente ao poder do Estado. Por meio do resgate histórico-político do conceito de quilombo os proces-sos identitários das comunidades negras rurais são ressignificados e oferecidos a eles com o respaldo jurídico dado pelo Estado ao

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direito à terra e à conservação de seu patrimônio cultural, como se segue no Art. 68:

Aos remanescentes das comunidades de quilombo que estejam ocupando suas terras é reconhecida a proprie-dade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos (Brasil, 1988).

O Art. 68 da constituição brasileira apresenta ganhos e avanços a um grupo que se constituiu de forma marginal enquanto sujeito de direitos, os quais, mesmo sendo expropriados de suas terras, sua cultura e sua história, resistiram ao período colonial e lutam para manter-se em suas terras na era do capital mundial integrado. Porém, concomitante a esse processo de desterritoriali-zação que possibilitou novas formas de interpretação e de subjeti-vação de ser negro rural, com o advento do Art. 68, essas formações instituintes adquirem roupagens esquadrinhadas com o conceito de “remanescentes” que definem de forma restrita as identidades do ser quilombola, ligando-os estritamente a formações de qui-lombos ancestrais do passado colonial. Ficam excluídas as comu-nidades que resistiram e se produziram fora das raízes ancestrais dos quilombos, com histórias próprias e peculiares as suas lutas. As linhas de fuga que atuam como espaço de produção do novo, quando ligadas aos aparelhos institucionais do Estado, adquirem configurações de linhas de captura, que cooptam as diferenças e as reproduz em modelo identitário a ser seguido.

O que era emergente, no caso a inventividade do conceito de quilombo, que escapava e atuava na zona de impotência dos centros de poder na promoção da diversidade, promove espaços de linhas duramente estabelecidas ao ser integrada pelos agenciamen-tos maquínicos do Estado. Como afirma Guattari (2004), a capaci-dade de permanência do capital mundial integrado é o seu regime de volatização semiótico, que reajusta as diferenças e as lançam em

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um sistema de semiotização que as acolhem para integrá-las aos moldes de produção do capital.

Os agenciamentos nômades que se proliferavam de forma desterritorializadas entram em configurações sedentárias que se ajustam aos valores econômicos e simbólicos do capital. A nova ordem capitalista não se configura apenas em suas atuações macro-estruturais, mas em produções que se incutem no desejo e nas produções subjetivas do que delas fazem parte, em produções nor-mativas que apreendem o desejo.

O Art. 68, ao definir o reconhecimento das comunidades negras rurais pelo conceito de “remanescentes”, as submete à esfera da ancestralidade para o legítimo reconhecimento. Define e limita os processos identitários quilombolas a um mito de originalidade e às produções históricas fadadas aos quilombos do passado. Essa definição impede muitas comunidades negras, que apresentam histórias próprias e divergem das raízes calcadas em quilombos ancestrais a terem posse de suas terras.

A definição das comunidades por meio do conceito de remanescentes leva a interpretações que buscam no mito de origi-nalidade africana um passado intocado, no qual essas populações ainda devem viver e perdurar. De forma atemporal e sem compre-ender as especificidades, de como cada comunidade estabeleceu suas relações e suas expressões culturais, esses modelos estereoti-pados prejudicam a autenticidade da constituição histórico-social de cada população e promovem a busca ou a produção de elemen-tos por vezes inexistentes nesses territórios.

O que capacitou as comunidades negras rurais a se perpetu-arem ao longo do transcurso histórico foram as suas diferentes for-mas de se relacionar e viver com as realidades locais, cada qual com suas peculiaridades de enfrentamento, e não um modelo linear histórico que se estende a todas. Como afirmam Santos e Doula (2008), alguns grupos ocuparam terras abandonadas após a queda

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do açúcar no mercado brasileiro e que tinham como meio de vida o uso comum da terra; outros em terras doadas por seus senhores após a escravidão e que ainda perduram nesses territórios; e outras tantas histórias diversas a serem apresentadas que não cabem aqui.

Não queremos negar as raízes históricas nas quais as comu-nidades negras se estabeleceram. Contudo, cabe questionar essa busca pelas origens de uma história e pensar nos processos histó-ricos que se fazem em percurso e que não se reduzem a produções identitárias em um ponto original convergente, mas em planos de multiplicidades heterogêneos: políticos, sociais, econômicos e desejantes. Não compreendemos os processos de subjetivação ou inventividade política das comunidades tradicionais atrelados à busca de uma identidade cultural fiel a um passado irremediável, mas de luta e enfrentamento político frente a um presente neces-sário a ser mudado.

Nesse sentido que Guattari e Rolnik (2008) afirmam que o conceito de identidade pode apresentar-se enquanto uma cilada. Pois, ao mesmo tempo que o conceito produz um nível de autoi-dentificação entre seus membros e possibilita sua organização, ele atua também como espaço representacional autorreferente que nos impede de compreender as formas compostas e conexões diversas que ali atuam, promulgando compreensões homogêneas sobre for-mas que se fazem transversais em seus vários níveis de alteridade.

Como apresentam Guattari e Rolnik (2008, p. 82):

A única observação que estou em condições de fazer é que me parece que os conceitos de cultura e de identi-dade cultural são profundamente reacionários: a cada vez que os utilizamos, veiculamos sem perceber modos de representação da subjetividade que a reificam e que com isso não nos permitem dar conta de seu caráter composto, elaborado, fabricado [...].

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A identidade deve ser compreendida como espaço no qual as formações singulares percorrem e se expressam. Como territó-rios de agregação subjetivos que se apropriam desde campo para lançar-se a novas formas de atuação. A identidade não é o campo de definição generalizável no qual os processos de subjetivação se expressam, ela apresenta-se como pontos de produções desejantes que se expressam em devires minoritários diversos que buscam o questionamento da ordem social.

O movimento negro, ao fabricar politicamente o conceito quilombola não está recorrendo somente a um reconhecimento identitário cultural fadado e circunscrito a seu grupo social, mas requer reflexões que dizem respeito aos brancos, às mulheres, aos homossexuais, às crianças e a outros grupos oprimidos. Procura adentrar por meio do devir-negro de forma transversal nos vários interstícios sociais, no questionamento da opressão e da desigual-dade promovida pelo sistema capitalista aos grupos marginais.

O enquadramento do Art. 68, ao definir comunidade qui-lombola por meio de critérios de ancestralidade, procura a partir de determinantes históricos de origem definir um conceito que foi talhado e produzido por tensões e conflitos políticos. Como afirma Bawman (2005, p. 21-22): “a ‘identidade’ só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, ‘um objetivo; [...]’”. A identidade deve ser pensada enquanto pro-jeto político criativo que reinventa seus objetivos e propósitos a partir das necessidades dos espaços das faltas que são apresenta-dos aos grupos marginalizados. Inventar não seria a construção do falso, pelo contrário, é possibilitar novos modos de atuação política que permitam a tais grupos galgar espaços de reconhecimento e conquistas de direitos. Como diria o poeta Manoel de Barro (2010, p. 325): “Tudo que não invento é falso”. Pensar a identidade nesse plano inventivo é oferecer-lhe potencial para a produção da diversi-dade. O conceito de quilombo foi produzido para realizar-se como

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campo de autenticação das diferenças e não do esquadrinhamento do homogêneo.

Outro impasse produzido pelo Art. 68 é a impossibilidade de autoatribuição das comunidades. Promove-se a propagação do conceito de quilombo, porém exige-se um atestado do Estado para legitimar a definição de quilombolas às comunidades. As lutas históricas e processos de resistência desses grupos sociais, como afirma Bawman (2005), são descaracterizados no momento em que necessitam comprovar sua autenticidade perante o poder do Estado.

Para garantir o direito à terra, legitimado pelo Art. 68, as comunidades devem se submeter à tutela do Estado, às suas com-preensões normatizadoras promovidas por políticas públicas que ao perpassar o modo de vida da população, na tentativa de atender suas necessidades, exige dela um enquadre identitário e formata-ção de suas produções plurais de expressão. Assim, compreender as políticas públicas é pensar em suas diversas formas de atuação e controle social sobre as formas de vida das populações que engen-dram seus modos de agir, pensar e viver.

Como pontua Foucault (2006), ao afirmar que o poder do Estado não está nas formas de violência ou repressão que lança sobre os sujeitos, mas na gestação de uma racionalidade que pro-duz formas de vida e tecnologias políticas que capilarizam o poder em nível de atuar diretamente nos modos de ser e existir dos indivíduos.

Assim, governar torna-se a arte de gestar a vida das popula-ções em suas produções simbólicas e relações cotidianas. Nas pro-duções biopolíticas, como afirma Foucault (2006), o poder investe em vias de fazer-viver ao invés de produzir a morte, o limite da vida. Esse fazer-viver perpassa o corpo social como mecanismos de nor-matização dos ordenamentos subjetivos e sociais, como uma pala-vra de ordem que sentencia como se deve produzir a vida.

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As políticas públicas podem ser entendidas como essas formações biopolíticas que atuam no governo da vida das popula-ções, propagando modelos e formas de expressões enrijecidas que mesmo não correspondendo às diversidades produzidas na vida cotidiana devem ser seguidas e almejadas.

Como afirma Dimenstein (2011), as políticas públicas pas-sam não apenas a atuar como economias subjetivas que controlam a vida daqueles que dela fazem parte, mas atravessam o corpo social e emergem nas práticas da vida diária. Atuam como dispositivos, que ao transbordar as instituições as quais se destinam, gerenciam as produções de subjetividade cotidianas e os modos de existência que ali se engendram.

As políticas públicas são processos que se produzem em entremeios de tensão entre linhas duras estabelecidas que procu-ram cooptar as formações inovadoras e a produção de linhas de fuga que atuam no plano do desejo revolucionário que clivam espaços emergentes de ser e existir e escapam aos ditames do poder norma-tizante. É nesse jogo de tensão que nos localizamos e nele tam-bém que devemos atuar. Em intervenções políticas que produzam campos desterritorializados que se apliquem no questionamento do viés normatizante das políticas públicas.

Avanços e retrocessos: política quilombola para além da ancestralidade

Na tentativa de oferecer algumas saídas aos questionamen-tos e enfrentamentos realizados pelo movimento negro frente ao Art. 68 que institucionaliza o conceito de quilombo e enrijece o processo de reconhecimento das comunidades negras tradicionais, o Presidente da República assina o Decreto 4.4887/2003, que tra-balha o conceito de quilombo para além das compreensões históri-cas de ancestralidade, apanha as discussões e lutas realizadas pelo movimento negro e procura outorgar legitimidade para as lutas

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históricas e processos de resistência das comunidades. Como se segue (Brasil, 2003):

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico--raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com tra-jetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra rela-cionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

A promulgação do decreto representa um avanço, pois legi-tima no plano jurídico uma compreensão plural em relação ao con-ceito de quilombo e ressignifica o entendimento de remanescentes para uma compreensão que respeita as especificidades históricas e culturais de cada comunidade. Abrem-se possibilidades a com-posições heterogêneas e inventivas ao ser e fazer-se quilombola. Diferente do Art. 68, que reconhece os remanescentes pelo que res-tou da cultura dos quilombos historicamente enraizados, a com-preensão de presunção proposta pelo decreto lança as produções históricas e sociais das comunidades no plano político inventivo enquanto grupo minoritário que pela falta de direitos, terra e valo-rização cultural objetiva reconhecimento.

Fazer-se quilombola não é somente a busca de processos históricos ancestrais enraizados em um passado remoto, mas a pro-cura de reconhecimento das relações assimétricas de poder esta-belecidas e os enfrentamentos realizados pelos grupos negros que têm seus direitos historicamente negados. O decreto abre espaço a um devir minoritário que desterritorializa as formações identi-tárias do ser quilombola socialmente arraigadas e as promove em campo político que autentica as lutas e processos de resistência próprios a cada comunidade.

A promoção do princípio de autoatribuição, a que o Decreto 4.4887/2003 se propõe, permite às comunidades quilombolas a

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definição partindo de suas compreensões históricas e expressões culturais próprias, condizentes ao seu território. Tal medida, como afirma Chasin e Perutti (2009), vem ao encontro da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um instrumento internacional que vigora no Brasil desde 2003 e que garante pelos princípios de autoreferência identitária o direito à terra às comuni-dades tradicionais.

O Decreto fortalece discussões que ultrapassam o âmbito nacional e levam as organizações comunitárias a tomarem parte de seu processo, lança para os sujeitos que delas fazem parte a reflexão do que os identifica e caracteriza enquanto quilombolas. Há um desvio no discurso, que se desloca dos saberes especializados dos profissionais do Estado para as práticas discursivas dos que viven-ciam e compreendem o que é ser negro rural no Brasil.

Discurso aqui entendido por Foucault (2009) como prá-tica social, como espaço de investimento do poder, que orien-tado por meio dos saberes especializados constituem os objetos que permeiam a realidade. Nas práticas discursivas o sujeito não se apresenta como origem do discurso, como aquele que atua na representação dos objetos, mas como dispositivo produzido e pro-dutor de enunciados que atualizam o real em suas práticas discur-sivas cotidianas. Assim, os enunciados não são representações que se sobrepõem às formações do real, eles o produzem, o reificam e o reinventam.

Esse deslocamento discursivo promovido pelo processo de autoatribuição reestrutura os campos do saber-poder, que de atu-ações normativas empregadas para a promoção do ser quilombola, reinvestem-se em enunciados que os produzem enquanto atores políticos, os fazendo operar sobre o processo de autoatribuição como possibilidade de reconhecerem-se como sujeitos em produ-ção e não produzidos por quem lhes oferece nome ou um signo

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dado. Escapa-se ao entendimento de ser para fazer-se quilombola, sobre as práticas sociais e políticas vivenciadas em seu cotidiano.

Os avanços apresentados pelo Decreto 4.4887/2003 acirram disputas de poder e território no cenário nacional. A bancada rura-lista sente-se atingida com a medida que procura efetivar o direito que já estava garantido desde 1988 pelo Art. 68, mas que por estra-tégias que dificultavam o reconhecimento e a demarcação terri-torial não se concretizaram no país. A resposta ao Decreto, como apontam Chasin e Perutti (2009), apresentou-se por meio de algu-mas tentativas de parlamentares ligados às oligarquias nacionais a sustar o decreto ou inviabilizá-lo ao justificar que ele não espe-cificava critérios exatos para o processo de autoatribuição, o que levaria a titulação da terra a grupos não tradicionais. Porém, tais investidas que tinham como intuito deter diretamente a promul-gação do Decreto 4.4887/2003 foram negadas pelo poder judiciá-rio, alegando as justificativas propostas pelos parlamentares como inconstitucionais.

No Brasil, a detenção do poder político e as artimanhas da dominação situam-se nos entremeios da luta agrária. Compreender as investidas contra a efetivação do Decreto 4.4887/2003 é enten-der que a questão agrária é uma pauta nacional urgente, porém protelada e impedida pelas oligarquias nacionais.

Em um país, como afirma Martins (1993), que no período militar associou as grandes propriedades ao grande capital, ao subsidiar os latifundiários com incentivos fiscais para a compra e manutenção da terra “[...] o que vocês perdem pagando a renda da terra, nós subsidiamos pagando incentivos fiscais” (Martins, 1993 p. 87); a terra é princípio de poder, da dominação política e do capi-tal. A terra que seria um empecilho para o investimento capitalista torna-se, com os incentivos subsidiados pelo Estado, acumulação de capital, passando a ser valorizada não pelo que produz, mas pelo seu caráter especulativo, ao capital acumulado sobre ela.

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Em outubro de 2008 o presidente do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) estabelece a Instrução Normativa IN 49/2008 que estabelece os critérios para: “identifi-cação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas pelos remanescentes de comunidades dos quilombos” (Brasil, 2008). Os critérios estabele-cidos nessas instruções apresentam-se inicialmente como afirma-tivas que vêm a colaborar para a efetivação do Art. 68, bem como o Decreto 4.4887/2003. No entanto, pode ser compreendido como estratégia para retroceder os ganhos adquiridos ao Decreto de 2003. Como apresenta o Art. 6 da presente Instrução Normativa que de forma escamoteada provoca retrocessos no momento em que submete o critério de autoatribuição das comunidades a cer-tidão de registro pela Fundação Cultural Palmares, que sem esse registro não pode iniciar o processo de reconhecimento. Como se segue: “Parágrafo único. A autodefinição da comunidade será cer-tificada pela Fundação Cultural Palmares, mediante Certidão de Registro no Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos do referido órgão [...]” (Brasil, 2008).

A certidão de registro no cadastro geral da Fundação Palmares, antes da Instrução Normativa IN 49/2008, atuava apenas como instrumento de registro das comunidades que estavam em processo de reconhecimento no país. Porém, o que antes operava como instrumento de registro torna-se documento exigido para o inicio do procedimento de titulação e demarcação da terra que ateste reconhecimento legítimo como comunidade quilombola.

Com essas estratégias, os ganhos adquiridos pelas comuni-dades negras rurais como critérios de autoatribuição e a suposição de ancestralidade quilombola retrocedem. O critério de autoa-tribuição, que antes estava a menção de uma declaração da pró-pria comunidade que a caracterizava e certificava enquanto grupo quilombola, passa a ser referenciada novamente pelo aparato do

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Estado, por meio de certidão que exige o olhar de um outro que valide e ofereça veracidade ao seu estatuto identitário.

A certidão emitida pela Fundação Palmares exige estudo minucioso das características históricas que retratem aspectos ancestrais das comunidades, que na busca de validar o conceito de quilombo descaracteriza o campo político da titulação que seria a luta pela terra, a qual foi negada historicamente às comunidades negras rurais e lança a discussão para o reconhecimento identitário de ancestralidade histórica. A implicação do tornar-se quilombola para as comunidades negras rurais transpassa o espaço de compro-vação ancestral e constitui-se como esfera de luta política por direi-tos que os foram negados.

Nesse sentido, os processos identitários aqui implicados constroem-se enquanto processos políticos como modelos mino-ritários necessários para o enfrentamento e conquistas sociais. A identidade produzida não se apresenta como objetivo final, como uma verdade a ser alcançada e seguida, mas como meio de se atin-gir os desejos propostos em seu devir minoritário, como espaço de agregação e agenciamento subjetivo que fortalecem os vínculos sociais ali produzidos e promovam campos semióticos comuns.

A regulamentação da titulação de terras das comunida-des quilombolas pela IN 49/2008 engessa as possibilidades de um trabalho que se volte para as diferenças políticas e históricas que cada grupo apresenta, enrijece os processos de reconhecimento por tantos procedimentos burocráticos necessários os quais as comu-nidades devem se submeter para o ganho da titulação. São esses processos de rigidez que protelam e por vezes impedem muitos negros rurais no Brasil de adquirirem seus direitos.

A problemática não se aplica apenas ao reconhecimento identitário, mas na objetivação dessas identidades dentro de suas esferas diferenciais, no respeito às formas de vida e atuação de cada grupo. A questão não fica circunscrita à esfera da preservação das

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identidades tradicionais, mas à da promoção e autenticação das diferentes formas de se viver enquanto sujeito quilombola, de criar condições objetivas para a promulgação desses processos de subje-tivação no plano da vida.

A legalidade da IN no 49/2008 no Brasil efetiva-se, mesmo contrariando o Decreto emitido pelo presidente da república, bem como o Art. 68 da constituição federal de 1988 e ainda a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). No Brasil, como afirma Martins (2009), efetuou-se a modernização da econo-mia e do mercado, porém, no campo político, ainda somos regidos pelos ordenamentos das oligarquias nacionais, que pelo poder da terra mantém e reproduz a ordem estatal vigente.

Vivemos uma democracia falaciosa, que se institui via nor-mas e regras, porém é limitada no seu exercício e efetivação. Como diria Martins (2009, p. 95): “Um país em que se pode falar em democracia, mas não se pode, de fato, falar em cidadania”. Não que devamos cair em uma compreensão niilista com tal afirmativa, mas galgar rupturas e espaços das possíveis atuações políticas frente à conjuntura que nos é apresentada. Atuar nas fronteiras que se esta-belecem entre as políticas públicas e a produção da vida.

A psicologia e seus campos possíveis de atuação nas políticas quilombolas

Ao compreender as políticas públicas como espaços que atuam diretamente na produção da vida das comunidades negras rurais, no seu ser e fazer cotidiano, é que devemos pensar nossas práticas psicológicas em ações que por meio de políticas afetivas criativas possibilitem a produção de devires minoritários que bur-lem as linhas enrijecidas, que da reprodução identitária normativa criam formas emergentes de existência.

Em vez de respondermos por identidades normativas que procuram legitimar a representação do ser quilombola, devemos

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como diria Pàl Pelbart (2003), perguntarmos pelos fenômenos enquanto processos híbridos, em formações fronteiriças, nos quais as identidades normativas entram em contato com as necessidades históricas de cada comunidade na produção de novos territórios e formas de vida.

No espaço do entre, de intermezzo, é que as produções dese-jantes se encontram e transbordam. Desejo aqui entendido, por Pàl Pelbart (2003), como local de encontro de potências que se mes-clam em uma produção desviante e inovadora. Não como o local da falta que busca a completude de um quadro já desenhado, mas da fronteira no qual as potências se encontram.

Lançar olhares a essa formação desejante marginal é aten-der às produções diversas presentes em cada território das comu-nidades, compreendendo que os processos ali constituídos não se apresentam em ressonância com a representação que se pretende efetivar do sujeito quilombola implicado nas políticas identitárias do governo.

Os fenômenos são atos e não atuam como representação fidedigna do real, mas em rearranjos que os criam e os reinventam. Ficar circunscritos no âmbito da representação, no caso as identi-dades postuladas nas políticas quilombolas, é ficar preso à cópia da vida e não a seu processo. As cópias são tentativas de imitação, como aponta Pàl Pelbart (2003), que na repetição do mesmo pro-duzem a diferença, o desvio. Cada tentativa de imitação ou norma-tização pode recair sobre um rearranjo de elementos que desvia em configurações divergentes e autênticas. É no plano desses rearran-jos inventivos, que fogem aos ditames das formações instituídas, que devemos atuar, em uma política vida que faz da reprodução o viés da diferença.

Ter como parâmetro os planos das políticas de identidade do Estado é calcar nossas investigações ou práticas em uma con-cepção de unidade do fenômeno como medida definidora do que

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é ser quilombola. Romper com tal compreensão homogeneizante e totalizadora é possibilitar o entendimento dos processos de subje-tivação no campo da multiplicidade, e não de medidas ou médias sobre as quais se esquadrinham a conceituação da vida. Como afir-mam Deleuze e Guattari (2009, p. 37): “É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade”.

As práticas psi se engendram nesse entre, não localizável em um ponto ou outro, mas nas conexões diversas que cada comu-nidade, com sua história e campo de signos, encontra com suas for-mas de resistência e produção da vida. Intervir nesse intermezzo do campo de desejo é atuar e possibilitar à população cartografias de seus territórios de existência. Cartografar, como diriam Deleuze e Guattri (2009), é delinear mapas que apanham os fenômenos no momento em que se produzem, é potencializar a linha de fuga que desvia e se desterritorializa, burlar o decalque transcentende que busca em modelos instituídos sobrecodificar o plano da vida em uma reprodução ao infinito.

Reinventar a identidade quilombola definida pelas políticas públicas implicada em cada comunidade é desfazer-se do decalque que procura instituir um modo de se viver quilombola e produzir mapas que apresentam entradas diversas, que sobre o plano homo-gêneo do ser quilombola trazem à tona as várias formas históricas e sociais de fazer-se negro rural no Brasil.

As produções identitárias são relevantes, como afirmam Leite e Dimenstein (2011), enquanto campo extensivo que produ-zem planos de consistência no qual os processos de subjetivação passam e se singularizam, como espaços de agregação e agencia-mentos subjetivos, que fortalecem os vínculos sociais produzidos em cada território na renovação de campos semióticos comuns, potencializando as lutas políticas necessárias para a expressão das multiplicidades que ali se encontram.

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A problemática se encontra quando essas estruturas iden-titárias se enrijecem e tornam-se o molde no qual as formações subjetivas devem se expressar. As identidades são necessárias enquanto produções que possibilitem negociações a enfrentamen-tos políticos de grupos minoritários que requerem para si seus direitos. Como afirma Deleuze (2010, p. 218):

Quando uma minoria cria para si modelos, é porque quer tornar-se majoritária, e sem dúvida isso é inevitável para sua sobrevivência e salvação [...]. Mas sua potên-cia provém do que ela soube criar, e que passará mais ou menos para o modelo, sem dele depender.

Nossas intervenções devem se voltar para o campo criativo das identidades, local que configura e expressa as singularida-des envolvidas no processo de reconhecimento e luta política das comunidades negras rurais. É no plano intensivo de expressão que procuramos aplicar nossas intervenções e investigações na tenta-tiva de potencializar e compreender como os sujeitos quilombolas apreendem os campos das políticas públicas para configurar seus enfrentamentos ético-políticos em seu fazer cotidiano.

Temos que tomar precauções para que esse campo inventivo se efetive com práticas que atendam as necessidades das comuni-dades tradicionais e não se processem de forma rígida e autoritária, como medida de tutela e controle sobre tais grupos. Não promover a palavra de ordem, como afirmam Deleuze e Guattari (2007), que autoriza um veredicto que define e limita o plano da vida.

Compreender os processos identitários promovidos nas localidades e na vida cotidiana das comunidades negras rurais como fenômenos que transbordam o conceito de quilombo estabe-lecido pelas políticas públicas aqui tratadas. É nesse espaço fron-teiriço e emergente de produção subjetiva que as políticas públicas quilombolas devem ser efetivadas e pensadas.

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Povos indígenas e o espaço acadêmico: uma articulação para se pensar a produção

do conhecimento

Zuleika Köhler Gonzales Neuza Maria de Fátima Guareschi

Introdução

Pensar a produção de conhecimento no âmbito das práticas científicas de pesquisa requer visibilizar os esquemas que

estabelecemos e nos quais nos conectamos para efetivar a realiza-ção dessas práticas. Neste capítulo, nos valemos de questões for-muladas a partir do encontro dos povos indígenas com o universo acadêmico, constituindo uma “cena de pesquisa” para se refletir como fazemos perguntas e instituímos os quadros de referência e validade no âmbito do conhecimento.

O pensamento que articula os passos trilhados neste estudo toma por referência as investigações arquegenealógicas

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empreendidas por Foucault e os questionamentos de Latour sobre a produção do conhecimento e suas articulações científico-polí-ticas em nosso contemporâneo. Dessa forma, colocar em pauta o encontro dos povos indígenas no espaço acadêmico por meio de políticas governamentais de fomento à afirmação da diversidade dos mais variados povos no âmbito das universidades não é pensar em um encontro-objeto, ou mesmo em um encontro a ser focali-zado em última instância – pois sabemos que na sua virtualidade comporta inúmeras causas-condições que estabelecem relações para o acontecimento em si e para além de si – mas sim atentar para as práticas e relações que compõem os seus ditos, as possibi-lidades de presença nesse encontro, as invisibilidades, os proces-sos, as técnicas, táticas e estratégias políticas que possibilitaram o encontro-acontecimento como efeito do que se operou nas forças econômico-políticas desse momento histórico.

A cena, em questão neste estudo, envolve o âmbito da for-mação universitária na região noroeste do RS, no envolvimento e interesse de alunos indígenas e não indígenas nas políticas gover-namentais de afirmação desses povos no contexto universitário. Seria, portanto, pensar a presença dos povos indígenas no espaço universitário, naquilo que esse encontro provoca de tensionamen-tos, mobilizações, alianças, interesse e elaborações conceituais em produções científicas.

O convite é para que sigamos o percurso de alguns fluxos estabelecidos por esta cena: primeira semana de aula do segundo semestre letivo de 2010 numa universidade comunitária que inte-gra as regiões das Missões e do Alto Uruguai no noroeste do Rio Grande do Sul. A direção acadêmica divulga a todos na universi-dade que está ocorrendo a Mostra Vídeo Índio Brasil promovida pelo Governo Federal nas dependências de seu salão de atos, o espaço central para grandes eventos públicos, sejam acadêmicos ou não. A coordenação do curso de Psicologia convoca os professores

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interessados para levarem suas turmas ao evento desde que a temá-tica da mostra esteja de acordo com a disciplina trabalhada.

Como professora de um curso de Psicologia nessa univer-sidade e trabalhando numa disciplina intitulada Projetos Sociais, sinto-me implicada com a Mostra considerando que, segundo a ementa, devemos “analisar contextos e propor projetos sociais”. Essa disciplina contempla o estudo de políticas públicas no âmbito da saúde, educação e assistência social para um “projeto de inter-venção psicossocial com seus pressupostos éticos, contextuais e de implicação”. Como o contexto da universidade se insere numa região tradicionalmente indigenista, e um evento voltado para os povos indígenas – como a Mostra em questão –, decorre da imple-mentação de políticas públicas afirmativas, a inserção de nossos estudos nos processos que constituíram esse encontro, apresenta--se como solo fecundo para análise dos modos em que nos consti-tuímos a partir do governamento da vida por políticas e tecnologias estatais, no contexto de um curso de Psicologia pertencente a essa universidade.

A trama que compõe essa cena vai se formando: práticas em Psicologia e em formação, populações indígenas conectadas ao espaço universitário, a implementação de políticas públicas, a publicização das questões indígenas na região – com seus terri-tórios demarcados, com seus costumes desqualificados aos olhos dos colonizadores brancos, com sua presença malquista no espaço comum pelo ordenamento higienista do espaço público – e no país pelo aparato de Estado e, como solo para o debate, o universo acadêmico-científico.

A cidade de Frederico Westphalen no Rio Grande do Sul fora escolhida pelo Governo Federal através do Ministério da Cultura junto a outras 110 cidades em todo o país para sediarem a Mostra em sua 3ª edição com o tema: A imagem dos povos indígenas no século XXI. Possivelmente a escolha da cidade pelos organizadores

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do evento deve-se por ser a região das Missões e do Alto Uruguai a que concentra o maior número de indígenas no Sul do Brasil. A maior comunidade indígena do Rio Grande encontra-se em Guarita, a 60 km de Frederico Westphalen, com uma população de 7000 habitantes. Em sala de aula, pergunto aos alunos “vocês sabem o que está acontecendo esta semana na universidade”? Os rostos expressam surpresa, curiosidade, indiferença; algumas falas apontam para reuniões ordinárias, festas de calouros... Uma aluna diz: “ah, eu sei... é uma coisa de índio?”. A indiferença por alguns, a repulsa por outros e a invisibilidade de e por tantos contrasta com as convocações de Estado para se voltar para a imagem incômoda dos povos indígenas.

Essa é uma região que os movimentos sociais e as lutas políticas dos povos ameríndios em defesa de suas terras e de seus costumes convocaram a regularização estatal de seus territórios. Cabe dizer, que a região situa-se predominantemente em terras originariamente indígenas. Ali, essas terras continuam sendo alvo constante de disputas sociais, políticas, econômicas e, sob grande tensão, elas permanecem, por força da lei, garantidas como aldeias Kaigangues e Guaranis. São chamadas de reservas. Reservas que garantem um espaço próprio e legítimo, mas que também confi-nam. Estabelecem limites e um campo reservado do que é permi-tido e do que não é permitido a um índio fazer. Denotam o que Foucault (2008) chamou de uma razão governamental levada a cabo pelos economistas a partir do século XVIII e que ainda aí estão, incidindo sobre a regulação pelo Estado dos interesses priva-dos de cada um, tomando como problema a quantidade de pessoas, o trabalho, a circulação de mercadorias, etc. no que se caracterizou como o surgimento das chamadas populações.

No estabelecimento de territórios-reservas indígenas vemos aí um investimento na vida das populações que possibilita-lhes melhores condições na qualidade de vida e garantias em direitos coletivos constitucionais, mas que, por outro lado, efetivamente,

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as controla homogeneizando-as em parâmetros padronizados de igualdade e as limita em movimentos previamente considerados nos regimentos legais públicos.

Essa questão vinculada à demarcação dos territórios indí-genas também pode ser analisada do ponto de vista dos direitos modernos que, por sua vez, instituiu o sujeito de direitos garan-tindo-lhes algumas condições no âmbito civil, político e social no arranjo liberal dos interesses econômicos individuais. É uma trama política em que uma condição vincula-se à outra, ou seja, consti-tuir-se em direitos nesse arranjo político-moderno só é possível na trama das barganhas contratuais de um social composto por indi-víduos, cada um com seu interesse privado buscando ser contem-plado e garantido em seus direitos. Nesse sentido, podemos pensar no tensionamento presente nessa discussão entre os direitos de um sujeito coletivo de direitos – como são consideradas as populações indígenas – e o sujeito de direito constituído numa trama polí-tico-econômica liberal em que vigoram os interesses individuais. Vemos aí uma tensão que vigora no campo das políticas públicas que se formulam visando as populações indígenas, e com isso, nos levam novamente à nossa cena de pesquisa.

Esta então é a nossa cena: o campo da Psicologia se fazendo questões ao se deparar com os povos indígenas acessando o espaço acadêmico-universitário e a constituição de políticas públicas a eles direcionadas.

Em primeiro lugar, por que esta denominação: “cena de pes-quisa”? Porque queremos deslocar o modo de elaborar as questões de pesquisa da tradicional perspectiva moderna em que a relação sujeito-objeto aprioristicamente estabelece os esquemas concei-tuais e metodológicos de se pensar os acontecimentos e as coisas, numa relação que o sujeito-pensante apartado das “coisas-em-si” pensa as coisas objetivando-as nesse pensamento, para a possibi-lidade de descrever uma cena de pesquisa em que o pensamento

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que indaga se conecta com a dimensão política, social, passional e linguística dos artefatos de um real sempre móvel.

Atreladas a uma proposta de investigação que remete à cena de pesquisa já apresentado em texto produzido em nosso núcleo acadêmico (Guareschi et al., 2011), damos prosseguimento nesse pensamento para refletir formas de se produzir conhecimento. E é nesse sentido que pensar uma cena de pesquisa não é buscar afir-mações-respostas que correspondam a um estado de coisas, mas sim, indagar como o que está aí, nessa cena, foi se transformando em afirmações com pretensão de universalidade e mais tarde com referência a um contexto. Pensando com Latour (2001), colocar a cena em questão não seria entender as referências estabelecidas pelos elementos da pesquisa como exteriores ao discurso e à socie-dade numa tentativa de purificá-las para acessar “as-coisas-em--si”, mas, justamente reconhecê-las nos movimentos de mudança, transformações, alianças, vínculos, interlocuções, e nos mecanis-mos que institucionalizam esses fluxos.

A nossa cena de pesquisa se instaura no campo acadêmico, no espaço interno da universidade, como mediadora e instrumento de formulação das verdades científicas modernas. Dessa forma, a entrada para trilharmos o percurso dos questionamentos feitos sobre a nossa cena de pesquisa ocorre no próprio espaço acadêmico ao ser convocado pelo “mundo externo” – os povos indígenas, as organizações não governamentais e o Estado – que por sua vez, mobiliza a temática indígena na ordem do debate. Na multiplici-dade que compõe o espaço-acadêmico, situamo-nos no campo da Psicologia e é a partir daí que colocamos as questões-problema para pensarmos esse encontro.

Nesse ponto, cabe-nos indagar os processos que possibili-tam que o campo Psi venha a se ocupar dos acontecimentos e da ordem relativa ao que acontece entre os homens.

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A inscrição do campo psicológico na regulamentação político-estatal das populações

Se os elementos que compõem a nossa trama, visibilizam a materialidade de uma razão governamental sobre a vida das pes-soas, remontamos ao que Foucault (2008) apresenta como correla-tivo à emergência dessa forma de governamentalidade, que vigora a partir das transformações ocorridas com o surgimento dos Estados modernos, ou seja, o aparecimento de um conhecimento que não é qualquer conhecimento científico, mas sim um conhecimento indispensável para o estabelecimento de um bom governo nos moldes, sobretudo, econômicos que então se formulavam. Nessa transição, instauram-se modos específicos e particulares de se pen-sar o mundo e as coisas, que não são da ordem da natureza, mas de uma naturalidade específica às relações dos homens entre si, ou seja, “ao que acontece […] quando eles coabitam, quando estão juntos, quando intercambiam, quando trabalham, quando produ-zem”. (Foucault, 2008, p. 470). É algo da ordem de uma naturali-dade do que se instituiu como sociedade – o lugar da existência em comum dos homens. Vemos então se positivar uma naturalidade da sociedade. Essa sociedade que emerge como campo de objetos dos quais o Estado deve se ocupar, tomar a seu encargo, e conhe-cer. Apresentam-se aí processos que devem ser conhecidos pelos mesmos procedimentos de qualquer um dos conhecimentos cien-tíficos, com todas as suas regras de evidência e da racionalidade que os constitui. Com a assunção da população como um objeto de análise para o bom governar, desenvolve-se práticas, saberes e intervenções que incidirão sobre as leis de uma naturalidade social. Podemos com isso nos perguntar sobre os arranjos que foram se constituindo para dar condições à emergência de uma Psicologia que se voltasse para o social.

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Em primeiro lugar, podemos colocar em pauta o próprio surgimento da Psicologia no âmbito das ciências modernas. Uma análise com uma perspectiva histórico-política empreendida por Foucault nos ajuda a estabelecer a trama dos caminhos, interrup-ções, manobras, táticas e estratégias feitas no âmbito das relações político-econômicas em curso na modernidade para que as ciên-cias exatas e naturais se voltassem para o homem e o tomassem como objeto de estudo e de conhecimento.Na conjunção de uma ambiguidade moderna e da constituição da individualidade como uma experiência no âmbito da estruturação dos Estados moder-nos – a emergência de um indivíduo autônomo e livre e, por outro lado e ao mesmo tempo, um indivíduo disciplinado, ou sob con-trole das disciplinas que se constituem para melhor investir nesse indivíduo a ser normatizado e vinculado a um parâmetro de nor-malidade – surgem as condições para que se institua como campo de conhecimento as ciências do psicológico. Voltadas para esse indivíduo inicialmente soberano, que se constitui aí dotado de uma interioridade, que o faz ser capacitado para estabelecer as bases de um contrato social, esse indivíduo moderno surge no princípio da igualdade aos demais e sob a regulamentação das leis do Estado para o controle e a efetividade desse novo campo social. Aqui, esse indivíduo-soberano é fonte para o estabelecimento de uma racio-nalidade de estado, mas não ainda o alvo a ser investido pelos cál-culos de um governamento estatal. Com uma razão econômica sustentando a inscrição da liberdade como elemento central desse novo modo de se estabelecer a relação entre o Estado e o corpo social, surgem mecanismos de segurança para que esse governo dos homens seja limitado, assegurando aos homens o estatuto de homens livres, ao mesmo tempo que se garantem os direitos de desenvolvimento desses processos econômicos ou intrínsecos à ordem das populações.

No domínio dessa nova razão governamental produzem--se técnicas de si na formulação desse sujeito-homem-livre,

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objetivando o governo da individualização nos modos de ser tra-balhador, ser criança, ser adulto, ser mulher, ser estudante etc. Para isso, concorrem as ciências humanas engendradas nessa nova inteligibilidade, estabelecendo os parâmetros de validade para se conhecer o objeto-homem e se proceder da melhor maneira com vistas a esse sujeito-homem-objetivado.

É nesse contexto também que se instaura um novo domí-nio jurídico para dar conta desse ordenamento e desenvolvimento populacional. Novos regulamentos e novos códigos para uma melhor gestão das populações e garantia dos direitos das liberdades individuais são pensados meticulosamente com o aporte dos sabe-res instituídos no âmbito das ciências voltadas para esse indivíduo moderno. É na formulação e utilização de tecnologias políticas de governamento das populações que o domínio das políticas públi-cas se estabelece, regulando e otimizando os processos de fomento para o desenvolvimento econômico dos Estados-nação modernos ao mesmo tempo que propaga em discurso e práticas todo um rol de programas voltados para a garantia dos direitos humanos de forma global.

Vemos aí o investimento na formulação de políticas que regulam e controlam ao mesmo tempo que dão garantias aos povos inscritos nos Estados-nação reconhecidos pelas leis políti-cas internacionais. Com isto, deparamo-nos com o ordenamento e a inscrição dos povos indígenas no Estado brasileiro através das tecnologias de governamento e de inclusão na ordem político-eco-nômica vigente.

Políticas públicas e ações afirmativas correlativas aos povos indígenas:

Ao continuarmos nosso percurso, nos deparamos com a constituição de um sujeito jurídico em torno das regulamentações e normatizações estatais sobre os povos indígenas. Em âmbito

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global, a discussão pelos direitos das populações indígenas se con-cretiza na virada do século XX para o século XXI. Na esteira dos Direitos Humanos, é em 2007, após muita luta e discussão por parte de organizações civis e movimentos sociais pela questão indígena durante mais de uma década, que o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprova o texto da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, com a ressalva de que ainda na vés-pera de sua aprovação ocorreram mudanças e emendas impostas pela Assembleia das Nações Unidas que não haviam sido discutidas anteriormente nos debates sociais, relacionadas, sobretudo, ao uso das terras (Stock, 2010).

Ainda em meados do século XX, sob uma perspectiva polí-tica de desenvolvimento econômico das nações, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) declara em 1957 a Convenção 107, Convenção sobre a Proteção, a Integração das Populações Indígenas e outras Populações Tribais e Semitribais de Países Independentes “com vistas à proteção das populações interessadas e sua integração progressiva na vida dos respectivos países” (Parte I – dos Princípios Gerais. Art. 2º, Item 1). Imediatamente após a identificação de qual população seria alvo dessa convenção nos seus Princípios gerais, o texto volta-se para a ocupação territorial na Parte II – intitulada das Terras. É aqui também que se diz em nome de quê se investe nas Populações Indígenas. No Art. 12, é expresso que “As populações interessadas não deverão ser deslocadas de seus territórios habi-tuais sem seu livre consentimento, a não ser de conformidade com a legislação nacional por motivos que visem à segurança nacional, no interesse do desenvolvimento econômico do país ou no interesse da saúde de tais populações” (Magalhães, 2005).

No Brasil, em plena ditadura militar, o general Humberto Castelo Branco promulga em 1966 o Decreto n. 58824 promulgando a Convenção 107 da OIT e, em 1967, institui a FUNAI (Fundação Nacional dos Índios). Segundo Oliveira e Freire (2006), o aparato

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tutelar era empregado pela FUNAI para impedir qualquer mobili-zação dos índios em face do Estado.

Em 1973, de acordo com práticas políticas ditatoriais e militares vigentes e exercidas em nome da segurança nacional, do desenvolvimento econômico e da ordem social se institui o Estatuto do Índio. O seu texto denota uma preocupação em demarcar, regu-lamentar e controlar os territórios indígenas bem como integrar os povos indígenas na ordem social visando uma comunhão nacional. Com um caráter assimilacionista, o Estatuto visava aculturar os índios no socius brasileiro, de predomínio branco, eurocêntrico e totalizante na tomada de suas populações e territórios. Esse enqua-dre dos povos indígenas em regulamentações jurídicas seria uma preocupação com um espaço “descoberto” a um possível inimigo de Estado?

Já com o processo de discussão dos direitos políticos, civis e sociais ocorrido com a democratização na década de 80 do século XX, resulta na Constituição de 1988 um capítulo específico regu-lamentando a vida indígena no país. Como parte da Ordem Social (Título VIII), em seu VIII Capítulo (dos Índios) o Estado reconhece em dois artigos – o Artigo 231 e 232 – que os povos indígenas têm o direito sobre as terras que ocupam, mas com a União demarcando, protegendo e fazendo respeitar os seus bens; o avanço em rela-ção ao Estatuto do Índio será no reconhecimento de direitos. No texto diz: “os povos indígenas serão reconhecidos em seus modos de ‘organização social, seus costumes, sua línguas, crenças e tradi-ções’”, denotando uma virada com relação à lógica integrativa na comunhão nacional presente no texto de 1973.

Com a nova Constituição Brasileira em 1988, houve um esforço dos movimentos sociais e entidades civis voltadas para os direitos humanos em discutir e buscar a vigência dos direitos fundamentais do homem (Artigo 5º, § 1º e Artigo 60, § 4º) para que os direitos civis, sociais, econômicos, culturais, ambientais e

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étnico-raciais fossem promovidos, cumpridos e implementados em leis e políticas públicas na sociedade. Uma preocupação, no entanto, surge quando se quer combater as injustiças e desigualda-des sociais no que tange aos direitos dos grupos étnico-raciais com a promulgação de políticas ditas universais, pois esse enfoque uni-versal de alguma forma não vem a contemplar as especificidades e costumes de cada povo. Foi assim, a partir dessa preocupação, que os movimentos sociais articularam-se ao debate da igualdade e da justiça social no âmbito público.

Correntemente, as ações afirmativas são concebidas como “políticas públicas que têm como objetivo corrigir distorções histó-ricas responsáveis pelo sofrimento de determinados grupos sociais ou étnico-raciais como, por exemplo, mulheres, pessoas portado-ras de necessidades especiais, negros e índios” (Barbosa, J. L.; Silva, J. S. & Sousa, 2010, p. 71). Mas, ironia do percurso, justamente por uma crítica ao universalismo presente na elaboração de políticas étnico-raciais, é que se pensa em ações peculiares e de afirmação no espaço da universidade. O paradoxo do peculiar no campo que se instituiu como Uno.

As políticas públicas direcionadas aos povos indígenas articuladas ao universo acadêmico

Com relação às investigações acadêmicas em torno das questões indígenas, de forma geral, predominam aquelas que são realizadas a partir de um olhar e saber antropológico, principal-mente na identificação e caracterização das formas de vida das mais diversas etnias indígenas. Alguns estudos focalizando a temá-tica da saúde encontram-se ou partem da Psicologia. O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP/06) instituiu um grupo virtual “Psicologia e Povos Indígenas” que reúne diversos profissio-nais que discutem um possível encontro com as questões indígenas.

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Em um dos estudos1, a autora busca pensar um possível lugar para o psicólogo dentro da área de saúde indígena. E se pergunta: como os indígenas vivenciam a experiência de se hospedar na Casa de Saúde do Índio de São Paulo? Indaga principalmente como se dá a comu-nicação entre pacientes e acompanhantes indígenas e a equipe não indígena... Já numa outra perspectiva, o estudo de Bianca Stock (2010)2 partindo de um pensamento ancorado na Filosofia da Diferença, instiga a produção de outras conexões, na busca, sobre-tudo, de múltiplos possíveis para a vida dos indígenas, abordando o que ela chamou de um “devir-ameríndio”.

A preocupação dos acadêmicos atualmente gira em torno da presença indígena no espaço urbano. Devidamente tutelados, regulamentados, confinados (?!) em suas terras já demarcadas, os indígenas transitam nos centros citadinos buscando talvez a pura sobrevivência. Os apelos totalizantes desse modelo liberal convo-cam a todos para as “benesses” e facilidades de consumo e ascensão econômica irradiado na condensação das cidades. Considerando um modo de se organizar calcado no nomadismo ou na itinerância em muitas etnias do sul do país – como os Kaingang e Guaranis –poderíamos pensar que essa preocupação dos brancos com a pre-sença indígena no espaço urbano poderia estar relacionada com a matriz lógica de nossos tempos atuais em que nada escapa à vigi-lância para melhor controlar, principalmente àqueles que escapam aos modos hegemônicos prescritos por esse modelo político libe-ral? Como controlar a quem escapa no nomadismo ou está fora da reserva? Como poderíamos analisar os processos praticados na

1 GONÇALVES, Lucila de Jesus Mello. (2007). Entre culturas: uma experiência de intermediação em saúde indígena. Dissertação de Mestrado. Fac. de Saúde Pública-USP, São Paulo, SP.

2 STOCK, Bianca Sordi. (2010). A alegria é a prova dos nove: o devir-ameríndio no encontro com o urbano e a Psicologia. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS.

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constituição de políticas públicas voltadas aos indígenas, já que esses processos acontecem sob a lógica do controle e da vigilân-cia própria de nosso tempo moderno e que, portanto, preconiza a segregação ou confinamento de todos aqueles nas populações que ameaçam a ordem e o progresso das nações?

As atenções acadêmicas no que tange à constituição de polí-ticas públicas orientadas para as populações indígenas voltam-se para o Censo 2010 – contabilização das populações pelo Estado. Como último dos redutos apartado das estatísticas de Estado, os índios nesse último Censo foram o alvo mais visado e promissor para finalmente, devidamente inscritos nas regulamentações esta-tais com seus dados e números, instrumentalizarem estudos que auxiliem na constituição de políticas públicas. Segundo Gersem Baniwa, coordenador-geral de educação indígena da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do Ministério da Educação em reportagem para a revista Pesquisa On-line3 da FAPESP – a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, na edição 173, de julho de 2010, declara que “o dado mais importante será a identificação da presença dos índios em áreas urbanas, onde não têm cobertura especial dos governos fede-ral e estadual e, no geral, vivem em situação de penúria, sem aten-dimento de saúde”.

As técnicas de controle populacional aprimoram-se: nesse Censo 2010, ao se autodeclarar indígena, o entrevistado respon-derá também a que etnia ou povo pertence e qual é a língua ou idioma indígena que habitualmente fala em casa. Além disso, pre-tende-se atingir totalmente o universo dos indígenas. Antes eram indagados por amostra, agora são incluídos nos questionários des-tinados a todos os brasileiros. A antropóloga e demógrafa Marta Maria Azevedo, pesquisadora do Núcleo de Estudos de População

3 Recuperado em 6 outubro 2010, de http://revistapesquisa.fapesp. br/?art=4192&bd=1&pg=2&lg=.

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(NEPO) da Unicamp aposta em dados mais fidedignos ao dizer: “É nítida a falta de sistemas de informações populacionais mais deta-lhadas para orientar e avaliar as políticas públicas para os índios. Acima de tudo, os dados do Censo vão ajudar o Estado e as orga-nizações indígenas a melhorar o controle social sobre as políticas públicas dos índios. As várias instâncias governamentais terão uma base melhor para pensar e avaliar políticas”, e, fazendo voz aos que se preocupam com os indígenas em áreas urbanas diz: “se observar-mos que determinada etnia está mais em cidades do que em terras demarcadas, teremos que revisar nossos programas. Afinal, se ape-sar das demarcações de terras os índios continuam migrando para as cidades, algo nos escapou”.

Ainda segundo a Revista da FAPESP (julho/2010) foi só em 1991 que os índios foram incorporados e investigados nacional-mente pela primeira vez. Com isso, incluiu-se “A categoria indí-gena no quesito ‘raça ou cor’ do Censo” sendo “possível se separar essa categoria das pessoas que se classificavam como ‘pardas’ nos Censos até 1980”.

O interessante nessas técnicas de esquadrinhamento popu-lacional são os artifícios e tipologias criadas para que todos sejam devidamente identificados e classificados. O antropólogo Artur Nobre Mendes, coordenador-geral de gestão estratégica da FUNAI, diz na Revista da FAPESP (julho/2010) que com o censo estatal vai se “discriminar etnia e língua (o que) vai nos dar uma pista do indí-gena real. Se a pessoa não souber falar a que grupo pertence e que língua fala, saberemos estar diante de um ‘índio genérico’”.

É interessante notar a correlação das práticas científicas modernas – vinculadas ao ordenamento estatal das populações – com a emergência das regulamentações brasileiras na vida dos povos indígenas. Logo após a implementação da nova Constituição brasileira, os interesses científicos ocasionam as primeiras discus-sões e, por fim, regulamentações estatais em torno do universo

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indígena. Cabe ressaltar que não se buscava a legitimação ou afir-mação dos direitos indígenas. O fim da ditadura militar não acar-retou o fim das relações autoritárias da oligarquia rural no uso da terra, e nas suas relações com o Estado e em seus atravessamentos acadêmicos, longe disso, um dos primeiros decretos mencionando os povos indígenas em terras brasileiras trata da coleta, por estran-geiros, de dados e materiais científicos no Brasil, promulgado pelo então presidente da república, José Sarney. Esse decreto versa o seguinte:

Art.1º Estão sujeitas as normas deste Decreto, as ativi-dades de campo exercidas por pessoa natural ou jurí-dica estrangeira, em todo o território nacional, que impliquem o deslocamento de recursos humanos e materiais, tendo por objeto coletar dados, materiais, espécimes biológicos e minerais, peças integrantes da cultura nativa e cultura popular, presente e passada, obtidos por meio de recursos e técnicas que se destinem ao estudo, à difusão ou à pesquisa, sem prejuízo ao dis-posto no Art. 10. Parágrafo único. Este Decreto não se aplica às coletas ou pesquisas incluídas no monopólio da União (grifo das autoras).

A dimensão indígena aparece apenas por ocupar áreas de interesse científico-ambiental e econômico. É apenas no 4º Artigo desse decreto, ao apontar os órgãos estatais responsáveis pela autorização das atividades científicas de entidades estrangeiras no Brasil, que no inciso III determina-se o Ministério do Interior atra-vés da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e do IBAMA (Instituto brasileiro do meio ambiente e de recursos renováveis) como res-ponsáveis pelas “autorizações que envolvam a permanência ou trânsito por áreas indígenas e de preservação do meio ambiente, respectivamente”. Esse decreto vem a substituir o Decreto nº 65.057, de 26 de agosto de 1969, período forte da ditadura militar.

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Tal decreto versava sobre a “concessão de licença para a realização de Expedições Cientificas no Brasil”.4

De acordo com uma concepção de ciência positivista moderna, preocupada com o progresso e a descrição de leis que possibilitem a dominação da natureza, é que vemos as questões indígenas sendo inseridas gradualmente nas primeiras regulamen-tações estatais brasileiras que mencionam os territórios ou povos indígenas. Por outro lado, não é de se espantar essa inscrição polí-tico-acadêmica dessas populações nos esquemas jurídicos estatais, pois segundo Chauí (2001, p. 51), na universidade brasileira, foram sempre mantidas pelo menos três concepções em seus modelos operatórios, ou seja, modos de operar que “vinculam a educação à segurança nacional, ao desenvolvimento econômico e à integração nacional”. É nesse sentido que vemos uma clara articulação entre formas e esquemas de se fazer ciência com as constituições nor-mativas e os encaminhamentos políticos dos Estados frente a suas populações, em nosso caso específico, na inscrição dos povos indí-genas nas regulamentações do Estado Brasileiro.

Em meio a todo esse investimento estatal e proliferação de estudos em torno das questões indígenas, nos perguntamos como se constitui a inscrição em um ordenamento estatal jurídico – que toma por base um direito positivo composto em normas universais e que, portanto, não atende a práticas particulares – de povos que organizam-se socialmente em processos e modos próprios, com seus próprios regimentos e justamente por isto, constituem-se em nações?

E os índios? O que falam? Como falam? O que dizem daquilo que viveram, das regulamentações estatais, das normatizações bio-políticas? Sentindo na pele práticas de extermínio, confinamento, capturas e prescrições em legislações que preconizam formas

4 Recuperado em 15 janeiro 2012, de http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret.

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hegemônicas de se organizar socialmente, de se conduzir, ou seja, inscritos no governamento populacional em uma razão de Estado, urge pensar e analisar os processos instituídos no confronto desses povos, considerando a singularidade de seus modos e processos de vida no encontro com interesses, fluxos, redes e saberes configura-dos por esse pensamento científico ocidental moderno que aí está.

As questões indígenas e as políticas públicas fazendo pensar o próprio espaço acadêmico

De acordo com o relato de Latour (2001), em sua descrição dos acontecimentos e do fazer científicos na Esperança de Pandora, pensar as questões indígenas e as políticas a elas direcionadas incorrendo no espaço acadêmico já as faz ser alvo das atenções do mundo trazendo-as para o centro da controvérsia; e, ao mantê-las em jogo nesse embate de contraposições, incorre-se na pulsação dos fluxos de acordo com as alianças e o grau de interesse ativado por essas questões, tanto no “mundo interno” da ciência como no “mundo externo” a esse espaço acadêmico. Temos aqui uma cena de pesquisa que transcorre no próprio espaço pensante dos fatos científicos. Seria então: os elementos constituintes dessa cena pen-sando o seu próprio espaço de cena a ser pesquisada. O campo aca-dêmico – instrumento de formulação de verdades científicas – e o mundo público – nos vários elementos constituintes do colocar em jogo a governabilidade dos povos indígenas – publicizando o uni-verso do índio a partir da universidade.

Aqui também nos encontramos com o pensamento de Despret (2002) quando propõe uma cultura da desespacialização ou do des-locamento, no sentido de derrubar muros construídos em torno de algumas dimensões consideradas ora da ciência, ora do social. Ou ainda, em torno da célebre dicotomia moderna entre natureza e cultura. E, sobretudo, aqui neste momento, na tradicio-nal relação moderna entre sujeito-objeto.

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O convite de Despret (2002) é para que se pense essa relação como vários Outros numa cena: tanto o sujeito-que-pensa (o pes-quisador) sair desse lugar de um Eu (ou nós) que pensa e se deslocar para o lugar de um Outro também a ser perguntado, assim como os objetos-sujeitos da pesquisa considerados já tradicionalmente como Outros desconhecidos a serem investigados. Nesse encontro de Outros, e não mais “Eu – Outro”, vale considerar o “contraste” que surge entre esses elementos e as várias versões que surgem na indagação desse contraste; e não entrar em um esquema predomi-nante nas ciências que é o de identificar controvérsias entre teorias que buscam o saber de um outro para dar evidência de um saber correto, de uma causa natural, original, verdadeira e universal, mas sim, considerar as várias versões controversas como um campo de análise que constitui “sujeitos-objetos impuros” num jogo político de interesses.

Nas versões surgidas no contraste entre esses outros, pode-mos nos voltar para uma reflexibilidade – ou seja, um voltar-se para as versões ou verdades que cultivamos de nós mesmos... aqui não estou falando de um “eu íntimo – subjetivo”, mas, das versões feitas, ou fabricadas como definições últimas no âmbito de um saber cien-tífico sobre a vida. No entanto, o que nos interessa aqui é pensar o percurso até chegar às versões, é pensar o que no viés da reflexibi-lidade nos leva a pesquisar esse outro-sujeito-objeto e a lhe fazer perguntas. Cabe-nos indagar também sobre o que e como somos levados a produzir esse contraste assim como nos perguntar sobre a dimensão de nosso interesse em fazer interessante não só o que nos interessa, mas, outras versões surgidas nesse encontro.

Dessa forma, se deslocar, ou pensar na desespacialização, não é perguntar ao outro aquilo de que teríamos nos esquecido ou aquilo que não podemos saber, mas, sim, é perguntar as possibili-dades de invenção que os encontros com um Outro-sujeito-objeto podem dispor.

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Referências

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A Psicologia Comunitária no contexto ameríndio: a

educação mitológica Guarani na indissociabilidade ensino,

pesquisa e extensão

Ana Luisa Teixeira de Menezes

Introdução

A Psicologia Comunitária tem se constituído ao longo das últi-mas décadas a partir de um esforço sistemático de interven-

ção com os diversos grupos sociais, notadamente os grupos mais empobrecidos ou em situação de inclusão, marginalizada na vida social e, até mesmo, de exclusão social. Essa interação tem se dado de maneira geral, e tendo como referência o contexto brasileiro, a partir da ênfase na autonomia e no protagonismo das populações com as quais se tem trabalhado, através da ampliação da critici-dade desses sujeitos em relação ao contexto e aos problemas que apresentam. Nesse processo, a partir da incorporação de elementos

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presentes na Educação Popular (Freire, 2004, 2006; Góis, 2005) e através da formação de uma perspectiva crítica de Psicologia Social Comunitária (Lane, 1995; Montero, 2000; Sawaia; 1995; Góis; 2012; Ximenes et al.; 2008), algumas categorias foram se formando tanto para a compreensão da vida comunitária quanto para a intervenção a partir da Psicologia nesses campos.

Considerando esse referencial teórico comunitário, Góis (2008), ao pensar a saúde comunitária, problematiza a noção de ciência evidenciando a história ameríndia que se constitui, na América, de vários povos convivendo num espaço geográfico, his-tórico, cultural e humano, cujo início remonta aos primeiros povos pré-históricos e, num processo de transformação contínuo, chega até os dias atuais.

Este trabalho pretende elucidar alguns elementos que podem agregar à construção de um conhecimento social e comuni-tário tendo como campo o contexto rural indígena. Um dos aspectos que se coloca é considerar os saberes ameríndios como conheci-mentos que são, ao mesmo tempo, epistemológicos e ontológicos. Destacam-se a vivência comunitária e a educação mitológica, que se constituem como processos coletivos identitários e tornam-se relevantes para os estudos da Psicologia Comunitária.

Problematizar a cultura Guarani, presente no interior do Rio Grande do Sul, tem produzido uma dinamicidade para o enten-dimento dos processos grupais e comunitários, tendo em vista que, muitas vezes, existe um completo desconhecimento e até mesmo um preconceito em relação a essas populações. Tal posicionamento leva a uma ideia de um índio folclórico, mitificado como um perso-nagem exótico e selvagem.

Morin (2011), dentro de um movimento complexo, reflete sobre a necessidade de integrar o pensamento do sul, ou seja, os saberes indígenas e africanos ao pensamento do norte, europeu e norte-americano. Os saberes denominados do sul constituem o

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pensar a partir da dança, do canto, das sensações, da afetividade, dos elementos da natureza, dos instintos, aspectos que são desen-volvidos há milhares de anos num modo de vida da América Latina. Os saberes do norte, por sua vez, orientam a ciência e os modos de ação no sentido analítico, interpretativo, cultivando uma ideia de distanciamento neutro, fundamentados num modo de vida norte--americano e europeu, predominantemente racionalista.

Pretende-se, dessa forma, trazer à luz alguns desses conhe-cimentos numa prática educativa universitária que envolve a indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão no campo transdisciplinar, que atravessa a prática e o pensar da Psicologia Comunitária.

Campo transdisciplinar: indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão

A aldeia Mbya Guarani denominada Ka’a guy Poty, que sig-nifica Flor da Mata, situa-se no município de Estrela Velha, no inte-rior do Rio Grande do Sul. Seu território foi doado aos Guarani pela CEEE – Companhia Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul, no ano de 2002. No ano de 2012, 30 pessoas residiam na reserva indígena com uma área de 500 hectares. A aldeia fica a 19 quilôme-tros de Estrela Velha, e a quatro quilômetros da Vila Itaúba. Existe na aldeia uma escola de educação básica diferenciada, com profes-sor Guarani. Não há posto de saúde dentro da aldeia. Há energia elétrica e a água vem de um poço artesiano. A língua falada no dia a dia é a Guarani. O português é falado somente na comunicação com os não índios. Na escola se aprende a escrever e a falar em Português, e o ensino vai até a 4ª série do ensino fundamental. A escola recebe merenda escolar mensalmente do Estado.

No ano de 2006, iniciou-se um trabalho com o Departamento de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, atra-vés do qual os alunos das disciplinas de Psicologia Comunitária I

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e II e da Pós-graduação em Educação Biocêntrica1 visitavam as aldeias numa proposta de ensino participativo, através de observa-ção participante, conversas em roda e entrevistas abertas. A partir dessas atividades, foram surgindo outras interações com caráter de extensão: venda e exposição do artesanato indígena na UNISC, palestras e curso de extensão sobre a cultura indígena ministrado por Eduardo Acosta2, professor da escola Guarani. O espaço de venda de artesanato tornou-se também um momento de comuni-cação, de diálogo interétnico.

Em 2007, ocorreu na aldeia o 1° Encontro de Medicina Tradicional do Rio Grande do Sul, no qual se fizeram presentes diversas lideranças religiosas e políticas Guarani. Esse encontro provocou uma sensível mudança na visão da comunidade vizinha frente aos Guarani. Na abertura do evento, estavam presentes o Prefeito e o Vice-Prefeito de Estrela Velha, o Secretário Municipal de Agricultura, a Secretária Municipal da Saúde, um representante da Secretaria Municipal de Educação, o pastor da comunidade evangélica e representantes de órgãos como: FUNAI (Fundação Nacional do Índio), FUNASA (Fundação Nacional de Saúde), EMATER/ASCAR-RS (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural), COMIN (Conselho de Missão entre Índios), CEPI (Conselho Estadual dos Povos Indígenas) e UNISC (Universidade de Santa

1 Educação Biocêntrica é uma proposta educativa, oriunda do princípio biocên-trico, que trabalha para o desenvolvimento dos vínculos afetivos, da criativi-dade, da transcendência, percebendo a identidade como presença no mundo. Suas bases epistemológicas estruturam-se a partir da Complexidade (Morin), da Teoria Dialógica de Ação (Paulo Freire) e da Biodança (Rolando Toro). Um dos conteúdos do curso é o estudo do conhecimento ameríndio e da educação indígena. Para quem quer aprofundar os estudos, recomenda-se a leitura de Cavalcante, Ruth et al. (2001). Educação biocêntrica – um movimento de cons-trução dialógica. Fortaleza: edições CDH.

2 Destaca-se que todos os nomes citados são verídicos e propositadamente no-meados, reforçando a ideia de que são sujeitos participantes da construção prática e teórica do conhecimento na interlocução com os trabalhos de ensino, pesquisa e extensão universitária.

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Cruz do Sul), além de diversos agricultores vizinhos. Nesse dia, o Vice-Prefeito fez menção à presença da UNISC na região e agrade-ceu o fato à aldeia Guarani.

Os Guarani, nessa ocasião, solicitaram apoio das entida-des presentes em relação à agilidade da demarcação de suas terras em diversos locais no Rio Grande do Sul, a uma maior valorização das parteiras indígenas nos hospitais e à manutenção dos saberes dos Karaís, suas lideranças religiosas. Os Karaís e as Kunhãs Karaís representam a concentração da sabedoria milenar Guarani e estão sempre pensando na sustentabilidade da vida. Foi lembrada tam-bém a história de permanência dessas famílias em Estrela Velha. O pastor Armin Hullas relatou o dia da audiência pública, há mais ou menos oito anos, realizada para a aprovação ou não da vinda dos Guarani para a região. Relatou que houve uma reação preconcei-tuosa por parte dos colonos e das lideranças políticas da época, os quais estão respondendo a um processo por calunia e difamação feitas aos Guarani, pois “os colonos não queriam deixar as terras para eles, porque queriam usar para o gado. A procuradora deu o parecer favorável ao processo”. O Vice-Prefeito fez referência às dificuldades que os Guarani viveram para se instalar e permanecer nessa área.

Da mesma forma que se percebe um empoderamento da aldeia com a presença da UNISC, ressaltam-se os avanços para a universidade que, com a presença indígena, foi provocada sobre os sentidos de fortalecer a inserção social. Para Oliveira (2004), não se trata apenas de inclusão social, mas da construção de uma univer-sidade que reconhece, promove valores e visões de mundo diferen-ciados e empodera a sociedade.

A indissociabilidade é uma premissa constitucional que legitima a universidade no tripé ensino, pesquisa e extensão. Essa questão tem pautado as discussões institucionais que envolvem o planejamento universitário e o projeto de educação. Trabalhar

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no sentido de um conhecimento indissociável significa assumir a educação num processo de reflexão, de inserção comunitária, de sistematização, de investigação aprofundada dos aspectos que organizam a realidade, ou seja, uma formação crítica e afetiva que convida as pessoas a se movimentarem dentro de uma comunicação dialógica (Menezes & Síveres, 2011). Assumir a indissociabilidade enquanto um projeto educacional remete a dimensões constitucio-nais, de compromissos políticos institucionais, de fluxos organiza-cionais, de processos de integração entre sujeitos universitários e de avaliações do Ministério da Educação.

Na transdisciplinaridade, o educador percebe-se como um sujeito que, ora estando no ensino, ora na pesquisa, ora na exten-são, vive a educação como uma aprendizagem do viver e da convi-vência, na qual as disciplinas interagem, mas não são o centro dos objetivos e do conhecer (Moraes, 2005). Por isso, viver a indisso-ciabilidade é transcender a própria disciplina que nos formou e nos legitima como profissionais. A vivência de indissociabilidade com os Guarani no campo disciplinar da Psicologia Comunitária leva a uma reflexão de que transcender, contudo, não significa desaparecer, mas ampliar os horizontes da formação, perceber--se como complementar. Tendo a aldeia Guarani como campo, o ensino, a pesquisa e a extensão eram formas de diálogo, nos quais a prática e o conhecimento metodológico de um acrescia ao outro, gerando nos atores acadêmicos, tanto estudantes quanto profes-sores e técnicos, um modo de aprendizagem de estar em diálogo com os Guarani e com uma cultura diferenciada, ora na aldeia, ora na universidade. Essa dimensão transdisciplinar envolve saberes da Psicologia Comunitária, da Antropologia, da Educação, da política, da Filosofia dos ameríndios, da ordem dos afetos. Os conhecimentos se atravessam e ganham sentido nessa costura epistemológica e no sentido da vivência de cada sujeito envolvido nessa trama disciplinar.

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Vivência Comunitária e Educação Mitológica

Nesse percurso da indissociabilidade, no ano de 2008 deu-se início ao projeto de pesquisa denominado A produção da vivência comunitária através do mito: um estudo a partir da dança Guarani. A pesquisa teve como eixo central a investigação do modo de vida Guarani, através da dança como processo mítico, que atua-liza a vivência comunitária e singular.

Dilthey (1988) define a vivência como o instante vivido no contato com o imediato sensível e sensorial. Para Merleau Ponty (2004), a percepção brota da experiência da corporeidade, que é, ao mesmo tempo, sensível e concreta. Os ritos apresentam-se, entre os Guarani, como um processo a partir do qual as vivências comu-nitárias são atualizadas, apresentando-se como instrumento para a resistência cultural, a religiosidade e a aprendizagem que per-mite ressignificar experiências pessoais e recolocá-las a partir das referências coletivas dentro de um espaço imaginativo e simbólico. Através dos mitos, dos ritos e do próprio cotidiano, os indígenas desenvolvem processos psíquicos ativando a imaginação no modo de ação e interação (Escobar, 1993).

Os afetos permeiam as diversas instâncias da consciência, sendo capazes de produzir campos imaginativos que podem mui-tas vezes reorientar o pensamento frente à realidade vivida. Os mitos são produzidos e atualizados através dos ritos dentro de um campo imaginativo. Mitos são imagens que orientam as ações, o pensamento pessoal e coletivo. Para Campbell (1990), os mitos lidam com a transformação da consciência, no que se relaciona à passagem de uma preocupação puramente pessoal para uma res-ponsabilidade social, quer seja através de causas políticas, sociais e/ou espirituais. Os mitos possuem uma linguagem poética e flexível. Por isso, podemos encontrar várias versões mitológicas de um mesmo mistério. Nos mitos Guarani, a dança, presente na formação do mundo, possibilita uma ação e um pensamento

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reflexivo para além do sofrimento pessoal. O mito, para Campbell (1990), cumpre quatro funções: a mística, que abre as portas para a dimensão do mistério e da transcendência; a cosmológica, que provoca a compreensão sobre a forma do universo, no qual o mis-tério novamente se manifesta; a sociológica, que fala da organiza-ção social, das validações das formas de vida sociais; e a dimensão pedagógica, que nos ensina como viver uma vida humana em qualquer circunstância.

Larsen (1991), partindo da noção de que nossas mentes necessitam tanto da estrutura como da flexibilidade, desenvolve a ideia de que a psique exige mais do que um só mito. Segundo o autor, faz-se necessária uma pluralidade mítica que nos possi-bilite uma abertura à diversidade da vida. Nesse sentido, os mitos são parte de um estudo sobre os modos de vivência comunitária, de estruturação pessoal e coletiva. O mito evidencia-se como cate-goria subjetiva e objetiva organizadora do pensamento Guarani. A dança, enquanto rito, transporta os Guarani a um tempo de reco-nhecimento de suas identidades. O rito Guarani está ligado a uma estrutura profunda de organização coletiva emocional, dentro de uma função vital, de elevação espiritual e uma integração ao seu sis-tema de pertença. Os ritos possuem a função vivificadora do mito, através da representação teatral dentro de uma dimensão imagina-tiva. Para os Guarani, Nhanderú� ensinou a dança e mandou dançar a dança, que surge de uma percepção mitológica e seu surgimento confunde-se com a própria existência. Chamorro (1998) afirma que a dança Guarani representa um movimento de resistência cultu-ral, da religiosidade e de um exercício de aprendizagem constante. Os rituais das danças entre os Guarani são interpretados por essa autora como uma resistência agressiva frente aos invasores, afir-mando a identidade na corporificação xamã, na reza, na palavra e no movimento. Menezes (2009), em seu estudo etnográfico e feno-menológico sobre dança e processos educativos entre os Guarani, localiza a dança na relação entre rito, mito e identidade pessoal e

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coletiva, através de depoimentos de jovens e velhos, fazendo refletir sobre a necessidade de uma investigação dos processos subjetivos relacionados à identidade, à comunidade e à educação mitológica.

Narrativas em roda: construindo conhecimento com os Guarani

A pesquisa ocorreu dentro de um processo participativo, através das ações conjuntas e de conversas em roda realizadas com diversos grupos de estudantes das disciplinas de Psicologia Comunitária I e II. Nessas conversas, os estudantes perguntavam aos Guarani sobre suas vidas. A metodologia adotada constituiu--se de diálogos em grupo, através de etnografia, das anotações em diários de campo e da pesquisa participante, tendo em vista que a pesquisa teve uma interface com o ensino e a extensão, para a pro-dução de projetos conjuntos. A etnografia é desenvolvida a partir da descrição densa de Geertz (2008), da imersão no contexto e na percepção de cada palavra e de cada gesto enquanto uma descrição percebida, interpretada e vivida. A pesquisa participante estrutura--se na educação popular e na compreensão de que os sujeitos da pesquisa, em seus campos, vivem um processo de consciência mais amplo a partir das reflexões vividas. Os sujeitos são legitimados como produtores de conhecimento, dentro de um saber consagrado coletivamente. O diário de campo é um espaço de registro e de sis-tematização dos saberes e das emoções, é um modo de expressão poética e científica (Brandão, 1982, 1983).

As conversas em roda eram coordenadas pelo cacique João Paulo, pelo professor de língua Guarani Eduardo e pelo vice-caci-que Alex. Nas rodas, ficavam presentes as crianças, Dona Catarina, liderança mais velha, outras mulheres da aldeia, professores e estu-dantes de Psicologia da UNISC. As perguntas surgiam a partir da curiosidade e do interesse dos próprios estudantes. As perguntas são exercícios que desenvolvem no estudante uma postura ativa

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frente ao conhecimento, à consciência de que precisam saber e que, para isso, necessitam indagar como uma prática de aprender “com”, ao mesmo tempo que reconhecem os saberes diferenciados.

Freire (1992, p. 117), em suas reflexões sobre a necessidade de diálogo, afirma: “não penso autenticamente se os outros tam-bém não pensam. Simplesmente, não posso pensar pelos outros, nem para os outros, nem sem os outros”. Essa vivência da inter-rogação, que é característica do diálogo, estimula o pensar junto, um saber que necessita do outro para saber. Quando o Guarani responde, ele está pensando sobre suas respostas e, tanto a per-gunta como a resposta, geram novos questionamentos frente à sua cultura. Observa-se que as constantes indagações, aliadas às ações dos estudantes e do grupo de pesquisa, realizadas em conjunto com os indígenas, despertaram a comunidade para a participação con-junta, que, para Góis (2008), permite a ampliação da consciência.

O trabalho conjunto gerou uma cooperação entre Guarani e universidade, o que, para Maturana (1995), é o sentido genuíno de cooperação: ser capaz de operar junto. Isso demandou tempo, muitas idas e vindas, presença viva e uma predisposição maior para o diálogo, enquanto pensar junto. A ação e o pensamento não se separam, mas se estimulam. Agir conjuntamente é um exercício profundo de diálogo e de pensamento. Isso é bem evidente nessa prática, pois os Guarani fazem pensar repetidas vezes sobre o que se está fazendo, e o que essa ação gera para a aldeia. Foi um apren-dizado nesta pesquisa observar o efeito da ação individual para o coletivo. Como exemplo, podem ser citados os diálogos realizados para firmar a presente parceria: seguidamente o cacique questio-nava sobre se o que estava sendo proposto, enquanto inserção, era “para valer”, pois a aldeia começava a mobilizar-se para os momen-tos de encontro e atividades propostas. A responsabilidade do caci-que está na repercussão que isso gera em sua comunidade. Pensar sobre a ação, tanto a sua própria, como a do outro, é uma meto-dologia do viver Guarani. Eduardo, professor da aldeia, conta que

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uma das lideranças deixou de ser cacique, pois começou a realizar ações com os não indígenas, tomar decisões individuais, sem con-versar coletivamente, deixando de pensar sobre os efeitos dos seus atos para a aldeia e agindo em seu próprio favor. Para os Guarani, agir individualmente é estar perdido, fragilizado, desconectado da cultura Guarani.

O pensamento é uma qualidade do viver Guarani. Os jovens estão sempre pensando sobre o sentido da vida e de seu caminhar. Bergamaschi (2009) fala de uma postura meditativa desses indí-genas, referindo-se a eles como uma cultura “caminhante”, desde seu deus Nhanderú que vive dançando, aos próprios Guarani, que vivem caminhando de uma aldeia a outra, tendo e adquirindo uma consciência de si mesmos e de sua cultura, que está também sem-pre em movimento.

No diálogo com os Guarani, uma pergunta tornou-se central: quais os sentidos e significados elaborados no cotidiano Guarani? Para respondê-la, trabalhou-se com a dança, o artesanato, com tro-cas e construção de projetos e com participações no cotidiano da aldeia. A dança é parte de uma tríade, juntamente com a oração e o canto. Seus elementos não acontecem em separado no pro-cesso de educação Guarani. Montardo (2002) registra a crença de que, para os Guarani, existe vida na Terra, porque eles a estão cui-dando e de que esse cuidar passa pela tríade cantar, rezar e dançar. Quando uma aldeia não está dançando também não está entrando em contato com Nhanderú. Isso fragiliza a força dos Guarani. Em uma aula de Psicologia Comunitária, João Acosta refletiu sobre o sentido da dança na cultura Guarani e pediu ajuda aos estudan-tes para conseguir um violino, para fortalecer o grupo de dança da aldeia. Em termos históricos, inicialmente os instrumentos utili-zados pelos Guarani eram apenas o tambor e o chocalho. A par-tir do contato desse povo com os jesuítas no século XVII, novos instrumentos foram introduzidos em seus rituais, como o violão e o violino, ambos de origem europeia. Desde então, os sons desses

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instrumentos fazem parte da musicalidade presente nos rituais Guarani, conferindo-lhes seu sentido cultural genuíno. Envolvidos com a causa dos Guarani, os estudantes fizeram uma rifa e con-seguiram o violino. Esse foi entregue a Dona Catarina como um presente do grupo de estudantes, num rito criado por eles. A pos-sibilidade de uso de um violino surtiu um efeito imediato de forta-lecimento da cultura na aldeia, através do ressurgimento do ensino da dança às crianças e da vivificação do mito.

Evidenciam-se alguns aspectos sobre mitos, a partir de Almeida (2007), presentes no modo de vida Guarani: a circulari-dade da dança, o diálogo permanente que perdura no tempo, que ultrapassa a morte, no sentido de ser uma cultura instigadora de imagens e pensamentos. O verdadeiro Karaí, personagem central entre os Guarani, é aquele que mantém uma relação com o divino, é o escolhido para perpetuar o diálogo, que não existe sem o narra-dor, o ouvinte e a narração. As histórias são sempre atualizadas no presente, na experiência enquanto vivência revitalizadora. Nesse sentido, o mito convida os Guarani a participarem da dança. Não há dança sem participação. Através dessa forma de participação, a consciência vai se constituindo repleta de significados coletivos engendrados um no outro. Dessa forma, o Guarani vai se consti-tuindo como pessoa, sendo continuamente convidado a participar, a pertencer ativamente, a dançar.

Wanderlei, jovem Guarani, certa vez, falou sobre o que acontece dentro da Opy, casa de reza dos Guarani: “cada um de nós tem uma ligação, uma linha invisível. Se estiver dentro da Opy, todos estão ligados. Se uma pessoa está triste, você sente, a energia flui, que nem a Via Láctea”. A Opy é o lugar do mito, da instauração do mito, que se vivifica a partir do rito, da dança e das palavras, que, segundo Eduardo, não precisam ser entendidas por completo, mas precisam existir sempre, para suscitar o desejo de, algum dia, com-preendê-las. É a distância mítica necessária que revela para cada ser o seu estado inacabado, de transição. Cabe à consciência mítica

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Guarani guardar a verdadeira substância da vida de sua cultura: seu grande mistério.

O Guarani criador, produtor de cultura, transforma a natu-reza, reproduzindo-a e revivificando-a. Transforma sua cultura dentro de um processo de inclusão, ou seja, afirmando-a em seu uso e em sua criação. É o que acontece no processo de uso da madeira nos bichinhos, como da taquara em jaká (cesto) e das sementes em colares, bolsas e pulseiras. Além do aspecto econômico, encon-tra-se a dimensão cultural e singular nesse processo. João Acosta, cacique, diz que o artesanato os tem estimulado em relação ao conhecimento da língua portuguesa, o que propicia a negociação. Revela também que cada artesanato é único, apesar de serem muito parecidos. Segundo João, cada Guarani relaciona-se com a produ-ção de uma forma diferenciada. Serginho, jovem Guarani, relatou que gosta muito de fazer corujas e que, ao fazê-las, sempre se lem-bra de uma caminhada que fez com seu pai, quando tinha dez anos, e apareceu uma coruja. Conta esse fato como um grande aconteci-mento em sua vida. Para os Guarani, o sentido da criação está dire-tamente ligado ao diálogo, à comunicação. O processo artístico do artesanato representa um trânsito, dentro da concepção de Freire (1984), que implica um conhecimento transformado em ação, um tornar-se sujeito. Esculpir é um ato de esculpir a si mesmo, de se refazer, de mobilizar-se internamente. A arte Guarani representa uma integração que o enraíza, no sentido desenvolvido por Freire (1984), ao encontro da liberdade, despertando uma consciência plástica, criadora. A expressão que se dá no ato criador é a potência da singularidade coletiva Guarani, é o trânsito entre a semente e a arte, entre a natureza e a cultura. Cultura que, ao ser criada, for-talece a procura da natureza, numa relação harmônica entre ima-nência, lugar de criação e transcendência, lugar que ultrapassa a cultura, a natureza, a expansão.

No ano de 2009, dentro de um programa de aprendizagem em extensão, um conjunto de professores, estudantes e técnicos

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elaborou um projeto para facilitar a venda de artesanato Guarani, dentro de um edital da Caixa Econômica Federal. Em 2010, o pro-jeto foi aprovado e realizado. Para a universidade, esse projeto con-tribuiu para a reflexão do conhecimento ameríndio. A presença dos Guarani reforçou a importância de uma reflexão sobre a cultura indígena na sala de aula e em encontros étnicos produzidos pelo DCE (Diretório Central dos Estudantes), pelo Departamento de História e pela Pró-Reitoria de Extensão e Relações Comunitárias. O projeto de comercialização indígena representou também a con-tinuidade de uma política que integrou ensino, pesquisa e exten-são. Destacou-se nesse projeto a possibilidade da produção de diálogos de aprendizagem entre culturas que caminham em dire-ções opostas, tanto no pensamento econômico como nas relações familiares e nos tempos vividos. O tempo de produção, de pensar em grupo sobre os acontecimentos, difere significativamente do nosso tempo, bem mais pragmático e individual. Enfrentar essas dimensões, dentro de prazos e de lógicas já predeterminadas, pos-sibilitou fazer reflexões rumo a aprendizados comuns. As relações interétnicas são desafiadoras, pois colocam em xeque verdades que se possuem como legítimas e produzem um repensar quanto à forma como nos colocamos no mundo.

Considerações finais

O trabalho de cooperação, realizado através da indissocia-bilidade entre ensino, pesquisa e extensão, possibilitou uma inte-gração na formação universitária, estimulando o desenvolvimento dos alunos de Psicologia, extensionistas e da Pós-graduação em Educação Biocêntrica. Através dele, constituíram-se novas par-cerias com instituições que trabalham com os indígenas e com a Prefeitura de Estrela Velha, sendo construídos vários projetos que integraram a aldeia Guarani e a UNISC.

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O caminho metodológico da pesquisa, do ensino e da exten-são constituiu-se dentro de uma estrutura mitológica de narrativas, nas quais a universidade colocou-se no lugar de ouvinte, que parti-cipa da comunidade indígena de uma forma respeitosa e ativa. Os espaços em nossa universidade também foram alterados através das relações constituídas, que mudaram a invisibilidade indígena nas salas de aula e no centro de convivência. As conversas em roda tive-ram eco e produziram o desejo de estar juntos, fato que provocou contradições e reflexões culturais, principalmente sobre o modo de ser comunitário indígena e o modo de viver individual não indí-gena. Foi percebido que o conceito de comunitário não indígena é uma representação sobre o comunitário, e que essa diferença na relação com os indígenas tornou-se um elemento atrativo e proble-matizador. Ainda há muito a caminhar com os Guarani, para que se entenda o pensamento do Sul (Morin, 2011), ameríndio e o sentido de comunidade. A relação de pesquisa, de ensino e de extensão, pautada nas narrativas, numa perspectiva mitológica, estimula a ampliação de nossas percepções para a construção de ações con-juntas e para a aprendizagem dos sentidos da vivência comunitária Guarani, dentro de uma construção cotidiana mitológica do ser.

Para a construção da Psicologia Comunitária, destaca-se a importância dos estudos dos mitos nos processos identitários que envolvem a dimensão singular e comunitária e o quanto os saberes ameríndios estão presentes nos conhecimentos populares, organi-zando o pensamento e as organizações comunitárias nos contextos populares.

A dança é um exemplo de conhecimento ameríndio, que, enquanto mito e rito, se revela, entre os Guarani, como um pro-cesso a partir do qual as vivências comunitárias são atualizadas, apresentando-se como instrumento para resistência cultural, reli-giosidade e aprendizagem.

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Para entender os processos comunitários, necessita-se investigar e trabalhar com a diversidade cultural, resgatando a his-tória social ameríndia, na qual os indígenas são atores ativos. Esses atores falam da construção de uma epistemologia que pressupõe a ontologia, o desenvolvimento do ser no conhecer, partindo da noção de que o conhecimento pressupõe a vivência. A Psicologia Social Comunitária, ao dar um destaque especial aos estudos sobre identidade na América Latina, necessariamente abre a possibili-dade para a investigação dos estudos indígenas, pois esses proble-matizam a nossa formação social, educacional e acadêmica.

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Uma experiência de Psicologia Social Comunitária na comunidade de Barra

de Mamanguape

Thelma Maria Grisi Velôso Flávia Palmeira de Oliveira

Iara Cristine Rodrigues Leal Lima Jacqueline Ramos Loureiro Marinho

Lucélia de Almeida Andrade

Introdução

Neste capítulo, trataremos de um projeto de intervenção psi-cossocial, que desenvolvemos, desde 2008, na Comunidade1

de Barra de Mamanguape (Rio Tinto/PB). Pretendemos relatar essa

1 Cabe registrar que definimos Comunidade como um grupo social que tem certo nível de organização, intimidade pessoal, compartilha o mesmo espaço físico e subjetivo e alguns objetivos comuns derivados de um sistema de representações e de valores. Assim, mantém um sistema de interações que se dão nas dimen-sões temporal e espacial (Gomes, 1999; Nisbest, 1974, como citado em Sawaia, 1996, p. 50).

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experiência atentando para os recursos teóricos e metodológicos que temos utilizado, com a intenção de contribuir para o fortaleci-mento ou a potencialização dessa Comunidade e dos atores sociais envolvidos.

A Comunidade de Barra de Mamanguape localiza-se no litoral norte do estado da Paraíba e faz parte da Unidade de Conservação de Uso Sustentável, denominada Área de Proteção Ambiental (APA) da Barra do Rio Mamanguape. Compreende 14.640 hectares de ecossistemas de mangue, dunas, restingas, rios e zona costeira, com remanescente de Floresta Atlântica. Há dezoito comunidades no interior da APA (incluindo seis aldeias indígenas). Essa área abriga também espécies da fauna ameaçadas de extinção, como o peixe-boi marinho (trichechus manatus mana-tus) e o cavalo-marinho (hippocampus sp.) (Rodrigues; Antunes & Rodovalho, 2008).

Formada por, aproximadamente, 80 famílias de pescado-res e de marisqueiras, Barra de Mamanguape tem cerca de 400 habitantes2, cujo modo de subsistência principal são a pesca e a coleta de mariscos. O turismo ecológico constitui uma fonte de renda complementar, que se desenvolve em parceria com a APA do Mamanguape/ICMBIO.

A intervenção que desenvolvemos nessa área caracteriza--se como um projeto de extensão universitária3, operacionalizada através de uma parceria entre a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e o Instituto Chico Mendes de Conservação à Biodiversidade (ICMBIO).

2 Fonte oral. Informações obtidas na Colônia de Pescadores Antônio Brito Z-13, junho de 2012.

3 O projeto, atualmente, é intitulado como “Uma proposta de extensão popu-lar na Comunidade de Barra de Mamanguape (Área de Proteção Ambiental da Barra do Rio Mamanguape/Rio Tinto/ PB)”.

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Sem perder de vista o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, a extensão universitária é entendida aqui como uma prática transformadora, em que interagem os sabe-res científicos e os populares, visando construir novos saberes que sejam instrumentos de mudança social. Portanto, diferencia-se de práticas assistencialistas de extensão, cujo único objetivo é de pres-tar cursos e serviços (Melo Neto, 2001).

A extensão popular deve ser pensada como um trabalho social. Social porque pressupõe o outro e, por isso, pretende ser útil. Apesar de, através do ensino e da pesquisa, ser possível desenvolver trabalhos sociais úteis, a extensão se diferencia, e sua intenciona-lidade política serve como base, ao mesmo tempo questionadora e norteadora, para o ensino e a pesquisa. Popular, no sentido de se pretender democrática e inclusiva, o que implica se articular com os setores marginalizados pela sociedade. Pressupõe o estabeleci-mento do diálogo entre saberes e práticas, entre pessoas que dese-jam uma sociedade justa (Melo Neto, 2007; Silvan, 2007).

O projeto de extensão popular, que desenvolvemos em Barra de Mamanguape, vem se guiando pelos referenciais teóricos e metodológicos da Psicologia Social Comunitária, área que se uti-liza dos fundamentos teóricos da Psicologia Social crítica e histó-rica, priorizando a formação de grupos e desenvolvendo trabalhos de investigação e/ou intervenção em comunidades. Sua teoria e prática se pautam em valores como ética da solidariedade, resgate dos direitos humanos fundamentais e busca da melhoria da quali-dade de vida, e sua proposta implica o desenvolvimento de estra-tégias que visem o estímulo à autonomia, ao desenvolvimento de uma consciência crítica e ao protagonismo social dos grupos com os quais trabalha, com vistas à transformação social (Campos, 1996; Lane, 1996; Freitas, 1996, 2001).

Como alerta Montero (2010), nessa perspectiva, pro-põe-se que a transformação social seja alcançada por meio de

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transformações nas comunidades e nos atores sociais que delas par-ticipam. Nesse sentido, a autora afirma que o objetivo da Psicologia Social Comunitária é fortalecer a capacidade dos atores sociais de gerarem mudanças e análises críticas da realidade. A noção de for-talecimento ou potencialização da Comunidade é ressaltada como fundamental para a transformação das comunidades e dos atores sociais. Montero (2010) propõe o termo fortalecimento, ao invés de empowerment, empoderamento ou apoderamento, como utilizado por outros autores.

Segundo a referida autora, o termo fortalecimento reflete melhor o significado que se pretende dar à prática e define esse pro-cesso da seguinte maneira:

[…] proceso mediante el cual los miembros de una comunidad (individuos interesados e grupos organiza-dos) desarollan conjuntamente capacidades y recursos para controlar su situación de vida, actuando de manera comprometida, consciente y critica, para lograr la trans-formación de su entorno según sus necesidades y aspira-ciones, transformandose al mismo tiempo a sí mismos (Montero, 2010, p. 72).

Os elementos fundamentais desse processo de fortaleci-mento da Comunidade são, entre outros, a participação, a autoges-tão, a reflexão crítica e o compromisso.

Orientadas por esses referenciais teóricos, desenvolvemos um projeto de extensão, em Barra de Mamanguape, cujo objetivo principal é fortalecer, incrementar e fomentar espaços de escuta e de problematização da realidade, para estimular a autonomia popu-lar, a participação e o processo de desenvolvimento da capacidade de análise crítica. Objetiva também, considerando a interligação entre ensino, pesquisa e extensão, promover para os participantes da equipe técnica do projeto, através da experiência vivenciada na

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Comunidade, espaços de reflexão sobre as possibilidades de atua-ção do psicólogo.

Um pouco de história: o percurso que trilhamos

A história desse projeto de extensão se iniciou no final de 2007, quando, através de um contato com a coordenação da Base Avançada do Centro de Mamíferos Aquáticos (CMA/PB)/Projeto Peixe-boi, soubemos do interesse desse órgão em incentivar e reto-mar os trabalhos de pesquisa e de extensão na área que compreende a APA da Barra do Rio Mamanguape. Optamos, então, por desen-volver um trabalho na Comunidade de Barra de Mamanguape. Como estratégia de aproximação e de levantamento de informa-ções sobre a Comunidade, realizamos, em 2008, uma pesquisa, guiando-nos pelos princípios da pesquisa-ação4. Corroboramos, assim, “a necessária relação e dependência entre investigação/pes-quisa e produção de estratégias de ação” (Freitas, 2001, p. 62).

Para realizar esta pesquisa, recorremos à História Oral (HO), uma metodologia de pesquisa voltada para o estudo do tempo pre-sente e baseada nas vozes de testemunhas sobre o passado (Lang; Campos & Demartini, 2001). Foram entrevistadas, a partir do crité-rio de acessibilidade, 36 pessoas (20 homens e 16 mulheres), com faixa etária entre 17 e 70 anos, das quais solicitávamos que falassem sobre a história da Comunidade.

Através do depoimento oral, que se caracteriza pelo “tes-temunho do entrevistado sobre sua vivência ou participação em

4 Como estratégia de conhecimento e método de intervenção, a pesquisa-ação se apresenta como uma alternativa ao padrão de pesquisa convencional e tem por objetivo realizar, junto com os membros da Comunidade, um trabalho que par-ta das suas necessidades práticas e tenha como resultados ações concretas. Os objetivos da pesquisa terão sempre uma finalidade prática, que possa provocar mudanças e transformação social (Thiollent, 2000).

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determinadas situações ou instituições” (Lang et al., 2001, p. 12), foi possível conhecer a versão dos pescadores e das marisqueiras sobre a história da Comunidade e sobre os fatos que marcaram e marcam a realidade desses moradores. Nessas entrevistas, foram apontados alguns problemas da Comunidade, a saber: carência de emprego; consumo excessivo de álcool e uso de outras drogas; alto custo de vida; problemas com serviços sanitários (ausência da coleta de lixo) e de urbanismo (má qualidade das estradas); queixas sobre carên-cia de serviços na área de saúde e transporte público e questões conflituosas acerca do uso de recursos naturais na Área de Proteção Ambiental (APA) – o que pode, o que não pode e por que pode, ou não, ser feito numa Unidade de Conservação.

Após a transcrição das entrevistas e a análise de conteúdo dos depoimentos (Demartini, 1988), retornamos à Comunidade e encaminhamos os resultados da pesquisa. Para isso, selecionamos trechos das entrevistas e elaboramos o roteiro de uma peça a ser encenada por nós, composta por personagens (pescadores e maris-queiras) que falavam da demanda comunitária ressaltada através das entrevistas. A ideia da encenação dessa peça se inspirou na pro-posta do Teatro do Oprimido (TO).

Assim, a peça foi encenada até o momento do ápice de deter-minada situação-problema. Nesse momento, a plateia foi convi-dada a buscar alternativas. Dissemos que a alternativa não poderia ser apenas falada, mas, também, encenada pelas pessoas da plateia. Nossa intenção era de que, por meio desse mecanismo, como aponta Boal (2008), o espectador pudesse abandonar o papel de passividade e assumisse o de protagonista, para transformar a ação dramática ini-cialmente proposta, ensaiando soluções possíveis, debatendo proje-tos modificadores e preparando-se para a ação real.

A situação-problema foi gerada a partir da seguinte ques-tão colocada no final da apresentação da peça encenada por nossa equipe: “Então, o que é que a gente pode fazer?”. Para estimular

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o grupo a entrar em cena e ensaiar respostas, pedimos que todos se levantassem e formassem um círculo. Utilizamos, então, dois exercícios de TO, intitulados “mosquito africano”5 e “floresta de sons”6, com os quais trabalhamos a descontração e a interação do grupo e o estimulamos a encenar. Em seguida, o grupo discutiu sobre a montagem da cena que responderia à pergunta “Então, o que é que a gente pode fazer?” e encenou uma situação em que todos, juntos, reivindicavam aos órgãos competentes providências em relação às necessidades apontadas nas entrevistas (reproduzi-das na peça encenada, inicialmente, pela nossa equipe).

A discussão levou a uma decisão coletiva de se organizar uma reunião dos moradores da Comunidade com os representan-tes da APA e da Base Avançada do CMA/PB (que foi viabilizada), a fim de buscar os primeiros encaminhamentos relativos às deman-das da Comunidade, em especial, no que diz respeito ao uso dos recursos naturais na Unidade de Conservação.

A partir de então, começamos a ir, regularmente, à Comunidade, e o trabalho passou por várias fases em que viven-ciamos diferentes experiências e nos deparamos com os inúmeros desafios que surgem numa proposta de Psicologia em Comunidade. Os “resultados” da pesquisa realizada contribuíram, tanto em

5 “Pede-se que façam um círculo e avisa-se que um mosquito está sobrevoando a cabeça da pessoa do lado. A pessoa que está ao lado dela deve afugentar o mosquito com uma batida de palmas. Imediatamente, avisa-se que o mosquito fugiu para sobrevoar a cabeça da outra pessoa e pede-se que a pessoa que está ao lado dela também afugente o mosquito com palmas e, assim, consecutiva-mente. Cada vez mais rápido, o mosquito foge de uma cabeça para outra, e os participantes tentam pegá-lo, produzindo um som ritmado através das palmas” (Boal, 2002, como citado em Centro de Teatro do Oprimido, s.n., p. 16-17).

6 “O grupo se divide em duplas: um parceiro será o cego (fecha os olhos) e o outro o guia, que emite o som de um animal qualquer, enquanto seu parceiro escuta com atenção e procura segui-lo. O guia é responsável pela segurança do parceiro (cego) e deve parar de fazer o som se o cego estiver prestes a esbarrar em algo ou alguém. O guia, constantemente, muda de posição, e o cego deve segui-lo através do som emitido. Em seguida, troca-se de papel – o cego passa a ser o guia e vice-versa” (Boal, 2008, p. 155 -156).

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termos de conhecimentos sobre a Comunidade quanto em termos de estratégias de aproximação e problematização da realidade, e foram se “somando” ao processo que foi se desencadeando. O diá-logo frutífero estabelecido entre a Psicologia Social Comunitária e a Educação Popular (Lane, 1996; Freitas, 2008) nos auxiliou a estimu-lar formas coletivas de aprendizado, com a intenção de fomentar o desenvolvimento da capacidade de análise crítica sobre a realidade e de aperfeiçoamento das estratégias de luta e de enfrentamento (Vasconcelos, 2001).

Nas idas à Comunidade, priorizamos a realização de visi-tas domiciliares, conversas informais, reuniões e oficinas, que são registradas em diário de campo e avaliadas pela equipe de acordo com os princípios da ação-reflexão-ação. No que diz respeito às visitas, utilizamos a observação participante, com a intenção de obter mais informações sobre a realidade, através da constituição de uma relação face a face com a população (Cruz Neto, 1995). Como afirma Araújo (1999a, p. 79), “é muito limitado querer com-preender a vida cotidiana comunitária somente pelas vias formais; é preciso buscar uma con-vivência com o povo do lugar/comuni-dade, dirigindo especial atenção aos processos interativos e comu-nicativos”. (Grifo do autor).

Utilizamos a visita domiciliar como um dos instrumentos que potencializa as condições de conhecimento do cotidiano dos sujeitos, em seu ambiente de convivência familiar e comunitária, nas relações que estabelecem nesses espaços (Amaro, 2003). Assim como afirmam Amaral, Gonçalves e Serpa (2012), como estratégia de intervenção na Comunidade, as visitas domiciliares têm possi-bilitado construir uma relação interpessoal com os seus moradores. Também têm sido um espaço de escuta e de problematização. São situações em que estimulamos o protagonismo social e a reflexão crítica, ao mesmo tempo que obtemos elementos para compreen-der a vida cotidiana, pois, quando isso acontece, entre outros aspec-tos, “poder-se-ão entender as participações e não participações nas

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práticas comunitárias, nas redes de solidariedade, nas convivências interpessoais” (Freitas, 2008, p. 39).

No que se refere às reuniões e às oficinas, elas se consti-tuem como uma estratégia para a formação de grupos. Nesse sen-tido, cabe, inicialmente, fazer algumas considerações teóricas. Em primeiro lugar, a utilização do termo processo grupal nos auxilia a considerar o fenômeno grupal inserido em um contexto histó-rico e dialético, além de considerar a articulação entre os aspec-tos pessoais e grupais, subjetivos e objetivos de um grupo (Lane, 1984). A utilização do termo processo remete ao fato de o grupo ser uma experiência histórica, construída num determinado espaço e tempo, fruto das relações que ocorrem no cotidiano. Como adverte Carlos (2002), utilizar esse termo implica considerar que o grupo não é uma entidade acabada, mas um projeto, um “eterno vir-a-ser”.

Assim, numa concepção histórico-dialética, compreende-mos que grupo não é apenas a reunião de pessoas que comparti-lham objetivos em comum, é mais do que isso, porquanto congrega experiências articuladas com aspectos gerais da sociedade, expres-sas nas contradições que ali emergem. “O grupo tem sempre uma dimensão de realidade referida a seus membros e uma dimensão mais estrutural referida à sociedade em que se produz. Ambas as dimensões, a pessoal e a estrutural, estão intrinsecamente ligadas entre si” (Martín-Baró, 1989, como citado em Martins, 2003, p. 203).

Conviver em grupo significa estabelecer vínculos, compre-ender as necessidades individuais e/ou coletivas das ações do dia a dia. “O grupo é também uma estrutura social, uma realidade total, um conjunto que não pode ser reduzido à soma de seus membros, supondo alguns vínculos entre os indivíduos, ou seja, uma relação de interdependência” (Martins, 2007, p. 77).

Ao propor a formação de grupos na Comunidade, parti-mos da ideia de que, isoladamente, a pessoa termina vendo o seu problema como exclusivo, como necessidade individual. Ao se

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reunirem em grupo, as pessoas começam a perceber que têm pro-blemas semelhantes, fruto das próprias condições sociais. É no contexto grupal que nos diferenciamos e, ao mesmo tempo, identi-ficamo-nos com o outro. Isso auxilia a compreenderem que a orga-nização coletiva, ao contrário da ação individual isolada, é capaz de auxiliar na resolução desses problemas (Lane, 1984).

O grupo constitui, então, condição tanto para o conheci-mento da realidade comum e para a autorreflexão quanto para a ação conjunta e organizada. A participação dos indivíduos em gru-pos leva-os a “superarem o individualismo e a se unirem em ativi-dades” que visam “mudar o seu cotidiano” (Lane, 1996, p. 20).

Cabe enfatizar que não estamos defendendo uma opo-sição entre o individual e o grupal, pois “social e singular não se constituem como esferas dicotômicas” (Zanella, 2011, p, 65), mas enfatizando a potencialidade dos grupos. Assim, ao longo desses três anos e meio de atuação na Comunidade, foram realizadas, na Colônia de Pescadores, algumas reuniões para discutir diferen-tes temas. Foram discutidas questões acerca da saúde pública, do recolhimento do lixo e da precariedade da escola. Também houve debates sobre as possibilidades de se organizar uma Associação de Marisqueiras que funcionasse nos moldes de uma cooperativa.

Além disso, foram formados quatro grupos: um de mulhe-res; um de adultos, de exibição e discussão de filmes e curtas-metra-gens; um de adolescentes e adultos jovens, que se constitui como um grupo de teatro; e um de crianças. Os recursos metodológicos utilizados nas oficinas realizadas com cada grupo foram condicio-nados às suas especificidades, assim como aos objetivos do projeto de extensão e ao referencial teórico que fundamenta essa proposta e que vem sendo assinalado neste texto.

Neste relato, daremos ênfase às oficinas realizadas com as crianças. No entanto, cabe registrar que, no grupo de mulhe-res, refletia-se sobre temas de interesse do grupo (como saúde,

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menopausa, sexualidade etc.). O objetivo principal era propor-cionar uma reflexão sobre a realidade cotidiana, estimulando as mulheres a exercitarem a autonomia, a participação e o senso crí-tico. As atividades com esse grupo foram realizadas no período de junho de 2010 a setembro de 2011. No grupo dos adultos – de homens e mulheres – são exibidos e discutidos filmes e curtas-metragens com o objetivo de fomentar um espaço de discussão e problemati-zação da realidade cotidiana através da expressão cinematográfica. Os temas dos filmes são previamente escolhidos pelos participantes do grupo. Esse grupo existe desde abril de 2011, e o dos adolescentes e adultos jovens se constituiu, desde abril de 2012, como um grupo de teatro. O objetivo é montar peças de teatro que abordem temas ligados à realidade da Comunidade. Esses momentos proporcio-nam a esse grupo uma reflexão mais crítica sobre o cotidiano, além de estimular o protagonismo social. A seguir, descreveremos as ofi-cinas psicopedagógicas realizadas com as crianças.

Oficinas psicopedagógicas

Esse grupo surgiu de uma demanda concreta explicitada em outubro de 2009 pelo diretor da Escola de Ensino Fundamental de Barra de Mamanguape por ocasião de uma visita realizada por nossa equipe à escola. Ele nos disse que até as crianças que sabiam ler tinham dificuldade de interpretar o que liam. Inicialmente, o grupo foi formado por crianças que já sabiam ler, filhos de pescadores e marisqueiras da Comunidade, porém, aos poucos, foi se ampliando e, atualmente, é composto por crianças que sabem e que não sabem ler e por pré-adolescentes, cuja faixa etária varia de cinco a treze anos. As oficinas têm de 10 a 26 participantes de ambos os sexos. Cabe res-saltar que, no planejamento e realização das oficinas, levamos em consideração as especificidades de cada faixa etária.

Esses encontros, com duração de, aproximadamente, duas horas, são realizados aos sábados à tarde, com os objetivos

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de estimular o gosto pela leitura e de incentivar o protagonismo social, a criatividade e a reflexão crítica. Para convidar as crianças para participarem do grupo, fomos de casa em casa, falar com os pais e explicar os objetivos da proposta. Esse encaminhamento passou a fazer parte do trabalho. Assim, no sábado pela manhã, as crianças são convidadas a participar da oficina. Aos poucos não foi mais necessário explicar os objetivos nem falar com os pais. Ao mesmo tempo, as crianças passaram, com bastante entusiasmo, a se juntar a nós e a participar desse “ritual”, convidando conosco as outras crianças. À medida que passamos nas casas, o grupo vai aumentando, pois outras crianças vão se agrupando. Esse encami-nhamento, a nosso ver, fortalece tanto o sentimento de pertença ao grupo quanto o protagonismo social.

Para planejar as oficinas, recorremos às contribuições do “Projeto Geraldo Maciel (Barreto)” (Biblioteca Municipal de Catolé do Rocha/Secretaria Municipal de Cultura de Catolé do Rocha/PB, 2009), assim como aos exercícios e jogos do Teatro do Oprimido (TO) propostos por Augusto Boal.

No que diz respeito ao “Projeto Geraldo Maciel (Barreto)”, é importante assinalar que um dos seus fundamentos é o conceito de habitus proposto por Bourdieu7. O habitus é um conjunto de

7 “As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as condições ma-teriais de existência características de uma condição de classe), que podem ser apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturan-tes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representa-ções [...]. A prática é, ao mesmo tempo, necessária e relativamente autônoma em relação à situação considerada em sua imediatidade pontual, porque ela é o produto da relação dialética entre uma situação e um habitus−entendidocomoum sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percep-ções, de apreciações e de ações −etornapossívelarealizaçãodetarefasinfinita-mente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas, que per-mitem resolver os problemas da mesma forma, e às correções incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente produzidas por esses resultados” (Bourdieu, 1972, p. 13-18, grifos do autor).

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disposições responsável pela recepção e pela apreciação dos bens simbólicos, que circulam socialmente, entre eles, a literatura. Desse modo, o desejo ou não pela leitura não se trata apenas de uma questão individual, mas grupal e depende do universo do qual o indivíduo faz parte. Assim, um dos objetivos do “Projeto Geraldo Maciel” é construir ou ampliar habitus, constituindo grupos favo-ráveis à leitura, desenvolvendo e mobilizando o gosto pela leitura do texto literário. Outra base teórica desse Projeto, fundamentada nas ideias da educadora argentina Delia Lerner, defende que lemos movidos por necessidades, por isso precisamos criar necessidades sociais para a leitura (Marques, 2010a).

Na sociedade atual, o indivíduo se afirma ou é reconhecido socialmente quando é sujeito econômico, consumidor (de grifes, celulares etc.). As estratégias de leitura devem, então, possibilitar ao leitor (sujeito econômico ou não) afirmar-se como sujeito cul-tural e, inclusive, sentir-se como parte do universo letrado. A partir desses referenciais teóricos, as estratégias metodológicas propos-tas pretendem fazer que o desejo de pertencimento, de participa-ção, de reconhecimento ou de afirmação social provoque a leitura literária (Marques, 2011).

As estratégias propostas pelo “Projeto Geraldo Maciel (Barreto)” se caracterizam, então, como recurso ou atividade que seja capaz de mobilizar no leitor “o desejo pela leitura, a necessi-dade de ler, de ler mais e/ou melhor o texto literário” (Marques, 2011, p. 2). Dentre as estratégias mais técnicas, estão a contação e a antecipação.

A primeira se caracteriza em ler para contar. Em seguida, o leitor é indagado com perguntas que contemplam aspectos pre-dominantemente afetivos. Esses aspectos são contemplados uma vez que contribuem para o estabelecimento de relações com o texto literário, permeadas pela emoção, e que estimulam o gosto pela lei-tura (Marques, 2011, 2010b).

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Assim, nas oficinas que realizamos em Barra de Mamanguape, algumas crianças contam ao grupo histórias infan-tis que leram. Essas histórias que elas escolhem são entregues pela nossa equipe no dia que antecede a oficina. Depois de contar as histórias que leram, são indagadas com perguntas do tipo: o que mais gostaram, o que não gostaram, sobre o que falariam para os seus autores, caso se encontrassem com eles, se modificariam algo na história lida, se a história provocou alguma emoção, se ela tor-ceu por algum personagem, entre outras. A ideia é promover um diálogo crítico entre os leitores acerca dos textos lidos e estimular a expressão da visão do leitor da forma mais espontânea possível.

A outra estratégia proposta – a antecipação – consiste em provocar o leitor para que ele preveja algum aspecto do texto lite-rário que será lido ou está sendo trabalhado. Segundo Marques (2011), a utilização de tal técnica pode ocorrer em três momentos alternativos: antes da leitura do texto, ao longo do texto e antes do final. Vale salientar que não se trata de adivinhação, mas de um momento de criação que, certamente, será posteriormente conec-tado ao texto e/ou ao seu autor.

Quando vamos utilizar essa estratégia nas oficinas psicope-dagógicas em Barra de Mamanguape, fazemos uma leitura dramati-zada de um texto infantil ou exibimos imagens de histórias infantis (através da utilização do data show) – com texto escrito ou não – e suprimimos uma parte do texto. Em seguida, dividimos o grupo em subgrupos e utilizamos outros recursos para estimular esse momento de criação e reflexão sobre a história, tais como pintura, modelagem, encenação (teatro de sombras, teatro de bonecos), entre outros. Isto é, sugerimos que as crianças criem a parte do texto que foi suprimida com a utilização de um desses recursos. Depois, há a socialização, para o grupo todo, do final do texto literário que tinha sido supri-mido e dos textos que foram construídos nos subgrupos.

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No que diz respeito à utilização dos exercícios e dos jogos propostos pelo método de Teatro do Oprimido (TO), eles são uti-lizados de acordo com os objetivos específicos de cada oficina, em articulação com os objetivos do grupo e da proposta de extensão. Dependendo dos objetivos da oficina, esses exercícios poderão ser realizados no início, no meio ou no final da oficina.

Os exercícios e os jogos são agrupados por Boal (2008) em cinco categorias: sentir tudo o que se toca, procurando “diminuir a distância entre sentir e tocar”; escutar tudo o que se ouve; desen-volver os vários sentidos ao mesmo tempo; ver tudo o que se olha; e ativar a memória dos sentidos.

Segundo o referido autor, há no ser humano uma tendên-cia a monopolizar o sentido da visão, uma vez que não estamos habituados a sentir o mundo externo a partir dos outros sentidos. Considerando a hegemonia do olhar e o atrofiamento dos demais sentidos, os exercícios e os jogos de TO têm como objetivo desme-canizar os corpos por meio da reativação dos sentidos. O corpo encontra-se mecanizado pela incessante repetição dos gestos e é necessário que o sujeito volte a sentir certas emoções e sensações das quais já se desabituou, ampliando a sua capacidade de sentir e de expressar (Boal, 2008). Além disso, esses exercícios estimulam valores ligados à integração do grupo, à união, à solidariedade etc. Por exemplo, o exercício intitulado “João-bobo ou João-teimoso”, que faz parte dos exercícios gerais da categoria “Sentir tudo o que se toca”, é utilizado por nós com o objetivo de estimular a confiança e a integração do grupo. Nesse exercício,

pede-se ao grupo que faça um círculo, com todos em pé, olhando para o centro. Um voluntário vai ao centro, fecha os olhos e deixa-se tombar; todos os outros devem sustentá-lo com as mãos, permitindo-lhe inclinar-se até bem perto do chão. Em seguida, devem recolocá-lo nova-mente no centro, porém ele tombará em outra direção.

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É seguro sempre pôr, pelo menos, três companheiros. Ao fim, pode-se ajudar o protagonista a rolar em círculo, pelas mãos dos companheiros, em vez de retorná-lo em direção ao centro (Boal, 2008, p. 95).

Assim, utilizamos esses exercícios e jogos nas oficinas tanto com a intenção de desmecanizar os corpos, quanto como uma ferramenta para estimular, entre outros aspectos, novas posturas diante da realidade e das relações estabelecidas, o que contribui para o desenvolvimento de uma consciência crítica e o fortaleci-mento da Comunidade.

Nas oficinas, recorremos, ainda, à reflexão de histórias com a projeção de curtas- metragens de animação. Assim como Orozco-Gomes (2003, como citado em Zanini & Weber, 2010), concordamos que, através dessas exibições, são criados e elaborados sentidos, e a nossa intenção é de problematizá-los. A reflexão desencadeada a partir dos temas enfocados nos filmes selecionados contribui para incrementar a nossa proposta psicopedagógica com esse grupo.

Encerramos as atividades das oficinas com música e dança, pois, como afirma Araújo (1999b), a música pode ser utilizada como recurso legítimo para a expressão de sentimentos e/ou aspectos relacionados à realidade concreta, à cultura, às lutas ou aos sonhos coletivos. A música é utilizada pelo psicólogo comunitário como um recurso metodológico na facilitação do processo de construção e fortalecimento de identidades comunitárias. Na experiência em destaque, temos utilizado esse recurso, sobretudo, com o objetivo de promover momentos de interação e descontração do grupo.

Acreditamos que essas estratégias metodológicas têm auxi-liado a problematizar a realidade e convidado as crianças a exa-minarem “criticamente suas ações cotidianas e opiniões acerca do mundo, da vida e de si mesmas [...]” (Oliveira; Ximenes; Coelho & Silva, 2008, p. 156).

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Nesse processo, ao abordar não apenas o aspecto cognitivo, mas também os afetivos, concordamos que as emoções têm a possi-bilidade de desestabilizar e questionar problemáticas psicossociais (Sawaia, 2004). As emoções são uma forma de linguagem que pode desencadear o desenvolvimento de uma consciência crítica ou frag-mentá-la (Lane, 1995). Assim, compreendemos a afetividade como um ato ético-político, transformador de questões psicossociais, que une emoções e transformação social (Lima; Bomfim & Pascual, 2009). Entendemos que a afetividade é o reflexo das relações que surgem no decorrer da história do sujeito e adquire sentido em relações específicas. Sentimentos e emoções, embora sejam fenô-menos referentes a um corpo que é afetado, são alterados em meios ideológicos e psicológicos distintos, uma vez que “é o indivíduo que sofre, porém esse sofrimento não tem gênese nele, e sim, em inter-subjetividades delineadas socialmente” (Sawaia, 2004, p. 99).

Como afirma Montero (2004, p. 134, como citado em Vieira-Silva, 2008, p. 95-96):

Lo importante es que la afectividad es un aspecto cons-titutivo de la actividad humana que se expresa en los innumerables actos de la vida cotidiana. En tal sentido, el trabajo comunitario al proponer procesos de proble-matización, de desnaturalización conducente a la desi-delogización, de conscientización, necesariamente debe tomar en cuenta la parte afectiva de tales procesos. El afecto, la consciencia y la acción está relacionados y es sólo por un acto de prestidigitación teórica que pode-mos separar lo cognoscitivo, lo afectivo y lo conativo.

Cabe destacar, ainda, que, nas oficinas realizadas em 2011 com o grupo de crianças, montou-se uma peça teatral, que foi apresentada para toda a Comunidade. Essa proposta, fruto do inte-resse que as crianças demonstraram pelo teatro, orientou-se pelo que o “Projeto Geraldo Maciel” denomina de “estratégia pública”

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ou “estratégia social”, que seriam os eventos. Assim, entre as estra-tégias sociais de leitura, o referido projeto assinala: a palestra, o recital, o jogral, o concurso e a performance. Esta última consiste na encenação teatral de um texto literário. Essas estratégias pode-rão funcionar como necessidades criadas para a leitura (Marques, 2011).

O texto escolhido foi a fábula A Cigarra e a Formiga (adapta-ção da obra de La Fontaine). Para discutir e adaptar o texto, fizemos uma leitura dramatizada da fábula e suprimimos o final da histó-ria com o intuito de que as crianças criassem outro, estimulando, assim, a criatividade e o protagonismo delas. Em subgrupos, elas refletiram sobre qual seria o final da fábula. Dos vários finais que foram criados, alguns se aproximaram do original, em que a cigarra fica com fome e frio e recebe um castigo por não trabalhar, e outros mais solidários, em que as formigas acolhiam a cigarra. Então, após a discussão em grupo, elas optaram pela solidariedade e decidiram que as formigas procurariam a cigarra e cuidariam dela.

Em todas as oficinas para a apresentação da peça, utiliza-mos exercícios de TO que estimularam aspectos como a confiança, a integração do grupo, a atenção, a concentração, a descontração, a imaginação, a improvisação, a memória, a percepção e a expressão através da linguagem corporal. Além disso, formamos subgrupos para as crianças refletirem sobre os figurinos, o cenário e para os ensaios da peça.

No que diz respeito à confecção do figurino e do cenário, levamos uma mala básica, com alguns materiais necessários: TNT, cartolina, tesoura, cola, tinta, isopor etc. No primeiro momento, cada criança falou das características dos personagens (formigas, cigarra, plantas e demais bichos). Depois, guiando-nos pelo exer-cício de TO, “objeto transformado”8, colocamos os materiais que

8 “Esse jogo pode ser usado em combinação com um grande número de jogos de criação de personagens. Por exemplo: ‘O baile na embaixada’ (ver p. 221) ou

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seriam usados para a confecção dos figurinos e o cenário da peça espalhados no meio da sala, e as crianças foram convidadas a dizer o que poderia ser feito com aqueles objetos. Objetivamos, assim, estimular a imaginação e o protagonismo do grupo. As ideias foram utilizadas para a confecção dos figurinos e do cenário.

Priorizamos o diálogo na medida que entendemos que ele é uma condição para qualquer crescimento pessoal e comunitário. Numa postura dialógica, “os interlocutores o fazem como sujeitos de uma mesma ação comunicativa, na qual cada um tem a capa-cidade de argumentar suas preposições na frente do outro”. Esse diálogo, por si mesmo, contradiz quaisquer formas de opressão e dominação existentes nos grupos entre seres humanos (Brandão, 1999, p. 34). Esses encaminhamentos possibilitaram as crianças a refletirem, de maneira coletiva, sobre tudo o que era necessário para a montagem e a apresentação da peça.

Todo o processo, desde o primeiro sinal de interesse delas pelo teatro, a discussão do texto, a confecção do figurino e do cenário, até o dia da apresentação (as crianças convidaram toda a Comunidade para assistir à peça, passando, com uma de nós, em todas as casas), houve a participação ativa do grupo, pois, como afirma Montero (2004, p. 106, como citado em Ansara & Dantas, 2010, p. 99), na proposta de Psicologia Comunitária, a

participación no busca sólo remediar algún mal, cum-plir algún deseo, sino además generar conductas que respondan a una proyección activa del individuo en su medio ambiente social, así como concepción […] de ese medio y de su lugar en el.

‘Guerrilheiros e Policiais’ (ver p. 220). Pegando os objetos trazidos por alguém, os participantes mudam seu significado usando-os de diferentes formas ou em diferentes contextos, seja como cenografia ou figurino” (Boal, 2008, p. 212, gri-fos do autor).

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Enfatizamos, também, que o estímulo à criação artística nesse grupo (seja através da pintura, do desenho ou da encenação) é mais um recurso metodológico utilizado. Não desconsideramos a ideia de que a criatividade é algo exigido constantemente pela sociedade capitalista. A modernidade exige que os sujeitos sejam criativos, polivalentes e tenham iniciativa. No entanto, isso não significa desconsiderar que a ação criativa comprometida com uma lógica não excludente é potencialmente capaz de construir uma relação em que os sujeitos possam estar comprometidos com outros sujeitos e conviver e construir relações sociais pautadas em uma “ética pela vida”.

Continuamos precisando, portanto, de sujeitos criati-vos, porque continuamos lutando por condições sociais e políticas que permitam a humanização, a constituição de sujeitos que possam viver com plenitude o que a his-tória da humanidade nos tem possibilitado produzir e possam engendrar ações efetivas no sentido de trans-formá-la (Zanella, 2004, p. 137).

A utilização da arte nas oficinas, na perspectiva de uma ação criativa, auxilia, através do diálogo, “como um contexto para a problematização e a reconstrução cultural”, na “construção inter-subjetiva de significados”, elementos cruciais para a proposta da Psicologia Social Comunitária (Campos, 1996, p. 175).

Nessa perspectiva, cabe ressaltar que os significados que os sujeitos atribuem ao mundo são socialmente produzidos, de acordo com as experiências vivenciadas cotidianamente. O sujeito é uma rea-lidade histórico-social, fortemente enraizado em um modo de vida social peculiar, em determinado espaço histórico, social, cultural, eco-nômico, simbólico e ideológico, e participa de uma rede de relações sociais complexas (mais além do interpessoal e do grupal) de uma sociedade historicamente determinada (Gonçalves & Bock, 2009).

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Como afirma Reis, Zanella, França e Ros (2004, p. 53), o “olhar humano” não é natural, não é uma capacidade inata que pre-cisa, apenas, de um estímulo ambiental para se manifestar. É um “olhar” histórico e socialmente construído, que constitui um modo de ver o mundo através de “sistemas específicos de atribuição de sentidos culturalmente produzidos”.

Sabemos também o quanto é desafiante e complexo des-construir e ressignificar sentidos já estabelecidos e reproduzidos em diferentes instâncias do social, o que implica construir e des-construir afetos, desejos e emoções. Acreditamos, no entanto, no potencial da percepção estética, um “olhar” que busca outros ângulos de leitura, produzindo novos sentidos. É um “olhar” crí-tico, capaz de re (significar) o instituído. Amplia as possibilidades, o poder reflexivo e criativo dos sujeitos, “permite que se retire a marca de familiaridade da realidade, que não se tome a máscara que lhe dá um sentido único, mas que essa possa ser vista como polissêmica e multifacetada” (Reis et al., 2004, p. 54).

O “olhar de estranhamento” que a arte possibilita contribui para que essas crianças ampliem suas possibilidades de reflexão e criação, porquanto a arte tem esse papel de “inventar” a vida, de reelaborar cognições, afetos e vivências. “A arte possibilita à pessoa ir além do ‘estar no mundo’, para ‘ser com o mundo’, em possibili-dades infinitas de ser” (Deleuze & Guattari, 1996, como citado em Higuchi; Alves & Sacramento, 2009, p. 235, grifos dos autores).

Considerações finais

Ao recorrer às experiências e às investigações acumuladas no campo das práticas Psi em Comunidade, dialogando com a Educação Popular e avaliando constantemente os nossos “fazeres”, estamos, aos poucos, construindo uma proposta de intervenção psicossocial em Barra de Mamanguape, que jamais estará pronta e acabada, uma vez que a realidade é dinâmica, um “eterno vir-a-ser”.

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Nossa prática é fruto desses diálogos e nos convida a refletir cons-tantemente sobre os nossos avanços, limites e desafios, a mudar “rotas” e “ampliar caminhos”.

Buscamos, em todas as oficinas realizadas com os grupos que foram formados em Barra de Mamanguape, assim como nas visitas domiciliares, fomentar espaços de problematização e de reflexão crí-tica e estimular a criatividade e a autonomia, objetivando um pro-cesso de organização coletiva, através da participação social ativa.

Os recursos metodológicos utilizados, por exemplo, nas ofi-cinas com as crianças, isto é, as estratégias de leitura, os exercícios e os jogos do Teatro do Oprimido, vinculados ao estímulo à cria-ção artística, vêm contribuindo para a potencialização de diálogos, para a construção de novos significados e para a “reinvenção” das emoções nesse grupo.

Esperamos que o relato que nos propusemos a fazer tenha contado um pouco do “caminho” que percorremos, pois nossa intenção é de contribuir com a reflexão sobre os possíveis “cami-nhos” para as práticas Psi, tendo como horizonte a certeza de que

Caminhante, são teus rastros o caminho, e nada mais.

Caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar.

Ao andar faz-se o caminho, e ao olhar-se para trás

vê-se a senda que jamais se há de voltar a pisar.

Caminhante, não há caminho, somente sulcos no mar.

(Antônio Machado)

Agradecemos as valiosas contribuições dadas ao projeto pela Professora Sedy Marques (in memorian).

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Psicologia Comunitária e comunidades rurais do Ceará: caminhos, práticas e vivências

em extensão universitária

Verônica Morais Ximenes James Ferreira Moura Júnior

Introdução

Compartilhar as vivências, as histórias, os encontros, as des-pedidas, as descobertas, as angústias, que foram construí-

das ao longo dos anos nas comunidades rurais do Ceará, propicia um mergulho no mundo de sentimentos de alegria e de satisfação. A escrita de um texto é algo que precisa ser sentida, pois, somente dessa forma, ela pode reverberar o que queremos socializar.

A construção da Psicologia Comunitária no Ceará e no Núcleo de Psicologia Comunitária1 (NUCOM) da Universidade

1 NUCOM se constitui como um núcleo de ensino, pesquisa e extensão/coopera-ção que tem como objetivos a co-construção de sujeitos comunitários através do

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Federal do Ceará são histórias fundidas em um processo que emer-giu, em 1983, dos trabalhos de extensão universitária nas comunida-des do Pirambu (bairro de Fortaleza) e de Pedra Branca (município do Ceará) para demandar o desenvolvimento de conceitos e cate-gorias teóricas. Um longo caminho foi percorrido e muito ainda temos a descobrir e desenvolver.

Os desafios de desconstruir paradigmas de que a Psicologia é uma ciência e uma profissão elitista e que não tem muito a con-tribuir com o contexto das zonas rurais, demandam uma dedicação dos psicólogos a fim de evidenciar a necessidade de se desenvolver práticas e teorias contextualizadas nessa realidade. Essa é uma das contribuições que pretendemos com esse trabalho.

Para socializar as nossas ideias, apresentamos um pouco do contexto social das comunidades rurais brasileiras, apontado para dados que contribuem na compreensão da imbricação da realidade social e individual. Posteriormente, aprofundamos nos aspectos teóricos e metodológicos da Psicologia Comunitária, como tam-bém relatamos vivências em extensão universitária nas comunida-des rurais de Pentecoste e Apuiarés (municípios do Ceará).

Contexto social das comunidades rurais brasileiras

As áreas rurais se referem, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE, 2011), às localidades que estão situadas fora do perímetro urbano. Possuem casas permanentes, que estão situadas a uma distância de 50 metros ou menos entre si, constituindo, assim, um povoado considerado um

aprofundamento da consciência e do fortalecimento da identidade individual e social; a formação e profissionalização dos estudantes integrantes do Núcleo; e o aprofundamento e sistematização da Psicologia Comunitária no Ceará. Mais informações estão disponíveis no site: www.nucom.ufc.br.

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aglomerado rural sem caráter privado ou empresarial, ou seja, não vinculado a um único proprietário do solo (empresa agrícola, indústrias, usinas etc.), cujos mora-dores exercem atividades econômicas, quer primárias (extrativismo vegetal, animal e mineral; e atividades agropecuárias), terciárias (equipamentos e serviços) ou, mesmo, secundárias (industriais em geral), no próprio aglomerado ou fora dele. O povoado é caracterizado pela existência de um número mínimo de serviços ou equipa-mentos para atender aos moradores do próprio aglome-rado ou de áreas rurais próximas (IBGE, 2011, p. 1).

Para nós, o povoado representa a comunidade rural. No entanto, segundo Albuquerque (2001), as áreas rurais não podem ser somente compreendidas como baseadas em aspectos demo-gráficos. Assim, compreendemos comunidade a partir das consi-derações de Rebouças Jr. e Ximenes (2010, p. 155) como “um espaço territorial em que a subjetividade se constrói nas relações de seus moradores entre si e com os contextos sociais. São construídos vín-culos afetivos, sentimento de pertença, problematizações sobre a vida e a realidade”.

Segundo experiências extensionistas desenvolvidas no NUCOM em comunidades rurais, os moradores dessas comuni-dades geralmente constroem vínculos afetivos consolidados entre seus familiares e seus vizinhos. De acordo com Góis (2005), ape-sar da distância física entre as casas em alguns contextos rurais, os moradores das comunidades rurais possuem uma maior vincula-ção afetiva entre si. Há, geralmente, o reconhecimento face a face dos integrantes da comunidade rural.

Esse aspecto ocorre de forma menos significativa no con-texto urbano, pois, em algumas situações, as comunidades urbanas são permeadas por uma grande mobilidade entre distintas áreas da cidade, além de haver incongruências na delimitação espacial

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da comunidade urbana, dificultando, dessa maneira, a vincula-ção entre os moradores. Essas incongruências relacionam-se com a diversidade de nomes que os bairros/comunidades das grandes cidades possuem, o que dificulta o processo de apropriação e vin-culação dos moradores. Cada política pública atribui um nome diferente à comunidade. No caso das comunidades rurais, esse pro-blema é mais raro.

Geralmente, os moradores das áreas rurais cultivam senti-mentos positivos relacionados às suas comunidades apesar de, na maioria dos casos, o acesso aos serviços básicos de Educação, de Segurança, de Saúde e de Assistência serem de difícil acesso. Em uma pesquisa realizada por Albuquerque e Pimentel (2004) com jovens residentes do meio urbano e do meio rural, os significados relacionados à área rural estavam vinculados com aspectos posi-tivos, como proximidade com a natureza. Entretanto, segundo Albuquerque (2001), os significados relacionados à palavra rural ainda portam caracteres depreciativos relacionados a unicamente uma visão de atraso, de rústico e de agrário.

Essa abordagem depreciativa à área rural, na visão de Alburquerque (2001), pode estar ligada à falta de investimentos governamentais e às políticas públicas específicas, pois os inte-resses estatais estiveram historicamente mais voltados ao meio urbano. No entanto, atualmente, já existe uma maior abrangên-cia de algumas políticas públicas específicas voltadas à população rural. Apesar desse pequeno avanço, o urbano ainda torna-se mais atraente, fomentando o êxodo rural e o crescimento desordenado das grandes cidades. Prova disso foi a redução de 2 milhões de pessoas nas áreas rurais desde de 1990 até 2010, sendo que essas comunidades rurais portam 15,9% dos 190.755.799 de brasileiros, segundo dados do Censo 2010 (IBGE, 2011).

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Assim, partindo da compreensão de que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo no G202, perdendo somente para África do Sul (Economia BBC Brasil, 2012), as áreas rurais podem ser abordadas como um dos contextos mais precários no território brasileiro. Nessa região, vivem 47% dos pobres do país. Leal (2011) afirma que um quarto dos extremamente pobres do Brasil está na área rural, sendo que 5,7 milhões dessas pessoas têm renda fami-liar per capita de R$ 1 a R$ 70 reais mensais e 1,8 milhão não tem renda própria. Albuquerque (2002) compreende que a manutenção da desigualdade social e da pobreza no Brasil e no campo é uma ferramenta de manutenção do status quo.

Moura Jr. (2012) também compartilha dessa compreensão de que a pobreza funciona como ferramenta ideológica de crista-lização da realidade. Há um conjunto de papéis sociais que per-meiam e constituem o psiquismo humano do pobre, situando-o nas posições de conformado, de incapaz, de culpado, de vagabundo, de perigoso e de causador de mazelas sociais. Essas formas de reco-nhecimento enfraquecem as potencialidades do sujeito, consti-tuindo uma identidade de oprimido e de explorado. Esta se refere a uma série de práticas, valores e crenças que delimitam o modo de viver dos oprimidos, desenvolvendo essa forma específica de iden-tidade que é “negada, sofrida, desamparada, frágil, e também vio-lenta” (Góis, 2008, p. 60); e constituindo igualmente o fatalismo.

Nesse ponto, a religiosidade acrítica pode ser constituinte de atitudes fatalistas. No mapeamento psicossocial3 realizado na

2 G20 é o grupo das 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia com objetivo de discutir e planejar os rumos da economia global.

3 Esse mapeamento refere-se à realização de uma pesquisa qualitativa a partir das técnicas de observação participante, de diários de campo e de entrevistas semiestruturadas com os moradores da comunidade, tendo o objetivo de siste-matizar informações sobre educação, saúde, lazer, trabalho e cultura e analisar os valores, as crenças e as práticas que permeiam o cotidiano dos habitantes da comunidade.

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comunidade de Canafístula, em Apuiarés, por extensionistas do NUCOM no ano de 2011, também surgiu de forma significativa nos discursos dos moradores uma crença divina que posicionava Deus como responsável por tudo, muitas vezes obscurecendo a critici-dade e a responsabilidade no rumo das decisões relacionadas à dinâmica comunitária. Para Martín Baró (1998), o fatalismo corres-ponde a aspectos psicológicos do latino-americano inseridos em condições de opressão, fomentando nesse sujeito uma compreen-são predeterminada da realidade explicada a partir do estabeleci-mento de uma ordem natural ou divina. O sujeito torna-se passivo frente às adversidades vigentes, consequência de uma estrutura macrossocial opressora. Cidade, Moura Jr. e Ximenes (2012) afir-mam que essas posturas desempenhadas pelos oprimidos são tam-bém estratégias de sobrevivência frente uma realidade que é cruel e desumana, sendo geralmente a única via encontrada para suportar essas adversidades sociais, simbólicas e concretas.

Apesar desse caráter macrossocial opressor, segundo Góis (2005), as comunidades rurais compartilham de forma mais sig-nificativa o modo de vida, os aspectos históricos, os valores e a identidade social do lugar, desenvolvendo uma maior integração ideológica, social e psicológica entre seus moradores e sendo o lugar de mediação entre os indivíduos e a sociedade mais ampla. Há um cotidiano regido por uma lógica social e simbólica cons-truída historicamente na comunidade, impactando no psiquismo humano. Isso ocorre porque a realidade psíquica é constituída pela realidade social (Vygotsky, 1927/2004).

No entanto, segundo a Agência Brasil (2012), a área rural também porta problemas específicos relacionados à violência na disputa de terras, ao adoecimento por conta do uso de agrotóxi-cos e à insegurança alimentar proporcionada pela falta de renda dos moradores das comunidades rurais, sendo as mulheres as prin-cipais vítimas dessas agruras. As mulheres do campo têm menor acesso às terras e aos serviços rurais, apesar de geralmente serem

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responsáveis pela preservação do ecossistema e das práticas cultu-rais tradicionais.

Werneck e Leal (2011) relatam a precariedade da zona rural a partir de um estudo comparativo de indicadores sociais das áreas rurais e das favelas do país com dados do Censo 2010 (IBGE, 2011). Esses indicadores demonstram melhores resultados nas regiões favelizadas do que nas comunidades rurais, sendo apontado que a renda da população das áreas rurais era muito menor do que os habitantes das favelas, assim como o acesso à educação. A taxa de analfabetismo de indivíduos acima de 15 anos nas favelas era de 8,4% enquanto, nas regiões rurais, 23% dos moradores eram anal-fabetos. Entretanto, Albuquerque (2002, 2004) aborda que está ocorrendo um processo de desenvolvimento e de diversificação da economia na área rural. A renda dos aposentados, a economia agrária, o comércio e o setor de serviços estão trazendo um maior desenvolvimento econômico para as comunidades rurais.

Assim, as comunidades rurais podem ser consideradas como espaços possíveis de fortalecimento e de integração por suas carac-terísticas espaciais, sociais e simbólicas. No entanto, estão inseri-das igualmente em uma teia opressora de manutenção do status quo permeando processos de depreciação social dessas comunida-des e dos seus moradores. A partir desse panorama, apresentare-mos algumas considerações sobre a Psicologia Comunitária como estratégia de desenvolvimento dessas comunidades rurais expondo as experiências extensionistas do NUCOM no Ceará.

Psicologia Comunitária, comunidades rurais e extensão universitária

A Psicologia Comunitária (Góis, 2005) é uma área da Psicologia Social da Libertação e que tem como objetivo o desenvol-vimento do sujeito comunitário. O conceito de comunidade agrupa as pessoas pelo seu local de moradia, em que estão associados

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valores, crenças e sentimentos entre seus moradores. É um espaço de consensos, de contradições e de convivência entre as pessoas. Sawaia (1996), Góis (2005) e Guareschi (2010) contribuem para a importância desse conceito nos trabalhos desenvolvidos pelos pro-fissionais da Psicologia. Nos nossos trabalhos teóricos e práticos de Psicologia Comunitária, a partir de um posicionamento ético e político, sempre optamos em trabalhar em comunidades urbanas e rurais em situação de pobreza, tendo em vista que a maioria dos trabalhos desenvolvidos pela Psicologia sempre atenderam às clas-ses média e alta.

Assim, o tripé teoria, prática e compromisso social dá suporte a Psicologia Comunitária e aponta para uma práxis liber-tadora. Segundo Ximenes e Góis (2010), essa libertação vincula-se a uma situação de opressão, de exclusão, de dominação e de desi-gualdades que precisam ser desveladas objetivamente e subjetiva-mente a fim de que os sujeitos possam ser autônomos, conscientes e livres.

A prática e a teoria da Psicologia Comunitária desenvolvida no NUCOM tiveram como base os trabalhos nos projetos de exten-são universitária. A problematização é uma categoria importante e está presente quando questionamos o conceito de extensão. O que seria extensão? Estender o conhecimento científico produzido nas universidades à população que não o tem? Será a verdade absoluta?

A problematização da extensão universitária vigente e a construção de uma postura dialógica, cooperativa, comprometida com a transformação da realidade de opressão e construtora de vín-culos afetivos entre os envolvidos nesse processo é o que se expressa no termo cooperação.

A proposta de uso do termo cooperação em lugar de extensão vem contribuir para a definição de uma rela-ção de igualdade entre os atores – universidade e comu-nidade – onde ambos são responsáveis pelas atividades

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extensionistas. Cada ator terá o seu papel e poderá apor-tar e construir conhecimentos que serão utilizados para a construção de uma sociedade mais humana e justa (Ximenes, Nepomuceno & Moreira, 2007, p. 19).

Dessa maneira, acreditamos e praticamos uma cooperação universitária que respalda a nossa produção científica, que está comprometida com a denúncia das desigualdades sociais e aponta para caminhos que possibilitem a superação dessa realidade. Então a Psicologia Comunitária que desenvolvemos não propõe a neu-tralidade científica, mas sim, a construção de vínculos afetivos entre membros da universidade e os moradores das comunidades. Percebemos que sua potência para denunciar a realidade de opres-são pode contribuir também com a construção e com as análises de categorias psicossociais presentes no desenvolvimento do psi-quismo, estabelecendo uma fusão constante entre teoria e prática em práxis. Com isso, apresentaremos os caminhos da Extensão universitária nas áreas rurais desenvolvidos pelo NUCOM, evi-denciando os meandros teóricos, metodológicos e concretos dessa atuação.

Processos de facilitação comunitária – chegadas e partidas

No caso da Psicologia Comunitária e dos projetos de exten-são desenvolvidos pelo NUCOM, o processo de facilitação comu-nitária constitui-se em etapas que abarcam desde a inserção até o desligamento progressivo da comunidade. Segundo Rebouças Jr. e Ximenes (2010), os processos de inserção e de desenvolvimento das atividades na comunidade são baseados na interação social ali-cerçada por posturas dialógicas, afetivas e cooperativas. Para Góis (2005, p. 69), o objetivo dessa inserção comunitária é o “desenvol-vimento do sujeito comunitário mediante ações coletivas de desen-volvimento da comunidade. Transformação de um espaço sem ou

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com pouco sentido em espaço de significado positivo para os mora-dores, um espaço físico-social com sentido”. Ou seja, espera-se que os processos de facilitação desenvolvidos tenham repercussão na consolidação de ganhos materiais e simbólicos, de movimentos de conscientização, de estratégias de fortalecimento da identidade pessoal e comunitária e da autonomia dos moradores. Esses mora-dores também são reconhecidos como portadores de potencialida-des para organizar suas vidas e sua comunidade.

Nos trabalhos de extensão universitária do NUCOM, o pro-cesso de escolha das comunidades acontece a partir de convites que recebemos de projetos, ONGs, equipamentos das políticas públicas e lideranças comunitárias. Primeiramente, realizamos uma visita para conhecer a comunidade e saber se há convergência dos obje-tivos da Psicologia Comunitária com os dos propostos pelos possí-veis parceiros. Caso seja positivo, damos continuidade ao processo de construção da parceria.

O processo de entrada na comunidade é realizado a partir de observações. É interessante realizar caminhadas pelas ruas da comunidade. Nas comunidades rurais, essas caminhadas tendem a serem mais longas devido à disposição espacial das casas. Então, é importante o apoio de alguma liderança comunitária ou de uma pessoa de referência para auxiliar nesse processo inicial, como os agentes comunitários de saúde. É conveniente realizar essas caminhadas em diferentes horários e turnos ao longo da semana na comunidade. Nas comunidades rurais, o extensionista4 é logo reconhecido como um estranho no espaço. Ele, então, tem que apresentar seu discurso de forma mais clara possível, utilizando ilustrações do cotidiano da comunidade como possíveis trabalhos

4 É utilizado o termo extensionista porque se refere às experiências praticadas por estudantes inseridos no NUCOM. No entanto, essas considerações traçadas so-bre a atuação comunitária podem servir de modelo para qualquer profissional que realize ou queira realizar trabalhos com a perspectiva comunitária liberta-dora em comunidades.

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a serem realizados. Segundo Albuquerque (2001), os moradores de comunidades rurais têm uma maior capacidade de compreensão com o fornecimento de exemplos simples e concretos.

Então, o primeiro foco da inserção é de observação e de consolidação da confiança entre extensionista e morador. É fun-damental a utilização da observação participante, que possibilita a interação de forma horizontalizada entre as pessoas da comuni-dade e o agente externo (extensionista) mediante o diálogo. As sis-tematizações das observações são transcritas em diários de campo (Montero, 2006), que são registros dos acontecimentos com inter-pretações e análises desse agente. Como também evidenciam as resoluções de erros cometidos e suas aprendizagens a partir deles. Deve ser escrito ao final da jornada de trabalho, registrando com cuidado e atenção, narrando o que foi observado.

Essa observação deve ser desempenhada a partir do método de facilitar-pesquisando e pesquisar-facilitando a dinâmica comu-nitária. Segundo Góis (2008), esse processo se refere à imersão na comunidade com uma postura analítica, inclinando-se a apreen-der os valores, as práticas e as crenças que permeiam o modo de vida dos moradores da comunidade. Essa análise da comunidade é potencializada na dimensão vivencial em que o profissional vai construindo vínculos afetivos com os moradores e ampliando a possibilidade de compreensão da realidade da comunidade.

Ajuda-nos a compreender o modo de vida dos morado-res, o entorno em que vivem e como estes se refletem em suas mentes na forma de significado, sentido, senti-mento e ação. É um método científico e político, intera-tivo, reflexivo e vivencial, no qual morador e psicólogo, conjuntamente, analisam e vivenciam a comunidade, constroem conhecimento e aprofundam suas cons-ciências de si e do lugar. Para nós, é o método princi-pal da Psicologia Comunitária. Se apoia em uma dada

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concepção de indivíduo, de comunidade e de ação, evi-denciando uma ética (de libertação) e uma relação de inserção, ação e convivência, comum na ação-partici-pante, na observação-participante e na pesquisa-parti-cipante (Góis, 2005, p. 90).

As posturas do profissional devem estar balizadas por uma ética da libertação, pois, de acordo com Ximenes e Barros (2009) e Martín Baró (1998), o conhecimento e a prática devem estar vol-tados à mudança social a favor dos oprimidos. Para Guzzo (2010), essa ética, como já mencionado, baseia-se no desvelamento das estruturas opressoras da sociedade que tornam enfraquecidas as potencialidades dos indivíduos. Então, a partir da realização dessas posturas, já são apresentadas possibilidades de criação de relações promotoras de fortalecimento, de autonomia e de criticidade entre moradores e extensionistas. No entanto, essas relações somente são desenvolvidas a partir de interações sociais com foco na hori-zontalidade e na valorização dos sujeitos partícipes desse processo.

Freire (1979) corrobora essa compreensão, explicitando que o diálogo e, consequentemente, o aprofundamento de consciên-cia somente ocorrem quando há fusão de horizontes e respeito à posição do outro na relação. Com isso, progressivamente, poderá haver a consolidação da identificação mútua entre morador e agente externo; o reconhecimento das possíveis lideranças locais; o mapeamento das potencialidades e das dificuldades da comuni-dade; e o estabelecimento de uma estratégia de cooperação para o desenvolvimento da comunidade. O processo de inserção é muito importante para a efetividade de uma intervenção psicossocial nas comunidades rurais.

Em um segundo momento, de acordo com Góis (2005), há a intensificação da inserção na comunidade a partir da análise das atividades comunitárias, dos grupos existentes e da facilitação de grupos populares em diversas metodologias, como círculos de

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cultura, círculos de encontro, exercícios de Biodança, reuniões de quarteirão, entre outros. Os grupos são importantes estratégias de desenvolvimento comunitário. Lane (1996) traz a relevância do grupo no processo de fortalecimento da identidade pessoal.

Segundo Montero (2006), nessa fase está sendo efetivada a familiarização, a identificação das necessidades, o estabelecimento de metas específicas a curto e a longo prazos com os moradores e a divisão de trabalho. Nesse ponto, há possibilidade de desenvolvi-mento de processos de aprofundamento de consciência de forma mais significativa. Segundo Freire (1980), a conscientização refere--se ao processo de compreensão crítica da realidade. Essa critici-dade é fomento da ação, fazendo que o sujeito atue ativamente na sua comunidade. No entanto, não há aprofundamento de consci-ência sem a problematização da realidade. Montero (2006) afirma que a problematização fundamenta-se na exposição de uma per-gunta relacionada a algum conhecimento pessoal construído pela pessoa que a coloca em uma posição de busca de sentidos diferen-tes dos que estejam estabelecidos em sua consciência. Esse con-ceito teve como base os trabalhos de Paulo Freire com alfabetização de adultos na década de 1960.

Assim, o desenvolvimento de atividades comunitárias está voltado para a concretização prática de objetivos comuns e comu-nitários compartilhados pelos moradores, como também para satisfação de motivos pessoais dessas pessoas, fomentando nes-ses sujeitos a realização de suas necessidades, o fortalecimento da autonomia, da criticidade, da identidade social e do sentimento de pertença à comunidade. Com isso, o processo de desenvolvimento comunitário está relacionado à consolidação de atitudes coopera-tivas, potencializadoras da dinâmica comunitária e fortalecedoras da identidade cultural do lugar entre os moradores, desenvolvendo a participação social na comunidade e no município.

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Segundo Ximenes, Amaral, Rebouças Jr. e Barros (2008), o desenvolvimento comunitário pode acarretar o desenvolvimento local, que está relacionado a uma maior integração da comuni-dade ao município, assumindo uma perspectiva de fortalecimento da participação social em nível macro e microssocial. Com isso, o desenvolvimento comunitário se refere a uma estratégia socioeco-nômica, política e psicológica, promovendo igualmente o surgi-mento do sujeito comunitário, no qual os moradores estão em um processo constante de aprofundamento de consciência, de cidada-nia e de autonomia.

Os processos de fortalecimento dos moradores podem ser fomentados pela realização de oficinas de capacitação de técnicas de grupo, formação de lideranças, organização de eventos cultu-rais, construção de projetos produtivos e várias atividades que estimulam o trabalho em grupos. Dessa maneira, nessa etapa, há a consolidação das atividades comunitárias existentes, podendo haver o desenvolvimento das lideranças democráticas a partir de criação de fóruns de desenvolvimento da comunidade. Nesses espaços coletivos, há a avaliação das atividades comunitárias e dos seus respectivos resultados. Com essa estratégia de avaliação, ocorre o refinamento das atividades comunitárias existentes de acordo com a definição pelos moradores de novas problemáticas a solucionar e a investigar. Dessa maneira, há a ampliação das ações no campo comunitário e a consolidação da relação morador-agente externo-grupos.

Por fim, desenvolvemos o processo de desligamento pro-gressivo da comunidade (Góis, 2005). Há a avaliação coletiva da totalidade do processo desenvolvido com a redefinição da relação entre extensionista-morador-grupo. Os encontros periódicos entre agentes internos (moradores) e agentes externos são mais espaçados e há a realização de visitas pontuais. E o momento de desligamento é concretizado com a despedida, mas a certeza da permanência dos laços de amizade e de solidariedade. É importante ressaltar que o

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imprevisto é uma constante na realização de trabalhos envolvendo a Psicologia Comunitária em comunidades urbanas e rurais, mas, segundo Montero (2006), essa imprevisibilidade tem que ser usada como ferramenta do processo de facilitação do desenvolvimento comunitário.

Pentecoste e Apuiarés: trabalho em extensão universitária em comunidades rurais

Desde a sua fundação como Projeto de Extensão em Psicologia Comunitária, o NUCOM tinha como objetivo desen-volver projetos de extensão em comunidades urbanas e rurais. O seu primeiro trabalho em comunidades rurais foi em 1988 no Município de Pedra Branca (Ceará). Com o passar dos anos, muitas comunidades rurais participaram dos projetos de extensão, como: Praia de Parajuru (Município de Beberibe), Itapajé, Crateús, São Gonçalo do Amarante, Icapuí, Guaramiranga, Beberibe, Aracati, Maranguape, Maracanaú e Quixadá.

Em 2005, o NUCOM iniciou seus trabalhos no Município de Pentecoste. Dessa vez, a parceria foi com o Programa de Educação em Células Cooperativas (PRECE), coordenado pelo Prof. Manoel Andrade do Departamento de Química da Universidade Federal do Ceará e que desenvolve atividades de extensão universitária desde 1994 no município de Pentecoste, localizado no semiárido do Ceará. Sobre o NUCOM e o PRECE,

Algumas coisas eram parecidas nestes projetos, a opção teórica e metodológica por Paulo Freire, a influência das ideias de Carl Rogers, a busca pela construção de uma humanidade mais autônoma, livre e feliz, a par-ticipação efetiva dos alunos como protagonistas nestes projetos, a relação horizontal e sem hierarquia entre os coordenadores (professores) e os alunos, a opção por

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uma cooperação universitária (extensão) comprome-tida com a classe oprimida, a busca pela construção de uma ciência que nasça da simbiose entre conhecimento popular e científico e outras questões que foram desco-bertas durante a convivência (Ximenes, Lopes & Alves, 2008, p. 21).

A partir da parceria do NUCOM e PRECE, iniciamos os tra-balhos de extensão de forma conjunta em Pentecoste e construímos o projeto “Protagonismo juvenil e desenvolvimento local susten-tável” e o projeto “Desenvolvimento comunitário no município de Pentecoste”, que desenvolveram as seguintes ações: assessoria na formação da União dos Moradores do Vale do Rio Curu, curso de formação política para jovens lideranças, acompanhamento à formação de uma cooperativa com produtores rurais, assessoria ao grupo de jovens apicultores, facilitação de grupos de jovens da Escola Popular Cooperativa5 (EPC) e outras atividades que surgi-ram no decorrer da nossa inserção na comunidade. A equipe de extensionistas era formada por estudantes do NUCOM e do PRECE e os dois professores da UFC. A equipe do NUCOM estava quin-zenalmente nos finais de semana nas comunidades, enquanto a equipe do PRECE estava todos os finais de semana.

Em 2006, os referidos projetos foram contemplados com o financiamento do “Programa de Apoio à Extensão Universitária voltado às Políticas Públicas” (PROEXT 2005 – MEC/SESu/DEPEM), o que possibilitou recursos financeiros que viabilizaram as atividades de extensão. Também publicamos um livro, Psicologia

5 A Escola Popular Cooperativa é formada por grupos de estudos com o objeti-vo de estudar de forma cooperativa para o ingresso ao Ensino Superior. Esses grupos são orientados por monitores que já foram ex-integrantes da EPC e que agora já ingressaram à universidade. É utilizado o método de aprendizagem cooperativa, incentivando o protagonismo desses jovens por ações de autoges-tão de cada EPC que estão espalhadas em diferentes cidades do Ceará. As EPC constituem uma das ações do PRECE.

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Comunitária e Educação Popular, com artigos sobre nossas experi-ências em extensão universitária.

Em 2008, iniciamos o processo de desligamento nas comu-nidades trabalhadas a partir da avaliação com os moradores envolvidos e resolvemos focar nossas atividades na comunidade de Canafístula (Município de Apuiarés, vizinho ao Município de Pentecoste). A comunidade de Canafístula é o novo foco dos nossos trabalhos em virtude da parceria estabelecida com a Escola Popular Cooperativa (EPC), vinculada ao PRECE. Assim, com caminhadas comunitárias, encontros com lideranças e participação na dinâ-mica comunitária, passamos a desenvolver trabalhos com os pro-dutores rurais com o objetivo de construção de uma cooperativa e com os jovens com o intuito de resgate da história da comunidade. Posteriormente, na fase de ampliação das atividades comunitárias, foi realizado pelos jovens um vídeo sobre a comunidade e apresen-tado numa “Noite cultural”6.

Assim, já havia o fortalecimento da vinculação e da iden-tificação entre integrantes do NUCOM e moradores, como tam-bém, um maior conhecimento da dinâmica da comunidade de Canafístula por meio do método de análise e vivência da dinâmica comunitária, fornecendo as bases para desenvolvermos uma nova atividade junto com um grupo de jovens da EPC. O objetivo desse trabalho era fomentar a autonomia, o fortalecimento da identidade pessoal e social do lugar e o sentimento de pertença desses jovens através de oficinas, utilizando técnicas como: círculo de cultura, exercícios de Biodança, de arte-terapia, de arte-identidade, entre outras.

Com o estabelecimento dessa atividade, organizamos junto com os moradores um fórum sobre a avaliação das atividades

6 A “Noite cultural” é um evento criado pelos moradores da comunidade para integração da comunidade com fins festivos, sendo desenvolvida a partir de al-guma temática específica que seja de interesse dos envolvidos.

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comunitárias desenvolvidas. Assim, observamos conjuntamente que estávamos restringindo nossa atuação somente ao espaço da EPC, evidenciando que poderia haver outras atividades potenciais de desenvolvimento comunitário. Então, nesse momento, com essa nova avaliação, reorganizamos nossas atividades para realizar um novo processo de inserção na comunidade de Canafístula, a partir da realização de um mapeamento psicossocial da comunidade.

Realizamos, igualmente, esse mapeamento por meio do método de pesquisar-facilitando e facilitar-pesquisando. Visitamos a maioria das casas da comunidade, totalizando por volta de 600 moradores, ao longo de aproximadamente oito meses. Paralelamente à realização do mapeamento psicossocial, facili-tamos atividades no grupo de jovens. Dessa maneira, junto com os moradores, avaliamos que a Festa de São João era uma prática cultural tradicional na comunidade e que estava sendo esque-cida. Definimos como estratégia realizar visitas a pessoas de refe-rência que anteriormente participavam ativamente desse festejo. Também entramos em contato com a Escola de Ensino Médio e Fundamental e a Associação dos Agricultores Rurais de Canafístula sobre a possibilidade de parceria para organização de uma festa junina, fomentando e problematizando a importância histórica dessa festividade.

Com esses contatos realizados e a organização de reuni-ões para planejamento da festividade, mesclávamos as dimensões instrumentais e comunicativas da atividade comunitária a partir de posturas dialógicas, cooperativas e problematizadoras. Assim, desenvolvemos esse festejo junino, constituindo um espaço de efetiva participação comunitária, de amorosidade e de cultura. Analisamos que essa atividade pode ter desenvolvido um processo de aprofundamento de consciência em alguns moradores. Isso é evidenciado, porque, com o fim do festejo, um grupo de jovens de Canafístula nos convidou para participar junto com eles de um grupo para, segundo as palavras desses jovens, “solucionar os

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problemas da comunidade de Canafístula e da regiões próximas”. O nome desse grupo foi intitulado “Baluartes”.

Com isso, ainda na perspectiva de ampliação das atividades comunitárias, passamos a facilitar algumas ações desse grupo. Esse novo grupamento era a demonstração que o processo de autonomia e de fortalecimento da identidade pessoal e comunitária estava se consolidando, promovendo um avanço significativo no desenvol-vimento comunitário. Dessa maneira, ao longo dos meses, foram realizadas reuniões quinzenais. Eles atuaram, então, na revitaliza-ção do time de futebol de Canafístula, na criação de um time de futsal feminino e na organização interna do próprio grupo.

Os dados do mapeamento psicossocial foram analisados a partir da Análise de Conteúdo de Bardin (1977) com a ajuda do software de análise de dados qualitativos Atlas ti. Realizamos uma oficina de validez ecológica7, pois desenvolvemos um espaço de legitimação das análises com os integrantes do Grupo Baluartes em que dialogamos sobre a validade daquelas informações. Essa mesma oficina ocorreu com os artistas locais – repentistas, corde-listas e violeiros – sobre a relevância daquelas informações. Esses artistas, então, se comprometeram a criar produções artísticas a partir daqueles dados para apresentarem em uma “Noite cultural”.

A realização da “Noite cultural” contou com a presença da maioria dos moradores da comunidade e foi organizada por nós juntamente com os jovens da EPC, os membros da Associação de Agricultores e do Grupo Baluartes em um processo de divisão do trabalho e de cooperação, com a presença do diálogo, do afeto e da solidariedade nas interações sociais. Nessa “Noite cultural”, o mape-amento psicossocial foi apresentado em forma de repente pelos artistas locais e avaliado como muito significativo para uma maior compreensão da história da Canafístula. No encontro de avaliação

7 A validez ecológica ocorre a partir da avaliação da relevância das análises reali-zadas com pessoas de referência para o tema investigado (Montero, 2006).

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desse evento com os parceiros, definiu-se a organização de um cro-nograma para realização de oficinas temáticas sobre os principais temas presentes no mapeamento psicossocial, ampliando, então, o leque de possíveis atividades comunitárias ainda a serem realizadas.

Assim, percebemos que nosso percurso nas comunidades rurais do Ceará pode ser entendido como uma constante parceria com os moradores locais. Eles nos guiam pelas possíveis estradas de terra e de símbolos, apontando horizontes e compartilhando sabe-res. Compreendemos que essa caminhada pode ser entendida como a construção cotidiana de processos de desenvolvimento comuni-tário. É um processo que está em constante renovação e formação, mas que segue também etapas estruturadas teórico e metodologi-camente pela Psicologia Comunitária, desenvolvendo tanto agen-tes externos mais engajados e comprometidos com transformação social como moradores mais fortalecidos, integrados e críticos.

Considerações parciais

Ainda temos muito a compartilhar. Sabemos que a leitura permite que o leitor se desloque para outros espaços, que despertam questionamentos, visualização de relações e lembranças de outras experiências. Dessa forma, podemos estar em lugares que nunca estivemos. Esperamos ter socializado esses caminhos vivenciados por nós nessas histórias e reflexões relatadas aqui. Também sabe-mos que nada melhor do que um bom banho de realidade viva para alimentar a nossa alma. Esse é um convite que deixamos: vamos nos permitir se entranhar nas comunidades rurais dos municípios desse imenso Brasil.

Reafirmamos a necessidade do compromisso ético da liber-tação com o desvelamento das situações de opressão que as comu-nidades rurais e seus moradores vivenciam cotidianamente. A Psicologia Comunitária, então, pode apontar possíveis caminhos para o enfrentamento da marginalização social, política e simbólica

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que as comunidades rurais estão inseridas, utilizando estratégias presentes nessas próprias comunidades rurais. No entanto, faz--se necessário o estabelecimento constante de posturas dialógicas, cooperativas e problematizadoras entre morador e agente externo.

A Psicologia Comunitária contribui muito com suas teorias e práticas para a análise de problemas psicossociais vividos pelos moradores das comunidades rurais. Existem muitos espaços ocio-sos que precisam ser apropriados por estudantes e profissionais de Psicologia que tenham esse compromisso ético-político com a libertação dessa realidade de opressão e pobreza. Para que possa-mos estar nesses espaços, precisamos desenvolver atividades de pesquisa, ensino e extensão que propiciem aprendizados contextu-alizados com os problemas e as potencialidades do povo brasileiro.

Não temos a pretensão de sermos os “libertadores” das pes-soas, já que nos apoiamos nas palavras de Paulo Freire (1987, p. 34) quando anuncia que “ninguém liberta ninguém, as pessoas se libertam em comunhão”. Então moradores, estudantes e profissio-nais vivenciam esse processo de libertação de forma conjunta. É uma proposta ousada, mas o que seria da vida se não tivéssemos força para ousar?

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O trabalho escravo contemporâneo a partir de uma análise foucaultiana

de documentos da OIT

Geise do Socorro Lima Gomes Flávia Cristina Silveira Lemos

O objetivo do presente texto é suscitar uma discussão do modo como determinados documentos são utilizados como dis-

positivos políticos que interferem nas condições de possibilidades de constituição de um “objeto”, e de como essa interferência produz, por sua vez, práticas de poder e de subjetivação sem intencionalida-des e como emergência/proveniência genealógicas, de acordo com os trabalhos de Michel Foucault. Usaremos como materialidade de nossas análises fragmentos de contribuições realizadas em disser-tação de Mestrado1 financiada pela CAPES, por meio de um dos

1 Dissertação de Mestrado, intitulada Análise de documentos que compõem as noções acerca das práticas de ‘exploração de trabalhadores rurais: um estudo genealógico, financiada pela CAPES, orientada pela Profa. Dra. Flávia Cristina Silveira Lemos e defendida em junho de 2011.

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capítulos confeccionados na ocasião, que versava sobre o emprego dos documentos da OIT (Organização Internacional do Trabalho) relativos ao trabalho escravo contemporâneo.

Assim, uma pergunta-chave na dissertação foi como eram forjados os saberes e quais domínios de uma história política da verdade constituíam o objeto de preocupação trabalho escravo contemporâneo. Essa pergunta trazia um cenário com várias ins-tâncias (lugares institucionais e posições de sujeito), as quais lidam com as questões que envolvem o uso da força de trabalho de traba-lhadores de zonas rurais (caso mais típico e divulgado no Brasil) e de trabalhadores de zonas urbanas, como os domésticos, além dos de carvoarias, de pequenas produções têxteis e de sapatos, de vendedores de telemarketing e em restaurantes de sanduíches que admitem jovens em subempregos hiperexplorados, entre outras situações de tráfico de pessoas na exploração sexual.

O interesse pelo estudo desse tipo de acontecimento tem sido recente, tanto por parte do meio acadêmico quanto por parte das instituições, organizações governamentais, não governamen-tais e organismos multilaterais, como a OIT.

A partir de informações apropriadas no site oficial da OIT e do acesso aos documentos produzidos por essa organização, visu-alizamos que, por volta dos anos de 1930, em esfera internacional, começou-se a divulgar relatos sobre a existência de escravidão ainda presente no mundo atual e passou-se a separar, por meio de práticas divisórias, o que era classificado como “escravidão” e o que era considerado como “trabalho forçado”. Dessa maneira, as Convenções 29 e 105 da OIT (respectivamente de 1926 e 1957) tra-tam do tema de duas formas diferentes.

Na primeira Convenção, encontra-se uma das maneiras de definir “trabalho forçado” pela OIT e a preocupação em fazê-la diferente da noção de “escravidão”, uma vez que essa prática con-tinuava sendo autorizada, em alguns países, apesar de a Sociedade

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das Nações ter exigido sua abolição, desde 1926. Vale mencionar que, até essa data, muitos países não eram membros de organi-zações multilaterais e não pactuavam das convenções internacio-nais e, mesmo os que diziam aceitar os acordos formulados nesses organismos, podiam não assinar as Convenções ou assinar e não cumpri-las. Assim, um longo processo de práticas de exploração e violências diversas contra trabalhadores continuava se expan-dindo, apesar de intervenções da ONU que começaram a difundir e articular redes com objetivos protetivos, na esfera internacional dos direitos trabalhistas e dos direitos fundamentais, lutando pelo que denominava trabalho decente.

Ao estudarmos os documentos da OIT, lembramos sempre de contextualizá-los e cotejá-los na história, procurando descre-ver quais acontecimentos se interconectaram para que um deter-minado objeto viesse a ser forjado em campos de visibilidade e de dizibilidade e a se tornar alvo de preocupação, tal como nos alerta Foucault (2008c), ao desnaturalizar o modo como os documentos eram tratados, como materiais “inertes”, utilizados com o fim de decifrar um passado. O próprio documento é parte dessa histó-ria, forjado em meio a batalhas e lutas entre diferentes posições de saber e poder, portanto, um monumento, que não é apenas um registro de acontecimentos, mas um novo acontecimento e produz efeitos de verdade por meio de práticas correlatas (Foucault, 2006; Le Goff, 2003). É a partir dessa perspectiva que traçamos nossas análises acerca dos documentos estudados.

Entre os discursos que são forjados e difundidos pela OIT, em articulação com organizações governamentais e não gover-namentais, estão os que visam criminalizar a prática chamada trabalho forçado. Simultaneamente a esse movimento que busca criminalizar, há o paradoxo da flexibilização dos direitos trabalhis-tas, na atualidade, o que nos aproxima de um cenário que opera por diversas vias e linhas de força. Destaca-se que a definição tra-balho forçado torna-se uma tipificação jurídica e de caráter penal

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internacional, e fica explícito, na Convenção 29, que cada país--membro deve elaborar suas leis, desde que elas estejam de acordo com os artigos e proposições da Convenção.

Com a intensificação dos direitos e manifestações popula-res e de movimentos sociais, percebemos novas transformações ao tratar dessas questões, as quais ganharam visibilidade na 2ª Convenção da OIT sobre trabalho forçado, com a extinção dos acordos que permitiam ou concediam possibilidades de quebras de artigos da Convenção, por meio de práticas de cumplicidade ao trabalho sem contrato e com extrema exploração e até mesmo pri-vação de liberdade e com submissão às várias formas de violência. Esse efeito das lutas de movimentos sociais indica que interesses diversos atravessam a construção de um determinado documento e, por conseguinte, seus efeitos em políticas públicas estatais e não estatais.

Assim, para uma organização que garante estar preocupada com os direitos humanos, ao permitir que os Estados se utilizem do trabalho forçado, em “determinadas condições”, nos faz questionar essa suposta “preocupação” com os direitos e de que modo algumas pessoas são autorizadas a negá-los ou a consenti-los. Nesse sen-tido, enfatiza Gomes (2011, p. 103):

Uma governamentalização do trabalho forçado é o que visualizamos, em que as relações de poder entre a organi-zação e os países membros se dão por meio de disposições que atendam aos interesses de ambos os grupos (Estado e OIT) e que consigam regular a vida das populações, destacando esse grupo de trabalhadores como alvo. Essa primeira Convenção apresenta-se como uma das inicia-tivas a uma espécie de “aliança global” contra as práticas de trabalho forçado, contudo, ainda muito permissiva, se levarmos em consideração o disposto anteriormente [...]. As mudanças históricas, a mutação dos acontecimentos

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que produzem efeitos diversos são determinantes para as mudanças acrescidas aos documentos.

Mecanismos biopolíticos e tecnologias de governamentali-dade instituem, assim, a gerência da vida e a gestão dos riscos que desde o final da Segunda Guerra Mundial encontram na ONU um dispositivo pacificador em escala internacional, operando junto de suas agências multilaterais, tais como a OIT. Nesse cenário, desta-camos os seguintes objetivos estratégicos elencados pela OIT:

Promover os princípios fundamentais e direitos no tra-balho através de um sistema de supervisão e de aplica-ção de normas; promover melhores oportunidades de emprego/renda para mulheres e homens em condições de livre escolha, de não discriminação e de dignidade; aumentar a abrangência e a eficácia da proteção social; fortalecer o tripartismo e o diálogo social (Constituição da OIT, 2008).

Em nome da defesa dos direitos humanos referentes ao tra-balho, vemos que essa organização vai articulando, dessa forma, conjuntos de princípios a se observar, entre os que permeiam assuntos ligados aos processos de mundialização, tais como o do capital, da cultura e do governo. E fazendo eco aos discursos pro-duzidos pela ONU, cria-se uma preocupação em torno da garantia da paz mundial, a qual será estabelecida com a efetivação de “direi-tos”, destacando-se os direitos humanos, como os do trabalho, das crianças, das mulheres etc. Visualizamos essa preocupação na seguinte afirmativa da OIT: “[...] existem condições de trabalho que implicam, para grande número de indivíduos, miséria e privações, e que o descontentamento que daí decorre põe em perigo a paz e a harmonia universais [...]” (OIT, 2008).

Sendo o Brasil um dos países membros da OIT e tendo assinado diversas Convenções, de que modo linhas de forças que

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operam a construção desses documentos produzem ressonâncias em esfera nacional?

A repercussão desse tema no Brasil

Tendo como esfera as relações de trabalho, as linhas de força que operam na construção desses documentos produzem, por sua vez, práticas que irão regular as manifestações dos elementos cons-tituintes dos acontecimentos em questão. Para tanto,

[...] dados são levantados pelas agências internacionais como prova de que existe um problema sério, no Brasil, em relação ao “trabalho forçado”, de sorte que afirmam existir urgência em enfrentá-lo, por meio de medidas que deveriam ser criadas pelo país. Portanto, o Brasil, enquanto um país membro da OIT deve permitir que considerações sejam suscitadas por essa agência e que os seus assessores nos auxiliem a produzir planos de ati-vidades que julgarem pertinentes ao enfrentamento de tais práticas de “trabalho forçado”. (Gomes, p. 99, 2011).

Por meio de um site oficial, essa agência armazena e difunde algumas cartilhas sobre trabalho, divulga campanhas sobre a erra-dicação do trabalho forçado, trabalho infantil, reuniões, con-venções, artigos e documentos diversos, bem como vídeos sobre assuntos relacionados ao trabalho em geral.

Embora tenhamos relatado que o trabalho forçado começou a ser objeto de preocupação em 1930, ele só veio ganhar evidência após o ano 2000, ao serem divulgados três relatórios sobre a situ-ação dessa prática, em todo o mundo, com o intuito de incentivar ações que a combata e previna.

No caso estudado do Brasil, vamos encontrar na literatura uma rede tecida entre movimentos sociais ligados aos direitos humanos e setores da Igreja Católica, tais como a Comissão Pastoral

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da Terra, a qual vai invocar essa entrada da OIT na discussão dos casos identificados como de trabalho forçado.

Nesse sentido, temos com Carvalho (2008) um panorama histórico de como esse tema começou a ser discutido no país. De acordo com esse autor, foi em meio à Ditadura Militar brasileira que algumas denúncias acerca dessas práticas começaram a despontar, mas que não eram levadas a sério pelo Estado, que as tachava de “invenções da Igreja Católica”, uma vez que as práticas de explo-ração dos trabalhadores rurais foram nomeadas de “escravidão”, fazendo sempre referência ao passado escravista brasileiro.

Outro fator que inibia o “aceite” das denúncias se pautava no episódio de ser o próprio governo militar o maior incentivador e investidor de grandes empresas agropecuárias e madeireiras, em geral, a se instalarem na região amazônica, local onde despontavam as primeiras denúncias (Loureiro & Pinto, 2005; Martins, 1995).

Diante dessa situação, movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores rurais e a Comissão Pastoral da Terra começaram a denunciar o Brasil em esfera internacional. Conforme Buclet (2005) foi por meio de uma pequena nota publicada na imprensa internacional, focalizando o depoimento de trabalhadores rurais que conseguiram fugir de uma fazenda paraense, que foi permitida uma visibilidade internacional para esse acontecimento.

A Organização dos Estados Americanos (OEA) é então acio-nada e ameaça o Estado brasileiro das sanções cabíveis, exigindo que se investigassem essas práticas e fossem tomados os procedi-mentos necessários para se solucionar essas questões (Sakamoto & Mendes, 2009). O Brasil, em decorrência, se compromete a fis-calizar essas práticas e a criar planos de atuação sobre o problema denunciado.

Moura (2006) destaca, no entanto, que parece que o Estado brasileiro só passou a “oficializar” a existência da perpetuação do trabalho escravo no Brasil em 1985, quando foi criado o Ministério

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do Desenvolvimento e Reforma Agrária como uma resposta às pres-sões exercidas pela sociedade, sobretudo rural, para que políticas públicas e ações governamentais fossem voltadas para a população rural.

Desde esse tempo, um maior número de casos considerados como de exploração de trabalhadores rurais começou a ganhar mais destaque na imprensa brasileira, bem como houve a ampliação dos espaços para discussão do tema. A produção de pesquisas, embora cresça nas áreas de humanidades e das ciências sociais aplicadas, ainda é tímida frente à relevância dessa problemática no país.

De acordo com a literatura levantada nesta pesquisa, obser-vamos que um maior monitoramento dessa forma de violação de direitos vem ocorrendo e tais práticas começaram a ser notificadas. E, nas denúncias de tais práticas, há um grande número que foi rea-lizado em fazendas paraenses, de sorte que, durante muitos anos, o Estado do Pará foi considerado “líder” em número de denúncias de trabalho escravo e da reincidência de trabalhadores. Esses indi-cadores foram reunidos pelas agências ligadas ao Governo Federal, como o Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério Público do Trabalho, pela OIT e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma das maiores responsáveis pela produção de material dessa temática no Brasil.

Esses relatórios e publicações da CPT indicam não só a ocorrência de práticas de exploração de trabalhadores rurais, mas também violências cometidas contra militantes e religiosos envol-vidos nos movimentos sociais que lutam pela posse de terra e pela preservação do meio ambiente.

Os indicadores juntados foram utilizados pelos organismos e entidades para dar visibilidade à situação e engendrar reivindi-cações por políticas públicas na área. Assim, o Relatório Global da OIT, de 2009, tem como título “O custo da coerção”, ao tratar de como essas práticas afetam a economia mundial, uma vez que as

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empresas usufruem de um ganho ilícito ao usarem a força de traba-lho de pessoas em situação de exploração. Além de serem práticas categorizadas de desonestas pela OIT, violam igualmente os direi-tos humanos e merecem a atenção dos países e seus governantes.

O mencionado relatório apresenta novas perspectivas sobre o “trabalho forçado”, em relação ao anterior (do ano de 2005), e estabelece algumas diferenças em um quadro de novas situações registradas como trabalho forçado, na atualidade, atinentes à exploração de trabalhadores e que podem ser inseridas ou julgadas como práticas de “trabalho forçado”. Essas análises são realizadas por “peritos” da OIT que estabelecem uma série de nomeações e classificações empregadas para tentar objetivar as “categorias” ou “gêneros” de exploração de trabalhadores em uma definição global de “trabalho forçado”, como o caso brasileiro.

Os militantes e pessoas ligadas à discussão desse tema, de forma geral, no país, comumente adotam o termo “trabalho escravo” para se referir a essas práticas. Essa nomeação tem um peso ou um valor simbólico muito grande, exercendo sobre a sociedade brasi-leira maior sensibilização por conta de nosso passado escravista, ainda recente (um pouco mais de cem anos), tornando-se, assim, uma “expressão” utilizada para rememorar esse passado e pressio-nar o governo e a sociedade a não esquecê-lo, buscando medidas e ações que erradiquem todas as formas de exploração de trabalha-dores. Essa nomeação, por outro lado, ganhou destaque em fun-ção das semelhanças encontradas no modo como os trabalhadores rurais brasileiros eram tratados, nas fazendas paraenses.

seguidas vezes, nas fazendas em que os policiais federais dão batidas, eis que acusadas de emprego de trabalho escravo, são encontrados vários instrumentos de castigo, como chicotes, correntes para amarrar os peões para não fugirem, e outros instrumentos que dão indício da exis-tência de tortura (russo, 2005, p. 75-76).

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Além dessas, outras características são apontadas pelas pesquisas:

Em todos os estados houve registros de grupos armados, efetuando uma vigilância constante e intensiva, com-posta por capatazes e jagunços contratados por fazen-deiros e empreiteiros. Esta vigilância implicava em um cerceamento que reforçava o impedimento dos trabalha-dores em sair dos locais de trabalho, já imobilizados por dívida (Mendes, 2002, p. 108).

São elementos, portanto, que se inserem dentro das par-ticularidades descritas pela OIT quanto a sua definição de tra-balho forçado:

A definição da OIT de trabalho forçado compreende dois elementos básicos: o trabalho ou serviço é exigido sob ameaça de castigo, e é realizado involuntariamente. O trabalho das entidades de fiscalização da OIT serviu para esclarecer esses dois elementos. O castigo não tem de ser realizado na forma de sanções penais, mas também pode assumir a forma de perda de direitos e privilégios. Além disso, a ameaça de uma penalização pode assumir mui-tas formas diferentes. Comprovadamente, a sua forma mais extrema envolve violência física ou repressão, ou até mesmo ameaças de morte dirigidas à vítima ou a seus familiares. Também podem existir formas sutis de ameaça, por vezes de natureza psicológica. As situações analisadas pela OIT incluem ameaças de denúncia das vítimas às autoridades policiais ou de imigração, quando sua situação laboral é ilegal, ou denúncia aos líderes de seus povoados, no caso de jovens forçadas a se prosti-tuírem em cidades distantes. Outras punições podem assumir um caráter financeiro, incluindo penalizações econômicas relacionadas com dívidas. Os empregadores

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muitas vezes exigem que os trabalhadores entreguem os seus documentos de identificação, e podem usar a ame-aça da confiscação desses documentos para exigir traba-lho forçado (OIT, 2009, p. 5-6).

Estando em acordo quanto a essas características e suas semelhanças, o Brasil e a OIT se propõem eliminar tais práticas do território nacional, usando como sustentação as recomendações propostas pela OIT. Destacaremos, no próximo tópico, algumas dessas recomendações que se tornaram tanto práticas concretas de enfrentamento quanto práticas de controle e subjetivação.

Direcionamentos: a criação de modalidades distintas de biopolíticas

No domínio internacional, a OIT se configura como uma gestora das relações de trabalho, função que lhe é atribuída por diversos países e por si própria, sendo uma mediadora de ações entre esses países e em suas relações internas, no plano diplomá-tico. A OIT, ao assumir, por sua vez, o “papel” de investigadora das práticas de trabalho forçado, formulou como uma das suas princi-pais atividades estabelecer direcionamentos aos países-membros, ou seja, orientações políticas, reportando medidas de prevenção e erradicação do que denominou trabalho forçado, pois essa é a nomenclatura usada e defendida por esse organismo multilateral. A OIT orienta que os Estados confeccionem leis ou mudem sua legislação, a fim de justificar de forma penal as medidas de punição aos considerados culpados por realizarem tais práticas:

Certamente tem sido dada uma atenção considerável aos aspectos potencialmente criminais da exploração labo-ral, pois cada vez mais países têm corrigido suas leis pen-ais no sentido de reconhecerem o delito do tráfico para

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exploração laboral, e de estabelecer penalizações mais fortes (OIT, 2009, p. 2).

Esse acontecimento dissemina um “clamor” pela crimina-lização e consequente punição, contudo, com um efeito de certo modo restrito, pois essas práticas de exploração se desdobram em uma variedade de maneiras de trabalho forçado e, nesse caso, a definição da OIT é insuficiente para abarcar tal multiplicidade. Levando em consideração que um dos saberes que rege esses dis-cursos sobre o tema é o do Direito, exige-se que haja uma correta definição dos termos, para que possa realizar um julgamento mais “adequado”, com penas correlatas à tipificação criada.

Nessa perspectiva, as definições ganham efeitos de verdade e são mais aceitas ao permitirem a invenção de mecanismos refina-dos de controle, como as leis e as normas de saúde e de trabalho. Nesse panorama, muitos casos de trabalho forçado não são julga-dos como crimes hediondos, mas, em geral, como irregularidades trabalhistas (OIT, 2009).

Nos relatórios da OIT, há a citação de práticas classificadas como exitosas no que denomina de enfrentamento ao trabalho for-çado, as quais são apresentadas como um exemplo a ser seguido por outros países, como uma receita a ser replicada, independen-temente das especificidades das situações de cada realidade local e em cada contexto dos Estados em que ocorrem.

Em 2009, a OIT lança uma espécie de manual para nortear os juristas em todo o mundo. Nesse documento, estão contidas informações e orientações sobre a forma de identificar as práticas de trabalho forçado. Por meio dessa medida, a OIT vai direcionando quais devem ser os “experts” que irão intervir sobre o tema como capazes de exercer as avaliações das situações de trabalho forçado, apontando os caminhos a serem trilhados para uma aliança global a propósito do tema. Assim, propõe que todos sejam submetidos a

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uma generalização abstrata de um conceito a respeito de um objeto supostamente prévio.

São apontados exemplos de Estados que já efetuaram alte-rações em suas legislações e os efeitos produzidos a partir dessas ações. O relatório salienta que muitas mudanças já ocorreram nesse sentido, todavia, as práticas persistem e evidenciam a demanda de criação de alternativas de eliminação e prevenção, como podemos visualizar a seguir.

Os inspetores do trabalho podem aplicar um con junto de métodos de pesquisa que não se encontram dis poníveis em outras autoridades de execução da lei. Por exemplo, têm o direito de entrar livremente em qualquer local de trabalho sujeito a inspeção, a qualquer momento e sem aviso prévio. Devem investigar qualquer queixa relativa a violações da lei laboral, sem revelar sua origem. Podem aplicar um vasto conjunto de ferramentas de for ma arbi-trária e flexível, como a emissão de notificações antes de iniciar a instauração do processo contra um em pregador, ou encerrar a produção no caso de perigo imi nente para a saúde e segurança dos trabalhadores. Assim, os ins-petores do trabalho podem usufruir de uma vanta gem no combate a questões relacionadas com o trabalho for-çado, em comparação com outras agências de cumpri-mento da lei, cujos mandatos são muito diferentes e, por vezes, muito limitados (OIT, 2009, p. 47).

Nesse extrato do Relatório 2009 da OIT, há a apresentação de uma maneira de lidar com determinadas medidas que propõem diferentes operacionalizações de estratégias de biopoder, no âmbito da relação, da vida, do trabalho e da linguagem. Caracteriza o que Foucault descreve como diversas manifestações da gestão do poder ramificado em variadas linhas de força e direções sem linearidade,

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ampliando a intervenção tanto no corpo individual quanto no cole-tivo (Foucault, 2008a).

No que concerne às medidas de prevenção, cita-se a elabora-ção de medidas de proteção social ao trabalhador, buscando abran-ger, sobretudo, os que são considerados e classificados em situação de risco, como os desempregados e com poucos anos de escolariza-ção, que seriam mais propícios a aceitar as propostas desdobradas em trabalho forçado ou tráfico de pessoas, segundo a OIT. Algumas dessas medidas indicadas pelo Relatório 2009 são: criação de novos postos de trabalho; aumento de fiscalização a ser realizada pelas agências de recrutamento de trabalhadores e pelos governos locais; fiscalização das redes de fornecimento das empresas; fiscalização para a contratação de trabalho formal e contribuição na redução da pobreza, a partir da articulação entre diferentes ministérios.

Essas medidas sugerem a regulamentação do trabalho em todas as suas esferas e criticam a flexibilidade encontrada em rela-ção às leis trabalhistas e à impossibilidade de fiscalização de traba-lhos na condição de informalidade, o que gera constantes processos de desregulamentação do trabalho. Quer dizer, solicita-se que as relações de trabalho estejam sempre supervisionadas e vigiadas por uma legislação.

Entretanto, essa vigilância pode se estender do Estado para outros grupos sociais, como os sindicatos. O relatório traz diver-sas passagens convidando os sindicatos de trabalhadores a mudar suas concepções e posturas, no que tange as relações de trabalho2, especialmente as informais, em uma tentativa de ampliar os direi-tos trabalhistas a todos, já que muitas vezes os desempregados são

2 “Os sindicatos de todo o mundo estão cada vez mais conscientes de que preci-sam ampliar suas atividades a fim de defender os direitos dos trabalhadores do setor informal e dos desprotegidos, incluindo os tra balhadores migrantes em situação regular ou irregular” (OIT, 2009, p. 53).

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excluídos desse processo por serem considerados culpados por estar desempregados.

Acerca desse tema, Lazzarato (2006) argumenta, de maneira mais crítica, que a “parceria” crescente entre sindicatos e empresas não significa necessariamente uma real preocupação com a ampliação e garantia dos direitos dos trabalhadores, mas um arranjo encontrado entre ambos os grupos para proteger seus interesses. Portanto, cada caso deve ser cuidadosamente analisado. Porém, encontramos considerações direcionadas às empresas pri-vadas. São recomendações sobre suas práticas e organização para que entrem como parceiras nessa rede criada contra a exploração de trabalhadores, que, por sua vez, também cobram da OIT e dos governos que as “auxiliem” na identificação de tais práticas e na criação de leis que avaliam como “claras” e que ofereçam suporte às empresas, na contratação.

Essa preocupação é apresentada como uma referência para as empresas que pretendem ser consideradas “socialmente respon-sáveis”. O título de “responsável socialmente” funciona para muitas empresas como um marketing a ser cultivado, principalmente na atualidade, em que os fluxos das informações são intensivos, e o fato de a empresa ter sua marca vinculada ao uso de trabalho for-çado ou escravo não lhe traz vantagens diante dos clientes e espe-cialmente investidores. Vale ressaltar como algumas mídias têm desempenhado um papel relevante nesses últimos anos quanto à divulgação das práticas de trabalho forçado. Os nomes das empre-sas e dos empregadores que estão na lista de denúncia do uso do trabalho forçado são publicadas, pelas mídias, produzindo reper-cussão na imagem das empresas.

Em análise dos relatos extraídos dos documentos da OIT estudados para esta pesquisa, é possível afirmar que há impactos nas políticas de enfrentamento geradas pelo governo brasileiro. Em primeiro lugar, podemos citar os dois Planos Nacionais de

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Erradicação ao Trabalho Escravo, os quais estabelecem uma série de medidas a serem tomadas por diversos setores da sociedade, tanto da esfera governamental quanto dos movimentos sociais, entidades, grupos de pesquisas de universidades etc. São delegadas determinadas funções a cada setor e prazo para cumprimento das medidas.

Podemos ressaltar que a pressão exercida por parte dos movimentos sociais e a CPT tem propiciado a visibilidade desse tema, nas esferas nacionais e internacionais. Caso o Estado brasi-leiro descumpra diretrizes da OIT ou minimize a sua preocupação, poderá sofrer sanções. E se o Brasil não aceitar as recomendações feitas por esse organismo, em face do trabalho forçado, e negligen-ciar as denúncias realizadas, sofrerá um desgaste político e econô-mico, o que opera como uma pressão permanente da OIT sobre o país.

Ao agenciarmos os direcionamentos da OIT com as propos-tas dos movimentos sociais e de direitos humanos no Brasil, perce-bemos que este tem conseguido que suas ações ganhem destaque entre outros países. No relatório de 2009 da OIT, há uma declara-ção de elogios de diversos países às ações concretizadas no Brasil, diante do trabalho forçado. Em 2010, foi publicado outro relatório pela OIT, tratando somente dos casos brasileiros e de suas práticas de erradicação: “Combatendo o trabalho escravo contemporâneo: o exemplo do Brasil”.

Comparando esses documentos, vamos encontrar muitas semelhanças nos discursos que os compõem, principalmente no que tange a criminalização dessas práticas de trabalho escravo/for-çado e dos mecanismos que devem ser criados, com o objetivo de eliminar tais práticas e de se promover a sua prevenção. Para tanto, julga-se necessário um planejamento técnico capaz de envolver o estudo das situações encontradas, o perfil econômico e social das

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pessoas envolvidas, a sua distribuição em território nacional, a quantidade de casos registrados etc.

Um planejamento técnico como esse pode funcionar, segundo Foucault (2008b), como um dispositivo de segurança por parte dos governantes, já que o planejamento técnico está dire-tamente associado com uma preocupação com o futuro, que não necessariamente é uma preocupação capital com a eliminação ou a extinção de um determinado evento, mas uma busca de regular suas variações.

Esse planejamento técnico é baseado, sobretudo, em esta-tísticas, o que justifica a frequente solicitação da OIT da divulga-ção dos “dados”. Enquanto esses indicadores não são monitorados pelo país, este não pode acompanhar e atuar com efetividade polí-tica nas intervenções sobre o trabalho forçado, de acordo com esse organismo multilateral.

A ação do Estado Brasileiro tem se materializado em forma de repressão e opera mais destaque com as ações do Grupo Móvel de Fiscalização do Governo Federal e no setor jurídico, procurando a criação e a adequação de leis que possam punir mais “eficazmente” os considerados criminosos. A OIT, atuando como gestora global e incentivadora dessa complexa rede, torna-se uma “parceira” desses setores e garante o cumprimento dos acordos internacionais, tra-balhando nos interstícios das particularidades brasileiras, já que não se tem um tribunal internacional para julgar e punir de fato as práticas de trabalho escravo, embora se observe um empenho em normalizar, em âmbito mundial, essas práticas como crime. Logo, enfatiza o documento:

Em sintonia com as particularidades e necessidades brasileiras para o enfrentamento da questão, o Projeto de Cooperação Técnica “Combate ao Trabalho Escravo no Brasil”, desenvolvido pela OIT, desde abril de 2002, tem buscado fortalecer a articulação das instituições

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nacionais parceiras (governamentais e não governa-mentais) que defendem os direitos humanos, além de contribuir para a prevenção do trabalho escravo e a rea-bilitação de trabalhadores resgatados, de modo a evitar o seu retorno às condições de trabalho análogas à escra-vidão. A OIT-Brasil, desse modo, atua em uma lógica complementar ao governo brasileiro, que centra esforços nos mecanismos de repressão do trabalho escravo (OIT, 2010, p. 126).

Sob a perspectiva de Foucault, todas essas ações podem ser encaradas como estratégias políticas de normalização da popula-ção, buscando controlar seus desvios, especificando as ameaças e perigos decorrentes. No entanto, por que falar em ameaça e perigo nesse tema, nessa situação? Por que, a partir do momento em que esse tema começa a ser mundializado, é criada uma aliança glo-bal visando à garantia dos direitos, a universalização de “boas--práticas”? Como são subjetivados esses trabalhadores que são alvo da intervenção da OIT, dos Estados e de movimentos sociais? Trabalhadores rurais, explorados, vítimas de engodo, desprovidos de educação e renda etc. O que é que se deseja que seja identifi-cado? Essa é uma preocupação colocada pelos dispositivos de segu-rança que organizam e planejam esse acontecimento como um meio a se interferir.

Nesse sentido, a OIT vem trabalhando na elaboração de propostas específicas para a construção de planos de ações para os próximos quatros anos, visto que se autointitula como liderança global, ocupando, portanto, um lugar de saber-poder em que opera determinados regimes de verdades, por meio de diferentes tecno-logias de poder.

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Referências

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Sobre os autores

Ana Luisa Teixeira de Menezes possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mestrado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é pró-reitora de Extensão e Relações Comunitárias da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e professora titular do Departamento de Psicologia e pro-fessora colaboradora do mestrado em Educação (UNISC). Tem pes-quisas na área de Psicologia e Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação guarani, Psicologia Comunitária e Educação Biocêntrica. E-mail: [email protected]

Bader Burihan Sawaia possui graduação em Ciências Sociais, mes-trado e doutorado em Psicologia Social pela PUC-SP. Atualmente é professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e colaboradora da Universidade de São Paulo – Instituto de Estudos Avançados – IEA/USP. É parecerista ad hoc do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Email: [email protected]

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Candida Maria Bezerra Dantas possui graduação (2003) e mes-trado (2007) em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Doutoranda do programa de pós-graduação em Psicologia (UFRN), atualmente é docente do curso de Psicologia da Universidade Potiguar (UnP). Possui experiência acadêmica e em pesquisa em Psicologia com ênfase nos seguintes temas: Psicologia Social, políticas sociais, formação e atuação do psicólogo e história da Psicologia. E-mail: [email protected].

Daniela Dias Furlani possui graduação (2004) em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e mestrado em Psicologia (2007) pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Aluna de douto-rado do curso de pós-graduação em Educação Brasileira (UFC). Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Desenvolvimento Humano e Psicologia Social e Educação.E-mail: [email protected]

Eveline Favero é doutora em Psicologia (UFRGS) com está-gio de doutorado no grupo de pesquisa em Psicologia dos desastres (University of California Santa Barbara). Membro da International Society for Traumatic Stress Studies (ISTSS), pes-quisadora do Centro de Estudos e Pesquisas sobre Desastres da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CEPED/RS) e dos gru-pos de pesquisa em Psicologia Comunitária (GPPC) e Gestão de Riscos e Desastres (GRID) da UFRGS. E-mail: [email protected]

Fabiana de Andrade Campos é psicóloga, mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), douto-randa em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente é professora de Psicologia e Políticas Públicas na Pontifícia Universidade Católica de Minas

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Gerais (PUC/MG). Estuda e acompanha o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) desde 2001. Participa de estudos sobre Psicologia Sócio-Histórica e tem interesse nas práti-cas da Psicologia da Libertação. Email: [email protected]

Flávia Cristina Silveira Lemos é professora adjunta em Psicologia Social na Universidade Fernando Pessoa (UFP). Psicóloga, mestre em Psicologia Social e doutora em História pela UNESP/Assis/SP. Coordenadora do PPGP/UFPA. E-mail: [email protected]

Flávia Palmeira de Oliveira é estudante do curso de graduação em Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Área de interesse: Psicologia Social Comunitária, Psicologia Clínica. E-mail: [email protected]

Francielli Galli é psicóloga, mestranda em Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Especializanda em Terapia de Família (DOMUS). Experiência em psicologia clínica e comunitária. Membro do Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitária (UFRGS). E-mail: [email protected]

Geise do Socorro Lima Gomes é psicóloga e mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Foi bolsista Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Atua como docente no ensino superior privado e como psicóloga em CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social).E-mail: [email protected]

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Henrique Caetano Nardi é professor do Programa de Pós-graduação e do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Possui doutorado em Sociologia (UFRGS) e pós-doutorado pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS) de Paris. É bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq e pesquisador associado do IRIS-EHESS-Paris. Coordena o Núcleo de Pesquisa em Relações de Gênero e Sexualidade (Nupsex – www.nupsex.org) e o Centro de Referência em Direitos Humanos: Diversidade Sexual e Relações de Gênero, ambos sediados na UFRGS. Principais temas de interesse: diversidade sexual, subjetividade, relações de gênero, preconceito, ética, políticas públicas de saúde e educação. E-mail: [email protected]

Iara Cristine Rodrigues Leal Lima é estudante do curso de gra-duação em Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Realiza estágio supervisionado no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS III – Campina Grande) na área de Psicologia Social Comunitária. Área de interesse: Psicologia Social Comunitária. E-mail: [email protected]

Jacqueline Ramos Loureiro Marinho é graduada em Psicologia pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Realizou está-gio supervisionado no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS III – Campina Grande) na área de Psicologia Social Comunitária. Especialista em Saúde Pública pela Fundação Universitária de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (FURNE). Psicóloga do Programa Residência Integrada Multiprofissional em Saúde – Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Área de interesse: Psicologia Social Comunitária. E-mail: [email protected]

Jáder Ferreira Leite é psicólogo pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), mestre em Psicologia pela Universidade Federal do

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Rio Grande do Norte (UFRN) e doutor em Psicologia Social (UFRN). É professor adjunto do departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRN. Principais temas e áreas de interesse: relações de gênero, movimentos sociais e produção de subjetividade, Psicologia Comunitária e contextos rurais. E-mail: [email protected]

James Ferreira Moura Jr. é graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mestre em Psicologia (UFC) e doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integrante do Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitária (GPPC/UFRGS) e Colaborador do Núcleo de Psicologia Comunitária (NUCOM/UFC). Principais temas e áreas de interesse: pobreza, Psicologia Comunitária, saúde comu-nitária, comunidades rurais e extensão universitária. E-mail: [email protected]

João Carlos Alchieri é professor associado e bolsista produtivi-dade (CNPq) na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) onde atua como orientador de mestrado e doutorado, no PPG Psicologia e no PPG Ciências da Saúde. Coordenador do GT Processos Avaliativos em Psicologia (ANPPEP) e coordenador e tutor de projeto na Univesidad Nacional del Mar del Plata no Programa Centros Associados para o Fortalecimento da Pós-graduação Brasil/Argentina e Movilidad Académica para la Integración (MAPI). Red de Facultades de Psicología del MERCOSUR. E-mail: [email protected]

João Paulo Sales Macedo é professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), no campus Parnaíba. Possui mestrado e doutorado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Principais temas e áreas de interesse: saúde coletiva, saúde mental e formação de psicólogo. E-mail: [email protected]

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Joaquim A. Costa Borges é médico psiquiatra. Diretor do Centro de Respostas Integradas de Coimbra do I. D. T., I. P.E-mail: [email protected]

Jorge Castellá Sarriera é doutor em Psicologia, professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisador 1A do CNPq. Coordenador do Grupo de Trabalho em Saúde Comunitária da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP) e coordenador do Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitária (GPPC/UFRGS). E-mail: [email protected]

Karla Patricia Martins Ferreira é graduada em Psicologia (UFC, 2003), mestre (2006) em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mestre (2006) em Psicologia (UFC) e doutora em Educação (UFC), com doutorado sanduiche na Université de Nantes – França (2011). Tem experiência nas áreas de Psicologia, educação e saúde, com ênfase em Psicologia Fenomenológico-Existencial, Psicologia Ambiental, Psicologia Social, Psicologia da Educação, Educação Ambiental e Educação Popular. E-mail: [email protected]

Leonardo Cavalcante de Araújo Mello é graduado em Psicologia (2006) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e mestre (2010) em Psicologia (UFRN). Tem experiência na área de Psicologia Social com atuação nos temas Psicologia e Direitos Humanos, Psicologia e Movimentos Sociais e Psicologia e Políticas Sociais. Atualmente é docente da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), atuando no Centro de Educação e Saúde. E-mail: [email protected]

Lucélia de Almeida Andrade é concluinte do curso de gradua-ção em Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

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Realizou estágio supervisionado no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS III – Campina Grande) na área de Psicologia Social Comunitária. Área de interesse: Psicologia Social Comunitária. E-mail: [email protected]

Magda Dimenstein é professora titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro do Programa de Pós-graduação em Psicologia (UFRN). Doutorado em Ciências da Saúde pelo IPUB/UFRJ e pós-doutorado em Saúde Mental pela Universidad Alcalá de Henares – Espanha. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 1. Principais temas e áreas de interesse: saúde mental e Atenção Primária. E-mail: [email protected]

Marco Aurélio Máximo Prado é doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (UFMG) e pesquisador junto ao Núcleo de Psicologia Política (UFMG). Bolsista CNPq e Fapemig. Temas de interesses: sexualidades e política, participação social e juventudes, teoria política e subjetividades. E-mail: [email protected]

Melina Carvalho Trindade é psicóloga, especializanda em Terapia de Família (DOMUS) e Terapia Cognitivo-Comportamental (WP). Desenvolve pesquisas no âmbito da Psicologia Comunitária e de desastres. Membro do Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Email: [email protected]

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Nathália Nunes e Araújo é graduada em Psicologia pela Universidade Potiguar (UnP), estagiária no campo da Saúde Mental, atuando na perspectiva da desinstitucionalização com residentes de hospital psiquiátrico na cidade de Natal-RN. E-mail: [email protected]

Neuza Maria de Fátima Guareschi é professora/pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenadora do grupo de pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivação e do Núcleo e-politcs. E-mail: [email protected]

Omar Alejandro Bravo é professor do Departamento de Estudios Psicológicos da Universidade Icesi, de Cali, Colombia. Mestre e dou-tor em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Principais temas e áreas de interesse: saúde mental e população carcerária; construção de memória e sentido em familiares de desaparecidos na Colômbia. E-mail: [email protected]

Otacílio de Oliveira Jr. é mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutorando em Psicologia (UFMG). Pesquisador junto ao núcleo de Psicologia Política do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Temas de interesse: juventudes em dife-rentes contextos, participação social e políticas públicas. E-mail: [email protected]

Priscila Pavan Detoni é mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS). É pesquisa-dora do Núcleo de Pesquisa em Relações de Gênero e Sexualidade (Nupsex –www.nupsex.org) e membro da equipe do Centro de

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Referência em Direitos Humanos: Diversidade Sexual e Relações de Gênero, ambos sediados na UFRGS. Principais temas de interesse: Psicologia Social, políticas públicas, direitos humanos, saúde do/a trabalhador/a, estudos das relações de gênero e sexualidade. E-mail: [email protected]

Rafael de Albuquerque Figueiró é psicólogo, mestre em Psicologia, doutorando em Psicologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), professor do curso de Psicologia da Universidade Potiguar (UnP), coordenador do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Movimentos Sociais. E-mail: [email protected]

Rebeca da Rocha Siqueira Nepomuceno é graduada em Psicologia pela Universidade Potiguar (UnP), estagiária no campo da saúde mental, com foco em usuários de álcool e outras drogas, atuando em hospital psiquiátrico na cidade de Natal-RN. E-mail: [email protected]

Thelma Maria Grisi Velôso é psicóloga, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e professora do mestrado em Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Doutora em Sociologia. Área de inte-resse: Psicologia Social. Temas de investigação: Saúde mental; posições identitárias; construções discursivas. Área de interven-ção: Psicologia Social Comunitária. E-mail: [email protected]

Verônica Morais Ximenes é professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia e do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutorado em Psicologia – Universidade de Barcelona e Pós-doutorado em Psicologia na

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2. Coordenadora do Núcleo de Psicologia Comunitária (NUCOM/UFC). Principais temas e áreas de interesse: Psicologia Comunitária, pobreza, saúde comunitária e políticas públicas. E-mail: [email protected]

Yldry Souza Ramos Queiroz Pessoa é graduada em Psicologia (UEPB) e mestre em Saúde Coletiva (UEPB). Doutoranda em Psicologia (UFRN). Coordenadora do Curso de Psicologia da Faculdade Maurício de Nassau em Campina Grande-PB. E-mail: [email protected]

Zuleika Köhler Gonzales é mestre em Psicologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), doutoranda em Psicologia Social e Institucional Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).E-mail: [email protected]

Zulmira Áurea Cruz Bonfim possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará/UFC (1985), mestrado em Psicologia Social e da Personalidade (1990) pela Universidade de Brasília (UnB) e doutorado em Psicologia Social (2003) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É espe-cialista em intervenção socioambiental e pesquisadora em Espaço Público e Regeneração Urbana pela Universidade de Barcelona no ano de 2001. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal do Ceará (UFC). Tem experiência na área de Psicologia Social e Psicologia Ambiental, atuando principalmente nos seguin-tes temas: Psicologia Social Comunitária, Psicologia Ambiental e afetividade. Coordena o Laboratório de Pesquisa em Psicologia ambiental – LOCUS. E-mail: [email protected]