Upload
cebrap
View
1
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
.
A EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA RECENTE: RESULTADOS
E PERCEPÇÕES
Maria Hermínia Tavares de Almeida1
Nossa mais longa e completa experiência
democrática já dura mais de um quarto de século. Em 2014, o
país realizará sua sétima eleição presidencial consecutiva
e, nem os mais céticos imaginam que ela possa não ocorrer
ou ser ameaçada por intervenção de forças antidemocráticas,
como em passado não tão distante. Todas as forças políticas
jogam o jogo da democracia e só ele.
Entretanto, nove em dez analistas políticos --
na imprensa, no mundo dos partidos, nas organizações da
sociedade ou na academia -- expressam, em graus diversos,
descontentamento com o funcionamento da democracia no
Brasil. Em sua opinião, o sistema político brasileiro parece
não funcionar à altura dos desafios de toda ordem, que
congestionam a agenda pública. E a reforma política tem
sido, desde a democratização, bandeira agitada por governos
e oposições, a cada impasse, a cada conflito que não se
soluciona com rapidez. Se as coisas não vão bem é certamente
porque as lideranças políticas fizeram escolhas
institucionais erradas, diz a sabedoria convencional.
A desconfiança com relação ao sistema político
não existe apenas entre as lideranças políticas ou sociais,1 Professora aposentada do Instituto de Relações Internacionais e do Departamento de Ciência Politica da Universidade de São Paulo e pesquisadora do CEBRAP.
2
o público de massa também não parece ter uma opinião muito
favorável sobre as instituições democráticas.
Neste artigo, abordaremos o assunto pelo ângulo
das percepções do sobre o sistema político, em especial, o
que dele pensa o grande público. Mostramos que existe um
descompasso entre os resultados produzidos desde que os
militares deixaram o poder, em 1985, e a avaliação que surge
de repetidas pesquisas de opinião. Não temos a pretensão de
explicar esse descompasso, mas de explorar suas
consequências para estabilidade da democracia no país, em
diálogo com a literatura sobre o assunto. Sustentamos que a
desconfiança em relação à democracia só poderá feri-la se e
quando existirem lideranças dispostas a mobilizar esse
sentimento contra o regime. Argumentamos, também, que as
instituições existentes dão incentivos para que continuem
fiéis ao jogo democrático.
Na primeira parte, apresentamos de forma
sucinta o que nos parecem indícios seguros de que o sistema
político, ao contrário do que pressagiaram muitos analistas
no começo dos anos 1990s, superou obstáculos importantes e
produziu resultados não desprezíveis do ponto de vista da
gestão econômica, das políticas sociais e do processamento
de crises políticas. Na segunda parte, utilizamos dados do
Latinobarómetro e do LAPOP para discutir os níveis (baixos) de
apoio do público de massa à democracia e suas principais
instituições. Na terceira parte, discutimos com a literatura
3
sobre as possíveis implicações das opiniões do público de
massas para nossa vida democrática.
Capeando temporais
Quando os militares deixaram o poder, no começo
de 1985, as condições sob as quais o sistema democrático deu
os primeiros passos eram tudo menos alvissareiras. O ciclo
de expansão econômica, cujo dinamismo deu margem a que se
falasse em “milagre econômico”, era coisa do passado. O
crescimento rateava, os índices de inflação apontavam firme
e consistentemente para cima e o endividamento externo era
explosivo. A emenda constitucional Dante de Oliveira, que
restabeleceria eleições diretas para a presidência da
República, fora derrotada no Congresso e o candidato
presidencial que unira as oposições e as levara à vitória no
colégio eleitoral, Tancredo Neves, faleceu às vésperas da
posse. Em seu lugar, assumiu um vice-presidente em que
poucos confiavam, por seus laços com o regime autoritário.
Iniciava-se um longo mandato durante o qual naufragaram três
planos de estabilização monetária – Cruzado, Bresser e Verão
– enquanto as elites políticas e sociais, entre confrontos e
acordos, levaram dois anos para dar forma à nova
Constituição.
No final da década, na primeira eleição
presidencial direta desde 1959, a derrota dos partidos que
asseguraram a transição para o regime civil —fragorosa no
caso de PMDB -- e a vitória de Fernando Collor de Melo
4
pareciam indicar que o sistema partidário tinha poucas
chances de se estabilizar e desempenhar o papel de
organizador da competição eleitoral.
Não foi, assim, por acaso que o diagnóstico de
ingovernabilidade disseminou-se quando o assunto era o
sistema político da Nova República e que a reforma política
tornou-se um tópico quase permanente da agenda pública
brasileira. Presidencialismo com alta fragmentação
partidária e dispersão de poder decisório entre esferas da
federação passaram a ser vistos como receita segura para
tornar nossa democracia ingovernável.
Entretanto, contra a sabedoria convencional, as
instituições políticas, estabelecidas no período pós-
autoritário, mostraram-se capazes de entregar alguns dos
resultados que se imagina as democracias devam assegurar:
competição política limpa com chances razoáveis de
alternância de partidos e coalizões no poder, capacidade de
processar crises políticas, capacidade de produzir decisões
de governo e implementar políticas públicas na direção
desejada pelas maiorias. (Figueiredo & Limongi:1999 e 2005;
Santos: 2003; Melo & Pereira:2013).
Crises de governo não se transformaram em
crises de regime. O desmoronamento do governo Collor de
Melo, sob denúncias de corrupção, teve solução
constitucional, por meio do afastamento e cassação do
primeiro presidente eleito; da mesma forma que o escândalo
5
do “Mensalão”, que abalou o governo Lula da Silva, foi
processado por via judicial.
Um sistema político no qual são baixas as
barreiras de ingresso à vida partidária e à disputa
eleitoral, possibilitou que todos os principais partidos que
se formaram na oposição ao regime militar ou dele
desgarraram, encabeçando ou participando de coalizões, se
alternassem na presidência ou fizessem parte do governo
federal, além de controlar fatias variadas de poder estadual
e municipal. O sistema de justiça, com prerrogativas
ampliadas pela Constituição de 1988, tornou-se poder mais
atuante, em suas diferentes esferas de jurisdição, e com
frequência funcionou força anti-majoritária e contrapeso à
preponderância do Executivo (Melo & Pereira: 2013).
De outra parte, o mesmo sistema político
permitiu que consensos amadurecidos na sociedade, entre
especialistas e lideranças políticas se transformassem em
políticas razoavelmente eficazes, em geral iniciadas pelo
Executivo, mas apoiadas pelo Congresso (Melo, Manor &
Neghte, 2012; Arretche, 2014). A inflação descontrolada, que
corroeu a economia brasileira por uma década, foi domada
pelo Plano Real, em 1994 (Leitâo:2012). Um robusto consenso
em torno da estabilidade da moeda formou-se e estabeleceu
limites firmes às escolhas de política econômica de
sucessivos governos. Um conjunto de reformas, muitas das
quais demandando mudança constitucional (Melo: 2002)
6
produziram instituições econômicas mais resistentes a
impactos negativos da economia internacional.
Por último, mas não menos importante, ampla
convergência em torno da necessidade de mudar o sistema de
proteção social, tornando-o mais universal, menos regressivo
e mais eficiente, possibilitou a reforma progressista das
grandes políticas sociais – previdência social, educação,
saúde, saneamento -- e a implantação de programas ambiciosos
de transferência direta de renda, como o Bolsa Família
(Pessoa:2011). Criou-se assim um sistema de proteção social
de universalismo básico (Molina:2007; Huber & Stephens:
2012) em parte responsável pela significativa redução dos
níveis de pobreza e desigualdade, pela melhoria dos
indicadores de educação e saúde (Arretche, 2014) e pela
expansão significativa dos estratos médios de renda (Neri,
2012). Os novos grupos médios são menos brancos, mais
mesclados, a indicar uma redução, ainda que mínima, das
desigualdades raciais (Almeida & Oliveira, 2011, Almeida &
Guarnieri, 2013).
O país entrou em um círculo virtuoso
caracterizado por intensa competição política e,
simultaneamente, ampla convergência em torno de políticas
públicas.
Um pouco por conta desses resultados, um pouco
por conta de esforços diplomáticos para aumentar a projeção
internacional do país, o Brasil ingressou no bloco das
7
nações emergentes, das potências médias, que segundo os
internacionalistas podem ter algum impacto sobre o sistema
internacional, quando atuam como blocos ou no interior de
organizações internacionais.
Naturalmente, não estamos aqui reduzindo a
dimensão e gravidade dos problemas de toda ordem que o país
enfrenta. A obtenção de bens privados por meio da
utilização de recursos públicos parece ser o combustível que
põe em movimento as engrenagens do sistema político. É
grande a promiscuidade entre políticos, burocratas e
empresas privadas. A economia, com moeda estável, não
consegue ir além taxas de crescimento medíocres. A
infraestrutura que deveria dar suporte à atividade econômica
está defasada. Grandes estruturas públicas proveem, com
pouca eficiência, serviços sociais universais, mas de baixa
qualidade. Nas cidades grandes, o trânsito é moroso, o
transporte deficiente e a segurança individual sempre
ameaçada. Os problemas ambientais, à espera de atenção, são
do tamanho do patrimônio de recursos naturais do país.
Mas, a dimensão dos logros socioeconômicos e da
estabilidade democrática alcançados no período pós-
autoritário não pode ser negada, nem minimizada. O país
mudou consistentemente para melhor (Arretche,2014).
Entretanto, as instituições políticas que
tornaram possíveis aqueles logros são vistas com
desconfiança e olhar crítico pelos formadores de opinião,
8
lideranças políticas e sociais e público de massas. As
opiniões do público de massas sobre a democracia brasileira
e suas instituições são examinadas a seguir.
Amor bandido: o público de massa e a democracia
Desde 1989, os brasileiros votam a cada dois
anos para escolher os chefes do Executivo e os membros do
Legislativo, nas três esferas da federação. Em um sistema de
voto obrigatório o comparecimento é maciço, situando-se
entre o mínimo de 78,5 % e o máximo de 86% dos votantes nas
oito eleições para cargos executivos e legislativos, entre
1989 e 2012.
Os brasileiros praticam a democracia eleitoral,
mas nem todos têm dela uma boa opinião. O Gráfico I, com
dados do Latinobarómetro, mostra que pouco menos da metade dos
entrevistados pensava, em 2013, que a democracia é
preferível a qualquer outra forma de governo.
Gráfico I
9
FONTE: LATINOBARÓMETRO, 2014
Na verdade, nos últimos dezessete anos, apenas em quatro
ocasiões os que consideravam a democracia preferível a
outras formas de governo chegaram a ser 50% ou mais dos
entrevistados. Nas, outras treze vezes, a maioria dos
entrevistados não manifestou apreço especial pelo sistema
democrático. Os resultados do Latinobarómetro são muito
semelhantes aos obtidos pela pesquisa do LAPOP, da
Universidade Vanderbilt. Em 2010, 53% dos brasileiros
entrevistados responderam positivamente à pergunta: “a
democracia tem alguns problemas, mas é melhor do que
qualquer outra forma de governo”. Os outros 47% ou eram
indiferentes ou preferiam um regime autoritário2.
O desapreço pela democracia não é
idiossincrasia nacional. Farta literatura, empiricamente
2 Baseada em diferentes pesquisas – Datafolha, ESEB-CESOP, CESOP-NUPPES – Meneguello (2013:95) encontrou valores diferentes e bem mais favoráveis à democracia. A porcentagem dos brasileiros que preferiam a democracia à ditadura ou eram indiferentes foi de 43,6%, em 1989; 57,7,%em 1990; 57,9%, em 1993; 59,1%, em 2002; e 64,8%, em 2006.
10
sustentada em sondagens de opinião, vem apontando que a
desafeição pela democracia tornou-se, desde pelo menos o
final dos anos 1980s, traço comum à maioria do países do
Ocidente rico, onde aparece associada à erosão da
identificação partidária, ao aumento da desconfiança nos
partidos, à elevação da volatilidade eleitoral -- e, em
alguns casos, à redução da participação eleitoral--, ao
crescimento da desconfiança com relação aos legislativos e
aos representantes eleitos e a impaciência com formas de
corrupção política toleradas até então (Maier:1994; Putnam &
Pharr: 2006, Dogan: 1995 ; Nye, Zelikow & King :1997,
Anderson & Guillory: 1997; Norris :1999, 2002; Dalton:1999;
Torcal:2003, Cain, Dalton, & Scarrow:2003).
Novas formas de sociabilidade e comunicação, a
multiplicação de fontes alternativas de informação, a
ascensão da videopolítica e a decadência das estruturas de
mobilização partidárias, o surgimento de cidadãos informados
e capazes de juízo mais severo sobre o funcionamento da
democracia, foram fatores mobilizados pelos estudiosos para
explicar o fenômeno do desencanto com a democracia
representativa, nos países de longa tradição de política
competitiva.
Se é verdade, que os brasileiros parecem
acompanhar uma tendência quase universal, não é menos
verdadeiro que o fazem com porcentagens de apoio à
democracia que nos aproximam, na América Latina, de países
11
onde a existência de sistemas políticos realmente
competitivos é fenômeno muito recente e, na maioria dos
casos, ainda pouco estabilizado: como Paraguai, Colômbia,
Panamá, Nicarágua e El Salvador. É o que podemos observar,
no Gráfico II, que compara os resultados para um grande
número de países latino-americanos.
Gráfico IIApoio à democracia na América Latina
2013
12
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%87%
62% 63%
73%
61%
49% 50%
60%52%
41%
56% 53%
37%
71%
49%44%
50% 49%
8%14%
10%15% 15%
19%
32%
15% 13%19% 16% 17% 16%
11%15% 14%
20% 18%
3%
18% 21%
9%17%
21%17% 18%
28% 30%
18% 21%
37%
13%
26% 27%20% 22%
A Democracia é Preferível
FONTE: LATINOBARÓMETRO, 2014
Se menos da metade dos brasileiros mostra
adesão incondicional à democracia é ainda menor a parcela
daqueles que veem positivamente os partidos e o Congresso.
Pesquisa feita pelo LAPOP, em 2010, revela que
os brasileiros não confiam nos partidos e no Congresso, duas
instituições centrais ao funcionamento do sistema
democrático. É que podemos ver na Tabela I.
Tabela I3
BRASILCONFIANÇA NAS INSTITUIÇÕES POLITICAS2010PARTIDOS CONGRESSONenhuma 30.46 22.42 13.99 10.33 19.29 17.34 14.53 16.55 12.21 16.36 4.59 8.9Muita 4.93 8.1FONTE: LAPOP, 2010
3 Na questão sobre confiança nas instituições, o entrevistado é solicitado a localizar sua opinião em uma escala que vai de 1, significando nenhuma confiança a 7 que corresponde a muita confiança. Não há legenda para os valores entre 2 e 6.
13
São significativas as porcentagens dos que
afirmam não ter nenhuma confiança em partidos e no
Congresso, bem como daqueles que revelam níveis baixos de
confiança (33,25% no caso dos partidos e 27,63 % para o
Congresso). Em outros termos, mais de 60% tem pouca ou
nenhuma confiança nos partidos e 50% manifestam o mesmo
distanciamento com relação ao Congresso.
A existência deste sentimento de distância com
relação aos partidos é corroborada por outra medida
frequentemente usada pelos analistas políticos: a
identificação partidária.
Samuels & Zucco (2013), utilizando pesquisas
realizadas pelo Instituto Datafolha, mostraram que, entre
1989 e 2010, a porcentagem dos brasileiros que afirmava
identificar-se com algum partido oscilou entre 50% e 40%,
com uma trajetória nítida de queda, devida à redução da
identificação com o PMDB, não compensada por aumento
importante da identificação com o PT até chegar ao teto de
25% e a manutenção, em níveis modestos – abaixo de 10% --
dos que se identificam com o PSDB. São esses, de resto, os
três únicos partidos, entre as mais de duas dezenas de
agremiações representadas no Congresso, a suscitar no
eleitor algum sentimento de proximidade. O Gráfico III,
trazido de Samuels & Zucco (2013) mostra com clareza a
redução do contingente de cidadãos que não se reconhecem em
nenhum partido4.
4 A mesm tendência já havia sido encontrada por Veiga (2009).
14
GRÁFICO III
GRÁFICO III
Evolução da Identificação partidária no Brasil
FONTE: Samuels & Zucco (2013) com dados de
DATAFOLHA
Em consequência, não é de espantar que não
sejam poucos, aqueles que acreditam que a democracia pode
funcionar sem partidos e sem Congresso. A tabela II compara
15
a posição dos brasileiros com a de cidadãos de outros países
latino-americanos.
Tabela II
América Latina
DemocraciaPartidos
eCongress
o% dos que pensam que democracia pode funcionar sem partidose sem Congresso
2013
SEM PARTIDOS
SEMCONGRESSO
México 45 38 MéxicoColômbia 43 32 ColômbiaParaguai 39 34 ParaguaiPanamá 38 37 PanamáPeru 36 35 PeruEl Salvador 34 30 El SalvadorBrasil 34 34 BrasilCosta Rica 34 34 Costa RicaNicarágua 32 29 NicaráguaEquador 32 32 EquadorGuatemala 32 28 GuatemalaBolívia 30 25 BolíviaHonduras 28 27 HondurasChile 25 20 ChileUruguai 23 17 UruguaiRep.Dominicana 18 20 Rep.DominicanaArgentina 17 11 ArgentinaVenezuela 14 14 VenezuelaAmérica Latina 31 27 América Latina FONTE: LATINOBARÓMETRO (2014)
Pouco mais de um terço dos brasileiros pensa
que a democracia pode prescindir de partidos e pode
funcionar sem o poder legislativo, opinião que coloca o país
acima da média da América Latina e, ainda uma vez, o situa
em um grupo de países, caracterizados, em sua maioria por
menor desenvolvimento econômico, reduzida experiência de
competição política democrática e por uma estória de
instabilidade política, domínio oligárquico e episódios de
16
guerra civil. É verdade que neste grupo figura também a
Costa Rica, país com impecável trajetória de estabilidade
democrática. É verdade também, que maioria significativa se
não valoriza, pelo menos acredita que partidos e congresso
são necessário à vida democrática. Mas, o contingente dos
que dispensam as duas instituições é bastante significativo.
O mesmo descrédito com relação aos partidos,
ao Congresso e aos políticos profissionais foi um componente
significativo das multitudinárias manifestações de rua, nas
principais cidades brasileiras, em junho de 2013, quando
participantes hostilizaram a presença de símbolos e
militantes partidários.
Esses dados não são importantes em si mesmo,
mas em razão do impacto que podem ter sobre a estabilidade e
o funcionamento do regime democrático. Discutimos a seguir
suas possíveis implicações.
Desafeição e futuro da democracia
Os cientistas políticos se dividem com relação
à interpretação do significado de manifestações expressas de
desafeição pela democracia e por suas instituições
basilares, como os partidos políticos e parlamentos. Alguns
interpretam os resultados como indicação de crise estrutural
da democracia devido à erosão da sua legitimidade, definida
como aceitação subjetiva de suas instituições pela massa dos
governados. As bases do sistema democrático estariam sendo
17
erodidas na medida em que aquele se apoie crescentemente em
cidadãos mais desiludidos e céticos. O abalo da crença
difundida e compartilhada na legitimidade das regras que
sustentam o regime o colocaria sobre alicerces frágeis e
instáveis.
Outros autores, como Norris (1999 e 2002),
Klingemann & Fuchs (1995) e Manin (2013) argumentam que
menos do que crise estaríamos em presença de uma
transformação nas relações entre os cidadãos e o sistema
político, uma verdadeira mutação democrática nos países
norte-ocidentais. Nas palavras de Manin, a democracia de
partidos teria dado lugar a outra forma de governo
representativo, a democracia de público. Essa transformação
teria sido ensejada por uma característica da democracia
representativa, subestimada pelos autores que profetizaram
sua crise estrutural: a flexibilidade e capacidade de
adaptação das instituições democráticas à existência de um
público mais informado, menos fiel aos partidos políticos e
menos dependente destes para formar opiniões e falar aos
governantes5.
Na verdade, muitos dos estudiosos que
enfatizaram a desafeição pela democracia, baseados em5 “ (...) o governo representativo é constitutivamente flexível. Reside aí a fonte de sua adaptabilidade e resiliência. O sistema é flexível porque alguns dos princípios que o organizam não são totalmente especificados, particularmente no que diz respeito à influência dos cidadãos sobre as políticas. Os princípios do governo representativo implicam que as preferências dos cidadãos devem ter alguma influência sobre as políticas. Todavia, esses princípios não determinam exatamente quanto peso os anseios dos cidadãos devem ter. A representação implica que os governos sejam responsivos aos anseios dos representados. Mas a responsividade admite graus, diferentemente do assentimento, por exemplo.” (Manin, 2013: 8)
18
sondagens da opinião do público de massas, tem evitado
estabelecer relação direta entre aquele sentimento e a
possibilidade de colapso do sistema democrático, deslocando
a discussão do âmbito da consolidação do regime para o
terreno da qualidade da democracia. Existe hoje uma
caudalosa produção no Brasil e no exterior sobre o tema (O
´Donnell, Vargas Cullel & Iazzetta, 2004; Diamond & Morlino,
2007; Landman, 2008; Moisés 2010; Morlino,2011, Levine &
Molina, 2011; Moisés & Meneguello,2013).
O deslocamento do foco em direção à qualidade
da democracia, entretanto, traz consigo desafios de monta
para o analista. São muitas as dimensões contidas na ideia
de qualidade do sistema democrático e é impossível enfrentar
a discussão sem referi-la a algum ideal normativo do que
seja boa democracia6. É verdade, como observa Sartori
(1987) que a análise da democracia sempre é feita a partir
de uma posição normativa implícita ou explicitada. Todavia,
é também verdade que as discussões feitas do ângulo da
qualidade introduzem um componente valorativo, que sendo
indispensável à retórica política e à construção de
identidades de agentes políticos, pode dificultar a
compreensão dos sistemas democráticos realmente existentes.6 Morlino (s/d:4) observa que a qualidade pode ser pensada no
plural e em termos de resultados, de conteúdos e de procedimentos. Edefine democracia de qualidade como aquela que “apresenta uma estruturainstitucional estável que assegura liberdade e igualdade aos cidadãospor meio do funcionamento legítimo e correto de suas instituições emecanismos”. Não está claro, na definição se estabilidade, legitimidadee correção são qualidades discretas e dicotômicas – existem ou nãoexistem – ou contínuas. De outra parte, Tampouco é claro comocaracterizar, em termos de qualidade, um sistema democrático real quandoas três qualidades não apontarem no mesmo sentido.
19
De toda forma, a discussão sobre a qualidade da
democracia contribuiu para dar maior sofisticação às
pesquisas de opinião, ao tratar de iluminar com mais nitidez
a natureza dos sentimentos de desconfiança política do
público nas democracias de massa. Assim, lastreada em rica
evidência empírica proporcionada por pesquisas feitas no
Brasil e em outros países da América Latina, Meneguello
(2013) distingue entre apoio ao regime democrático e
desconfiança com relação a suas instituições, especialmente
partidos políticos e Congresso7. Em outros termos, embora
relacionados, a crítica ao funcionamento das instituições
não se traduziria direta e inelutavelmente em rejeição ao
regime8.
Esses achados, ademais, têm implicações para a
discussão já existente sobre construção e reforma
institucionais. A discussão sobre qualidade da democracia
alimenta o debate sobre as regras que regulam o processo
eleitoral, a formação e atuação dos partidos, o
funcionamento do Congresso, as relações entre poderes da
República.
Mas, uma questão permanece sem resposta:
afinal, qual efeito das percepções negativas do público de
massa em relação às instituições sobre o futuro do regime
7 “Embora as instituições representativas ocupem um terreno menos articulado às noções de apoio ao regime democrático, a avaliação das instituições em geral, incluindo partidos e Congresso, tem papel primordial para o entendimento do desempenho do regime. As percepções sobre sua atuação, bem como da atuação do Estado por meio da execução dos serviços públicos, são as principais dimensões constitutivas da satisfação como o desempenho do sistema “(Meneguello, 2013: 114)8
20
democrático? Para os que consideram que a confiança nas
instituições é um lastro importante das democracias a
questão permanece: a longo prazo, é possível sustentar um
regime em bases tão frágeis? Moisés (2013) resume bem o
dilema:
“Em todos esses casos não há preferência por um regimeantidemocrátrico, mas a desconfiança dos cidadãos em relação às instituiçõespúblicas aponta para um paradoxo cujos efeitos para a continuidade dademocracia, em longo prazo, precisam ser mais bem conhecidos e avaliados. Érazoável supor que a democracia pode conviver indefinidamente com odescrédito dos cidadãos em normas, procedimentos e instituições que, pordefinição têm função de mediar a competição de interesses divergentes e, aomesmo tempo, promover a coordenação e a cooperação sociais necessárias aofuncionamento das sociedades complexas?” (O grifo é nosso).
A tensão apontada por Moisés (2013) é real, mas
a pergunta importante é sob quais condições o descrédito do
público de massas pode ameaçar a continuidade do regime.
Há décadas atrás, Juan Linz (1978), ao se
indagar sobre a inevitabilidade da queda das democracias na
América Latina, nos anos sessenta e setenta, ofereceu uma
resposta certeira: a vitória do autoritarismo longe de ser
inelutável, resultou de escolhas feitas por lideranças
políticas, em especial daquelas que faziam uma oposição
desleal ao regime democrático. Em outros termos, a presença
de lideranças dispostas a apostar em soluções não
democráticas constituiria o principal determinante do
colapso dos sistemas competitivos.
Na esteira de Linz, poderíamos responder a
pergunta de Moisés: a democracia pode conviver com o
descrédito de cidadãos em suas normas, procedimentos e
21
instituições enquanto não aparecerem lideranças políticas
dispostas a capitalizar a desconfiança dos cidadãos contra o
sistema.
Mas, por que o fariam? A experiência da curta
história do regime democrático, no último século, parece
mostrar que oposições desleais são mais prováveis -- e tem
mais possibilidade de êxito -- quando atores políticos de
peso passam a acreditar que seus interesses e objetivos não
tem chances críveis de serem considerados e de virem a ser
realizados por meio da competição democrática. Quando todos
os atores relevantes acreditam que tem oportunidade de
ganhos, aceitam as regras do jogo, e, em especial, acatam os
resultados eleitorais que lhes são desfavoráveis. Nestas
circunstâncias – e somente nelas– a democracia atinge um
estado de equilíbrio, do qual nenhum deles está disposto a
sair por sua conta e risco.
São muitos os arranjos institucionais que
possibilitam a permanência daquele equilíbrio virtuoso e a
extensa literatura sobre sistemas de governo, regras
eleitorais e sistemas partidários não logrou, até o momento,
recolher evidências empíricas capazes de sustentar a
superioridade de um sobre outros.
De toda forma, é razoável supor que sistemas
que facilitem a entrada de partidos na disputa eleitoral
deem menos ensejo ao surgimento de oposições desleais, do
22
que aqueles que tendem a reduzir a competição política e
estimular formas oligarquizadas de competição pelo poder.
No Brasil, as instituições estabelecidas no
período da democratização, cristalizadas na Constituição de
1988, e que dão forma ao chamado presidencialismo de
coalizão sem dúvida tem algo a ver com a desconfiança
revelada pelo público de massa e compartilhada pelos
formadores de opinião, em uma escala superior àquela
verificada em países vizinhos com níveis de modernização
equivalentes. Os partidos se multiplicam, abrindo espaço
para legendas que são balcões de negócio, e seu
financiamento elude, com frequência, os controles
existentes; governos de coalizão ampla tiram nitidez dos
compromissos programáticos9 e implicam negociações
complicadas na distribuição entre os partidos dos cargos de
governo relevantes; os parlamentares eleitos para o
Legislativo, por vezes, parecem girar em órbita própria,
alheios às preocupações dos cidadãos; são muito os caminhos
que permitem a promiscuidade entre interesses privados e
agentes públicos.
Nada disto é peculiaridade do sistema político
brasileiro, mas por razões que ainda não entendemos, parece
calar mais fundo no público de massa brasileiro do que nos
de outras democracias da região.
9 Em artigo recente, Melo (2014) argumenta que embora o presidencialismobrasileiro obrigue à formação de coalizões, seu tamanho e nitidez programática dependem de decisões do Presidente seu partido, responsáveis, em última instância, por “ coalizões oportunistas” que gerariam “cinismo cívico”.
23
Paradoxalmente, o que produz desconfiança entre
massas e formadores de opinião é, também, o que reduz os
incentivos para o surgimento de forças anti-regime – as
oposições desleais de que nos falava Linz --: um sistema que
praticamente não impõem barreiras à entrada de novos
contendores predispondo-os a jogar todas suas cartas na
competição democrática por votos.
Se isso é certo, medidas imaginadas para
aprimorar a democracia, que limitem a formação de partidos e
reduzam o jogo eleitoral a poucos jogadores poderão abrir
espaço para líderes políticos dispostos a correr por fora,
explorando o desencanto de parcela do público de massas com
os partidos, o Congresso e o próprio regime democrático.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, M.H.T. & OLIVEIRA, E.N., 2011. “Nuevas capas medias y política en Brasil”, Paramio, Ludolfo, ed. Clases medias y gobernabilidad en América Latina, Madrid: Editorial Pablo Inglesias.. ANDERSON, C. J & GUILLORY, 1997. “Political Institutions and ANDERSON, C. J. 1995. Blaming The Government: Citizens and The Economy in Five European Democracies. New York: M.E. Sharpe.
ARRETCHE, M., 2014. “Défict de representação ou falta de consensus mínimos: o que paralisa as políticas?, Interesse Nacional 7(26), Julho-Setembro, p.15-23,
BLENDON, R. J., BENSON, J. M, MORIN, R, ALTMAN, D. E. Altman, BRODIE, M.,BROSSARD, M. & JAMES, M.. 1997.
24
“Changing Attitudes in America.” In NYE,J.Jr, ZELIKOW, P.D. & KING, D. eds., Why People Don’tBRUCE, C.E.,DALTON, R. J. & SCARROW, S.E., ED. Democracytransformed? Expanding political opportunities in advanced industrialdemocracies. Oxford: Oxford University Press, 2003. DALTON, R J., 1999. “Political Support in Advanced Industrial Democracies.” In NORRIS, P., ed., Critical Citizens. Global Support for Democratic Governance. Oxford: Oxford University Press. DOGAN, M. “Erosion of Confidence in Advanced Democracies.” t, 32: 329. DOGAN, M. 1995.” Testing the Concepts of Legitimacy and Trust.” In CHEHABI, H.E. & STEPAN, A., eds., Politics, Society and Democracy: Comparative Studies.Essays in Honor of Juan J. Linz. Boulder, CO: Westview Press. FIGUEIREDO, A. C. ; LIMONGI, F., 1999.. Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas.
FIGUEIREDO, A. C. ; LIMONGI, F., 2008. Política orçamentária no presidencialismo de coalizão. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV. HUBER, E. & STEPHENS, J. 2012. Democracy and the Left: Social Policy in Contemporary Latin America, Chicago: university of Chicago Press.
KLINGEMANN, H-D. & FUCHS, D., ed. 1995. Citizens and the State. Oxford: Oxford University Press.
LANDMAN, T. 2008, Assessing the quality of democracy – an overviewof IDEA Framework, Sweden; IDEA.
LEITÃO, M., 2012. A Saga Brasileira: a Longa Luta de um povo porsua Moeda, Rio de Janeiro: Record.
LEVINE, D. & MOLINA, J.E., ED. 2011. The quality ofdemocracy in Latin America, Lynne Rienner.
LINZ,J. & STEPAN, A., ed, 1978, The breakdown ofdemocratic regimes, Baltimore: Johns Hopkins UniversityPress.Majoritarian Systems.” American Political Science Review, 91: 66–81. MELO, M. A, 2002. As reformas constitucionais no Brasil: instituições políticas e processo decisório. 1. ed. Rio de janeiro: Editora Revan. MELO, M. A., PEREIRA, C., 2013. . Making Brazil Work: Checking the president in a multiparty system. 1a.. ed. New York: Palgrave/MacMillan. .
MELO, M. A; MANOR, J. ; NGETHE, N.2012. Against the Odds: Politicians, Institutions and the Fight against Poverty. 1. ed. New York: Columbia University Press. MELO, M.A., 2014. “Anatomia do descontentamento”,Valor Econômico,
25
http://www.valor.com.br/politica/3645142/anatomia-do-descontentamento#ixzz39piT8z62 MENEGUELLO, R., 2013.”As bases de apoio ao regimedemocrático no Brasil” MOISÉS, J.A. & MENEGUELLO, R. ed.,2013. A Desconfiança Política e seus Impactos sobre a Qualidade daDemocracia, São Paulo: EDUSP, p.93-120. MESEGUER, C., 1998. “Sentimientos Antipartidistas en el Cono Sur: Un Estudio Exploratorio.” Latinoamérica Hoy, 18,March: 99–111. MOISÉS, J.A. & MENEGUELLO, R. ed., 2013. ADesconfiança Política e seus Impactos sobre a Qualidade da Democracia, SãoPaulo: EDUSP.
MOISÉS, J.A. 2010. Democracia e confiança - por que os cidadãosdesconfiam das instituições públicas, São Paulo:EDUSP.
MOLINA,C.G., Ed.2007. Universalismo Básico – Um Nueva PolíticaSocial para América Latina, Washington: BID.
MORLINO, L. 2011. Changes For Democracy. Actors,Structures, Processes. Oxford: Oxford University Press.
MORLINO, L. s/d, “Qualities of democracy – how toanalyze them”, paper,http://indicatorsinfo.pbworks.com/f/Morlino%20Qualities%20of%20Democracy.pd f.
MORLINO, L., DIAMOND, L., ed., 2005., Assessing the Quality ofDemocracy, A Journal of Democracy Book; Johns Hopkins UniversityPress, , pp. xliii, 284. NERI, M., 2012. 2012. A Nova classe média. O ladobrilhante da base da pirâmide, Rio de Janeiro: FGV-Saraiva. NORRIS, P. 1999a. “The Growth of Critical Citizens.” In NORRIS, P, ed Critical Citizens. Global Support for Democratic Governance. Oxford: Oxford University Press. NORRIS, P., 2002.. Democratic phoenix: reinventing political activism. Cambridge: Cambridge University Press. NYE, J. S., Jr. 1997. “Introduction: The Decline ofConfidence in Government.” In NYE,J.Jr, ZELIKOW, P. D. & KING, D., ED. Why People Don’t Trust Government. Cambridge, MA: Harvard University Press.
O´DONNELL, g., VARGAS CULLEL, IAZZETTA, ed. 2004. TheQuality of democracy: theory an applications, South Band: Notre DameUniversity Press.
PESSOA, S.A., 2011. “O contrato Social daredemocratização”, in SCHWARTZMAN, S. & BACHA, E., ed. ANova Agenda Social, Rio de Janeiro: LTC
SAMUELS, D. ZUCCO,C., 2013, “The Power of Partisanship in Brazil: Evidence from Survey Experiments” American Journal of Political Science 58 (1), 212-225 SANTOS, F. G. M. 2003. . O Poder Legislativo no Presidencialismo de Coalizão. Belo Horizonte -Rio de Janeiro: Editora UFMG - IUPERJ, 2003. SARTORI, G., 1987. A Teoria Democrática revisitada,Brasilia:UnB.
26
Satisfaction with Democracy: A Cross-National Analysis of Consensus and TORCAL, M,MONTERO, J. R., 2006. Political Disaffection in Contemporary Democracies: Social Capital, Institutions, and Politics, Routledge TORCAL, M. 2001. “La desafección en las nuevas democracias del sur de Europa y Latinoamerica.” Instituciones y Desarrollo, 8–9 (May): 229–280.Trust Government. Cambridge, MA: Harvard University Press. VEIGA, L., 2009. “Os partidos brasileiros na perspectiva dos eleitores: mudanças e continuidades na identificação partidária e na avaliação das principais legendas após 2002” Revista de Sociologia e Política. vol.17 no.33 Curitiba jun.http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0104-447820090002&lng=pt&nrm=iso