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DAVID WILLIAM APARECIDO RIBEIRO
DO ROSÁRIO AO PAISSANDU Vida, identidade e autorrepresentação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos de São Paulo após a abolição (São Paulo, 1888-1908)
Assis – SP
2009
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DO ROSÁRIO AO PAISSANDU Vida, identidade e autorrepresentação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos de São Paulo após a abolição (São Paulo, 1888-1908)
Assis – SP
2009
Relatório científico apresentado pelo bolsista
David William Aparecido Ribeiro à Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –
FAPESP, sob orientação da Profª. Drª. Lúcia
Helena Oliveira Silva. Processo 2008/07839-8.
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ÍNDICE
I . Apresentação 05
II . Parte I : Sociabilidades negras no pós-abolição paulistano 07
1. Abolição e República: os anseios população egressa da escravidão 07
O processo de integração à sociedade e os desafios para os ex-escravos 07
A República da promessa 11
“São Paulo explode” – a formação da vida urbana e a reconfiguração espacial 19
Resistência, estratégias de coexistência e espaços de sociabilidade 33
2. Os espaços de sociabilidade – as irmandades leigas formadas por negros 40
Catolicismo popular: evangelização nos períodos colonial e imperial 40
Celebrações da festa à morte 42
As irmandades negras e suas ações antes e após a abolição 49
3. “Cada um em seu lugar!” – a construção das narrativas sobre São Paulo 55
Por uma História Paulista 55
A construção das narrativas 58
A São Paulo dos memorialistas 65
4. O lugar da Irmandade do Rosário nas memórias de São Paulo 71
“Do Rosário...”: a antiga sede 71
O momento da desapropriação: ação e representação 73
“... ao Paissandu”: a construção da nova sede 76
5. Conclusões parciais 79
III . Parte II : Vida, identidade e autorrepresentação da Irmandade do Rosário 81
1. A formação de um território negro: o Largo do Rosário 81
Sob o signo de Nossa Senhora do Rosário 81
Os malungos e a construção da velha Igreja do Rosário 86
Expressões da religiosidade dos Homens Pretos 88
Territorialidade negra urbana em São Paulo: a Irmandade do Rosário 100
2. O lugar da Irmandade do Rosário na Belle Époque paulistana 104
A “marcha implacável do progresso” 104
Impasses no fim do século: um período conturbado 110
A Belle Époque e a Irmandade do Rosário 118
4
3. Do Rosário ao Paissandu: destruição e reconstrução da territorialidade negra 122
O fim do Largo do Rosário e de sua negritude 122
A reconstrução da vivência: a mudança para o Paissandu 130
Os fantasmas do passado e o “quase outra vez” 139
4. “Sujeitos de nossa história”: memória, identidade e autorrepresentação 144
Raul Joviano Amaral e Os Pretos do Rosário de São Paulo 144
A vida da Irmandade do Rosário: identidade e autorrepresentação 147
IV . Conclusões 150
V. Referências bibliográficas 155
5
I . APRESENTAÇÃO
Nosso projeto inicial propôs analisar o processo de rupturas e permanências da
vivência negra posterior à abolição da escravidão na cidade de São Paulo. Para tanto,
consideramos discutir o caso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos, existente desde princípios do século XVIII e que em 1903 se viu alijada de seu
espaço de sociabilidade – a Igreja e o Largo do Rosário, em consequência das reformas
urbanísticas da capital paulista, como parte do projeto modernizador empreendido pela
administração municipal.
Ressaltando as populações negra e pobre como sujeitos das políticas de
urbanização, consideramos as suas práticas de resistência e suas estratégias de
sobrevivência. A partir das fontes – crônicas e memórias de Antonio Egydio Martins,
Ernani Silva Bruno e Jorge Americano, analisaremos o discurso e a representação destas
populações e da formação da vida urbana paulista nos primeiros anos da República. Em
contraponto, estudaremos a autorrepresentação da Irmandade do Rosário, ou seja, o
discurso produzido por ela mesma e a construção de sua identidade, num período que foi
crucial para a sua subsistência e sua consolidação como um referencial da comunidade
negra paulistana.
A primeira parte contemplará as temáticas da Abolição da Escravidão e
Proclamação da República e suas implicações nos modos de vida e organização da
população africana e afrodescendente no Brasil; as reformas urbanísticas de caráter
civilizatório (a Belle Époque); a constituição de espaços de convivência das populações
negras na cidade de São Paulo durante o período de estudo (1888-1908) e a vida da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos durante esse ínterim.
Em relação às fontes, analisaremos os escritos – crônicas e/ou memórias de Antonio
Egydio Martins, Ernani Silva Bruno e Jorge Americano, especialmente no que dizem a
6
respeito da comunidade negra da capital paulista e da Irmandade do Rosário, bem como da
formação da vida social da cidade no período compreendido por nosso estudo. Nossa
preocupação na análise destas obras está na construção do discurso produzido sobre a
cidade de São Paulo, na escrita de sua História e na constituição de uma memória, isto
tendo em vista o lugar destinado à Irmandade do Rosário e aos modos de vida dos egressos
da escravidão. Consideraremos os momentos em que os autores escreveram, seus objetivos,
entre outros fatores decorrentes da publicação de suas obras.
Na segunda parte, analisaremos de que forma se deram as relações entre a confraria
e o universo das transformações urbanísticas paulistanas. Pretendemos, com isto,
compreender como se deu a construção da identidade do grupo após este evento. Além do
mais, avaliaremos como se articularam as representações da Irmandade do Rosário e as
formulações acerca da identidade “oficial” paulistana/paulista, sobretudo em relação aos
sujeitos que dela fariam parte e os desdobramentos destas.
7
PARTE I : SOCIABILIDADES NEGRAS NO PÓS-ABOLIÇÃO PAULISTANO
1. ABOLIÇÃO E REPÚBLICA : OS ANSEIOS DA POPULAÇÃO EGRESSA DA ESCRAVIDÃO
(...) a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre os seus ombros a responsabilidade de reeducar-se e transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo (FERNANDES, 1965, p. 5).
O processo de integração à sociedade e os desafios para os ex-escravos
O brasilianista George Andrews desenvolveu no início dos anos 1990 um estudo
que contempla os cem anos que se seguem à abolição da escravidão, sobretudo no que diz
respeito às relações étnico-raciais no Brasil nos diversos aspectos da vida em sociedade.
Dada a abrangência de sua pesquisa, é possível se ter uma visão ampla do período pós-
abolição, tendo por objetivo a explicação para as alterações das relações entre os brancos e
os negros na cidade de São Paulo, espaço marcado pela grande presença de descendentes
de imigrantes europeus.
São Paulo, ao lado de cidades como o Rio de Janeiro e também as norte-americanas
Chicago e Atlanta proporcionaram tanto aos negros quanto aos brancos a vivência em uma
sociedade menos rígida e mais fluida do que o campo, passado comum aos dois grupos
étnicos. Andrews afirma que este contexto de coexistência e de aparente igualdade de
condições na luta por empregos, salários, habitação, estudo contribuiu para uma segregação
racial informal tanto no sul do Brasil quanto no norte dos Estados Unidos, contrapondo-se à
segregação institucionalizada, presente no sul deste último país e na África do Sul (1998, p.
36).
Além disso, São Paulo – tanto a cidade quanto o estado – foram os que mais
sofreram os impactos da urbanização, da industrialização e do desenvolvimento do
capitalismo moderno, sendo um caso exemplar para o estudo das alterações da herança do
8
passado escravista e agrícola pelas novas condições advindas com o século XX (ANDREWS,
1998, p. 49).
Desde o início da colonização portuguesa, a região que hoje corresponde ao estado
de São Paulo possuía suas peculiaridades quando comparadas às outras regiões do Brasil
colonial. Tratava-se de uma região cujos colonos se preocupavam com a agricultura para a
subsistência e com as expedições em busca de ouro, diamante e índios, enquanto a região
correspondente ao Nordeste cultivava cada vez mais a cana-de-açúcar, principal produto
durante muito tempo. Além disso, a população escravizada africana era menor em São
Paulo, onde predominavam os indígenas.
Em fins do século XVIII , entretanto, a mão-de-obra africana e escrava se intensificou
naquele que até então era um núcleo colonial isolado. Com a expansão do café, a supressão
do tráfico transatlântico em 1850 e a crescente demanda pelo novo produto, levas de
escravos africanos foram trazidas para as regiões de São Paulo, Minas Gerais e Rio de
Janeiro, aumentando as populações negras nessas províncias (ANDREWS, 1998, p. 54-55).
Durante a segunda metade do século XIX , a instituição da escravidão encontrava-se
em franco declínio. O movimento pró-abolição crescente, as leis que aos poucos concediam
liberdades aos escravos, os focos de resistência como os quilombos e outros movimentos
de escravos, como as insurreições, rebeliões e crimes eram alguns dos sinais dos momentos
de agonia do regime escravista de trabalho no Brasil. Segundo Andrews, alguns dos
escravos estavam conscientes da crise da escravidão (1998, p. 66-70).
Inseridos no movimento abolicionista, como veremos adiante, encontram-se
também as irmandades, espaço propício não só para a disseminação dos ideais
abolicionistas como também para refúgio e auxílio moral e financeiro aos escravos que se
destinavam ao quilombo do Jabaquara, em Santos. Era o caso das Irmandades de Nossa
9
Senhora dos Remédios e a de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, articuladas
pelo líder do movimento dos caifazes: Antonio Bento (ANDREWS, 1998, p. 72).
Em 1888, a princesa regente Isabel assinou a Lei Áurea, mas dez anos depois, o
jornal Rebate, referiu-se à abolição como um fato provocado pelos próprios escravos, que
não queria mais ser escravizado, rebelando-se contra a lei que o fizera escravo. A lei de 13
de maio de 1888 “não foi mais do que a sanção legal – para que a autoridade pública não
fosse desacreditada – de um ato que já estava consumado pela revolta em massa dos
escravos...”. O paulistano Diário Popular, no dia seguinte à assinatura da lei, ousava dizer
que o poder executivo havia sancionado uma lei decretada pelo povo (ANDREWS, 1998, p.
74-75).
Segundo Emília Viotti da Costa, a abolição da escravidão não foi capaz de extinguir
todo um conjunto de valores de ordem econômica, social, cultural e psicológica. Os
ajustamentos ao novo estado de coisas foram lentos (1997, p. 13). É possível chegar a
conclusão que menos de um quarto dos ex-escravos permaneceu nas fazendas e logo após a
abolição, esta população livre era móvel, marcada pela instabilidade (COSTA, 1997, p. 509).
Tal instabilidade, aplicável ao caso dos libertos que apenas se mudavam de fazenda
era notável também na situação dos que migravam para as cidades, que nesse momento
começavam a se expandir. Os ex-escravos no cenário urbano não raramente passaram a
viver em “choças e casebres nos arredores das cidades, dando origem a uma população de
‘favelados’, sem ocupação definitiva”. Tinham dificuldade em se enquadrar nas atividades
que para muitos eram desconhecidas e viviam da caridade e de pequenos expedientes
(COSTA, 1997, p. 509).
Em contraposição, na obra História e Tradições da Cidade de São Paulo, de 1954, a
abolição da escravidão é lembrada por Bruno apenas como a causa para a mudança de
inúmeros fazendeiros para São Paulo, fato que acelerou ainda mais o ritmo das construções
10
na capital. As casas destes eram ainda mais suntuosas do que as edificadas nos anos
anteriores (1954, p. 930).
Um ano e meio após a abolição, é proclamada a República. As bases ideológicas
das novas elites no início do período republicano brasileiro são as correntes cientificistas, o
darwinismo social de Spencer, o monismo alemão e o positivismo do francês Auguste
Comte. O apoio econômico vinha do café, cultura em expansão no sudeste, decorrente da
crescente demanda por estimulantes a partir de sociedades estrangeiras que aumentavam o
ritmo de suas vidas com o trabalho intensificado. Os responsáveis pela cultura cafeeira
pretendiam por meio da república federalista assegurar o controle de seus próprios
rendimentos além de “usar de seu poder econômico para decidir os destinos da futura
ordem republicana” (SEVCENKO, 1998, p. 14).
Nos primeiros anos da República, no Rio de Janeiro, a população pouco inferior a
um milhão de habitantes composta em sua maioria por negros – ex-escravos, descendentes
ou migrantes de outras partes do país – habitava em antigos casarões e estavam à procura
de novas ocupações, principalmente nas atividades portuárias da capital federal. Os
casarões em que moravam dezenas de pessoas estavam em estado de calamidade,
extremamente precários e sem infraestrutura adequada. Às autoridades isto era uma ameaça
“à ordem, à segurança e à moralidade públicas”. Procurando conter tais ameaças, as
autoridades proibiram “rituais religiosos, cantorias e danças, associadas pelas
manifestações rítmicas com as tradições negras e, portanto, com a feitiçaria e a
imoralidade”. As escolas de capoeiras foram extintas pelo marechal Floriano Peixoto e os
seus mestres e praticantes foram perseguidos (SEVCENKO, 1998, p. 21).
Com o fim da escravidão, os homens e mulheres agora livres passaram a dividir um
espaço social em comum com outros grupos étnicos. Nos mais diversos lugares, da zona
urbana ou rural, os negros mesclaram-se com largas camadas da população que já estavam
11
miscigenadas. Aderiam dessa forma o modo de vida dos homens livres (WISSENBACH,
1998, p. 55).
Foi a conjuntura histórica do processo de desagregação do sistema escravista o que
acentuou a mestiçagem, principalmente entre os egressos da escravidão e os nacionais
livres e pobres. Múltiplas denominações surgem dessa realidade, especialmente nas
camadas socioeconomicamente menos favorecidas – o caipira, o caboclo, o sertanejo, o
cafuzo. Tinham em comum a característica de não se fixarem a um lugar por muito tempo –
mudar de ambiente sempre foi uma peculiaridade dos homens livres e pobres
(WISSENBACH, 1998, p. 55-57).
A República da promessa
Nossa República, passado o momento inicial de esperança de expansão democrática, consolidou-se sobre um mínimo de participação eleitoral, sobre a exclusão do movimento popular no governo. Consolidou-se sobre a vitória da ideologia liberal pré-democrática, darwinista, reforçadora do poder oligárquico (CARVALHO, 1987, p. 161).
O advento do regime republicano inicialmente desperta a simpatia dos ex-escravos
de Campinas, no interior de São Paulo, que se solidarizavam com aquela que viria como
“uma garantia para a classe dos homens de côr e que, sob a bandeira desse partido
patriótico [o republicano], devem desaparecer as distinções de classes”, complementando
que com o novo regime, o governo poria em “practica medidas relativas à instrucção
popular e educação dos libertos” (ANDREWS, 1998, p. 79).
Em contraponto, outros negros viam a República com desconfiança, pois era sabido
que os que estavam no poder eram os mesmos fazendeiros que mantiam o regime
escravista. Além disso, os libertos tinham grande simpatia com a “benevolência” da
monarquia, que havia libertado os filhos de mãe escrava (em 1871, com a Lei do Ventre
12
Livre), os maiores de sessenta anos (Lei dos Sexagenários, de 1886) e finalmente a toda a
população ainda cativa, em 1888 (ANDREWS, 1998, p. 79).
Numa carta enviada ao jornal Diário Popular, Aristides Lobo se refere ao povo que
via a proclamação da República como bestializado. Este propagandista da república
mostrava-se descontente com a forma como havia se dado a instauração do regime
republicano, que em vez de ter o povo como protagonista dos acontecimentos, os teve
como espectadores de uma parada militar.
A partir dessa constatação, José Murilo de Carvalho se interessa em buscar
compreender o fato de que apenas três dias após a proclamação da República um
observador “já tenha percebido e confessado o pecado original do novo regime” – a
ausência da participação da população (CARVALHO , 1987, p. 9).
Segundo Carvalho, a relação ente o cidadão e o Estado é uma “via de mão dupla,
embora não necessariamente equilibrada”, excetuando-se os regimes baseados na
repressão. A partir desta afirmação, a apatia do povo que não sabia o que estava
acontecendo no Rio de Janeiro em 15 de novembro de 1889 pode ser também a base para a
legitimação do novo sistema e necessária para a sua manutenção (1987, p. 11).
O momento de transição do Império para a República representa a primeira grande
transição política após a Independência. Não se tratava apenas de uma mudança no cenário
político: o regime republicano se vislumbrava como um sistema de governo, onde o povo
estaria no centro da atividade política. Seu modelo era a Revolução Francesa em sua
melhor tradição (CARVALHO , 1987, p. 11). A liberdade, a soberania popular, a igualdade, a
vontade geral, a fraternidade – estes eram os objetivos da República antes de sua
proclamação.
Entretanto, mesmo “proclamado sem a iniciativa popular, o novo regime despertaria
entre os excluídos do sistema anterior certo entusiasmo quanto às novas possibilidades de
13
participação” (CARVALHO , 1987, p. 12). Acreditava-se em uma nova era para as camadas
populares da sociedade brasileira, onde a participação política traria a inclusão inexistente
no regime monárquico.
A análise de José Murilo concentra-se no período inicial da consolidação da
República, período que vai até o final do governo de Rodrigues Alves (1902-1906),
momento em que segundo o autor já se encontram definidos os vitoriosos e os vencidos e
com isso determinados os rumos políticos e sociais tanto para a capital quanto para o
conjunto do país (CARVALHO , 1987, p. 15).
Devido a febre especulativa entre 1890 e 1891 o novo regime mais parecia uma
“república de banqueiros, onde a lei era enriquecer a todo custo com dinheiro de
especulação”. Em decorrência, a inflação atingia o brasileiro e o custo de vida subia,
agravado também pela imigração estrangeira, que “ampliava a oferta de mão-de-obra e
acirrava a luta pelos escassos empregos disponíveis” (CARVALHO , 1987, p. 20-21).
A situação econômica do país se agravaria nos anos seguintes, entrando em recessão
e sofrendo com a queda dos preços do principal – e quase único – produto nacional: o café.
Apenas no início do século XX , no fim do governo de Campos Sales, o país começa a sair
dessa crise econômica (CARVALHO , 1987, p. 21).
Agitações sacudiam a vida fluminense, ressonando por todo o país. Carvalho atribui
a animosidade do início do período republicano à grande expectativa posta no regime que
se prometia igualitário. O operariado procurava se organizar em partidos, promovia greves
tanto pela defesa do poder aquisitivo reduzido pela inflação quanto por motivos políticos.
Funcionários dos transportes paralisaram seus serviços, políticos monarquistas e
republicanos “assinavam manifestos, envolviam-se em conspirações, planejavam golpes”.
O presidente sofreu uma tentativa de assassinato em 1897 (CARVALHO , 1987, p. 22-23).
14
A República, preocupada em resolver os problemas por ela considerados cruciais
como “a raça, a formação de uma nação, a cidadania e a busca de um modelo civilizatório
europeu” (SCHWARCZ, 1987, p. 33) trouxe consigo um “tempo mais acelerado,
impulsionado por novos potenciais energéticos e tecnológicos” (SEVCENKO, 1998, p. 27).
Era necessário então acertar os ponteiros do Brasil com os do mundo, pois se
acreditava que estávamos imersos em um grande atraso, herdado do passado colonial e
imperial. O progresso era a finalidade capital e seu êxito uma certeza – a modernização
deveria vir e por ela pagar-se-ia qualquer valor. Este discurso transferiu-se à prática
transformado em opressão (SEVCENKO, 1998, p. 27). O processo de instauração do novo
regime se deu em meio a uma atmosfera de violência, euforia e ostentação (SEVCENKO,
1998, p. 32). Nas palavras de Sevcenko,
Essa euforia do progresso era ainda confirmada pelas realidades visíveis da urbanização, do crescimento econômico, da industrialização e do grande fluxo de imigrantes estrangeiros, reconfigurando o padrão demográfico e cultural do país (1998, p. 34).
O Rio de Janeiro do início da República encontrava-se assolado por uma série de
doenças contagiosas e outras provocadas pela falta de saneamento. Muitos dos estrangeiros
que se estabeleciam na capital da República acabavam falecendo das mais diversas
moléstias. Para resolver tais problemas, as autoridades da época conceberam um grande
plano, dividido em três dimensões, buscando modernizar o porto, que já não mais dava
conta da demanda, sanear a cidade e reformá-la. Para tanto, foram contratados para
executar tal operação o engenheiro Lauro Müller, o urbanista Pereira Passos e o médico
sanitarista Oswaldo Cruz (SEVCENKO, 1998, p. 22).
Instaurava-se então, na gestão do presidente Rodrigues Alves (1902-1906) uma
“ditadura”, batizada pelos populares de “bota-abaixo”. Os executores das reformas
voltavam-se contra os casarões da área central da cidade, onde habitava grande parte da
população pobre da época. Não foram tomadas providências no intuito de realocar os
15
despejados – a essa população sem alternativa restou reunir os parcos pertences e montar
com restos de madeira descartados no porto barracões grosseiros nos morros da cidade –
constituíam-se assim as favelas (SEVCENKO, 1998, p. 23).
Como diz José Murilo de Carvalho, a monarquia cai no auge de sua popularidade,
principalmente entre a população negra egressa da escravidão. Pedro II, a Princesa Isabel e
a Lei Áurea foram muito festejados até o fim do Império. Na comemoração do aniversário
do imperador em dezembro de 1888, o “Paço Imperial foi invadido por uma ‘turba imensa
de populares, homens de cor a maior parte’”, conforme o testemunho do republicano Raul
Pompeia. Em meio a essa multidão encontra-se D. Obá II d’África, a realeza das ruas do
Rio que se intitulava rei africano, indo ao encontro do “imperador de olhos azuis” (1987, p.
29).
Jorge Americano dedica em sua obra um capítulo especialmente a Narcisa, a criada
de sua família. A partir deste fato, podemos supor que sua relação com as empregadas era
amistosa. O capítulo não é simples. Narra a vida da ama desde que veio morar com sua
família, fazendo também alusões à sua vida pregressa. Era uma mulher que tinha “opiniões
próprias sobre religião” e considerava alguns sermões “histórias de padre”. Tinha um ar
sempre zangado, relembra Americano.
Narcisa possuía um oratório em seu quarto e “dentro dele a gravura de Tiradentes,
com cabelos compridos e corda no pescoço”. Na parede, havia também um retrato do
imperador D. Pedro II com as suas longas barbas brancas. Não se conformava com o fato de
que ele parecia mais velho do que o seu pai, retratado como um moço (AMERICANO, 2004,
p. 39-41).
Hoje se sabe que a imagem do segundo imperador do Brasil foi construída no
intuito de inspirar responsabilidade e confiança nos amplos setores da população1. Quanto a
1 A esse respeito, ver SCHWARCZ, Lilia M. As barbas do Imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
16
Tiradentes, a semelhança de sua imagem à de Jesus atingia os corações e as mentes dos
brasileiros que neste “herói” e na figura de Nossa Senhora Aparecida viam os maiores
símbolos da comunhão nacional2.
Os empregados domésticos são uma categoria de adultos que, pela “simplicidade
habitual de suas concepções” aproximam-se das crianças. Estas se ligam por meio dos
criados ao mundo dos adultos e rompem o silêncio dos pais, especialmente sobre tudo
aquilo que não consideram adequado aos seus filhos. Halbwachs relata sua própria
experiência, dizendo que as coisas que pôde compreender a respeito de acontecimentos
históricos em meados de 1870, soube a partir do o que havia sido contado pela criada de
sua família. Seus pais, no entanto, desaprovavam tal relacionamento. Suas compreensões
de criança, na idade adulta, mesclam-se os conhecimentos adquiridos pelo autor com as
suas primeiras impressões sobre os anos que antecederam seu nascimento (2006, p. 83-84).
Diante desse quadro, é compreensível a reação dos egressos da escravidão ao
advento da República. A Guarda Negra de José do Patrocínio havia enfrentado diversos
incidentes com os propagandistas do regime que se pretendia instalar. O fato é que a
República não conseguiu a adesão de amplos setores da população negra durante sua fase
inicial (CARVALHO , 1987, p. 30).
Além dessa relação de afetividade com a monarquia, a população negra se via
concretamente ameaçada pela jovem República. Essa
prevenção republicana contra pobres e negros manifestou-se pela perseguição movida por Sampaio Ferraz contra os capoeiras, na luta contra os bicheiros, na destruição, pelo prefeito florianista Barata Ribeiro, do mais famoso cortiço do Rio, a Cabeça de Porco, em 1892 (CARVALHO , 1987, p. 30).
Por volta do período da Revolta da Vacina (1904), durante uma visita à Casa de
Detenção da capital federal, João do Rio constatou que a maioria dos presos – homens e
2 Esta reflexão faz parte do estudo de José Murilo de CARVALHO sobre a formação do imaginário republicano brasileiro em A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 141,
17
mulheres que haviam praticado toda a sorte de delitos – nutria verdadeira antipatia pelo
regime republicano e era “apóstolo da restauração” do Império. Para Carvalho, a República
abriu um abismo entre a sua instituição e a população pobre (1987, p. 31).
Como dissemos, o que acontecia na capital, reverberava em todos os cantos do país.
Nesse contexto conturbado e violento do Rio de Janeiro, sobretudo nos dez primeiros anos
da República, buscou-se indiretamente neutralizar as forças da capital e aquelas que nela
estavam agitadas para dar força aos estados, procurando estabelecer a paz, necessária para a
consolidação do Estado. Reúnem-se então as oligarquias ao redor de um arranjo que as
garantia o domínio local e a participação no poder nacional, conforme o poderio de cada
uma delas (CARVALHO , 1987, p. 32).
A política de Campos Sales consagrada em 1900 procurava organizar “um grande
partido de governo com sustentação nas oligarquias estaduais”. Segundo o presidente, era
dos estados que haveria de se governar a República, passando por cima de toda sorte de
multidões e tumultos que assolavam a capital (CARVALHO , 1987, p. 33).
Aos poucos, além do grosso da população, intelectuais, operários, a liderança
socialista destes, jacobinos, entre outros, foram frustrados em seu objetivo de participação
política e tiveram de se inserir no sistema, variando o grau de dificuldade de um grupo para
outro. À maioria da população, a imprensa era o veículo recorrente de participação, ao
menos na voz (CARVALHO , 1987, p. 37).
A Constituição Republicana de 1891 pouco acrescentou à anterior, de 1824,
sobretudo no que diz respeito aos direitos civis (CARVALHO , 1987, p. 43). Para o exercício
do voto, mantinha-se a exigência da alfabetização, privilégio de uma camada mínima da
população – e que excluía os negros, sobretudo os egressos da escravidão.
A noção de cidadania contida na Constituição de 1891 e no ideário nacional do
período era baseada na doutrina positivista de Comte. Esta cidadania “não incluía direitos
18
políticos, assim como não aceitava os partidos e a própria democracia representativa”.
Entendiam-se como direitos apenas os sociais e os civis, sendo estes “a educação primária e
a proteção à família e ao trabalhador”. Não existiam cidadãos ativos, todos eram inativos,
esperando pela “ação iluminada do Estado”, guiada pelos seguidores de Comte
(CARVALHO , 1987, p. 54).
Ao observar as reivindicações populares durante a Primeira República, vê-se que ao
Estado se pedia a resolução de problemas que não exigiam grandes feitos e que
correspondiam ao básico da estrutura, tais como a segurança, o transporte, o arruamento, a
limpeza pública. Mesmo assim, o Estado era uma instância a qual se recorria quando se
tinha necessidade, e era alheio à participação do cidadão, que acabava sendo como um
súdito, isto é, objeto da ação estatal, não podendo interferir nela (CARVALHO , 1987, p. 146).
Segundo Carvalho, a discussão acerca do conceito de cidadania durante a República
Velha revela duas faces principais e opostas. De um lado, uma cidadania liberal, centrada
na ação individual e outra integrativa, comunitária, baseada na visão positivista e
rousseauniana. Para o autor, portanto, na prática política da população brasileira se verifica
a “ausência da ética individualista associativa”, pois nos momentos em que havia o espírito
associativo, “seja nas irmandades religiosas, seja nas organizações operárias, ele se
concretizava no espírito comunitário”. As festas, tanto as religiosas quanto as profanas
possuíam este mesmo “aspecto integrativo de solidariedade vertical” (1987, p. 151-152).
Esses espaços de sociabilidade eram também de participação social, o que não se
dava na República que compreendia todos os espaços e setores da sociedade brasileira, isto
é, os lugares em que se concretizava o espírito associativo comunitário eram pequenas
repúblicas.
O liberalismo, que dominava a cena política estatal, excluía essas estruturas
comunitárias, que não condiziam com o modelo contratual centrado no indivíduo.
19
Ironicamente, a identidade coletiva se constituiu a partir das “repúblicas”, algumas antes
vítimas da discriminação e da perseguição:
nelas que se aproximaram o povo e a classe média, foi nelas que se desenhou o rosto real da cidade [do Rio de Janeiro], longe das preocupações com a imagem que se devia apresentar à Europa. (...). Negros livres, ex-escravos, imigrantes, proletários e classe média encontraram aos poucos um terreno comum de autorreconhecimento que não lhes era propiciado pela política (CARVALHO , 1987, p. 163).
A monarquia, concluindo, associava-se à ideia de liberdade e a República com a de
escravidão (seus líderes eram os fazendeiros escravistas de antes). Alguns dos
abolicionistas, como Luiz Gama e José do Patrocínio desvincularam-se do movimento
republicano do qual faziam parte para se tornarem antirrepublicanos. Brancos eram
associados à República e os negros à monarquia, como mostra o jornal A Província de São
Paulo, ainda no ano de 1889 (ANDREWS, 1998, p. 80-81). Segundo Andrews,
A República representava o esforço dos fazendeiros para conter e reverter as consequências políticas, sociais e econômicas dessa revolução [a abolição da escravidão e seu reflexo na agricultura]. Por isso se tornaria um amargo desapontamento para muitos de seus defensores negros (1998, p. 90).
George Andrews diz que a República veio para tornar sólido o domínio dos
cafeicultores que em seguida empreenderiam a europeização do Brasil, unidos a
intelectuais e políticos, num projeto que deveria substituir a herança sociocultural negra e
colonial pela herança branca, europeia e civilizada. Concluindo seu raciocínio, afirma que
em nenhum outro lugar do país se sentiram mais os reflexos da empresa civilizatória do que
São Paulo, visto que mais da metade dos imigrantes europeus teve como destino o estado
(1998, p. 91).
“São Paulo explode” – a formação da vida urbana e a reconfiguração espacial
De 1868 em diante a vida social da província de São Paulo recebera, com effeito, um sopro novo e vivificante, que creando-lhe aspirações amplas e ardentes, despertando-lhe a necessidade de progressos ainda mal entrevistos e
20
pressentidos, foi pouco a pouco transformando brilhantemente as suas condições economicas, imprimindo em sua physionomia os traços que hoje a distinguem, e que a caracterisam como uma communhão social, que progride a olhos vistos, á feição dos paizes mais ricos e mais civilisados do mundo 3.
Concomitante às reformas no Rio de Janeiro, a reforma urbanística da cidade de
São Paulo possuía os mesmos princípios norteadores baseados na intervenção
governamental nos espaços públicos e privados. Mesmo a capital paulista tendo um núcleo
urbano bastante reduzido até meados de 1890, novas áreas urbanizadas foram abertas,
sempre tendo em vista o zoneamento social e a disciplina dos modos de construir e de
habitar. O ambiente permitiu que surgisse “uma fisionomia e uma fisiologia ao gosto do
excludente sanitarismo social em voga nas mentes das elites republicanas, que buscava
livrar as cidades de suas ‘patologias’ coloniais e imperiais” (MARINS, 1998, p. 171).
Antes disso, na segunda metade do século XIX , criava-se a palavra urbanismo, que
continha em si a cristalização do conceito de urbano e uma nova abordagem da cidade, tida
como um objeto. Este discurso pretendeu constituir-se como uma ciência e formou
modelos, onde o urbanismo é uma aplicação prática (CHOAY, 1994, p. 13).
Françoise Choay procura enumerar as contribuições da História ao método
urbanístico. Segundo ela, a História define o espaço urbano, permitindo ao Urbanismo
propor conceitos como “de espaço de contato, de espaço teatral, de espaço de comunicação
e, posteriormente, de espaço de conexão”. Estes conceitos foram utilizados na França em
relação às configurações da cidade em diferentes momentos históricos, isto é, o espaço
urbano visto em sua historicidade (1994, p. 22).
A cidade e o seu espaço também podem ser apreendidos de formas diferentes pelos
grupos sociais que nela habitam em um momento específico, ou seja, há a coexistência de
3 EGYDIO, Paulo. A Província de São Paulo em 1888: ensaio histórico-político. São Paulo, 1889. p. 52, 90, apud MORSE, 1970, p. 209.
21
apreensões. O não-conhecimento dessas coexistências é uma das falhas do planejamento
urbanístico (CHOAY, 1994, p. 23).
Raquel Rolnik em sua dissertação de mestrado trata especialmente das
transformações de São Paulo a partir da década de 1870, momento que é como uma
segunda fundação da capital paulista. O café, as ferrovias, a urbanização, a industrialização
alteram profundamente o cotidiano da até então pequena cidade. Antes disso, São Paulo era
apenas uma passagem, poucos ficavam no “acanhado burgo do século XIX ”.
Quem permanecia eram os escravos, que embora não fossem relativamente muitos,
comparando-se por exemplo com Salvador, Recife ou São Luís, representavam um terço do
total da população paulistana. Na cidade, suas ocupações iam desde a limpeza das latrinas à
diária tarefa de buscar água nos chafarizes que estavam em diversos pontos da cidade.
Além dos escravos de ganho – usados como carregadores ou artesãos e ainda na
prostituição.
Para Rolnik, dois grandes grupos faziam parte da sociedade paulistana durante o
período escravista: os homens livres, proprietários de escravos e os próprios escravos. Fora
dessa bipolaridade, existem os que não possuíam lugar – aqueles que eram os socialmente
desclassificados: os caipiras e os vagabundos. Este homem que é livre e pobre não estava
em São Paulo, por ela apenas passava, e marcava a sua fisionomia com a sua passagem.
Tropeiros, sitiantes e outros homens e mulheres que ainda não faziam parte do mundo
paulistano (1981, p. 6-7).
O caipira, que ainda não era parte da incipiente urbe paulistana, une-se ao negro
após a radical transformação de São Paulo. As mudanças chegam com a “marcha do café”
– vêm as ferrovias, a abolição da escravidão, a imigração em massa de europeus e a
proclamação da República, eventos que marcam a capital paulista, o estado e o país.
22
O crescimento da cidade de São Paulo, nas palavras do cronista Antonio Egydio
Martins, que escreve no auge da urbanização paulistana (início da década de 1910), só foi
possível porque os que possuíam chácaras nos bairros de Santa Ifigênia, Bom Retiro, Brás,
Cambuci, Consolação e Liberdade ordenaram a abertura de ruas, avenidas, alamedas e
largos, fazendo neles “suntuosos palacetes e bonitos prédios”. Notaremos como são
recorrentes em suas obras a associação entre os fatos da vida paulistana com os “grandes
nomes” (2003, p. 229).
Ao escrever a trajetória da cidade, Martins recorre aos documentos, trazidos muitos
deles na íntegra e pouco discutidos, atitude que o aproxima da escrita histórica de seu
período, onde as fontes, sobretudo as oficiais, traziam a verdade sobre os fatos. Para
Halbwachs, as percepções de quem recupera memórias são representações daquilo que foi
visto, vivenciado. A explicação destes reflexos está no momento em que se produzem, e
não em outro tempo, no caso, o passado (2006, p. 60). Martins não teve contato com as
novas construções apenas nos papéis, estas se desenrolaram enquanto vivia. No momento
em que escreve, os grandes nomes de São Paulo erguiam seus “suntuosos” palacetes, que
deixavam a São Paulo antiga para trás.
Com essas alterações, o trabalho livre, que era uma novidade, também tem o seu
impacto sobre as relações sociais no início da República. Egressos da escravidão e os não-
classificados socialmente (homens livres e pobres), ou, no caso de São Paulo, os “caipiras”,
não faziam parte da mão-de-obra desejada. Negros e caipiras eram vistos como indolentes,
nômades, força de trabalho desperdiçada, estritamente ligados à sobrevivência, ociosos,
indisciplinados, além de dados aos maus hábitos do fumo, da dança e da bebida. Em suma,
o antimodelo do trabalhador (ROLNIK , 1981, p. 11).
Existindo um antimodelo, o seu espelho é o modelo. O modelo era o imigrante
europeu, que veio subsidiado pelo governo brasileiro e sua política imigrantista que
23
buscava suprir a mão-de-obra escrava em vias de extinção e também introduzir o elemento
branco civilizador no intuito de elevar o nível cultural e social do brasileiro (AZEVEDO,
1987).
Os imigrantes chegam e em São Paulo ficam, ou para ela vêm posteriormente
(ROLNIK, 1981, p. 17), buscando a ascensão social, seu projeto de vida (BERNARDO, 2007),
após experiências mal-logradas no interior do estado/província (SCHWARCZ, 1987, p. 50).
Na capital, o destino destes homens e mulheres europeus é, na maioria dos casos, a fábrica.
São Paulo é um “ponto privilegiado para a implantação de indústrias”, especialmente por se
tratar de uma confluência de ferrovias e de populações (ROLNIK , 1981, p. 17).
Embora tenha sido sinônimo de ascensão social e econômica, a cidade de São Paulo
não era a mesma para todos os que nela tentavam a sorte. Os libertos que vinham das
fazendas após a abolição moravam em casebres miseráveis, “trabalhando mediante salários
ínfimos em serviços como a coleta de lixo, que os brancos consideravam indignos”. Para os
que tinham se oposto à emancipação dos escravos, eram estes egressos que engrossavam a
lista de vagabundos, alcoólatras e criminosos. Por outro lado, paladinos do liberalismo
negavam que eram os libertos da escravidão e outros nacionais os mendicantes. Um trecho
do jornal Diário Popular, de 30 de abril de 1892 afirmava:
Raros, muitos raros, são os mendigos pretos que se encontraram nesta cidade. E quando isso acontece não há que duvidar que são verdadeiros infelizes que gastaram a mocidade e as forças num trabalho nunca pago e se vêm hoje sem arrimo. (...) [Os mendigos] são todos estrangeiros e estrangeiros que não se inutilizaram aqui, estrangeiros que vieram de seus paizes chamados pela fama de nossa generosidade e que vieram dar uma nota negra à nossa vida activa com o quadro triste de suas deformidades” (apud MORSE, 1970, p. 242).
Espacialmente, a vida industrial da cidade de São Paulo aos poucos se configurava
da seguinte maneira: próximas às estações ferroviárias se estabeleciam as fábricas –
tecelagens, cervejarias, metalúrgicas, de fósforos, de sabão, velas, entre outros produtos.
24
Nesses pontos, ficavam onde podiam receber facilmente a matéria-prima e escoar sua
produção, por meio dessas estações. Ao redor, encontrava-se o chamado “cinturão caipira”,
lugar de olarias e cerâmicas, serrarias, pedreiras e portos de extração de areia, produzindo
os materiais que alimentavam a febre das construções do perímetro urbano paulistano
(ROLNIK, 1981, p. 20).
São Paulo, no âmbito urbano e povoado, é um “espaço em transformação”. A
cidade aos poucos toma nova forma. As chácaras, sítios e as terras devolutas são
paulatinamente loteadas e ocupadas. Especulação imobiliária, venda de “localizações”,
circulação de mercadorias, moeda e indivíduos – tudo é parte da cidade em transformação,
nas palavras de Rolnik,
São Paulo se espalha pelos arredores, se densifica em alguns pontos num configurar cujo desenho é puro movimento. Esta geografia mutante, em seu definir e redefinir funções, usos e localizações, delineia uma história, onde é possível se detectar mudanças sutis, bruscas e permanências. São inscrições territoriais que se superpõem, se emaranham, se confundem, diferenciam e se delimitam, se interpenetram ou se opõem configurando os desenhos do social (1981, p. 21).
A vida urbana da cidade de São Paulo não está se alterando apenas em seus modos
de viver e de pensar, de trabalhar e de conviver. O espaço, desenhado pelo social, é como
um objeto vivo, movimentando-se de forma incessante. Trata-se de um produto que está
associado ao homem e dele recebe significação. O espaço é um “campo de significados,
permanentemente visíveis”.
Como uma cidade em tensão e em transformação, São Paulo é o cenário das “lutas
urbanas”. Estas se dão no espaço e por ele – confrontavam-se os diferentes projetos de
cidade, com suas diferentes inscrições territoriais, de acordo com os grupos que os
concebiam (ROLNIK, 1981, p. 22).
Devido o relevo da capital paulista, duas configurações espaciais – e sociais, se
opõem – são as várzeas (do Carmo, do Tamanduateí, do Tietê) e as colinas. As várzeas são
25
os espaços que nos períodos chuvosos se alagam e que marcavam os limites da São Paulo
de antes dos anos 1870. Nestas áreas se instalaram as estações de parada e as primeiras
indústrias. Estas regiões têm em comum a característica dos baixos preços, e é esse um dos
motivos que as tornaram próprias para a instalação dos bairros operários. Brás, Luz e Bom
Retiro são exemplos de bairros contíguos ao centro e que seguiram esta lógica. Os distantes
que se formaram a partir das fábricas e da proximidade com as estações foram o Ipiranga, a
Vila Prudente, Vila Mariana, nos sentidos sudeste e sul e Água Branca e Lapa, em direção
oeste.
Nesse momento de constituição de novos bairros, os antigos também passavam por
mudanças. As elites paulistanas – cafeicultores, industriais, bacharéis, entre outros, aos
poucos migravam do Triângulo Central (XV de novembro, Direita e São Bento) e de suas
chácaras para a colina que estava à frente, onde estão os bairros de Santa Ifigênia e
República, nos arredores da praça de mesmo nome. Forma-se assim o bairro dos Campos
Elíseos, cujo nome refere-se ao cartão postal da capital francesa, bairro que posteriormente
se vê encurralado pela Barra Funda e pelo Bom Retiro operários e pela Santa Ifigênia, que
aos poucos se encortiçava, obrigando os ricos habitantes a se transferirem para outras
regiões da cidade (ROLNIK, 1981, p. 28).
Para essas elites, dividir espaço com casas térreas, intimamente ligadas à população
negra evocava um aspecto de rudeza que remetia ao passado sertanista da florescente
metrópole e era o horror dos ascendentes cafeicultores e empresários paulistas
republicanos. Para estes sujeitos, que fizeram três presidentes consecutivos após a morte de
Floriano Peixoto, eram inadmissíveis as precárias condições de salubridade das habitações
paulistanas (MARINS, 1998, p. 172).
Após o boom da imigração europeia na última década do século XIX a população da
capital paulista sofreu uma mudança drástica, sincronizada com os acontecimentos que
26
agitaram a sociedade brasileira desde 1888. Após 1890, a população da cidade de São
Paulo quadruplicou. As condições de moradia dos imigrantes europeus, bem como as dos
egressos da escravidão que se dirigiram para a capital eram bastante precárias. Dezenas de
pessoas habitavam o mesmo ambiente – os cortiços, onde a salubridade e a higiene não
existiam (MARINS, 1998, p. 172-173).
Além das habitações – as vilas – operárias, os cortiços, que são habitações coletivas
também se proliferam em locais específicos, como o Bom Retiro, próximo ao centro, em
direção leste, seguindo a linha férrea da Santos-Jundiaí (São Paulo Railway), nos bairros do
Brás, Mooca e Belenzinho (ROLNIK, 1981, p. 25).
Para as regiões mais distantes da área em urbanização foram transferidos os
estabelecimentos que causavam ameaça à salubridade, tais como hospitais de isolamento,
asilos, institutos disciplinares, matadouros e cemitérios. A doença e a morte não deveriam
fazer parte das regiões onde estava a maioria da população “saudável”. As “emanações
nocivas” e seus efeitos tinham de estar distantes das aglomerações populacionais (ROLNIK,
1981, p. 26).
No Bexiga, onde antes se encontrava o matadouro municipal, viviam também
escravos fugitivos. Com a abolição da escravidão, puderam sair de sua condição
clandestina. Permanecendo neste espaço, atraem negros vindos de outros locais e
caracterizam-no como um dos territórios negros da capital. O Bexiga também se torna
reduto do imigrantes do sul da Itália, especialmente aqueles que não foram incorporados
pela mão-de-obra fabril.
O bairro atraiu então, além destes grupos, aquilo que compunha o estilo de vida
malvisto e desqualificado pelas elites paulistanas da época, como carroceiros, tripeiros e
biscateiros, cantores e músicos, vagabundos do sul italiano que coabitavam com
27
“lavadeiras, prostitutas e domésticas, carregadores, lixeiros” e a marginalidade das
populações negra e mestiça.
Os bairros que eram compostos pelas classes populares tinham sempre em comum a
característica da falta de saneamento e de condições salubres de vida, sendo regiões
alagadiças ou pantanosas. Nos bairros altos, as elites (ROLNIK, 1981, p. 26): a Avenida
Paulista, inaugurada em dezembro de 1891, onde se constroem os palacetes, fica em um
dos pontos mais altos da cidade de São Paulo. Segundo Raquel Rolnik, o fato de se buscar
os lugares altos está associado ao afastamento do mau cheiro, da vizinhança indesejável e a
possibilidade de “contaminação” presentes nas regiões baixas e “mal-habitadas” (1981, p.
28). Pouco tempo depois surgem os primeiros bairros-jardins, acentuando a exclusão social
provocada pelas reformas urbanísticas. Estes bairros, próximos à Avenida Paulista
tornaram-se o endereço das camadas superiores da sociedade (MARINS, 1998, p. 180).
Uma das maiores diferenças entre os bairros da “aristocracia” e os bairros populares
é a infraestrutura. Os primeiros tinham bonde à porta, iluminação à gás ou elétrica (ainda
novidade), redes de abastecimento de água e coleta de esgoto. O que hoje é serviço
essencial era privilégio desses bairros “aristocráticos”, onde o poder público habita. Este
poder então representado pelo prefeito Antonio Prado, que “pretende intervir intensamente
na cidade: começa a transferir mercados e alargar ruas centrais, imagina grandes reformas
capazes de figurar a cidade como uma bela, civilizada e progressiva cidade europeia”
(ROLNIK, 1981, p. 28).
O processo urbanizador – e civilizador – delimita fronteiras internas, revaloriza a
região central e muda a periferia de lugar, lugares distantes em que surgem novos
territórios negros, como a Casa Verde e do bairro da Barra Funda. O centro é alvo desse
processo de forma intensa. Populações e atividades são obrigadas a se realocar devido a
demolições, desapropriações, medidas proibitivas. Desde o comércio ambulante à
28
prostituição, o que era visto como degradado e insalubre era retirado do centro, limpando
este ambiente que deveria ser cartão postal, delimitando a zona civilizada e a “zona
decaída” (ROLNIK , 1981, p. 33).
Quanto às habitações, existem dois modelos que merecem destaque e que se
encontram em dois extremos: são os palacetes dos bairros aristocráticos e os cortiços das
regiões próximas ou do centro. Os palacetes eram territórios familiares e divididos em
microrregiões hierarquizadas conforme sua importância no todo e em seu caráter público
ou privado. Neste ambiente apenas entram indivíduos previamente selecionados. As
edículas existentes nestas habitações, nas palavras de Rolnik, são substitutas das extintas
senzalas. As empregadas domésticas, recorrentemente negras, isolam-se da casa e
restringem-se à região próxima das cozinhas, das despensas e dos quintais (1981, p. 50).
Os cortiços, como dissemos, são habitações coletivas com condições precárias ou
inexistentes de salubridade. Território onde impera a “desordem” e “onde não vigora a lei
do ‘cada um e cada coisa em seu devido lugar’: casa lata-de-lixo” e por isso
veementemente atacadas pelas autoridades locais, sendo inúmeras vezes “caso de polícia”.
São por excelência as habitações dos vadios e a contra-imagem dos palacetes,
especialmente quando as edificações são vizinhas (ROLNIK, 1981, p. 56).
Os moradores desses domicílios são também os imigrantes europeus recém-
chegados e que estavam ingressando no trabalho das fábricas, além de negros e mestiços,
de ocupações frequentemente inferiorizadas, tais como o serviço doméstico e o comércio
ambulante. Ainda residiam nesses ambientes “prostitutas, criminosos e vadios”. Em suma,
eram habitações atacadas porque reuniam as condições para o desenvolvimento de toda a
sorte de pragas, sobretudo a violência e a imoralidade desmesuradas. (ROLNIK , 1981, p.
59).
29
Era mister que as “forças vivas do trabalho” estivessem bem organizadas e
distribuídas, tendo os limites territoriais de cada grupo claramente definidos. Cada grupo
possuía o seu lugar, pobres e ricos, bons e maus trabalhadores. Lugares perniciosos e
promíscuos como os cortiços deveriam estar sob constante vigilância e controle. Os modos
de habitação estavam hierarquicamente postos: cortiços, porões e similares são o patamar
inferior. Vilas operárias ou particulares ou ligadas às fábricas são as intermediárias. Os
palacetes estavam no topo. Disciplinar o trabalhador era um dos objetivos indiretos da ação
urbanística empreendida em meados do século XX (ROLNIK, 1981, p. 63-64).
Desde 1886 São Paulo possuía um Código de Posturas Municipal, composto por
318 artigos que regulamentavam a vida urbana. Determinavam as regras para a construção
civil, condenando os cortiços, e também dispunham sobre os hábitos que eram
condenáveis, ameaçando com multas e prisões (ROLNIK , 1981, p. 105-106). Houve uma
remodelação do Serviço Sanitário em 1892 e uma edição do Código Sanitário em 1894.
Este último proibia a instalação de novos cortiços. As normas de 1896 e 1906
reaparelhavam os dispositivos fiscalizadores. Lentamente se padronizavam os espaços
domésticos, em nome de uma denominada “saúde pública”. (MARINS, 1998, p. 173-174).
Além do objetivo disciplinar, as reformas urbanísticas empreendidas no início do
século XX tinham como meta medicar a cidade, vista como um corpo doente. Diagnosticada
a enfermidade, receitam-se os remédios. Acreditava-se que os elementos que
possibilitavam a disseminação das epidemias, como a febre amarela, estavam associados às
condições do meio e aos hábitos de vida. Rios, pântanos, os “hábitos porcos” das classes
populares eram os responsáveis pelo alastramento das doenças. Ou seja, ultrapassa-se o
meio físico, chegando ao meio social (ROLNIK , 1981, p. 95-97).
A lógica do urbanismo paulistano do período naquele começo de século era a de um
grandioso plano de melhoramentos. Demandavam-se “altos investimentos em
30
desapropriações, demolições e construções”, sobretudo durante a prefeitura de Antonio
Prado (1899-1911). As ideias basilares destes empreendimentos eram a beleza, a fluidez do
trânsito, a ampla limpeza – sobretudo da área central, das “atividades e pessoas sujas”, a
europeização, visível na modernidade e na prosperidade materializadas nos melhoramentos,
além do enriquecimento proveniente da especulação imobiliária.
As obras iam desde pequenas intervenções, como calçamento, infraestrutura,
arborização, alargamento de algumas ruas à demolição e transferência de mercados e a
remodelação de praças, que causaram o deslocamento de populações que habitavam as
áreas centrais (ROLNIK, 1981, p. 115). Não teria se construído a Praça Antonio Prado,
aquela que leva o nome deste prefeito que provocou a modernização de São Paulo se a
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e a sua Irmandade, desde 1725
naquele local, não fossem removidos.
Segundo Ernani Silva Bruno, foi somente quando Antonio Prado assume a
prefeitura em 1899 na ocasião em que se cria o cargo de prefeito municipal, se fez algo em
favor dos largos e das praças. Este administrador procurou fazer algo no intuito de retificar
o traçado dos largos e cuidar de sua arborização, além de colocar árvores – que não sejam
incômodas, nas ruas. Foi este homem também o responsável pelo alargamento do Largo do
Rosário, “que foi batizado com o seu nome” e que anos depois se tornou “o coração da
cidade”.
Nesse ponto se reuniam todos os homens elegantes da capital e por ali passavam
todas as linhas de bondes, além de ser o local preferido para o estabelecimento das
confeitarias de luxo (BRUNO, 1954, p. 1003; 1156). Além da alusão ao antigo nome, Bruno
não faz referência ao que havia antes no mesmo lugar – a Igreja dos Homens Pretos. Esta já
se encontrava no passado.
31
Esse “esquecimento” de Bruno é um mecanismo do qual dispõe para manter a
coerência de seu texto. O fato de não mencionar o que havia no mesmo local em tempos
pregressos está ligado a uma “memória coletiva organizada e que resume a imagem que
uma sociedade majoritária (...) deseja passar e impor” (POLLAK , 1989, p. 8). Além disso, a
linguagem possui uma materialidade própria e significativa (ORLANDI , 1999, p. 18-19). O
conhecimento produzido a partir do texto, quando não relacionado a obras que diferem
dele, é de que o lugar está ligado às confeitarias de luxo e que antes destas, nada existia.
Segundo Raquel Rolnik, foram estas reformas que possibilitaram a construção de
um novo centro para a cidade de São Paulo – um “centro burguês”, composto por “ruas
largas, fachadas uniformemente neoclássicas, que seria território exclusivo das classes
dirigentes: seu espaço de trabalho, diversões; comemorações cívicas e religiosas”. Até
então, o centro era um espaço heterogêneo, com edifícios que iam de bancos a cortiços, do
comércio fino e mercados de gêneros alimentícios, lugar para as senhoras da “alta
sociedade” e para as prostitutas. (1981, p. 115). Apenas no final do mandato do primeiro
prefeito de São Paulo, entre 1910 e 1911, que projetos monumentais para uma efetiva
transformação do centro disputaram qual seria posto em prática. O vencedor foi o do
francês Bouvard.
Ao escrever Formação Histórica de São Paulo na década de 1970, o historiador
Richard Morse analisa as obras do primeiro prefeito da capital criticando-o, pois ele
pouco mais deixou que alguns monumentos isolados, tais como o novo mercado, ou o Teatro Municipal, de imitação e pretensiosos. O governo da cidade não orientava o crescimento de São Paulo, mas apenas podia embelezá-lo com timidez e falta de imaginação (1970, p. 317).
Complementa sua argumentação com a declaração do engenheiro Victor da Silva
Freire, um dos auxiliares de Prado e que também havia sido proponente de um dos
grandiosos planos de melhoramentos de São Paulo. Segundo Freire, as reformas do prefeito
paulistano estavam apenas “nivelando, revestindo, arborisando as ruas da cidade, creando
32
jardins e corrigindo os traçados de algumas das ruas da parte antiga, resolvendo apenas
as questões do momento porque os meios não davam para mais 4”.
Doente, o menino Jorge Americano perde o sono e põe-se a interpretar os ruídos
que podia ouvir de sua casa, na Rua dos Andradas, no bairro dos Campos Elíseos. Bondes,
apitos de locomotivas, sirenes de fábricas – e o barulho das construções: “há dois meses,
eram os carroções descarregando o material. Hoje é o martelamento do madeirame. Daqui a
dois meses, será a cantoria dos pintores”. Porém, Americano faz uma ressalva – antes do
fim desta construção, “haverá a construção da frente” e após esta, ainda virão “uma
demolição e uma construção”. Estes ruídos, no entanto, se confundem com o canto das
lavadeiras e os pregões nas ruas (AMERICANO, 2004, p. 49).
Certamente o intelectual paulistano que escreve em fins da década de 1950 tem
conhecimento do que acontecia em sua cidade quando era uma criança. É de ciência do
autor que a cidade de São Paulo constantemente ouvia os ruídos das incessantes
construções e demolições, como disse Ernani Bruno, a Pauliceia era uma cidade provisória
nos primeiros anos dos novecentos (1954, p. 912). Na idade adulta, as compreensões sobre
a história baseiam-se mais naquilo que se viveu quando criança do que com o aprendido da
história escrita. É nessa fase também que novas percepções sobre o mundo e os
conhecimentos adquiridos causarão uma “reconstrução do passado com a ajuda de dados
tomados de empréstimo ao presente e preparados por outras reconstruções” (HALBWACHS,
2006, p. 90-91).
Das remodelações urbanas Americano não fala muito. Em um de seus capítulos, diz
de alguns dos logradouros que já haviam sido alargados e/ou retificados até o ano de 1908,
ano em que ingressa na Faculdade de Direito. Santa Ifigênia, XV de Novembro, Praça da
4 FREIRE, Victor da Silva. “Melhoramentos de S. Paulo”. In: Revista Politécnica VI, 33 fev.-mar. 1911, p. 92, apud MORSE, 1970, p. 317.
33
Sé, além da Praça Antonio Prado, recém-criada, ampliada cerca de “oito metros com a
demolição da Igreja do Rosário, mais ou menos onde está o City Bank” (2004, p. 95).
Como se nota, a Igreja foi substituída por um banco estrangeiro. Ao falar com um
amigo, este se entusiasma com o que o autor chama de progresso e propõe uma série de
remodelações, que incluem uma demolição radical de numerosos edifícios e a construção
de mais avenidas largas. O autor, em tom de chiste, diz não adiantar conversar com este
sujeito, pois este se enlouquece com o progresso (AMERICANO, 2004, p. 96).
Resistência, estratégias de coexistência e espaços de sociabilidade
Desde o período do domínio colonial português os negros escravizados no Brasil
organizavam-se em associações. No universo destas organizações, existiam aquelas que
estavam à margem da lei, como a capoeira e o candomblé e as que tinham a sua imagem
ligada à da Igreja Católica – este é o caso das irmandades. Estas eram abertas, públicas e
toleradas pela sociedade de modo geral. Em comum, havia o objetivo: “satisfazer as
necessidades culturais, religiosas, econômicas e humanas” de uma população que vivia sob
um regime de trabalho extenuante que era o da escravidão.
Algumas dessas necessidades, como diz o brasilianista George Andrews, não foram
atendidas com a abolição, porém, abriram-se novas possibilidades de organização e em
condições que diferiam àquelas dos tempos pregressos, cada uma com seu grau de
liberdade. As irmandades negras, no entanto, são casos exemplares de associações que
permaneceram intactas após 1888 (1998, p. 218).
Em São Paulo duas irmandades são consideradas mais importantes do ponto de
vista de Andrews. São elas a Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios, fundada em 1836
e participante ativa do movimento abolicionista na capital, por meio de Antonio Bento e
dos caifazes; e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, ereta em
1711. Esta última, mesmo não participando efetivamente da campanha antiescravista,
34
“emergiu (...) a público no início da década de 1900, quando seus membros se envolveram
em uma batalha legal com a prefeitura” (1998, p. 219), batalha esta que discutiremos no
decorrer deste trabalho.
Além das irmandades, organizações que serviram – e ainda servem – de espaço para
manifestações culturais de matriz africana, existiram também os clubes sociais, recreativos,
carnavalescos ou esportivos, como o clube social Kosmos, de 1908, que se autointitulava
“uma nação em miniatura”, rejeitava a República e invocava, ainda que de forma implícita,
a monarquia (ANDREWS, 1998, p. 221).
Em seu estudo, Carlos José Ferreira dos Santos (2008) analisa a presença dos
nacionais pobres na cidade de São Paulo da virada do século XIX para o XX, momento
marcado pelo início da industrialização, pela chegada dos imigrantes europeus, pela
transformação do espaço urbano. Santos busca demonstrar por meio do estudo das
fotografias e de outras fontes as formas de viver de uma população que era desqualificada
pelo discurso das elites da capital paulista, cidade que se pretendia europeia.
As palavras de ordem da administração municipal eram a civilização e o progresso,
a modernização e a europeização, palavras que se associam no momento das reformas
urbanísticas à “especialização dos espaços” e também à exclusão daqueles elementos que
não condiziam com a urbe que se desejava construir (SANTOS, 2008, p. 73).
A população pobre paulistana percebeu, interagiu e vivenciou as transformações
urbanísticas de diversas formas, mesmo parecendo invisíveis as suas sensações aos olhos
dos memorialistas, viajantes e fotógrafos. O fato de permanecerem em seus locais e de
coexistirem com as remodelações, de estarem lado a lado com os elementos “europeus” do
mundo urbano paulistano demonstra que dia a dia as experiências foram vividas, “de forma
variada e dinâmica, incorporando, rejeitando, influenciando e sendo influenciados por esse
processo” (SANTOS, 2008, p. 82).
35
As reformas urbanas não pouparam gastos, e os elementos indesejáveis foram, ainda
que indiretamente, expulsos dos locais onde se concentravam. Os três pontos de São Paulo
mais frequentados – ou habitados – pelos nacionais pobres (negros, mestiços, caipiras,
entre outros) eram a Várzea do Carmo (correspondente ao atual Parque D. Pedro II), o
Largo do Rosário (atual Praça Antonio Prado) e o sul da Sé (região entre a Catedral da Sé e
o bairro da Liberdade) (SANTOS, 2008, p. 83).
As negras lavadeiras do Tamanduateí são elementos característicos da São Paulo do
passado. As obras que analisamos registram a presença destas mulheres. O cronista
Antonio Egydio Martins relata o incômodo que causava a elas a presença de homens –
professores da Faculdade de Direito, comerciantes do Triângulo, integrantes do “alto
funcionalismo público”, que ficavam costumeiramente na Ponte do Mercado nos fins de
tarde. As mulheres evitavam passar pela ponte enquanto aqueles homens ali estivessem
(2003, p. 199).
A descrição sobre os hábitos das lavadeiras em Americano não difere muito dos
outros autores e é retomada no estudo Santos (2008). O autor de São Paulo naquele tempo
descreve o hábito destas senhoras e acrescenta, aparentemente com nostalgia, que o
costume foi suprimido quando a administração municipal resolveu aterrar a Várzea do
Carmo (2004, p. 131).
O Largo do Rosário, lugar onde estava sediada a Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos desde meados do século XVIII era uma das saídas da rua do
comércio elegante da capital – a Rua da Imperatriz (SANTOS, 2008, p. 119). Esta rua depois
passou a se chamar XV de Novembro e era um dos lados do chamado Triângulo, composto
também pelas ruas Direita e São Bento, o coração comercial de São Paulo.
Analisando uma fotografia da Igreja do Rosário tomada a partir da Rua XV de
Novembro, Santos chama a atenção para a existência de ambulantes em frente ao templo. O
36
comércio e a praça frequentados pela população negra paulistana estavam ao lado das ruas
que eram visitadas por quem procurava pela elegância (2008, p. 122). O autor chama a
atenção para a rua enquanto um espaço alternativo à população pobre. Nelas, estes sujeitos,
após as procissões, realizavam os seus batuques, congadas, caiapós, sambas – promovidos
pela Irmandade dos Homens Pretos (SANTOS, 2008, 123).
Quando fala dos “tipos populares”, o autor de São Paulo Antigo menciona detalhes
que vão desde a habitação – pavimentos térreos de sobrados da região central, de
proprietários que não são os comerciantes, como no caso de Nhá Maria Café, até seus
hábitos. “D. Maria de tal”, como diz o cronista, sem saber o sobrenome da quitandeira,
tinha uma freguesia bastante numerosa, mas nunca deixava faltar o “apreciado e bem feito
cuscuz” (MARTINS, 2003, p. 198). Este é um dos raros momentos de sua vasta obra em que
se pode sugerir algum laço afetivo entre o autor e a pessoa de quem se fala, sendo esta da
camada pobre da população. D. Maria era sogra do porteiro da repartição de Estatística do
Arquivo do Estado, onde Antonio Egydio era oficial.
Um dos pontos descritos por Carlos José Ferreira dos Santos (2008) é a Rua das
Casinhas, local onde se estabeleciam, segundo Martins as “quitandeiras de verduras,
legumes, frutas, leite, aves e ovos”. O comércio ao qual acorriam os paulistanos “desde o
amanhecer” foi transferido em 1890 para dois lugares – o Mercado de São João e o da Rua
Vinte e Cinco de Março.
Neste logradouro, diz Antonio Egydio, permaneceu apenas no ramo de comércio de
alimentos a Madame Bresser, senhora que possuía uma “grande chácara” no Brás e que no
momento era residente de um sobrado da rua onde trabalhava. Além dela, “algumas outras
quitandeiras, em pequeno número” continuavam a vender seus víveres no corredor da
referida rua (2003, p. 200). Embora o destaque seja para a provavelmente abastada senhora,
37
as “outras quitandeiras”, desalojadas, permaneciam com suas atividades, mesmo que na
rua.
No segundo volume, de 1912, o autor retoma a vivência das quitandeiras da Rua das
Casinhas, desta vez citando o motivo pelo qual as comerciantes de gêneros alimentícios
foram retiradas de seu local de trabalho. Como é sabido, a partir da leitura de Santos (2008)
e Manzoni (2004), o então presidente da Câmara, Antonio da Silva Prado, apontou para
inconveniência gerada pelas quitandeiras e carroceiros, que atrapalham a fluidez do trânsito
na região próxima ao Triângulo.
Nas palavras de Martins, houve um “grande clamor” no “seio da população” que
levou A Província de São Paulo a combater a deliberação da administração municipal em
fins da década de 1870, voltando tudo ao antigo estado (2003, p. 296). Porém, como vimos,
em 1890 o agora prefeito Antonio Prado transferiu as quitandeiras para os mercados.
A resistência às alterações da feição paulistana estava nos “velhos pardieiros” e de
algumas “pequenas casas antigas de porta e janela” na região central, mesmo tendo suas
existências sofrendo os protestos dos mais preocupados com a nova estética da metrópole
que surgia. Nos bairros proletários, diferentemente do restante da cidade, construíam-se
casas com pouco ou nenhum conforto (BRUNO, 1954, p. 919). O que nos chama a atenção
neste trecho é a utilização dos adjetivos “velhos” e “antigas”, cuja utilização situa
temporalmente aquelas construções, diferenciando-as da nova São Paulo.
Em se tratando de uma obra que rememora o cotidiano de Jorge Americano e dos
seus, diversos aspectos, que do ponto de vista de outros memorialistas pareceram
insignificantes, foram recordados pelo autor. Ao recordar-se das lojas de roupas do centro
da cidade, nota-se uma crítica aos que escrevem sobre os tempos pregressos. Esta pode ser
talvez uma alusão a outros escritores, contemporâneos de Americano, que por ocasião dos
400 anos da cidade de São Paulo publicaram as suas reminiscências.
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Segundo o autor de São Paulo naquele tempo, muitos dos que escreveram, quase
sempre omitiram a presença dos “menos favorecidos”, que são apenas recordados enquanto
“gaiatos, boêmios ou tipos populares” e por este motivo inclui as pessoas que compravam
roupas em locais que não faziam parte das elegantes lojas do Triângulo. Além destes, havia
os que usavam roupas de segunda mão, compradas ou dadas, ou ainda os que as recebiam
como esmola (AMERICANO, 2004, p. 63-64).
Nas obras de Antonio Egydio Martins e de Ernani Bruno, tais características,
criticadas por Americano, são frequentes. Os “tipos populares” são evocados por ambos e
os modos de vida da população socioeconomicamente menos favorecida são apresentados
apenas em alguns aspectos. Americano não é um exemplo de quem se dedicou a essa
população, mas considerando o período em que escreveu, sua característica é diferenciada.
No período posterior à abolição, os modos de vida e as estratégias de coexistência
da população egressa da escravidão basearam-se nas origens – as “nações africanas” e a
partir disso, teceram-se os “vínculos de sociabilidade fundamentais para a reorganização
dos libertos nas diferentes situações sociais pelas quais optaram ou às quais foram
compelidos”. Mesmo com a desestruturação do regime escravista, as expressões culturais
da população negra permaneceram (WISSENBACH, 1998, p. 87). Como diz também Santos,
os ofícios, ou trabalhos nas ruas e praças da cidade de São Paulo, bem como as manifestações culturais e a ação ‘marginal’ oferecem ricas informações no sentido de prosseguir na tentativa de discutir aspectos dessa capacidade de utilizar espaços, onde os considerados desqualificados não deveriam ser os atores, ou no máximo, ser apenas coadjuvantes (2008, p. 138).
As cidades, ainda durante a vigência da escravidão, exerceram um poder de atração
sobre a população cativa e liberta. Segundo Wissenbach, esse fascínio, entre outros fatores,
era causado pela existência de “aglomerações constituídas por tais segmentos sempre
dispostas a abrigar os recém-chegados” – são os “territórios negros”. Estes territórios, nas
palavras da autora, são marcados pelos “laços sociais, estruturas de parentesco e expressões
39
culturais singulares”. A extensão deles variava de uma cidade para outra, tendo em vista a
proporção de homens negros na população, porém, o que deve ser levado em conta é que
nesses lugares, no momento em que se deu a abolição, os ex-escravos eram capazes de
estabelecer ligações com as experiências pregressas e dar sentido à sua reorganização
social (1998, p. 99-100).
Os padrões de organização e de sociabilidade das camadas populares, onde se
encontravam os egressos da escravidão, são peculiares. Nas palavras de Maria Cristina
Wissenbach, estes sujeitos “foram obrigados a forjar dimensões de uma privacidade muitas
vezes improvisada nos espaços do possível, mas quase sempre tenazmente constituída”.
É possível notar permanências de vivências sociais do longo tempo da escravidão,
como as “estruturas familiares e de parentesco étnico-religioso, laços de uma sociabilidade
informal” e tudo aquilo que se relaciona à história de luta cotidiana tanto dos escravos
quanto dos homens livres e pobres e também da resistência à coisificação característica do
escravismo. Essas permanências fazem parte das estratégias de coexistência perante as
discriminações do período posterior à abolição, que em vez de integrar o ex-escravo ao
todo da sociedade propunha que o que não se adequasse ao projeto modernizador das elites
do início da República fosse excluído (WISSENBACH, 1998, p. 129).
As associações negras tinham como atividades principais a recreação e o lazer, com
exceção do caso das irmandades. Mesmo estas agremiações tendo surgido como forma de
combate à discriminação racial, esta não se deu de modo ativo. Seus descontentamentos
com a situação do negro na sociedade brasileira foram evidenciados de diversas maneiras,
porém, não houve, ao menos aparentemente, “qualquer esforço coletivo para protestar,
reduzir ou eliminar esses males” (ANDREWS, 1998, p. 222).
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2. OS ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE – AS IRMANDADES LEIGAS FORMADAS POR NEGROS
Ao participar dessas associações [as irmandades], os negros poderiam reconhecer um significado para suas vidas, na medida em que estas estimulavam a solidariedade, possibilitavam o culto aos mortos, garantiam um enterro aos seus membros, auxiliavam materialmente os irmãos mais necessitados, compravam de uma forma cooperativista cartas de alforria e realizavam as grandiosas festas coletivas (QUINTÃO, 2002, p. 103).
Catolicismo popular: evangelização nos períodos colonial e imperial
A diáspora forçada dos africanos os levou a diversas partes não só da América
como também da Europa. Antes de aportarem no Novo Mundo, alguns foram levados a
Portugal e também às primeiras ilhas produtoras de açúcar. Devido a uma característica
marcante do domínio colonial lusitano, os escravizados vindos da África foram
introduzidos no cristianismo – esta uma forma da Coroa portuguesa legitimar sua
dominação sobre os povos e terras recém-descobertos. A presença africana em Portugal
embora diminuta foi o suficiente para que estes construíssem novas formas de
sociabilidade, mesclando para tanto elementos das culturas africana e portuguesa (SOUZA,
2002, p. 159).
Desde o século XVI existem registros de festividades promovidas por esses africanos
que viviam em Portugal e estas eram muitas vezes perseguidas por autoridades locais.
Algumas vezes, quando de caráter religioso, estas festas eram permitidas. Era lícito que
“celebrassem a Virgem Maria vestidos à sua moda, com danças e ritmos africanos
executados até dentro das igrejas” – a denominação de Maria festejada pelos negros
africanos é a de Nossa Senhora do Rosário, invocação esta que já os reunia em irmandades
desde meados de 1490 (SOUZA, 2002, p. 160).
A devoção da oração do rosário de Nossa Senhora foi disseminada durante a Idade
Média pelos dominicanos e ao longo do tempo passou a ser frequentemente associada à
luta contra o paganismo. A crença também era de que o rosário levava os pedidos do crente
41
diretamente a Deus, sem o recurso de intermediários, sendo assim mais rapidamente
atendidos. Segundo Marina de Mello e Souza, esse atributo quase mágico da oração do
rosário foi identificado pelos negros africanos com outros objetos da religiosidade africana.
A exterioridade do culto sobrepunha os conceitos teóricos da fé. Nossa Senhora do Rosário
e sua oração foram relacionados a elementos das práticas religiosas vindas da África, não
em essência, mas pela aparência externa (2002, p. 161).
Souza diz que a dissolução dos laços familiares e de parentesco causada pelo tráfico
forçou os escravizados a forjarem novos vínculos com outras pessoas. Reuniram-se então
em grupos de mesma origem étnica ou ainda de regiões vizinhas – desta forma encontraram
uma maneira de recriar as afinidades perdidas pela escravidão. As confrarias, neste aspecto,
simbolizam uma espécie de parentesco étnico. É neste contexto que se cria o conceito de
“parente de nação”, um parentesco simbólico no intuito de reconstruir o pacto sanguíneo e
cultural quebrado pelo escravismo (2002, p. 181-182).
O batismo forçado dos escravos embarcados na África e o não-aprofundamento
destes na fé que agora deveriam confessar foi o primeiro passo de um processo de
conversão que teria como expressão posterior as “irmandades de homens pretos” que se
proliferaram pelas Américas espanhola e portuguesa, sendo que nesta última tiveram maior
importância, reunidas sob a proteção de algum santo de preferência dos negros, escolhido
pelos mais diversos motivos: entre eles, e o mais comum, a cor da pele (SOUZA, 2002, p.
183).
Era no espaço dessas irmandades em que principalmente os negros buscavam
resolver questões ligadas ao cotidiano. Por meio da religiosidade de caráter prático e
imediatista do período colonial apelava-se aos santos para que as necessidades fossem
atendidas e o consolo alcançado (SOUZA, 2002, p. 184).
42
A implantação do catolicismo tradicional no Brasil aconteceu durante a colonização
portuguesa os aspectos principais eram o seu caráter leigo, social e familiar. Leigo porque
as associações religiosas, como as irmandades, eram coordenadas por leigos. Social e
familiar porque existia uma relação próxima entre a vida religiosa, a social e a familiar. O
centro da vida social colonial era a religião. As festas e outras manifestações eram uma
forma de “reunião social” (QUINTÃO, 2002, p. 37).
Celebrações da festa à morte
Durante esse período, as irmandades eram autônomas. Autogeriam-se por meio de
suas Mesas Administrativas. As mais destacadas eram as Irmandades de Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos, Entre os negros também existia a devoção a santos como São
Benedito, Santa Ifigênia e Santo Elesbão, estes todos negros.
No espaço das festas se realizavam as congadas, contendo elementos da cultura
africana, como a coroação do rei Congo, conforme diz a autora,
a realização das festas religiosas traduzia a preocupação da Igreja em atrair os africanos e seus descendentes. Por isso, aceitavam os seus costumes desde que pudessem adaptar-se ao catolicismo, recebendo uma nova interpretação e significado. É o caso da tradição africana da sucessão hereditária dos reis, substituída nas irmandades pelo sistema eletivo (QUINTÃO, 2002, p. 39).
As festas desempenhavam um papel importante, porque por meio delas as
irmandades podiam demonstrar “seu poder e o seu brilho”. Reunindo-se em torno da
imagem do santo patrono e competiam entre si, “cada uma procurando tornar a sua festa
mais luxuosa e exuberante” (QUINTÃO, 2002, p. 31).
Preocupando-nos com a forma como o autor diz e não com o significado das coisas
que são ditas (ORLANDI, 1999, p. 17), observamos que as descrições das festas por Antonio
Egydio são uma sucessão de fatos, nomes e lugares. Seguindo esta fórmula, Martins narra
43
as experiências das procissões mais afamadas e pomposas, de seu ponto de vista,
destacando a responsabilidade pelo êxito de cada uma delas.
O cronista também relaciona as procissões com a legislação municipal a respeito de
suas realizações (MARTINS, 2003, p. 72). O que nos chama a atenção é o fato de que as
procissões são sempre de um tempo passado, nunca do presente, estando demarcados,
sempre que possível, o ano em que deixaram de acontecer ou alguma eventual mudança.
Os festejos populares, em honra de Nossa Senhora do Rosário eram prestados por
um “numeroso bando de pretos africanos, que executavam com capricho a célebre música
denominada Tambaque”. Pela descrição dada pelo cronista, nota-se que é uma celebração
de congada, dada a presença do rei, da rainha e dos batuques – que para o autor eram um
“barulho ensurdecedor”. O autor diz que todos apareciam “muito bem vestidos”. O evento
ocorria antes da realização da procissão de Nossa Senhora do Rosário (MARTINS, 2003, p.
324-325).
Escrevendo cerca de quarenta anos depois de Martins, Bruno, no oitavo capítulo do
segundo volume de História e Tradições dedica-se exclusivamente às festas de brancos e
de negros durante o período em que São Paulo era um burgo de estudantes. Segundo o
autor, é neste período (1828-1872) que as festas de cunho religioso católico começam a
perder importância e significado para a coletividade paulistana (BRUNO, 1954, p. 753).
Bruno apresenta uma visão geral sobre as procissões, destacando as que considera
mais importantes. Aproveita-se em grande parte dos escritos de Antonio Egydio Martins
para tecer seu comentário a respeito das festividades religiosas. Embora o sentimento
religioso não arrastasse mais tantos munícipes como em tempos passados, as procissões
eram a “recreação máxima” do período da história paulistana. Além dessa “diversão de
rua”, havia outras, entre elas, as “danças de pretos africanos no pátio do Rosário”, as quais,
salienta Bruno, eram “frequentemente combatidas pelas autoridades” (1954, p. 755).
44
No início do ano de 1860 escrevia-se no conservador Correio Paulistano que o
verdadeiro católico paulistano sentia um aperto no peito “ao contemplar o estado
deplorável de abandono e indiferentismo a que se acham reduzidos o culto e as festividades
religiosas”, estas que em tempos passados – e Ernani Silva Bruno é insistente em ressaltar
esta característica dos tempos precedentes da Metrópole do Café – eram tão grandiosas e
afamadas. Em janeiro daquele ano, antes da publicação desta nota, havia-se realizado o
“espetáculo” de duas procissões tradicionais da capital: a de “Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos e a do padroeiro São Paulo” (BRUNO, 1954, p. 778-781).
Após a década de 1870 as procissões decaíram ainda mais no interesse de parte dos
citadinos. Perderam parte de seu esplendor de seu interesse, em parte devido à
“intensificação da vida comercial e o ritmo mais acelerado de todas as atividades”, segundo
Bruno. Um observador diz que as procissões se tornaram anacrônicas. O mundo que estava
à disposição dos paulistanos oferecia uma gama variada de novas opções de
entretenimento, uma vez que as procissões atendiam mais às necessidades sociais do que
espirituais. Apesar do contexto, elas ainda aconteciam (BRUNO, 1954, p. 1221).
As irmandades da capital acompanhavam as procissões. Jorge Americano destaca
duas delas. Uma como a mais importante e outra como a mais pobre. No primeiro caso,
apresenta a Irmandade do Santíssimo Sacramento, com pessoas “importantes” da
sociedade, entre elas, o presidente da Companhia Paulista. A mais pobre era a Irmandade
do Rosário, onde se encontrava Aninha, a lavadeira da família de Americano, irmã de
Narcisa. Além dessas duas confrarias, havia outras, com senhoras importantes e bem
vestidas (AMERICANO, 2004, p. 44).
A empregada comparecia à procissão trajada com um vestido velho da mãe de Jorge
Americano. O memorialista a descreve como pequena e magra, dotada de voz “esganiçada
e rouca”, que se destacava quando cantava durante o cortejo. As crianças, entre eles, o
45
autor, que assistiam à festividade do lado de fora – nota-se o que Bruno disse, das
procissões enquanto “entretenimento” – apontaram para a lavadeira, que fica envergonhada
e perde o passo. No dia seguinte, Narcisa, a irmã de Aninha, repreende os menores
(AMERICANO, 2004, p. 45).
Elementos como as vestimentas aparecem nesses trechos como sinais visíveis do
poder aquisitivo dos integrantes das irmandades. De um lado, as mulheres bem vestidas, de
modo geral e de outro, uma das integrantes ganha destaque, provavelmente pela ligação
desta com os que a assistiam. Esta vinha trajada com roupas emprestadas, o que a
classificava como despossuída. Em outro trecho Americano endossa essa opinião, ao falar
dos mais necessitados que recebiam roupas emprestadas ou dadas pelos outros.
A riqueza ou a pobreza dos integrantes são associadas às irmandades como um
todo, fazendo-nos sugerir que apesar dos indivíduos destacados, havia uma homogeneidade
nos distintivos representados pelas vestes. Americano não fala da existência de outras
irmandades pobres, ao ressaltar que existiam outras com “senhoras bem vestidas”. Partindo
do trecho mencionado pelo autor, apenas a Irmandade dos Homens Pretos era considera de
homens e mulheres pobres.
As mulheres eram maioria nessas irmandades, porém, pouco poder de voz e de
decisão cabia a elas. Suas atribuições eram as de organizar as festas e arrecadar donativos
para a manutenção dos ofícios da confraria. Escravos e escravas também poderiam fazer
parte, desde que o senhor os autorizasse e os auxiliasse com alguma quantia em dinheiro,
pois todos os irmãos contribuíam anualmente. Saber da origem das esmolas dadas pelos
irmãos era uma das atribuições do procurador da irmandade. O dinheiro deveria ser dado de
bom grado, fruto do trabalho, “como Deus manda” (QUINTÃO, 2002, p. 47).
Após as procissões, a festa prosseguia. Nas páginas finais do segundo volume de
História e Tradições, Ernani Bruno, ao mencionar a música popular, a define como aquela
46
dos negros que se reuniam após as procissões no Largo do Rosário ou no Largo de São
Bento e realizavam os seus batuques, sambas e caiapós (1954, p. 863). Ao término no
capítulo e do volume, o autor retoma esta denominada música popular, ampliando-a, de
modo a abarcar as expressões musicais da viola e do batuque dos caboclos das redondezas.
Das reuniões após as procissões acrescenta um rol de instrumentos de origem africana
presentes no Brasil naquele momento (1954, p. 895).
Segundo Santos, essas manifestações eram malvistas por seus contemporâneos que
a classificavam como anacrônicas. O fato de se realizarem nas confluências do Triângulo, o
espaço que por excelência era europeizado, foi um dos motivos que provocaram a
perseguição e uma estratégia para a eliminação daquilo que era uma expressão do passado
que se estava apagando. As folganças, que eram promovidas pela Irmandade do Rosário
defronte à sua igreja, foram uma das razões implícitas da desapropriação em meados dos
novecentos (2008, p. 123-125).
Maria da Conceição dos Santos (2006) avalia a experiência da Irmandade do
Rosário no período que vai de 1887 a 1907, enfocando questões como as reformas na
estrutura da Igreja Católica e o reflexo delas na instituição religiosa no Brasil. Entre elas, a
romanização, que procurava centralizar as atividades da religião e provocava certa redução
na prática popular do catolicismo.
A questão que é tratada em primeiro plano pela autora se refere à adequação da
irmandade às novas normas religiosas e de modo menos destacado, à maneira como o
grupo conviveu com as perspectivas de transformação da vida urbana do centro da cidade
de São Paulo. Particularmente interessante é a ideia de que a festa do Rosário deveria ser
combatida pelas elites locais por se tratar de um evento “anacrônico” e “selvagem”, que
não deveria jamais voltar a ter lugar onde era realizado há muitos anos.
47
Para analisar o sentido da festa e a continuidade da tradição de sua realização nas
ruas do que hoje é o centro velho da cidade de São Paulo, ela afirma que esta comemoração
realizada todos os anos no mês de outubro (dedicado à padroeira Nossa Senhora do
Rosário) é uma demonstração da resiliência da irmandade após um período conturbado
(SANTOS, 2006, p. 16).
A qualidade de resiliente, conceito utilizado inicialmente pelas Ciências Exatas e
apropriado posteriormente pelas Humanidades, é aplicável à Irmandade do Rosário porque
mesmo em meio a uma conjuntura que não lhe favorecia, o grupo conseguiu se reconstituir
e a maior prova dessa readaptação e superação seria a realização de suas festas nas ruas
onde não eram vistas como uma celebração civilizada. Em síntese, a festa é utilizada por
Santos como demonstração dessa característica, quase que exclusivamente, não se detendo
na questão da escravidão e do período posterior à sua abolição.
Dois aspectos são os mais recorrentes quando se fala a respeito da vivência das
irmandades, sobretudo antes do advento da República. Um deles, como discorremos, é a
festa, da qual fazem parte as procissões. Outro, cujas descrições são ricas, dizem respeito à
morte. Para Quintão, além da possibilidade dos momentos de confraternização durante a
realização das festas, o fato de participar das irmandades representava para os negros a
possibilidade de cultuar os seus antepassados, uma vez que as associações garantiam aos
seus membros um sepultamento (2002, p. 103).
Das fontes que analisamos, um dos pontos altos das descrições dos costumes dos
negros paulistanos era o dos enterramentos dos falecidos nos cemitérios contíguos às
igrejas. O trecho da obra São Paulo Antigo que reaparece em diversas obras, a exemplo de
Morse (1970) e Bruno (1954), quando se trata das atividades exercidas pela Irmandade do
Rosário, é o que se refere ao sepultamento dos cadáveres realizado no cemitério contíguo à
48
Igreja. A descrição de Martins é aterradora e não deixa de revelar o exotismo do costume
aos olhos do cronista.
A cantiga “Zóio que tanto vê. Zi boca que tanto fala. Zi boca que tanto zi comeu e zi
bebeu. Zi cropo que tanto trabaiô. Zi perna que tanto ando. Zi pé que tanto zi pisô” era
proferida enquanto se socava com uma grossa mão de pilão a terra sobre o cadáver. Tais
“despropósitos”, como diz Martins, eram cantados até se cobrir toda a sepultura com a
terra. O cronista ainda ressalta que era comum o fato de que algumas irmandades, incluindo
a do Rosário, possuíssem um único caixão, que ficava guardado na sacristia da Igreja,
servindo este a todos os irmãos sempre que necessário. O costume dos enterramentos
causava medo nos moradores das adjacências que assim que podiam, mudavam-se para
outros lugares, preferencialmente longe de igrejas e de cemitérios (MARTINS, 2003, p. 328).
Richard Morse refere-se aos enterros e a outras celebrações dos negros como
“rituais secretos de feitiçaria”, realizados na calada da noite. Tais rituais trariam uma
sensação de que se estava em alguma parte da África, ou o “continente distante”, como ele
mesmo diz. Era algo que amedrontava boa parte da vizinhança da Igreja do Rosário e que
contribuía para que verdadeiras lendas se constituíssem (1970, p. 65).
Em História e Tradições os enterramentos que outrora eram feitos nas igrejas
aparecem como um sinal pertencente àquele período da história paulistana, não apenas
temporal como simbolicamente. Mesmo sendo fato sabido que há quase um século não se
realizavam mais nas igrejas, destaca-se a localização temporal do costume agora
inexistente, pertencente à cidade colonial-imperial (BRUNO, 1954, p. 758-759).
Bruno não acrescenta nada à visão de Antonio Egydio. A diferença reside no fato de
que o discurso de Bruno distancia-se mais ainda do que Martins, este ainda próximo do
hábito noturno dos negros. Se em São Paulo Antigo o fim do costume ainda era recente, e
pertencente a uma cidade que ainda não desaparecera por completo, em História e
49
Tradições, esta já aparece como uma tradição de um tempo longínquo, de uma cidade que
não mais existe. O discurso que constrói sobre São Paulo, como vimos, precisa ser
coerente, e as representações daquela que agora era uma metrópole precisavam de
elementos para se manter. É o que Orlandi diz: o objetivo da coerência de um discurso visa
a permanência de uma representação pré-estabelecida (1999, p. 73). Para garantir que
hábitos fazem parte do passado e que no presente estes não têm lugar, devem ser fixados
como pertencentes aos tempos de outrora.
As irmandades negras e suas ações antes e após a abolição
A obra Irmandades Negras: outro espaço de luta e resistência (2002), de Antonia
Aparecida Quintão, discorre sobre as associações leigas formadas por negros na cidade de
São Paulo durante os anos de 1870 a 1890. As confrarias contempladas por seu trabalho
são a Irmandade de Santa Ifigênia, São Benedito e Santo Elesbão, a Irmandade de Nossa
Senhora dos Remédios e a que nos é de maior interesse: a de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos, a mais antiga da cidade e a única ainda em exercício.
Seu estudo tem por objetivo buscar a constituição dessas associações enquanto
espaços de resistência e de solidariedade entre os membros da população negra tanto antes
quanto depois do término do regime escravista. Antonia Quintão procura observar as
dimensões política e social das irmandades, suas relações e seu envolvimento no processo
de abolição da escravidão (QUINTÃO, 2002, p. 14).
Segundo Quintão, as “irmandades, ao contrário dos quilombos, se tornaram uma
forma de manifestação adesista, passiva e conformista das camadas inferiores” (2002, p.
15), uma vez que assimilavam comportamentos e atitudes dos brancos com os quais se
relacionavam. Eram nitidamente conservadoras, ao passo que contribuíam para a
50
manutenção das distâncias entre as camadas sociais. Não buscavam pôr fim à escravidão,
apenas tentavam diminuir os sofrimentos dos cativos.
Sobre a estrutura das irmandades, a autora apresenta os dois tipos de confrarias: as
leigas e as religiosas. As religiosas são as ordens terceiras, como a de São Francisco de
Assis; as leigas são as irmandades, que funcionaram largamente como entidades de classe,
reunindo indivíduos com características comuns, como a origem étnico-racial.
As confrarias são de origem medieval e as leigas têm como princípio central o culto
e a assistência mútua. O modelo para as confrarias leigas é o das corporações de ofício,
com o diferencial que os integrantes não são diferenciados pela qualificação profissional
nem distinguidos socialmente. A semelhança resume-se à característica do assistencialismo
(QUINTÃO, 2002, p. 26-27).
Essas organizações são regidas por um estatuto denominado Compromisso,
elaborado pela mesa administrativa e submetido à aprovação de autoridades civis e
eclesiásticas. As irmandades no Brasil tiveram seu papel melhor desempenhado durante os
períodos colonial e monárquico. Com o advento da República e a dissociação entre Igreja e
Estado e a reforma religiosa decorrente do Concílio Vaticano I, o papel das irmandades
reduziu-se apenas à assistência.
Nas palavras da autora, um dos propósitos da pesquisa é chamar para um aspecto
muito importante:
se a classe senhorial e as elites quiseram utilizar as Irmandades como meio de controle e de integração do negro numa sociedade escravocrata, estes souberam transformá-las num espaço de solidariedade, de reivindicação social e de protesto racial, conseguindo, dessa forma, salvar sua identidade e sua dignidade (QUINTÃO, 2002, p. 34).
Trata-se de um jogo de interesses, onde cada grupo busca tirar proveito para si. De
um lado estão senhores e outros membros das elites que fazem do espaço das irmandades
um meio de controlar e integrar o negro a uma sociedade escravocrata, mostrando qual era
51
o lugar que lhes estava destinado. Do outro, encontram-se os negros, livres ou escravos,
que se utilizaram do espaço para reivindicar, lutar e protestar contra o regime escravista e a
desigualdade racial a seu modo, por meio da religiosidade e da manutenção dos costumes.
Após a morte de Luiz Gama em 1882 quem assume a liderança do Centro
Abolicionista de São Paulo é Antonio Bento. Anteriormente, com Gama, a ação contra a
escravidão se dava no campo jurídico. Depois de sua morte, inicia-se uma campanha com a
adesão de membros de diversos segmentos da sociedade que exercem uma ação direta
contra a escravidão (QUINTÃO, 2002, p. 79).
O movimento liderado por Antonio Bento é o dos caifazes, cujo nome é extraído do
Evangelho segundo João no qual o sacerdote judeu, Caifás, exorta que é conveniente que
um homem morra pelo povo para que todo o povo não pereça, antes de entregar Jesus a
Pilatos.
Por meio da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios, Antonio Bento, o juiz
provedor (presidente da Mesa Administrativa das irmandades), mantinha contato com
outras irmandades da cidade e assim podia formar uma rede de relações para o seu
movimento.
A ação dos caifazes contra a escravidão era direta. Depois de se infiltrarem nas
fazendas usando disfarces, convenciam os escravos a fugir e os abrigavam em casas
particulares ou estabelecimentos comerciais em São Paulo. Antonia Quintão chama a
atenção para a presença de comerciantes nas irmandades negras. Após permanecerem
algum tempo na capital, partiam para Santos, novamente com auxílio de mais envolvidos
na rede de relações dos caifazes. O destino final era o Quilombo do Jabaquara, em Santos
(2002, p. 80).
Antonio Bento e os caifazes também tiveram papel decisivo nas outras irmandades
de São Paulo. Na Irmandade do Rosário ajudaram a acalmar os ânimos acirrados durante as
52
eleições para a Mesa Administrativa em 1888 e 1889 (QUINTÃO, 2002, p. 85). Foram
defensores da Irmandade de Santa Ifigênia e Santo Elesbão, porém, esta foi dissolvida nesta
mesma época, em 1890 (QUINTÃO, 2002, p. 88).
Seguindo seu critério de escrever sobre a vida das associações paulistanas ligando-
as a uma liderança, Martins, ao escrever sobre a Irmandade de Nossa Senhora dos
Remédios, não deixa de lado a atuação de Antonio Bento (de Sousa e Castro), durante
muito tempo provedor da Irmandade. Sua formação de bacharel pela Faculdade de Direito
de São Paulo e seus serviços “relevantes e inolvidáveis” à Igreja dos Remédios ganham
destaque. Sobre o Dr. Antonio Bento, diz que este homem
foi um dos maiores precursores do 13 de maio, era irmão do juiz de direito Dr. Clementino de Sousa e Castro, que em 1876 recebeu o grau de bacharel na Faculdade de Direito de São Paulo, e cunhado do respeitável e bondoso cidadão José Maria Lisboa (MARTINS, 2003, p. 267).
Como em outros momentos de sua obra, ao discorrer sobre a vida de algum
paulistano, menciona um de seus feitos – no caso de Antonio Bento, sua ligação com o
movimento abolicionista. Em seguida, perde-se em associações com outras pessoas do
círculo social, no caso, passando ao seu irmão que era juiz de direito e ao parentesco do
líder do movimento dos caifazes com o jornalista fundador do jornal onde Antonio Egydio
publicou suas crônicas.
Durante a campanha abolicionista, as procissões foram o meio de que se utilizaram
os integrantes da Irmandade dos Remédios e o seu líder, Antonio Bento. Ao longo do
cortejo apresentaram-se grilhões, relhos e outros artefatos do cativeiro. Sob a imagem de
Jesus na cruz, caminhava um cativo, que havia sido “surrado sem dó” (BRUNO, 1954, p.
1222). As poucas referências à realização das procissões no terceiro volume da obra de
Bruno reforçam a ideia de que estas se tornaram eventos anacrônicos e que não condiziam
com o modo de vida da nova cidade, a metrópole.
53
Um dos focos da pesquisa de Antonia Quintão são as reformas na estrutura da Igreja
Católica e dois movimentos relativos a estas reconfigurações eclesiásticas – o
ultramontanismo e a romanização, cujos impactos sobre as irmandades foram grandes. O
ultramontanismo
foi um movimento cultural surgido na Europa, principalmente na França, dentro do contexto de Restauração, opondo-se radicalmente ao racionalismo iluminista. Defendia o ponto de vista segundo o qual, ao invés de se tentar colocar a religião a serviço do Estado, o Estado é que deveria estar a serviço da Igreja. Defenderam o predomínio das verdades reveladas sobre as que resistem ao tribunal da razão e a primazia da fé sobre a Ciência (QUINTÃO, 2002, p. 57).
Para que esse novo catolicismo tivesse êxito no Brasil, a Igreja brasileira buscou
integrar-se em todos os aspectos às estruturas centralizadas da Igreja romana. Centraliza-se
o poder religioso na figura do bispo, reforçando sua autoridade sobre todos os assuntos
relacionados à vida religiosa, inclusive sobre associações leigas como as irmandades
(QUINTÃO, 2002, p. 53).
O que se deve atentar no caso das irmandades brasileiras é que sua natureza não é
puramente eclesiástica e, portanto, os bispos não têm plena autoridade sobre elas. O
Compromisso que as rege é submetido ao Poder Civil e ao Poder Eclesiástico. Cabe aos
Juízes de Capela, que são juízes especiais, fiscalizar o cumprimento do Compromisso, a
administração dos bens, a admissão e exclusão de irmãos. Dessa forma, a natureza jurídica
das irmandades é mista (QUINTÃO, 2002, p. 56).
As consequências da introdução do novo catolicismo no Brasil foram inúmeras.
Entre elas, há a presença de padres e outros religiosos estrangeiros, tendo por objetivo a
transição do catolicismo tradicional para o universalista, de maior rigidez moral e
doutrinária. As metas buscadas independiam dos interesses políticos locais e muitas vezes
confrontavam-se com eles.
54
À Igreja brasileira cabia integrar-se ideológica e institucionalmente à Igreja romana.
É por isso que se chama esse período de romanização. Enquanto no catolicismo tradicional
a evangelização se dava por meio de lideranças e organizações leigas, no catolicismo
romanizado, a vida religiosa está concentrada nas mãos do papa e por extensão nas dos
bispos e dos padres (QUINTÃO, 2002, p. 58).
Para atingir os objetivos, preocupou-se em substituir as devoções populares por
outras novas, em voga na Europa. Dessa forma, procurava-se lutar contra o fanatismo
religioso e a superstição, educando o povo e elevando assim o nível cultural e religioso da
população. Assim nascem o Apostolado da Oração, a Pia Associação das Filhas de Maria, a
Liga Católica, as Conferências Vicentinas, entre outras organizações. A diferença maior
entre essas novas agremiações e as irmandades leigas é que elas estão todas diretamente
subordinadas a um clérigo (QUINTÃO, 2002, p. 58).
As irmandades veem suas funções cada vez mais reduzidas, sua autonomia restrita e
assim acabam por se tornar apenas associações beneficentes. O catolicismo ultramontano,
por fim, centraliza o poder religioso no clero e os leigos passam a “ocupar uma posição
subalterna e passiva” (QUINTÃO, 2002, p. 59).
Em 1870 o Juiz de Capelas determinou que a Irmandade do Rosário de São Paulo
deveria elaborar um novo Compromisso. Nesse novo estatuto não havia mais a garantia de
que a irmandade seria gerida por negros e, portanto, a “manutenção de suas tradições de
origem africana”. Tratava-se de um conflito entre a irmandade e suas tradições de raízes
africanas e o novo catolicismo ultramontano – romanizado, ou seja, culturalmente europeu
(QUINTÃO, 2002, p. 67).
Em suma, o que depreendemos da vivência da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos de São Paulo na passagem do século XIX é que esta sofria uma
investida contrária de duas frentes. De um lado estavam as reformas do cenário urbano
55
empreendidas pela administração municipal em nome do progresso e da civilização, nos
moldes da Europa.
De outro, as reestruturações da Igreja Católica em torno do mundo, que buscaram
centralizar as atividades no papa e na hierarquia eclesiástica. Procurando “elevar o nível
cultural” das celebrações religiosas, introduziram-se elementos que unificariam a prática
religiosa – para isto, tomaram-se como modelos às devoções em voga no Velho Continente.
A europeização em duas frentes certamente não haveria de favorecer práticas
sincréticas e relativas a outras culturas, como a africana. Substituir os símbolos que
evocavam o atraso e a barbárie dos tempos colonial e imperial e voltar os olhos para a
Europa eram a tendência principalmente das elites brasileiras nos primeiros anos da
República.
3. “C ADA UM EM SEU LUGAR !” – A CONSTRUÇÃO DAS NARRATIVAS SOBRE SÃO PAULO
O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso. (...) Jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles (CALVINO, 2003, p. 20; 61).
Por uma História Paulista
Ao longo do século XIX as teorias raciais encontravam na Ciência a sua
argumentação. Algumas instituições eram meios pelos quais se difundiam estas teorias,
onde o grupo branco, europeu e civilizado era posto acima dos integrantes de outros
grupos, especialmente indígenas, asiáticos e negros. Devido a necessidade de se constituir
uma identidade nacional, baseada numa construção simbólica composta pela história e
pelos mitos, cria-se em 1838 o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sediado no Rio
de Janeiro, tendo como patrono o Imperador D. Pedro II, que também foi o seu maior
financiador.
56
O projeto do IHGB era construir a História do Brasil, contribuindo decisivamente
com a formação da nação brasileira, ainda carente de elementos que a simbolizassem.
Recriava-se o passado, solidificavam-se os mitos de fundação, elegiam-se os heróis a fim
de constituir uma história homogênea e coerente, reunindo todas as características de norte
a sul do país, atingindo assim a todos os habitantes e consolidando os limites do Estado.
Foi com base nesse modelo que surgiram os Institutos regionais (SCHWARCZ, 1993, p. 100).
Entre esses Institutos regionais, Lilia Schwarcz aponta dois casos exemplares: o
Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano e o Instituto Histórico e Geográfico de
São Paulo, que usam o IHGB como modelo de organização interna e têm objetivos
semelhantes, especificamente na constituição de identidades de seus locais de origem
(SCHWARCZ, 1993, p. 101). Atentaremos ao caso do IHGSP, do qual fizeram parte Antonio
Egydio Martins e Jorge Americano. Ernani Silva Bruno, no entanto, possui mais
características que podem ser relacionadas ao modelo de história paulista proposto pelo
Instituto.
O Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo foi criado em 1894, no início do
período republicano. A primeira reunião teve 69 participantes – os homens de letras da
capital paulista, da pequena elite intelectual formada, na maioria, por membros do Museu
Paulista e da Academia de Direito (SCHWARCZ, 1993, p. 125-126).
Nesse estabelecimento que surge, duas intenções distintas convivem: uma é a de
“seguir o modelo comum idealizado pelo IHGB”, outra é a de “destacar uma suposta
especificidade paulista”. Era também uma instituição que provocava o estabelecimento
carioca e que se intitulava “Brasileiro”. Na primeira edição da Revista do IHGSP lia-se a
frase “A história de São Paulo é a história do Brasil” – um claro ataque ao projeto unitário
do IHGB que supunha um consenso cada vez menos sustentado. (SCHWARCZ, 1993, p. 126).
57
O Instituto paulista foi criado num contexto que já apresentamos, quando a então
província de São Paulo prosperava devido ao avanço da cafeicultura nas novas regiões do
Oeste, em detrimento ao decadente Vale do Paraíba, compreendendo parte do território da
vizinha província do Rio de Janeiro. O equilíbrio interno do país foi então ameaçado, uma
vez que São Paulo não possuía a mesma expressão na vida política assim como na
econômica.
A “missão paulista”, portanto, tinha por objetivo “reescrever a história nacional,
tendo à frente o percurso e exemplo paulistas”. Recorrendo ao passado, buscavam-se
elementos que legitimassem a crença no protagonismo paulista no todo da História do
Brasil. O personagem que atende a esses critérios é a figura do bandeirante, que é então
associado ao espírito paulista de difusor da civilização, conferindo ao estado símbolos que
até o momento se associavam ao Rio de Janeiro (SCHWARCZ, 1993, p. 126-127).
Embora institucionalmente os institutos Brasileiro e Paulista sejam semelhantes, tais
similaridades encobriam características que os tornavam particulares. Entre elas está a
íntima ligação entre a Monarquia e o IHGB, que só aceita a República algum tempo depois.
No caso paulista, desde o princípio sob o regime republicano, a nova configuração política
do Estado era apoiada. Mesmo assim, os assuntos contemplados nos primeiros artigos da
Revista do IHGSP dizem respeito apenas à História e à Geografia paulistas, e não ao todo
nacional (SCHWARCZ, 1993, p. 128).
A mesma elite que lutava em prol da imigração europeia e da restrição da entrada de
negros e asiáticos compunha o quadro dos sócios do Instituto Paulista e considerava estes
grupos como “asselvajados” e não selvagens por natureza. A história explicava o
predomínio do homem branco num contexto em que a escravidão ainda era uma
“lembrança fresca”. Esta mesma história proposta pelo IHGSP trazia a garantia de um futuro
otimista, civilizado, de acordo com os moldes europeus.
58
Como essa “história paulista” estava associada à missão civilizatória com base no
modelo bandeirante, o objetivo era, portanto, seguir os antigos paulistas no momento atual
de pujança do estado, levando a civilidade baseada no padrão europeu a todos os recantos
do país. Como diz Lilia Schwarcz, para o IHGSP, o bandeirante era a ponte entre o presente
promissor da elite paulista com o passado glorioso do bandeirantismo e o futuro, onde o
paulista seria o líder da nação brasileira, porvir este que se delineava na passagem do
século XIX (1993, p. 133).
A construção das narrativas
A historiadora Stella Bresciani organizou uma coletânea de textos sobre a história
urbana. Na apresentação do livro, considerou alguns aspectos que são importantes quando
se dedica ao estudo das relações sociais na cidade, bem como as relações entre o homem e
o seu espaço. De modo geral, as cidades são vistas como símbolos do “poder criador do
homem”, que altera o ambiente e cria um artefato. Sua materialidade “deve expressar os
símbolos e os mitos de um povo, sua visão de mundo e a sua história”, sustentando a
organização do espaço e sua relação de influência sobre o homem, como diz o arquiteto
italiano Camillo Sitte, comentado por Stella Bresciani (1994, p. 7-8).
Na passagem do século XIX para o século XX , diversas cidades ao redor do mundo
veem-se como centro das discussões acerca da constituição da identidade nacional, e em
debates que conflitam o moderno com o histórico. Segundo Bresciani, as decisões que se
tomaram tiveram consequências perceptíveis nas remodelações profundas dos centros
urbanos brasileiros, especialmente em cidades como São Paulo, por exemplo.
Desconsiderou-se a “densidade histórica, ou preservação de edifícios (...) como
monumentos de uma época, das marcas particulares e identificadoras” (1994, p. 10).
59
Raquel Glezer, nessa coletânea, apresenta as visões da cidade de São Paulo,
sobretudo da urbe oitocentista, da qual sobraram “apenas os textos, discursos, falas,
construções ideológicas e interpretações”, uma vez que grande parte de seu passado
material foi destruída (1994, p. 164-165).
Segundo ela, percorrer o chamado centro velho de São Paulo deveria nos deixar em
contato com mais de quatrocentos anos de “vida humana, construções, formas de
apropriação do espaço, estilos arquitetônicos, signos e sinais do passado”, porém, este
contato não pode chegar muito longe, dada a destruição de boa parte do conjunto
referencial dos tempos pregressos (GLEZER, 1994, p. 166).
A primeira fase da capital paulista não pode ser mais encontrada. Não sobraram
resquícios, ou estes são quase imperceptíveis, da “cidade de barro”. Esta cidade aos poucos
foi suprimida pela cidade dos cafeicultores. Hoje, o tijolo que substituiu o barro está
escondido em meio aos grandes edifícios de concreto (GLEZER, 1994, p. 169-170).
O início do período republicano marcou a aparência da cidade de São Paulo, que
teve sua infraestrutura transformada e com loteamentos prontos para serem ocupados pelos
trinta anos seguintes, resultado da especulação financeira do Encilhamento. O capital
suplantou trezentos anos de história do centro, reconstruído para ostentar o progresso e o
poder do novo status quo paulistano (GLEZER, 1994, p. 171). Criou-se um novo passado
para a Pauliceia.
Quando Lévi-Strauss visitou o Brasil em 1935 disse que a cidade de São Paulo
estava destinada a “ser sempre nova, sem dimensão temporal, sem vestígios, sem natureza”
(apud GLEZER, 1994, p. 173). Segundo Raquel Glezer, os próprios paulistanos passaram a
ter esse posicionamento frente a cidade, que sempre deverá ser o “emblema da
modernidade” (1994, p. 173).
60
No contexto de plena transformação da cidade de São Paulo, novas formas de
sociabilidade aparentemente se impunham. Jornais e revistas eram os lugares em que se
projetavam as demandas dos diferentes grupos da sociedade. Eram estes meios que davam
visibilidade ao acelerado processo de “ocupação/invenção dos espaços públicos da
metrópole em formação”.
A imprensa era um terreno fértil para a disseminação dos projetos para a cidade cuja
vida urbana estava em formação/transformação (CRUZ, 2000, p. 19-20). Numa metrópole
em formação, a renovação diária da cultura letrada trazida pela disseminação dos
periódicos é fundamental, pois é nesse espaço em que se difundem projetos, provocando
debates a aproveitando ideias (CRUZ, 2000, p. 71).
Foi nessa imprensa do início do século XX que uma coluna do Diário Popular traz à
público os escritos de um ex-amanuense e agora oficial da Repartição de Estatística do
Arquivo do Estado de São Paulo. A coluna era intitulada São Paulo Antigo5, nome que traz
cerca de 350 anos de uma metrópole que se europeizava.
Segundo Byron Gaspar, Antonio Egydio Martins “não foi propriamente um
historiador”, mas sim alguém que “morria de amores pela Cidade de São Paulo”, suas
crônicas, publicadas entre 1911 e 1912 em dois volumes, como o título São Paulo Antigo
(1554 a 1910) deram a ele, segundo Gaspar, o título de o “mais fidedigno cronista de São
Paulo”. Seus predicados, nas palavras do membro do Instituto Histórico e Geográfico de
São Paulo, são o rigor, a minúcia, a segurança expressos em seus escritos, tendo momentos
em que chegam a assemelhar-se às “escrituras lavradas nos cartórios”, devido aos longos
períodos e da redação característica (2003, p. 3-4).
5 A coluna escrita por Antonio Egydio Martins figurou nas páginas daquele jornal entre os anos de 1905 e 1910. Martins escreveu a convite do jornalista José Maria Lisboa, gerente do Diário Popular, e os volumes foram publicados pela Livraria Francisco Alves (v. 1) e pela Tipografia do Diário Oficial (v. 2). (GASPAR, 2003, p. 3).
61
Ernani Silva Bruno, em 1948, procura o editor carioca José Olympio para publicar
“Retrato de uma capital de província”, dedicada a contar a história do século XIX
paulistano. Os editores sugerem então que Bruno amplie seus estudos para os tempos
posteriores da história paulistana.
O resultado é uma obra grandiosa. São mais de 1500 páginas, distribuídas em três
volumes. Ilustrações, fotografias, mapas, uma vasta bibliografia e um grande número de
documentos estudados. Estes são aspectos gerais do resultado de cerca de cinco anos de
estudo sobre a história e sobre as tradições da cidade de São Paulo ao longo de 400 anos de
existência. A “memória de uma metrópole” (LOFEGO, 1996) é uma das maiores publicações
a respeito da capital paulista, publicadas com o selo e o respaldo do Serviço de
Comemorações Culturais da Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo6.
Detrás das dimensões de História e Tradições, há uma narrativa que se lança em
busca do tempo perdido (LOFEGO, 1996, p. 4). A periodização da história paulistana,
marcada em três blocos, humaniza a cidade e procura articular “fragmentos de tempos
diferentes” (LOFEGO, 1996, p. 5). A história da cidade de São Paulo, do ponto de vista de
Ernani Silva Bruno, é uma escalada – parte do arraial do século XVI e culmina na metrópole
dos anos 1950. A visão geral que se tem de sua obra é de uma urbe cujo progresso e
civilizações são buscados e alcançados num longo percurso de 400 anos.
Gilberto Freyre, no prefácio, diz não reconhecer em Ernani Silva Bruno um pupilo,
embora, ao longo de sua fala, diga que entre os paulistas estão os seus melhores
“discípulos”. O período (década de 1950) é marcado por um movimento de renovação em
diversas áreas, estando incluídas a História, a Sociologia, a Antropologia, entre outras.
6 O primeiro volume, Arraial de Sertanistas, compreende o período que vai desde a fundação de São Paulo em 1554 até o ano de 1828. O segundo, Burgo de Estudantes, o período que vai da criação da Faculdade de Direito em 1828 ao ano de 1872. O terceiro e último fala da Metrópole do Café, estendendo-se de 1872, ano que marca o início da transformação da capital até 1918, com um apêndice, destinado a considerações acerca da história recente, intitulado São Paulo de Agora (1918-1954).
62
Freyre se reconhece como “pequeno iniciador de um também pequeno movimento de
renovação intelectual” (BRUNO, 1954, p. III ).
O sociólogo diz se reconhecer em Bruno, que é para ele “uma jovem (...)
personalidade de historiador, com o sentido ao mesmo tempo sociológico e psicológico do
passado paulista a animar de sugestões novas” a escrita da história regional, expressa de
forma “esplêndida” em História e Tradições da Cidade de São Paulo. Segundo Freyre, é
possível perceber em seus escritos inspirações da antropologia e da sociologia históricas
presentes no Brasil desde os anos 1930 (BRUNO, 1954, p. VIII ).
Denominada como ensaio pelo escritor de Casa Grande & Senzala, a obra de
Bruno, chamado de historiador social por Freyre, reconstrói o passado paulista, como um
morto ressuscitado, capaz, como na tradição da escola metódica positivista, de governar os
vivos. Este passado deve ser “útil” e não pitoresco, tendo seus valores “readaptados” às
“novas condições de espaço e de tempo para continuarem válidos e úteis” (BRUNO, 1954, p.
XI). Em outras palavras, Freyre propõe a construção de um futuro que não esqueça do
passado.
Em síntese, o prefácio de Gilberto Freyre faz um elogio à cidade de São Paulo, à
sua história e aos seus habitantes. Cidade que supera o Rio de Janeiro e Buenos Aires e que
conseguiu se firmar como um “poder industrial”. A seu ver, História e Tradições destaca as
recentes e também as remotas contribuições estrangeiras para o “progresso paulista”, que
segundo ele serão capazes de fazer frente às potências industriais e econômicas do mundo.
Ernani Bruno contribui para o não-esquecimento do passado paulista, contemplando
os aspectos históricos sem abrir mão da “imaginação histórica”, fazendo ver “as lutas, os
entusiasmos, as crises, os triunfos, as angústias” das sucessivas gerações de paulistas que
criaram a São Paulo que já se figura como grande metrópole nos anos 1950, cidade que
63
segundo Freyre é uma “autêntica grandeza da América mestiça” e uma “expressão de vigor
do espírito europeu em terras americanas” (BRUNO, 1954, p. XVIII ).
Por fim, São Paulo naquele tempo (1895-1915), que é a primeira das três obras das
memórias de Jorge Americano e foi escrita em 1957, três anos após a cidade de São Paulo
completar 400 anos de fundação7. Nas palavras dos responsáveis pela segunda edição de
São Paulo naquele tempo, os relatos foram redigidos nos anos 1950 porque é nesse período
que Jorge Americano não mais ocupava todo o seu tempo com a vida profissional8
(AMERICANO, 2004, p. 18).
“Aqueles tempos” aos quais se refere Americano “remetem à reflexão acerca de um
momento histórico da cidade, em que a coexistência dos tempos antigo e moderno,
aspectos coloniais e o caráter da cidade se transformando em metrópole” não passam
despercebidos ao memorialista (AMERICANO, 2004, p. 18). Como Heloísa Cruz afirma, ao
dizer que nos relatos memorialísticos que contemplam a virada para o século XX , as duas
São Paulo são concomitantes – a cidade colonial-imperial e a metrópole anunciada (2000,
p. 59).
Para escrever São Paulo naquele tempo, Americano recorre aos seus amigos de sua
faixa etária, busca vestígios de seu passado em bilhetes e listas de compras, além de sair
pelas ruas do centro e de seu bairro fotografando e anotando o que permaneceu e o que
deixou de existir (AMERICANO, 2004, p. 19). Por meio de seu passado e de suas
lembranças, escreve a sua história de São Paulo, história esta diz respeito a ele e a seu
grupo.
7 As outras, a saber, são: São Paulo nesse tempo (1915-1935), publicada em 1962 pela Melhoramentos e São Paulo atual (1935-1962), publicada pela mesma editora no ano seguinte, 1963. São Paulo naquele tempo (1895-1915) teve a sua primeira edição, de 1957, publicada pela Saraiva. 8 Jorge Americano (1891-1969) era bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Paulo. Foi deputado constituinte pelo estado em 1934. Na área acadêmica, foi professor da Universidade de São Paulo, instituição em que chegou a reitor. Americano também ocupou outros cargos públicos (2004, p. 429-430).
64
Amelia Castro, sobrinha de Americano, apresenta a obra, chamando a atenção para
a percepção da visão que se altera do menino ao jovem Jorge Americano, além de
relacionar seus escritos à história do cotidiano. O livro, diz ela, não é convencional – é
composto por numerosos capítulos, de tamanho irregular, que são relatos, diálogos e
situações das mais diversas. Ela salienta o que o próprio Americano disse: não se trata de
“crônica, nem romance, nem história, nem sociologia”, mas sim escritos do que o veio à
cabeça (AMERICANO, 2004, p. 14; 423).
Os editores, os historiadores Paula Janovitch e Roney Cytrynowicz, salientam o
momento em que Americano produz sua trilogia. No fim da década de 1950, a cidade de
São Paulo, no vigor de seus quatrocentos anos, é indiscutivelmente uma metrópole, e é
“desta cidade conturbada e cheia de tentáculos que o cronista olha para o passado”
(AMERICANO, 2004, p. 18).
Essas palavras assemelham-se às de Byron Gaspar na apresentação da edição de
2003 da obra de Antonio Egydio e possivelmente aplicável à obra de Ernani Silva Bruno e
à apresentação feita por Gilberto Freyre. Não devemos desconsiderar que as obras de
Bruno e Americano são compostas nas proximidades da celebração do IV centenário de São
Paulo (1954), sendo que o primeiro explicitamente se relaciona à efeméride. As obras de
Americano e Martins, no entanto, são reeditadas na ocasião de uma nova festividade: os
450 anos de São Paulo (2004), agora sendo a de Antonio Egydio diretamente ligada às
comemorações.
Enquanto Martins não poupa louvações aos nomes ilustres da história paulistana e
escreve de forma sisuda e preocupada em trazer os documentos por si próprios, Bruno, de
acordo com as vertentes da escrita histórica de seu tempo, busca discutir a vastidão
documental que tem à disposição à luz de outras ciências como a Sociologia e a
Antropologia. Americano pode ser considerado como despretensioso, visto que seus
65
escritos são simples observações de seu passado desde a infância, deixando vestígios do
cotidiano de uma criança-adolescente-jovem paulistana de “classe média” da passagem do
século XIX .
A São Paulo dos memorialistas
(...) gosto de café misturado com barulho de apito de trem, de Belle Époque com metrópole, de nostalgia e de progresso (Paula Janovitch e Roney Cytrynowicz, apresentadores e editores de AMERICANO, 2004, p. 19).
Os anos passam e a cidade cresce e se industrializa, e nesse contexto em que o velho
dá lugar ao novo, São Paulo passa de “pacata e provinciana” a “febril e angustiada”. É a
esse novo ritmo alucinante da Pauliceia que Byron Gaspar atribui o esquecimento no qual
caiu Antônio Egydio Martins nos anos que seguiram à sua morte no fremente 1922.
Felizmente, diz Gaspar, Martins não viu as mutações da vida urbana da capital paulista, que
desiludiram os sonhos dos leitores de sua coluna no Diário Popular, entusiasmados com as
coisas do passado paulistano.
Apenas em 1954, por ocasião das comemorações do IV Centenário de São Paulo,
que São Paulo Antigo saiu das estantes, “descoberto” por historiadores e ensaístas que
veem em seu trabalho um “manancial de informações imprescindíveis a uma reconstituição
sistemática do nosso passado”. O membro do IHGSP, Byron Gaspar, deixa um pouco de sua
leitura sobre a obra expresso na apresentação da terceira edição, do ano de 2003, parte da
Coleção São Paulo9, organizada pela historiadora Paula Porta10. (GASPAR, 2003, p. 5).
9 Coleção composta por seis obras, a saber: São Paulo de meus amores, de Afonso Schmidt; Ronda da meia-noite, de Sylvio Floreal; São Paulo nos primeiros anos, 1554 a 1601. São Paulo no século XVI , de Afonso de Escragnolle Taunay; A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade, de Cláudio Bertolli Filho; Casamento e família em São Paulo colonial, de Alzira Lobo de Arruda Campos, além da obra de Antonio Egydio Martins. A coleção faz parte das comemorações dos 450 anos de São Paulo (2004). As obras foram editadas e publicadas pela Editora Paz e Terra (São Paulo) e contaram com apoio financeiro do Grupo Santander Banespa e da Lei de Incentivo à Cultura, do Ministério da Cultura. 10 A historiadora Paula Porta organizou ou participou da organização outras obras referentes à História da cidade de São Paulo, bem como um guia dos documentos históricos disponíveis na capital paulista.
66
A síntese feita por Gaspar ressalta a diferença da cidade de São Paulo de ontem e de
hoje: a cidade antiga e a cidade nova. Contrapõe o corre-corre e o anonimato da atualidade
aos nomes curiosos das ruas do passado e do tempo que os antigos moradores paulistanos
tinham para o diálogo. Os tipos populares, as figuras famosas (ou seriam exóticas?), como
o Preto Leôncio, o mais célebre deles.
Das características da São Paulo de ontem, chama-se a atenção para a piedade dos
antepassados da Pauliceia, sentimento expresso especialmente pelas procissões, evento
marcante e característico da cidade do passado. O sepultamento feito nas igrejas ou em
cemitérios contíguos, como no caso dos “pretos africanos” da Irmandade do Rosário, com
suas lúgubres cantigas no meio da noite (GASPAR, 2003, p. 8-9).
Um dos escritores que recorreram a Antonio Egydio Martins foi Ernani Silva
Bruno, que em História e Tradições da Cidade de São Paulo se preocupou em discutir um
vasto número de fontes, visando reconstituir o passado paulistano, refazendo o percurso
que levaria o arraial à metrópole. A cronologia rígida dos três volumes vai além de um
simples recorte temporal. Cada tomo evoca uma cidade diferente, cujas características são
peculiares. Entre Arraial de Sertanistas (1554-1828) e Burgo de Estudantes (1828-1872)
existe uma continuidade, uma vez que as semelhanças entre as duas São Paulo são muitas,
especialmente no que se refere à vida cultural e religiosa.
Em Metrópole do Café (1872-1918) a ruptura com o passado é evidente. Alguns
temas, presentes nos volumes anteriores não são mencionados ou não têm destaque, como
as procissões e a expressões culturais ligadas ao passado colonial e imperial. Em alguns
momentos, Bruno critica a cidade que reconstrói o seu passado, desfazendo-se daquilo que
não era condizente com a europeização pretendida. A riqueza gerada por seu principal
produto torna a cidade de a partir de 1870 a Metrópole do Café, indiscutivelmente, segundo
o autor. Dadas as modificações, inúmeras famílias abastadas (ou não) do interior procuram
67
se fixar na capital, que recebe o “benefício” do afluxo de imigrantes europeus (1954, p.
900-904).
A demolição dos caracteres coloniais e a reconstrução dos edifícios em “estilos
universalmente consagrados” reinventavam o passado. Uma vez destruídos os símbolos da
cidade pregressa e construídos sobre eles os símbolos da cidade do presente, projetava-se o
futuro almejado especialmente pelas elites paulistanas – o desejo de ser uma urbe europeia,
não apenas nos edifícios, mas também nos costumes. A crítica de Bruno às perspectivas de
remodelações é de que o passado destruído não era substituído, dada a velocidade na qual
se processaram as transformações. Não houve, segundo ele, a substituição por uma
“fisionomia bem definida”. São Paulo era uma cidade provisória. Tudo era incompleto
(1954, p. 912).
Apesar de criticar as transformações, elas são consideradas um “mal necessário”.
Para Bruno, se o antigo arraial e o burgo quisessem se firmar e conquistar a sua posição de
destaque, como uma metrópole, o tributo a ser pago era este (1954, p. 914) – desfazer-se de
si para tornar-se outra cidade, com os olhos voltados para o futuro.
Tendo em vista essas considerações, a obra de Bruno, sobretudo na Metrópole do
Café, consolida a imagem de uma São Paulo nova, cujos elementos não possuem ligação
com o passado pré-1870. O imigrante europeu, a riqueza, a industrialização, a cidade do
trabalho e que não para são constituintes dessa nova cidade, ou melhor, metrópole – quem
na década de 1950 olha para o passado apenas com a nostalgia daquilo que deixou de ser
em nome do progresso. Bruno, sem dúvida, escreve a memória de uma metrópole (LOFEGO,
1996), pois este era o discurso que deveria ficar.
Na obra de Jorge Americano, de 1957, a apresentação de sua sobrinha, Amelia
Castro, intitulada “Um espelho daquele tempo”, empresta o conceito do historiador francês
Phillipe Ariès. Castro não se refere a um espelho enquanto uma representação fiel do
68
passado, mas um espelho do tempo de quem escreve. São Paulo naquele tempo, então, é
uma recuperação da cidade do passado, a partir da vivência passada e presente de Jorge
Americano.
Justificando-se, Castro diz que o ato de restituir o sentido das pequenas coisas,
característica presente no conjunto dos escritos de Americano, além de levar a pensar nas
diferenças e nas semelhanças “compõem a identidade do microcosmo que é uma cidade”
(AMERICANO, 2004, p. 15). A metrópole consolidada, por meio de alguém que acompanhou
o processo de sua formação, volta os olhos ao seu passado – ou, por que não, o autor volta-
se ao seu passado e relaciona-o às transformações da urbe paulistana.
O que especialmente nos chamou a atenção ao longo das reflexões do então
morador do bairro dos Campos Elíseos foi a sua relação com as criadas, as irmãs Narcisa e
Aninha. Não se pode afirmar com certeza que eram negras, porém, há trechos de sua obra
em que Aninha aparece enquanto integrante da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos,
durante uma procissão. Além disso, há vestígios das impressões destas duas mulheres a
respeito da sociedade em que vivem.
Há dois capítulos que demonstram a sua percepção da cidade “daqueles tempos”.
Um deles é o que faz referência aos “cheiros que se sentiam”. Estes eram bons e maus
odores – a fumaça, o carvão, o café. As fezes de animais e a urina das pessoas. Os aromas
das flores do dia e da noite. As pessoas – o “preto” ou o imigrante e o seu “cheiro de suor
azedo”. O incenso das igrejas. O cheiro da multidão. Cheiros de diversas procedências e,
além disso, os aromas da riqueza e da pobreza (2004, p. 169-171).
Outro capítulo é o denominado “gente que a gente via”. Neste notam-se as
presenças europeias – portugueses, espanhóis, alemães e italianos. Outros estrangeiros,
como os japoneses, os judeus e os sírios, além dos nacionais – mineiros, nordestinos,
caipiras e os de “faces pretas”. Todos estes grupos são descritos em suas vestes (espanhóis,
69
caipiras), em seus hábitos (portugueses, mineiros, italianos) ou ainda em suas
características físicas (negros, judeus, japoneses, nordestinos) (AMERICANO, 2004, p. 318).
Aliando-se às visões dessa São Paulo que aparece pouco em Martins e em Bruno,
urbe em que os elementos da pobreza e da riqueza coexistem, frequentemente notam-se as
relações culturais e de costumes com a Europa, especificamente com a França. Americano
apresenta nas entrelinhas o cosmopolitismo que se tornava uma característica marcante da
Pauliceia. Elementos de diversas origens, de dentro e de fora do país reúnem-se em um só
lugar. De sua obra, Americano diz:
Procurei mostrar a nossa vida média. Os ricos perpassam ocasionalmente e, dos pobres, aparecem naquilo em que a ilustram, os do serviço doméstico, operários, costureiras, caixeiros, vendedores ambulantes, mendigos, tipos da rua. O objetivo não foi espelhar São Paulo daquele tempo. Mas como São Paulo já espelhava o mundo, fala-se de acontecimentos externos, guerras, catástrofes e política exterior (AMERICANO, 2004, p. 422).
Dessas poucas palavras de Americano, nota-se que a sua São Paulo abrigava pobres
e ricos, observados pelos que viviam uma “vida média”. A frase final é de impacto: não se
objetivou espelhar a cidade daquele tempo, pois esta extrapolava os seus limites e
compreendia o mundo. Dessa forma, os três autores convergem ao dizer que a cidade não
era mais a mesma. Embora as populações pobres apareçam de modo diferente em
Americano, a partir de sua obra pode-se perceber o crescimento da importância dada ao que
é estrangeiro, sobretudo europeu ou estadunidense, e a crescente desqualificação do
elemento nacional, sobretudo o pobre11.
Martins, acompanhando com seus olhos as transformações desde que estas se
iniciaram, percebe que a cidade tornava-se um novo espaço. O título São Paulo Antigo é
um vestígio de que algo era deixado para trás – uma cidade compreendida entre 1554 e
11 Quando este autor trata das compras feitas no elegante comércio das ruas do Triângulo, ressalta uma senhorita que exigia tecidos estrangeiros para confeccionar suas roupas. Tecidos nacionais ficam para as criadas (AMERICANO, 2004, p. 77). Sobre a desvalorização do elemento nacional livre e pobre e o enaltecimento de seu contraparte, o imigrante europeu, ver NAXARA , Márcia R. C. Estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro, 1870-1920. São Paulo: Annablume/FAPESP, 1998.
70
1910. Bruno, ao escrever, registra a História e as Tradições paulistanas, elege não apenas
quem fará parte dessa história e quais são – ou eram – os costumes desta cidade, mas em
que momento e em que configuração os indivíduos e seus hábitos cotidianos estes sujeitos
deverão aparecer.
Para cada expressão de São Paulo, seja enquanto arraial, burgo ou metrópole,
existem os elementos que tornarão coerente o conjunto da cidade e a história que dela se
escreve. O antigo, não condizente com o moderno, é apresentado com o distanciamento que
é necessário para classificá-lo como tal. A coexistência de modos diferentes – daqueles
inspirados na Europa, de ser, de viver, de morar surgem de forma breve ou
desqualificadora.
Tanto Martins quanto Americano foram membros do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo. Como membros de um grupo, em momentos diferentes,
comungam de ideias semelhantes, reservadas as expressões de momentos distintos. Como
salientamos, coube ao IGHSP, na ausência das universidades, escrever uma história paulista,
cujas características a tornam específica e, de certa forma, superior às outras regiões do
Brasil.
Antonio Egydio fez a ponte entre o passado e o presente, transcrevendo documentos
relativos à história paulistana, destacando especialmente os seus grandes nomes e as
características que levaram São Paulo à condição que se via no início do século XX . Do
passado, fica a nostalgia. Americano, por sua obra, apresenta uma cidade que em sua
infância já espelhava o mundo – ambos falam do início dos novecentos. Como este viveu –
e escreveu – na década de 1950, quando São Paulo já tinha mais de um milhão de
habitantes e era incontestável que esta era uma metrópole cosmopolita, as características da
cidade “daquele tempo” fazem parte de um percurso.
71
Percurso também é o que faz Ernani Bruno, que embora não fazendo parte do
IHGSP, obteve o reconhecimento de grandes nomes da intelectualidade brasileira daquele
momento, como Gilberto Freyre e alguns dos membros do Instituto paulista. Certamente
este reconhecimento se deve ao fato que sua obra, rigidamente dividida em três volumes,
enaltecia a “pátria paulista” e sua trajetória de glória e de progresso e os sujeitos que fazem
parte da Metrópole do Café – tanto no sentido estrito quanto no discurso presente em sua
obra.
4. O LUGAR DA IRMANDADE DO ROSÁRIO NAS MEMÓRIAS DE SÃO PAULO
“Do Rosário...”: a antiga sede
Com destaque, no início do décimo capítulo do segundo livro de São Paulo Antigo,
Antonio Egydio Martins discorre, primeiramente, sobre a Igreja de Nossa Senhora do
Rosário, que existia no largo de mesmo nome. Segundo este cronista, o templo foi fundado
por Domingos de Melo Tavares e em fins do ano de 1725 obteve licença para a construção,
que se deu após o levantamento do custo de dez mil cruzados, recolhidos por meio de
esmolas nas Minas Gerais (2003, p. 319).
Por outro lado, e aparentemente parcial, Bruno apresenta duas datas prováveis da
construção da primitiva Igreja do Rosário. Tal fato se deu entre 1715 e 1725, segundo duas
fontes, que são Afonso de Freitas e Nuto Santana. Neste momento de sua obra, o autor
menciona a sede da Irmandade do Rosário (fato que não é declarado neste ponto)
relacionando-o com a construção de outros templos no mesmo contexto (1954, p. 123).
Diferindo de outros estudos, Martins afirma que a Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos foi instituída após a construção do templo, no ano de 1810
72
(quase cem anos após a data que outras fontes apontam – 171112), quando é aprovado o
Compromisso da mesma (2003, p. 319).
Inicialmente não faz menção às atividades religiosas ou momentos de sociabilidade
da Irmandade do Rosário. Martins discorre sobre todos os capelães que passaram pela
Igreja dos Homens Pretos, sempre evocando sua filiação paterna e a data de seu
falecimento. O capelão destacado nessas referências é o cônego João Nepomuceno
Manfredo Leite, este “ilustrado sacerdote” foi quem em 15 de abril de 1906 procedeu à
bênção do novo tempo, erigido num “pequeno terreno do Largo do Paissandu” (2003, p.
320-322).
O Largo do Rosário ganha um capítulo no livro de Americano, no qual se fala da
Igreja, de propriedade da Irmandade do Rosário e do aluguel de duas de suas portas
laterais, como num ponto anterior. Desta vez, Americano se utiliza do largo para referir-se
às moças que paravam neste ponto para descansarem após as compras no Triângulo e aos
homens que tinham predileção pela vista proporcionada por este logradouro (2004, p. 137).
Da antiga sede, do Largo do Rosário, a característica da propriedade merece
destaque. Martins apresenta a Irmandade como posterior à Igreja, que é mais valorizada em
seu papel do que a associação dos negros. A igreja aparece com frequência em São Paulo
Antigo, como um dos pontos de passagem das antigas procissões, características maiores do
passado paulistano. O meio do qual se utilizou para construir o templo também chama a
atenção, uma vez que a edificação só foi possível por meio de doações de moradores de
outra região da colônia portuguesa.
Quando a irmandade é associada ao templo, este perde sua importância inicial,
como se a agremiação desse suas características bárbaras à edificação. No período de julho
a dezembro de 1898 a Irmandade do Rosário foi impedida de realizar em sua igreja
12 Maria da Conceição dos SANTOS (2006) e Raul Joviano AMARAL (1991).
73
qualquer ofício religioso. O impedimento se deu porque a Irmandade, sem autorização do
Ordinário da Diocese de São Paulo, alienou a sacristia da Igreja do Rosário (MARTINS,
2003, p. 320).
As atividades que antes se realizavam pela Irmandade em sua antiga sede não são
citados por Americano. Provavelmente, além das procissões, os eventos realizados pelos
“pretos do Rosário” não fazem parte de suas memórias de infância. Bruno, no entanto,
raramente menciona a propriedade da Igreja do Rosário, mas quando discorre sobre os
folguedos posteriores às procissões, classificados como anacrônicos e pertencentes às
culturas africana e mestiça, diz que eram feitos sob responsabilidade da Irmandade do
Rosário (1954, p. 755). A organização só se faz presente nos dois primeiros volumes e, por
extensão, nas duas São Paulo que precedem a Metrópole do Café.
O momento da desapropriação: ação e representação
A administração municipal investiu contra o Largo do Rosário e a Igreja dos
Homens Pretos em dois momentos. O primeiro foi em 1872 e o segundo em 1903. Nas
palavras de Martins, no primeiro momento, a Câmara Municipal “achando de muita
conveniência” desapropria pela exígua quantia de 600 réis os pequenos prédios e o terreno
que servia de cemitério, imóveis pertencentes à Irmandade, no intuito de se ampliar o largo.
Nestes prédios habitavam “casais de pretos africanos”, que depois de libertos se instalaram
nestes imóveis com quitandas. Segundo o autor, estes, assim que podiam, compravam
escravos para si e eram mais cruéis do que os senhores brancos (2003, p. 325).
Quintão considera o fato de que capitalistas europeus estão entre os que querem
investir na cidade de São Paulo em fins do século XIX . Para que pudesse “ser digna” de
receber tais investimentos, a cidade necessitaria de um “aspecto de civilidade, esta
74
fortemente ameaçada com a presença dos negros” (2002, p. 13). O pontapé inicial foi
contra a Irmandade do Rosário, núcleo importante da comunidade negra na capital paulista.
O ano de 1872 possui um significado grandioso para Bruno e para Martins. Para o
primeiro, é quando a Metrópole do Café começa a existir. Para o autor de São Paulo
Antigo, é quando se iniciam as transformações que viu se desenrolaram até o momento em
que ele escreveu (2003, p. 338). Nesse mesmo ano, pela primeira vez, a Igreja e a
Irmandade do Rosário sofrem a primeira investida em nome da modernização. Pela
ampliação do largo, elementos que ali se encontravam deveriam ser suprimidos, levando
consigo suas especificidades – um conjunto de tradições e de costumes dos pretos
africanos que habitavam no centro de São Paulo.
O segundo momento foi em fins de 1903. Desta vez, “a Câmara Municipal,
reconhecendo novamente a necessidade de ser alargado aquele largo”, desapropriou-se a
Igreja do Rosário, pela quantia de 250 contos de réis. Neste momento, um sobrado vizinho
também foi desapropriado pela mesma razão, pela quantia de 290 contos, valor superior ao
da edificação eclesiástica (MARTINS, 2003, p. 327).
Nesse ínterim, “consciente ou inconscientemente” a administração municipal, aliada
ao poder eclesiástico eliminavam os caracteres da cidade colonial, a “feição tradicional ou
provinciana mais acentuada”. Aos poucos os “passos”, como eram chamados os pontos das
procissões, desapareciam. Festas tradicionais, como a da Penha, deixam de ser realizadas.
As festividades que tinham lugar no Largo do Rosário, que remetiam às culturas
africana e mestiça, arraigadas nos tempos colonial e imperial, eram privadas de seu espaço
pela administração municipal, representada pelo “modernizador” prefeito Antonio Prado. A
Igreja, a Irmandade, o Largo e os negros que tomavam parte desse espaço representavam,
unidos aos ambulantes, um “desafeto à elite e ao poder público, por estarem localizados
num dos pontos que mais se europeizavam – o ‘Triângulo Central’, (...) área destinada a ser
75
um dos símbolos da metrópole moderna” (SANTOS, 2008, p. 125). São Paulo se
transformava em urbe europeia. Os elementos coloniais – e nacionais, pediam espaço para
os estrangeiros.
Essas transformações atingiram diversos setores, mas buscamos nos deter, nas
fontes, às transformações dos edifícios religiosos. Sobre estes, nota-se uma crítica, embora
sutil, de Bruno. As igrejas não escaparam ao processo, e o autor diz isso em tom de que
estas poderiam ser poupadas. Muitas foram demolidas, e algumas – não todas – deram
lugar a “templos monumentais” e em linhas modernas, porém não condizentes ao passado
da cidade (1954, p. 918).
O espaço do Largo do Rosário estava entre os destinos preferidos das confeitarias
de luxo, das alfaiatarias e lojas elegantes de tecidos estrangeiros, das casas bancárias e o
ponto por onde passavam todas as linhas de bonde, reunindo moças, senhoras, senhores,
engraxates, ambulantes. Era o “coração da cidade”, como disse Bruno (1954, p. 1003).
Demolida a igreja e reformado o Largo do Rosário, este foi rebatizado com o nome
do prefeito que havia se empenhado para reconstruir a capital nos moldes europeus e
civilizados. O espaço foi ressignificado (SANTOS, 2008, p. 126). Nem a alusão ao nome da
padroeira da comunidade que fora retirada dali permaneceu. Sem dúvida, o largo estava
onde deveria estar, do ponto de vista dos “modernizadores” de São Paulo – no passado.
Nos escritos de Bruno, o ato da desapropriação não é mencionado. Em Americano,
apenas se perpassa, e o sentido da Praça Antonio Prado é o que permanece. A memória,
enquanto território de semelhanças, não admite rupturas, como na história (HALBWACHS,
2006, p. 109). Considerando estes autores como memorialistas e sujeitos que evocam uma
memória paulistana, as permanências são uma característica de suas obras como um todo.
A representação que permanece é a de uma administração preocupada com os
rumos da cidade e da consolidação de uma metrópole cosmopolita, e que apesar desta
76
característica, elegia apenas símbolos do presente (de modo mais abrangente, um “novo
passado”), estes símbolos eram aqueles que mantinham a coerência da urbe europeia,
pretensão desta mesma administração. O discurso que constitui a cidade não pode ser
confundido com ela, porém, existe uma ligação entre eles. A cidade, por meio de suas ruas
e de seus sinais visíveis, leva quem a vê a repetir este discurso (CALVINO , 2003, p. 20; 61).
O novo suplanta o antigo, a metrópole desvencilha-se de seu passado “rural” e inscreve-se
num presente de prosperidade, civilização e urbanidade. Os elementos desse passado serão
apenas recordados com nostalgia, pois não há mais lugar para eles na cidade do presente.
Era como disse Bruno, o preço a ser pago.
“... ao Paissandu”: a construção da nova sede
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, segundo George
Andrews, não possuiu envolvimento direto com a campanha abolicionista como aquela
liderada por Antonio Bento, predecessor de Luiz Gama, a Irmandade de Nossa Senhora dos
Remédios. Além das manifestações culturais realizadas no antigo endereço, no Largo do
Rosário, a Irmandade dos Homens Pretos não era muito conhecida, afirmação possível a
partir da leitura de Andrews. Este diz que a comunidade emerge a público no início da
década de 1900, quando a desapropriação de sua sede foi o motivo de uma disputa entre
estes e a administração municipal (1998, p. 219).
Segundo Maria da Conceição dos Santos, outras irmandades também foram alvo
das transformações da aparência urbana paulistana (2006, p. 103). A partir da leitura de
Bruno, isto pode ser considerado uma das características do urbanismo – o ato de
reconfigurar e ressignificar os espaços está intrinsecamente ligado com a supressão dos
símbolos de um passado que não deveria mais ser visível nas ruas e nos costumes. As
irmandades, as procissões, os batuques – estes são elementos de um burgo, não de uma
77
metrópole. A religiosidade e suas expressões perdem o interesse dos paulistanos, que agora
têm à disposição um mundo de espaços e atividades para o seu entretenimento (BRUNO,
1954, p. 1221).
A resiliência, isto é, a capacidade de reconstituir-se após um momento extremo de
dificuldade, é uma das características marcantes da Irmandade do Rosário, e Maria da
Conceição dos Santos defende esta tese. Embora muitas organizações religiosas e templos
deixassem de existir, a Irmandade dos Homens Pretos foi capaz de negociar com a
administração municipal – o prefeito Antonio Prado, e subsistiu em meio a remodelação
urbana, mesmo em outro lugar que não o seu, habitado desde o primeiro quartel do século
XVIII (SANTOS, 2006, p. 103).
Bruno, ao falar sobre todas as construções eclesiásticas, diz das mais antigas e
menciona as novas que estavam sendo construídas – quase todas fora do centro. A última
descrita é a nova Igreja do Rosário – não há nenhuma referência à antiga no terceiro
volume, nem às suas festividades ou à Irmandade do Rosário. Desta apenas diz que foi
inaugurada em 1906, “no Largo do Paissandu, edificada gratuitamente por trabalhadores
negros” (BRUNO, 1954, p. 926). Desta vez, o autor recorre a Alcântara Machado, que disse
que os construtores dos antigos templos de São Paulo não se preocuparam com a beleza e
nem com a durabilidade de seus templos, utilizando materiais de pouca resistência e que
tornaram indispensável a reconstrução em meados do século XX .
Comparando essa ponderação com as reflexões do próprio Bruno e de outros que
estudaram as reformas urbanas de São Paulo, apresentados no decorrer desta pesquisa,
sabe-se que o motivo da reconstrução dos templos não é somente este. Algumas páginas
adiante, o autor retoma sua posição – embora vacilante, notando-se o conjunto da obra –
dizendo que as reformas atendiam ao gosto europeu e maravilhavam os olhos dos visitantes
do Velho Mundo, sendo necessário para tanto sacrificar os elementos locais (1954, p. 943).
78
Apesar de parecer contrariado, Bruno justifica o passado suprimido e enaltece a
construção de um novo passado para São Paulo, por meio de seus edifícios. Suas críticas à
remodelação são breves e em seguida ressalta a necessidade delas, dessa vez buscando o
respaldo nas palavras de Alcântara Machado, escritor que faz o mesmo. Mesmo criticando
a pretensão europeia das construções e o gosto duvidoso das novas construções paulistanas
(SANTOS, 2008, p. 71-72), não deixa de ressaltar a “necessidade” dessas obras.
Às igrejas, Americano dedica um dos capítulos mais recheados de ilustrações, feitas
por ele próprio, das construções eclesiásticas paulistanas, muitas delas, pertencentes ao
passado. O autor não se resume às descrições “técnicas” dos edifícios. Da Sé, diz de seu
estilo “colonial pobre” e da residência do bispo, próxima da catedral.
Além de outras, fala da Igreja do Rosário, e que esta ocupava um terço do que se
tornou a atual Praça Antonio Prado. Este templo possuía três entradas laterais, sendo que
duas eram alugadas e uma servia de entrada para a sacristia. “Existiu até mais ou menos
1904” e foi demolida para o alargamento do então Largo do Rosário e nesta ocasião,
encontraram-se esqueletos no subsolo, vestígios do antigo costume de se enterrar pessoas
nas igrejas. Ao contrário de seu contemporâneo Ernani Silva Bruno, Americano menciona
que a Igreja era de propriedade da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos – e agora, acrescenta, encontra-se instalada no Largo do Paissandu (2004, p. 121).
O Largo do Paissandu tem suas origens nos primeiros anos do século XIX , quando
era Tanque do Zunega (ou Zuniga), próximo à Igreja de Santa Ifigênia. Local alagadiço,
que em 1813 foi denominado Praça das Alagoas (BRUNO, 1954, p. 178). O nome de
Paissandu foi dado ao largo em 1865, ao mesmo tempo em que o Largo do Bexiga passava
a se chamar Riachuelo (BRUNO, 1954, p. 530), ambos alusões à recém-terminada Guerra do
Paraguai. O “pequeno terreno” do qual fala Martins (2003, p. 322) frequentemente
79
vigorava na lista nos lugares “perigosos” da cidade de São Paulo, devido os seus
frequentadores – prostitutas, por exemplo (SANTOS, 2008, p. 126).
Santos afirma que mesmo após a mudança, o lugar ocupado pela Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e por sua sede, a igreja permaneceram como
espaço de sociabilidade – um “ponto de encontro e de crença” não apenas dos negros, mas
também da população pobre do centro da cidade de São Paulo (2008, p. 126).
5. CONCLUSÕES PARCIAIS
Segundo o sociólogo Maurice Halbwachs, a História assemelha-se a um “cemitério
em que o espaço é medido e onde a cada instante é preciso encontrar lugar para novas
sepulturas” (2006, p. 74). Tal afirmação é semelhante à consideração de Christian Laville,
historiador canadense da contemporaneidade, quando este discorre sobre o poder que se
atribui ao ensino de História pelos governos, no que se refere à construção de uma
identidade nacional: “o passado é imprevisível”. Constantemente a história é reescrita, de
acordo com os objetivos dos grupos que nela veem um instrumento ideológico poderoso13.
Michael Pollak denomina o trabalho da eleição dos elementos constitutivos de uma
memória de enquadramento. Este trabalho, do qual se utilizam governos, serve para
delimitar fronteiras sociais ou modificá-las (1989, p. 9). Ao procurarmos analisar nas obras
de Antonio Egydio Martins, Ernani Silva Bruno e Jorge Americano, nos propusemos a
observar como a Irmandade do Rosário dos Homens Pretos era representada por indivíduos
que se encontravam do lado de fora da referida confraria.
Relacionando as obras aos momentos em que foram produzidas, os objetivos de
seus autores, bem como a forma em que aparecem a Irmandade e a Igreja do Rosário, assim
como a população pobre e a egressa da escravidão na capital paulista, deparamos-nos com
13 LAVILLE , Christian. “A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de História”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v. 19, nº 38, 1999, p. 125-138.
80
três autores ao mesmo tempo distintos e semelhantes. Suas diferenças estão principalmente
na forma de apresentação: Martins e seu texto “oficial”, trazendo inúmeras descrições de
documentos e demarcando os grandes homens e seus feitos; Bruno, com História e
Tradições da Cidade de São Paulo evocou a memória de uma cidade a partir de recortes
cronológicos determinantes de três expressões da cidade: o arraial, o burgo e a metrópole –
definindo quais elementos faziam parte de cada uma dessas realidades; Americano, de
modo leve, registrou suas impressões de uma cidade cosmopolita e que refletia o mundo.
A representação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, de
modo geral, encontra nos escritos uma semelhança. O discurso construído pelos três
autores ressalta a preponderância do novo, do civilizado, em detrimento do antigo e do
colonial. Duas São Paulo são notáveis: a cidade-metrópole, tanto a delineada em 1910
quanto a indiscutível dos anos 1950. A partir da materialidade simbólica dos discursos
(ORLANDI , p. 18) nota-se a representação da cidade moderna, enquadrando os fatores
constituintes da identidade paulistana, dos quais não faziam parte as características
“anacrônicas” das irmandades, das procissões e das tradições e costumes das populações
tanto pobres quanto descendentes dos escravos africanos. Estes todos estão no passado.
81
PARTE II : VIDA , IDENTIDADE E AUTORREPRESENTAÇÃO DA IRMANDADE DO ROSÁRIO
1. A FORMAÇÃO DE UM TERRITÓRIO NEGRO : O LARGO DO ROSÁRIO
Sob o signo de Nossa Senhora do Rosário
Ó minha Mãe, Senhora do Rosário, Rainha sois, quero vos coroar. Hoje protesto neste Santuário:
Até morrer, vos hei de sempre amar. (do Cântico à Nossa Senhora do Rosário)
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo, hoje
com quase trezentos anos de existência guarda consigo consideráveis experiências da
comunidade negra paulistana ao longo de sua vida. Diversas confrarias existiram na
Pauliceia, tais como a de Santa Ifigênia, São Benedito e Santo Elesbão, do Santíssimo
Sacramento, de Nossa Senhora da Boa Morte, entre outras (SANTOS, 2006; QUINTÃO,
2002). A da Boa Morte era a dos Homens Pardos. Do Rosário, existiam duas – a dos
Homens Brancos e a dos Homens Pretos (MARTINS, 2003). Destas três, que destacam a
composição étnica de seus membros, apenas a dos Homens Pretos permanece.
Como destacamos na primeira fase desta pesquisa, as irmandades negras dedicadas
à Nossa Senhora do Rosário remetem ao domínio colonial português na África, sobretudo
na região correspondente ao Congo. Ainda naquele continente, os africanos tiveram contato
com o cristianismo e devido à fácil assimilação dos elementos dessa religião acabaram por
adotar Nossa Senhora do Rosário como padroeira. A prática exterior do culto, repleta de
simbolismos e de pompa atraiu os africanos a esta devoção, o que mesmo com algumas
ressalvas por parte do colonizador europeu, foi celebrada com características peculiares ao
povo que era escravizado (SOUZA, 2002).
82
Evocando as origens, Raul Joviano Amaral, logo no início da obra Os Pretos do
Rosário de São Paulo dedica-se à justificativa da devoção à Nossa Senhora, especialmente
à “do Rosário”. A oração do Rosário, por meio dos pai-nossos e das ave-marias, é uma
forma, segundo Amaral, de suplicar a Deus as graças necessárias e pedir à Jesus, por
intermédio de Maria, o perdão dos pecados e a salvação da alma (1991, p. 18).
A oração do rosário é uma prática medieval, segundo a tradição cristã revelada por
Maria a São Domingos, que a difundiu posteriormente por sua confraria – a ordem
dominicana. Ao longo do tempo, a forma de recitar a oração foi se alterando, até tomar a
forma atual. O compromisso dos irmãos da confraria dos Homens Pretos é recitar ao longo
da semana todo rosário (AMARAL , 1991, p. 20).
O rosário é uma oração contemplativa, composta por 20 dezenas de ave-marias
precedidas por um pai-nosso cada uma. Cada dezena ou mistério é uma reflexão acerca de
passagens da vida de Jesus e de Maria. Até o ano de 2002, o rosário era composto por 15
dezenas, divididos em três grupos de cinco mistérios. A esses grupos, dá-se o nome de
terços (por serem terços do rosário), nomenclatura que se popularizou, mesmo quando o
papa João Paulo II acrescentou mais um grupo.
Os terços são agrupados em mistérios da alegria (antes do nascimento de Jesus e sua
infância); da luz (início da vida sua pública); da dor (sua paixão e morte) e por fim, os da
glória (ressurreição de Jesus, sua ascensão, a vinda do Espírito Santo e por fim a coroação
de Maria)14.
Antes de discorrer sobre a história da Irmandade dos Pretos de São Paulo, Raul
Amaral traz alguns apontamentos a respeito da colonização do Brasil por Portugal e da
relação entre esta e a evangelização dos povos do Novo Mundo. A metrópole paulistana,
14 Informações sobre o rosário e sua definição oficial religiosa, consultar JOÃO PAULO II, papa. Carta Apos-tólica Rosarium Virginis Mariae. 16 out. 2002. Disponível em <http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jp-ii_apl_20021016_rosarium-virginis-mariae_po.html> Acesso em 18 nov. 2009.
83
destaca o autor, “se fundara sob os moldes dos ensinamentos morais da Santa Igreja”
(1991, p. 27).
Às vistas dos “emudecidos e espantados” indígenas, o português celebrava seu culto
religioso – a missa. Os colonizadores traziam “os núcleos sociorreligiosos, católicos,
representados pelas confrarias de Nossa Senhora do Carmo, de Nossa Senhora dos
Prazeres, de Nossa Senhora do Rosário, do Santíssimo Sacramento, etc.” de suas terras
(AMARAL , 1991, p. 27).
Quase concomitantemente à fundação da vila de São Paulo – com missa ao
“apóstolo dos gentios”, chegaram à colônia portuguesa os primeiros escravos africanos.
Raul Amaral comenta sobre o início da escravidão no Brasil falando da religiosidade dos
negros vindos:
Povos de usos e costumes diversificados, adoradores de divindades próprias peculiares à sua região e desconhecidas em outras do país, os Negros, arrancados do seu habitat para as terras do Novo Mundo, tiveram as suas crenças e os seus cultos perseguidos e excomungados. Todo o seu rico e variado ritual – com as suas práticas mágico-religiosas e mágico-rituais – foi considerado bárbaro pelo branco, e toda a galeria dos seus deuses (...) acabou sumariamente banida, desmoralizada, proscrita (AMARAL , 1991, p. 28).
Como “elemento humano, como personalidade, como homens”, disfarçaram seus
cultos em meio às práticas cristãs. O catolicismo formou-se também a partir das
assimilações de diversas crenças e culturas do mundo europeu, associados aos santos do
hagiológio. Diante dessa reflexão, considera natural a ação realizada pelos negros no
Brasil, face à proibição de suas práticas – o disfarce, dentro do espaço das confrarias, as
irmandades de Nossa Senhora do Rosário, de Nosso Senhor do Bonfim, de São Benedito,
Santa Ifigênia, entre outros (AMARAL , 1991, p. 28).
No caso baiano, as confrarias tinham como função implícita representar social, e às
vezes politicamente, diversos grupos sociais e ocupacionais. Auxiliavam a “tecer
solidariedades fundamentadas na estrutura econômica”, uma vez que em seus
84
compromissos notava-se exigência de que os membros possuíssem bens materiais, além do
espírito de devoção religiosa. Porém, outro critério utilizado para a admissão de novos
irmãos, e empregado com maior frequência, era o étnico-racial: existiam as irmandades de
pretos, de brancos e de pardos (REIS, 1991, p. 53).
A devoção a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito são características
próprias aos negros bantos. A religião e a recreação, segundo Amaral, eram a forma
encontrada por estes sujeitos para adaptar-se, de modo a não serem castigados por suas
práticas religiosas próprias. Portanto, afirmou o falecido juiz-provedor da Irmandade do
Rosário, que as devoções acima vieram ao Brasil prontas do Congo. Missionários europeus,
sobretudo portugueses, levaram ao conhecimento dos africanos o culto dos santos. A
proliferação das irmandades negras em terras brasileiras era, segundo Amaral, uma forma
de esconder, por meio dos santos católicos, o culto dos orixás e de outras divindades de
origem africana (1991, p. 32).
As confrarias davam aos africanos, além da segurança para praticar sua
religiosidade, os laços de “solidariedade no sacrifício, chamando-se uns aos outros de
‘malungos’, isto é, irmãos”. Para Raul Joviano Amaral, a identificação com o outro, o
espírito fraterno que nascia e a reorganização das relações pessoais, visto que eram de
nações diferentes, só as irmandades poderiam dar (1991, p. 33).
A escravidão em São Paulo foi tardia em relação às outras partes da colônia
portuguesa. Os poucos negros que habitavam, escravizados, no pequeno arraial
piratiningano, aos poucos tomavam conhecimento da existência de seus pares, e também
paulatinamente vieram a se organizar em irmandades, estas tinham, entre outros objetivos
o estímulo maior à solidariedade; fortalecimento do sentimento religioso pela devoção em conjunto; possibilidade do desenvolvimento do culto dos mortos; incremento do desejo de ser alforriado, pela adoção dos princípios de liberdade e da compra cooperativista da respectiva carta; o ensejo das festas coletivas sem a incômoda fiscalização do “sinhô” (AMARAL , 1991, p. 34).
85
Estes indivíduos resolveram então fundar uma irmandade – “uma cooperativa
irmanando os Negros escravos, solidarizando-os no infortúnio comum, alimentando-os na
esperança de melhores dias”. Amaral fala em quatro ou cinco irmãos iniciais, que anos
depois tornar-se-iam trinta ou quarenta. Entre estes a solidariedade e a organização dos
ritos fúnebres. Ainda não possuíam templo, alguns anos depois erigido. O rosário feito de
contas de capim era o distintivo do irmão – malungo – de Nossa Senhora do Rosário. Estes
novos vínculos começavam para alguns ainda nas primeiras horas de cativeiro, entre os
malungos, que compartilhavam as agruras da travessia do Atlântico e que se mantinham
ligados para o resto da vida por esta dura experiência (OLIVEIRA , 1995/96, p. 181).
Em “2 de janeiro de 1711 a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos de São Paulo era uma esplendente realidade” (AMARAL , 1991, p. 34-35). O que
merece destaque das palavras de Amaral é sua ressalva quando se refere à fundação da
Irmandade – esta aconteceu seis meses antes da elevação de São Paulo à categoria de
cidade (1991, p. 36).
Para Clóvis Moura, o negro no Brasil foi sempre um organizador. Tanto na
escravidão quanto depois de seu término, o africano e seu descendente se organizaram.
Embora fossem agrupamentos frágeis e desarticulados, foram constantes – quilombos,
irmandades, grupos de candomblé, terreiros de umbanda e afins. Tais coletividades tinham
por objetivo remediar as consequências da escravidão, obter a liberdade ou ainda fugir à
“marginalização que lhes foi imposta após o 13 de maio”. Organizar-se era uma questão de
sobrevivência social, cultural e biológica, além de representar um reencontro com as
origens étnicas (MOURA, 1980, p. 143).
As organizações de caráter religioso, tais como as irmandades, eram formas de “luta
contra a espoliação do negro”, porém, ressalta Moura que esta luta nem sempre se dava de
forma consciente (1980, p. 146). George Andrews também afirma que as irmandades
86
embora contribuíssem de sua forma para o combate à discriminação, esta não era efetiva.
Não teria havido qualquer esforço coletivo diretamente associado à erradicação deste
desconforto (1998, p. 222).
Clóvis Moura destaca em meio a essas irmandades a de Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos de São Paulo. Segundo este autor, a confraria teria surgido das
dificuldades de se expressar a religiosidade própria dos africanos e a consequente
necessidade de organizar-se de acordo com a religiosidade dominante – o que notamos na
leitura de Amaral, uma das fontes de Moura. A agremiação paulistana teria desempenhado
ao longo de sua história, iniciada em 1711, um papel relevante na vida social dos negros
em São Paulo (1980, p. 147).
Os malungos e a construção da velha Igreja do Rosário
No tempo “distante”, a incipiente cidade de São Paulo girava em torno dos pátios do
Colégio dos Jesuítas e da Sé. Perto dali, alguns caminhos formavam a periferia. Próximo a
entrada de uma das trilhas,
que é hoje a muito conhecida e super poderosa rua Quinze de Novembro, havia um como que tabuleiro natural antecipando-se à íngreme descida que mais tarde nossos avoengos chamariam de Acu e nós a viemos a conhecer como a elegante e importante Avenida São João (AMARAL , 1991, p. 36).
Era uma cabeça de morro, “em pleno campo”, onde os africanos negros reuniam-se
secretamente, em suas curtas horas de lazer concedidas por alguns dos senhores15 para suas
práticas religiosas e, que “com medo”, realizavam seus cultos. Anos depois da constituição
da Irmandade, construiu-se uma capela rústica, em terras devolutas. Para ela, solicitaram à
Coroa sino e ornamento, a fim de serem colocados “pellos pobres escravos e pretos com
toda a devoção na Capella que edificarão por graça do Exmo. e Rvmo. Sr. D. Antonio de
Guadelupe”16 (AMARAL , 1991, p. 36).
15 No texto de Amaral, o termo senhores aparece grafado entre aspas. 16 Livro de Tombo da Sé. 2-2-19. Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, apud ARROYO, 1954, p. 205.
87
Amaral não dá uma data exata da construção do antigo templo da Irmandade do
Rosário, pois a documentação não permite que isto se faça. As indicações levam a crer que
ela se deu entre 1725 e 1750, “parecendo-se acertado que se dê e se considere a construção
no ano de 1730” (1991, p. 41).
Nos idos do século XVIII , quando os malungos erigiam a primitiva igreja em
“mutirão”, o espaço ocupado pela irmandade era, segundo Nuto Sant’Anna, um “subúrbio
tão distante, que, para ele, se exilavam os contagiados de bexigas, nos anos das grandes e
trágicas epidemias”. Raul Amaral atesta as palavras de Sant’Anna, transcrevendo um termo
de vereança de 1749, que menciona a presença dos doentes nas imediações da sede da
confraria (1991, p. 41).
Aos malungos construtores do templo Amaral chama de heróis, que “a História não
guarda senão na singeleza do anonimato, na gratidão indefinida dos pósteros, no coração e
no pensamento dos bons brasileiros, dos bons paulistas, das almas plenas de fervor
religioso” (1991, p. 42).
A orientação da construção, a partir dos documentos que Amaral traz no corpo de
sua obra, ficou a cargo de Domingos de Mello Tavares. A afirmação não foi passível de
confirmação – esta é a ressalva do autor (1991, p. 43). Num outro documento transcrito, de
1755, Tavares reitera que edificou a igreja e faz uma acusação contra a Irmandade, dizendo
que esta não tem o “zelo necessário para a Igreja e culto divino”. Em virtude disso, pede
que se lhe passe nova provisão e “confirmação de fundador e administrador daquella
Igreja” (apud AMARAL , 1991, p. 45-46).
A situação, pondera Amaral, deixa entrever uma divergência de perspectivas entre a
Irmandade e o seu ermitão. De um lado, o administrador busca angariar fundos em locais
distantes para a manutenção do templo e do outro, a Irmandade, ciente dos fundos que já
possuía e sentindo a ausência do administrador distante, nomeia outro (1991, p. 47).
88
As receitas das confrarias provinham das joias pagas pelos novos membros no ato
da admissão, além das contribuições anuais, esmolas, rendas obtidas com as propriedades,
entre outras formas de receitas eram, e ainda hoje são, o meio das irmandades prosseguirem
com o culto, a assistência aos irmãos e aos que solicitam, reformas e reparos nos templos,
bem como a aquisição de imagens e outros objetos próprios do culto religioso. Além disso,
tais contribuições são a forma de pagamento das despesas com as festas anuais ao orago
(REIS, 1991, p. 59).
Expressões da religiosidade dos Homens Pretos
O principal objetivo da Irmandade dos Homens Pretos era o culto à Nossa Senhora
do Rosário, cuja festa, apesar da falta de recursos tinha lugar com grande esplendor – “as
festas do Rosário marcaram época na história do povo paulistano”. Ano após ano as festas
tornaram-se ponto de encontro dos irmãos e demais habitantes da terra piratiningana.
(AMARAL , 1991, p. 48). Ernani Silva Bruno destacou em sua obra que as procissões e festas
religiosas na São Paulo arraial de sertanistas ou burgo de estudantes eram o ponto máximo
de recreação para os seus moradores (1954, p. 753).
No Archivo de Annuncios e Noticias da Irmandade do Rosário de São Paulo, o que
mais encontramos são recortes que se referem às celebrações da Semana Santa, Corpus
Christi, São Benedito e, principalmente, o dia de Nossa Senhora do Rosário e mês do
rosário (outubro). Num destes recortes, destaca-se a anterioridade da Irmandade em
celebrar o mês dedicado à oração direcionada à Nossa Senhora.
O papa Leão XIII (1878-1903) exortou que se celebrasse devidamente o mês
consagrado ao rosário e baseando-se na proposta do pontífice, o arcebispo paulistano
ordenou que a comemoração se desse em todas as igrejas de sua diocese. O recorte fala a
89
respeito disto e alude à Irmandade dos Homens Pretos que há tempos celebrava a
efeméride17.
As festas, como apresenta João José Reis, são uma “barganha”, uma “troca
simbólica, embutida na prática da ‘promessa a santo’ (...) uma relação familiar a
portugueses e africanos em suas culturas originais”. Ou seja, em troca da intercessão e do
amparo espiritual e material, os fiéis retribuíam em festas pomposas. (1991, p. 59).
O dia do padroeiro das irmandades era o momento máximo do ano. Nele, os
“irmãos e irmãs saíam aparatados com suas vestes de gala, capas, tochas, bandeiras,
andores, cruzes e insígnias em pomposas procissões, seguidas de danças e banquetes”. Nos
compromissos das confrarias frequentemente se encontravam orientações quanto ao zelo
dado à aparência das mesmas nas procissões, sobretudo durante a festa do orago. Deveria
se investir na compra de ornamentos para as irmandades e gastar menos com outras coisas,
como os comes e bebes (REIS, 1991, p. 61).
Todo esse fausto não era exclusividade das irmandades de negros na Bahia. Danças
no espaço religioso também eram um costume dos portugueses, devido à influência de
hábitos não-cristãos na península ibérica. Registros do século XV citam esta característica
das festas portuguesas, que resistiram mesmo à Reforma Católica e atravessaram o
Atlântico, chegando à colônia, onde se uniram às manifestações religiosas de africanos. Os
negros, por sua vez, foram atraídos por esse “catolicismo lúdico”, tanto na colônia quanto
na metrópole, e também “abriram novos canais para seu desenvolvimento” (REIS, 1991, p.
66).
As festas religiosas eram uma das atividades mais comuns no dia-a-dia baiano e as
irmandades, que eram muitas, estavam envolvidas na realização delas. Da mesma forma
17 Archivo de Annuncios e Noticias. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo. 1906-, fl. 8, verso. A exortação em questão está na Carta Apostólica Augustissimae Virginis Mariae. 12 set. 1897. Disponível em <http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_12091897_augustissimae-virginis-mariae_po.html> Acesso em 19 nov. 2009.
90
efusiva que se celebravam os santos padroeiros, também se solenizava a morte, uma das
maiores preocupações das confrarias, que não deixavam de garantir assistência aos seus
membros quando falecessem. Nas palavras de João José Reis, a “solidariedade grupal se
tecia da festa ao funeral” (1991, p. 70).
Na São Paulo do passado tudo estava associado à religiosidade. Diversas festas
davam-se na pequena urbe, na Semana Santa, nos dias dos santos e em outras celebrações
da Igreja. A comunidade negra, por meio da Irmandade do Rosário, fazia-se presente em
todos esses momentos da vida social-religiosa, ao lado de outras confrarias (AMARAL ,
1991, p. 48-49).
Das festividades em honra da oraga, Amaral diz que elas se pretendiam melhores a
cada ano: “se o rei e a rainha do ano anterior se tinham portado com enorme sucesso, por
que os novos festeiros também não o poderiam fazer?”. A competição interna promovia a
imponência ano a ano. A Irmandade do Rosário também se dedicava a outras atividades
religiosas, como a realização da catequese e diversas ligadas à liturgia católica (AMARAL ,
1991, p. 50-51), como também dissera Antonio Egydio Martins.
Além da devoção a Nossa Senhora do Rosário, havia também – e ainda há – a
celebração da memória dos santos Elesbão e Ifigênia, conhecidos dos negros brasileiros, e
também de Santa Edviges, especial à Irmandade do Rosário de São Paulo. A Irmandade de
Santa Ifigênia e Santo Elesbão foi instituída na “feia e desgraciosa” – nas palavras de um
“ilustre historiador paulista” – Igreja do Rosário, em 1801. Este mesmo historiador afirmou
também que a Irmandade do Rosário havia sido instalada em 1810. Amaral o critica,
questionando as fontes que este “preclaro escritor” teria utilizado para tal afirmação (1991,
p. 53). Possivelmente, o estudioso ao qual se refere Amaral é Antonio Egydio Martins. Nos
anos 1950, quando o integrante da Irmandade do Rosário escreveu, o cronista no início do
século era recuperado e servia de fonte para diversos tratados. Martins afirmou que a
91
confraria dos Homens Pretos foi instituída em 1810, muito tempo depois da construção do
templo (2003, p. 319).
Amaral contrapõe-se, afirmando que a Irmandade de Santa Ifigênia e Santo Elesbão
foi ereta em 1758, fato que atesta pela citação da provisão do bispo frei Antônio da Madre
de Deus Galvão. A nova confraria tinha “personalidade e funções distintas das do Rosário”
(AMARAL , 1991, p. 53) – esta fundada em 1711 (AMARAL , 1991, p. 35).
A inserção de novas devoções de origem europeia fazia parte do movimento
denominado ultramontanismo, preocupado em elevar o nível “cultural e religioso da
população”. Estas deveriam substituir a religiosidade popular praticada no Brasil. As novas
organizações que surgiam neste momento – meados do século xx, tais como a Pia União
das Filhas de Maria, o Apostolado da Oração e a Liga Vicentina diferiam das irmandades
de origem colonial em um aspecto de grande relevância: as novas eram subordinadas a um
clérigo, devendo obediência apenas a estes. As irmandades, como ponderamos, tinham
personalidade civil e eclesiástica e deveriam prestar contas a ambos os poderes e gozavam
de relativa autonomia a partir da constituição de suas mesas administrativas e
compromissos (QUINTÃO, 2002).
Quando se inaugurou o templo do Largo do Paissandu em 1906, o padre da Igreja
vizinha de Santa Ifigênia solicitou autorização para o funcionamento da “Pia União das
Filhas de Maria” na sede da Irmandade do Rosário, o que foi concedido. Pouco tempo
depois, em 1907, a Igreja do Paissandu alojava a sede da paróquia de Santa Ifigênia, que
era reconstruída. Esta última, uma vez pronta, acolheria em 1911 a sede diocesana, em
construção. Neste mesmo ano, a irmandade celebrava os seus duzentos anos de fundação
(AMARAL , 1991, p. 55).
A devoção a Santa Edviges “é uma das mais apreciadas, concorridas e cultivadas
práticas religiosas em São Paulo”. Os fiéis reconhecem esta santa como patronesse dos
92
pobres e endividados. Em 1938, um grupo de senhoras paulistas ofereceu uma imagem da
santa para ser exposta na Igreja do Rosário. O jornal A Gazeta, em 4 de abril de 1938,
noticiou o ocorrido, relatando que era a primeira vez que a imagem era exposta a público
na cidade. Os acontecimentos foram paraninfados pelo diretor d’A Gazeta, Cásper Líbero.
Instituía-se assim a devoção a Santa Edviges na cidade (AMARAL , 1991, p. 55-56).
Antes de iniciar o capítulo que trata das festividades no espaço da Irmandade do
Rosário, Amaral retorna às experiências vividas pelos africanos em suas terras de origem.
Ressalta a pluralidade cultural daquele continente, habitado por diversos grupos – as
nações. Em contato com outras civilizações, como a europeia ou muçulmana, por exemplo,
reelaboraram “seus próprios costumes e elaboraram a sua própria cultura, independente dos
costumes e da cultura do seu vizinho” (1991, p. 57).
Na diáspora, vieram para o Brasil negros de diversas partes da África. Aqui, eram
divididos entre as regiões do território, dispersando os contingentes homogêneos e
mesclando as nações, de modo que reorganizados, eram incapazes de se comunicar, dadas
os múltiplos dialetos falados entre os grupos. Embora os bantus sejam em menor número,
estes eram preferidos, sobretudo os de Angola, devido a sua capacidade de adaptação ao
novo meio. Um dos motivos da maior adaptabilidade destes era a religiosidade, uma vez
que já estavam familiarizados com o cristianismo, ao contrário dos sudaneses, fortemente
influenciados pelo islamismo (AMARAL , 1991, p. 58).
Amaral diz que os bantus18 foram substituídos aos poucos pelos da Costa da Mina,
porém, os primeiros deixaram marcas na “cultura, na língua, no folclore, na religião”.
Segundo o autor, a aptidão dos bantos à integração é verificável no sincretismo religioso –
no culto a São Benedito e a Nossa Senhora do Rosário, sob cujas proteções erigiram-se
18 Os bantus ou bantos são um grupo etnolinguístico da parte austral do continente africano, correspondendo grosso modo às regiões do Congo, Angola, Moçambique e regiões vizinhas a estes.
93
diversas “Irmandades dos Homens Pretos”. A presença das festividades ao “Rei Congo”
assinala a presença bantu (1991, p. 58).
Antonio Egydio Martins, analisado na primeira etapa desta pesquisa, é transcrito na
obra de Amaral, no trecho em que descreve as festas realizadas em honra de Nossa Senhora
do Rosário na São Paulo antiga. Estas eram narradas a partir da visão do cronista,
preocupado em manter determinadas tradições paulistanas no passado, como as atividades
da Irmandade do Rosário. O autor ligado à Irmandade diz estar habilitado “a descontar os
zelos preconceituosos ou os pruridos de esnobismos, os relatos desnaturados de certos
outros escritores, que não procuraram entender, na sua simplicidade, os anseios dos pobres
negros nas suas comemorações religiosas” (AMARAL , 1991, p. 59-60).
Além da prática religiosa, o espaço da Irmandade era também uma “oportunidade
de congregação, de fraternização”. Para Amaral, além da união provocada pelas festas
religiosas populares, no ambiente da rua, as separações não eram conhecíveis – inexistiam
distinções raciais, religiosas e sociais: “brancos e negros se nivelavam no ambiente da rua,
da rua democrática, democratizadora, que tanto aproxima, ignorando castas e privilégios”
(1991, p. 61).
Em meio a diversos espaços urbanos, as irmandades representaram aos africanos e a
seus descendentes um lócus de organização relativamente autônoma, onde puderam
também reconstruir suas identidades. Novos princípios de sociabilidade se forjaram além
do âmbito religioso. As festas e a celebração da morte, além de outros aspectos
intimamente ligados às irmandades, eram o momento da constituição de alianças e do
auxílio mútuo (ARAÚJO et al., 2006, p. 103).
A filiação às irmandades era um distintivo de prestígio no período colonial, uma vez
que seus espaços de sociabilidade eram bastante valorizados na vida urbana daquele
período (ARAÚJO et al., 2006, p. 104). Para Araújo, as festas e outras celebrações no seio
94
das irmandades eram um meio de fortalecimento dos laços identitários forjados pelo grupo,
entre os indivíduos que o compunham e entre estes e os protetores eleitos – os santos
(2006, p. 108-109).
Além das festividades, outra característica marcante no tocante às irmandades leigas
é o culto aos mortos e as formas de celebrar a passagem. No caso dos primitivos, ressalta
Amaral, estes criam na imortalidade do espírito. O túmulo era como que um repouso “da
jornada que recomeçava” – o ritual do sepultamento envolvia a tristeza da morte com a
alegria da vida (AMARAL , 1991, p. 62).
Os africanos de algumas partes do Brasil mantiveram suas tradições originais no
modo de conviver com a morte. Esta, para muitos “era uma aurora que surgia e não uma
estrela que se apagava”. Para Amaral, o sentimento dos africanos compunha ao lado de
todos os outros povos uma “religião universal”, um ponto comum, como se fosse um dever
prestar homenagens aos “bem-aventurados que morrem no seio de Deus” (1991, p. 63).
Aos escravos, porém, não se conferia qualquer reconhecimento do culto enquanto
filosofia, moral, dogma ou algo do gênero por parte do restante da sociedade. A
exteriorização de seus ritos mortuários era considerada bárbara, demonstração da
inferioridade e do atraso (AMARAL , 1991, p. 63).
As irmandades tornaram-se o espaço onde se davam as práticas religiosas relativas à
morte. Sob a proteção de Nossa Senhora do Rosário, os africanos puderam “dissimular”
seus costumes. Os rituais fúnebres, realizados comumente à noite, em cemitério próprio,
eram reduzidos de suas características originais – uma forma de adaptação – porém, os
mistérios rondavam o culto, que impressionava os que não o conheciam (AMARAL , 1991, p.
63-64).
Analisando as atitudes dos sujeitos diante da morte, João José Reis parte do estudo
de Philippe Ariès, historiador que analisa o caso francês, em que “parentes, amigos, irmãos
95
de confrarias e vizinhos acompanhavam no quarto dos moribundos seus últimos
momentos”. Os enterros nas igrejas ou em cemitérios próximos a elas se iniciam no século
V (REIS, 1991, p. 73).
No correr dos séculos, a forma de conviver com a morte se alterava. Tornava-se
individualista para alguns estudiosos e “selvagem”, para Ariès, ou seja, perde muito das
características acima mencionadas. Porém, ressalta João José Reis, que no Brasil da
primeira metade dos Oitocentos a relação com a morte assemelhava-se à França do
medievo. Um dos motivos para a mudança de mentalidade era a teoria dos miasmas, que
paulatinamente provocava um distanciamento entre os vivos e os mortos, dado o medo da
infecção das doenças que provinham do ar exalado pelos corpos em decomposição. Os
cemitérios afastavam-se dos centros urbanos, sem resistência significativa dos populares
(REIS, 1991, p. 77; 81).
Para se preparar para a morte tinha-se a crença de que o sujeito deveria estar com
sua vida arrumada, as devoções aos santos protetores devidamente em ordem, bem como as
ofertas a deuses e/ou antepassados. Tais obrigações tinham pontos comuns entre
portugueses e africanos que viviam na Bahia da primeira metade do século XIX . O culto aos
mortos, porém, era mais relevante na tradição africana. Além da complexidade dos rituais
aos antepassados entre os africanos e seus descendentes, havia em contraposição, no
catolicismo, a preocupação única em salvar as almas dos falecidos. Segundo Reis, há
indícios da incorporação pelos africanos das “maneiras de morrer” dos portugueses,
também como uma forma de defesa (REIS, 1991, p. 90-91).
As celebrações festivas baianas não se restringiam às festas aos santos. Os funerais
também eram pomposos, festivos, e nas palavras de Reis, “celebrações da vida”. A festa e a
morte não se anulavam para os baianos (1991, p. 137). Em ambos os momentos, destacava-
se a função das irmandades.
96
Assim como nas festas, as irmandades buscavam se realçar também nos ritos
fúnebres. As formadas por negros procuravam igualar-se às dos brancos. No compromisso
de 1686 da Irmandade do Rosário da Conceição da Praia, além do destaque dado aos
funerais e de outros cuidados para com os irmãos falecidos em um terço dos capítulos,
exorta-se que os membros da confraria compareçam no maior número possível nos funerais
de seus pares. Outras agremiações instituíam como pena aos faltosos a proibição da
presença dos seus irmãos em seu funeral (REIS, 1991, p. 145-146).
A preocupação com a assistência aos confrades à hora da morte ia desde a
responsabilização de um corpo de irmãos zeladores, encarregados de dar conhecimento dos
preparos e do funeral aos outros irmãos, evitando assim a alegação de falta de aviso. Além
disso, as irmandades do Rosário em todo o território da colônia chegaram a criar “uma
espécie de serviço fúnebre intermunicipal e até nacional, contratando entre elas o enterro de
membros que morressem longe de casa”. Mesmo com suas particularidades, as irmandades,
independendo de sua composição étnica, zelavam pela decência dos funerais de seus
membros (REIS, 1991, p. 146).
Segundo Reis, as fontes, como os testamentos, possibilitam que os funerais de
escravos e de libertos sejam vistos apenas a partir do ângulo do rito católico. Aspectos não
familiares são negligenciados. Nesta perspectiva, o autor busca vestígios das
particularidades rituais de origem africana:
Muitos costumes mortuários da África foram mantidos pelos escravos no Brasil, apesar das mudanças que neles se foram operando ao longo da escravidão, inclusive os empréstimos do cerimonial católico. Hoje em dia (...) as pessoas de candomblé são enterradas segundo normas católicas e normas africanas, com o sacrifício da missa e de animais (REIS, 1991, p. 160).
Bem morrer, além da preparação anterior à morte e da realização de um funeral de
pompa, significava também uma sepultura digna – e o local da sepultura não poderia ser
qualquer – deveria ser sagrado, ou seja, a igreja. Próximo às imagens de anjos e santos,
97
habitavam os mortos, como se esta proximidade fosse um símbolo do desejo do paraíso
pós-morte, ao lado do mundo celestial (REIS, 1991, p. 171).
Nas igrejas, a disposição das sepulturas seguia a orientação dos grupos sociais dos
vivos. Segundo Reis, a primeira divisão levava em conta os sepultamentos promovidos
pelas irmandades, delimitando um território específico para os mesmos. As próprias
irmandades, como no caso da de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos das Portas do
Carmo, delimitavam dentro dos territórios de suas sepulturas locais destinados aos “irmãos
zelosos e benfeitores da irmandade”, mais próximos do altar da padroeira (1991, p. 176).
Campanhas médicas, acompanhadas da introdução de um novo ethos, aos poucos
introduziram novas formas de lidar com a morte. A construção de cemitérios afastados dos
centros urbanos enfrentou resistência no Brasil, como aconteceu em Salvador em 1836, no
caso da Cemiterada. Aos poucos, a morte deixou passou a ser inodora, pois seus odores
remetiam às infecções causadas pelos miasmas. Além disso, havia a recomendação de que
ela fosse silenciosa, sem a presença dos ruidosos cortejos fúnebres de antes (REIS, 1991, p.
263). Em outro momento deste estudo retornaremos ao caso do cemitério da irmandade
paulistana.
O Compromisso da Irmandade do Rosário de São Paulo garantia que se organizasse
o féretro dos irmãos falecidos, que em seguida seriam sepultados na própria Igreja. Amaral
complementa que o ritual “nada tinha de bárbaro” – os preceitos da religião eram
observados, presididos pelo capelão da confraria. Enquanto acontecia o sepultamento, os
irmãos cantavam:
Zoio que tanto vê Zi boca que tanto fala Zi boca que tanto ri Zi comeo e zi bebeo Zi corpo que tanto trabaiô Zi perna que tanto ando Zi pé que tanto piso (AMARAL , 1991, p. 64-65).
98
Por outro lado, como foi relatado na primeira parte deste estudo, Martins descrevia
a cantiga e o ritual de forma aterradora, conferindo exotismo à prática religiosa. Tais
“despropósitos”, como disse este autor, eram cantados até se cobrir toda a sepultura com a
terra. O cronista ainda ressaltou que era comum o fato de que algumas irmandades,
incluindo a do Rosário, possuírem um único caixão, que ficava guardado na sacristia da
Igreja, servindo este a todos os irmãos sempre que necessário. O costume dos
enterramentos causava medo nos moradores das adjacências que assim que podiam, se
mudavam para outros lugares, preferencialmente longe de igrejas e de cemitérios
(MARTINS, 2003, p. 328).
O costume do enterro dos cadáveres nas igrejas ou em cemitérios contíguos a elas
foi revogado em 1810, quando o Príncipe Regente D. João ratificou a reforma no
Compromisso da Irmandade do Rosário de São Paulo. Isto teria cessado o costume dos
africanos e seus descendentes, porém, Amaral discorda que o costume tenha morrido.
Segundo um historiador do tempo de Raul Joviano, o reinado português recomendou ao
bispado de São Paulo em 1795 que não mais se fizessem sepultamentos no interior das
igrejas e que se promovesse a construção de cemitérios distantes (1991, p. 65).
A Câmara dos Vereadores de São Paulo, buscando reduzir o abusivo número de
sepultamentos no interior das igrejas, iniciou a construção do Cemitério da Consolação em
1854. No ano de 1857 as irmandades paulistanas foram autorizadas pela edilidade a
solicitar terrenos dentro do cemitério público, porém, a Irmandade dos Homens Pretos “por
razões facilmente percebíveis” não se habilitou. No ano seguinte, 1858, o campo santo foi
inaugurado (AMARAL , 1991, p. 65-66). A peculiaridade do ritual fúnebre dos negros
paulistanos pode ter sido um dos impedimentos à habilitação da Irmandade do Rosário.
Em meados do século xx e ao longo deste, o modo de celebrar a morte no seio da
Irmandade dos Homens Pretos paulistana alterou-se. Não existem mais os sepultamentos,
99
não existe mais o cemitério próprio. Por meio dos recortes selecionados e arquivados pela
confraria é possível entrever a celebração não só de falecidos da própria como se
indivíduos de alguma forma relacionados à ela ou à comunidade negra como um todo.
Dois casos podem ser destacados. Um deles é o de Honório José das Neves, então
juiz provedor da Irmandade do Rosário (desde 1900). Estava à frente desta durante a
desapropriação, demolição e reconstrução de sua sede. Foi vítima de uma morte repentina
em junho de 1909. Celebrou-se na ocasião missa de corpo presente na Igreja do Rosário,
com a participação de todos os membros da Irmandade, seus colegas de trabalho e a
Associação Humanitária de São Paulo. Seu cadáver foi sepultado do Cemitério da
Consolação. Ainda em momentos posteriores se celebraram missas em honra do extinto19.
Outro caso foi o de Joaquim Nabuco, falecido em 1910. O secretário da Irmandade,
Irineu da Silva, publicou uma nota em que convocava os membros da confraria e demais
interessados a participar da missa em memória e pelo eterno descanso do “Grande
Diplomata e Abolicionista”. A mesa administrativa da Irmandade naquela ocasião também
tomou parte nos rituais fúnebres de Nabuco no Rio de Janeiro, levando-lhe uma coroa de
flores em nome de toda a confraria paulistana20.
Estes dois casos revelam a identidade do grupo em si, ao dar destaque à morte de
seu juiz provedor, conclamando a todos os membros da Irmandade a prestar sua
homenagem e pesar ao homem que nos últimos anos de sua vida coordenou uma confraria
que passava por um período de redefinições. Remetiam não apenas ao indivíduo que
encabeçava o grupo, mas também àquele que teve papel de destaque na fase dificultosa da
Irmandade dos Homens Pretos.
19 Archivo de Annuncios e Noticias. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo. 1906-. fl. 2. 20 Archivo de Annuncios e Noticias. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo. 1906-. fl. 5. verso.
100
A exaltação do nome de Joaquim Nabuco transcendia o pequeno grupo paulistano,
inseria a Irmandade do Rosário em meio a população negra brasileira e reconhecia o papel
do abolicionista no processo de desarticulação e extinção do escravismo, fator que unia
alguns dos membros da confraria e outros indivíduos no restante do país.
A Irmandade do Rosário de São Paulo, espaço privilegiado para os ofícios da
comunidade negra, constituía-se por isso num território negro. As procissões, das quais
participavam todas as confrarias da cidade, passavam obrigatoriamente pela sede da
irmandade negra, no pátio do Rosário. Em 1852 uma portaria da administração do
município alterou o trajeto dos préstitos, evitando a passagem pelo referido logradouro
(ARAÚJO, 2006, p. 110).
Territorialidade negra urbana em São Paulo: a Irmandade do Rosário
Segundo Raquel Rolnik, uma das demonstrações da inexistência de segregação
racial institucionalizada no Brasil é a inexistência de guetos – espaços impostos a partir de
critérios sociais, econômicos ou étnicos. Poucos trabalhos se dedicaram a analisar a
integração espacial das populações negras nas cidades, especialmente após a abolição da
escravidão. De forma preliminar, a arquiteta e urbanista busca percorrer os territórios
negros em São Paulo e no Rio de Janeiro, mapeando origens e conexões, tendo como
recorte o período iniciado com o término da escravidão e levando em conta sua inscrição
nas cidades ao longo do tempo (ROLNIK, 1989, p. 2).
Seu objetivo, portanto, é demonstrar que existe realmente uma territorialidade
negra nessas que são as duas maiores cidades do Brasil e estes espaços possuem história e
tradição. Rolnik considera razoável falar em “segregação racial, discriminação e
dominação branca nessas sociedades: a história do Rio e de São Paulo é marcada pela
marginalização e estigmatização do território negro” e ainda acrescenta que sua intenção é
101
discutir o próprio conceito de território urbano, espaço vivido, obra coletiva construída peça a peça por um certo grupo social. Assim, ao falarmos de territórios negros, estamos contando não apenas uma história da exclusão, mas também de construção de singularidade e elaboração de um repertório comum (ROLNIK, 1989, p. 2).
As cidades representaram um espaço de liberdade para muitos dos escravos fugidos
das senzalas das zonas rurais. Nelas, a possibilidade do anonimato era grande, além de ser
mais tangível a liberdade pelas vias institucionais. Nas cidades, teceu-se uma rede de
sociabilidades e de sobrevivência das populações negras ao lado do regime escravista. As
urbes eram alternativas concretas à senzala (ROLNIK , 1989, p. 4).
Os quilombos, por exemplo, não eram exclusividade das zonas rurais. Quanto mais
se acentuava a crise do escravismo, aumentava o número dos quilombos urbanos –
cômodos ou casas coletivas nas regiões centrais ou em espaços semirrurais, nas periferias
urbanas. Este é o caso do quilombo do Saracura, que originou o bairro do Bexiga em São
Paulo, numa região ainda distante do centro urbano na segunda metade do século XIX
(ROLNIK, 1989, p. 4-5).
Além dos quilombos urbanos, outros espaços de sociabilidade da população negra
são os mercados e os ocupados pelas irmandades negras. Nos primeiros, abasteciam-se os
ambulantes que vendiam gêneros alimentícios nos diversos espaços do mundo urbano,
além dos “ervanários africanos” que se serviam às práticas de curandeirismo e rituais das
religiões de matriz africana. Quanto às irmandades, estas eram
pontos de agregação. Em seus terreiros, nas festas religiosas, os negros dançavam o batuque. Muitas, como a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo, chegaram a abrigar libertos e, como a Confraria dos Remédios, envolveram-se diretamente na campanha abolicionista, articulando quilombos rurais às redes de apoio urbanas (ROLNIK, 1989, p. 5).
As populações negras paulistana e carioca vivenciaram de forma distinta a abolição.
Para o Brasil como um todo o término do escravismo representou a ausência de políticas
públicas para os egressos do sistema de trabalho que deixava de existir. A imigração
102
europeia, aliada a ideia do trabalho livre e assalariado atingiram com maior intensidade as
terras paulistas, que no momento eram o centro da economia nacional.
O afluxo de imigrantes europeus à província/estado de São Paulo, o afixamento das
residências da elite político-econômica formada especialmente pelos cafeicultores e a
posição estratégica da cidade entre as zonas cafeeiras e o porto de Santos, transformaram a
capital, sobretudo no último quartel do século XIX (ROLNIK , 1989, p. 6). A cidade se
tornava o centro da expansão cafeeira, exigindo uma infraestrutura e uma imagem perante
os visitantes e novos moradores que resultou na reforma urbanística cujas primeiras
medidas vieram inicialmente na década de 1870.
Tanto São Paulo quanto o Rio de Janeiro passaram por essas modificações no
cenário urbano, porém, a capital da nascente República era maior em população total e
possuía também maior contingente de negros. Na capital do Império/República, o “bota-
abaixo” atacou violentamente os territórios negros. Em São Paulo as investidas foram
menos violentas, pois na Pauliceia,
desde logo se configurou um padrão de segregação urbana marcado por uma espécie de zoneamento social: os ricos abandonaram a contiguidade dos sobrados do Centro da cidade para desenhar um espaço de privacidade e exclusividade burguesas. Assim, novos loteamentos foram surgindo em áreas de antigas chácaras, abrigando palacetes neoclássicos circundados por muros e jardins (ROLNIK, 1989, p. 7).
A territorialidade negra, segundo Rolnik, não é um espaço ocupado apenas pelas
comunidades afro-brasileiras. O Bexiga, por exemplo, é uma mescla de negros e de
italianos. Os territórios constituem-se historicamente (1989, p. 11).
Maria Cristina Cortez Wissenbach escreveu a respeito da configuração das
sociabilidades dos negros após a abolição e a forma como estes buscaram constituir suas
vidas privadas. Durante a escravidão e após seu término, o espaço urbano atraía a
população formada pelos cativos e pelos libertos. Um dos fatores deste fenômeno era a
existência de segmentos dispostos a agregar os recém-chegados. A estes espaços
103
Wissenbach denomina territórios negros – marcados por “laços sociais, estruturas de
parentesco e expressões culturais singulares” (1998, p. 99-100).
Como dissemos num primeiro momento desta pesquisa, os egressos da escravidão,
bem como outros sujeitos das camadas populares da sociedade tinham padrões de
sociabilidade e de organização grupal peculiares. Após o término da escravidão,
Wissenbach afirma ser possível notar as permanências das vivências pregressas, próprias
do extinto regime de trabalho, tais como os laços de parentesco étnico-religioso, estruturas
familiares, a sociabilidade informal. Estas características se relacionam à luta cotidiana dos
escravos e dos homens livres e pobres e de sua resistência à coisificação imposta pelo
escravismo. A permanência destas peculiaridades fazem parte, segundo Wissenbach, das
estratégias de coexistência adotadas pelos negros perante as discriminações da jovem
República que os excluía de seu projeto modernizante em vez de integrar os recém-libertos
ao todo da sociedade livre (1998, p. 129).
As definições de Rolnik e Wissenbach a respeito da composição da territorialidade
negra são complementares. A arquiteta e urbanista chama a atenção para a dinâmica do
espaço físico e sua formação sócio-histórica, dando ênfase à integração das populações
negras nas cidades e os seus principais espaços de convívio. A historiadora por sua vez os
apresenta, além desses, outros fatores de atração dos negros às cidades, nos quais estavam
presentes permanências dos tempos da escravidão. Estas eram indispensáveis porque
transferiam as necessidades da luta e da resistência frente ao escravismo para depois de seu
término, auxiliando a população negra organizada nestes espaços a forjar novas formas de
sociabilidade.
Partindo desses pressupostos acerca da territorialidade negra, podemos compreender
a vivência posterior à abolição pela Irmandade do Rosário de São Paulo, articulada às
práticas urbanísticas da administração municipal. O Pátio/Largo do Rosário, lugar das
104
celebrações que vimos até o presente momento foi um território negro até o seu
esfacelamento nos primeiros anos do século passado. O processo histórico do pós-abolição
vivido na cidade de São Paulo nos permite compreender de que forma a territorialidade
negra foi transferida na capital paulista, do Rosário ao Paissandu.
Enquanto local de ajuntamento de negros que festejavam santos cristãos com a
musicalidade africana e mestiça, reminiscências do passado imperial e colonial da pretensa
metrópole, assim como espaço do insalubre comércio alimentício ambulante, o Largo do
Rosário teve de alterar suas características frente à “modernização” empreendida por
Antônio Prado. O Triângulo Central era um dos locais que mais se europeizavam na
cidade. A área despontava como cartão postal da europeia urbe paulistana. (SANTOS, 2008,
p. 125).
2. O LUGAR DA IRMANDADE DO ROSÁRIO NA BELLE ÉPOQUE PAULISTANA
De outro lado, o chamado progresso de São Paulo pedia um novo largo. Que tivesse o nome de praça. Que fosse alargado, ao custo necessário. Às expensas dos moradores daqueles humildes fogos e da Nossa Senhora do Rosário (SECCO, 2008, p. 55).
A “marcha implacável do progresso”
Lincoln Secco criticou a demora da historiografia brasileira em se dedicar ao estudo
das “igrejas dos homens pretos”. Em São Paulo, na área em que se tornaria o estado,
poucos templos eram ou ainda hoje são dotados do mesmo fausto das igrejas mineiras ou
baianas, notórias por suas características peculiares e pela riqueza artística de suas
construções. Retoma a advertência de Mário de Andrade, ao dizer que as igrejas paulistas
não devem ser categorizadas por sua beleza estética ou arquitetônica, mas pelo valor
histórico que elas possuem (SECCO, 2008, p. 50).
105
Segundo o historiador, a mais tradicional “igreja dos homens pretos” paulistana é a
de Nossa Senhora do Rosário construída no Largo do Paissandu. O templo anteriormente se
situava na hoje chamada Praça Antônio Prado, símbolo do progresso paulista e paulistano
na Primeira República. Era um ponto de convergência entre ruas de extrema importância
para a vida urbana em formação da cidade de São Paulo. Rápido e tumultuado centro de
passagem (SECCO, 2008, p. 51).
São Paulo se desenvolvia e novas necessidades surgiam, tais como intervenções
urbanísticas. A Rua XV de Novembro era então a concentração dos negócios, da moda, da
vida política e dado este destaque, exigia mudanças. Numa das esquinas desta rua
encontrava-se o Largo do Rosário. Em um cartão postal do início do século passado, o
largo era chamado de “o mais movimentado da cidade”. Todas as linhas de bonde por ali
passavam (SECCO, 2008, p. 55).
A “marcha implacável do progresso” desferiu dia após dia golpes contra a
Irmandade dos Homens Pretos – causando “dano, constrangimento e sufocação” aos que
veneravam Nossa Senhora do Rosário na cidade de São Paulo (AMARAL , 1991, p. 67). A
Irmandade do Rosário de São Paulo passou por diversos percalços ao longo de sua
existência, porém Raul Joviano Amaral critica a falta de vestígios documentais devido ao
provável extravio de parte dos arquivos da instituição. O que os arquivos permitem ver
fazem o autor de Os Pretos do Rosário de São Paulo falar em ameaças (externas) e
intranquilidades (internas), estas últimas causadas por desentendimentos entre os membros
(1991, p. 69).
Os problemas internos se resolviam com o correr do tempo, mas os externos,
representados pelo “incontido progresso do burgo paulistano” exigiam da administração
municipal medidas urgentes. Amaral recorreu às palavras do fundador Domingos de Mello
Tavares, quando solicitou provisão para administrar a principiante confraria: a “Irmandade
106
é de pretos e a cada dia se ocasionam dúvidas” (1991, p. 69). Provavelmente estas dúvidas
incomodavam a administração municipal, desejosa de transformar o espaço dos Homens
Pretos.
A Câmara Municipal exigiu primeiramente reparos e consertos na sede da
Irmandade do Rosário em 1858, aproveitando a oportunidade para dar melhor alinhamento
ao edifício. O fato trouxe inquietação à Irmandade, “que via nisso a ingerência do poder
público em sua propriedade”. No local encontravam-se casebres pertencentes à confraria,
nos quais residiam africanos livres, lembrados por Antonio Egydio Martins (2003, p. 325).
A impressão que Amaral compartilha com o leitor é a de que “em todo o decurso do século
XIX parece que a preocupação máxima das edilidades era afastar do centro que ia se
esboçando os negros e suas propriedades, quase todas elas localizadas em torno da igreja”
(1991, p. 70).
Quando escreve a primeira edição de seu livro, em 1954, Raul Joviano Amaral
sugere os motivos das desapropriações feitas pelo poder público, que atingiam os locais de
moradia, de trabalho e de sociabilidade da comunidade negra e/ou pobre da capital paulista.
Sabemos que as argumentações de fluidez do trânsito e de embelezamento, entre outras,
são as justificativas encontradas para remover das regiões centrais as populações que
tinham modos de vida malvistos pelas elites da época. Era a Belle Époque, que buscava dar
ares europeus aos grandes centros e para tanto, expulsando das regiões centrais dessas
cidades os elementos que inspiravam pobreza, atraso, barbárie. Muitos estudos se
dedicaram a isto, tais como Raquel Rolnik (1981), Jeffrey Needell (1993) Carlos José
Ferreira dos Santos (2008 [1998]), Francis Manzoni (2004), entre outros, discutidos na
primeira parte deste estudo.
As medidas que atingiam diretamente a comunidade representada pela Irmandade
de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo iniciaram-se no ano de
107
1870. Neste ano a Câmara paulistana colocou em pauta as necessidades urgentes de
desapropriação, com a finalidade de alinhamento viário, dos terrenos nas ruas da Imperatriz
(atual XV de Novembro), rua e pátio do Rosário (atuais Rua João Brícola e Praça Antônio
Prado) entre outras nas adjacências. As desapropriações reduziam o patrimônio da
Irmandade do Rosário, visto que nelas incluíam-se os terrenos dos prédios onde moravam
ex-escravos e também o do cemitério da confraria. A destruição do cemitério do centro
urbano, como observamos, era comum naquele período e estava associada às necessidades
médico-sanitaristas.
Pouco tempo depois, em 1872, desapropriou-se mais um terreno nas proximidades
do pátio do Rosário, que aos poucos ganha a fisionomia de um largo. A Comissão de Obras
Públicas, no intuito de aumentar o pátio, sugere que se comprem as casas e os terrenos que
pertencem à Irmandade do Rosário. Tal atitude era uma resposta à sugestão de que se
declarasse de utilidade municipal e que se desapropriassem os quartos que ficavam à direita
da Igreja do Rosário, a fim de abrir uma rua (AMARAL , 1991, p. 71).
As palavras de Raul Joviano a respeito são significativas: “iniciara-se o cerco em
torno na igreja e a ‘utilidade municipal’ acobertava as verdadeiras intenções. Quantos anos
a Irmandade resistiria ao assédio?” (AMARAL , 1991, p. 72) As “verdadeiras intenções”
giravam em torno da destruição daquele território negro que conspurcava os anseios de
metrópole moderna, civilizada e europeia. As formas de sobrevivência da Irmandade aos
poucos eram desarticuladas. Seus proventos com os imóveis se reduziam, bem como a
própria possibilidade de cultuar seus mortos que não mais existia.
A Irmandade, por meio de sua mesa administrativa, demonstra que está ao lado da
Câmara Municipal, auxiliando no aformoseamento da cidade e que para tanto nomearia
uma comissão de três irmãos para discutir o acordo com os vereadores para a
desapropriação das propriedades da confraria (AMARAL , 1991, p. 72).
108
Esta aparente passividade nos leva à questão levantada por Marcel Roncayolo e
discutida por Sandra Pesavento: os moradores da cidade, consumidores do produto
construído pelos que a fazem agem como? De alguma forma estes seriam “passivos, que
legitimariam sem maior restrição as representações impostas ‘de cima’?”. Ou, ainda,
seriam sujeitos que agiriam depois de formular suas próprias elaborações simbólicas? Para
a historiadora, a circularidade cultural, conceito posto por Carlo Ginzburg explicaria tal
movimento. Pressupõe-se que os sentidos atribuídos pelos consumidores e pelos produtores
dos espaços de sociabilidade urbanos vão e vêm (PESAVENTO, 1995, p. 9).
A outra cidade, dos homens comuns, pode ser vista e compreendida a partir de
outros fatores, tais como as colunas populares dos jornais, nas festas populares e outras
manifestações da rua. Acontecimentos simples e que rompem com a rotina da vida citadina
e representam uma cidade diversa daquela dos que têm o poder de produzi-la. É o que
Pesavento denomina de “cidade real vivida”, contraparte da “cidade sonhada”. A própria
“cotidianeidade da vida” é “elemento de alteração do espaço e de transformação do meio
ambiente” (1995, p. 10).
Porém, os contrastes das duas cidades nem sempre se anulam. A coexistência
também é possível. Willi Bolle indica outro meio de perceber o urbano: é a montagem por
superposição. Pesavento discorre sobre esta outra maneira de análise como sendo a mais
adequada para uma radiografia do imaginário coletivo. Esta pressupõe que a tomada de
consciência aconteça aos poucos e não por meio de um choque. Personagens, imagens,
discursos, eventos justapõem-se (1995, p. 14). Desta forma, a cidade dos produtores e de
seus consumidores se entrelaçam. É o caso observado entre a Irmandade do Rosário e a
administração municipal.
A presença dos africanos livres próximos à Igreja do Rosário, habitando imóveis
pertencentes à Irmandade foi uma das características da vivência da confraria que Clóvis
109
Moura ressaltou. O espaço ocupado por estes indivíduos estava além do físico e se tornava
também social, retomado pelas estruturas de poder da sociedade escravista. Moura
recorreu a Raul Joviano Amaral, quando este disse das intranquilidades e das ameaças que
rondavam a existência da confraria de negros. As forças externas pressionavam a
instituição, inicialmente em 1871-1872. A desapropriação dos prédios destes africanos
seriam uma dessas ameaças. As intranquilidades eram internas (MOURA, 1980, p. 147).
Demolidos os prédios pertencentes à Irmandade e o cemitério que a ela servia,
constituiu-se o Largo do Rosário. Em 1874 o logradouro recebeu um chafariz, com três
torneiras, atendendo aos pedidos dos moradores das afluências que não possuíam água
potável nas residências e precisavam buscá-la longe dali. O presidente da província, João
Teodoro Xavier – responsável pelo início da “modernização” da capital (MARTINS, 2003, p.
338), acompanhado de seus assistentes e outros homens públicos estiveram presentes na
cerimônia de inauguração da fonte. A Irmandade se fazia representada por seu secretário,
Thomaz das Dores Ribeiro (AMARAL , 1991, p. 74-76).
A cidade de São Paulo até então era uma cidade diminuta, carente de civilidade aos
olhos da época, porém, o progresso se aproximava. João Teodoro Xavier, presidente da
província entre 1872 e 1875 deu início às obras que deram nova fisionomia à capital,
dotando-a de melhoramentos, solucionando problemas que preocupavam os moradores.
Amaral recorre a um excerto do Diário de São Paulo do fim de 1874, onde Xavier aparece
como “observador atento” das necessidades da cidade de São Paulo (1991, p. 75-76).
O chafariz Sete de Setembro, como era chamado o do Largo do Rosário, perdurou
até o ano de 1893, quando se criou a Companhia Cantareira, responsável pelo
abastecimento de água da cidade. Retirou-se a fonte, apesar dos protestos dos moradores
que a utilizavam (SECCO, 2008, p. 55).
110
Impasses no fim do século: um período conturbado Para Raul Joviano Amaral, o período que vai de 1885 a 1900 é um dos mais
significativos da história da Irmandade do Rosário paulistana. Seu objetivo, desse ponto em
diante do livro (a partir do 12º capítulo), é transcrever trechos das atas da confraria, a fim
de que sua obra sirva de subsídio para a pesquisa.
Uma de suas críticas à Irmandade no período recortado é o que chama de “espírito
de tolerância” com que se trataram os irmãos “faltosos, relapsos, aproveitadores” que não
só foram incoerentes como também não tiveram posições claras. Do momento em que Raul
Joviano Amaral escreve, sua impressão é de que tais posições eram contraditórias
(AMARAL , 1991, p. 78).
O fato do período em questão compreender o término da escravidão não é deixado
de lado pelo autor, uma vez que alguns dos membros estavam ligados àquele regime de
trabalho ou próximos a ele. Os “inimigos” preocupavam-se em “abocanhar de qualquer
maneira a posse legítima de legítimos bens pertencentes à Irmandade”. Estes lançavam mão
de práticas diversas a fim de usurpar os direitos de um grupo formado por “negros
semialfabetizados, gente simples, imbuída dos melhores propósitos e intenções”. Em
virtude disto, é compreensível que as reviravoltas no seio da Irmandade tivessem logrado
êxito por parte dos “inimigos” dela (AMARAL , 1991, p. 78-79). Eram mais das ameaças
externas das quais falava.
O fim do século XIX foi um período determinante na vida da Irmandade. A
gravidade dele é perceptível pelas palavras de Amaral, ao dizer que “desvios de conduta –
privilégios dos homens de todas as épocas e de todas as culturas”, ou seja, não são
exclusividade dos “Pretos do Rosário”, foram expressos em “pequenas gotas”, que
formariam “uma borrasca que por pouco não arrastou a inglório sorvedouro a surpreendida
e atônita Irmandade” (AMARAL , 1991, p. 79). A partir destas afirmações, notamos que para
111
o autor, representante da Irmandade do Rosário, os fatos ocorridos entre 1885 e 1900 são
eleitos como decisivos entre o fim e a continuidade da tradição da confraria de São Paulo.
No ano compromissal de 1890-1891 a mesa administrativa da Irmandade do
Rosário de São Paulo atentou para os reparos que sua Igreja reclamava. A confraria
dispunha de cinco contos e quatrocentos mil réis, porém, os consertos excediam a receita.
Estava posto o impasse pelo irmão procurador. Para a fiscalização da obra, nomearam-se
irmãos da mesa e decidiu-se pelo fechamento das portas do templo enquanto ela perdurasse
(AMARAL , 1991, p. 80)21.
Durante a Semana Santa de 1891 diversos grupos da agremiação se organizaram
para obter mais fundos para a manutenção da igreja. Os ofícios religiosos prosseguiam.
Pouco tempo depois, a administração municipal solicita reparos no piso e na elevação da
calçada próximos à Igreja do Rosário. A dificuldade enfrentada pelos irmãos era que suas
contas do ano anterior não tinham sido aprovadas (AMARAL , 1991, p. 81). O mesmo
acontecia com a vizinha irmandade negra de Santa Ifigênia e Santo Elesbão, cujo desfecho
foi diferente, sendo dissolvida em 1890 (QUINTÃO, 2002, p. 88). O clima não era favorável
às associações.
Os acontecimentos não se findam. Em 1892 o Juiz Provedor da Irmandade, em
reunião com a mesa administrativa, submete à deliberação a proposta do comerciante Luiz
João de Barcellos Clark, que solicitou o arrendamento de um dos prédios da confraria no
Largo do Rosário, pelo período de nove anos. Comprometeu-se a pagar duzentos mil réis
de aluguel, além do empréstimo de cinco contos, sem prêmio à Irmandade. A proposta foi
debatida, votada e aceita pela mesa administrativa (AMARAL , 1991, p. 82).
Passam-se dois anos e em 1894 um dos membros da Irmandade quis saber qual
resolução seria tomada em relação ao caso Clark. O fato é de difícil compreensão. Amaral
21 Actas. Irmandade de N. S. do Rosario dos Homens Pretos. S. Paulo. 1890-1900. fl. 2.
112
diz ser difícil reconstituir o caso, uma vez que partes da documentação faltam. Alguns
indícios levam a crer que a transação entre Barcellos Clark e a Irmandade do Rosário
encontrou problemas, uma vez que dois anos após o pedido inicial, ainda encontra-se
pendente o arrendamento do prédio. O comerciante, em ofício, solicitou a entrega das
chaves do imóvel e a mesa administrativa pediu que se nomeasse uma comissão para
conferir o contrato firmado entre as partes (AMARAL , 1991, p. 82-83).
A provedoria da confraria foi substituída. Tomé Xavier dos Passos foi sucedido por
Tito Cesário da Silva, considerado um dos mais enérgicos administradores, nas palavras de
Raul Amaral. Seus esforços em benefício da Irmandade do Rosário são ressaltados, entre
eles, a regularização das contas não prestadas pelo ex-juiz. Passos foi intimado a prestar
esclarecimentos à administração da confraria, além de ter o ato de louvor que se lhe tinha
concedido revogado pela mesa administrativa. Ordenou-se também que fosse trocada a
fechadura das portas principais da Igreja, pois o ex-provedor tinha as chaves. O clima não
era bom nem tranquilo. As dissensões, afirma Amaral, tinham caráter pessoal (1991, p. 83).
A resolução para o empecilho seria a revogação do contrato existente e a celebração
de um novo acordo, no qual se desse a preferência a quem mais ofertasse em troca do
imóvel. No mesmo dia duas propostas haviam sido apresentadas. As mesmas se arquivaram
para discussão e em momento posterior venceu a candidatura de Joaquim Eugênio de Lima,
que a esta época já ocupava o prédio nº 3 do Largo do Rosário.
Olímpio das Dores Cardim deixa notado que nada se podia fazer enquanto não
estivesse anulado o contrato com Luiz Clark. À Irmandade coube assumir o compromisso
de arrendar seu imóvel ao vencedor da demanda. Seus direitos, ressalta Amaral, foram
confiados à defesa por meio de dois dos melhores advogados de São Paulo. No ano de
1897, durante a Semana Santa, “o caso Clark parece superado” (AMARAL , 1991, p. 84-85).
113
A precaução da Irmandade em relação às “ameaças” que a “rondavam
secretamente” levou-a a conceder plenos poderes de decisão ao juiz provedor, no caso de
impedimento da reunião da mesa administrativa. Ainda em 1897 a atmosfera era de
apreensão e de tensão. Nesse ínterim, Barcellos Clark por meio de intimação esperava que
a Irmandade trouxesse a público os autos da demanda que os envolvia. O advogado da
confraria respondeu ao solicitante negativamente, definindo como pretensioso o pedido de
Clark (AMARAL , 1991, p. 85-87).
No carnaval de 1898 a Irmandade do Rosário alugou as janelas de seu consistório
como palanques, para que pessoas e famílias interessadas pudessem acompanhar as
festividades. Em reunião, outros membros da confraria pedem documentos que comprovem
que o valor declarado pelo juiz provedor é o que de fato se está pagando.
Surge então uma nova proposta à Irmandade. João Alves Metzner pede que lhe seja
arrendada a sacristia, pagando quatro contos de réis para os cofres da Irmandade no ato da
escritura e um conto e meio para as obras da nova sacristia. Além disso, dispusera-se a
pagar 350 mil réis de aluguel. Em resposta, o procurador da agremiação declinou, dizendo
haver proposições mais vantajosas. Mesmo assim, o provedor convenceu os demais a votar
a requisição, que acabou vencendo. Para Amaral, “este contrato determinaria uma das mais
sérias crises no seio da Irmandade e cobriria de vergonha a coletividade” (1991, p. 88)22.
O contrato de arrendamento da sacristia deu início a uma “convulsão sem
precedentes” na existência da Irmandade. A hipótese levantada por Raul Amaral é a de que
tais acontecimentos vinham de encontro com o desejo de certos cidadãos de “destruir a
corporação e dilapidar o seu hercúleo esforço de sobrevivência”. Diante dos fatos, o juiz
provedor não quis (ou não pôde, deixa claro Amaral) convocar uma sessão extraordinária
da mesa conjunta, no esforço de encontrar uma saída para o problema (1991, p. 89).
22 Actas. Irmandade de N. S. do Rosario dos Homens Pretos. S. Paulo. 1890-1900. fls. 55-56.
114
Arrendar um espaço destinado ao serviço do culto representava uma profanação e
sujeitava a Irmandade às penalidades previstas nas leis canônicas. A igreja seria então
interditada, pois havia, sem licença prévia do Ordinário da Diocese, alienado parte do
templo. Estava a Igreja do Rosário proibida de realizar qualquer ofício religioso enquanto
perdurasse a coibição. O fato era um verdadeiro escândalo, rapidamente difundido na
pequena cidade (AMARAL , 1991, p. 89).
Antonio Egydio Martins, quando se dedica à história da Irmandade do Rosário e de
suas atividades religiosas e culturais, não deixa de ressaltar o episódio que no período de
julho a dezembro de 1898 a havia impedido de realizar em sua igreja qualquer ofício
religioso. O cronista nem se dedicou a explicar o impedimento. Apenas fez a observação a
título de referência à Igreja da Irmandade do Rosário, como enuncia antes de reproduzir a
fala de José Jacinto Ribeiro, autor de Cronologia Paulista, fonte para sua consideração
sobre o fato de 1898 (MARTINS, 2003, p. 320).
Vivendo o eco dos fatos recentes que a abalaram, a Irmandade vivia os anos finais
do século apreensiva. Um dos prédios da confraria, alugados à Companhia Viação Paulista,
estava com o contrato por vencer em abril de 1899. Temerosa de novos desentendimentos e
reveses, a Irmandade do Rosário entrou em contato com a companhia logo no início de
fevereiro para tomar ciência dos objetivos futuros da mesma em relação à ocupação do
imóvel. No ensejo, comunicou que abriria edital para receber propostas de aluguel e que a
referida firma teria preferência em relação aos outros candidatos. No edital, estipulou-se o
valor mínimo de 600 mil réis proibiu expressamente a instalação de qualquer atividade que
fizesse uso de fogão (AMARAL , 1991, p. 91-92).
Dois interessados se apresentaram: Belisário Barletta e Tereza Scigliano. A
proposta desta última era superior, oferecendo além de um aluguel mais alto, diversas
benfeitorias à Igreja do Rosário, como pintura, manutenção, doação de bancos, entre outras.
115
Por estes e outros motivos, a proposta da Sra. Scigliano foi aceita. Nenhum problema
houve entre a Irmandade e a Companhia de Viação Paulista em decorrência do término do
contrato (AMARAL , 1991, p. 92-94).
Ainda no ano de 1899 o caso Clark voltou à tona. Sua antiga petição de que as atas
deveriam ser apresentadas ao Cartório foi atendida pelo irmão secretário Luís Vasconcelos.
Naquele momento, Joaquim Eugênio de Lima continuava a ser o inquilino do prédio que
havia sido o objeto da questão anterior. Este, lembra Raul Amaral, era a quem São Paulo
devia diversas contribuições no campo das realizações urbanísticas, como a construção a
Avenida Paulista (1991, p. 94-95).
O caso demorava para ser solucionado pela justiça, mas em 1900 era anulado o
contrato feito com Barcellos Clark, tendo valor apenas aquele firmado com Joaquim
Eugênio de Lima. Depois disto, Clark, devido aos incômodos causados, e Eduardo
Modesto da Rosa, por diversos motivos, tais como a demanda contra a Irmandade e o fato
de ter se apoderado de dinheiro da mesma, foram desligados da confraria (AMARAL , 1991,
p. 95-96).
Porém, em 1901, a Irmandade tomava conhecimento de que seu inquilino havia
sublocado o imóvel sem prévio consentimento da mesa administrativa da confraria. Lima
havia transferido seu contrato aos senhores Fazzano e Fazini, que instalaram uma
confeitaria – estabelecimento que trazia medo à agremiação, devido a possibilidade de
incidentes e até de novas interdições. Amaral reflete sobre o caso, pois o motivo do
desgaste da Irmandade do Rosário nos últimos anos era decorrente da não-resolução do
caso Clark. A derrota deste favoreceu de Lima, que após o fim das pendências antigas abriu
mão do imóvel, sublocando-o aos confeiteiros (1991, p. 96-97).
De modo a defender-se, a agremiação tomou a decisão de, por meio de advogado,
promover ações contra indivíduos mal-intencionados que procuravam desmoralizá-la na
116
imprensa; levantamento da importância em dinheiro que lhe tinha sido legada e por fim, a
rescisão do contrato com Joaquim Eugênio de Lima. A primeira não vingou, visto que se
deu muita gravidade ao caso da Confeitaria Fazzano/ Joaquim Eugênio de Lima; a segunda
foi rapidamente resolvida. Ângelo Gianini arrendou em 1901 o prédio que era de Lima,
executando reformas do interesse da Irmandade, além de pagar os seguros do prédio. Os
senhores Fazzano e Fazini foram contemplados, obrigaram-se fazer reformas no edifício,
que logo se tornaria a “elegante” Brasserie Paulista (AMARAL , 1991, p. 97).
Jorge Americano foi um dos poucos cronistas que falaram do aluguel de
dependências e de imóveis pertencentes à Igreja do Rosário. O caso da porta alugada à
companhia de viação, para a venda de bilhetes de bonde foi uma das referências (2004, p.
137).
Devido os diversos acontecimentos que abalavam a Irmandade, em 1898, em
reunião da Mesa Conjunta – que agregava os irmãos de todas as categorias, totalizando
naquele momento 73, uma medida drástica foi tomada. Houve intervenção e a consequente
destituição da mesa administrativa, sendo aclamado dirigente Luiz Andrade de
Vasconcelos. Foi esta nova mesa que revogou o contrato de arrendamento da sacristia pelo
Sr. Metzner (AMARAL , 1991, p. 98).
As polêmicas em torno da Irmandade do Rosário perduraram por longo período. Em
1901 notavam-se na imprensa paulistana diversas denúncias de irregularidades, como diz
Raul Joviano Amaral. Este mesmo transcreve um “modelo de ironia”, o qual relata os
“serviços inestimáveis” à Irmandade durante os últimos anos do século XIX prestados pelo
então juiz provedor Luiz Vasconcelos. Uma de suas “benfeitorias” teria sido a expulsão de
membros de todo o conceito e a instauração da discórdia no seio da confraria. Não seria do
conhecimento dos demais irmãos o seu modelo de conduta, próprio dos “ratos de igreja”
(AMARAL , 1991, p. 101).
117
O fato de que é branco, de que era reitor de fazenda nos tempos da escravidão foi
bastante explorado. Para o autor da carta, Vasconcelos teria se esquecido que “aos pretos
cabe o direito de propriedade e administração da Igreja”. Ademais, era homem conhecido
das altas autoridades eclesiásticas paulistanas, e se servia disso para mandar e desmandar
dentro da Irmandade do Rosário, expulsando até membros como Eduardo Modesto da
Rosa, que seria um dos maiores responsáveis pela confraria ter alcançado rendimentos que
faziam saltar os olhos de ambiciosos da cidade (AMARAL , 1991, p. 101).
Agitações fizeram-se presentes ao longo daquele ano de 1898, para Amaral,
positivamente. As discussões acerca da interdição da Igreja e da intervenção na mesa
administrativa prolongaram, até que advogados conhecidos da cidade de São Paulo
auxiliaram a confraria em suas pendências. Metzner finalmente perdia a causa relativa ao
contrato de arrendamento da sacristia. Mesmo assim, a Igreja do Rosário permanecia
privada dos ofícios religiosos, sendo um impasse para a direção que tentava recolocar a
Irmandade na legalidade.
Ao findar o ano, o Tribunal de Justiça julgou a favor da Irmandade pela manutenção
de posse da Igreja do Rosário, deixando contente a direção da mesma. Diante da resolução,
a coordenação da confraria foi ter com o bispado, a fim de firmar a desinterdição do templo
para os fins religiosos. Em 22 de dezembro de 1898 estava reaberta a Igreja do Rosário,
voltando nela a ter lugar as devoções de costume (AMARAL , 1991, p. 103-104).
Novamente em relação aos imóveis pertencentes à Irmandade do Rosário, Amaral
traz informações sobre mais um caso, desta vez de 1888, quando José Vicente de Azevedo
solicitava à confraria um espaço para que se estabelecesse com a gerência de sua tipografia
– que editava um jornal religioso – dizia o solicitante. O pedido foi analisado pela
administração, que ressaltou os inconvenientes daquele tipo de negócio. As instalações
118
poderiam perturbar o silêncio necessário aos templos religiosos. O resultado imediato foi
então a recusa por parte da Irmandade do Rosário (AMARAL , 1991, p. 105).
O requerente não se conformou com a decisão e recorreu à mesa administrativa. Seu
argumento era de que o empreendimento tinha caráter religioso e que facilitaria a difusão
das notícias e atividades religiosas. A Irmandade reiterou sua posição. O Sr. Azevedo
buscou convencer cada um dos irmãos da relevância de seu negócio, sem sucesso. Apelou
então para a Justiça, que enviou à agremiação um ofício, solicitando que a mesma revisse
sua decisão.
Mesmo com a sua tentativa desesperada de coação, para usar o termo empregado
por Raul Amaral, os irmãos do Rosário mantiveram sua atitude. O fato de Azevedo
envolver a Justiça demonstrava a sua influência. Esta era endossada por diversos na cidade,
aos quais chegava a informação de que ele havia “dobrado os negros do Rosário para que
‘elles soubessem com quem tratavam’”. Mencionavam-se frequentemente escravidão,
direito, liberdade (AMARAL , 1991, p. 105-106). É importante recordar que tal fato ocorreu
dias após a extinção da escravidão no Brasil. Tais eram as intranquilidades, os embates
internos que ao lado das ameaças do mundo exterior à Irmandade fizeram da última década
do século XIX o período mais conturbado de sua história, segundo Raul Joviano Amaral.
A insubordinação da Irmandade do Rosário desagradou o Juízo de Capelas, que
tomou providências quando foi oportuno, um ano depois. Anularam-se as eleições da mesa
administrativa em 1889, penalizou a Irmandade e obrigou-a a anunciar isto por meio de um
cartaz afixado na entrada da Igreja, além de outras advertências (AMARAL , 1991, p. 106-
107).
A Belle Époque e a Irmandade do Rosário
119
Para Sandra Jatahy Pesavento, a cidade é um espaço por excelência para a
construção da cultura, esta entendida enquanto rede se significados socialmente
estabelecidos e expressa em bens materiais. Resgatar a cidade “real” é possível por meio de
sua leitura ou de suas representações, estas, parte da realidade. As representações são
também matrizes geradoras de práticas sociais e revelam o esforço de revelação ou
ocultação de imagens reais dadas pela arquitetura, por exemplo; ou imagens metafóricas,
dadas pela literatura, pelo discurso higienista, entre outros. A partir disso, extrapola-se o
espaço físico e suas características, atingindo as representações simbólicas do urbano
(1995, p. 4).
Há de um lado os sujeitos que “fazem a cidade”, profissionais cujo sistema de ideias
é mais ou menos coerente. Projetam, discutem e executam. Estes são identificáveis no
interior das classes dominantes/dirigentes e podem ser chamados de “profissionais da
cidade” – arquitetos, urbanistas, engenheiros, médicos sanitaristas. O objetivo: a
intervenção urbana. Este aparato apresentado pelo urbanista francês Marcel Roncayolo e
citado por Pesavento é datado. Refere-se ao século XIX e faz parte do que se chamaria
Urbanismo (PESAVENTO, 1995, p. 9). Os próprios termos sanear e embelezar são típicos do
século XIX , sendo substituídos por um neologismo criado posteriormente, que expressava a
máxima desses imperativos: urbanizar (SEGAWA, 2000, p. 16).
A produção do espaço está associada às transformações socioeconômicas da época e
encontrou na cidade o seu espaço privilegiado de ação. A intervenção do espaço urbano
concebia uma maneira própria de construir e de transformar a cidade, por meio de práticas
definidas, que culminavam na construção de um modo de viver, sonhar e pensar o ambiente
citadino. Projetava-se a cidade do desejo. Aquela que se queria (PESAVENTO, 1995, p. 9).
O trabalho de Raquel Rolnik buscou a partir da legislação paulistana (entre 1886 e
1936) analisar a política urbana e a formação de territórios na cidade de São Paulo. A
120
legislação permite perceber a cidade idealizada pelo poder público. A lei “organiza,
classifica e coleciona os territórios urbanos”. Acaba assim por gerar noções de civilidade e
de cidadania correspondentes aos territórios e aos grupos que neles estão (2003, p. 13).
Entre 1886 e 1902 o mercado imobiliário ganhou destaque na legislação. O Código
de Posturas municipal regia as formas de bem construir. Em 1902, como forma de conter a
expansão das lavouras cafeeiras que derrubavam o preço do principal produto nacional,
estimulou-se o investimento em imóveis urbanos. Aos poucos, investir em imóveis tornou-
se sinônimo de lucro certo (ROLNIK, 2003, p. 25).
O ano de 1890 foi particularmente especial para o mercado imobiliário, pois a
política econômica do Encilhamento, de Rui Barbosa, favoreceu a especulação deste ramo.
Proliferaram-se as sociedades anônimas, sobretudo aquelas ligadas à construção civil e à
formação dos loteamentos (SEGAWA, 2000, p. 27).
Em fins do século XIX São Paulo redefiniu-se territorialmente. Como elemento
fundamental de estruturação da cidade veio a segregação. Esta determinava os valores do
mercado imobiliário e também para fomentar a disputa do espaço pelos diversos segmentos
da sociedade (ROLNIK , 2003, p. 28).
As ruas aos poucos deixavam de ter sua finalidade de sociabilidade para se tornar
espaço exclusivo de circulação. Não foi por acaso que no mesmo momento em que os
sujeitos transferiam-se de fora para dentro de suas casas que largos, ruas e avenidas foram
ampliados, sempre com a justificativa da melhoria do trânsito. A destinação dos
logradouros à circulação associou-se à necessidade capital de remover os sujeitos que os
tinham como exclusivos espaços de sociabilidades: a comunidade pobre paulistana,
composta por negros e mestiços, sobretudo (ROLNIK , 2003, p. 29-33).
Os Planos de Melhoramentos para a capital proibiam então genericamente os
populares do centro da cidade, especialmente ao atacar os cortiços, habitação própria dessa
121
camada da sociedade naquele momento. A intervenção no espaço vinha de encontro com os
anseios de europeização da cidade, eliminando as características indesejáveis aos olhos das
elites locais (ROLNIK, 2003, p. 37). A territorialidade negra circunscrita pela Irmandade do
Rosário e sua coexistência com o cartão postal da cidade era incômoda.
Como observamos, a década final do século XIX foi negativamente marcante para a
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo. Desde os anos
1870 o espaço do grupo sofria com as práticas urbanísticas que visavam remodelá-lo e
embelezá-lo. Aos poucos a confraria era enfraquecida – sem o terreno que lhe servia de
cemitério, não podia mais realizar uma de suas obrigações primordiais, o de dar assistência
até o fim da vida e um destino adequado aos cadáveres dos irmãos falecidos. Os imóveis
que auxiliavam em sua subsistência eram demolidos. Os “pretos africanos” que se
estabeleciam nas proximidades da Igreja do Rosário foram obrigados a se transferir.
Como Raul Joviano Amaral ressaltou, as ameaças e intranquilidades, de fora e de
dentro da Irmandade, prenunciavam que a vida do grupo corria riscos. O nome da confraria
se envolveu em escândalos, dissensões internas abalavam a coletividade que não tinha tanta
força perante o poder público. A Belle Époque paulistana, cujo símbolo era o Triângulo
Central, urdia seu espaço. E o Largo do Rosário, com seus usos e costumes, próprios dos
Irmãos do Rosário e dos seus, em breve se tornaria mais um elemento do passado colonial-
imperial que a cidade de São Paulo queria deixar para trás.
Nas palavras de Carlos José Ferreira dos Santos, os espaços urbanos mais centrais
de São Paulo vivenciavam uma forma de “cruzada” em nome da civilização à la
europeénne, contra a “barbárie” dos não-europeus ou quase-europeus. A Igreja do Rosário,
elemento não-europeu e, por conseguinte “bárbaro”, coexistia com as elegantes confeitarias
e outros estabelecimentos pretensamente europeus (2008, p. 119-122). Uma dessas
confeitarias, a Brasserie Paulista, estabelecia-se num imóvel da própria irmandade negra.
122
3. DO ROSÁRIO AO PAISSANDU: DESTRUIÇÃO E RECONSTRUÇÃO DA TERRITORIALIDADE
NEGRA
O fim do Largo do Rosário e de sua negritude
De todos os acontecimentos turbulentos ocorridos nos últimos dez anos do século
XIX , nenhum foi tão grave quanto o que ocorreu em 1903. Trata-se da demolição da Igreja
do Rosário. O fato em si, pondera Amaral, não foi o cerne da questão, uma vez que em
meio a atmosfera de transformações da capital era previsível que um evento como este
ocorresse naquela região. O problema estava na explicação para as desapropriações: a
“necessidade pública” (1991, p. 108).
A necessidade pública era decorrente do desenvolvimento urbano, não levava em
conta sentimentalismos. Foi a causa maior das demolições, da remoção de “velhos e
representativos monumentos que se antepõem às exigências incontidas dos interesses
coletivos” (AMARAL , 1991, p. 108). Com estas palavras que o Raul Joviano Amaral iniciou
o capítulo que discorre sobre a demolição da antiga Igreja do Rosário.
A questão da “utilidade pública” criticada por Amaral, Clóvis Moura retomou. Esta
era um eufemismo que escondia as verdadeiras intenções das autoridades: tirar a igreja dos negros do privilegiado local em que se encontrava, na área mais valorizada da cidade. A iniciativa da edilidade criou uma crise na Irmandade e houve necessidade de medidas conciliatórias para não desunir os irmãos. Depois dos casebres de africanos evidentemente seria a vez da velha igreja (MOURA, 1980, p. 148).
Certamente a utilidade pública permaneceu como uma questão candente ao longo da
vida da Irmandade. Nos recortes selecionados e arquivados pelo grupo encontra-se a
íntegra de um decreto de 1941 do governo de Vargas que dispõe sobre as desapropriações
por utilidade pública23. Naquele momento, como veremos adiante, os Irmãos do Rosário se
viam em meio a uma nova tentativa de desapropriação de seu espaço, empreendida pelo 23 Archivo de Annuncios e Noticias. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo. 1906-. fl. 38 verso.
123
então prefeito Francisco Prestes Maia. Retomaremos esta questão neste estudo
posteriormente.
Sua pretensão com este capítulo não foi a de discorrer sobre os motivos “ocultos”
que levaram às demolições durante o final do século em São Paulo. Seu objetivo, segundo
suas palavras, foi o de se fixar apenas nos fatos, deixando aos seus leitores as interpretações
acerca deles. A única crítica do autor a respeito desse momento da história da Irmandade
foi em relação à inexistência de um defensor de seus direitos, ou de quem ao menos a
orientasse. Além do mais, “se ao poder público é direito agir em nome das ‘necessidades
gerais’, pelas prerrogativas que lhe conferimos, também é certo que ao interessado é dever
defender aquilo que lhe constitui o patrimônio, a vida, a própria razão de ser” (AMARAL ,
1991, p. 108).
Quando um indivíduo ou mesmo um grupo se mantêm num mesmo espaço e os
objetos materiais à sua volta também são imutáveis, o ambiente oferece a sensação de
ordem e de tranquilidade. Existe um ponto de apoio. Qualquer acontecimento que perturbe
esta permanência e obrigue o transporte a um novo espaço gera incertezas, até que seja
possível a readaptação. O ambiente material traz a marca do grupo e dos indivíduos que
deles fazem parte – o ambiente é constituinte da personalidade (HALBWACHS, 2006, p.
157).
O grupo inserido num espaço o molda à sua imagem, ao mesmo tempo em que se
adapta às coisas que são próprias do ambiente. Fecha-se no contexto que teceu. A imagem
do meio e as relações que a coletividade mantém com este estão em primeiro plano quando
nos se refere à ideia que o grupo faz de si mesmo (HALBWACHS, 2006, p. 159). A imagem
de seu espaço e as relações entre ele e o grupo fazem parte da representação que a
coletividade tem de si mesma.
124
A ameaça ou a perda de seu lugar são para um grupo como a lesão de uma tradição
e de um referencial. É a privação de sua razão de ser e de sua proteção, do indicativo de sua
subsistência (HALBWACHS, 2006, p. 165). Privar uma coletividade de um espaço
representativo de suas vivências, moldado à sua imagem ao longo do tempo, elemento
constitutivo de sua identidade, deixa-a a esmo, órfã de seu ponto de apoio. Espoliar a
Irmandade do Largo do Rosário foi uma forma eficaz de transformar o logradouro num
novo ambiente, alheio à territorialidade negra que até então evocava.
O período entre o fim do século XIX e o início do XX foi marcado por uma
verdadeira “operação de limpeza” do centro de São Paulo. Para Rolnik, fez-se um
desmonte daquela região, “simbólica e concretamente um território negro, fonte de
sobrevivência física e espiritual da comunidade”. Desde a década de 1870 quitandeiras
foram realocadas em outros espaços, mercados populares foram retirados, a própria
Irmandade do Rosário aos poucos perdia seu patrimônio, culminando em 1903 com a
retirada do seu templo (2003, p. 67).
Mesmo depois de dizer que não daria atenção ao que se encontra além dos fatos,
Raul Amaral demarcou seu posicionamento a respeito da postura da Irmandade e também
da administração municipal, que subjugou os interesses daqueles que a conferiram poder e
legitimidade. No mês de agosto de 1903, houve entendimento – prévio e informal – entre a
Irmandade do Rosário e o prefeito de São Paulo, Antônio da Silva Prado, acerca da
aquisição pela prefeitura da área do Largo do Rosário. A carta do alcaide foi discutida em
assembleia. Nela, a administração municipal solicitava a área da Igreja do Rosário,
excetuando-se a sede da Brasserie Paulista e em troca cederia a planta da nova igreja a
construir (AMARAL , 1991, p. 109)24.
24 Actas. Irmandade de N. S. do Rosario. 1900-1911. fls. 45-48.
125
Antes de tomar sua decisão pelas vias legais, o prefeito buscou oferecer sua
proposta à Irmandade dos Homens Pretos. Sua solicitação atingia diretamente a área
correspondente ao templo. A elegante confeitaria, cujo imóvel pertencia à confraria, estava
excetuada do projeto do melhoramento do Largo do Rosário. Os motivos desta escolha são
claros. A Brasserie não estava fora dos padrões europeus pretendidos pela cidade e por seu
administrador.
Em reunião a Irmandade do Rosário respondeu ao prefeito que também a havia
oferecido um terreno no Largo do Paissandu inquirindo as condições do acerto. As
indagações feitas a Antônio Prado foram referentes à demolição e à reconstrução da sede
da confraria. Quis se saber, por exemplo, se a agremiação seria obrigada a seguir a planta
entregue pela prefeitura ou poderia fazer alterações caso não agradassem as indicações do
governo municipal; se a demolição atingiria também a Brasserie, uma vez que esta
ocupava dependências ligadas ao templo. Além disso, solicitou-se à prefeitura o prazo que
seria dado para o grupo desocupar o Largo do Rosário e em que condições isto deveria se
dar (AMARAL , 1991, p. 110).
A Irmandade então se colocou em sessão permanente e delegou ao irmão secretário
a responsabilidade de negociar com a câmara municipal. A proposta inicial ainda seria
submetida à assembleia na confraria. As medidas da prefeitura, disse Amaral, cairiam como
uma bomba algum tempo depois. Os ecos daquela decisão “ainda hoje ressoam,
envolvendo nomes e reputações”. A coletividade então optou por tomar decisões em mesa
conjunta, isto é, na presença da mesa administrativa e demais membros (1991, p. 110).
Aquele momento da vida do grupo provocou grandes polêmicas e intranquilidades.
Durante vários anos, causou “uma série enorme de desentendimentos, desconfianças,
debates públicos e intrigas”. Amaral ressalta que para melhor compreensão do evento, faz-
se necessário levar em conta as atitudes individuais e em que medida estas influenciaram o
126
grupo. Tudo isto deve ser analisado tomando o devido distanciamento, de modo a perceber
as condutas de cada sujeito, sem ser levado pelo “interesse imediatista”, ligando os elos que
compõem o acontecimento (AMARAL , 1991, p. 110-111).
Procurando isentar-se, o autor transcreve o inteiro teor da ata da sessão
extraordinária da mesa conjunta da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos, realizada no fim de agosto de 1903. O objetivo da sessão, presidida pelo juiz
provedor Honório José das Neves era o de discutir a desapropriação da Igreja do Rosário e
sua consequente transferência para o Largo do Paissandu. À mesa administrativa foi
delegado o poder de conclusão do acordo, conforme foi decidido em votação – todos foram
favoráveis, exceto o irmão Luiz de Vasconcelos, aquele envolvido anteriormente no caso
Metzner, que também expôs que o terreno que seria cedido pela prefeitura ficava num
canto do Largo do Paissandu e que este não parecia conveniente (AMARAL , 1991, p. 111)25.
Mais uma vez Amaral vai além da descrição dos fatos, dizendo que a seu ver,
mesmo quinze anos depois da abolição, a impressão que fica da leitura da carta à
administração municipal é a de que permaneciam os vínculos relacionais senhor-escravo. O
desfecho das negociações prenunciava-se nas primeiras palavras da confraria, que
procurava saber quais seriam as condições da desapropriação e da construção da nova
Igreja. Mostrava-se “passiva e pacífica subordinação à vontade poderosa, diríamos ao
quase esbulho do patrimônio histórico assim material como tradicional do Rosário”.
(AMARAL , 1991, p. 112). Estas podem ser estratégias de coexistência da comunidade negra,
ciente de suas possibilidades àquela época, tal como Wissenbach diz a respeito da
manutenção de características das relações sociais da escravidão depois de seu fim (1998,
p. 129).
25 Actas. Irmandade de N. S. do Rosario. 1900-1911. fls. 48-49.
127
Conhecedor do Direito, sua área de formação, Amaral serviu-se de seus
conhecimentos para afirmar veementemente que acima dos direitos privados estão os da
coletividade. Para defendê-los, existem os tribunais, dos quais poderia recorrer a Irmandade
do Rosário, vendo que o grupo por ela formado estava em vias de perder sua propriedade,
em nome das famigeradas “necessidades coletivas”. É como se Raul Amaral questionasse o
que se denomina coletividade: Não se levariam em conta os anseios do grupo laico-
religioso formado pela confraria? A administração representaria de fato os desejos do
coletivo?
Liricamente o autor evoca todo o passado daquela agremiação, que acompanhou o
desenvolvimento da cidade de São Paulo e que agora se via alijada de seu espaço. Baseada
na lei poderia reivindicar a manutenção da posse de sua propriedade, garantia assegurada à
coletividade (AMARAL , 1991, p. 112-113). Porém, os tempos restringiam as possibilidades
da comunidade negra.
Nessas circunstâncias, a Irmandade do Rosário endereçou ao prefeito Antônio Prado
a carta declarando a aceitação da desapropriação de sua Igreja, desde que algumas
exigências fossem atendidas, tais como a planta para a construção do novo templo, de
acordo com a Irmandade; uma indenização do valor de 500 contos de réis, a fim de cobrir
os gastos com a rescisão do contrato com Tereza Scigliano; a remoção dos cadáveres
sepultados no local; o aluguel do imóvel onde ficariam os objetos sacros enquanto se
construía a nova sede; a provisão da Santa Sé para a profanação do espaço sagrado; a
construção da nova Igreja e mais 12 contos anuais a título de cessão dos lucros certos, estes
obtidos no aluguel dos imóveis pertencentes à confraria.
Pediam, além disso, três meses para que a Igreja do Largo do Rosário fosse
desocupada, valendo o mesmo para os cômodos de sua propriedade, exceto o da Brasserie
Paulista e suas dependências. A indenização de 500 contos teria de ser paga no ato do
128
lavramento da escritura. Acresceu-se ao pedido a observação de que as exigências
poderiam ser modificadas a critério da administração da cidade, desde que fossem
oferecidas em compensação outras “regalias” à confraria. Entre estas regalias estaria a
cessão de uma parte do terreno que – tinha ciência a Irmandade – sobraria da demolição e a
mesma seria usada em benefício do melhoramento estético daquela região, por meio da
doação a terceiros.
A Irmandade dos Homens Pretos justifica a quantia solicitada, reconhecendo que
esta parecia exorbitante apontando que o Governo do Estado havia pago ao Bispado de São
Paulo 350 contos de réis em virtude da demolição da Igreja do Colégio, que era menor do
que a Igreja do Rosário. Desta forma, acreditou que a prefeitura aceitaria em ceder o valor
solicitado. Para concluir o requerimento, afirmaram estar dispostos a colaborar com o
melhoramento pretendido pela administração de Antônio Prado sem que este causasse dano
aos interesses da confraria (AMARAL , 1991, p. 113-114).
Mais uma vez a Irmandade do Rosário demonstrou sua colaboração com o projeto
urbanístico que a obrigava a ceder seu espaço em nome do progresso. A metrópole poderia
embelezar seu cartão postal, desde que não ferisse os interesses da agremiação que até
então havia ocupado aquele espaço.
A resposta do prefeito às exigências veio uma semana depois – era impossível
entrar num acordo naquelas condições. A opção deste foi a expropriação judicial. Na
opinião de Amaral – e novamente o autor não se prende à pura descrição factual, deixando
à mostra suas críticas e posicionamentos – “a rede estava sendo bem lançada, manejada por
mãos hábeis, dirigida por alguém conhecedor do ambiente, da situação e da capacidade de
resistência do grupo atingido” (1991, p. 114, grifo nosso). A administração municipal era
conhecedora destes fatores em relação à Irmandade do Rosário, que àquela época
129
certamente não possuía muitas possibilidades frente ao “grande projeto” que transformava
a capital paulista.
Em reunião posterior, a confraria sinalizou que aceitaria a metade do valor (250
contos de réis), desde que a prefeitura cedesse a parte de terreno que sobraria da
desapropriação. Antônio Prado, em réplica, disse que os 250 contos eram possíveis, mas o
terreno, não. Seu argumento era de que este seria necessário para a negociação com os
vizinhos. A Irmandade ainda tentou elevar o valor da proposta, mas nenhum resultado por
ela esperado chegou. No dia 16 de setembro de 1903 a lei municipal número 670 declarou
de utilidade pública o terreno e os prédios do Largo do Rosário, sob a alegação que estes
eram imprescindíveis para o aumento daquele logradouro (AMARAL , 1991, p. 115-116).
Ironias do destino ou não, em maio de 1904, a prefeitura de São Paulo prosseguindo
com seus planos modernizadores do Largo do Rosário, desapropriou mais um imóvel,
contíguo à Igreja. Este pertencia a José Raposo e Maria do Carmo Sertório Raposo. Pelo
mesmo pagou a indenização de 290 contos de réis, valor superior ao pago pelo templo da
Irmandade. O terreno que havia sido do cemitério dos Homens Pretos foi parar nas mãos do
irmão de Antônio Prado, Martinico, que ali construiu o palacete Martinico Prado, que
abrigou o Citybank e que hoje serve de sede à Bolsa de Mercadorias e Futuros/Bolsa de
Valores de São Paulo (SECCO, 2008, p. 57).
Embora o segundo artigo da lei deixasse margem à negociação, sugerindo a
possibilidade de compra dos terrenos pertencentes à Irmandade dos Homens Pretos, a lei
698, de 14 de dezembro do mesmo ano firma a quantia de 250 contos de réis mais a
“pequena área de terreno no Largo do Paissandu” a título de indenização pela
desapropriação da sede do Largo do Rosário. As “negociações” foram encerradas com um
Ato que em 24 de dezembro de 1903 abriu um crédito suplementar de 250 contos na verba
“Desapropriações” do orçamento daquele ano. “Estava selada, sacramentada e finalizada a
130
negociação. Pelo menos para o ‘lado de lá’. E era uma vez a Igreja do Rosário, do Largo do
Rosário, do ‘cabeço de montanha’” (AMARAL , 1991, p. 116-118).
Do “lado de cá” – o interior da Irmandade do Rosário – para usar a expressão
empregada por Amaral, nada estava concluído. No início de 1904, em sessão, o secretário
apresenta aos confrades os comprovantes dos depósitos, os quais totalizavam 240 contos.
Os dez restantes foram distribuídos por outras repartições à confraria.
Esta quantia foi motivo de desencontros. O inspetor de veículos do município,
Antonio Mangini, disse que “três homens de cor preta, que diziam ser Irmãos do Rosário” o
insultaram, acusando a ele e a outros dos seus de terem dividido os dez contos entre si. Para
um membro da Irmandade, o mesmo inspetor afirmou que o dinheiro havia sido entregue
ao secretário, Theóphilo Dias de Castro e que este havia dividido com funcionários ligados
ao poder público, o que foi desmentido em sessão pelo mesmo. A reunião de janeiro de
1904 sanava quaisquer murmúrios (AMARAL , 1991, p. 118).
Um dos membros dizia naquele momento que a Igreja, de tradições seculares, ficara
por terra. De fato, à administração municipal coube não deixar vestígios do Rosário dos
Homens Pretos. Um ano depois, quando da licença do prefeito, e no exercício Pedro
Vicente de Azevedo, foi baixada a lei 799, de 4 de janeiro de 1905, que renomeou o Largo
do Rosário. Este, a partir de então, passou a se chamar Praça Antônio Prado (AMARAL ,
1991, p. 118-119). O Largo do Rosário não mais seria um território negro da cidade de São
Paulo. A partir de então, a confluência das imponentes e elegantes ruas da Belle Époque
paulistana ostentava o nome do prefeito que se empenhara em dar à urbe a face europeia
almejada.
A reconstrução da vivência: a mudança para o Paissandu
131
Todos os procedimentos relativos à desapropriação foram tomados logo no início do
ano de 1904 – rescisões de contratos de locação, remoção de objetos de culto, exumação de
cadáveres, entre outras coisas. Por sugestão do capelão da Irmandade, a mesma decidiu
alocar-se provisoriamente na Igreja de São Pedro da Pedra, localizada no Largo da Sé26
(AMARAL , 1991, p. 120).
O posicionamento das autoridades da Igreja Católica paulistana a respeito da
desapropriação do templo da Irmandade do Rosário foi contrário à administração
municipal. Para estas, o acordo firmado lesava grandemente a confraria e seria necessário
que uma comissão recorresse aos tribunais para que a indenização fosse maior do que a
recebida (AMARAL , 1991, p. 121). O autor não traz maiores explicações sobre o desenrolar
desta questão.
De acordo com o firmado entre a Irmandade e a Câmara, esta entregou a planta para
a construção da nova Igreja do Rosário, a ser edificada no Largo do Paissandu. Os
moradores do lugar insurgiram-se “contra a construção da igreja no local e, alegando todos
os motivos possíveis, tentaram entravar e embargar as obras (...)”. É notório que o resultado
esperado não foi alcançado. Segundo Amaral, os objetivos de Antônio Prado, agradassem
ou não, seriam conquistados – e a Irmandade dos Homens Pretos em breve mudar-se-ia ao
Paissandu. A própria confraria, afirma o autor, não se deixou amedrontar pelas ameaças e
afrontas de seus futuros vizinhos (AMARAL , 1991, p. 122-123).
O Largo do Paissandu outrora se chamava tanque do Zunega (ou Zuniga). O tanque
ia de onde agora se localiza a Igreja do Rosário dos Homens Pretos até o início da Avenida
Rio Branco. Existiu por volta dos anos 1820, em forma de lagoa, relativamente rasa. Em
1849, de modo a aproveitar as vertentes, a administração local decidiu por construir
naquele espaço uma fonte, usando de meios econômicos para o aproveitamento do espaço.
26 Hoje Praça da Sé, local onde está a Caixa Cultural, próximo à saída para o Pátio do Colégio.
132
Deveria ser um ambiente limpo, plano e que se prestasse ao embelezamento da região, até
então periférica da cidade. Entre os anos de 1855-1856 foi feita a drenagem do tanque
(GASPAR, 1970, p. 51). A fonte do Zunega servia como bebedouro de animais; para o
abastecimento de água e também para a lavagem de roupas pelas senhoras das
confluências. Além dessas informações, pouco se sabe sobre aquele chafariz (GASPAR,
1970, p. 52).
No ano de 1865 as tropas brasileiras tomaram a praça uruguaia de Paysandu,
durante a Guerra do Paraguai. Deu-se então este nome ao largo que havia se formado do
antigo Tanque do Zunega. Segundo Gaspar, “houve quem quisesse atribuir a atual
denominação do largo à suposta residência ali, em outros tempos, de um preto velho
chamado Sandu e conhecido vulgarmente por ‘Pai Sandu’. Ora, nem mesmo como pilhéria
vale a invenção...”. Não se sabe quando a fonte foi destruída, mas seus últimos registros
são da década de 1870, sendo provável que em sua segunda metade o chafariz tenha
deixado de existir (1970, p. 53).
Raquel Rolnik menciona o Paissandu em sua obra, citando o viajante francês Saint-
Hilaire, que descreveu o intenso movimento das mulheres negras cuja atividade era a
lavagem de roupas, tanto na várzea do Carmo – no Tamanduateí quanto no bairro de Santa
Ifigênia, “numa lagoa chamada Zunega, que depois se tornou o Largo do Paissandu”
(ROLNIK, 2003, p. 63).
De posse de seu novo espaço, a confraria do Rosário, após discutir a planta e
concordar que a ela seriam feitas diversas retificações, abriu edital de concorrência para a
escolha da empresa que construiria a sua nova sede. A vencedora foi a firma Rossi &
Brenni, que orçou a obra em 159 contos de réis, sendo esta a proposta de valor mais alto. O
lançamento da pedra fundamental se deu a 20 de julho de 1904.
133
Estava iniciada a edificação da nova Igreja do Rosário. Os membros da Irmandade
revezavam-se na fiscalização das obras e logo de início se deram conta das dificuldades
para a consecução das mesmas. Os alicerces do templo demonstravam que mais recursos
seriam necessários. Os obstáculos foram transpostos ao longo da edificação e em janeiro de
1905 a Igreja recebia o telhamento (AMARAL , 1991, p. 122). Estes obstáculos decorriam
das condições que apresentamos: o Largo do Paissandu era antes uma lagoa e por isto,
muitos ajustes seriam necessários para que uma construção naquele lugar desse certo.
Os ajustes internos também extrapolaram o orçamento inicial, que não previa os
valores das instalações de luz e de gás, bem como a construção dos altares. Os lustres
foram encomendados da Alemanha e doações foram imprescindíveis para a finalização da
Igreja, como a da baronesa de Tatuí (AMARAL , 1991, p. 123).
A mesma benfeitora da Irmandade dos Homens Pretos havia ajudado à Irmandade
dos Homens Brancos anos antes, em 1899. A baronesa de Tatuí colaborou, junto da
condessa de Prates, com a reforma do frontispício da Igreja de Santo Antônio, que existia
onde hoje é a Praça João Mendes. Segundo Antonio Egydio Martins, um dos poucos
autores que escreveram sobre esta outra Irmandade do Rosário, esta Igreja era uma das
mais bonitas da capital. As atividades desta confraria eram apenas as ligadas ao culto
tradicional católico, ausente de qualquer outra influência (MARTINS, 2003, p. 333-334).
Não se interrompiam, nas palavras de Amaral, “as medidas tendentes a dar à festa
inaugural da nova igreja o brilho e o esplendor que pudessem ofuscar os maldizentes”. De
janeiro a abril foram planejadas as cerimônias de transladação e inauguração da nova
Igreja. A procissão solene sairia da Igreja de São Pedro da Pedra no Largo da Sé rumo ao
Largo do Paissandu acompanhada de toda a pompa, acompanhada por “doze Irmãos,
vestidos de roupa preta, de tocheiros ornamentados com fitas e revestidos dos seus fitões,
devem fazer guarda de honra de Nossa Senhora” (AMARAL , 1991, p. 123. Ver figura 01).
134
Na sequência de seu texto, Amaral transcreve o edital de concorrência para a
construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Enumera as etapas
do procedimento do envio da proposta, bem como dos itens a serem contemplados, tais
como valor e forma de pagamento, prazo de conclusão das obras, garantias e o material a
ser empregado, este “de primeira qualidade” (1991, p. 124).
Desde o lançamento do edital de concorrência para a escolha da empresa que
efetuaria a construção, que escolhe a proposta mais cara, até o término na construção, fez-
se questão de destacar que tudo seria feito com o máximo de zelo e qualidade. Destacou-se
assim a importância que o templo tinha à Irmandade do Rosário, de modo também, como
dissemos, a “ofuscar os maldizentes” (AMARAL , 1991, p. 123).
Acompanha também o capítulo a transcrição da ata do assentamento da pedra
fundamental. Nela, o secretário Theóphilo Dias de Castro volta às origens da Irmandade e
da construção da primitiva Igreja. Prosseguindo, descreve a cerimônia da bênção da pedra
pelo cônego João Evangelista Pereira Barros, vigário da paróquia de Santa Ifigênia, da qual
faz parte a comunidade da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.
Neste ato, alude-se ao processo de desapropriação e demolição da antiga Igreja do Largo do
Rosário, em acordo firmado com a Câmara Municipal paulistana. A nova Igreja foi
licenciada pelo bispo da diocese de São Paulo, Dom José de Camargo Barros. A pedra
fundamental foi colocada sob o local do altar-mor, na presença do vigário, da mesa
administrativa, de representantes dos poderes civil e eclesiástico, além de representantes de
outras irmandades e ordens terceiras, associações católicas e da imprensa (AMARAL , 1991,
p. 124-125).
Em seguida, o autor traz a escritura da ata da bênção do novo templo, ocorrido a 15
de abril de 1906, presidida pelo capelão da Irmandade do Rosário, o padre João
Nepomuceno Manfredo Leite, sob autorização do bispo diocesano e na companhia de 92
135
irmãos e irmãs27. No ensejo, firmaram que a inauguração solene da Igreja do Paissandu
seria nos dias 21 e 22 de abril próximos. A Companhia de Força e Luz da capital se
propusera, a um valor baixo, iluminar o trajeto da procissão da sede provisória ao Largo do
Paissandu:
Saindo da Igreja de São Pedro da Pedra, acompanhado da banda do maestro Carlos Cruz, o cortejo entrou pela travessa da Sé, ganhou o Pátio do Colégio e Rua da Boa Vista, adentrou a Rua do Rosário (Rua João Brícola) e a Praça Antônio Prado (antigo Largo do Rosário e local da igreja velha), seguindo as ruas São Bento e Direita, atravessando o Viaduto do Chá para desembocar na Rua Conselheiro Crispiniano e adentrar o Largo Paissandu e a nova igreja, sendo recebido com uma salva de 21 tiros. A nova Igreja do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo estava de pé (AMARAL , 1991, p. 127).
Em nota à citação acima, Amaral faz menção ao jornal Diário da Noite, do mês de
agosto de 1940, o qual afirma que a construção da Igreja do Paissandu ficou mais cara que
o previsto, pois o largo anteriormente era um tanque e foi preciso drená-lo e fazer o
estaqueamento. Os alicerces precisaram ser ampliados e por isto a confraria teve de
recorrer às suas economias para dar conta do projeto. Em consequência, o prédio da
Brasserie Paulista foi vendido (1991, p. 127).
As celebrações da transladação da Irmandade do Rosário iniciaram-se na manhã do
dia 21 de abril. Nos recortes encontrados no Archivo de Annuncios e Noticias da Irmandade
do Rosário, chamou-nos a atenção o fato que mais de um ano depois da alteração do nome,
a Praça Antônio Prado era chamada de Largo do Rosário, quando se noticiava o trajeto da
procissão que transladaria solenemente a Irmandade dos Homens Pretos para sua nova sede
no Paissandu28. Segundo Halbwachs, a tradição de um espaço leva tempo para ser
sobreposta por uma nova identificação (2006, p. 165). Por este motivo ainda encontram-se
registros que citem a dupla nomenclatura do lugar ou ainda a sua denominação pregressa.
27 Ata nº 1: Benção do Templo. Venerável Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos “Homens Pretos” de São Paulo. 1903-1906. fls. 5-8. 28 Archivo de Annuncios e Noticias. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo. fl. 2 verso.
136
Uma nota publicada pela secretaria da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
exortou que apenas seria permitida a entrada na igreja nova àqueles que quisessem honrar à
confraria com suas presenças, após a entrada das imagens e das irmandades. Julgaram
ainda ser desnecessário explicar o motivo de tal advertência (AMARAL , 1991, p. 128)29.
Todos os esforços dos Irmãos do Rosário para que a inauguração da nova sede fosse
memorável e também para que a Igreja do Paissandu fosse digna de elogios dos paulistanos
surtiram efeito. Pelo menos é o que se pode notar num jornal do dia posterior à inauguração
da nova Igreja do Rosário. No recorte selecionado pela confraria e constante de seu
arquivo, notamos a descrição da “imponentíssima” procissão de transladação da imagem da
Senhora do Rosário, acompanhada por diversas irmandades da capital.
O público era numeroso, tanto no percurso quanto na chegada ao Paissandu. A
reportagem menciona a dificuldade de se entrar no templo, a qual foi recompensada quando
se pôde “com prazer reparar bem o optimo effeito que produzia já a sua ornamentação, já a
construcção interna, já a sua illuminação, que era deslumbrante”30.
Em meio à atmosfera transformadora da urbe paulistana, não era estranho o fato de
que a nova sede da Irmandade não seguisse os padrões arquitetônicos coloniais. A planta,
entregue pela prefeitura, continha traços que se assemelham às outras construções do
mesmo período em São Paulo, onde se nota a influência europeia.
O período iniciado no ano de 1906 foi marcado pelas incertezas que vinham dos
anos anteriores. Para o grupo, perder seu antigo espaço e os referenciais de sua tradição é
algo que atinge diretamente a imagem que a coletividade faz de si. Enquanto não acontece
a acomodação ao novo ambiente material, o conjunto não recobra a sua personalidade
(HALBWACHS, 2006, p. 157).
29 Archivo de Annuncios e Noticias. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo. fl. 2 verso. 30 Archivo de Annuncios e Noticias. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo, fl. 2. Não se declara o nome do jornal.
137
Halbwachs diz que o grupo religioso, mais do que qualquer outro, necessita se
apoiar num objeto durável, um espaço que garanta a sua permanência, pois a própria
coletividade não pretende alterar-se. Para esta associação, o início, o momento presente e o
futuro devem ser semelhantes. A igreja está além de ser um espaço de ajuntamento de
pessoas. Tudo em seu interior obedece às necessidades do culto e às concepções que o
grupo que a organiza tem a respeito de sua vivência com o religioso (2006, p. 184).
O sociólogo acrescenta que a sociedade religiosa “quer se convencer que não
mudou, embora tudo se transformasse ao seu redor”. Para atingir este objetivo, reconstitui
seu espaço de acordo com uma imagem ao menos simbólica do lugar que a constituiu – as
suas origens. Desta forma, é como se o espaço e a memória se imobilizassem, e esta é a
condição necessária para a memória – a continuidade (HALBWACHS, 2006, p. 187).
Como o grupo e o seu espaço trocam influências e constituem uma identidade
comum (HALBWACHS, 2006, p. 157), a ruptura representada pela transferência de endereço
da sede da Irmandade do Rosário implica no reinício da atividade que atrela a identidade
grupal ao espaço ocupado. A partir de então, o Largo do Paissandu se abre à influência de
sua nova moradora – a Igreja e a Irmandade dos Homens Pretos, acompanhada de sua
tradição que se aproximava dos duzentos anos, ao mesmo tempo em que o logradouro
iniciava o processo de agregação de sua história à confraria e sua sede.
138
Figura 01. Reprodução da capa da 2ª edição do livro de Raul Joviano Amaral. Doze irmãos seguem em procissão, em direção à nova Igreja do Rosário, ornamentados, com fitões e faixas, além das tochas, como na descrição de AMARAL , 1991, p. 123.
139
Os fantasmas do passado e o “quase outra vez”
Após narrar a mudança para o Paissandu, nos capítulos finais de seu livro, Amaral
discorre a respeito de fatos recentes da história da Irmandade do Rosário, dados em meados
dos anos 1940. A ressalva que vem logo no início da explanação afirma que apesar da vasta
documentação que possibilita a pesquisa acerca do período, não julgou seguro fazê-lo, uma
vez que faltava o distanciamento necessário para a perspectiva. A razão dos capítulos finais
é para levar à reflexão de que “a história se repete” (AMARAL , 1991, p. 129).
Cerca de oitenta anos depois da primeira desapropriação dos imóveis da Irmandade
do Rosário (década de 1870), novamente a Igreja dos Homens Pretos, já acomodada no
Largo do Paissandu, sentia seu patrimônio ameaçado. Desta vez, ressalta Amaral, que
“forças poderosas, bem mais poderosas e articuladas do que aquelas do princípio do
século” idealizaram uma nova reforma urbana no que se constituía como o centro de então.
Uma das medidas seria o reendereçamento da Igreja do Rosário “para quaisquer dos muito
escondidos becos da metrópole” (AMARAL , 1991, p. 129).
Mas dessa vez, o desenrolar seria outro. Eram outros homens, em outros tempos –
“e houve resistência férrea, pertinaz, tirânica” – não se caiu no erro e na falta de ação
anteriores. A confraria permaneceu em pé, segundo diz Amaral, em torno de seu juiz
provedor, e mesmo em meio a tentativas de desagregação interna, os irmãos do Rosário
souberam recorrer à Justiça para garantir os seus direitos (AMARAL , 1991, p. 129-130).
Foi impossível discorrer a respeito da nova tentativa sem recordar a odisseia dos
primeiros anos dos novecentos. E Amaral é contundente ao referir-se ao antigo Largo do
Rosário, espaço que enquanto servia de asilo aos doentes no século XVIII , não era
preocupação para os demais habitantes. Tendo o “progresso” o atingido, torná-lo um novo
lugar fez-se mister, e a Igreja que lá estava desde a época dos surtos de varíola e outras
140
doenças, teve de sair. Não restou nem a referência ao antigo nome no logradouro
(AMARAL , 1991, p. 130).
“A velha igreja foi levada para o distante Paissandu”, como vimos, sob protestos
dos moradores das adjacências. Aquelas paragens paulistanas faziam parte de um espaço
não muito saneado, povoado por indivíduos de “reputação duvidosa” – as prostitutas. Para
aquele lugar foi transferida a igreja, “maltrapilha” e “mal-acomodada” – tudo faltava, a
construção era uma sequência de complicações, entre outras dificuldades (AMARAL , 1991,
p. 130). A memória do não tão distante 1903 era evocada. E quando é evocada, a memória
sofre flutuações, que a articulam com o momento em que é expressa: “as preocupações do
momento constituem um elemento de estruturação da memória” (POLLAK , 1992, p. 4). A
Irmandade, frente a uma possível repetição da história, apegava-se à “lição” do passado.
À época, realmente o Paissandu era longínquo. Mas nos anos 1940, não. A cidade
se expandiu ao longo da primeira metade do século. O centro se refez. A Avenida São João,
defronte à Igreja do Rosário, tornava-se uma das mais importantes vias da metrópole.
Passados os anos, apesar da vizinhança indesejada, e “à despeito da ojeriza gratuita, da
malquerença de muitos, da incompreensão em suas próprias hostes, a Irmandade
empobrecida resistiu”. Em fins dos anos 1930, via sua posição cada vez mais sólida e seu
patrimônio protegido. Amaral vê os acontecimentos do início do século como uma lição
para os posteriores (AMARAL , 1991, p. 130-131). O autor é enfático ao refletir sobre a
quase-desapropriação nos anos 1940:
Por um triz, na nova sede, no solo fertilizado pelo húmus da fé, da resignação, sobretudo do amor e da tolerância – no Paissandu –, por um triz não se fincaram imponentes, na frieza do granito, as patas monumentais do cavalo que, em seu dorso, sustenta a majestade do bronze, a figura poderosa do herói nacional: a do Duque de Caxias (AMARAL , 1991, p. 131).
Para Amaral, não só o Duque de Caxias era um símbolo da nacionalidade – a
Irmandade dos Homens Pretos também o era – e não seria alijada de seu espaço em nome
141
da construção de um monumento que exaltasse o mesmo que ela também representava.
Não aceitaria sem antes discutir e evocar suas tradições (1991, p. 131).
O capítulo final da obra prossegue e se dedica à tentativa da administração
municipal de erigir no Largo do Paissandu o monumento ao Duque de Caxias, que
posteriormente foi construído na Praça Princesa Isabel. O empreendimento foi apresentado
em agosto de 1940, 37 anos depois da desapropriação da antiga Igreja do Rosário, pelo
prefeito de então, o engenheiro Francisco Prestes Maia. Seu objetivo era não só edificar o
monumento como também adaptar o largo às transformações urbanísticas pelas quais
passava a cidade naqueles anos (AMARAL , 1991, p. 132).
A remodelação contemplava todo o Largo do Paissandu e estava de acordo com as
exigências urbanísticas, paisagísticas e de tráfego. Em virtude da desapropriação, a
prefeitura disponibilizaria a verba para que a Irmandade construísse sua nova sede em local
mais apropriado31. A Avenida São João, que à época constituía a mais importante via da
capital paulista, e onde está o Paissandu, era o ponto mais adequado à realização de desfiles
cívicos e não haveria local mais propício para a estátua do patrono do Exército Brasileiro
do que aquele espaço (AMARAL , 1991, p. 132-133).
Antes de comunicar ao público a intenção de erigir o monumento, a própria
Irmandade não havia sido consultada e portanto foi surpreendida pelo projeto. As
negociações não chegavam à coordenação da mesma. Estas se davam no alto escalão da
Igreja, ou seja, entre a prefeitura e o bispado (AMARAL , 1991, p. 133).
A comissão pró-monumento era composta por Dom José Gaspar de Afonseca e
Silva, arcebispo de São Paulo, que concordava com a remoção da Irmandade dos Homens
Pretos e de sua Igreja no Paissandu. Buscou acalmar os frequentadores e fiéis dizendo que
31 Archivo de Annuncios e Noticias. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo. 1906-. fl. 28 verso.(Diário da Noite. 15 ago. 1940, p. 1).
142
um novo templo seria ereto, em local que fosse mais útil à população católica. A Irmandade
até então não havia se manifestado a respeito (AMARAL , 1991, p. 133).
A medida tomada pela administração municipal foi semelhante à de Antônio Prado:
o terreno da Igreja do Rosário seria declarado de utilidade pública e desapropriado
judicialmente, porém, sinalizava-se a possibilidade de aquisição “amigável”, por meio de
compra ou permuta. Não mais o largo todo seria objetivo de remodelação, destaca Amaral,
com todas as letras grafadas em maiúscula – apenas um imóvel, a Igreja, seria atingido
(1991, p. 134).
A justificativa do prefeito para tal empreendimento baseava-se na melhoria do
tráfego; na harmonização estética da região central, que se modernizava com os seus
imponentes edifícios; e também, para que o Paissandu se tornasse digno de receber um
monumento ao Duque de Caxias. A Irmandade ainda não havia sido consultada e após o
decreto da utilidade pública, seu templo deveria ser demolido em no máximo dois meses e
“a ARQUIDIOCESE prontificou-se a aceitar outro local, ainda em estudos, para o qual
deverá ser transferida a tradicional Igreja” (AMARAL , 1991, p. 134-135).
Na falta de uma notificação para que pudesse tomar posição, a Irmandade do
Rosário, orientada por outros irmãos, de fora da mesa administrativa, e que “sabiam ler e
escrever” e evitando o desfecho que a desalojou em 1903, resolveram tomar, mesmo que
temerosos, um posicionamento frente à questão. Desta forma, diz Amaral, “mudavam-se,
silenciosamente, as regras do jogo, que impressionaram as autoridades, fazendo-as recuar
para melhor estudo da questão” (1991, p. 135). Não só Amaral se remete aos primeiros
anos do século para narrar o novo embate entre administração municipal e Irmandade do
Rosário pelo espaço por esta ocupado. Nos jornais da época, arquivados pela confraria, é o
mesmo que se vê.
143
O Diario da Noite, edição de 20 de agosto de 1940, é um dos muitos exemplos do
destaque que a possibilidade – senão a certeza – da nova demolição da Igreja do Rosário
ganhou. Nenhuma das reportagens deixou de mencionar o fato não tão antigo que
desapropriara a sede da Irmandade dos Homens Pretos de seu endereço anterior. A redação
do próprio jornal entrevistou a coordenação da Irmandade, representada no ato pelo
secretário Benedito Feliciano Pompeu, que ressaltou a benevolência da mesma em ceder de
bom grado o seu antigo terreno, afirmando que desta vez não recusaria em fazer o mesmo
em nome da homenagem ao patrono do Exército Brasileiro.
Segundo o irmão secretário, a Irmandade entrou em acordo com o arcebispo
metropolitano e estava certa de que este saberia defender os direitos da confraria32. Para
Amaral, o que se nota é uma entrevista habilidosa e que seguia a orientação dos “irmãos
silenciosos”, que fizeram a mesa administrativa apresentar-se ao gabinete do prefeito, a fim
de explicar a real situação da confraria.
Retornamos, também, ao episódio passado do início do século: a confraria não era
contrária ao destino que se daria ao seu espaço. A visão que o grupo que vive na cidade e
dela tira proveito se entrelaça com o objetivo de quem tem o poder de produzir e intervir no
espaço. Discursos, imagens e personagens se justapõem, tal como levantamos a respeito do
posicionamento “passivo” da Irmandade diante da desapropriação em 1903. Os valores de
ambos os lados vão e vêm (PESAVENTO, 1995, p. 14)
O prefeito alertou a Irmandade que a ela havia duas saídas possíveis: uma era a
desapropriação judicial, outra era a sequência das negociações, pretendendo culminar num
acordo amigável entre as partes. A agremiação optou pela segunda alternativa, mesmo
ciente de que era o lado mais fraco. A atitude irritou ao arcebispo, que convocou a diretoria
do grupo e insinuou que represálias viriam, tais como excomunhão, interdição, entre outras
32 Archivo de Annuncios e Noticias. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo. 1906-. fls. 30 verso e 31.
144
(AMARAL , 1991, p. 136-137). Para um grupo religioso, tais punições eram altamente
nocivas à continuidade das atividades desempenhadas pelo mesmo.
Entre idas e vindas, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário acabou por sair
vitoriosa dos impasses. O arcebispo paulistano faleceu e a administração municipal passou
a desconsiderar a construção do monumento no Largo do Paissandu. A estátua de Duque de
Caxias foi construída tempos depois, na Praça Princesa Isabel. E a Irmandade permaneceu
no Paissandu (AMARAL , 1991, p.140-146). O passado, como a fraternidade temia, não se
repetiu.
4. “SUJEITOS DE NOSSA HISTÓRIA”: MEMÓRIA , IDENTIDADE E AUTORREPRESENTAÇÃO
Raul Joviano Amaral e Os Pretos do Rosário de São Paulo
O livro pretende-se utilitário, além de ser também uma “pedra minúscula e talvez
exótica que timbra em encastoar-se à coroa de autênticas joias que, de antevéspera, vão
constituindo rutilante galardão do quadricentenário de São Paulo” (AMARAL , 1991, p. 13).
Com estas palavras significativas Amaral inicia a introdução à primeira edição de Os
Pretos do Rosário de São Paulo, de 1954. Não estão mal postos os termos “exótica” e
“minúscula”. Como analisamos anteriormente nesta pesquisa, muitos foram os
historiadores, cronistas e memorialistas que se dedicaram em escrever suas obras em
comemoração ao quarto centenário de fundação da cidade de São Paulo, ressaltando outras
características da metrópole, onde não se inseria a Irmandade dos Homens Pretos.
Ernani Silva Bruno (1954) sob o selo do Serviço de Comemorações Culturais da
comissão encarregada pelas comemorações da grande efeméride delimitou claramente os
elementos característicos de cada expressão da urbe, seja arraial, burgo ou metrópole. Tal
como concluímos, a Irmandade e sua Igreja, acompanhados de suas atividades religiosas,
145
sociais e culturais foram postos na cidade que havia deixado de existir antes da
transformação de São Paulo em “Metrópole do Café” (1872, segundo a cronologia de
Bruno).
Bruno exaltava por meio de sua obra as características modernizantes vindas da
Europa, inseridas no último quartel do século XIX na cidade. A característica não lhe era
única. Ao lado de Bruno pode ser colocada a obra de Jorge Americano (2004), publicada
pouco depois do quadringentésimo aniversário de São Paulo, em 1957, bem como a muito
anterior (1911-1912) e bastante citada por Bruno, São Paulo Antigo, 1554 a 1910, de
Antonio Egydio Martins (2003). O antigo, inspirado nos valores estéticos e morais do
período colonial/imperial deveria ser deixado no passado. Ao presente, tais características
seriam reminiscências nostálgicas, e no caso da Irmandade do Rosário, exóticas, assim
como emprega o próprio Raul Joviano Amaral, ao incluir sua confraria no rol dos partícipes
da celebração do quarto centenário de São Paulo.
Segundo Amaral, o conteúdo de seu livro ficou incompleto, devido a dissipação dos
documentos da Irmandade, em poder de algumas famílias da cidade e algumas autoridades
eclesiásticas. Denomina a obra como um ensaio, cujo objetivo é o de divulgar e, sobretudo,
restaurar fontes relacionadas à vida da Irmandade do Rosário (1991, p. 13). O subtítulo
Subsídios Históricos permite ao leitor de antemão saber do que se trata o pequeno livro,
que traz diversas transcrições de atas e de notícias de periódicos, elementos constantes dos
arquivos da própria confraria.
Além disso, Amaral preocupa-se em recuperar os danos causados pelo
desvirtuamento das “verdades históricas” por parte de outros sujeitos que escreveram sobre
a Irmandade e a cidade de São Paulo. Conclui dizendo que se sente como cumprindo uma
obrigação ao publicar o livro (AMARAL , 1991, p. 13-14). Ao longo desta pesquisa
146
apontamos algumas dessas críticas, em grande parte direcionadas ao cronista Antonio
Egydio Martins, que ora serve de fonte, ora de contraponto.
A data da reedição foi igualmente significativa. O ano escolhido para a nova
publicação de Os Pretos do Rosário de São Paulo foi 1988, quando se celebrou o primeiro
centenário da Abolição da Escravidão no Brasil. Tal momento, segundo Amaral, foi
oportuno para se falar a respeito da frustração dos anseios de “democracia e vocação
libertária” do país. A coletividade representada pela comunidade negra “resgatada com
lirismo no século passado [XIX ]” se vê desamparada e discriminada, cem anos depois. Suas
críticas não terminam. Amaral acrescenta que todos os anos de luta por meio de
movimentos sociais (de negros inclusive) contra os preconceitos, foram inúteis na prática,
pois as elites dominantes do país buscaram a desmobilização pela causa a partir de práticas
desagregadoras (1991, p. 15)33.
Raul Joviano Amaral nasceu em 1914 na cidade de Campinas e em 1937
bacharelou-se em Direito pela Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, frequentando
também cursos como Sociologia, Estatística e Economia. Antes disso, porém, atuava como
jornalista. Fundou e dirigiu os periódicos da imprensa negra A Voz da Raça, em 1933 e
Alvorada, em 1945. Participou de diversas associações, publicou artigos sobre a situação
do negro no país e realizou conferências e palestras a respeito do tema em diversas
agremiações. Sua bibliografia inclui poemas, versos, obras da área do Direito, Estatística,
Criminalidade e também uma publicação sobre o folclore paulista. Em 1947 publicou O
Negro na população de São Paulo (AMARAL , 1991, p. 8).
A elaboração da segunda edição, porém, foi interrompida pelo agravamento do
estado de saúde do autor. Na apresentação, a confraria ressaltou seus quase três séculos de
existência e a dedicação de todos os seus integrantes, destacando o papel de Raul Joviano
33 Ver figura 01. Na reprodução da capa da segunda edição de Os Pretos do Rosário de São Paulo, encontra-se a inscrição “No Centenário da Abolição”. No verso do livro, encontra-se reproduzida a Lei Áurea.
147
Amaral, que enquanto foi possível colaborou na reedição dos subsídios históricos. Em 5 de
setembro de 1988 o então juiz provedor da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos de São Paulo faleceu, deixando incompleta a reedição.
A segunda publicação foi então concluída por outros membros da agremiação, que
homenagearam o integrante que por mais de cinquenta anos esteve vinculado à confraria,
preocupando-se com a preservação de sua memória. Concluindo a nota de apresentação, a
Irmandade ressalta: “o fato de ainda ser tão raro que sejamos sujeitos no processo de
resgate de nossa memória histórica só faz aumentar a importância do presente trabalho”
(AMARAL , 1991, p. 5). Ao autor encontra-se também uma “homenagem póstuma da
Comunidade Negra Brasileira a um idealista de liberdade democrática e de crença
religiosa” (AMARAL , 1991, p. 7).
A vida da Irmandade do Rosário: identidade e autorrepresentação
Mesmo amparado por sua trajetória pessoal de militante, o autor abre mão de falar
da questão étnico-racial. Sentindo-se capaz de fazê-lo, delega a outros o papel. Seu
objetivo é o de mostrar às gerações mais jovens os “elos que impulsionam nossos grupos
sociais, constitutivos da nacionalidade” (AMARAL , 1991, p. 15). Amaral pretende
demonstrar por meio da vida da Irmandade do Rosário os elementos característicos da
identidade do grupo, de modo a gerar no leitor o sentimento de pertença à coletividade
representada pela confraria e pela nação que representa.
Ao narrar a trajetória da Irmandade dos Homens Pretos de São Paulo, Amaral se
utiliza da transcrição dos documentos da confraria, de modo a preservá-los e de dá-los ao
acesso de um público maior, uma vez que são fontes guardadas no interior da sede do
grupo. Objetiva com isto ressaltar a vivência de uma agremiação demasiado antiga,
desejoso de que não fossem esquecidos os esforços despendidos pelas “irmandades de
148
homens pretos”, que segundo ele são as “únicas organizações que têm logrado vencer o
tempo, ocupando um espaço mínimo nos cenários paulista e brasileiro” (AMARAL , 1991, p.
16). Desta forma, visa mais uma vez reconhecer a importância da Irmandade do Rosário e
de suas correlatas no Brasil, carentes de distinção no país e do estado de São Paulo.
Segundo Pollak, os elementos que constituem a memória individual ou coletiva são
os acontecimentos. Em primeiro lugar, os vividos diretamente por um indivíduo; em
segundo, vêm os “vividos por tabela”, que seriam aqueles vivenciados pelo grupo ou
coletividade aos quais o indivíduo se sente pertencente. Estes não necessariamente foram
experimentados pelo indivíduo, mas podem ter tomado uma dimensão tão grande em sua
vivência coletiva a ponto de não ser mais possível dizer se foi partícipe ou não dos eventos
relativos à experiência do grupo (1992, p. 2).
Somam-se aos eventos vivenciados indiretamente todos os outros situados além do
espaço-tempo de um sujeito ou grupo. Para Pollak, é
perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada (...). Podem existir acontecimentos (...) que marcaram tanto uma região ou um grupo, que sua memória pode ser transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação (1992, p. 2).
Considerando a memória enquanto “fenômeno construído social e
individualmente”, referindo-se à memória herdada, diz também ser possível fazer relação
entre a memória e o sentimento de identidade, este tomado no sentido da “imagem de si,
para si e para os outros”. A imagem para si, que mais diz respeito aos objetivos desta
pesquisa, é a que o grupo/indivíduo constrói com o objetivo de apresentar aos outros e a si
próprio, a fim de que possa acreditar em sua autorrepresentação. Além do mais, esta
imagem também exprime a forma que o grupo ou o indivíduo pretendem ser percebidos
pelos outros (POLLAK , 1992, p. 5).
149
A construção da identidade, partindo das reflexões da psicologia social, é composta
por três elementos essenciais. São eles a unidade física, que compreende a noção da
fronteira entre o grupo e o restante; a continuidade dentro do tempo, nos sentidos físico,
moral e psicológico e a coerência, que unifica diferentes elementos num único indivíduo ou
grupo. Quaisquer rupturas nessas unidades/continuidades representam um fenômeno
nocivo à identidade coletiva ou individual. Considerando tais fatores, Pollak afirma que “a
memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como
coletiva” uma vez que é ela um importante fator de coerência e de sentimento de
continuidade (1992, p. 5. Grifos do autor).
Estas considerações a respeito da constituição da identidade e da memória
justificam o exercício empreendido por Raul Joviano Amaral ao tomar a iniciativa de
compor, a partir da documentação sob guarda da Irmandade do Rosário, os subsídios
históricos compilados n’Os Pretos do Rosário de São Paulo. Mobilizou-se a experiência de
vida da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos para atingir as gerações futuras no que
diz respeito à formação de um sentimento de respeito, de valorização e de pertencimento à
confraria. A vida da Irmandade do Rosário é, portanto, o caminho utilizado para a
construção da identidade e da autorrepresentação da própria agremiação, de seus membros
e da comunidade negra paulistana – as gerações futuras citadas por Amaral.
A unidade física está expressa na própria Irmandade do Rosário, contida em seu
espaço, seja no Rosário ou no Paissandu. A transferência de sede levou consigo a trajetória
de vida do grupo. A continuidade, um dos elementos primordiais da memória, está
documentada pelos quase três séculos vividos pela confraria, bem como pela subsistência
de suas atividades, sobretudo a festa de Nossa Senhora do Rosário (SANTOS, 2006),
elemento que serve de coesão às múltiplas configurações da confraria.
150
IV . CONCLUSÕES
A identidade social, assimilada à imagem de si, para si e para os outros contém um
elemento que foge ao indivíduo e ao grupo: o outro. A autorrepresentação não pode ser
construída sem mudança, negociação e transformação em relação aos que estão do lado de
fora do grupo ou da individualidade. A identidade constrói-se em referência aos outros,
especialmente aos critérios de aceitabilidade, admissibilidade, credibilidade, negociados
diretamente com os outros. Memória e identidade não são essência. Estão sujeitos à
negociação. São valores disputados. (POLLAK , 1992, p. 5).
Num primeiro momento, nos dedicamos à observação e à análise do discurso
construído a respeito de um momento marcante para a história de São Paulo. Na passagem
do século XIX para o XX a província/estado, bem como a sua capital, tornavam-se o centro
econômico do Brasil devido ao boom do café, principal produto nacional. A República
então nascente buscava a partir de seus grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro,
igualar-se aos padrões de civilidade europeus, despindo-se dos valores e características
associados ao passado colonial e imperial. Um dos aspectos mais marcantes desse contexto
foram as reformas urbanas, pautadas pelo sanitarismo excludente em voga na Europa e
transferido aos trópicos. As camadas populares eram removidas dos centros urbanos,
levando consigo seus hábitos “nocivos” aos objetivos da jovem República (SEVCENKO,
1998).
Ao longo da primeira década do século XX , Antonio Egydio Martins escreveu São
Paulo Antigo, 1554 a 1910, compilando documentos relativos às reminiscências
paulistanas. Pessoas, fatos, hábitos e costumes que ficavam para trás, em nome da
modernização e da constituição de uma metrópole. Suas crônicas foram retomadas nos
anos 1950, por ocasião da celebração do IV Centenário de São Paulo. Um dos autores que o
151
recuperaram, incluindo-o num vasto número de fontes documentais, foi Ernani Silva
Bruno, que sob patrocínio governamental confeccionou História e Tradições da Cidade de
São Paulo, cujos volumes revelavam três São Paulo em 400 anos. Mais uma vez,
características específicas eram atribuídas a cada uma dessas cidades. Jorge Americano,
poucos anos depois em São Paulo naquele tempo (1895-1915) discorria de maneira leve
sobre os acontecimentos de sua infância, que anunciavam a cosmopolita São Paulo que se
veria tempo depois.
Nesses três autores – postos por nós no lugar do “outro”, a partir da reflexão de
Pollak, encontramos características que punham a comunidade negra e/ou pobre paulistana,
bem como a própria Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e seus
hábitos, costumes e sociabilidades como símbolos da São Paulo que havia deixado de
existir com suas feições coloniais e imperiais. Não havia lugar para estes sujeitos na
“Metrópole do Café”, assim como na cidade que se firmava ao longo do século XX ,
culminando em seu quadringentésimo aniversário, em 1954. O discurso construído e por
assim dizer, a memória “oficial” da cidade de São Paulo exaltava seus elementos de
grandeza e de riqueza, ora nos primórdios bandeirantes, ora nos imigrantes europeus,
aportados em sua maioria em terras paulistas.
Porém, não só a “memória oficial” existe. O conceito de memória subterrânea
definido e discutido por Pollak revela a importância dos discursos não-oficiais, geralmente
relativos às minorias e às “culturas dominadas”. A partir dela é possível perceber o caráter
opressor e uniformizador da memória oficial – a nacional, por exemplo. O trabalho
subversivo da memória subterrânea, para usar o termo empregado por Pollak, é feito em
silêncio e aflora em momentos de crise, “em sobressaltos bruscos e exacerbados”. Nesses
momentos, a memória entra em disputa (1989, p. 4).
152
Não foi possível avaliar se a obra de Raul Joviano Amaral causou impacto nos
momentos comemorativos em que foi publicada, porém, a intenção do autor foi demonstrar
a importância da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário em dois momentos do século
passado. Em jogo estava então a definição da identidade do grupo, construída a partir de
sua memória. Primeiramente, em 1954, quando se comemoravam os 400 anos de São
Paulo. Depois, em 1988, quando se celebrava o Centenário da Abolição. No primeiro
momento, a obra procurava inserir-se, mesmo como “exótica” e “minúscula” na
multiplicidade de exaltações à cidade e à sua história. Em 1988, seu objetivo era ressaltar
os esforços das associações negras, que ao longo da História do Brasil buscaram de acordo
com as suas possibilidades lutar contra aquilo que as subjugava – a condição de escravos,
as dificuldades de adaptação ao mundo livre, as práticas discriminatórias e os preconceitos.
Esforços estes que para o autor foram inúteis na prática, pois as elites dominantes do país
se utilizavam de seus meios para desmobilizar a organização da população negra. Apesar
disto, disse Amaral, eram as únicas que perduravam (1991, p. 16).
De um lado, a São Paulo rica, próspera, civilizada e europeia. Do outro, a São Paulo
das mesmas características, porém, não apenas europeia. Esta admite características que
são outras, inclusive aquelas que têm origem no continente africano, e representadas pela
comunidade negra, cujo símbolo paulistano também é a Irmandade do Rosário. A confraria
e sua Igreja porém não são exclusivas da comunidade dos “homens pretos” – são
representantes da nacionalidade, assim como o “herói” Duque de Caxias que quase a
desalojou nos anos 1940 (AMARAL , 1991, p. 131).
A identidade e a autorrepresentação não podem ser vistos sem que se tenha um
contraparte, no caso, aquele que está do lado de fora. Os discursos que excluíam a
Irmandade do Rosário do século XX paulistano não foram negados totalmente por Raul
Joviano Amaral, representante da confraria. Seu objetivo era inserir a Irmandade dos
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Homens Pretos no local que a seu ver lhe era de direito – dentro da história da cidade, do
estado e também do país. A Irmandade se vê como parte integrante da identidade e da
memória paulistana, paulista e brasileira. Amaral abre caminho para a negociação da qual
fala Pollak, esta emergindo em momentos de destaque – as comemorações. Ficaria então ao
“outro lado” a assimilação da memória e da identidade da Irmandade do Rosário.
Além disso, como dissemos, Amaral buscou a partir da vida da confraria reconstruir
a trajetória do grupo, de modo a atingir as novas gerações, demonstrando a importância da
Irmandade dos Homens Pretos de São Paulo. Evocando os valores primordiais da
organização negra até alcançar a atualidade, o então juiz provedor da agremiação ressaltava
os elementos de continuidade tão caros à memória de um grupo.
A problemática do espaço presente nas fontes que analisamos foi um dos recortes
possíveis para a compreensão da identidade e da autorrepresentação da Irmandade do
Rosário, bem como da escrita oficial da história e da memória paulistana/paulista. Tal
como colocamos, a análise da territorialidade negra do Largo do Rosário desmontada pela
administração municipal em 1903 e reconstruída pela Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário em 1906 no Largo do Paissandu é um dos aspectos das estratégias de coexistência
e de sobrevivência da comunidade negra paulistana nos primeiros anos posteriores à
Abolição da Escravidão. Este período foi marcado pela intervenção governamental nos
espaços de sociabilidade e de subsistência de negros, mestiços e pobres em São Paulo.
Transferindo a territorialidade negra, do Rosário ao Paissandu, a Irmandade dos
Homens Pretos iniciou em 1906 uma nova fase de sua história. Vale ressaltar que o Archivo
de Annuncios e Noticias confeccionado pela confraria é iniciado no ano da inauguração do
novo templo. Registros anteriores a esta data só são encontrados em atas e em registros de
assentos de irmãos e irmãs.
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Para Halbwachs, um grupo molda seu espaço à sua imagem, ao passo que também
se adapta à realidade em que está inserido. As relações entre a coletividade e seu espaço
são constitutivos da imagem que constrói de si (2006, p. 159). Em 1906, a Irmandade do
Rosário e o Largo do Paissandu iniciavam este movimento. Tecia-se a relação entre a
Irmandade próxima de seus 200 anos e o logradouro que até pouco tempo era um tanque.
Ao longo do século, a identidade do espaço se refez, a territorialidade negra se consolidou.
Nos anos 1940, uma nova tentativa de desapropriação quase repetiu o ocorrido em 1903.
Nas palavras de Amaral, “por um triz, na nova sede, no solo fertilizado pelo húmus da fé,
da resignação, sobretudo do amor e da tolerância – no Paissandu” não se construiu o
monumento ao Duque de Caxias (1991, p. 131). Alguns anos depois, em 1955, o então
prefeito Jânio Quadros inaugurava, nas cerimônias de encerramento do quarto centenário
paulistano, o monumento à Mãe Preta, ao lado da Igreja do Rosário (ANDREWS, 1998, p.
336). De alguma forma, se reconhecia a identidade do espaço, intimamente ligada ao grupo
que ali estava constituído.
Para Clóvis Moura, desde 1711 a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
desempenhou papel importante na vida social da comunidade negra paulistana (1980, p.
147). A Irmandade sofreu com as mesmas reformas que privaram as comunidades negra,
pobre e mestiça do centro de São Paulo. Destacou-se após as negociações que culminaram
na transferência de sua sede para o Paissandu e nos anos que se seguiram a 1906, deu ao
largo características que perduram até a atualidade, resistindo à tentativa de demolição da
década de 1940. Tornou-se indiscutivelmente um ponto de referência da comunidade negra
paulistana.
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