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7/28/2019 1995 Mest Cfch-ufpe Jose Pimentel Filho
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DEFILOSOFIA E CINCIAS HUMANASDEPARTAMENTO DE HISTRIA
MESTRADO EM HISTRIA
A ARISTOCRATIZAOPROVINCIANA EM FORTALEZA(1840-1890)
DISSERTAO DE MESTRADOJos Ernesto Pimentel Filho
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1995
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCOCENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANASDEPARTAMENTO DE HISTRIAMESTRADO EM HISTRIA
A Aristocratizao Provinciana em Fortaleza (1840 - 1890)
Jos Ernesto Pimentel Filho
Dissertao de Mestrado
Orientadores:
Michel Zaidan FilhoAntonio Jorge Siqueira
Apresentada ao Programa de Ps-Graduao emHistria da Universidade Federal de Pernambucopara obteno do grau de Mestre em Histria
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Recife1995
O que invocamos aqui o horizonte da pesquisa, sabendo que teremos de nos deterenquanto avanamos em direo a esse horizonte. O importante avanar e encontraralguma coisa; nada de quedar esfomeado s voltas com uma pesquisa sem termo...
Henri Lefebvre
Muita cousa me ocorre dizer sobre o assunto, que talvez devera antecipar leitura da obra,para prevenir a surpresa de alguns e responder s observaes de outros.
Mas sempre fui avesso aos prlogos; em meu conceito eles fazem obra o mesmo que opssaro fruta antes de colhida; roubam as primcias do sabor literrio.
Jos de Alencar
Os guardanapos esto sempre limpos /As empregadas uniformizadas/So caboclos querendo ser ingleses/
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So caboclos querendo ser ingleses/A burguesia fede!
Cazuza
Agradecimentos
O trabalho intelectual nunca uma atividade solitria. Tal como os ventos
que sopram para construir as ondas e das ondas as mars, sem que para banharmo-
nos seja necessrio distinguir todas as suas direes, muitas so as confluncias
que levam a um escrito final. Algumas delas nem sabemos precisar direito.
Sabemos vagamente que esto l... At que um dia, algum nos surpreende com a
lembrana daquele autor esquecido que lemos, ou um fato mancante condensado,
anos mais tarde, nas pginas de uma Dissertao. Essas redes so to difceis
quanto estimulantes.
H tambm contribuies visveis de pessoas e instituies, s quais seria
um verdadeiro pecado esquec-las, muito embora no seja possvel listar todas. Deantemo, peo desculpas pelos possveis nomes no lembrados nesta seo. Diz o
ditado: casa de ferreiro, espeto de madeira. Apesar do historiador ter como
ofcio principal o cuidado com a memria, no posso me considerar uma pessoa
lembrada.
Tenho muito a agradecer ao meu amigo Marco Aurlio Ferreira, com
quem dividi apartamento durante o perodo em que cursvamos os crditos.
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Juntos, discutamos os projetos, as aulas e tudo quanto escrevamos, o que fez com
que a proposta inicial deste trabalho fosse confeccionada em meio a esse ambiente.Impossvel no lembrar o nome de outro amigo, Antonio de Pdua
Santiago, com quem convivi como colega de Licenciatura. Dele partiram muitas e
geniais observaes sobre a relao entre o popular e o erudito. Alm disso, depois
que o conheci, aprofundou-se em mim o sentido da Histria como compromisso
frente presente. Na concepo geral do trabalho e em muitas reflexes pulsam
presenas suas.
As primeiras discusses que fiz datam ainda da Graduao, quando tive o
estmulo e o apoio concreto do professor Eurpedes Funes, alm do professor
Gisafran Juc e da professora Adelaide Gonalves, entre outros. Eurpedes, j
durante o mestrado, contribuiu para fecharmos uma verso final do Projeto. O
professor Joo Alfredo Montenegro participou tambm das primeiras orientaes,
com sua recepo acolhedora, em que expunha sugestes de fontes, bem como
concisas anlises do desenvolvimento das idias no Cear. Cito ao longo da
Dissertao, alguns de seus trabalhos.
O professor de Comunicao Social da UFC, Gilmar de Carvalho, deu
uma contribuio grandiosa ao me deixar fotocopiar um vasto levantamento que
ele realizara em torno dos anncios do jornal O Cearense. No segundo captulo,
este material foi exaustivamente utilizado. O arquiteto Clvis igualmente forneceu
um material que infelizmente no pude aproveitar neste momento.O meu contato com os gografos nos ltimos dois anos possibilitou
riqussimas trocas. O professor Jos Borzachiello da Silva (UFC) contribuiu na
reviso dos originais. Igualmente a professora Maria do Cu de Lima (UFC)
esteve empenhada no processo de reviso e, mais do que isso, discutiu diversos
conceitos aqui abordados. Esse intercmbio tem sido constante tambm com a
professora Maria de Ftima Rodrigues (UFPB).
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Meu querido amigo e tambm professor de Geografia (UFPB), Manoel
Fernandes de Sousa Neto, dialogou com entusiasmo e esprito crtico quase todospontos aqui levantados. Muitas das suas questes eu no pude responder nesse
momento.
Lembro ainda! A maior parte deste material foi digitado no escritrio
pessoal do Fernandes, no que foi extremamente prestativo.
Sem o apoio, a compreenso e a confiana do meu tio, Erialdo Pimentel,
bem como de toda a sua famlia, eu no poderia ter cursado os crditos do
Mestrado.
A aluna de Histria, Carla Mary, digitou quase todo o material e
secretariou parte do processo de confeco. Foi uma amiga, sem dvida,
compreensiva.
O acolhimento da professora Vanda, chefe do Departamento de Geo-
Cincias (UFPB), foi de grande profissionalismo. O LABOCAR, ligado ao mesmo
Departamento, confeccionou a Planta da cidade de Fortaleza com projeo
ampliada do Passeio Pblico em 1888.
Na Biblioteca Pblica Meneses Pimentel, consultei o que h de mais
substancial em termos de fonte primria nesta pesquisa. L, a Magnlia,
responsvel pelo setor de obras raras, foi pessoa preciosa na busca e sugesto de
fontes. O setor de microfilmagem do Arquivo Pblico, instalado na Biblioteca, sob
a direo da professora Valda Weyne e do Elmadan, tem um rico acervohemerogrfico, do qual me servi amplamente.
O PICD-CAPES- UFC financiou a bolsa de mestrado durante dois anos e
meio. Sou grato a todos os meus colegas do Departamento de Histria da UFPB
(Campus I) pelo incentivo e apoio nas horas em que foi necessrio. Em especial,
aos professores Ruston Lemos, Joana Neves e Lcio Flvio Vasconcelos.
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Finalmente, tenho muito a agradecer ao professor Michel Zaidan Filho,
que durante todo este perodo deu-me confiana irrestrita. Ao longo do processode pesquisa acabei me distanciando bastante do projeto inicial, que previa um
trabalho na rea de Teoria da Histria. Ao redirecionar o estudo para uma histria
da cultura no Nordeste, o intercmbio com o professor e a pessoa de Jorge
Siqueira foi dos mais gratificantes. Tenho para com ele inmeros dbitos.
Resumo
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Esta Dissertao trata de cinco manifestaes culturais das elites
cearenses que habitavam a capital entre 1840 e 1890, com vistas a
construir o conceito de aristocratizao provinciana. A narrativa detm-se
nas formas de produo e apropriao do simblico e da cultura em geral,
por parte das camadas letradas e cultas. Surge uma viso de mundo que
exclui grande parte da populao, ao passo que hierarquiza e disciplina os
que no partilham da modernidade do sculo XIX. Este conjunto de
representaes est centrado na imagtica da oposio luz/sombra,
remetendo esses referenciais a significados especficos da realidade e da
identidade locais. A metodologia possibilita o uso de fontes de Estado, da
literatura e do cotidiano urbano da cidade de Fortaleza.
NDICE
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Introduo: do intelectual ao scio-cultural 08
1. A modernidade no sculo XIX 102. A cidade, o espao e a modernidade 45
3. A educao das elites e a disciplinarizao dos pobres 92
4. O olhar de medusa 132
5. A supresso da memria e a histria como tragdia 160
6. A luta contra as tradies 183
7. As literatices 210
Concluso: representaes em torno da luz 233
Sumrio dos esquemas, tabelas e ilustraes 249
Bibliografia Geral 250
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SUMRIO DOS ESQUEMAS, ILUSTRAES E TABELAS
Esquema 01 - Fluxograma da Sociedade Patriarcal no sculo XVIII e primeira
metade do sculo XIX ................................................................................... p. 20
Esquema 02 - Acomodao e Subordinao .............................................. p. 31
Planta da cidade de Fortaleza com projeo ampliada do Passeio Pblico .. p.
83
Croquis do Plano Superior do Passeio Pblico .......................................... p. 85
Tabela 1 - Instruo pblica: ensino primrio ........................................... p. 118
Tabela 2 - Instruo pblica: ensino secundrio ....................................... p. 125
Tabela 3 - Instruo pblica: porcentagens do ensino primrio e secundrio
.............................................................................................. p. 126
Tabela 4 - Instruo particular e pblica: ensino secundrio .................... p. 127
Tabela 5 - Instruo particular e pblica: porcentagens do ensino secundrio
............................................................................................. p. 128
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INTRODUO:
DO INTELECTUAL AO SCIO-CULTURAL
O nosso primeiro contato com a elite letrada cearense do sculo
XIX, deu-se durante a graduao no curso de Histria-UFC, a partir do
incentivo de uma bolsa de estudos da CAPES, o Programa Especial de
Treinamento (PET). Foi uma experincia com os discursos da Academia
Cearense, associao de homens cultos do final do sculo passado que
objetivava inteirar-se, debater e utilizar os progressos culturais da poca
do progresso.
Nossas primeiras preocupaes diziam respeito a resgatar o
pensamento da elite de ento. Verificamos que, inda que de maneira
esparsa, algo j se tinha feito nesse sentido, atravs do trabalho de
literatos e alguns historiadores.
Menos, porm, avanou-se no estudo de um campo mais amplo, o
das mentalidades e comportamentos reveladores da construo cultural,
ou pelo menos alguns de seus aspectos, da cidade de Fortaleza e do
Estado do Cear.
As leituras metodolgicas apontaram-nos uma riqueza dessa
abordagem mais abrangente, que tenta recorrer no somente produo
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de idias, a uma anlise essencialmente bibliogrfica, mas tambm s
relaes entre o saber e a sociedade, prtica scio-mental dos homens
agindo coletivamente.
Durante o ano de 1991, ingressamos no Mestrado em Histria-
UFPE, passando a fazer leituras sobre o imaginrio e as formas de
manipulao da memria das sociedades histricas1. A luta por
estabelecer e mesmo destruir identidades ou referenciais de ao social
um dos aspectos que mais esto presentes nas democracias atuais. O
mental coletivo no interclassista e nem singular, ele se faz na complexa
luta dos homens para se produzirem enquanto tais.
Assim, temos procurado uma histria que seja mais do que a
histria das idias ou elaboraes eruditas da elite, para v-las em seu
contato, do qual ela nunca se distancia completamente, para com o
cotidiano e as lutas do social-urbano.
Tal perspectiva vem ao encontro de nossas aspiraes de
provocar a elaborao de uma realidade crtica, inteligente e produtora de
bens culturais relacionados aos interesses sociais do presente.
Tentamos, portanto, no nos limitar a uma histria das idias e to
somente das aes conscientes dos agentes histricos, para procurar a
representao2 da vida no ato de escrever, passear, de narrar
1 Vide Jacques Le Goff, Documento/Monumento e Memria, in: Jacques Le Goff. Histria eMemria. 3a ed. Campinas: UNICAMP, 1994.2 Vide Carlo Ginsburg, Reprsentation: le mot, lide, la chose, in: ANNALES E.S.C., n.6,novembre- dcembre, 1991, pp. 1219 - 1234 e Roger Chartier, Le monde comme reprsentation, in:ANNALES E.S.C., n. 6, novembre-dcembre, 1989, pp. 1505 - 1520.
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acontecimentos pessoais, de nomear as ruas e a cidade, de lutar pela
memria e pela cultura.
Lembramos ainda que a retomada que aqui empreendemos de um
dos trabalhos escritos por Gilberto Freyre, no visa fazer uma leitura do
nordeste sem cana e sem acar, nos moldes freyrianos. De um lado,
mostramos o contraste de tempos para cada regio: o nordeste
pernambucano e o nordeste do binmio algodo-pecuria. De outro,
vemos neste autor uma fonte de inspirao metodolgica.
A MODERNIDADE NO SCULO XIX
O nosso sculo XIX esteve enredado num processo de diferenciaoprofundo. O indivduo e o grupo, a classe e a raa, o norte e o sul, o litorneo, osertanejo e muitas outras espcies de classificao ou preconceituao. Variadasdistines dos homens sob os mais diversos crivos do olhar comum. O escravo eo senhor foram apenas tipos de uma hierarquia mais vista. A sociedade
brasileira no era to somente escravocrata mas conflituosa, tensa diante deelementos infinitamente dspares. Sem um passado, sem uma tradio, sem umaraa, ela era um conjunto multifacetado, recortado em economias incapazes deunificarem seu prprio raio de ao. Estruturas de produo fortes no interior deeconomias dbeis. De uma fragilidade espantosa pela sua ao enquistada,esmigalhada. Uma provncia vizinha outra sem comunicao efetiva, sem canaisde integrao econmica, sem uma composio de classe assemelhada. Aprosperidade do irmo da provncia vizinha no era incompatvel com a misria deoutra. Senhores opulentos roubando de tambm senhores que habitavam regioinfortunada. O homem escravo, o homem pobre, o homem urbano, cada um nasua sub-regio (e havia muitas sub-regies) era um distinto do outro. A urbe sobre
as guas, a alta e a baixa cidade, a cidade plana; aqui uma cidade de progressosarquitetnicos, ali uma vila com o pelourinho, a casa do capito-mor e a capela. Aformao holandesa, a formao portuguesa, as variadas formaes indgenas etambm as variadas formaes africanas...
O sculo XIX por a todos num imenso caldeiro. Por qu? Inominveiscaracteres culturais untados sob o nome de Brasil, de cultura brasileira, de nao?Ser uma complexidade promissora? Ou ser barbrie?
Acrescentemos a elementos to dspares o processo de reeuropeizao.Se nos europeizamos portuguesa durante a colonizao, nos reeuropeizamos francesa e inglesa nesse sculo de apologias desmedidas ao progresso.Poderamos dar, entretanto, outra nomenclatura a essas transformaes:
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modernidade. De fato, no seria plenamente possvel uma europeizao e muitopouco mesmo somos cultura importada integralmente. Existe uma modernidade brasileira.
Tradicionalmente se tm referido a fatos econmicos no estudo do sculopassado. Por exemplo: o crescimento do imperialismo ingls, a necessidade deimportao de maquinarias para as neo-colnias, a transio para o trabalho livree outros temas que enfocam o que se chama de maneira um tanto convencionalde modernizao. Esta uma designao que faz, normalmente, referncia aprocessos econmicos. A modernidade est, sem sombra de dvida, relacionadacom aspectos econmicos, mas faz mais referncia a amplas realidades culturais.
A abordagem cultural da realidade brasileira no nenhuma novidade.Como, de fato, as tendncias ou "modas" intelectuais de uma poca sempreprocuram citar uma tradio, um passado onde certas insinuaes e ensaiosforam feitos at efetivar-se a exploso do inusitadamente novo. Digamos, ento,
que diversos aspectos da obra gilbertiana dos anos 30 ainda so capazes dedespertar o nosso encantamento em plena dcada de 90, malgrado seusequvocos 3 .
3Sobre a trajetria de Gilberto Freyre, vide Luis A. de Castro Santos, O esprito da aldeia, in: NovosEstudos CEBRAP, n. 27, julho de 1990, pp. 45-66.
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O MUNDO URBANO E A SOCIEDADE PATRIARCAL
O esforo de Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos concentra-se naelaborao de um painel do sculo XIX4. Grandes linhas de periodizao somontadas para dar conta de nossa modernidade europeizada. Um processo totaldelineia-se primeira vista para, em seguida, estilhaar-se: nas relaes entre oespao ntimo da casa, do sobrado, e as grosserias do espao pblico por ondepasseia o branco pobre, o mestio e o negro; nas relaes familiares entre o pai, aesposa e o filho; nas trocas de uma cultura colonial freqentemente perpassadade elementos rabes, africanos e mouros, por uma outra europeizada e elegante;por ltimo, nas relaes entre as classes, raas e grupos. Em todos os temasenfocados, a primazia da cultura. Em cada um vislumbra-se um mundo; opanorama que aambarca as linhas gerais do desenvolvimento cultural do sculo
passado tambm se adensa nos subtemas5. Tem essas diversas sociologias avantagem de no estarem sufocadas pela macro-periodizao. Apenas que aspginas abordando um sculo das relaes homem e mulher, por exemplo,tambm abordam um imenso caldo de influncias e expresses cotidianamentevividas na extenso de um pas que at geograficamente falando sempre maisabrangente.
Ainda assim, cada panorama est aberto, autnomo. sujeito a novoscortes no tempo. Faz referncia a uma suposta modernidade que no se esgotaem esquematismos. O moderno se faz ver no estudo de cada aspecto do cotidianoabordado. Quase nada destina-se aprioristicamente a aparecer ou ser suplantadodiante do moderno. Uns elementos sobrevivem, outros sucumbem. Tudo por uma
historicidade prpria. Sem determinismos:
Libertando-nos do determinismo tnico, como do geogrfico e do
econmico, e vendo na raa como no meio fsico e na tcnica de produo,
foras que condicionam o desenvolvimento humano, sem o determinarem de
modo rgido e uniforme - ao contrrio, influenciando-se reciprocamente e de
maneira sempre diversa - ficamos com liberdade para interpretar sse
desenvolvimento, segundo a sua prpria dinmica.6
4Vide Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos. 6a. ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio; Recife: Cmarados Deputados/ Gov. do Estado de Pernambuco, 2 vols., 1981, 758 p.5Sobrados e Mucambos traz um panorama geral das modificaes do sc. XIX, explicando-as doponto de vista econmico-poltico (cap. l). Em seguida os temas vo se diversificando a cada captulo,e estes passam a ser quase autnomos.6Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. 657.
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Completa ainda que: Muitas das qualidades ligadas a raa, ou ao meio, v-se ento que se desenvolveram historicamente, ou antes, dinamicamente, pelacultura, no grupo e no homem. 7
A historicidade aparece, ento, como elemento fundante de suas anlisescaracterizadas como sociolgicas. No h um conceito que no se apresentecomo temtica histrica construda na impureza do trato emprico. No traz alimpidez das armaes tericas. Traz os conceitos partidos em "semi",antecedidos de "quase", mergulhados em suas prprias contradies e ressalvas.Tudo suavizado por um polimento literrio, um quase romance. Gilberto Freyrecontou histrias.
Suas histrias de modernidade comeam distante, talvez no "tempo dosflamengo", na chegada dos judeus sefardins, vindos direto da sia para a Europae da para o Novo Mundo com holandeses e ibricos. Uma histria que, como jfoi dito, mais pernambucana, quando no recifense:O Recife do sculo XVII
ouvira por trinta anos o rudo de muitas lnguas vivas, faladas nas ruas e dentrodos sobrados8.
Recife da modernidade antecipada pela influncia urbanstica,principalmente dos holandeses. Mas no s nesse campo, em todos. Tambm apresena judaica torna-se fundamental na anlise gilbertiana da transio dopatriarcal ao semi-patriarcal. O sefardim no seria o mesmo que o judeufolclrico que todos ns conhecemos com as caractersticas de avareza, demesquinhez. Estas seriam marcas dos asquenazins. A cultura sefrdica seriacosmopolita por excelncia. O prprio Recife era, para ele, cosmopolita "pelo seugnero de vida e pela sua populao desigual de neerlandeses, franceses,alemes, judeos, catlicos, protestantes, negros e caboclos"9.
Os holandeses e os judeus constituem duas presenas peculiares a moldaruma cidade do Norte da Colnia: O Recife judaico-holands tornou-se o maiorcentro de diferenciao intelectual na colnia, que o esforo Catlico no sentidoda integrao procurava conservar estranha s novas cincias e s novaslnguas10.
Para G. Freyre, Recife foi moderna antes do Brasil o ser. Foi o primeirosurto de uma dinamizao econmica e cultural na Colnia. Os holandeses jtransmutavam a apatia colonial, no sculo XVII. Mexiam as estruturas desustentao do poder dos senhores de escravos, acostumados ao domnio daregio. Endividavam as economias rurais fazendo do campo um subordinado doshomens de capital financeiro e usurrio. Os engenhos insurgem-se contra os
detentores do crdito numa
(...)campanha gloriosa contra os holandeses e os judeos no sculo XVII -
embora suas relaes com os invasores no fossem puramente as de
7Ibidem.8Idem, p. 319.9Idem, p. 320.10Ibidem.
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homens que defendessem o solo nativo das garras do estrangeiro: tambm
a de devedores relapsos contra credores impacientes.11
O Judeu age como financista e usurrio... Atende s necessidades dosengenhos em manterem-se economicamente vivos. Alimentam os fundamentosbsicos de uma economia ruralizante que so a monocultura e a escravido:"Duas bocas enormes pedindo dinheiro e pedindo negro"12.
Embora nem sempre o judeu tenha sido o elemento exclusivo nesseprocesso de monetarizao, no foi ele unicamente a deter o capital investidor quese injetava, muitas vezes sem retorno, nas unidades produtivas da monoculturaescravista. O prprio Estado portugus ter um papel fundamental no apoio dasatividades comerciais em desvantagem dos potentados que se arvoravamautnomos frente a El-Rey.
Em verdade, o marco fundamental desse processo a chegada de D. JooVI, em 1808. Um novo interesse pela Colnia se fizera desde a descoberta dasminas:
O Brasil deixara de ser a terra de pau-de-tinta tratada um tanto de resto
por el-Rei, para tornar-se a melhor colnia de Portugal - sobretudo do
Portugal beato e pomposo de D. Joo V - e por isso mesmo a mais
profundamente explorada, a vigiada com maior cime, a governada com o
maior rigor.13
Um poder centralizado ensaiara-se com o ouro. Minas foi tambmpromissora e urbana, embora em segundo lugar, depois de Recife. Precocementeindustrial por fora da atrao do metal nobre. Precocemente urbana, muitoembora sem aquela substncia de cultura cosmopolita. Foi sociedade ainda"rusticamente agrria"14, mas onde a burocracia monrquico-portuguesa treinouseu controle zeloso e interventor. Sem o dedo do Estado, no se fariacompletamente esta modernizao.
Embora difusamente, por
(...) uma srie de influncias sociais - principalmente econmicas -
algumas anteriores chegada do prncipe mas que s depois dela se
11Idem, p. 52.12Idem, p. 10.13Idem, p. 03.14Idem, p. 282.
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definiram ou tomaram cor, comearam a alterar a estrutura da Colnia no
sentido do maior prestgio do poder real.15
A necessidade econmica da modernizao capitalizada politicamentepelas mos engorduradas de D. Joo VI. O Rei realiza, sua moda, o papel domonarca absoluto do velho mundo. Apia-se no urbano contra o rural, cria oBanco, deixa prosperar a indstria e procura a centralizao administrativa contraos potentados desconhecedores da autoridade real. Essa centralizao que seavigora fora j preparada com as minas. Conhece-se a fora do poder realdisciplinando e vigiando o ouro. a primeira vez que senhores do camporeconhecem um obstculo, um poder maior que o seu.
A mesma aliana do Estado com os sobrados urbanos se d emPernambuco. Os mesmos conflitos, agora entre a empfia do patriciado da zonada mata contra a burguesia dos sobrados, que tomou forma de conflito violento naGuerra dos Mascates: Guerra que terminaria com a vitria, embora vitria aospedaos, incompleta, pela metade, dos interesses burgueses sobre os privilgiosda nobreza rural, to fortes e resistentes na capitania dos Albuquerques.16
Nessa compreenso, Gilberto Freyre explora tambm os conflitos entreOlinda e Recife. A primeira, mais tradicional, eclesistica, rural. A outra, burguesae mecnica, com seus ofcios variados que herdou do cosmopolitismo judaico-holands. Nem as minas foram mecnicas17.
J no sculo XVIII, surgem novos patriarcas. No mais os pertencentes economia do engenho somente, mas homens urbanos, comerciantes queiniciaram no alho e na cebola. Enriqueceram tornando-se mercadores de sobrado.Aburguesam-se imitando o modo de viver dos senhores: semi-patriarcais,desejosos de uma moa de famlia tradicional, bem educada, branca. O mascateenriquecido tambm realizava sua fuso com o senhor de terras pela presenasua em negcios agrcolas. Era dono de terras, de escravos, de partidos de canaou de caf.
Todo tipo de novo rico ascendia ao poder e virava um novo patriarca:Ricaos de casas nobres, que s vezes, por imitao nobreza rural tornam-setambm donos de fazendas ou proprietrios de engenhos de cana ou de stio,onde suas famlias vo passar a festa.18
Essas atividades eram mercantis, de agiotagem e intermediao com otrfico de escravos e com a civilizao europia. Essas atividades alimentavam ascarncias de capital de senhores que constantemente estavam endividados. Odesenvolvimento de um conjunto de atividades intermedirias favorece aurbanizao, o domnio do sobrado semi-patriarcal, e isso implica na mudana das
15Idem, p. 04.16Ibidem.17Idem, p. 282. Gilberto Freyre parece referir-se s atividades da gente plebia, ou seja, trabalhadoresoperrios que colaboravam com a maquinaria, como era o caso de assalariados empregados nosEngenhos de cana-de-acar. Essa categoria social hoje melhor conhecida.18Idem, p. 08.
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formas de comportamento, nas maneiras de fazer poltica, que vo corroendo astradies rsticas nativas e portuguesas, aquelas que eram avessas adinamizaes modernizantes.
TRANSIO AO MODERNO
Nesse momento, o Rei est ao lado dos homens da cidade.Gilberto Freyre abre, portanto, a discusso da modernidade no sculo XIX
por suas motivaes econmicas e polticas. Pela gnese do novo no velho. Pelacontradio interna de uma sociedade que precisa de financiamentos externospara sustentar sua negrada, seus luxos; que est constantemente em prejuzos ecom isso cede, passo a passo, aos vidos de lucro fcil, aos usurrios. Estes, porsua vez, so os homens da urbe, que empregam os moradores de mucambos
urbanos.Este modelo de transio que est condensado no captulo referente ao
sentido histrico das modificaes nos sculos XVIII e XIX, aparece, ento,bastante clssico. Pertence ao devenir moderno de uma sociedadesociologicamente feudal. Os agentes sociais determinantes so a usura, ocomrcio, a aliana do "prncipe com poderes de rei"19, para com os burgueses desobrado, para com as cidades. (Vide Esquema 01)
Toda obra em seguida centra foras nas esferas da cultura, embora algunsaspectos da economia e da poltica sejam retomados.
No estudo sociolgico, histrico e antropolgico da modernidade brasileirano sculo passado, Gilberto Freyre foi um intelectual que sobre ela se dedicou
demoradamente. Diga-se de passagem, numa abordagem antecipadora daAntropologia Histrica. No somente detectou a importncia da temtica, masolhou-a com as vantagens e vcios de uma metodologia inovadora.
A melhor compreenso da obra gilbertiana talvez esteja dita nas palavrasde Elide Rugai Bastos:
O que poderamos considerar como temtica privilegiada de Gilberto
Freyre? A transio ao moderno com dois elementos presentes no
processo: a decadncia e a sobrevivncia. Por isso elege como problemas
importantes da sociedade brasileira os vrios momentos dessa passagem:
busca relaes entre o regional e o nacional; questiona a centralizao do
poder; procura compreender as formas da transformao do escravo em
trabalhador livre; segue os passos da transio da Monarquia Repblica;
19Idem, p. 03.
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tenta fixar as diferenas entre o sculo XIX e o XX; reflete sobre as perdas e
a sobrevivncia do tradicional face ao moderno; indaga sobre a separao e
ESQUEMA 01
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a
articulao entre o agrrio e o industrial; debate as semelhanas e a
diversidade entre o rural e o urbano; e, principalmente, esfora-se por
encontrar a continuidade e os rompimentos entre o privado e o pblico.20
Em Sobrados e Mucambos, o poder interventor do Estado reaparecemais frente, quando Gilberto Freyre corrige esse suposto potencial inovador dacidade. Quase sempre no se deu assim. Por motivos enviesados, vriossenhores foram revoltosos liberais, perseguidos por participarem de conspiraescomo a do Engenho Suassuna, nos primeiros anos do sculo XIX. Ou ainda osfazendeiros de "liberalismo esclarecido"21. O Estado sempre interessado na ordeme na estabilidade, em progressos sem mazelas para si prprio, tornava-se rbitroda modernizao sui generis, sem antagonismos. H uma bibliografia que jexplorou esses aspectos mais de perto, com base na teoria das idias fora dolugar22 e que a esta mesma tambm podem ser feitas reservas.
O problema da elite poltica que se vai impondo no Brasil j imperialtambm decorre diretamente da formao das classes senhoriais no ambientepoltico e da aceitao dos homens esclarecidos pelo Estado Imperial. Os moostomam o espao dos velhos, ganham poder e statussocial. Quanto s "raposas"da sociedade patriarcal, os polticos antigos, experientes e sisudos, j eram demenor influncia:
Estavam retirando-se da cena. Comeara, vagamente, a vitria dos
moos, que se acentuaria em traos ntidos com o governo do senhor D.
Pedro II. Com a prpria Igreja entregando os cajados de bispo a padres e
frades com aparncia ainda de novios; e no aos velhinhos de outrora.23
20Vide Elide R. Bastos."Gilberto Freyre:a Sociologia Como Sistema". In: Cincia e Trpico, Recife,n. 15(2), jul./dez. 1987, pp. 157-164. Na continuao do pargrafo citado, a autora completa suasobservaes, afirmando o modo como G. Freyre realiza uma transio "sem rupturas" em direo modernidade.21Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. 52.22Vide Robert Schwarz. "As idias fora do lugar". In: Robert Schwarz. Ao Vencedor as Batatas. 4a.ed. So Paulo: Duas Cidades, 1992.23Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. 86.
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Essa nova elite foi mais progressista do que se poderia deduzir da simplesobservao da origem de classe. Muitos filhos de senhores de engenho, foramembriagados pelo ar das universidades europias, pela leitura de obras
positivistas e depois contistas, evolucionistas, etc. Muitos no foram fiis, ao p daletra, ao que desejavam seus pais:
So vrias as cartas da poca em que se refletem atitudes de
independncia, quando no de revolta, da parte de moos para com velhos;
de jovens bacharis para com patriarcas de casas-grandes de engenho e
fazenda. Comeavam a ser rivais: o Filho e o Pai, o moo e o velho, o
bacharel e o capito-mor24.
O sculo XIX caracteriza-se, ento, como modernizante j desde suaprimeira metade. Acentuam-se os conflitos que decompem a sociedadepatriarcal. Mas todas essas mudanas no levam a uma harmonizao social,nem modernizam plenamente as relaes entre os homens. Ao contrrio, pareceque Gilberto Freyre encontra nessa recomposio total da sociedade oengendramento de uma srie de disparidades de todos os tipos.
(...) foi um perodo de diferenciao profunda - menos patriarcalismo,
menos absoro do filho pelo pai, da mulher pelo homem, do indivduo pela
famlia, da famlia pelo chefe, do escravo pelo proprietrio; e mais
individualismo - da mulher, do menino, do negro - ao mesmo tempo que
mais prostituio, mais misria, mais doena. O patriarcalismo urbanizou-
se25.
24Idem, p. 88. Cf. Murilo de Carvalho. A Contruo da Ordem. Rio de Janeiro: Campus, 1980; ondese confirma a tese de Freyre.25Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. 30.
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A CULTURA NO JOGO DAS CLASSES
Mais misria, mais prostituio e doena. Mulher, menino e negro agorasoltos: mais individualismo. Enfim: o patriarcalismo urbanizou-se.
O que poderamos entender de uma frase como essa? Uma primeirahiptese seria a de que nada mudou. Em termos sociais continuaram os mesmosconflitos, agora agudizados pela presena do urbano. Esse apenas umentendimento possvel e at provvel, dado que o tema das disparidades sociaisde raa, grupo, classe, regio e sexo so recorrentes em quase todos os captulosde Sobrados e Mucambos. No existe somente culturas em conflito mas umacultura do conflito e da disparidade.
Gilberto Freyre mostra-nos que tudo podia ser motivo de discriminao do
outro:
Encontram-se em nossa formao social predominncias de figuras
senhoris e superiores, pelo conjunto das condies de regio de origem, de
classe e de raa, ou por uma dessas condies, no momento decisiva, de
superioridade ou prestgio: o branco em relao com os indivduos das
raas e sub-raas de cor; o proprietrio de vastas terras de lavoura ou
criao e das respectivas casas-grandes de residncia, em relao com os
moradores sem eira nem beira dessas terras e com os escravos ou servos
necessrios explorao agrria ou atividade pastoril ou mineira; o cristo
velho em relao com o reinol ou com o brasileiro naturalizado; o habitante
do litoral mais europeizado em relao com o do interior mais agreste.26
Gostaramos, porm, de no parar nessas observaes, que, no nossoentender, constituem um aspecto rico da obra gilbertiana, na medida em queinsere na anlise eminentemente antropolgica, um veio conflitual (senoantagnico) que alm de extrapolar o institudo (o Estado, as estruturas), chega apr em questo o que oficial pela cultura de ento e, por outro lado, o que osmesmos participantes desta consideram de menor valor, desprezvel e marginal.Essa teia que se estabelece nas relaes entre os homens das mais difceis deserem captadas pelo pesquisador.
26Idem, p. 379.
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Essa leitura tpica da atual Histria Social. Lembramos aqui um texto deDa Ribeiro Fenelon:
Retomada a partir dos ltimos anos como preocupao de historiadores
norte-americanos, ingleses, alemes e franceses, criando rumos
diferenciados em cada uma das situaes concretas, a histria social tem
aspectos variados e abordagens as mais diversas, prolonga-se na histria
das representaes sociais, das ideologias, das mentalidades e da cultura,
campo onde o jogo das interaes no permite o simplismo esquemtico das
determinaes estruturais ou das ligaes artificiais e foradas da infra com
a superestrutura.27
O exemplo dessas abordagens pode ser tomado na reflexo sobre acentralidade da questo do tempo no incio da modernidade, o que foi analisadocom brilhantismo por Jacques Le Goff 28e Edward Thompson29.
Em Le Goff, a discusso gira em torno da relao cotidiana dos homenscom o tempo e sua disputa por mercadores e clrigos. A presena da anlisehistrica dos valores e comportamentos torna-se evidente:
Nesta converso ao homem quotidiano, a etnologia histrica conduz
naturalmente ao estudo das mentalidades, consideradas como 'aquilo que
menos muda' na evoluo histrica. Assim, no seio das sociedades
industriais, o arcasmo explode quando se perscruta a psicologia e o
comportamento colectivo. Desfasamento mental que no se perde na noite
27Vide Da Ribeiro Fenelon "Trabalho, Cultura e Histria Social: Perspectivas de Investigao".Conferncia pronunciada no Encontro Regional de Histria do Ncleo da ANPUH, So Paulo,setembro de 1984.28Vide Jacques Le Goff"O Tempo de Trabalho na 'crise' do sculo XIV: do tempo medieval ao tempomoderno" In: Jacques Le Goff. Para um Novo Conceito de Idade Mdia.Lisboa: Estampa, 1980.Cf.: Jacques Le Goff. A Bolsa e a Vida. So Paulo: Brasiliense, 1989.29Vide Edward Thompson. "Tiempo, Disciplina de Trabajo y Capitalismo Industrial" In EdwardThompson. Tradicin, Revuelta y Consciencia de Clase. Barcelona: Grijalbo/Crtica, 1979.
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dos tempos[sic]. Os sistemas mentais so historicamente datveis, mesmo
quando carreiam com eles destroos de arqueo-civilizaes (...).30
Em Thompson, a Histria Social volta-se para os espaos deproduo/reproduo do trabalho e da disciplina capitalista. A nfase na histriaoperria e seus processos de construo subjetiva impem-se a uma anliseestruturalista e tcnica. Seu interesse pela mudana de percepo do tempoganha cores mais vivas, como instrumento de questionamento da experincia declasse:
? Hasta qu punto, y en qu formas afect este cambio en el sentido del
tiempo a la disciplina de trabajo, y hasta qu punto influy en la percepcin
interior del tiempo de la gente trabajadora? Si la transicin a la sociedad
industrial madura supuso una severa reestructuracin de los hbitos de
trabajo - nuevas disciplinas, nuevos incentivos y una nueva naturaleza
humana sobre la que pudieran actuar estos incentivos de manera efectiva?
hasta qu punto est todo esto en relacin con los cambios en la
representacin interna del tiempo?.31
Todavia, no nosso entender, Gilberto Freyre no alcanou plenamente essadimenso. O problema fundamental do nosso autor foi uma certa nostalgia dopatriarcalismo32. Para ele, no s a modernidade no muda nada, como ela pioratudo. A modernidade destri a estabilidade por vezes benfica da estruturapatriarcal. Gilberto Freyre, o que mais interessante, demonstra isso pelaopresso da vida do mundo popular. como se todos tivessem perdido e no sos patriarcas:
Nos sculos anteriores, houvera, talvez maior prudncia, maior
sabedoria, mais agudo senso de contemporizao da parte das autoridades
30Vide Jacques Le Goff: "O historiador e o homem quotidiano" In: Jacques Le Goff. Para um NovoConceito... op. cit., p. 317.31Vide Edward Thompson. op. cit., p. 241.32Para Carlos Guilherme Mota. Ideologia da Cultura Brasileira: 1933-1974. 4a. ed. So Paulo: tica,1980, p. 58, Gilberto Freyre empreendeu uma "busca do tempo perdido" e "uma volta s razes".
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civis (quando no tambm eclesisticas) e dos grandes senhores patriarcais,
com relao s culturas e populaes consideradas por ele inferiores; e
encarnadas por elementos quando no servis, oprimidos, degradados ou
simplesmente ridicularizados pelos brancos, pelos cristos velhos e pelos
moradores das reas urbanas ou dominadas por casas-grandes mais
requintadas em sua organizao ou na sua estrutura senhoril.33
Essa opresso tomar tonalidade cada vez mais aguda e especfica com aproximidade do ambiente cultural da chamada Belle poque. A principaldecorrncia da modernidade, o mundo urbano, no quebrar os quadros mentaisdo patriarcalismo. O social pensado em termos da excluso da massa dapopulao, agora encarada como a sombra dos cidados letrados, e dadesconfiana sobre a meia sombra, ou seja, todos aqueles homens de mdiacultura e pouca tradio.
A influncia das idias estrangeiras, nesse momento, aparecia a muitoscomo cultura superior frente aos valores nacionais:
No era de se esperar, igualmente, que essa sociedade tivesse
tolerncia para com as formas de cultura e religiosidade populares. Afinal, a
luta contra a 'caturrice', a 'doena', o 'atraso' e a 'preguia' era tambm uma
luta contra as trevas e a 'ignorncia'; tratava-se da definitiva implantao do
progresso e da civilizao. Aparece, pois, como natural, a proibio das
festas de Judas e do Bumba-meu-boi, os cercamentos contra as festas da
Glria e o combate policial a todas as formas de religiosidade popular:
lderes messinicos, curandeiros, feiticeiros, etc...34
A constatao de uma modificao qualitativa dos conflitos na sociedadebrasileira urbana no leva G. Freyre a refletir sobre sua densidade e as questespolticas envolvidas nesses conflitos. Para ele, o senhor e o escravo "tornaram-semetades antagnicas"35 e o poder pblico, como a Cmara Municipal da cidade doRecife, toma posies que:
33Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. 390.34Vide Nicolau Sevcenko. Literatura como misso. 2a ed. So Paulo: Brasiliense, 1985. p. 33.35Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. 353.
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"(...) atingem aqueles pretos cujos costumes mais cruamente africanos e
aqueles escravos cujo comportamento ou cujo trajo, considerado mais
ostensiva e perigosamente imprprio de sua condio servil, perturbavam ou
inquietavam os indivduos da raa, da cultura e da classe dominantes"36.Todavia, Freyre no empreende uma crtica que d conta do significado
poltico da cultura37. Culturas e classes, porm, andam entrelaadas.Corrobora nesse sentido, provavelmente, sua abordagem terica que no
somente cultural, mas culturalista. Prendeu-se por vezes a categorias anti-histricas. Eclipsou no todo da obra o papel das classes para falar das duraestemporais e esqueceu de finc-las no jogo real.
Diz-nos a respeito Elide Rugai Bastos:
A descrio gilbertiana da sociedade brasileira caracteriza-se por mostrar
que os atores sociais se encontram num locus no antagnico. Os conflitos
existem, por certo, por serem inerentes ao social. Todavia, so todos do
mesmo grau, temperados num caldo cultural que os torna parte de um jogo
poltico que se d igualmente no pblico e no privado; no espao domstico
e no campo social.38
sempre difcil atingir satisfatoriamente o que , ou no, uma tese tericaem G. Freyre. Tratou, sempre que possvel, de tudo. Em tudo encontroureticncias, ressalvas, quando no foi simplesmente contraditrio. Como afirmouCarlos G. Mota: "Freyre desenvolveu uma srie de mecanismos e artifcios parano ser facilmente localizvel"39. No prefcio primeira edio de Sobrados eMucambos, por exemplo, tenta esclarecer a questo que vimos discutindo arespeito das contradies contidas nas classes sociais e na(s) cultura(s):
(...)procura-se principalmente estudar os processos de subordinao e, aomesmo tempo, os de acomodao, de uma raa a outra, de uma classe a outra,de vrias religies e tradies de cultura a uma s. 40
36Idem, p. 387.37Para Carlos Guilherme Mota , isso se explica pelo lado aristocrtico de Gilberto Freyre: "o gosto pelopopular, de resto, compe um trao peculiar viso aristocrtica do mundo,conforme a lio de AlfredWeber".(Op.cit., p. 63).38Vide Elide R. Bastos, op. cit., p. 161.39Vide Carlos G. Mota, op. cit., p. 64.40Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. XXXVIII.
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Com as duas categorias bsicas enunciadas nesse prefcio, exponho ummapa das declaraes nele contidas, assinalando (A) para acomodao e (S)para subordinao. (Vide Esquema 02.)
O uso, portanto, de categorias como as arroladas no Esquema 02, no levaa que ns possamos compreender os processos sociais estudados por GilbertoFreyre. Muito pouco tambm so confiveis suas declaraes de prefcio,entrevista ou semelhantes, em que o intelectual disserta com pachorra sobre suagenialidade ou sobre os motivos que levaram a tal obra ter vinte e tantas edies eesta ou aquela ter obtido trs ou seis.
Fato, porm, mais palpvel, que Gilberto Freyre amava o patriarcalismo eno seria capaz de abrir as perspectivas poltico-culturais de Sobrados eMucambos, seno at o ponto em que se esmera nos hbitos, vestimentas e naculinria que distinguia uma ou outra classe.
Considerou mesmo o patriarcalismo como o que nos era mais autntico;
mais democrtico mesmo que nossa modernidade. Temos a impresso de que,para ele, se quisssemos ser democrticos, seria preciso sermos patriarcais, jque:
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ESQUEMA 02 ACOMODAO E SUBORDINAO
FONTE: FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. 6 a. edi-o. Rio deJaneiro: Jos Olympio; Recife: Cmara dosDeputados/ Governo do Estado de Pernambuco, 1981.
A O patriarcado das cidades menos severo que o rural.(p.XXXVIII.)
S A princpio os processos mais ativos foram de subordinao eat de coero. [cita o sculo XVII.] (Ibidem.)
A Mas ao lado de procuradores exclusivistas (...) foramaparecendo, desde os pricpios do sculo XVII, tericos daacomodao entre as raas. (Ibidem.)
A+S Nos sculos XVIII e XIX as duas tendncias continuam.(p.XXXIX.)
A Mas noutro jornal da mesma poca [sculo XIX] surge-nos vozbem mais brasileira, isto bem mais acomodatcia... (Ibidem.)
S A situao, porm, no era idlica (p.XL.)
? Essas distncias sociais, se por um lado diminuiram com odeclnio do patriarcado rural no Brasil atravs do sculo XIX, ecom o desenvolvimento das cidades e das indstrias, por outrolado se acentuaram (...) com as condies de vida industrialdesenvolvidas no pas, outrora quase exclusivamente agrcola.(Ibidem.)
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numerosos negros, crias de casas-grandes opulentas, adquiriram dos
senhores ou da famlia senhorial gestos, modos de falar, de andar, de rir,
caractersticos de classe alta e de raa 'superior', a ponto de terem se
tornado, cultural e sociologicamente, membros da mesma famlia(...)"41.
Em um de seus desmesurados equvocos, G. Freyre confundiupatriarcalismo de padrinhos com democracia:
Muitas vezes concedeu-se a afilhados, crias, filhos naturais, o direito de
tomarem de seus pais, padrinhos ou senhores brancos, nomes europeus e
fidalgos de famlia: outra forma de confuso de plebeus com fidalgos,
atravs da qual vem se democratizando a sociedade brasileira em virtude
do prprio sistema patriarcal.42
Mas esses aspectos, embora graves erros, no esgotam o autor. Se noaprofundou de todo os embates entre o popular e o oficial ou erudito, no deixoude ensaiar a temtica e sugerir caminhos. No se perdeu em uma histria limitadaao estudo de embates ideolgicos. Viu o popular indgena, africano e mestio nasua moradia, no seu passeio forosamente p pela urbe, enquanto o nobreexpunha suas esporas e botinas, montado a cavalo. Viu o sculo XIX no somentepelas importaes da cultura europia e viu nessas importaes no apenasenfeites de parede colados paisagem tropical ou idias deslocadas do real.Escreveu passagens que radiografam o fundo dos conflitos sociais namodernidade nossa:
paralelo ao processo de europeizao ou reeuropeizao do Brasil que
caracterizou, nas principais reas do pas, a primeira metade do sculo XIX,
aguou-se, entre ns, o processo, j antigo, de opresso no s de escravos
ou servos por senhores, como de pobres por ricos, de africanos e indgenas
41Idem, p. 399.42Ibidem.
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por portadores exclusivistas da cultura europia, agora encarnada
principalmente nos moradores principais da cidade.43
Nosso autor tem lugar consagrado como um clssico, por motivos que lhedo reconhecimento internacional. Recentemente, Peter Burke escreveu em umlivro sobre a Nova Histria:
A famosa trilogia sobre a histria social do Brasil do historiador-socilogo
Gilberto Freyre (que conheceu Braudel nessa poca), trabalha com tpicos
como famlia, sexualidade, infncia e cultura material, antecipando a Nova
Histria dos anos 70 e 80.44
Incluimos, ento, a problemtica que ora nos propomos a desvendar, nocampo da histria das mentalidades, j que essa foi a principal inovao dahistoriografia francesa recente45.
AS CLASSES SENHORIAIS
Discutir o que hoje chamamos de mentalidades um empreendimento quenada tem de simples. Ao falar em mentalidade aristocrtica no espao local,temos logo em conta que ela foi uma caracterstica predominante no processo de
43Idem, p. 389.44Vide Peter Burke. A Revoluo Francesa da Historiografia: A Escola dos Annales 1929-1989.So Paulo: UNESP,1991.45A histria francesa das mentalidades deixou de ser hoje um campo a que possamos dar ttulo devanguardista. No acontece mais o que Michel Vovelle relata de sua experincia de juventude em quefalar de mentalidades era coisa sem muito crdito (Vide Ideologias e Mentalidades. So Paulo:Brasiliense, 1987). Apesar de manterem-se "ambguas", so objetos j bem assentados e at mesmotradicionais, como nos diz Georges Duby: "J no utilizo a palavra mentalidade. Ela no satisfatria,coisa que em pouco tempo percebemos. Mas na poca, no final dos anos 50, ela era bastante adequada,justamente devido a suas fraquezas, a sua impreciso, para designar a terra icgnita queconvidvamos os historiadores a explorar conosco e cujos limite e topografia ainda nos eramdesconhecidos" ("Reflexes sobre a histria das mentalidades e arte" In: Novos Estudos CEBRAP.n. 33, julho de 1992, p. 69). Todavia h aqueles historiadores que permanecem usando o termo e, pior,ignorando seus problemas conceituais. Sob um certo sentido as mentalidades evitam maioresquestionamentos a certos objetos e ideologias, como parece ser o caso do catolicismo de JeanDelumeau ("Une nouvelle anthropologie chrtienne est construire sur une vision plus raliste desdbuts de l'humanit"In: Le Monde - Les Grands Entretiens du Monde.Paris, nmero special, tome2, mai , 1994, pp. 67-69).
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colonizao, com base no domnio da Casa e do senhor patriarcal46. Tal seexpressava tambm nas relaes hierrquicas, pessoais e diretas do senhor paracom seus subordinados. Na sociedade patriarcal, entretanto, a predominncia do
rural sobre o urbano podia prescindir de um polimento aristocrtico que sepautasse numa cultura erudita continuada e sistematicamente sustentada pelasinstituies coloniais. Assim, a cultura erudita era concentrada na atuao daIgreja. A situao foi agravada, ao que sabemos, diante da expulso dos jesutas(1759). Afora a ao dos padres a manter "vivo e ativo aquele nervo deintegrao"47, predominava a rstica cultura de proprietrios deescravos.
Deles escreveu Saint-Hillaire, em 1822:
As revolues que se operaram em Portugal e no Rio de Janeiro no
tiveram a menor influncia sobre os habitantes desta zona paulista;
mostram-se absolutamente alheios s nossas teorias, a mudana de
governo no lhes fez mal nem bem, por conseguinte no se tem o menor
entusiasmo.48
No obstante, as iniciativas educacionais de D. Joo VI, aps 1808, oresultado ainda era limitado, mesmo para as elites que eram sua meta (dentro dosparmetros do sistema colonial). Estava-se muito distante das representaesmentais e ideolgicas da segunda metade do sculo XIX. Diz-nos Gilberto Freyreque o senhor patriarcal "desprezava tudo pelo regalo de mandar sobre muitosescravos e de falar gritando com todo mundo"49. Complementa ainda que comrelao msica "os senhores mais rsticos se contentavam com a dospassarinhos".50 Tendo em conta essa reflexo, lembramos que no sculo XIXocorre o que Ilmar Rohloff de Mattos chama de formao da "classe senhorial"51,
46A esse respeito, lembramos a seguinte passagem de Ilmar R. de Mattos, tratando das regiescoloniais: "Nelas, as relaes entre colonos e colonizados tinham como locus privilegiado aquilo queCaio Prado Jnior denominou de grande unidade produtora: o Engenho, a Fazenda ou a Data. Emcada uma delas a casa grande - ou de modo mais genrico, a Casa - aparecia como o smbolo dopoder do proprietrio sobre a prpria famlia, o capelo, os agregados e a massa de escravos". Vide OTempo Saquarema. 2a ed. So Paulo: Hucitec, 1990. p. 29.47Vide Gilberto Freyre. Sobrados e Mucambos. 6a ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio; Recife: Cmarados Deputados/ Governo do Estado de Pernambuco,1981, p. 78.48Citado por Ilmar R. de Mattos, op. cit., p. 40.49Vide Gilberto Freyre, op. cit., p. 46.50Id. Ibid.51"Se as cortes de Lisboa, num primeiro instante, apareciam com destaque, elas deixavam de ser oadversrio exclusivo. Os interesses ingleses constrrios ao trfico negreiro intercontinental; osplantadores escravistas de outros pontos da regio de agricultura mercantil-escravista; aquelesprodutores interioranos, sobretudo do Sul de Minas, ligados ao abastecimento da cidade do Rio deJaneiro, e que se haviam projetado politicamente em mbito local e provincial; os colonos das demaisregies; os escravos insurretos; e a malta urbana eram outros adversrios de uma mesma luta que em
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tendo como resultado a poltica saquarema. Falamos em sociedade de classespensando que nesse momento gesta-se um conjunto de representaes a nveltanto de cotidiano das elites, quanto nos processos de auto-representao
artstico-cultural e poltico52 .A anlise do processo de constituio das classes senhoriais est
embasada em representaes e conceitos eminentemente poltico-ideolgicos.Trata-se de uma anlise mais conjuntural e de inspirao marxista. inegvelque o mundo social sofria influncia das transformaes culturais que seencaminhavam rumo modernidade.
Os processos de subjetivao das classes dominantes passam a reforar aatuao do Estado, em substituio ao poder patriarcal do Senhor de Engenho.At mesmo a unidade de formao educacional das elites brasileiras est emparalelo com a construo da experincia subjetiva e objetiva das classessenhoriais53. Estas so um fator fundamental de modernizao do Estado e
desagregao do que Ilmar Rohloff de Mattos chama de "moeda colonial"54.Durante a colonizao, as classes dominantes se definem na estrutura deproduo econmica por oposio aos escravos. Com a desestruturao do pactocolonial (fins do sculo XVIII at 1822) e a reestruturao de suas relaesinternacionais em novas bases e, conseqentemente, novos atores, a CoroaImperial passa a sobrepor-se poltica de proprietrios.
Neste sentido, nos anos entre a dcada de quarenta e a dcada de oitentado sculo passado podemos claramente perceber uma atuao de classe entre osgrupos polticos e intelectuais, ento dominantes.
Para Mattos, esses setores no so simplesmente uma continuao doshomens da Independncia. O fato poltico da Abdicao, em 1831, corrobora
sua cotidianidade abria um caminho que possibilitava uma integrao diversa. A vivncia deexperincias comuns, experincias essas que lhes possibilitava sentir e identificar seus interesses comoalgo que lhes era comum, e desta forma contrapor-se a outros grupos de homens cujos os interesseseram diferentes e mesmo antagnicos aos seus constitua-se, sem dvida, na condio para umatransformao. Intimamente ligados ao aparelho de Estado, expandiam seus interesses, procuravamexercitar uma direo e impunham uma dominao.(...) No se constituindo unicamente dosplantadores escravistas, mas tambm dos comerciantes que lhes viabilizavam e, por vezes, com eles seconfundiam de maneira indiscernvel, alm de setores burocrticos que tornavam possveis asnecessrias articulaes entre poltica e negcios, a classe senhorial (grifo do autor) se distinguirianesta trajetria por apresentar o processo no qual se forjava por meio do processo de construo doEstado imperial". Vide Ilmar R. de Mattos, op. cit., pp. 56-57.52Lembramos aqui o fato de que nosso propsito no investigar as representaes artsticasenquanto tais. Por uma questo de rigor metodolgico, no nos interessaremos pelo valor literrio,jornalstico ou filosfico, seja qual obra for, embora no possamos concordar inteiramente com a idiade que esses campos devam pertencer exclusivamente a uma histria de tipo especial, separada daoutra, uma histria de tipo axiolgica. Sobre essa histria axiolgica, vide Paul Veyne."Apndice: Ahistria axiolgica". In: Paul Veyne.Como se Escreve a Histria. Lisboa: Edies 70, 1987, pp. 81-85.53Sobre essa unidade de formao e treinamento, vide Jos Murilo de Carvalho. A Construo daOrdem: A Elite Poltica Colonial. Rio de Janeiro: Campus, 1980.54"De um lado, a 'cara' ou face metropolitana, apresentando-se por meio do Reino ou do EstadoModerno; de outro, a 'coroa' ou a face colonial, sob a forma da Regio, face geralmente oculta,impossvel de ser pensada isoladamente da primeira, mas guardando tambm uma existncia prpria,um processo particular que no se restringe mera reproduo da Histria metropolitana ou dossucessos de outra regio qualquer". Vide Ilmar R. de Mattos, op. cit., p. 20.
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neste sentido: os liberais chegam ao poder. Anti-lusitanos, os homens daRegncia espantaram de uma vez por todas: a recolonizao, a fragmentaoterritorial, o radicalismo liberal-republicano, at consolidar a soberania da ptria
monarquista e escravista.Essa anlise d anterioridade sociedade civil e s experincias sociais,
frente ao Estado e poltica. Se o tempo saquarema, enquanto conjunto defenmenos polticos, pode ser datado entre Bernardo Pereira de Vasconcelos eTavares Bastos55, a formao das classes senhoriais demanda uma maiorfrouxido na periodizao:
Das conjuraes coloniais Maioridade, a trajetria percorrida
transformou o colono em cidado ativo, elevou o plantador escravista
condio de uma classe, restaurando seus interesses e fazendo-o construir
uma auto-imagem que lhe permitia unir pontos descontnuos na fixao de
uma memria56.
Essa Experincia diz respeito a valores, tradies, comportamentos,famlias e toda uma gama de relaes que no se prendem exclusivamente aoque Walter Benjamin chamou de "coisas brutas e materiais"57.
Do mesmo modo, no podemos ignorar que, ao extrapolarmos o campotradicionalmente pensado pelo marxismo, deparamo-nos com matrizes fundantesde nossas vidas. A dimenso imaginria aparece como campo de interfernciainevitvel. A prpria modernidade est calcada em outras bases que no somenteas europias e que, sem dvida, podem ser desvendadas em alguns aspectos apartir do "imaginrio oligrquico"58. A sociedade permeada pelo favor, pelapilhagem e pelo controle do poder de nomear as coisas59; ela que se escuda nodiscurso do moderno.
MODERNIDADE E PROVNCIA
Pensando o Cear e, mais especificamente, Fortaleza dentro dessa
perspectiva, procuramos fazer o rastreamento do que a historiografia registra
55Vide Ilmar R. de Mattos, op. cit., p. 89.56Id. Ibid., p. 95.57Vide Walter Benjamin. Magia e Tcnica, Arte e Poltica: Ensaios Sobre Literatura e Histria daCultura. So Paulo: Brasiliense, 1985, (Obras Escolhidas, vol. 1), p. 223.58Vide Paulo Henrique Martins. "O Imaginrio Oligrquicoe a Modernizao Agrria o Brasil:Pilhagem, Apropriao, Especulao"In: Sociedade e Estado. volume V, n. 1,jan.-jun., 1990, pp. 49-69.59Vide Antnio Jorge de Siqueira. "Imaginrios da Excluso".Texto apresentado no XVII SimpsioNacional da ANPUH. So Paulo, julho de 1993.
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como manifestaes da cultura erudita60 das camadas dominantes locais. Poucase pobres eram tais manifestaes no incio do sculo.
Podemos dizer mesmo que havia um certo afrouxamento dos
comportamentos pblicos, e os homens de poder no interior da cidade podiamparticipar de certos aspectos da cultura popular sem grandes constrangimentos,haja visto o registro que temos das pasquinagens, fofocas e outras manifestaes.Com o processo de urbanizao crescente, ao passo que o sculo caminhavapara seu fim, isso passar a ser adequado apenas para a "canalha".
Nesse sentido, bastante ilustrativo o que relata um historiador local,Raimundo Giro, sobre como o Boticrio Ferreira fazia os transeuntes dosarruados da Fortaleza da primeira metade do sculo passar por vexames:
Noutras ocasies, o Boticrio - presidente da Assemblia - tornava-sebrincalho. Na poca dos entrudos carnavalescos, muito em moda, punha
uma tina d'gua, na qual fazia mergulhar a quem passasse, fosse mister
mandar trazer fora o transeunte. Depois dava-lhe a beber um bom clice
de vinho de anans, uns filhozes a comer e fazia-lhe outros agrados.61
Fortaleza ser eleita, porm, para uma nova sociabilidade: a de uma classesenhorial com seu conjunto de representaes aristocrticas do urbano. Oshomens de boa estirpe, tino comercial e vantajosas relaes financeiras passam afazer presena com a integrao do Cear ao mercado internacional, o que foifeito atravs da produo algodoeira, sua venda para os Estados Unidos e ainstalao de casas comerciais em associao com ingleses e franceses. Nessemomento Fortaleza alcana uma hegemonia sobre os demais espaos citadinos,especialmente Aracati. De simples centro administrativo, ela passa a ser tambmcapital econmica. Sua arquitetura e estrutura urbana comeam a serremodeladas, seno fundadas. Com exceo de alguns sobrados erguidos entre1820 e 1850, inexistia arquitetura patriarcal. A nova camada dominante, surgindoe interagindo na urbanizao, partilhar de uma espacialidade nova.
60Deixamos ainda explcito, o fato de o termo cultura erudita ser entendido no sentido antropolgico,no limitando-se s manifestaes superiores do esprito; e scio-histrico, ou seja, mantendocomplexas relaes com o mundo das classes.61Vide Raimundo Giro. Geografia Esttica de Fortaleza. 2a ed. Fortaleza: BNB, 1979, p.87.
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IMAGINRIO DA EXCLUSO
Procuramos fundamentar nossa reflexo na problemtica terica doimaginrio da excluso. Por imaginrio, entendemos um conjunto de significaesque fundamentam o ser do grupo, participantes de uma coletividade com a qualnos identificamos sob diversos aspectos, como a gestualidade, as idias, alinguagem... Fundamenta tambm nossa relao com a natureza e com as coisasque nos cercam. Por fim, o imaginrio est na base do que nos une e nos separaenquanto ser social, vivendo uma sociedade de classes62.
Temos como referncia fundamental para o estudo desse imaginrio, sob oponto de vista histrico, a metodologia das mentalidades e nelas compreendemosuma sincronia e uma diacronia de tempos e no somente um instrumentaladequado para temporalidades longas.
Pretendemos fazer uma releitura de certos aspectos da cultura erudita local,com base em prticas discursivas e extra-discursivas, buscando elementos parademonstrar que essa histria cultural cearense, que fundamenta um discursosimblico sobre a identidade local, exclui e oblitera o mundo popular. Ao longo detodo o processo que vai da dcada de quarenta at a dcada de oitenta do sculopassado, operou-se a criao de uma cultura letrada e provinciana que, em ltimocaso, criava um universo prprio elite e imprprio aos populares.
Na dcada de quarenta do sculo passado ocorre a organizao oficial daInstruo Pblica primria e secundria, voltada para metas claras e especficas eque obtiveram considervel xito ao longo do sculo, modificando o ensinoabstrato e literrio por um pragmatismo positivo. Essa instruo era pensada
conforme um imaginrio estratificador do social: de um lado, o ensino para asclasses menos abastadas e que deveria capacitar o indivduo para a lavoura e asatividades mecnicas, ser temente a Deus e obediente ao Estado; de outro, umainstruo voltada para as classes mais opulentas, criadora de uma elite queconduziria os negcios pblicos e privados. Na prtica, essa camada culta entrarpara o mundo tacanho das tricas polticas e prestar seus servios seja comoburocrata, intermediadora de senhores de negcio ou como polemista naImprensa.
Nos documentos, procuramos perceber o conjunto das representaespreconceituosas sobre o ordinrio da vida dos comuns, do tipo: plebe ignara,almas medocres, nimos fracos e embrutecidos pela ignorncia. Esses todos
contrapor-se-iam aos gnios, aos luminares e todos os homens ilustres, tidoscomo modelo racional e moral de imitao.
Buscamos selecionar algumas manifestaes e criaes ltero-filosficastipicamente elitistas e com vistas a doutrinara alma dos citadinos, conforme a luzdo sculo. Analisamos quatro: a) o pensamento e as representaes liberais do
jornal O Cearense, em sua fase inicial(1846 e 1847); b) a Histria da Provnciado Cear (1867), de Tristo de Alencar Araripe; c) a "moderna gerao" do Cear,manifestada no grupo dos pioneiros em idias cientificistas, escritores no jornal
62Vide Cornelius Castoriadis. "Papel das Significaes Imaginrias" In: Cornelius Castoriadis.AInstituio Imaginria da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. pp. 176-187.
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Fraternidade (1873/1875); d) o Clube Literrio, atravs de seu rgo A Quinzena(1887/1888).
Damos nfase, portanto, idia de evento, buscando aqueles mais
expressivos para nossa problemtica e simbolicamente importantes mesmo paraos setores intelectuais de hoje, especialmente os conservadores, j que a resideuma imagem do "ser cearense", sendo ao mesmo tempo apresentado como"moderno", "progressista".
Por fim, essa experincia coletiva e de classe tornava a cidade como cidadepara a Sociedade, entendida idealmente como: conjunto de pessoas de certaestirpe, condies financeiras elevadas, tradies claras (contraponho aqui ao quea documentao alerta preconcebidamente com relao s origens obscuras) erazovel formao intelectual.
A CIDADE, O ESPAO E A MODERNIDADE
Os primeiros espaos urbanos cearenses surgiram como plos da
economia subsidiria a Pernambuco. O comrcio local e interprovincial de gado e
charque produzira ncleos urbanos como Aracati e Ic. Sobral tambm se
desenvolveria como centro independente de Fortaleza, como nos explica Jos
Borzacchiello da Silva:
Uma enorme competio urbana foi travada entre Fortaleza e Aracati no
litoral leste e em grau menor com Sobral, que mantinha seu espao bem
definido em decorrncia da ferrovia Sobral-Camocim. Sobral ficou durante
muito tempo sem conexo com Fortaleza, e foi o grande centro coletor de
algodo e de outras matrias primas que eram transportadas pela ferrovia
at o porto de Camocim. Camocim na condio de porto exportador no
desenvolveu hinterlndia prpria. Ao contrrio, Sobral, como importante
centro regional, equipou o porto de Camocim, criando assim o binmio porto-
cidade. Aracati localizada prximo foz do Jaguaribe se desenvolveu em
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funo do preparo da carne-de-sol, que a transformou num dos maiores
entrepostos do Estado, carreando recursos para a cidade que se traduziram
em obras urbansticas de vulto, que ainda hoje podem ser observadas na
suntuosidade de suas igrejas e de seus casares. No interior, Ic era o
grande entreposto comercial.63
Fortaleza formava-se distante destas economias tradicionais e de certa
opulncia. Tinha seu forte aberto para mares de maior horizonte, no restritos
cabotagem, mas voltados para o continente europeu. Esteve, sempre que possvel,
distante da poderosa provncia pernambucana. a separao do Cear frente a
Pernambuco (1799) que far crescer o Porto de Fortaleza. At ento, o algodo da
Provncia deslocava-se inteiro para os portos de Recife, que reestruturava seu
papel frente s novas realidades polticas e econmicas de integrao ao
capitalismo ingls. Afirma Pedro Geiger: Recife refletiu o acar, inicialmente;
mas nos fins do sculo XVIII tambm era porto de exportao do Nordeste,
quando a Inglaterra recebia do Brasil cerca de 10% do algodo que importava do
mundo64.
A cidade de Fortaleza assentou-se em bases urbansticas e racionais, j
muito cedo. Nasceu extempornea para uns, tal como Raimundo Giro, que
considerou com espanto o traado em plano ortogonal, esboado em 1823,
"quando no havia tomado corpo a cincia urbanstica"
65
. Uma cidade muitobonitinha e alinhada. Sua modelao urbana de fato no esperou nem a
modernizao econmica. Ela foi plano racional ordenador antes de "espelhar" o
progresso do sculo. Seu carter moderno nunca esteve dissociado da vivncia de
63Vide Jos Borzacchiello da Silva. Os incomodados no se retiram. Fortaleza: Multigraf Editora,1992, p. 21.64Vide Pedro Pinchas Geiger. Evoluo da Rede Urbana Brasileira. Rio de Janeiro: CentroBrasileiro de Pesquisas Educacionais/MEC, 1963, p. 77.65Vide Raimundo Giro. Geografia Esttica de Fortaleza. 2a. ed. Fortaleza, BNB, 1979, p.77.
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hbitos, costumes e etiquetas de distino e controle frente ao homem cotidiano.
Desde cedo, as classes sociais mais abastadas tinham mo uma cidadegeometricamente manipulvel.
preciso reconhecer, porm, que os motivos que levaram homens e
mulheres do fim do sculo XIX a encantarem-se com a vida urbana de Fortaleza
foram bem diferentes daqueles que levaram a que ela assim chegasse a ser. A
Fortaleza dos anos coloniais e mesmo at as reformas de Herbster, no parecia ter
nenhuma vocao para as luzes. Seu prprio topnimo denuncia uma vocao para
a ordem e as armas.
A GEOMETRIA DO ELITISMO E SUAS ORIGENS AUTORITRIAS
Quando aqui chegaram em 1812, o Governador e Coronel Manuel Incio
de Sampaio e seu ajudante de ordens, o tenente-coronel de Engenheiros Antnio
Jos da Silva Paulet, suas primeiras intenes voltaram-se para reconstruir a velha
fortaleza no monte margem esquerda do Rio Paje, o Forte Schoonenborch,
construdo pelo holands Matias Beck, que deu lugar a sucessivas fortificaes.
Outras cidades coloniais tiveram a mesma origem. A tendncia dessas
fortificaes incipientes foi o esquecimento ou desaparecimento completo com a
descaracterizao da acrpole fundadora. Mas o Governador Sampaio empreendeua concretizao de uma nova fortaleza, que deveria se perpetuar e ser a garantia da
boa ordem na Capitania. Alm da fortaleza, o Governador mandou levantar a
"Carta da Capitania do Cear", onde se incluiu uma "Planta da Villa da Fortaleza e
seu Porto", elaborada pelo ajudante de ordens com data de 1818.
O contexto de rebeldias e levantes na crise do sistema colonial no
encontraria, no Governador Sampaio, nenhuma simpatia, e a ordem, previdente e
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precavida era imposta. A fortaleza foi inaugurada ainda incompleta, no mesmo ano
da primeira rebeldia dos liberais do Cariri (1817). Sampaio era governante queimprimia sua administrao certo ar de dspota esclarecido. Organizou um
sistema de comunicaes prprio na Provncia, com fins de saber tudo o que nela
se passava. Quando veio a Revoluo de 1817, sua ao foi pronta e antecipadora.
Organizou sistematicamente a represso ao movimento que, ao contrrio, parece
ter sido precipitado na sua conduo poltica no Cear.
Silva Paulet prosseguiu seus trabalhos mesmo depois de mudada a
governadoria. Sua orientao de acordo com a formao militar era, aps a
construo do forte, estabelecer uma geometria urbana com fins a manter a
segurana e o controle da vila e, "a pedido de Barba Alardo, Paulet fornece as
diretrizes de um traado urbano, em xadrez, atravs do qual a cidade se identifica
hoje, de imediato, diante dos que a visitam"66.
O tenente-coronel de Engenheiros, Silva Paulet, abriu mais ou menos ao
meio da acanhada cidade, exatamente a partir da sede da fora militar, um longo
corredor de vigilncia, que ganhava a cidade em direo ao sul:
A primeira rua em linha reta, baliza das futuras que se desdobrassem de
norte a sul, do mar para o serto, fez-se a partir da fortaleza, tomando-se
como referncia a Praa da Carolina e aproveitando-se os arruados como
Rua das Belas, Rua da Pitombeira e Rua da Alegria, correspondendo, ostrs, Rua da Boa Vista, atual Floriano Peixoto, compreendidos,
respectivamente, o primeiro entre a mesma fortaleza e a Rua So Paulo, o
outro da at o lado sul da Praa do Ferreira, e o terceiro deste ponto ao
diante67.
66Vide Liberal de Castro. Fatores de Localizao e Expanso da Cidade da Fortaleza. Fortaleza:UFC, 1977, p.29.67Vide Raimundo Giro, op. cit., p. 77.
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Tais diretrizes foram aprontadas em 1823 e, malgrado a incertaconfigurao do alinhamento das casas pelo lado leste, arranjadas ao longo do Rio
Paje, a rua ento aberta mais parece com um corredor de vigilncia, no qual
podemos vistoriar a cada esquina, de leste a oeste e norte a sul, tudo o que
acontece na cidade. Por cinismo ou eufemismo, esse corredor principal, feito a
partir da Rua das Pitombeiras e alinhando outras duas, no recebeu nenhum dos
nomes antigos, mas Rua da Boa Vista, que possibilitava, de fato, uma vista
completa da recm-cidade. (Vide Planta da cidade de Fortaleza com projeo
ampliada do Passeio Pblico em 1888.)
O traado de Silva Paulet carece de uma explicao, sobre a qual no se
tem detido a historiografia, seno em passagens ligeiras. Nada diz o Raimundo
Giro de Geografia Esttica de Fortaleza que explique o plano de Silva Paulet.
Por que foi feito se Fortaleza era uma vila modesta (tendo se tornado cidade no
mesmo ano de 1823) ? Que motivao havia, dada sua insignificncia comercial
ou econmica? Lembramos que o embelezamento no era a ordem do dia, no
havendo grande quantidade de sobrados, sintoma da ausncia de uma significativa
camada de senhores ou burgueses.
Liberal de Castro, em Fatores de Localizao e Expanso da Cidade da
Fortaleza, descreve as intenes do plano xadrez de Paulet e afirma que o mesmo
servia para fins de dominao e ordenamento da expanso urbana. De certamaneira, descrio feita por Giro e anlise de Castro nada se acrescentou.
Embora Sebastio Rogrio no tenha se interessado pelos dotes de Silva
Paulet, situou muito bem os seus objetivos, ao dizer que o traado xadrez "corrigia
becos, desvios e ruas desalinhadas que facilitavam a rebeldia urbana, substituindo-
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os por vias alinhadas, longas e cruzadas em ngulo de 90o que favoreciam a viglia
do poder sobre as cidades"68
.Guardadas as propores, o Governador Sampaio era homem que
imprimia a seu governo o ar de despotismo esclarecido. Organizou um sistema de
comunicaes prprio na Provncia, com fins de saber tudo o que se passava.
Como foi dito, no levante liberal de 1817, sua ao foi pronta e antecipada.
Lembramos aqui o que nos diz Joo Alfredo de Sousa Montenegro ao
chamar ateno personalidade do tradicionalista:
Justamente por refletir a viso de um extraordinrio administrador, que
conciliava a experincia de vrios anos frente da capitania com um saldo
positivo de realizaes pblicas, a ponto de criar meios estveis para o
funcionamento normal do governo, e fomentando a formao de
mentalidade a edificar um comportamento voltado mais para a coisa pblica,
para a proteo dos seus direitos, de suas prerrogativas, com isso dando no
Cear melhor consistncia ao ideal monrquico, aos valores que o
exornavam.69
A formao de seu ajudante de ordens, o tambm militar com patente de
tenente-coronel, Silva Paulet, vem bem ao encontro da idia de que a Rua da Boa
Vista d continuidade ao desejo de vigilncia sobre a cidade. Tal se faz com outrogovernador, Barba Alardo, porm, pelo mesmo Silva Paulet.
Em 1850 o arruador Antnio Simes Ferreira de Farias levantou, com
seus instrumentos de leigo experimentado, uma planta, que demonstrava que o
68Vide Sebastio Rogrio de Barros da Ponte. Remodelao Urbana de Fortaleza na virada doSculo. Fortaleza: NUDOC/UFC, 1990, p.2.69Vide Joo Alfredo de S. Montenegro. O Trono e o Altar: As Vicissitudes do Tradicionalismo noCear (1817-1978). Fortaleza: BNB, 1992, p. 14.
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plano de Paulet havia sido executado, tendo j alinhada a Rua da Boa Vista e
seguintes paralelas pelo lado oeste, oposto ao Paje, e as ortogonais at poucodepois da atual Praa do Ferreira. A cidade estava em linhas cartesianas. Ainda
no era, porm, aristocrtica, mas comearia a ser.
A populao a nomeava em ruas e logradouros como nas cidades simples
e pequenas. Temos diante de ns uma reproduo da "Planta da Cidade de
Fortaleza, levantada no ano de 1856, pelo Padre Manoel do Rego Medeiros".
Surgem vista ainda os nomes: Rua das Belas, da Pitombeira e da Alegria, mas
completamente alinhadas. Aqui, Praa Amlia, a Praa da Carolina mais adiante;
os largos: do Quartel, da Matriz, do Garrote... A Rua da Lagoinha, do Chafariz, do
Outeiro, da Palha, da Boa Hora, dos Mercadores, da Palma, da Ponte, do Cajueiro
e outras mais.
Prximo praia, ao lado do Quartel-fortaleza, ficava o Largo do Hospital
de Caridade. Lugar que foi chamado tambm de Largo do Paiol, onde perto havia
um estabelecimento para guardar plvora.
Mas ainda deram outro nome ao Largo do Paiol. Foi o de Campo da
Plvora70, pelo fato de ali a plvora no estar sempre no paiol, mas ter um uso que
bem marca a caracterstica da Fortaleza de ento, como centro do poder, no s da
administrao, mas tambm da justia. No largo ao lado da Fortaleza de N. S. da
Assuno ficava o "local destinado a sacrifcio de criminosos. Ali tambm foi
erguido um patbulo para punir condenados de crimes comuns"
71
. interessante ver que Fortaleza no foi inicialmente o campo mais
apropriado para o desenrolar do liberalismo radical. Quando as idias liberais lhe
chegam elas j esto numa face ordeira. Em outras regies do Brasil foi o
70A planta do Pe. Manoel do Rego Medeiros, de 1856, traz a denominao "Largo do Hospital deCaridade".71Vide Ma. Nolia R. da Cunha. Praas de Fortaleza. Fortaleza: Imprensa Oficial do Cear, 1990,p.269.
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contrrio, as cidades "tiveram papel relevante na agitao das idias de
independncia e de liberdade o que, sem dvida, indica possurem certo contedoeconmico e social. Veja-se o caso das cidades originadas da minerao, nas quais
floresceram os primeiros elementos de uma camada intelectual nativa"72.
Em 1817, Fortaleza foi o centro da reao s idias liberais, de onde
Igncio de Sampaio coordenou a represso.
Em 1825, os revolucionrios da Repblica do Equador foram fuzilados no
Largo da Plvora. Nisso a Fortaleza imbatvel dava mostra de seu poder
monrquico e ordeiro.
Quando o liberalismo moderado dos chimangos instala-se, seu orgo de
imprensa, O Cearense, faz o lamento dos mortos pela represso ao movimento de
1824. O Largo da Plvora maculava a memria das ilustres famlias locais que
viram o derramamento do sangue de seus filhos:
Esse sangue era innocente, e bradou vingana. E quem andando tarde
da noite por uma de nossas praas no v os manes venerandos erguidos
gemerem: E ha no mundo fratrecidas! "Deos de bondade, compadecei-vos;
asss a vingana".73
Essa vingana, evocada em 1847, no passa por recuperar as bandeiras
radicais, j que nelas pletorava um patriostismo infeliz. Uma tal vingana confiada s intervenes misteriosas, providenciais e liberais do Divino.
Justia e administrao marcavam a cidade como centro das decises que
se impunham ao restante da Provncia. A geometria do poder casava com o poder
72Vide Pedro Geiger, op. cit., p. 67-68.73Vide "O dedo da providncia", in: O Cearense, no 83, 13-09-1847.
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da ordem e ficava aberto o horizonte das classes abastadas para fazer da cidade um
"espelho".A imagem especular da cidade narcsica frente realidade provincial. A
Fortaleza ergue-se em desafio ao estranho do oceano, verdade. Porm, o mar no
deixou nunca de arejar a cidade, fazendo sentir-se autnoma diante das
circunstncias que a cercavam, das dunas e do areal que castigavam o povo em
meio a um sol escaldante. O mar aberto mostrava um horizonte que com certeza
havia de estar l: a Europa. As luzes ainda chegariam, mais vivas que aquele sol de
todos.
Pela dcada de quarenta a opinio pblica, restrita elite, conheceu O
Cearense; o Liceu comeou a educar os filhos das classes opulentas e a Fortaleza
reconstruda em 1817, junto a seus moldes de ordenamento das ruas, permaneceu
como monumento. Novas razes constituram o espao na cidade, sem
revolucionar os feitos de Paulet, sem questionar seus ngulos. Em 1859 configura-
se o plano de Adolfo Herbster para o crescimento da cidade. Foi, ento, o nosso
primeiro Haussmann.74
Repetidas vezes tem-se tocado no nome de Adolfo Herbster, cuja ao se
far como engenheiro da Provncia, em auxlio (desde 1857) ao folclrico
boticrio Ferreira. Sua planta de 187575 um projeto de delimitao e crescimento
da cidade fortalezense com vistas a dar-lhe uma estrutura condizente com uma
capital em francos progressos, mediante a nova configurao econmica nomercado internacional por que vinha passando a Provncia h alguns anos.
Herbster cercou os limites do espao urbano por uma cinta de avenidas, no total de
trs. Duas delas partiam do mar, correndo paralelas em busca da parte sul da
cidade (as atuais Av. do Imperador e Av. D. Manuel). Mais frente elas so
74A expresso "nosso Haussmann" foi cunhada pela genialidade de ironia do jornalista Joo Brgido,em 1908, a fim de ridicularizar o intendente Guilherme Rocha.75O boticrio Ferreira j estava falecido desde 1859, tendo garantido as linhas ortogonais de Paulet.
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interceptadas ortogonalmente pela terceira (Av. Duque de Caxias), que ultrapassa
a cidade no sentido leste-oeste.Liberal de Castro acredita ver nas reformas de Herbster uma
"haussmanizao" da Fortaleza, que j imitava o que de reformas urbanas havia
acontecido em meados do sculo em Paris. Um processo de importao indolor da
disciplina urbanstica europia estaria em curso. Essa observao de Liberal de
Castro, como considera Paulo Linhares, "abriu um leque de hipteses para o
estudo de Fortaleza que, do ponto de vista terico, repousa sobre a possibilidade
de levar em conta a dimenso espacial como constituinte do ser social"76. Esse
processo, evidentemente, no se interrompe no sculo XIX.
Ao contrrio, inicia-se neste momento e estendendo-se por todo o incio
deste sculo, como nos informa Sebastio Rogrio de B. Ponte:
Durante todo o perodo de vigncia da oligarquia aciolina (1896-1912), a
intendncia da capital ficou a cargo do coronel Guilherme Rocha,
considerado pela historiografia cearense um dos administradores municipais
que mais fizeram pelo embelezamento e melhoramento da cidade: 'o
aformoseamento fortalezense havia encontrado no intendente Guilherme
Csar da Rocha o mentor persistente durante 20 anos (...). Homem de fino
trato integrado na vida social elegante, procurava transformar velhos hbitos
por via da modificao fsica do ambiente urbano'.
77
possvel, ento, vermos uma ampliao do horizonte das modificaes
urbanas que esto sendo empreendidas, cujo carter passa a ser muito mais
aburguesado e eminentemente cultural. O contexto dessas reformas parece tambm
76Vide Paulo Linhares, op. cit., p. 184.77Vide Sebastio Rogrio de B. da Ponte, op. cit., p. 14.
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indicar suas intenes de distino aristocrtica e novos referenciais para as
camadas dominantes, embora sua datao v alm dos limites desta pesquisa.Esses referenciais alienam Fortaleza do espao local e jogam-na para uma
outra dimenso cultural imaginria. uma realidade ilusria, a que se reportou
Joo Brgido no ttulo de um artigo publicado no jornal Unitrio, em 1908:
"Fortaleza em Paris". Haussmann rouba o nosso cenrio.
As reformas da capital francesa, na segunda metade do sculo passado,
fizeram-se dentro do contexto de vazio poltico das propostas de esquerda que,
ento, tinham a difcil misso de recuperarem-se dos insucessos de 1848. A
geometria das ruas parisienses no estava isenta de uma ideologia racionalista,
partidria da idolatria da tcnica e do clculo exato. Foram abertos largos e belos
Boulevards, desfazendo os casebres e guetos insalubres que por l se
configuravam, num constante perigo ordem que se ia constituindo.
Como nos esclareceu Benevolo78, todas essas reformas urbansticas
empreendidas pela mediao dos saberes de projetistas, funcionrios e homens de
cincia, no esto isoladas de um "novo conservadorismo europeu", aguado pelo
olhar aristocrtico e "humanitrio" dos romances anteriores a 1848, imaginava-se
uma cidade utopista, racionalmente construda para atender s necessidades de
toda a populao, devidamente habitada, bem alimentada, bem transportada e
divertida, de acordo com os melhores parmetros da felicidade dos lares humanos.
Homens de estirpe e cabedal apareciam como os empreendedores de uma novacidade, isenta de contradies e, portanto, da poltica.
Os lares do povo foram o objeto principal desses senhores distintos, que
nos lembram uma tradio socialista e renascentista. As novas intenes no
estavam de acordo com a indstria capitalista insana, que continuou a construir "os
78As informaes e observaes em torno do Br. de Haussmann e do urbanismo parisiense aquiexpressas esto fundamentadas na obra de Leonardo Benevolo. As Origens da Urbanstica Moderna.Lisboa: Presena, s.d.
7/28/2019 1995 Mest Cfch-ufpe Jose Pimentel Filho
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ignbeis casebres onde se alojava a populao imigrada e a que fora desalojada do
centro citadino, na seqncia dos trabalhos de Haussmann"79
. Este senhor foi umempreendedor, a convite de Napoleo III. Encarnou os desejos expressos em
termos literrios at ento. Agradou, entretanto, especulao imobiliria.
Contraps-se desordem natural dos aglomerados:
A idia de um plano para uma cidade implica a existncia de um modelo
ideal, distinto e contraposto realidade; de facto, volta-se nesta poca a
aspirar a uma imagem geomtrica da cidade, to uniforme e regular quo
disforme e irregular o agregado urbano existente.80
H, todavia, nesse processo de interveno urbana, uma leitura prpria de
imaginrios to antigos expressos em livros como A Utopia, de Morus, e A Nova
Atlntida, de Bacon, para citar os mais conhecidos. O desejo de aplicar na prtica
os falanstrios, partilha de preocupaes com a ordem e a conservao das leis.
Segundo Benevolo, a"(...) mudana fundamental reside na aceitao dos aspectos