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2008_Meira_O Patrimonio Historico e Artistico

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE ARQUITETURA

    PROPUR PROGRAMA DE PS GRADUAO EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL

    DOUTORADO

    ANA LCIA GOELZER MEIRA

    O PATRIMNIO HISTRICO E ARTSTICO NACIONAL NO RIO GRANDE DO SUL NO SCULO XX:

    ATRIBUIO DE VALORES E CRITRIOS DE INTERVENO

    Porto Alegre 2008

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE ARQUITETURA

    O PATRIMNIO HISTRICO E ARTSTICO NACIONAL NO RIO GRANDE DO SUL NO SCULO XX:

    atribuio de valores e critrios de interveno

    ANA LCIA GOELZER MEIRA

    Tese de Doutorado apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Planejamento Urbano e Regional

    Orientadora: Dra. Sandra Jatahy Pesavento

    Porto Alegre 2008

  • M514p Meira, Ana Lcia Goelzer O patrimnio histrico e artstico nacional

    no Rio Grande do Sul no sculo XX : atribuio de valores e critrios de interveno / Ana Lcia Goelzer Meira ; orientao de Sandra Jatahy Pesavento. Porto Alegre: UFRGS, Faculdade de Arquitetura, 2008.

    483 p. : il.

    Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Arquitetura. Programa de Ps-graduao em Planejamento Urbano e Regional. Porto Alegre, RS, 2008.

    CDU: 719.025.419(816.5) 719.025.4 719

    DESCRITORES

    Patrimnio histrico : Preservao : Sculo XX : Rio Grande do Sul

    719.025.419(816.5)

    Patrimnio artstico : Restaurao 719.025.4

    Patrimnio nacional : Conservao 719

    Bibliotecria Responsvel

    Elenice Avila da Silva CRB-10/880

  • ANA LCIA GOELZER MEIRA

    Ttulo: O PATRIMNIO HISTRICO E ARTSTICO NACIONAL NO RIO GRANDE DO SUL NO SCULO XX.

    Subttulo: atribuio de valores e critrios de interveno

    Tese de Doutorado apresentada Faculdade de Arquitetura da Universidade federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Planejamento Urbano e Regional

    Aprovada em 27 de maro de 2008.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. Lauro Cavalcanti UERJ

    Dra. Briane Panitz Bicca Programa Monumenta Porto Alegre

    Prof. Dr. Carlos Eduardo Dias Comas UFRGS / Propar

    Prof. Dr. Joo Farias Rovatti UFRGS / Propur

  • A todos que me ensinaram, inspiraram e ajudaram, meus agradecimentos,

    especialmente minha orientadora, Prof. Sandra Jatahy Pesavento.

  • RESUMO

    Esta tese versa sobre O Patrimnio Histrico e Artstico Nacional no Rio Grande do Sul no sculo XX: atribuio de valores e critrios de interveno. Inicia com a apresentao das trajetrias dos campos da histria, da histria da arte e do patrimnio. A seguir, definem-se os conceitos pertinentes ao tema, nos campos da arquitetura e do patrimnio, e, em relao a este ltimo, os critrios recomendados pelas cartas internacionais e aplicados pelos tcnicos que se ocupam das intervenes nos bens edificados. A partir da anlise da trajetria do IPHAN e, especificamente, de algumas obras de restaurao, procura-se entender a atuao do Instituto no Brasil para melhor situar a relao do mesmo no Rio Grande do Sul. Aborda a preservao no estado, investigando as escolhas sobre o que se tornou patrimnio, os valores associados aos tombamentos dos bens edificados, os critrios utilizados nas intervenes e, permeando ambos, a oscilao entre a busca da imagem e do documento. As obras de restaurao tiveram por objetivo, em alguns momentos, produzir uma representao/imagem desejada das edificaes restauradas, privilegiando a consagrao de aspectos visuais e, em outros, buscaram a salvaguarda de um documento herdado, procurando preservar os elementos constitutivos autnticos das mesmas. A busca do documento na restaurao representa a preservao daquilo que efetivamente existiu enquanto matria. A imagem, por sua vez, busca aquilo que poderia ter sido e representa uma construo imaginria. Um tema que emergiu da pesquisa e, devido a sua relevncia, mereceu um destaque no texto a participao da sociedade civil na preservao do patrimnio histrico e artstico nacional no Rio Grande do Sul. As trajetrias regionais do IPHAN carecem de estudos em todo o territrio nacional. Esta tese poder ser til para quem atua no campo da preservao, especialmente na prpria instituio, para entender a sua trajetria desde o ponto de vista das unidades descentralizadas.

  • ABSTRACT

    The present work is about The Historical and Artistic National Trust

    in Twentieth Century, Rio Grande do Sul: value giving and intervention criteria. It

    begins with the presentation of the trajectories of the fields of history, of the history

    of Art and of the patrimony. After that, the concepts concerning the theme are

    defined in the fields of architecture and of the patrimony. Regarding the latter, the

    criteria recommended by international letters and applied by technicians who take

    care of the interventions in built items are also defined. From the analysis of the

    Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - IPHANs trajectory, and

    specifically of some restoration works, we aim at comprehending the Institutes

    performance in Brazil in order to better situate its relationship in the state of Rio

    Grande do Sul. This work approaches preservation in the state, investigating the

    choices of what bas been listed, the values associated to heritage listing of built

    items, the criteria used in the interventions and, permeating these, the oscillation

    between the search for the image and for the document. At some moments,

    restoration works aimed at producing a wished-for representation/image of the

    restored constructions, privileging the consecration of visual aspects. At other

    moments, they aimed at the safeguarding of an inherited document, trying to

    preserve the authentic constitutive elements of these. The search for the document

    in the restoration represents what existed in fact as matter. The image, on the

    other hand, is a search for what could have been and represents an imaginary

    construct. A theme that emerged form this research and deserved emphasis due to

    its relevance is the participation of the civil society in the preservation of the

    historical and artistic national patrimony in Rio Grande do Sul. IPHANs regional

    trajectories lack studies in the whole national territory. This thesis may be useful for

    those who work in the field of preservation, specially within IPHAN itself, for the

    comprehension of its history from the point of view of decentralized units.

    Key-words: Historical and Artistic National Patrimony, Restoration, Preservation, Listed Items, Intervention Criteria.

  • LISTA DE FOTOGRAFIAS

    Fotografia 01 A igreja de So Miguel Arcanjo antes das obras de estabilizao, no incio do sculo XX. ANS......................................................... 221 Fotografia 02 - Runas da antiga igreja de So Miguel Arcanjo antes das obras de estabilizao [ca.1920]. ANS................................................................. 223 Fotografia 03 - Runas da antiga igreja antes das obras [ca.1920]. ANS............. 223 Fotografia 04 - Colgio do antigo Povo de So Luiz Gonzaga, antes da demolio, na dcada de 1930. ANS...................................................................

    227 Fotografia 05 - Casa construda com material missioneiro primeiro bem tombado no Rio Grande do Sul, nos anos 1930. ANS...................................... 228 Fotografia 06 Quadro retratando Jlio de Castilhos no Museu que leva seu nome [s.d]. Acervo MJC.......................................................................................

    230 Fotografia 07 - Coleo de Armas General Osrio [s.d]. ANS.......................... 231 Fotografia 08 - Igreja Matriz de N. S. da Conceio de Viamo [s.d]. ANS......... 235 Fotografia 09 - Igreja do Rosrio na dcada de 1930 em Porto Alegre. ANS...... 237 Fotografia 10 - Interior da Igreja do Rosrio, demolida aps a notificao.ANS.. 237 Fotografia 11 - Igreja Matriz de So Pedro em Rio Grande [s.d.]. ANS.............. 239 Fotografia 12 - Solar de Dom Diogo de Souza, provavelmente entre 1938 e 1941. ANS.........................................................................................................

    241 Fotografia 13 - Remanescentes do porto do Solar de D. Diogo [s.d.].ANS.... 241 Fotografia 14 - Lucio Costa, Leleta e Augusto Meyer nas runas de So Miguel em 1937. ANS....................................................................................... 243 Fotografia 15 - Lucio Costa, Leleta e Augusto Meyer, em Cruz Alta, em 1937. ANS................................................................................................... 243 Fotografia 16 - O ptio e a casa de material missioneiro junto s runas de So Joo Batista. ANS.................................................................................................

    245 Fotografia 17 - Detalhe do cunhal com pedras decoradas retiradas das runas. ANS.......................................................................................................... 245 Fotografia 18 - Elementos de pedra esculpida dispersos na regio [s.d]. ANS 246 Fotografia 19 Base de pedra esculpida incorporada ao Museu. Marcel Gautherot, 1962. ANS....................................................................................... 246 Fotografia 20 - A sede da Real Feitoria do Linho Cnhamo, provavelmente nos anos 1930. ANS.............................................................................................

    248 Fotografia 21 - Escavao arqueolgica na rea do Forte de Santa Tecla por volta de 1960/1970. ANS. ................................................................................... 254 Fotografia 22 - Igreja Matriz de So Sebastio de Bag antes da construo da Praa [s.d.]. ANS.......................................................................................... 256 Fotografia 23 - Interior da Igreja Matriz antes das reformas no sculo XX.ANS.. 256 Fotografia 24 - Trincheiras na poca da Revoluo, junto Igreja Matriz de Bag. ANS................................................................................................... 257 Fotografia 25 - A Rua da Ladeira em Rio Pardo [s.d.]. Arquivo IPHAN/RS........ 263 Fotografia 26 - Muros do Forte de Caapava. Russins, 1952. ANS................. 266 Fotografia 27 - Obelisco Republicano em Pelotas [s.d.]. ANS............................. 269 Fotografia 28 - Casa de Garibaldi em Piratini [s.d.]. ANS.................................... 277 Fotografia 29 - Palcio Farroupilha, hoje Casa de Cultura em Piratini [s.d]. ANS...

    273 Fotografia 30 - Quartel General Farroupilha, hoje Museu Farroupilha, em Piratini. ANS...................................................................................................... 273 Fotografia 31 - Festividade pelo tombamento da Casa de David Canabarro, com Ivo Caggiani direita, em 1953. ANS........................................................... 276 Fotografia 32 Bandeira do Estado, na mesma ocasio, associada imagem de Canabarro, hoje muito contestado. ANS...................................................... 276

  • Fotografia 33 Casa da Fazenda So Gregrio, que pertenceu a David Canabarro [s.d.]. ANS........................................................................................... 278 Fotografia 34 - Antigo cemitrio da Fazenda So Gregrio [s.d.]. ANS............... 278 Fotografia 35 - Imponncia da igreja N. S. das Dores, no centro de Porto Alegre, na poca do tombamento. Arquivo EPAHC................................ 282 Fotografia 36 O Solar dos Cmara em Porto Alegre [s.d]. ANS........................ 293 Fotografia 37-Teatro So Pedro e a antiga Casa de Cmara antes do incndio que destruiu esta ltima. ANS........................................................................... 294 Fotografia 38 . Monumento a Jlio de Castilhos, tombado pelo IPHAN [s.d.]. ANS.............................................................................................................

    295 Fotografia 39 - Teatro Sete de Abril em sua feio original no sculoXIX. ANS.. 296 Fotografia 40 - Teatro Sete de Abril aps a reforma da fachada no incio do sculo XX. ANS................................................................................................. 296 Fotografia 41 - Casares na Praa Coronel Pedro Osrio, em Pelotas [s.d]. ANS.......................................................................................................................

    298 Fotografia 42 - Antiga sede dos Correios e Telgrafos, hoje Memorial do Rio Grande do Sul [s.d.]. ANS............................................................................. 301 Fotografia 43 - Casa Schmitt-Presser em Novo Hamburgo. Ana Meira, 2002. ANS......................................................................................................... 310 Fotografia 44 - Ponte do Imperador em Ivoti. Ana Meira, 1987.ANS................ 311 Fotografia 45 - Casa da Neni. Ana Meira, 1985. ANS.......................................... 312 Fotografia 46 Conjunto arquitetnico e urbanstico de Antnio Prado. Ana Meira, 1985. ANS................................................................................................. 314 Fotografia 47 - Porto Central do Cais de Porto Alegre antes da construo do Muro da Mau [s.d.]. ANS............................................................................ 317 Fotografia 48 - Sobrado na Praa Fernando Abott em So Gabriel [s.d.]. ANS.. 320 Fotografia 49 - Antiga Alfndega de Rio Grande [s.d.]. ANS............................ 321 Fotografia 50 - Caixa dgua de Pelotas [s.d.]. ANS............................................ 328 Fotografia 51 - As runas da Igreja de So Miguel Arcanjo antes das obras de estabilizao. Arquivo IPHAN/RS.......................................................... 334 Fotografia 52 Equipe responsvel pelas obras de estabilizao executadas pelo governo do Estado. [1924?]. ANS............................................................. 334 Fotografia 53 - Situao das runas da igreja durante as obras dos anos 1920. ANS......................................................................................................... 336 Fotografia 54 - Cercamento inicial das runas de So Miguel executado pelo Governo do Estado. ANS.................................................................................. 336 Fotografia 55 - Equipe de operrios na obra de consolidao executada por Lucas Mayerhofer, entre 1938 e 1940. ANS..................................................... 339 Fotografia 56 Planta de So Miguel Arcanjo realizada pelos membros da demarcao do Tratado de Madri. (reproduo fot.) Biblioteca Nacional......... 340 Fotografia 57 Planta de So Miguel Arcanjo com a localizao do Museu das Misses, realizada por. Lucas Mayerhofer, 1947. (reproduo fot.). ANS........... 340 Fotografia 58 - O incio da construo do Museu das Misses. ANS............... 342 Fotografia 59 O entelhamento do pavilho do Museu. ANS.......................... 342 Fotografia 60 A construo recm finalizada do Museu, com a casa do zelador esquerda do pavilho ANS................................................................... 342 Fotografia 61 - As runas da antiga igreja articuladas ao Museu, contextualizando o acervo exposto [s.d]. ANS..................................................... 342 Fotografia 62 - A antiga cruz missioneira no cemitrio de Santo ngelo onde se encontrava na dcada de 1930. ANS..................................................... 343 Fotografia 63 Localizao da cruz missioneira aps a construo do Museu das Misses. ANS............................................................................................. 343 Fotografia 64 Operrios sistematizam as peas no Museu [s.d.]. ANS............ 344 Fotografia 65 Espao para ampliao da exposio inserido nas runas da igreja, na dcada de 1950. ANS........................................................................... 344

  • Fotografia 66 Andaimes para interveno na torre, durante a obra do SPHAN. ANS........................................................................................................ 345 Fotografia 67 Remontagem das alvenarias de pedra durante a obra do SPHAN, executada por Mayerhofer entre 1938 e 1940. ANS.............................. 345 Fotografia 68 - Numerao das pedras nas alvenarias que foram desmontadas na obra dirigida por Mayerhofer. ANS.................................................................. 346 Fotografia 69 - Situao da sacristia antes da remoo do material remanescente [s.d.]. ANS..................................................................................... 347 Fotografia 70 As runas da igreja de So Miguel Arcanjo em 1954. Edgard Jacintho. ANS.......................................................................................... 348 Fotografia 71 -Augusto da Silva Telles, Alosio Magalhes, Jlio N. B. de Curtis e Di Stefano (a partir da esquerda). Arquivo IPHAN/RS................................... 350 Fotografia 72 - Di Stefano e Curtis discutem sobre a preservao do stio de So Miguel. Arquivo IPHAN/RS....................................................................... 351 Fotografia 73 - Visitantes com automvel junto runas [s.d.]. ANS................... 353 Fotografia 74 - Visitantes a cavalo no interior das runas [s.d.]. ANS.................. 353 Fotografia 75 - Famlias visitando as runas [s.d.]. ANS....................................... 353 Fotografia 76 Visitantes a cavalo apeiam para reverenciar os remanescentes. ANS............................................................................................ 353 Fotografia 77 - Visitantes no interior das runas. Acervo IPHAN/RS.. 353 Fotografia 78 Cavaleiros com a Chama Crioula da Revoluo Farroupilha pousam na frente das runas com a bandeira do RS. Foto: A. Mendez, 2007... 353 Fotografia 79 A situao da nave antes das obras de consolidao do Governo do Estado [s.d.]. ANS............................................................................. 354 Fotografia 80 - A situao da nave aps a estabilizao do Governo do Estado e as obras do SPHAN. ANS................................................................................. 354 Fotografia 81 - Casa do Colono Alemo aps as obras de Theo Wiedersphan. Adler Homero, 2007. Arquivo IPHAN/RS............................................................. 358 Fotografia 82 - Casa de David Canabarro na sua feio original [s.d.]. ANS... 362 Fotografia 83 A Casa de David Canabarro na poca do tombamento. Foto: Russins, 1952. ANS.................................................................................... 363 Fotografia 84 - A Casa de David Canabarro em mau estado fsico na maior parte do sculo XX. ANS...................................................................................... 364 Fotografia 85 - Obras na igreja N. S. de Viamo [s.d.]. Foto: Edegar B. da Luz. Arquivo IPHAN/RS.. 366 Fotografia 86 - A igreja de N. S. da Conceio nos anos 1960. Foto: Edegar B. da Luz. Arquivo do autor. 367 Fotografia 87 Interveno na cobertura da igreja no final dos anos 1960. Foto: Edegar B. da Luz. Arquivo do autor.... 367 Fotografia 88 A Casa Schmitt-Presser aps a restaurao. Ana Meira, 2002. 370 Fotografia 89 Participao dos Amigos de Hamburgo Velho nas decises sobre a Casa. Foto: Ana Meira. Arquivo IPHAN/RS............................................. 371 Fotografia 90 Restaurao das vedaes de taipa de mo na Casa Schmitt- Presser. Foto: Ana Meira. Arquivo IPHAN/RS... 372 Fotografia 91 - A fachada posterior da Casa dos Paim, ornamentada com lambrequins [s.d.]. Arquivo IPHAN/RS......................................................... 379 Fotografia 92 - Fachada posterior em 1986. Ana Meira. Arquivo IPHAN/RS....... 379 Fotografia 93 Fachada frontal da Casa dos Paim, com os lambrequins [s.d.]. Arquivo IPHAN/RS................................................................................................ 379 Fotografia 94 - Fachada frontal em 1986, sem os lambrequins e com o acrscimo da garagem. Ana Meira. Arquivo IPHAN/RS....................................... 379 Fotografia 95 - Vista frontal da Casa Mnica com os lambrequins novos. Foto: Terezinha Buchebuan, 2007. Arquivo IPHAN/RS 384 Fotografia 96 - Vista frontal da Casa Mnica. Terezinha Buchebuan, 2007. 384 Arquivo IPHAN/RS..

  • Fotografia 97 Igreja sendo transportada em cima de um caminho em Paulo Bento, no RS. Foto: M. Ferreira, 2006............ 389 Fotografia 98 - Casa sendo transportada em um caminho na beira da Gaivota, em SC. Foto: A. Azevedo, 2005............................................................. 390 Fotografia 99 Casa sendo transportada em cima de um caminho em Carazinho, RS. Simone Ramos, 2007.................................................................. 390 Fotografia 100 Fachada frontal do Solar dos Sopher. Fonte: Folha da Tarde, 1980.......................................................................................................... 391 Fotografia 101 Portada de acesso ao Solar D. Diogo de Souza. Reproduo de quadro do Museu Jlio de Castilhos. MJC............................................... 392 Fotografia 102 O Solar Lopo Gonalves durante as obras de restaurao nos anos 1980. Arquivo IPHAN/RS............................................................... 400 Fotografia 103 - Solar do Conde de Porto Alegre em sua feio original, retratado em pintura [s.d.]. ANS........................................................................ 402 Fotografia 104 - O antigo moinho restaurado e a nova escola de Ilpolis. Nelson Kon, 2008...................................................................................... 404 Fotografia 105 O antigo moinho restaurado e o novo museu. Nelson Kon, 2008................................................................................................... 404

  • LISTA DE DESENHOS

    Desenho 1 Zoneamento da soluo discutida no Seminrio. Arquivo IPHAN/RS............................................................................................................. 381 Desenho 2 - Croquis da soluo volumtrica aprovada para a Casa Mnica. Arquivo IPHAN/RS .......................................................................................... 381

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 - Princpios e critrios de interveno recomendados nas cartas internacionais................................................................................. 168 Quadro 2 Conceitos bsicos sobre tipos de interveno em edificaes................................................................................................ 175 Quadro 3 Processos de tombamento abertos no IPHAN no mbito do Rio Grande do Sul................................................................................ 216 Quadro 4 - Bens tombados no Rio Grande do Sul por dcadas .............. 287 Quadro 5 Representantes do IPHAN, no Rio Grande do Sul, no sculo XX (ANEXO B)........................................................................ 476 Quadro 6 Inscries nos Livros-Tombo do IPHAN referentes ao RS.... 318 Quadro 7 - Tombamentos no RS em relao poca de construo dos bens.................................................................................................... 322 Quadro 8 - Localizao dos bens tombados em relao aos Livros- -Tombo...................................................................................................... 324 Quadro 9 - Localizao dos bens tombados no RS em relao poca de construo............................................................................. 325 Quadro 10 Classificao das edificaes tombadas no RS em relao poca do tombamento .............................................................. 326 Quadro 11a Respostas dos tcnicos ao questionrio sobre intervenes em edificaes patrimoniais no RS, referentes s perguntas n 1, n 2 e n 3........................................................................ 406 Quadro 11b Respostas dos tcnicos ao questionrio sobre intervenes em edificaes patrimoniais no RS, referentes pergunta n 4............................................................................................. 412 Quadro 11c Respostas dos tcnicos ao questionrio sobre intervenes em edificaes patrimoniais no RS, referentes pergunta n 5............................................................................................. 414 Quadro 11d Respostas dos tcnicos ao questionrio sobre intervenes em edificaes patrimoniais no RS, referentes pergunta n 6............................................................................................. 417 Quadro 11e Respostas dos tcnicos ao questionrio sobre intervenes em edificaes patrimoniais no RS, referentes pergunta n 7............................................................................................. 419 Quadro 11f Respostas dos tcnicos ao questionrio sobre intervenes em edificaes patrimoniais no RS, referentes pergunta n 8............................................................................................. 420 Quadro 11g Respostas dos tcnicos ao questionrio sobre intervenes em edificaes patrimoniais no RS, referentes pergunta n 9............................................................................................. 423

  • LISTA DE SIGLAS

    ANS Arquivo Noronha Santos (IPHAN/RJ) ARI Associao Rio-Grandense de Imprensa CECRE Curso de Especializao em Conservao e Restaurao de Conjuntos e Monumentos Histricos da Universidade Federal da Bahia - UFBa CIAM Congresso Internacional de Arquitetura Moderna CNRC - Centro Nacional de Referncia Cultural COMPAHC Conselho Municipal do Patrimnio Histrico e Cultural (Porto Alegre) CONFEA - Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia CREA Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura CTG Centro de Tradies Gachas DEPAM Departamento do Patrimnio Material DET - Diviso de Estudos e Tombamentos DEPROT Departamento de Proteo Docomomo - Documentation, conservation of buildings, sites and neighbourhoods of the Modern Movement DPHAN Diretoria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional DTC Diviso de Tombamento e Conservao EBCT Empresa Brasileira de Correios e Telgrafos ECIRS Projeto de pesquisa dos Elementos Culturais das Antigas Colnias Italianas no Nordeste do Rio Grande do Sul, da Universidade de Caxias do Sul EHTA - Encontros de Histria e Teoria da Arquitetura Embrafilme Empresa Brasileira de Filmes EPAHC Equipe do Patrimnio Histrico e Cultural FUNARTE Fundao Nacional de Arte FNPM Fundao Nacional Pr-Memria IABRS Instituto dos Arquitetos do Brasil / Seo Rio Grande do Sul IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente IBPC - Instituto Brasileiro do Patrimnio Cultural ICOMOS International Council of Monuments and Sites ICOMOS/RS - International Council of Monuments and Sites / Departamento RS ICCROM International Center for the Study of Preservation and Restoration of Cultural Property IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro IHGBRS - Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro do Rio Grande do Sul IPHAE Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico do Estado. IPHAN - Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional LIC Lei de Incentivo Cultura ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros MARGS Museu de Arte do Rio Grande do Sul MEC - Ministrio da Educao e Cultura MES Ministrio da Educao e Sade MHN Museu Histrico Nacional MJC Museu Jlio de Castilhos ONU Organizao da Naes Unidas PCH Programa das Cidades Histricas PRONAC Programa Nacional de Apoio Cultura SEC Secretaria de Educao e Cultura do Estado SMEC Secretaria Municipal da Educao e Cultura SPHAN Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional SPHAN - Secretaria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul UNE Unio Nacional de Estudantes UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura DR/SPHAN Diretoria Regional da SPHAN SR/IPHAN Superintendncia Regional do IPHAN

  • SUMRIO

    1 INTRODUO .............................................................................

    15

    2 ENCONTROS E DESENCONTROS DAS FORMAS DE PENSAR O PASSADO .................................................................. 33 2.1 Arquitetura, histria, arte e patrimnio ...................................... 33 2.1.1 Arquitetura e narrativa .............................................................. 34 2.1.2 Antiguidades e colees, ou quando o patrimnio era s Imagem ................................................................................................ 48 2.1.3 Preservao versus destruio, ou quando o patrimnio passou a ser tambm documento .................................................... 52 2.1.4 O revolucionrio monumento nacional: documento e imagem com dimenso poltica ........................................................ 62 2.1.5 A restaurao como disciplina ................................................ 71 2.1.6 Movimento moderno: entre a preservao e a destruio .... 92 2.1.7 Tempos ps-modernos: entre o falso e o verdadeiro ............ 98 2.2 Patrimnio, identidade e nao...................................................

    106

    3 TRADIO E MODERNIDADE: PASSADO, PRESENTE E FUTURO ................................................................ 119 3.1 Nao e modernidade: construir ou destruir? .......................... 119 3.2 A preservao no contexto internacional: assunto de modernos ou de conservadores?...................................................... 160 3.3 Dos ismos aos re ................................................................... 172 3.4 Entre ladrilhos modernos e azulejos coloniais .........................

    197

    4 O PATRIMNIO HISTRICO E ARTSTICO NACIONAL NO RIO GRANDE DO SUL ................................... 215 4.1 Entre guanxumas e monumentos ............................................... 215 4.2 Da sociedade civil e dos abacaxis........................................... 252 4.3 Das Misses s reas de imigrao ........................................... 290 4.4 Entre a Histria e as Belas Artes ................................................

    316

    5 ENTRE RESTAURAR E RECONSTRUIR NO SUL DO BRASIL ...................................................................................... 330 5.1 Desde conservar at mudar tudo ................................................ 330 5.2 Entre restauraes e reconstrues no Rio Grande do Sul .... 386 5.3 As restauraes pelos restauradores ........................................

    405

    6 CONCLUSES ............................................................................ 425 6.1 O Patrimnio Histrico e Artstico no Rio Grande do Sul ........ 425 6.2 Representao da imagem ou autenticidade do documento.... 431 6.3 Patrimnio: um dever de todos ...................................................

    446

  • REFERNCIAS ...............................................................................

    448

    ANEXO A .............................................................................................

    471

    ANEXO B .............................................................................................

    476

    ANEXO C .............................................................................................

    479

  • 1 INTRODUO

    A virada do terceiro milnio escancara as contradies e os avanos na trajetria da humanidade. A expanso do neoliberalismo, trazendo como uma de suas bandeiras a diminuio do papel do Estado, faz-se sentir em diversas reas, particularmente na Amrica Latina. O prprio conceito de nao tem seus fundamentos questionados. Fenmenos como a globalizao, com os processos de homogeneizao e excluso social dela advindos, acabaram produzindo, como uma das formas de reao, o fortalecimento das reivindicaes regionais e locais.

    A atuao dessas foras, no sentido de reafirmar uma identidade prpria, provocou a valorizao de um significativo patrimnio que no era, at ento, percebido como tal. Numa ao dialtica, o reconhecimento dos valores locais influenciou os mbitos mais gerais, comprometidos com a noo de desenvolvimento sustentvel paradigma a nortear a busca de dimenses mais justas e humanas para o desenvolvimento da sociedade.

    A idia do desenvolvimento sustentvel, que considera as necessidades do presente sem comprometer a habilidade das futuras geraes para atender as suas prprias necessidades, enfatizou, inicialmente, os aspectos socioambientais. Mas a sua utilizao, no senso comum, reduziu-se dimenso econmica passou a ser sustentvel aquilo que se paga a si mesmo. Para esse desenvolvimento ser alcanado em sua plenitude, no entanto, a dimenso da cultura foi incorporada s aes necessrias para um desenvolvimento mais harmonioso e justo, englobando, tambm, os interesses da sociedade em relao ao patrimnio cultural material e imaterial.

    A preservao do patrimnio cultural no busca perpetuar o passado. Representa o patamar de referncia, o conjunto das permanncias por meio das quais as sociedades se reconhecem, se identificam, constrem e reconstrem os seus valores e sua trajetria.1 Franois Choay questiona se a conservao do patrimnio no esteriliza a criao e a inovao, mas ela

    1 Sobre a noo de patrimnio associada permanncia, ver: POULOT, Dominique. Lhistoire

    du patrimoine: um essai de priodisation. In: ANDRIEUX, Jean-Yves (Org.). Patrimoine & societ. Rennes: Presses Universitaires, 1998. p. 21-34.

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    prpria contrape a esse questionamento a constatao de que no preservar privaria a sociedade de razes e de memrias indispensveis inovao.2 Ou seja, o patrimnio propicia elaborar o novo.

    O passado pode chegar at ns atravs de discursos, objetos, sons, palavras, cheiros, documentos, arquiteturas. Esses vestgios so representaes do passado, fazem a mediao entre presena e ausncia, e transmitem a sensao de estar no lugar do passado. Em particular, o patrimnio cultural material torna perceptvel esse passado ao exibir uma ordem do tempo no espao. Confere profundidade visvel, especialmente no espao urbano, existncia da sociedade.

    O passado se tornou um porto seguro para aquilo que se sonha no presente, uma espcie de ancoragem, que conta com a legitimao do Estado, a quem cabe escolher e preservar o patrimnio legalmente reconhecido. Hoje tambm os movimentos sociais tencionam essas escolhas, manifestando-se pela preservao de bens culturais de natureza material3 e imaterial. A tenso entre o novo e o antigo parece equilibrar-se um pouco mais em relao ao passado, mas o conceito tende estender-se em demasia: uma obsesso pelo passado atinge as sociedades industriais do ocidente e tudo se torna patrimnio: a arquitetura, as cidades, a paisagem, os edifcios industriais, o equilbrio ecolgico, o cdigo gentico".4

    2 CHOAY, Franoise. A propos de culte et de monuments. In: RIEGL, Alois. Le culte moderne

    des monuments. Paris: Seuil, 1984. p. 7-19. 3 A preservao dos bens materiais de relevncia local, no entanto, vive uma situao

    contraditria, pois raramente os poderes pblicos legitimam seu valor como bens culturais, apesar dos mesmos serem valorizados pelas comunidades. O Movimento Petrpolis Vive, de Porto Alegre, por exemplo, reivindica h anos a proteo da Casa da Estrela, ameaada de demolio no Bairro, bem como a preservao da Caixa dgua da Praa Mafalda Verssimo, equipamento pblico ameaado de demolio pelo prprio Poder Pblico, mas ambos no foram reconhecidos oficialmente como patrimnio at o momento. Nesse contexto tambm se apresentam as demandas populares em relao a tombamentos aprovadas no Oramento Participativo de Porto Alegre, que nunca chegaram a serem aprovadas pela Prefeitura Municipal. Sobre este ltimo exemplo, ver: MEIRA, Ana Lcia. O passado no futuro da cidade: polticas pblicas e participao dos cidados na preservao do patrimnio cultural de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed.UFRGS, 2004. No que se refere aos bens imateriais, as premissas so diversas, pois os inventrios e as aes de salvaguarda implicam uma parceria necessria e indispensvel entre os poderes pblicos e as comunidades detentoras desses bens. 4GUILLAUME, Marc. La politique du patrimoine. Paris: Galile, 1980. p. 12. Ver tambm, sobre o assunto: AUDRERIE, Dominique. Questions sur le patrimoine. Bordeaux: Confluences, 2003.

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    Nesse contexto, o patrimnio arquitetnico passou a adquirir um valor de troca para o mercado vido de consumo. Nunca se falou tanto em patrimnio na mdia, nunca se investiu tanto em patrimnio por meio do patrocnio de empresas e dos oramentos institucionais, nunca a populao se manifestou tanto em favor da preservao de seu legado histrico. Na arquitetura, nunca houve tantas intervenes em preexistncias construdas de palacetes a casas populares , apresentando critrios diversos e resultados heterogneos.

    E nunca os alunos de arquitetura desenvolveram, em seus trabalhos de graduao, tantos projetos relacionados ao tema. Diz Frota que projetar arquitetura, hoje, atuar cada vez mais no lugar j edificado. A utopia de construir grandes cidades j faz parte do passado.5 Essa vontade de preservar no uma atitude puramente nostlgica. Est relacionada a um futuro que no mais seduz, com a perspectiva das incertezas, do individualismo, da alienao, da ameaa das memrias artificiais sobrepondo-se memria social, do desaparecimento dirio e irreversvel de bens naturais e culturais, bem como de muitos outros fatores.

    Porm, apesar de constar da pauta dos arquitetos, devido insero recente de uma disciplina obrigatria nos currculos das faculdades de Arquitetura denominada Tcnicas Retrospectivas, a preservao do patrimnio arquitetnico e urbanstico ainda uma preocupao restrita, e h um longo caminho a ser percorrido at que se torne parte do cotidiano da sociedade.

    No incio do sculo XX, eram raras as notcias sobre patrimnio na imprensa, assim como eram escassas as obras de restaurao ou reabilitao nos bens arquitetnicos no Brasil e no Rio Grande do Sul. Com o tempo, as intervenes se multiplicaram, os critrios de referncia foram mudando, e a preservao se tornou notcia mais assdua. Em todos os momentos, porm, esto representadas as formas como a sociedade viu e reagiu diante do seu passado remanescente, materializado no espao. Cada momento histrico apresenta formas diferentes de relacionar-se com esse passado: selecionando, restaurando, renunciando, demolindo, abandonando,

    5 FROTA, Jos Artut DAl. Re-arquiteturas. KIEFER, Flvio; LIMA, Raquel R.; MAGLIA,

    Viviane Villas Boas (Org.). Crtica na Arquitetura: V Encontro de Teoria e Histria da Arquitetura. Porto Alegre: Ritter dos Reis, 2001. p. 219-221. p. 221.

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    modernizando, registrando, reaproveitando, ampliando, reconstruindo. Portanto, o passado no neutro.

    Alguns momentos so emblemticos na trajetria brasileira, como a criao do SPHAN Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional,6 em 1937; a promulgao da chamada Lei da Arqueologia, em 1961; a criao do Centro Nacional de Referncia Cultural CNRC, em 1975; o Programa das Cidades Histricas PCH, em 1977;7 a criao do Programa Monumenta, em 1999; o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, em 2000.8 No Brasil, a identificao das diversas posturas em relao aos bens tombados, expressa nas aes de preservao realizadas durante o sculo XX, representativa de um olhar sobre esse passado o olhar da nao que constri uma identidade. Essa relao existiu de maneira diferente em cada lugar e em cada momento histrico.

    Assim, parte-se do princpio de que patrimnio, temporalidade e territorialidade so conceitos relacionados, pois, a cada tempo e a cada lugar, a sociedade e o Estado definem o que se tornar patrimnio ou o que vai perder-se no caminho;9 o que vai permanecer como parte do fenmeno urbano, no caso das cidades, adquirindo e readquirindo significados; ou o que vai transformar-se em memrias ou perder-se no esquecimento. O filsofo humanista Ficino registrou que a cidade no feita de pedras, mas de homens.10 A esse pensamento se pode agregar o de Argan, quando observa

    6 O atual IPHAN teve vrias denominaes ao longo do tempo: SPHAN - Servio do Patrimnio

    Histrico e Artstico Nacional (1937 a 1946); DPHAN - Diretoria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (1946 a 1970); IPHAN - Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (1970 a 1979); Fundao Nacional Pr-Memria e SPHAN - Secretaria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (1979 a 1990); IBPC - Instituto Brasileiro do Patrimnio Cultural (1990 a 1994); e, novamente IPHAN, a partir de 1994. Cf. PESSOA, Jos. Introduo: o que convm preservar. In:_____ (Org.). Lucio Costa: documentos de trabalho. Rio de Janeiro: IPHAN, 1999. p. 11-19. p.11. Nesta tese, para facilitar o entendimento, ser adotada a denominao de SPHAN para o perodo que se estende at 1967, conhecido como fase herica e de IPHAN a partir da. 7 Ver SPHAN. Fundao Nacional Pr-Memria. Proteo e revitalizao do patrimnio

    cultural no Brasil: uma trajetria. Rio de Janeiro: Fundao Nacional Pr-Memria, 1980. 8 IPHAN. Coletnea de Leis sobre preservao do patrimnio. Rio de Janeiro: IPHAN,

    2006.(Edies do Patrimnio). 9 Admite-se aqui que no s a nomeao oficial, representada pelo tombamento, inventariao

    e outras formas de acautelamento, definidora do que patrimnio em determinado tempo e lugar. Tambm o que a sociedade reivindica, embora no legitimado pelo Estado, tambm pode constituir-se em patrimnio. Ver exemplos do Moinho Monteggia e outros, em Porto Alegre, em MEIRA, 2004. 10

    FICINO, Marcilio apud ARGAN, Giulio Carlo. Histria da arte como histria da cidade. So Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 228.

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    que so "os homens que atribuem um valor s pedras e todos os homens, no apenas os arquelogos ou literatos. Devemos, portanto, levar em conta no o valor em si, mas a atribuio de valor, no importa quem a faa e a que ttulo seja feita".11 Essa atribuio de valor passa a destacar determinados bens, materiais ou imateriais, que se transformam em patrimnio para uma determinada sociedade.

    O que considerado patrimnio por um grupo pode no ser para outro. Pode haver unanimidade ou discordncia, e, nesse processo, deve-se levar em conta que a nomeao oficial como patrimnio atribuio do Estado. Os elementos assim nomeados passam a fazer parte de um universo que ser preservado para o futuro.12 Jeudy observa que "o patrimnio no um depsito de memrias".13 Hartog refora esse pensamento ao sugerir que o patrimnio o alter ego da memria, em sua dimenso mais visvel e tangvel.14 O patrimnio cultural visvel fisicamente, mas a memria, no.

    A memria estabelece uma relao afetiva com o passado, o conforma e o deforma. Nora observa que a memria "se enraza no concreto, no espao, no gesto, na imagem, no objeto".15 Ela continuamente modificada atravs dos traos que a constituem, das experincias novas que se sucedem, dos novos significados que adquire, da alterao na ordem das lembranas. Contudo, os valores hegemnicos e a consagrao oficial acabaram fortalecendo uma memria monumental em detrimento de outros elementos que constituem a memria coletiva, em prtica que vem aos poucos sendo modificada.

    Em sua raiz latina, patrimonium est relacionado a paterno e a ptria. Embora tenha diversas acepes, a que nos interessa a que relaciona patrimnio com a cultura produzida pelo homem o patrimnio cultural. Parte desse patrimnio imaterial, e outra parte, onde se insere a arquitetura, formada pelos bens culturais materiais. O patrimnio material edificado, objeto

    11 ARGAN, 1992. p. 228.

    12 SOWA, Axel. Le futur du "classique moderne". L'Architecture d'Aujourd'hui, Paris, n. 343,

    p. 52-56, nov.dec. 2002. 13

    JEUDY, Henri-Pierre. Memrias do social. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1990. p 13. 14

    HARTOG, Franois. Regimes d'historicit. Paris: Seuil, 2003. p. 16. 15

    NORA, Pierre. Entre memria e histria: a problemtica dos lugares. Projeto Histria, So Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993.

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    desta tese, torna visvel o passado, de maneira esttica, no espao, enquanto o patrimnio imaterial torna visvel o passado passado a limpo continuamente. As prticas sociais, mesmo ancoradas no passado, so continuamente recriadas, e tambm elas tm uma dimenso material em seus elementos constitutivos, como os instrumentos, os lugares, as mscaras, as fantasias e os andores.

    Uma definio de patrimnio que interessa ao objeto tratado nesta tese dada pela Carta de Veneza de 1964, em que o conceito abarca no s a obra de arquitetura isolada, mas tambm "o stio urbano ou rural que d testemunho de uma civilizao particular, de uma evoluo significativa ou de um acontecimento histrico".16 O conceito se aplica no apenas a grandes obras de arte de carter monumental ou excepcional, "mas tambm s obras modestas do passado que tenham adquirido, com o tempo, uma significao cultural".17 A UNESCO, na Conveno para a Proteo do Patrimnio Cultural e Natural Mundial, em 1972, prope uma indispensvel interao entre os conceitos de bem cultural e bem natural e considera como patrimnio cultural:

    [...] *os monumentos: obras de arquitetura, de escultura ou de pintura monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueolgica, inscries, cavernas e grupos de elementos que tenham de valor universal do ponto de vista da histria, da arte ou da cincia. *os conjuntos de edificaes: grupos de construes isoladas ou reunidas que, em virtude de sua arquitetura, unidade ou integrao na paisagem, tenham um valor excepcional do ponto de vista da histria, da arte ou da cincia. *os stios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como as reas que incluam stios arqueolgicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histrico, esttico, etnolgico ou antropolgico.18

    Se adequarmos a atribuio de valor universal para o mbito dos valores em nvel nacional, as categorias elencadas pela UNESCO so pertinentes aos objetos aqui tratados, pois contm as tipologias bsicas dos

    16 ICOMOS. Carta de Veneza. In: CURY, Isabelle (Org.). Cartas patrimoniais. 3. ed. Rio de

    Janeiro:IPHAN, p.91-95, 2004, p.92. 17

    Idem, ibidem, p. 92. 18

    UNESCO. Conveno sobre a salvaguarda do patrimnio mundial, cultural e natural. In: CURY, 2004, p.178-193. p.178. A UNESCO foi criada em 1945, no marco da Organizao das Naes Unidas ONU, com vista a contribuir para a paz por meio da cultura.

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    bens considerados Patrimnio Histrico e Artstico Nacional no sculo XX. Muitas crticas so feitas no sentido de ressaltar que, nas primeiras dcadas da preservao do patrimnio, no Brasil, foram privilegiados bens representativos da primeira categoria os monumentos. No entanto, essa crtica pode ser relativizada quando se observam os Livros-tombo do IPHAN, como ser visto adiante, nos quais ocorrem exemplos que se distanciam dessa categoria. Mais recentemente, no final do sculo XX, os bens imateriais foram incorporados s polticas de preservao no Brasil e se reportam representatividade das prticas culturais, em oposio excepcionalidade.

    O patrimnio no existe fora do campo das representaes pressupe atribuio de significados e de valores que mudam com o tempo, com a sociedade. Carlos Mars ressalta que o sentido da preservao "no pela materialidade existente, mas pela representao, evocao ou memria que lhe inerente".19 Assim, preserva-se porque o patrimnio cultural portador de referncias para a sociedade. A preservao relaciona-se destruio, assim como a memria est ligada ao esquecimento.20 No possvel lembrar tudo, assim como no possvel preservar tudo, pois a construo da sociedade ficaria paralisada.

    Ao escolher o que deve ser preservado como patrimnio, est-se definindo, tambm, o que pode ser descartado. A dicotomia entre preservar ou demolir, por deciso tanto do poder pblico quanto do proprietrio de um bem, remete ao dilema entre passado e futuro e pressupe uma conscincia da temporalidade que reflete as relaes do homem com a sua histria. Essas dualidades relacionam-se a outras oposies, como entre memria e esquecimento, modernidade e antiguidade, classicismo e romantismo, alienao e identidade, histria e mito, autenticidade e simulacro, tradio e inveno, verdade e representao, imagem e documento. Estas duas ltimas tm relao direta com o problema apresentado na tese, embora as outras oposies sejam tambm referidas ao longo do texto.

    19 SOUZA FILHO, Carlos Mars de. Bens culturais e proteo jurdica. 2. ed. rev. Porto

    Alegre: Secretaria Municipal da Cultura, Unidade Ed., 1999. p. 53. 20

    SAINT CHERON, Michael. Prologue. In: ______ (Org.). De Ia mmoire Ia responsabilt: dialogue avec Genevieve de Gaulle Anthonioz, Edgar Morin, Emmanuel Levinas. Paris: Dervy, 2000. p. 7-14. p. 13.

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    Esta tese, sobre O Patrimnio Histrico e Artstico Nacional no Rio Grande do Sul no sculo XX: atribuio de valores e critrios de interveno, aborda temas relacionados preservao do patrimnio. Foram formuladas duas hipteses, sendo uma referente proteo e outra referente conservao nos bens tombados em nvel nacional. A primeira aborda os valores atribudos aos tombamentos e a segunda, os critrios aplicados nas intervenes visando a sua conservao.

    Quanto hiptese 1, no que tange aos tombamentos efetivados pelo IPHAN, no Rio Grande do Sul, foram relacionados valores histricos mais do que valores artsticos. Isso poderia ter ocorrido por influncia do prprio Estado, devido tradio da cultura rio-grandense de cultivar a histria regional e valorizar os feitos histricos. Ou poderia ser conseqncia dos atributos eleitos pela Instituio, desde o Rio de Janeiro, para representar o patrimnio artstico, nos quais o Rio Grande do Sul no se enquadraria.

    Em relao hiptese 2, a restaurao dos bens arquitetnicos tombados oscilou entre a proteo ao documento, que privilegiou a autenticidade dos elementos construtivos e tipolgicos das edificaes, e a busca da imagem como representao, que valorizou a consagrao de aspectos visuais representativos de determinadas idias coletivas. Pensou-se, inicialmente, que, se os bens edificados foram tombados pelos valores histricos, nas iniciativas de restaurao prevaleceram os critrios que privilegiavam a autenticidade; portanto, o documento. Nos casos em que o valor atribudo foi o artstico, os critrios tenderam a relegar a autenticidade em favor da construo de uma imagem almejada. A primeira postura seria encontrada com maior nfase nas intervenes referente s primeiras dcadas de atuao do SPHAN no Estado, e a segunda, nas dcadas finais do sculo XX.

    Comeando pela segunda hiptese, verificou-se que as obras de restaurao realizadas no Rio Grande do Sul, no sculo XX, tiveram por objetivo, em alguns momentos, produzir uma representao/imagem desejada das edificaes restauradas, privilegiando a consagrao de aspectos visuais e, em outros, buscaram a salvaguarda de um documento herdado, procurando preservar os elementos constitutivos autnticos das mesmas. A busca do

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    documento na restaurao representa a preservao daquilo que efetivamente existiu enquanto matria. H uma preocupao com a verdade do acontecido.

    A imagem, por sua vez, busca aquilo que a edificao poderia ter sido e representa uma construo imaginria. Constri uma significao que se oferece em termos de credibilidade ou verossimilhana. Essa oscilao entre documento e imagem vai marcar as intervenes sobre os bens tombados no sculo XX e, certamente, est relacionada s mudanas culturais que ocorreram, no sculo passado, devido a muitos fatores. Porm, isso no quer dizer que o documento seja verdadeiro; e a imagem, falsa.

    Foram estudadas as intervenes executadas no Rio Grande do Sul sobre os bens arquitetnicos tombados em nvel nacional, ao longo do sculo XX, analisando-se em que medida as restauraes, conservaes, consolidaes, reciclagens e outras, aproximaram-se ou afastaram-se dos problemas formulados na tese. Essas intervenes foram comparadas com as teorias ou critrios consagrados sobre a disciplina da restaurao. A anlise foi centrada sobre as obras executadas, que refletem prioridades tanto por parte das esferas pblicas quanto da sociedade, pois envolvem aplicao de recursos. Foi investigado, no que diz respeito s execues de obras nos bens tombados, se houve maior rigor cientfico nas primeiras dcadas de atuao do IPHAN e se, nas ltimas dcadas do sculo XX, as intervenes tiveram em conta critrios como a autenticidade ou se preocuparam mais com a imagem das edificaes no espao urbano.

    O SPHAN, nas primeiras dcadas de atuao, incumbia-se do conhecimento sobre a histria e o patrimnio do territrio brasileiro, realizava estudos, executava obras. Pressups-se que houve um rigor maior nas intervenes em bens tombados nesse perodo, conhecido como fase herica, sendo que, nas ltimas dcadas do sculo XX, em tempos ps-modernos, os critrios teriam se flexibilizado. Embora no houvesse, naquela poca, cursos de especializao ou mestrado em restaurao do patrimnio arquitetnico, os mtodos ligados observao crtica, ao uso do desenho como ferramenta de registro, discusso qualificada das alternativas de interveno e execuo das obras com mo de obra qualificada, levaram a solues que tinham por objetivo a preservao de documentos arquitetnicos. Partiu-se da suposio

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    de que os arquitetos modernos tinham uma preocupao maior com a autenticidade dos elementos tipolgicos, construtivos e ornamentais.

    A participao da vanguarda intelectual modernista na formao do SPHAN foi muito significativa. Lucio Costa, Carlos Drummond de Andrade, Oscar Niemeyer, Srgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, Carlos Leo, Manuel Bandeira, Mrio de Andrade faziam parte da instituio ou auxiliavam em alguns trabalhos. O conhecimento desses arquitetos e intelectuais sobre teoria e critrios de restaurao certamente ocorria. Eles eram tributrios de um acmulo de discusses sobre o tema que j durava vrias dcadas. Diante dessas constataes, algumas perguntas se agregaram como complementares ao enunciado do problema aqui apresentado: Qual a corrente a que se filiavam? Os critrios eram homogneos nas diversas regies brasileiras? Como isso se refletiu em nosso estado? Certamente, houve diferentes solues que a modernidade encontrou para lidar com o passado.

    As correntes de restaurao se relacionaram com mtodos e com critrios de interveno diferenciados ao longo do tempo. Basicamente, compreendem a restaurao estilstica (postulados de Viollet-Le-Duc), a cientfica (postulados de Gustavo Giovannoni) e a crtica (teoria de Cesare Brandi). H, ainda, a negao da restaurao nos postulados de John Ruskin, bem como posturas contemporneas que problematizam o assunto. No sculo XX, as Cartas Internacionais, particularmente a de Veneza, passaram a estabelecer critrios de interveno que so aceitos em nvel internacional, mas nem sempre aplicados na prtica.

    As posturas que se abrigam sob a preocupao com o valor documental so as que consideram o bem edificado como um documento cujas evidncias materiais autnticas de sua trajetria devem ser respeitadas. Como palavras-chave ou noes que compem esse universo tm-se autenticidade, respeito s contribuies ao longo do tempo, purismo, conhecimento prvio, integrao entre partes diversas. As intervenes cujos fins privilegiam a imagem como representao do bem arquitetnico, no importando a manuteno da autenticidade da matria, dos elementos construtivos e dos espaos originais, tm por objetivo recriar uma imagem que pode ter existido ou que pode ser uma imagem almejada. Admitem que o resultado final de uma interveno possa ser um simulacro ou rplica. As palavras-chave para esse

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    caso so colagem, fragmentao, pluralismo, substituio, representao, complexidade.

    Cabe esclarecer que no se est privilegiando, neste caso, o conjunto das representaes arquitetnicas, ou seja, as imagens grficas da arquitetura consubstanciadas em croquis, em desenhos necessrios concepo dos projetos, perspectivas, memoriais descritivos, nem a produo de imagens do tipo postais, fotos e vdeos comuns em relao arquitetura monumental.21 Embora esses elementos, que representam um projeto futuro a construir ou um objeto j construdo e admirado, possam servir como fonte de pesquisa, trata-se, aqui, de analisar a imagem transmitida pela arquitetura concretamente materializada no espao urbano ou na rea rural. Em suma, pretende-se avaliar em que medida o patrimnio edificado foi preservado enquanto documento ou enquanto imagem.

    No caso da arquitetura, documento e imagem podem ser oposio. A imagem pode no ser um documento como, por exemplo, nas reconstrues que produzem simulacros destitudos de valor histrico ou arquitetnico, ou no caso em que miniaturas de edificaes de lugares histricos ou iconografias so reproduzidas para turistas. A arquitetura detm, alm das funes que exerce na atualidade, uma imagem como representao daquilo que ela foi um dia. tambm discurso, como um texto que conta uma histria que passou. A imagem fornecida pela arquitetura, nesse sentido, tem o mesmo potencial que um romance ou uma poesia, com poder de deslocar o espectador no espao e no tempo. Alm de narrar episdios, atesta a veracidade dos mesmos.22 Como representao, preciso que seja decifrada e que se faa uma interpretao, referente a contextos determinados.23

    A primeira hiptese formulada na tese enfoca um assunto importante, tendo em vista o desconhecimento sobre a trajetria da preservao no Rio Grande do Sul. Foram realizadas comparaes sobre a modificao dos valores associados aos tombamentos, desde as motivaes histricas s de ordem cultural, bem como a atuao dos poderes pblicos e da

    21 Sobre esse tema ver: JUNGMANN, Jean-Paul. Limage en architecture. Paris: La Villette,

    1996. 22

    LAVENIR, Catherine Bertho. La visite du monument. Clermont-Ferrand: Blaise-Pascal, 2004. 23

    PESAVENTO, Sandra J. Em busca de uma outra histria: imaginando o imaginrio. Revista Brasileira de Histria, So Paulo, v. 15, p. 9-27, 1995.

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    sociedade civil, com o fim de elucidar o problema: verificar o que foi preservado, por que e para quem.

    O conceito de valor histrico, tradicionalmente, era associado a fatos polticos como guerras, batalhas, a grandes personagens da histria oficial, ou a referenciais econmicos, representativos dos chamados ciclos econmicos, como o ciclo da cana de acar, o ciclo do caf, etc., e tambm aos seus prceres. Com o tempo, essa noo foi-se ampliando. Questiona-se, ento, se essa ampliao do conceito se refletiu nos tombamentos.

    O valor artstico pode estar relacionado, segundo Katinsky,24 a uma qualidade artstica aferida tecnicamente, a uma excelncia artstica relacionada ao grau de organizao social ou aferio tradicional, por meio do consenso em torno dos objetos em um dado momento e lugar. Aproxima-se do reconhecimento da obra de arte preconizado por Riegl e por Brandi, que sero analisados nos prximos captulos. Ele rigorosamente convencional, mas no arbitrrio,25 ou seja, regido por convenes e balizado por referncias datadas, como a habilidade tcnica e a capacidade de inovao.

    Aplicado aos bens arquitetnicos, segundo Katinsky, o valor artstico ocorre quando se apresentarem, sob os aspectos do hbito e da criatividade, as qualidades estabelecidas h sculos para definir a beleza na arquitetura e que j foram vrias vezes modificadas na sua trajetria: a disposio dos espaos, a firmeza ou excelncia da construo, a coerncia dos elementos constitutivos.26 No caso do SPHAN, nos primeiros anos, no existia uma formulao estabelecida para esse valor, mas casos como o da igreja Matriz de Rio Grande e o da casa feita de material missioneiro ajudaram a elucidar o que se entendia como valor artstico.

    Verificou-se como se relacionaram as posturas da administrao central do IPHAN e as especificidades locais, como se apresentaram os valores, os conceitos, as aes e os agentes que ajudaram a construir a preservao. Foi possvel, a partir do levantamento proposto, avaliar qual a contribuio do Estado na construo do patrimnio histrico e artstico

    24 KATINSKY, Jlio R. Critrios de Classificao dos bens arquitetnicos do Estado de So

    Paulo. Sumrio, So Paulo, dez.1999. p.15-24. 25

    Idem, ibidem, p.21. 26

    Ver no Captulo 2, as disposies de Vitrvio, Cordemoy e Alberti sobre a beleza arquitetnica.

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    nacional ao longo do tempo e verificar em que medida ele ganhou autonomia ou foi executor de uma poltica centralizada. Tendo em vista as caractersticas da formao histrica do Rio Grande do Sul, ocorreram situaes peculiares na trajetria da preservao em dois momentos emblemticos da preservao no Brasil no Estado Novo e na Ditadura Militar, quando houve governantes gachos. Procurou-se verificar as influncias polticas na priorizao ou na definio de determinadas escolhas e aes nesses perodos.

    Estes temas ainda no haviam sido estudados em relao ao Rio Grande do Sul. Mesmo em outros estados, rara a bibliografia que comente, de maneira crtica, os critrios de atribuio de valor em relao aos bens patrimoniais e, de modo especfico, as intervenes sobre o acervo edificado preexistente. Em geral, a produo acadmica centrada nas polticas de preservao empreendidas pelo IPHAN, como nos trabalhos de Maria Ceclia Londres, Jos Reginaldo Gonalves e Lauro Cavalcanti, em artigos veiculados na Revista do Patrimnio, em dissertaes de mestrado e comunicaes realizadas em congressos.

    So raros os trabalhos que analisam intervenes nos bens edificados luz das teorias de restaurao e das cartas internacionais. Como exemplos, podemos citar a tese de Luiz Antnio Dias de Andrade defendida na USP Estado completo que pode jamais ter existido e as dissertaes de Antonio Jose Aguilera Fenomenologia e a teoria da restaurao: a fundamentao da Teoria da Restaurao de Brandi, em que so analisados casos prticos, e de Alessandra Gibelli As teorias de restaurao e suas aplicabilidades, em que citado o caso do Pao Imperial, sendo ambas defendidas na UFRJ. A trajetria do IPHAN no Rio Grande do Sul no que se refere s intervenes era, em boa parte, desconhecida no Estado.

    Quanto ao mtodo de trabalho, inicialmente, realizou-se um esforo para entender a origem de alguns campos que buscam formas de pensar o passado: a arqueologia, a histria, a preservao do patrimnio e, especificamente, a restaurao. A ao de restaurar envolve a construo daquilo que se quer ou daquilo que se imagina ou se sonha. Tratando-se de patrimnio histrico e artstico, foi importante retomar, alm da histria, os conceitos e a trajetria da arte, que tambm adjetivam o tema, e os seus momentos de encontro e desencontro.

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    Foi pesquisado o foco de ateno dos modernos nos primeiros anos de construo do patrimnio nacional, por meio de consulta a publicaes e aos processos de tombamento que se encontram no Arquivo Noronha Santos,27 na sede do IPHAN no Rio de Janeiro, e na Casa de Rui Barbosa, onde est depositado o acervo de Augusto Meyer, ambos no Rio de Janeiro, bem como no Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro do Rio Grande do Sul e na Biblioteca Pblica estadual. Verificou-se o que foi tombado como patrimnio no Estado, durante o sculo XX, precisando quais os valores associados e por iniciativa de quem foram solicitados os tombamentos.

    A seguir, foram identificados os bens arquitetnicos em relao aos quais foram idealizados projetos ou executadas obras, nos arquivos do IPHAN, em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. O Arquivo do IPHAN, na regional de So Paulo, foi uma importante lacuna, pois est inacessvel. Foram entrevistados, tambm, arquitetos que atuaram no campo da preservao no estado, com vistas a esclarecer determinados aspectos das escolhas realizadas nos tombamentos e dos critrios adotados nas obras.

    Feitas as anlises desses e de outros exemplos, foi possvel perceber qual a posio dos modernistas nas primeiras dcadas de atuao do rgo nacional de patrimnio no sul do Brasil, que caminhos foram trilhados, que opes foram realizadas pela instituio e quais os arquitetos responsveis pelas restauraes no Rio Grande do Sul. E para verificar o grau de pertinncia da crtica corrente sobre o subjetivismo acerca da atuao dos tcnicos dos rgos de preservao, foi enviado um questionrio a trinta profissionais de diversos rgos e tambm a arquitetos autnomos com atuao relacionada ao tema, cujos resultados foram muito interessantes.

    No caso das obras, foi importante a pesquisa, pois, historicamente, o IPHAN sempre desempenhou um papel de referncia para as instituies e os tcnicos que trabalham no campo do patrimnio. Estudaram-se as obras do sculo passado, como as realizadas nas runas missioneiras de So Miguel Arcanjo, a partir da dcada de 1920; na Igreja N. S. da Conceio de Viamo, nas dcadas de 1950 e 1960; na Casa de David Canabarro, em

    27 O Arquivo Noronha Santos o arquivo central do IPHAN, localizado na sua sede no Rio de

    Janeiro. Guarda a documentao sobre a atuao do Instituto at os anos 1970, incluindo os processos de tombamento. tambm responsvel pela guarda do Livros-Tombo.

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    Santana do Livramento, nos anos 1950; na Casa do Dr. Mnica, em Antnio Prado, nos anos 1990, e outras. Esse mapeamento permitiu avaliar as modificaes de posturas ocorridas ao longo do sculo, revelando o incio de determinados tipos de interveno e sua incidncia em cada perodo.

    Os projetos e as obras foram classificados a partir do estabelecimento de conceitos relacionados ao campo da restaurao. Para exemplificar os conceitos de maneira mais clara, eventualmente foram includas obras em edificaes protegidas pelas esferas de governos estadual ou municipal e, tambm, obras executadas em edificaes no protegidas, mas consideradas como patrimnio no senso comum. Este o caso do solar da famlia Sopher, construdo em Porto Alegre, e que foi trasladado para Canela como casa de veraneio dos Governadores de Estado. Apesar de no ser reconhecida pelos preservacionistas como um patrimnio e da operao ter sido criticada na poca, devido ao seu alto custo, o ato associado, em geral, a uma ao de preservao.

    As runas de So Miguel Arcanjo, no municpio de So Miguel das Misses, constituem-se no patrimnio mais emblemtico do Rio Grande do Sul. Foi o primeiro local reconhecido oficialmente como lugar histrico pelo Governo do Estado, em 1922, e tambm a obra pioneira realizada em um bem arquitetnico no Estado. Nos anos 1920, sofreu uma obra de estabilizao promovida pelo poder pblico estadual, que consistiu na colocao de trilhos de ferro, que impediram o desabamento da antiga igreja. Assim, devemos interveno no incio do sculo o fato de podermos, hoje, contemplar as runas. O tombamento como Patrimnio Histrico e Artstico Nacional ocorreu em 1938.

    De lugar histrico e patrimnio nacional, as runas de So Miguel Arcanjo passaram, sessenta anos depois do primeiro ato, a ostentar o ttulo de Patrimnio Cultural da Humanidade o nico na regio sul do Brasil, o que as torna mais uma vez especiais. Esse perodo coincide com as consultorias tcnicas da UNESCO introduzindo, no Brasil, mtodos cientficos de anlise das edificaes para qualificar as intervenes. So Miguel Arcanjo acumulou, ao longo do sculo XX, trs nveis de distino como patrimnio: regional, nacional e mundial. No intervalo desses reconhecimentos, ocorreram diversas obras, que foram refletindo, em diversas pocas, maneiras diferentes

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    de olhar as runas, o que revelou critrios e mtodos de interveno diferenciados.

    Como as obras nas runas de So Miguel Arcanjo so as de mais longa durao no Rio Grande do Sul (estendem-se at o presente e, certamente, continuaro por muitas dcadas mais), associadas ao fato de tratar-se do patrimnio mais reconhecido do Estado, as mudanas de olhar, as normas, os critrios, as novidades tcnicas e conceituais foram ali aplicadas antes de serem a outros monumentos. Pode-se dizer que as pedras missioneiras revelam as posturas significativas de preservao que ocorreram, no sculo XX, sobre o patrimnio edificado. Equvocos e acertos, sob o ponto de vista atual, puderam ser ali apontados.

    Nas dcadas de 1920 a 1940, as runas missioneiras de So Miguel Arcanjo foram as protagonistas privilegiadas em termos de interveno em monumentos, mesmo porque no so conhecidas outras obras realizadas, naquele perodo, no Rio Grande do Sul. Da dcada de 1950, analisaram-se as obras realizadas pelo SPHAN na Casa de David Canabarro, cuja feio original era completamente diferente da encontrada na poca do tombamento.

    Diferentemente de So Miguel, que foi inscrita no Livro-tombo das Belas Artes, a Casa foi tombada por razes histricas, como o "repouso da guia",28 representando o mito dos heris da Revoluo Farroupilha. Foram aferidas, nesse caso, quais as diferenas de postura em relao a um bem arquitetnico sem valor esttico, cuja feio foi completamente modificada ao longo do tempo. A Igreja N. S. da Conceio de Viamo, por sua vez, sofreu algumas intervenes que modificaram sua fisionomia externa. Inscrita no Livro-Tombo das Belas Artes em 1938, a anlise das vrias obras ali executadas permitiu a verificao dos critrios utilizados nas restauraes.

    Foram pesquisadas outras obras realizadas pelo IPHAN ao longo do tempo como, por exemplo, as restauraes executadas nos bens tombados nas reas de imigrao na dcada de 1990. Constituem-se em um marco, pois representam a um novo marco no conceito de patrimnio que, de histrico e artstico, passou a cultural. Essa ampliao atribuda gesto de Alosio Magalhes, secretrio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional e presidente

    28 Expresso cunhada por Ivo Caggiani em correspondncia cuja cpia se encontra no acervo

    do Museu de David Canabarro, em Santana do Livramento.

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    da Fundao Nacional Pr Memria, entre 1979 e 1982.29 A Casa Mnica, integrante do conjunto arquitetnico de Antnio Prado, foi restaurada pelo proprietrio, adquirindo uma feio diferente da original e diversa da situao existente por ocasio do tombamento. A profunda alterao em sua imagem em favor de uma soluo mais pitoresca leva a crer, no final do sculo XX, que a falta de critrios claros nas intervenes teria comeado a proliferar.

    Nas ltimas dcadas do sculo XX, as intervenes passaram a ser mais numerosas. A preocupao com a imagem passou a preponderar nas reciclagens em que se conservou o paramento externo das edificaes, mas, interiormente, os espaos foram totalmente modificados. As reciclagens trabalham sobre preexistncias construdas que fundamentam a memria coletiva, possivelmente para garantir sua relao com o pblico atravs de uma imagem conhecida. H, tambm, as reconstrues que ocorrem, mas que passam despercebidas aos olhos dos leigos. Nesse contexto, provvel que as intervenes nos bens tombados tenham tido uma flexibilizao quanto aos critrios de interveno.

    Essa postura est relacionada ao quadro da economia mundializada ou globalizada e atrao que os bens patrimoniais passaram a ter nesse contexto, como foi dito no incio deste texto. No caso das reciclagens, ao estabelecer o no-rompimento com os cdigos estticos j estabelecidos, ou seja, ao no propor uma fachada contempornea obra que est sendo executada, e sim manter a antiga, os arquitetos garantem a continuidade de sua comunicao com o pblico, atuando no nvel das aparncias; portanto, das imagens como representao.

    como se os elementos da nossa tradio edificada fossem extrados do contexto da histria e atualizados pela introduo de uma esttica contempornea em seu interior, mas cuidando para impressionar sem sobressaltos nossos sentidos no que se refere aos aspectos externos. A arquitetura contempornea, nesses casos, em vez de assumir suas caractersticas tipolgicas e estticas externa e internamente, configurando um objeto novo no espao urbano, continua com a feio externa familiar ao meio

    29 Alosio Magalhes assumiu a direo do IPHAN em 1979. Na poca, a instituio se dividiu

    em Secretaria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional e Fundao Nacional Pr-Memria, sendo esta ltima o brao executivo das polticas formuladas pela SPHAN.

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    no qual se insere. Apesar de nenhuma obra tombada como patrimnio histrico e artstico nacional ter sofrido este tipo de interveno, a anlise desse tipo de soluo, bem como outras (reabilitao, reconstruo, recomposio, etc.), foram tambm estudadas adiante.

    Esta tese demonstra, em ltima anlise, as relaes da sociedade rio-grandense com o seu passado, sendo a mediao realizada pelos rgos de patrimnio, neste caso, o IPHAN. E leva a refletir se o trabalho com o patrimnio nos conduz sacralizao dos bens patrimoniais ou dessacralizao do passado, se nos leva a uma atitude conformista em relao aos valores herdados ou ao exerccio da crtica.

  • 2 ENCONTROS E DESENCONTROS DAS FORMAS DE PENSAR O PASSADO

    A paixo faz das pedras um drama. (Le Corbusier)

    A aproximao entre os campos do patrimnio e da arquitetura parece natural nas sociedades ocidentais em que, tradicionalmente, os arquitetos se incumbiram do tema e associaram o conceito a uma imagem visual edificada.30 Para auxiliar na anlise proposta nesta tese, foi necessrio rever alguns conceitos prprios da disciplina. Particularmente, a distino entre imagem visual e forma na arquitetura deve ser esclarecida, para no haver sobreposio dos dois conceitos e para estabelecer a distino entre os mesmos e o conceito de imagem no campo das representaes.

    Tambm foram estudados elementos comuns entre a construo dos conceitos de histria e de patrimnio, ressaltando a coincidncia dos perodos histricos em que ambos tiveram momentos importantes de afirmao desde o Renascimento. Essas trajetrias sero referidas e associadas histria da arte e arqueologia, pois todas so disciplinas que se ocupam do passado. Modernidade, tradio, identidade e nacionalismo tambm se encontram em vrios momentos no panorama internacional e, particularmente, na trajetria brasileira. Por isso sero aqui tratados.

    2.1 Arquitetura, histria, arte e patrimnio

    Primeiramente, foram revisados conceitos relacionados arquitetura, como tipo e tipologia, estilo, carter e outros. A partir do entendimento que a arquitetura a representao que demonstra, no espao edificado, aquilo que foi um dia, pode-se estabelecer um paralelo entre o que ela representa para o espao e o que a narrao significa para o tempo. Esses conceitos modificaram-se com ao longo do tempo.

    30 SEITZ, Frdric. Architectes et patrimoine. In: ANDRIEUX, Jean-Yves (Org.). Patrimoine &

    societ. Rennes: Presses Universitaires, 1998. p. 165-174.

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    A construo dos conceitos de histria e de patrimnio encontra paralelo desde as suas origens, relacionada ao surgimento de noes fundamentais como alteridade e cronologia. Os perodos histricos em que ambos tiveram momentos importantes de afirmao foram estudados, verificando-se as mudanas de conceitos e sua relao com a busca de imagens como representao ou de documentos como legitimao.

    2.1.1 Arquitetura e narrativa

    Na arquitetura, para Montaner, a forma no entendida como aparncia visual, mas sim como estrutura essencial e interna ao objeto arquitetnico.31 consistente, material, slida. As estruturas formais que permanecem no espao podem reconstruir seus significados permanentemente e podem ser interpretadas pelas sociedades, em diversos tempos, de diversas maneiras, revelando os significados e valores, as razes, as lgicas, as estruturas fsicas que se ocultaram ou desapareceram ao longo do tempo ou aquelas que tiveram seus sentidos modificados.32 A imagem na arquitetura, ao contrrio, virtual, transparente, imaterial, documento visual de reproduo e de consumo.

    Sabe-se que nenhuma imagem neutra ou literal na sua percepo pelo olho humano, pois sempre processada frente a um arquivo de imagens mentais e de experincias de cada indivduo. O termo relacionado, no senso comum, ao repertrio da mdia: televiso, publicidade etc. Sob o ponto de vista tcnico, existem dois grupos de imagens: aquelas em que o tempo da sua realizao no coincide com o tempo da sua fruio, como na fotografia, na pintura, no cinema; e aquelas nas quais a criao da imagem depende da ao direta do observador, em que os tempos do fazer e da fruio coincidem, como nas imagens interativas dos computadores.33 No mundo virtual, cada vez mais vai sendo abolido o intervalo entre esses tempos, e a imagem passa a desdobrar-se em tempo real.

    31 MONTANER, Josep M. As formas do sculo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.

    32 Idem, ibidem.

    33 COUCHOT, Edmond. Des images, du temps e de machines. Paris: Ed. J. Chambon, 2007.

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    A imagem d acesso a uma ausncia e representa essa ausncia.34 A imagem visual se define pela maneira por meio da qual se revelam, na imagem, as condies de visibilidade.35 A imagem como representao possui um valor simblico. Warburg afirma que a imagem, nesse caso, se revela radicalmente histrica, como o lugar da operao cognitiva do homem em sua relao vital com o passado.36 O entendimento sobre imagem visual na arquitetura contrape-se ao conceito de imagem no campo da Histria, em que a imagem se insere no nvel simblico. A ela se atribuem sentidos, por meio dos quais se podem ver representaes do imaginrio social que no se apresentam visualmente aos olhos.

    A arquitetura pode apresentar essas duas dimenses da imagem. Sendo um bem material, produz uma imagem visual. Sendo representao, contm significados e possibilidades de leitura relacionadas a determinados tempos e lugares. No caso desta tese, a acepo se refere imagem do passado transmitida pelos bens culturais edificados no espao, transmitida pela presena do objeto, pela sua forma, pelos seus materiais, pelas suas memrias, e no por reprodues visuais, virtuais ou destinadas ao consumo. Para evitar equvocos, na primeira acepo, no campo da arquitetura, ser denominada de imagem visual e, no segundo, que coincide com parte do problema desta tese, ser denominada de imagem como representao.

    Documento, no senso comum, no tem significado diferente de seu sentido tcnico, sendo entendido como a base de conhecimento fixada materialmente e disposta de maneira que se possa utilizar para consulta, estudo, prova, etc.37 A oposio entre o documento, que atesta a veracidade de um fato, e a imagem como representao, que representa a ficcionalidade, j foi vencida no campo da Histria, quando esta se dispe a analisar sua escrita e sua recepo. Uma imagem no verdadeira nem falsa por aquilo que representa, mas sim devido ao que escrito ou dito sobre o que ela representa.38

    34 LAVAUD, Laurent. Limage: texts choisis & presents par. Paris: Flammarion, 1999.

    35 Idem, ibidem.

    36 AGAMBEN, Giorgio. Aby Warburg et la science sans nom. In: AGAMBEN, Giorgio. Image et

    memire:. crits sur limage: la danse et le cinema. Paris: D. Brouwer, 2004. p. 9-35. 37

    FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo dicionrio da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. p. 488. 38

    JOLY, Martine. Introduction lanalyse de limage. Armand Colin, 2006.

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    A Histria no repete a experincia do passado, mas constri uma representao do mesmo por meio da escrita. Ricoeur diz que a expectativa do leitor para com o texto histrico de que ele apresente uma narrao verdadeira, e no uma fico. Mas as configuraes narrativas do lado literrio da historiografia podem desempenhar papis opostos, seja de mediao, no que concerne ao real histrico, ou de cortina, ao impedir a transparncia dessas mediaes.39 Le Goff afirma que "o material fundamental da histria o tempo"40 e que a dialtica entre o passado e o presente elemento fundamental do tempo.

    Para entender esse tempo passado, o historiador busca informaes luz de hipteses sobre documentos que no so apenas objetos de descrio, mas que so procurados, constitudos, reconstrudos, na inteno da verdade. A reconstruo permanente mostra a busca de uma aproximao cada vez maior com o fato acontecido. Para Ricoeur, a literatura quase histria, e a histria quase literatura, uma vez admitido o componente ficcional na escrita da histria e o carter de representao de ambas. Segundo o autor, as suas diferenas se explicitam na tenso entre compromissos e expectativas: a verdade do acontecido, do lado da histria, e a verossimilhana ou o que poderia ter acontecido do lado da literatura, tal como enuncia Aristteles em sua Potica.

    Corona Martinez sugere uma relao entre a literatura e a arquitetura ao observar que o desenho se liga arquitetura como a escrita fala.41 Ou seja, poderia-se falar em "escrever" um edifcio atravs do projeto arquitetnico. "O desenho a inveno de um objeto por meio de outro, que o precede no tempo", diz o autor.42 Essa relao vai ser retomada adiante pelo pensamento de Ricoeur, mas necessrio explicitar o que se entende por arquitetura. Uma viagem a Roma levou Le Corbusier a defini-la assim:

    A arquitetura consiste em estabelecer relaes comoventes com materiais brutos. A arquitetura est alm das coisas utilitrias.

    39 RICOEUR, Paul. Lcriture de Ihistoire et Ia reprsentation du pass. Annales HSS, Paris, n.

    4, p. 731-747, juil./aut 2000. 40

    LE GOFF, Jacques. Histoire et mmoire. Paris: Gallimard, 1988. p. 24. Traduo nossa. 41

    MARTNEZ, Alfonso Corona. Ensaio sobre el proyecto. 3. ed. Buenos Aires: Kliczkowski, 1998. 42

    Idem, ibidem, p. 9. Traduo nossa.

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    A arquitetura coisa de plstica. Esprito de ordem, unidade de inteno; o sentido das relaes; a arquitetura gera quantidades. A paixo faz das pedras um drama.43

    O mais conhecido dos arquitetos modernos associou a arquitetura emoo, mas tambm fez meno unidade conceitual. No Brasil, Lucio Costa definiu arquitetura como a construo concebida com a inteno de ordenar e organizar plasticamente o espao, em funo de uma determinada poca, de um determinado meio, de uma determinada tcnica e de um determinado programa".44 Distinguiu, assim, a arquitetura de uma construo qualquer. Ao estabelecer seus determinantes, associou-a a um produto representativo de uma sociedade, como um documento decorrente da sua poca. Em seus registros, o mestre faz consideraes que se aproximam da forma como Le Corbusier abordou o tema. Disse Lucio Costa:

    [...] arquitetura coisa para ser exposta intemprie e a um determinado ambiente; arquitetura coisa para ser encarada na medida das idias e do corpo do homem; arquitetura coisa para ser concebida como um todo orgnico e funcional; arquitetura coisa para ser pensada estruturalmente; arquitetura coisa para ser sentida em termos de espao e volume; arquitetura coisa para ser vivida.45

    Benjamin observou que a arquitetura apresenta sempre uma produo constante e que no conheceu pausas.46 Ao dizer que a histria da arquitetura mais longa do que a das outras artes, o autor leva em considerao a funo de abrigo que, por milhares de anos, a arquitetura ofereceu aos homens. A arquitetura sempre visvel no espao e desfrutada duplamente, seja por meio do uso, seja por meio da percepo. Diz Mahfuz: A arquitetura ordena o ambiente humano, controla e regula as relaes entre o

    43 LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. 3. ed. So Paulo: Perspectiva, 1981. p. 103.

    44 COSTA, Lucio. Arquiteto no rabisca, arquiteto risca. In: COSTA, Maria Elisa (Org.). Com a

    palavra, Lucio Costa. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001. p. 45-65. p. 58. 45

    Idem, ibidem, p. 56. 46

    TAFURI, Manfredo. Teoria e histria da arquitectura. Lisboa: Presena, 1988. p.113.

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    homem e seu habitat.47 Mas essas relaes no se restringem a funes prticas, estabelecendo importantes interfaces com as dimenses simblicas da sociedade.

    O conceito de carter , muitas vezes, associado arquitetura e interessa ao problema aqui enunciado. A palavra de origem grega e tem o sentido de imprimir, marcar, significando um sinal distintivo de um objeto. Quatremre de Quincy, em 1788, na sua Encyclopdie mthodique, fez consideraes sobre esse conceito que ainda hoje so vlidas.48 Dividiu a concepo de carter em trs categorias: carter essencial, que resulta da expresso prpria das qualidades inerentes aos objetos e que, no caso da arquitetura, toma como referncia os seus modelos reais ou ideais;49 carter distintivo, que reflete nuances as quais modificam os objetos de um mesmo gnero por meio da fisionomia e da originalidade;50 e carter relativo, que diz respeito convenincia ou propriedade em relao resoluo do programa arquitetnico e que se anuncia atravs das qualidades aparentes e da destinao de uso daquela arquitetura.51

    A percepo do carter relativo ideal no pode ser apreciada atravs de uma descrio uma experincia que deve ser vivenciada nos prprios monumentos. Para que isso seja possvel, a preservao da sua forma essencial. O conceito de carter na arquitetura est relacionado, em certa medida, ao de composio.

    47 MAHFUZ, Edson da Cunha. Ensaio sobre a razo compositiva. Viosa: UFV, Imprensa

    Universitria; Belo Horizonte: AP Cultural, 1995. p.21. 48

    Em 1832, Quatremre publicou o Dictionnaire historique d'architecture, uma verso resumida e revisada da Encyclopdie, onde o verbete tambm aparece. Ver: COMAS, Carlos Eduardo Dias. Precises brasileiras: sobre um estado passado da arquitetura e urbanismo modernos a partir dos projetos e obras de Lucio Costa, Oscar Niemeyer, MMM Roberto, Affonso Reidy, Jorge Moreira & Cia., 1936-45. Paris. Universidade de Paris VIII, 2002. Tese (Doutorado em Projeto Arquitetnico e Urbano) Universidade de Paris VIII Vincennes Saint Denis, 2002. p . 28. CD-ROM. (Traduo do francs feita pelo autor). 49

    O carter essencial o principal. Sinnimo de solidez, fora e grandeza, inclui as dimenses da unidade, beleza, regularidade, simetria. 50

    O carter distintivo ou de originalidade se refere ao estilo, a relaes ou qualidade, como a graa e a harmonia da arquitetura grega em oposio ao luxo e ao orgulho da arquitetura romana. 51

    O carter relativo se divide em carter relativo ideal, que expressa as qualidades ou as idias intelectuais da arquitetura em geral, e em carter relativo imitativo, relacionado aos edifcios em particular. O carter relativo imitativo expressa a natureza, a propriedade, os usos e a destinao de uma edificao. A arquitetura pode imprimir esse carter por meio da utilizao de formas gerais e parciais, do tipo de construo, da decorao e da escolha dos atributos, dentre outros.

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    A composio se baseia no entendimento de que um objeto arquitetnico um todo constitudo de partes.52 Por muito tempo, foi associada tradio acadmica, na qual as partes eram associadas segundo regras fixas, e depois o objeto era encoberto por uma linguagem arquitetnica apropriada, um estilo, buscando-se aproximar das representaes mais convenientes para cada situao: ordens clssicas para escolas, tribunais etc. Assim, o estilo de uma obra arquitetnica pode associar-se facilmente representao que passa a ter na sociedade, relacionando-a a uma imagem como representao do