A Cosmovisão Calvinista e a Resistência Ao Estado

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  • FIDES REFORMATA X, N 2 (2005): 21-44

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    A COSMOVISO CALVINISTA EA RESISTNCIA AO ESTADO

    Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho*

    RESUMO

    Neste artigo, o autor levanta inicialmente o enigma indicado pelas pesquisas de Armando Silvestre acerca das origens da poltica revolucionria calvinista, que, aparentemente, deve mais aos argumentos polticos produzidos pelos lute-ranos do que ao prprio Calvino. Ao invs de buscar as razes da poltica calvi-nista radical em orientaes explcitas de Calvino, como faz Silvestre, o autor sugere que a verdadeira origem dessa poltica estaria na cosmoviso calvinista. Aplicando a anlise filosfico-teolgica de Herman Dooyeweerd a dois textos polticos fundamentais de Lutero e de Calvino, observa-se que a divergncia que eles apresentam no tocante relao entre a esfera tica e a esfera poltica pode ser explicada como uma divergncia em suas respectivas idias-de-lei, isto , de suas idias sobre a ordem csmica. A idia-de-lei ou wetsidee calvinista da soberania absoluta de Deus na criao possibilitou a Calvino e ao calvinismo posterior a diferenciao e autonomizao da esfera poltica sem a perda de seu fundamento religioso, viabilizando assim a prxis calvinista da resistncia ao Estado.

    PALAVRAS-CHAVE

    Calvinismo; Poltica; tica e direito; Estado; Cosmoviso; Diferenciao cultural; Natureza e graa.

    * O autor mestre em Teologia com nfase em Novo Testamento (Faculdade Teolgica Batista de So Paulo). Foi professor da Faculdade Evanglica de Teologia de Belo Horizonte de 1998 a 2005. Atualmente bolsista do CNPq no programa de mestrado em Cincias da Religio da UMESP. tambm pastor batista (CBN) e diretor do Centro Kuyper de Estudos Cristos de Belo Horizonte.

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    INTRODUO

    No so poucos os estudiosos que reconhecem a importncia da Refor-ma Calvinista para a constituio do mundo ocidental moderno. Seu impacto se fez sentir nas relaes internacionais, no comrcio, nas artes, na indstria e na poltica. Neste campo, especificamente, sua importncia foi reafirmada por cientistas polticos de renome e com diferentes orientaes ideolgicas durante o sculo 20, como Eric Voegelin, Michael Walzer, Christopher Hill e Herman Dooyeweerd.

    Admite-se, naturalmente, que essa importncia no homognea. Nem todos os setores da Reforma tiveram grande importncia poltica, e a influncia de cada setor mantinha suas peculiaridades. quase consensual o reconheci-mento de que o calvinismo teve um impacto construtivo na Europa que no encontra paralelo no luteranismo e na chamada Reforma Radical. Este fato pede explicao. Por que o cristianismo calvinista alcanou tamanha expresso e influncia na constituio do mundo ocidental moderno? As causas desse fenmeno so meramente circunstanciais ou h algum elemento singular no calvinismo que o torna uma fora revolucionria?

    Neste estudo no temos, evidentemente, a pretenso de dar soluo a esse problema, mas apenas de fazer uma modesta contribuio no campo da teoria poltica, utilizando como referncia o pensamento de Herman Dooyeweerd, segundo o qual a concepo de ordem csmica, ou wetsidee,1 de Calvino estaria por trs da fora revolucionria do calvinismo. Vamos inicialmente expor o enigma do impacto poltico do calvinismo (item 1) e, aps uma bre-ve discusso metodolgica (item 2), realizar um exame comparativo de dois textos fundamentais de Lutero e de Calvino a respeito do Estado (item 3). Em seguida, apresentaremos a teoria de Dooyeweerd (item 4) como uma explicao plausvel para a relao entre Calvino e a resistncia ao Estado (item 5).

    1. A RESISTNCIA AO ESTADO: POR QUE CALVINO E NO LUTERO?

    Em 2002, Armando Arajo Silvestre publicou um estudo bastante deta-lhado sobre a evoluo do pensamento poltico de Calvino e do calvinismo posterior, quanto ao direito de resistir ao Estado.2 Em seu trabalho ele procura

    1 Termo holands usado por Dooyeweerd para se referir idia central, presente em qualquer cosmoviso, a respeito da Origem de todas as coisas (Arch) e sobre o modo de sua relao com o cosmo. A wetsidee calvinstica seria a crena na diferena qualitativa infinita Criador-criatura, e na soberania absoluta mas no arbitrria de Deus sobre a Criao, por meio de suas Leis. O termo foi traduzido para o ingls como law-idea idia-de-lei, em portugus. Nas comunidades reformadas de origem holandesa nos Estados Unidos tornou-se comum referir-se tradio filosfica ligada a Dooyeweerd e Vollenhoven por meio da expresso wetsidee philosophy.

    2 SILVESTRE, Armando Arajo. Calvino e a resistncia ao Estado. So Paulo: Editora Mackenzie, 2002.

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    explicar o pensamento poltico de Calvino a partir de sua situao histrica e estabelecer uma relao entre o reformador e os calvinistas radicais na Esc-cia, Inglaterra, Holanda e Frana, que desenvolveram, no interior do debate a respeito do direito de resistncia ao Estado, novas idias sobre as origens, a natureza e os limites do poder do Estado.

    O fato evidente que no seio do calvinismo internacional do sculo 16 brotaram movimentos revolucionrios bem como reflexes polticas em torno da revoluo. Entre os escoceses, John Ponet, Christopher Goodman e John Knox rejeitaram a tese agostiniana, presente em Lutero e Calvino, de que os governantes deveriam ser considerados autoridades divinamente ordenadas, mesmo ao abandonar seus deveres, propondo a deposio do magistrado superior. Knox, o mais radical, defendeu inclusive a revoluo popular.3 Na Frana, aps o massacre de So Bartolomeu (1572), o pensamento poltico huguenote ama-dureceu com as obras de Franois Hotman (Francoglia, 1573), Teodoro Beza (Du droit des magistrats, 1574) e a importantssima Vindiciae contra tyrannos, de Phillipe Duplessis-Mornay (1579), entre outras. Com George Buchanan (bas-tante influenciado por Beza e Mornay) e Johannes Althusius, a teoria huguenote do estado e do direito constitucional da revoluo recebeu uma articulao mais nitidamente poltica, contribuindo para a viso moderna do Estado.

    As teorias dos huguenotes franceses influenciaram os Pases Baixos na crise de 1580, quando os espanhis tentaram extinguir o protestantismo holan-ds, ajudando a fundamentar sua luta de independncia. Na Inglaterra, as idias de George Buchanan e de Juan de Mariana4 influenciaram Oliver Cromwell e os puritanos ingleses, sendo aplicadas durante a guerra civil na dcada de 1640 para o estabelecimento do Commonwealth puritano. Mais tarde o pensamento constitucional foi posto em prtica novamente na Revoluo Gloriosa, de 1688-1689, com a instaurao da monarquia constitucional. As idias puritanas passaram finalmente s colnias, fomentando a Revoluo Americana.

    O fato de que o calvinismo tem a precedncia quando se trata de dinamismo poltico torna-se bastante enigmtico quando consideramos um outro resultado da pesquisa histrica: as teorias de resistncia ao rei no tm sua origem em Calvino. Antes de Calvino os luteranos j tinham desenvolvido teorias de resistncia ao Estado. Aps a dieta de Spira (1529), desfavorvel aos protestantes, o prncipe luterano Filipe de Hesse, com o auxlio de um grupo de juristas, apresentou uma teoria constitucional segundo a qual os eleitores e prncipes territoriais (magistra-dos inferiores), como autoridades divinamente institudas, poderiam empunhar

    3 A teoria da revoluo popular baseada no direito privado, aplicada por John Knox, teria penetrado profundamente no pensamento poltico ingls, manifestando-se por exemplo no pensamento poltico de John Locke (cf. SILVESTRE, Calvino e a resistncia ao Estado, p. 233).

    4 Terico poltico catlico que, segundo Silvestre, utilizou idias calvinistas para articular uma teoria de resistncia ao Estado contra o rei huguenote da Frana Henrique de Navarra.

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    o ius gladii em seu interesse, mesmo contra o imperador. Com isso, a relao entre o imperador e os prncipes tornou-se primariamente jurdica.5

    Simultaneamente teoria constitucional de resistncia de Filipe de Hesse, o prncipe luterano Joo da Saxnia apresentou uma teoria de resistncia violenta ao imperador baseada na doutrina do direito privado, desenvolvida por juristas saxes. Nessa teoria argumentava-se que o imperador no tinha jurisdio em questes de f, de modo que suas interferncias ilegais o tornavam um infrator privado da lei. Ambas as teorias foram apresentadas em 1530 e, com a ame-aa da perseguio pelo imperador, Melanchton e o prprio Lutero cederam teoria saxnica de resistncia.6 Mais tarde, essa teoria foi desenvolvida por Melanchton, e a teoria constitucional por Osiander e por Martin Bucer. Du-rante a guerra de Smalcad (1546), a teoria constitucional foi reavivada: [...] o fato contribuiu, certamente, para a evoluo do pensamento calvinista e dos calvinistas, e a confisso luterana de Magdeburgo, de 1550, reafirmou tanto a teoria constitucional como a do direito privado, chegando a declarar que o governante tirnico deixaria de ser magistrado genuno.7 Essa confisso teve importncia central para o calvinismo:

    No caso dos calvinistas, foi feita a adoo e reiterao da teoria de resistncia de origem luterana (principalmente quanto Confisso de Magdeburgo) para enfrentar a crise do protestantismo em meados do sculo XVI.8

    Se, por um lado, as teorias de resistncia tm a sua origem no luteranis-mo, por outro lado, Calvino no produziu nenhuma novidade. Na primeira edio das Institutas (1536), ele mantm a certeza de que a liberdade crist seria compatvel com a mais perfeita submisso autoridade temporal.9 Nas demais verses aps essa data, Calvino adota uma perspectiva semelhante de Lutero, com os dois regimentos e a defesa da obedincia. Somente nas edies latina de 1559 e francesa de 1560 o encontramos admitindo que os magistrados inferiores poderiam resistir aos tiranos; entretanto, essa noo j tinha uma histria no pensamento de outros reformadores desde 1530. Citando Harro Hpfl, Silvestre admite que

    [...] Calvino nada mais acrescentou doutrina da resistncia em suas obras pos-teriores. Quem o fez foram somente os seus seguidores, em crculos calvinistas na Frana, Holanda e em outros pases.10

    5 SILVESTRE, Calvino e a resistncia ao Estado, p. 148.6 Ibid., p. 151.7 Ibid., p. 181.8 Ibid., p. 182. Grifo meu.9 Ibid., p. 158.10 Ibid., p. 160.

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    Alm disso, ele manteve uma tendncia fortemente anti-revolucionria, criticando o radicalismo de John Knox.11

    A despeito disso, Silvestre afirma que a exceo concedida por Cal-vino, segundo a qual os magistrados inferiores teriam o dever de resistir licenciosidade e ao furor dos reis, quando estes transgredissem seus limites e anulassem seu poder, teria sido sumamente importante: [...] aqui reside sua grande contribuio no que tange resistncia autoridade superior.12 Entretanto, como ele prprio deixou claro, Calvino simplesmente repetiu idias que os luteranos j haviam desenvolvido h muito.

    Na verdade, Silvestre tem conscincia desse fato e de suas implicaes aparentes. Segundo ele, essa constatao contradiz o pensamento clssico de Ernst Troeltsch, que afirmou em The Social Teaching of the Christian Churches a superioridade do calvinismo sobre o luteranismo como movimento de trans-formao histrica. Ao contrrio, o calvinismo deveria seu desenvolvimento poltico posterior influncia dos reformadores de primeira gerao.

    O trabalho de Silvestre confirma a tese clssica da importncia poltica do calvinismo. Mas no creio que ele tenha demonstrado qual a contribuio de Calvino, exceto qua repetidor ou transmissor das idias luteranas.

    2. A QUESTO METODOLGICA

    Naturalmente, esse resultado s um problema se esperamos que Calvino tenha alguma coisa a ver com as revolues calvinistas. Ou, pelo menos, se es-peramos que essa relao seja direta, no sentido de que Calvino foi o iniciador consciente de uma revoluo poltica. Nesse caso, a resposta inequvoca: no.

    Mas o papel dos agentes histricos nos processos algo muito mais com-plexo. Certas aes podem produzir resultados inesperados. Involuntariamente Calvino poderia ter transmitido idias revolucionrias produzidas em outro contexto, e essas idias, encontrando terreno frtil, brotaram. Evidentemente, no entanto, isso no explicaria porque justamente os calvinistas desenvolveram tais idias revolucionrias. O habitus calvinista tem necessariamente alguma relao com essa abertura s idias revolucionrias.

    Tambm faz pouco sentido sugerir que outro grupo religioso, nas mesmas condies, poderia ter feito o mesmo que os calvinistas, pois, quando se trata de histria, as coisas aconteceram desta maneira e, portanto, assim que teriam de ter acontecido.13

    11 O prprio Knox buscou apoio em Bullinger para a sua teoria de resistncia, sendo este apelo apon-tado como [...] a primeira ruptura de um calvinista com a doutrina de no resistncia exposta pelo prprio Calvino. (SILVESTRE, Calvino e a resistncia ao Estado, p. 204). Ele e Beza, j em 1554, defendiam teorias de resistncia; Beza publicou a sua, elogiando a confisso de Magdeburgo, em 1554, e John Knox em 1558.

    12 SILVESTRE, Calvino e a resistncia ao Estado, p. 173.13 HOOYKAAS, Robert. A religio e o desenvolvimento da cincia moderna. Braslia: Editora

    UnB/Polis, 1988, p. 196.

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    Por hiptese, poderamos examinar a situao histrica e explicar a evo-luo das idias polticas calvinistas como um fruto das condies econmicas: a intensidade da perseguio associada s transformaes econmicas ligadas lenta mas firme ascenso da burguesia etc. Quanto a isso, h poucas dvidas da importncia dessas condies, como demonstraram Richard Tawney, Max Weber e Christopher Hill, para citar os mais importantes. Seguindo, entretanto, as intuies do historiador reformado Robert Hooykaas, tememos que anlises economicistas no sejam totalmente conscientes de que a sua pr-compreenso do homem como sendo fundamentalmente um produto das foras econmicas no guarda qualquer necessidade filosfica ou cientfica, refletindo mais a si-tuao espiritual do investigador. Uma perspectiva cientfica pluralista precisa aprender a buscar, ao lado das causas econmicas, as causas religiosas, principalmente quando a religio est diretamente envolvida!14

    Dentro dessa abordagem no-reducionista se insere a interpretao que Herman Dooyeweerd oferece para explicar o impacto poltico do calvinismo. Para Dooyeweerd, toda viso de mundo tem em seu ncleo uma idia a respeito da ordem csmica (como o mundo estruturado), que ele denominava wetsidee (idia-de-lei). Essa idia central tem origem religiosa, sendo sustentada pela f e funcionando como princpio orientador da vida cultural. Dooyeweerd acre-ditava que nas origens da potncia poltica do calvinismo estaria a sua idia de Lei ou wetsidee: a soberania csmica de Deus, por meio de suas leis.

    Para relacionar a wetsidee calvinstica com Calvino, no entanto, seria necessrio demonstrar ainda a conexo entre as manifestaes culturais dessa wetsidee com o prprio Calvino do contrrio, ela poderia ainda ser explica-da apenas a partir da trajetria histrica dos calvinistas, como um elemento agregado e no essencial cosmoviso calvinista.

    Temos ento duas perguntas centrais: H diferenas substanciais entre Lutero e Calvino no tocante ao status da esfera poltica, passveis de serem explicadas como diferenas de cosmoviso? Em caso positivo: Como essas diferenas se relacionam ao problema da resistncia calvinista ao Estado? Para respond-las, vamos primeiramente comparar os textos centrais de Lutero e de Calvino a respeito da autoridade secular. Em seguida, tentaremos explicar as diferenas entre os textos a partir da teoria de Herman Dooyeweerd, como diferenas de wetsidee e, portanto, de cosmoviso, mostrando ao mesmo tempo sua relao com a resistncia calvinista ao Estado.

    3. A AUTORIDADE SECULAR NO PENSAMENTO DE LUTERO E DE CALVINO: DOIS TEXTOS FUNDAMENTAIS

    Comecemos ento com o exame comparativo de dois textos fundamentais de Lutero e Calvino sobre a poltica para determinar suas diferenas mais sig-

    14 claro que a religio, conquanto fator importante na criao do clima espiritual do pensamento, no , todavia, o nico [...] Mas, poca em que surgiu a cincia moderna, a religio constitua um dos fatores mais poderosos da vida cultural. (Ibid., p. 16).

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    nificativas. Por razes de espao, no discutiremos todos os pontos levantados pelos reformadores, mas apenas aqueles diretamente relacionados ao problema dos limites do poder do Estado.

    3.1 Lutero: Da Autoridade Secular, at que ponto se lhe deve obedincia

    No Natal de 1522, foi dedicado ao duque Joo Frederico da Saxnia o recm concludo e mais especfico tratado de Lutero a respeito da Autoridade Secular,15 em trs partes, das quais nos interessam apenas as duas primeiras.

    A primeira parte comea com uma expresso muito objetiva da questo mais bsica de todas: Em primeiro lugar, temos que fundamentar bem o di-reito e a espada secular para que ningum duvide que ela existe no mundo por vontade e ordenao de Deus.16 Lutero apresenta inicialmente a justificativa bblica para o uso da fora pelo Estado. Logo depois coloca a questo: Isso no contradiz o mandamento de Cristo em Mt 5.38 sobre a no-resistncia?

    A soluo dos telogos escolsticos teria sido a de dividir a doutrina e o Estado cristo em dois, tratando as palavras de Cristo como meros conselhos para o povo, servindo como mandamentos apenas para uma elite espiritual. Lutero rejeita vigorosamente essa interpretao, defendendo a universalidade do mandamento. Apelando para 1 Timteo 1.9, prope que a Lei no existe para o justo, e sim para o pecador. Ou seja, a espada e o direito secular no tm a funo de gerir a vida dos cristos, que delas no precisam.17 O problema central que os pecadores no se sujeitam voluntariamente ordem de Deus. Assim,

    [...] Deus criou para esses, ao lado do estado cristo e do reino de Deus, outro regime (Regiment) e os submeteu espada, a fim de que, ainda que o queiram, no possam praticar sua maldade e, caso a praticarem, no o possam fazer sem temor e em paz e felicidade [...] visto que todo o mundo mau [...] Deus instituiu dois domnios: o espiritual que cria cristos e pessoas justas atravs do Esprito Santo, e o temporal que combate os acristos e maus.18

    Atacando, nesse sentido, grupos anabatistas e espiritualistas, Lutero critica aqueles que pretendem governar o mundo segundo o evangelho e eliminar toda a lei e a espada secular.19 Segundo ele, no seria possvel o estabelecimento de

    15 LUTERO, Martinho. Da Autoridade Secular, at que ponto se lhe deve obedincia. Em: Obras Selecionadas, Volume 6. So Leopoldo: Sinodal/Concrdia, 1996.

    16 Ibid., p. 82.17 Ibid., p. 85. [...] todos os cristos esto naturados de tal maneira pelo Esprito Santo que agem

    bem e corretamente melhor do que se lhes possa ensinar com todas as leis; eles no precisam para si de lei ou norma. (Ibid).

    18 Ibid., p. 86.19 Ibid.

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    um regime cristo entenda-se, aqui, um regime baseado na graa e na liber-dade em relao lei para o mundo inteiro, ou mesmo para uma multido, pois o pecado logo se manifestaria trazendo desgraas. Quanto ao cristo, este deve se sujeitar espada secular por amor,20 pois ao auxiliar e cooperar com a autoridade secular o cristo contribui para a realizao da justia e para o refreamento do mal.

    Lutero sabe que precisa enfrentar o problema dos limites e da aplicao da tica de Jesus pelos governantes. Pois se eles devem usar a espada, como cum-priro o mandamento de Cristo sobre a no-resistncia? A soluo de Lutero encontrar um limite concreto: o interesse pessoal. O magistrado deve usar a espada quando o direito de outro ferido, e guard-la quando seu direito ferido:

    Onde se trata de ti e do que teu, a agirs de acordo com o Evangelho e so-frers, como bom cristo, injustias no que toca tua pessoa; onde se trata do outro e do que seu, a agirs de acordo com o amor e no permitirs injustia para teu prximo [...].21

    Outro argumento teologicamente relevante o de classificar a autoridade do Estado como sendo parte da ordem da criao de Deus, ao lado do matri-mnio e das funes da natureza. Ele aplica 1 Timteo 4.4 ao poder poltico caracterizando-o como uma criatura de Deus. Com esse argumento Lutero expressa a noo de que a graa no anula a natureza.22

    Fica assim estabelecido que os cristos podem lanar mo da espada para a defesa do prximo, mas no em defesa prpria. E no haveria incoerncia entre o evangelho e a natureza: [...] a palavra de Cristo consentnea com as passagens que instituem a espada.23

    A segunda parte, que Lutero considera a parte principal,24 lida com o alcance da espada secular. Aqui Lutero introduz uma nova distino, baseada principalmente em Mateus 10.28: No temais os que matam o corpo e que depois nada mais podem fazer; temei aquele que pode fazer perecer a alma e o corpo no inferno. Lutero argumenta que o regime temporal s tem poder sobre o corpo e os bens, sendo que a alma jurisdio divina. S Deus sonda e julga os coraes. Segue-se, portanto, que o poder secular no pode interferir nas questes de f, que so secretas e acessveis s a Deus. Com base nessa

    20 Ibid., p. 89.21 Ibid., p. 90.22 Ibid., p. 92.23 Ibid., p. 95. E quanto possibilidade de o magistrado usar a espada em seu favor, mas com a

    inteno totalmente pura de julgar a injustia, sem esprito vingativo? Lutero responde: Este milagre no impossvel, no entanto singular e perigoso. Dando o exemplo de Sanso, conclui: Torna-te primeiro igual a Sanso, e ento poders proceder como ele. Ibid., p. 96.

    24 Ibid., p. 96.

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    percepo teolgico-antropolgica Lutero chega a uma concluso profunda-mente moderna:

    Crer ou no crer assunto da conscincia de cada um e isso no vem em pre-juzo da autoridade secular. Por isso ela tambm deve contentar-se e ocupar-se com seus negcios e deixar que cada um creia isto ou aquilo, como puder e quiser, e no coagir a ningum. Pois a f um ato livre, ao qual no se pode forar a ningum.25

    Por isso Lutero v uma tremenda perverso na prtica de seu tempo, na qual os papas e bispos punem o corpo e os prncipes temporais legislam sobre a f! Isso contradiz Paulo, que ensina ao Estado dominar no a f, mas o mal, e o exemplo de Atos 5.29, em que Pedro se ope ao poder secular para manter sua f. intil aos prncipes tentar impor sua f, mesmo em caso de heresia. Esta s pode ser arrancada pela Palavra de Deus, e jamais pelo poder temporal.26

    3.2 Calvino: Da Administrao Poltica

    Utilizando termos muito semelhantes aos de Lutero, Calvino admite que h um duplo regime no homem: o espiritual, ligado conscincia subjetiva e ao culto a Deus, e o poltico, ligado aos deveres de civilidade. Esses dois regimes so denominados jurisdio espiritual e jurisdio temporal, o primei-ro concernente vida da alma, e o segundo vida presente.27 Assim, Calvino define a liberdade crist e a esfera do Estado nos mesmos termos da segunda parte do tratado de Lutero sobre o poder poltico.

    No captulo XX do volume IV das Institutas (Da Administrao Po-ltica), Calvino discute mais minuciosamente a natureza e funo do poder civil. De forma completamente previsvel, critica aqueles que entendem ser a liberdade do evangelho a superao ou anulao do regime poltico.28 Ao con-trrio, devemos conter a liberdade que nos oferecida dentro de seus limites; o Reino de Cristo est muito longe das condies da vida natural: casamento, nao, sexo, linguagem, etc.29 Isso no deve, no entanto, ser interpretado como se essas coisas fossem corruptas; Calvino chama de fanticos os que consideram a ordem poltica algo imundo. Ela deve ser confirmada no s por sua importncia na manuteno da ordem presente, mas porque algo essencial prpria vida humana:

    25 Ibid., p. 99.26 Mesmo que se queimem todos os judeus e hereges fora, nenhum deles nem ser convencido

    nem convertido. Ibid., p. 104.27 CALVINO, Joo. As Institutas, ou Tratado da Religio Crist. 4 vols. So Paulo/Campinas:

    Casa Editora Presbiteriana/Luz Para o Caminho, 1989. Vol. III, Cap. XIX, Da Liberdade Crist, Seo 15, p. 311.

    28 Ibid., IV.XX.1, p. 453.29 Ibid., IV, p. 454.

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    [...] inane barbrie cogitar quanto a dever ser exterminada essa ordem, a ne-cessidade da qual no menor entre os homens que a do po, da gua, do sol e do ar, a dignidade, certamente, at muito mais eminente.30

    Assim, como Lutero, Calvino reconhece pertencer o regime poltico ordem da criao, no se podendo pois conceber qualquer incompatibilidade entre o reino de Cristo e o magistrado civil. Sob essa luz, a tese anabatista de que com a vinda do evangelho o regime poltico ficou obsoleto s poderia ser vista como orgulho diablico,31 ou seja, perfeccionismo e negao dos efeitos da queda.

    Quanto aos textos em que aparentemente se probe que entre os cristos haja algum que ocupe o primeiro lugar, como Mateus 20.24-27, por exemplo, Calvino sustenta que seu propsito unicamente reprimir a busca do primeiro lugar entre os discpulos, sem qualquer conseqncia para a questo da auto-ridade poltica.

    Outra forma de colocar a dignidade do regime poltico a noo de que ele constituiria uma vocao divina. Calvino destaca que o poder presente no magistrado o poder do prprio Deus, donde eles so chamados deuses nos Salmos. Para mostrar que essa ordem totalmente evanglica, cita 1 Corntios 12.28, onde entre os dons do Esprito se inclui kubernseis, ou os governos. Calvino sabe que o texto se refere presidncia e disciplina das igrejas; mas sustenta que nele, implicitamente, se afirma a validade e se recomenda todo gnero de governo justo.32 Com isso ele estabelece claramente que o regime poltico no incoerente com o regime espiritual, havendo at mesmo certa coerncia estrutural entre ambos, no que se refere ao exerccio do poder. Assim, admite-se que o poder poltico seja uma vocao.33

    Calvino vai alm de Lutero ao tratar das leis civis, que ele considera os nervos ou as almas das coisas pblicas sem as quais o magistrado no pode subsistir. Ele distingue as leis mosaicas em trs partes: lei moral, cerimonial e judicial. A primeira tem valor permanente, a segunda era uma forma de educao dos judeus e a terceira transmitia seguras frmulas de equidade e justia, que, no entanto, no tem valor universal, sendo distintas do preceito moral.34 Os povos tm liberdade de escrever suas leis, mantendo-se como regra

    30 Ibid., IV, p. 455.31 Ibid., IV, p. 457.32 Ibid.33 Ibid.34 [...] da mesma forma que, preservada e inclume a piedade, puderam ser ab-rogadas as cerimnias,

    assim tambm, detradas estas ordenanas judicirias, permanecer podem os perptuos deveres e preceitos da caridade. Se verdadeiro isto, certamente que s gentes, uma a uma, foi deixada a liberdade de instituir as leis que hajam previsto serem a si vantajosas, leis que, todavia, se conformem quela perptua regra da caridade, assim que variem, de fato, na forma, tenham porm o mesmo propsito. Ibid., p. 469.

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    norteadora o princpio da equidade, sendo que este princpio, que pertence lei moral de Deus, o testemunho da lei natural, inscrita na conscincia que Deus ps na mente dos homens.35

    Um ponto importantssimo na comparao entre Lutero e Calvino o recurso dos cristos aos tribunais. J vimos que, para Lutero, o cristo no ir aos magistrados, exceto em favor de um terceiro. Calvino tem uma posio bem diferente:

    A muitos suprfluo parece ser o mnus do magistrado entre os cristos, porque, evidentemente, no possam piamente pleitear na justia, j que vedado lhes haja tomar vingana, postular em juzo, litigar. Quando, porm, em contrrio, claramente ateste Paulo que o magistrado nos ministro de Deus para o bem, disso entendemos assim haver sido divinamente ordenado, para que, por sua mo e meios de proteo defendidos contra a improbidade e as violaes de direito dos homens flagiciosos, levemos vida quieta e segura. Pois se em vo nos foi ele dado pelo Senhor para proteo, exceto se lcito nos usar de tal benefcio, bastante claro se faz tambm no impiamente poder ser ele invocado e recorrido.36

    Ou seja, o tribunal no teria sido concedido por Deus se fosse algo mpio; conseqentemente, Calvino contradiz aqui a Lutero, abrindo ao cristo a liber-dade para entrar em litgio em defesa prpria. Segundo ele, isso deve ser feito com benevolncia e moderao, isto , com a disposio moral apropriada.37 Re-movendo-se o esprito de vingana, a prtica do direito algo completamente so. O principal exemplo bblico de Calvino Paulo, que sempre recorreu ao tribunal em defesa prpria, e sua crtica aos crentes de Corinto em 1 Corntios 6.5-8 no se referia a todo recurso ao tribunal, mas apenas ausncia de amor e atitude contenciosa que eles desenvolveram. E se algum aponta o ensino bblico de que os justos devem esperar pela mo do Senhor, Calvino aponta que a vingana do magistrado a prpria mo do Senhor!38

    Ao tratar da obedincia aos magistrados, Calvino recomenda que eles sejam respeitados e obedecidos com sinceridade. Embora admita que alguns magistrados podem ser desprezados impunemente, e que seja difcil persuadir algumas pessoas a obedecerem a autoridades indignas do ofcio, ensina ex-plicitamente que os maus governantes so instrumentos de Deus para punir a

    35 Ibid., IV, p. 470.36 Ibid., IV, p. 473.37 digno de nota que, onde Lutero considera um milagre se algum puder pleitear em causa

    prpria sem esprito vingativo, vetando essa prtica, Calvino responde: Talvez haja algum de objetar que tal moderao a tal ponto nunca se aplica a uma demanda que guisa de milagre haja de ser, se alguma haja sido encontrada [...] a cousa mesma, no entanto, da adio de nenhum mal inquinada, boa e pura no deixa de ser.

    38 [...] a vingana do magistrado deve pensar-se ser no do homem, mas de Deus [...]. Ibid., p. 473.

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    iniqidade do povo, e devem ser igualmente obedecidos, tanto quanto os bons governantes.39 Est fora de cogitao a resistncia ativa a esse governante.40

    Calvino faz apenas uma concesso: Deus, em sua providncia, pode le-vantar entre os servos do governante algum que quebre o seu poder abusivo. Nesses casos especiais, a resistncia autoridade constituda legtima. Assim, falando a respeito de vrios exemplos bblicos, afirma:

    Ora, aqueles primeiros, uma vez que a executarem-se tais feitos haviam sido comissionados por legtimo chamamento de Deus, em tomando armas contra os reis, longe estavam de violar essa majestade que por divina ordenao foi aos reis conferida; pelo contrrio, armados do cu, ao poder menor reprimiam com o maior, exatamente como aos reis lcito punir a seus strapas.41

    Aparentemente, aqui Calvino no tem em mente a mera revolta popular, mas a organizao dos magistrados inferiores para corrigir o magistrado supe-rior. Quando se trata de indivduos, Calvino nega que julguemos pessoalmente conferida a ns, a quem nenhum outro mandamento foi dado que o de obedecer e de suportar,42 o direito a tal resistncia; mas os magistrados inferiores, dos quais Calvino d diversos exemplos de outras naes, podem em certos casos ter o dever de defender o povo contra os soberanos.

    Finalmente, a obedincia aos magistrados est sempre limitada pela obedincia a Deus. Assim, quando o magistrado ordena que se desobedea a Deus, preciso resistir pacificamente ao magistrado, pois melhor obedecer a Deus do que aos homens. Com isso Calvino ataca a pretenso de muitos governantes da poca e de muitos sditos de justificarem a desobedincia ao mandamento divino em nome da sujeio ao magistrado.

    3.3 Uma comparao preliminar entre as posies de Lutero e Calvino

    Um olhar geral no revela nenhum avano explcito de Calvino em relao a Lutero, no tocante aos limites do poder do Estado e relao dos cristos com o Estado. Calvino, como Lutero, defende que o Estado pertence ao regime poltico, distinto do regime espiritual, tendo sua prpria jurisdio; que o

    39 [...] em um homem da pior espcie e o mais indigno de toda honra, em que, no entanto, esteja o pblico poder, reside aquele poder preclaro e divino que o Senhor, por Sua palavra, deferiu aos ministros de Sua justia e juzo, pelo que, quanto respeito obedincia pblica, deva ser tido pelos sditos na mesma reverncia e dignidade em que houvessem de ter tido ao melhor rei, se dado lhes fosse. Ibid., p. 478.

    40 [...] pelo mesmo decreto por que se estatui a autoridade dos reis constitudos serem tambm os reis mais indignos, nunca mente nos viro essas sediciosas cogitaes de que tratado deve ser um rei segundo os seus mritos, nem justo ser que sditos nos mostremos quele que, por sua vez, rei se nos no mostre. Ibid., p. 480.

    41 Ibid., IV, p. 483.42 Estou sempre a falar de pessoas individualmente. Ibid.

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    poder da espada legtimo, e no contradiz o dever do amor cristo; que a fun-o do magistrado uma vocao divina, assim como a tarefa dos ministros do evangelho; que a guerra em defesa dos sditos justa; que o Estado no deve controlar as coisas espirituais, e a igreja no deve assumir a tarefa do Estado, etc. Aparentemente, Calvino segue Lutero em quase cada ponto.

    Em sua pesquisa a respeito da teoria poltica de Calvino, Armando Silves-tre chegou mesma concluso, como vimos: Calvino bastante conservador e reluta por muitos anos em modificar suas teorias sobre o direito divino e o Estado. Ele defende uma doutrina radical de no-resistncia em relao ao poder do governante. Mesmo assim, Silvestre detecta uma modificao importante, visvel na comparao entre as edies das Institutas de 1536 e 1559: que nessa ltima edio, Calvino admite explicitamente que o poder do magistrado pode ser anulado em caso de transgresso dos limites:

    O rei excedeu os seus limites, e no apenas foi perverso contra os homens, mas, ao erguer suas trombetas contra Deus, tambm ab-rogou seus prprios poderes.43

    Calvino teria admitido a teoria constitucional de resistncia ao magistrado, produzida pelos juristas luteranos e reavivada por eles em 1546, na guerra de Smalcad. Assim, sua melhor fase no desenvolvimento poltico teria sido no final da vida, de 1559 a 1564. Em seu comentrio de Daniel, por exemplo, ele admite que reis rebeldes contra Deus poderiam ser derrubados.44 Na teoria da resistncia proposta timidamente por Calvino nesse perodo, as autoridades inferiores no Estado poderiam se levantar e resistir ao poder do magistrado superior, tendo em vista a proteo dos sditos, uma vez que eles servem no ao rei, mas nao. Entretanto, como j vimos, no h aqui qualquer origina-lidade em relao ao luteranismo.

    Mas se nos afastarmos por um momento das afirmaes explcitas dos reformadores sobre o dever de resistncia ao Estado, e passarmos a uma ob-servao mais ampla de sua compreenso da relao entre a esfera poltica e as outras esferas da vida, encontramos finalmente resultados significativos. Em Lutero, embora o poder do Estado seja legtimo, temos ainda uma ntida tenso entre o dever moral e o direito. Isso evidente na proposta de Lutero de que o magistrado pode usar a espada em favor do outro, e que o cristo pode recorrer ao magistrado em favor de outrem, mas jamais de si prprio. Ou seja, Lutero ainda no chega a admitir completamente a soberania da es-fera poltico-jurdica em relao tico-religiosa. Por essa razo, tambm o encontramos afirmando que o Estado se dirige para os incrdulos, e no para os crentes; estes s se sujeitam para reforar o Estado.

    43 SILVESTRE, Calvino e a resistncia ao Estado, p. 182.44 Ibid., p. 184.

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    Em Calvino temos uma interpretao completamente diferente: o cris-to tambm est sob a autoridade do Estado, que uma bno para ele; e legtimo que o cristo recorra ao direito, sem prejuzo do amor e da f. Ou seja, Calvino confere esfera poltico-jurdica uma soberania plena que no se desenvolve no luteranismo. Outra evidncia de autonomizao da esfera poltica a disposio de Calvino de admitir que cada povo e nao constitua as suas prprias leis sem se prender legislao civil mosaica.45

    preciso perguntar pelas razes dessa distino. Calvino utiliza os mesmos argumentos de Lutero acerca da criao de Deus, e os mesmos textos, com alguns acrscimos, para justificar o poder do Estado. O ponto de distino est na compreenso de ambos a respeito da relao entre a Lei e a Graa.

    4. A INTERPRETAO NEOCALVINISTA: WETSIDEE CALVINISTA E A RESISTNCIA CALVINSTICA AO ESTADO

    4.1 O impulso para uma sociedade qualitativamente pluralista

    A idia de uma forma de religio que tenha desdobramentos em todas as reas da vida hoje repudiada e temida pelo mundo ocidental como uma forma de totalismo religioso que s pode oprimir o homem e atrofiar a vida cultural. Com esses culos secularistas, o avano do calvinismo ainda descrito por pro-fessores desinformados como fundamentalismo religioso. Surpreendentemente, a reivindicao tipicamente reformada de que todas as reas da vida deveriam ser sujeitas a Deus se expressou entre os sculos 16 e 18 no em um totalismo religioso absolutista, mas num crescente movimento de individuao e autono-mizao de diferentes esferas de vida cultural, incluindo a esfera poltica.

    A burguesia protestante europia encontrou no pensamento de Calvino uma forte justificativa teolgica para o desenvolvimento de atividades capitalistas sem o sentimento de culpa associado a essas atividades na mentalidade catlica, fomen-tando uma relativa independncia da esfera econmica em relao poltica e religio. No campo da investigao cientfica, os historiadores da cincia tm ve-rificado que o abandono da wetsidee tomista, com sua interpretao aristotlica da ordem csmica como uma ordem racionalmente necessria, e sua substituio por uma viso voluntarista da realidade, na qual a ordem csmica, sendo contingente, s pode ser compreendida por meio da investigao emprica, foi impulsionada e consolidada pela influncia calvinista. Em diversos filsofos da natureza como Francis Bacon, Robert Boyle e Isaac Newton, essa influncia ntida.46

    45 Com isso Calvino se afasta de Martin Bucer e daqueles para os quais a legislao do Estado cristo deve derivar das ordenanas mosaicas. (STROHL, Henri. O pensamento da Reforma. 2a ed. So Paulo: ASTE, 2004, p. 234)

    46 Hooykaas cita o prefcio de Cotes segunda edio do Principia de Newton: Sem dvida alguma este mundo... no pde surgir de outra coisa seno da vontade perfeitamente livre de Deus [...] Desta fonte [...] brotaram o que denominamos as leis da natureza, nas quais esto presentes muitos sinais da mais alta engenhosidade, mas nem o mais leve vestgio de necessidade. Por conseguinte, essas leis no devem ser buscadas a partir de conjecturas incertas, mas antes atravs de observaes e experimentos. (HOOYKAAS, A religio e o desenvolvimento da cincia moderna, p. 73).

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    No campo da poltica, nosso interesse principal, o mesmo ocorre. Um exemplo disso o prprio Calvino e sua luta para impedir que a igreja fosse governada pelos lderes polticos de Genebra, cujo aspecto central foi prova-velmente a questo do direito ao exerccio da disciplina.47 Sua luta por uma independncia estrutural da igreja diante do Estado no encontra paralelo em Lutero e em Zunglio, que deixaram a administrao das questes formais da igreja nas mos do Estado.48

    Essa condio poderia ser descrita como pluralismo qualitativo, no qual as esferas da religio, da poltica, da cincia, da arte, da economia e da moral ganham autonomia relativa entre si, favorecendo um movimento de evoluo cultural mais livre de restries.

    4.2 O reconhecimento da autonomia da esfera poltica sem a ruptura com a religio (secularizao relativa)

    Conforme a tese dominante desde o tempo de Max Weber, o Estado mo-derno se desenvolveu por meio de um processo de secularizao, no sentido de que no seria realmente possvel um conceito moderno e pluralista de Estado sem a superao das motivaes e justificativas religiosas. Opondo-se a essa interpretao, Dooyeweerd e, mais recentemente, James Skillen, apontaram a existncia de uma forma pluralista de pensamento poltico calvinista que de fato afirma a autonomia da esfera poltico-jurdica sem desvincular completamente a atividade poltica da religio. Um dos pioneiros nessa tradio teria sido o holands Johannes Althusius (1557-1683). Em sua investigao sobre Althusius, James Skillen indentificou um esforo por definir a natureza da esfera poltica e afirmar sua soberania, mas de um modo bastante diferente de Jean Bodin, terico que reificou o Estado e conferiu-lhe a soberania absoluta.49

    Em Althusius, o Estado no tratado como a entidade que concentra o po-der, mas como a expresso da verdadeira comunidade poltica que o povo; essa

    47 Os detalhes das lutas de Calvino com o poder poltico em Genebra podem ser encontrados em McGRATH, Alister. A vida de Joo Calvino. So Paulo: Cultura Crist, 2004, p. 116-152.

    48 [...] sua criao de uma liderana prpria para a Igreja foi impressionante em comparao no somente com Zwnglio, mas tambm com os territrios luteranos, nos quais a liderana da Igreja foi entregue ao soberano governo do Estado da Igreja. (BUSCH, Eberhard. Igreja e poltica na tradio reformada. Em: McKIM, Donald K. (Ed.). Grandes temas da tradio reformada. So Paulo: Pendo Real, 1999, p. 173; cf. tambm BILER, Andr. O pensamento econmico e social de Calvino. So Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 381, 382).

    49 Daniel Elazar, em seu prefcio traduo inglesa da Poltica de Althusius, observa que o Estado moderno foi baseado no princpio da soberania indivisvel, como expresso em Jean Bodin, levando a um Estado reificado e tirnico, e ao enfraquecimento das outras instituies sociais. Em Althusius teramos uma compreenso do Estado mais realista, que o considera uma forma de associao poltica do povo (ao invs de uma realidade autnoma), e admite a legitimidade de outras formas de associao os collegia. A teoria althusiana, federalista e pluralista, teria seus fundamentos no pensamento de Calvino e, em ltima instncia, na cosmoviso bblica aliancista (ELAZAR, Daniel J. Grande projeto de Althusius para uma comunidade federal. Prefcio Poltica. Em: ALTHUSIUS, Johannes, Poltica. Rio de Janeiro: Liberty Fund/TopBooks, 2003, p. 47-63).

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    comunidade responde diretamente a Deus, sob critrios propriamente polticos. O povo, que reunido na igreja est submetido a Deus como comunidade religio-sa, tambm est submetido diretamente a Deus, enquanto comunidade poltica. Mas no se pode identificar a sociedade com o Estado; o povo a comunidade poltica, mas tambm outras comunidades. Outras associaes subsistem ao lado do Estado, cada uma com suas prprias leis.50 A Igreja uma dessas formas de associao, mas sua legitimidade no depende do Estado, e o Estado igual-mente no depende da Igreja para se legitimar. O resultado prtico disso que a influncia religiosa se faz sentir na esfera poltica de um modo legtimo (quando no liberalismo da revoluo francesa tal influncia vista como contrabando religioso), sem restringir as liberdades polticas dos interlocutores.

    A forma althusiana-calvinista de secularizao da esfera poltica , portanto, qualitativamente distinta da que encontramos em Hobbes, Maquiavel e Jean Bodin. Trata-se de uma secularizao relativa, que confere a autonomia esfera poltica sem exigir sua completa desvinculao da religio. Mas como explicar essa secularizao relativa, que combina pluralidade e diferenciao cultural com profundidade religiosa?

    4.3 A secularizao relativa da poltica como aspecto do processo de diferenciao cultural guiado pela f

    Herman Dooyeweerd introduziu a noo de abertura modal (modal opening process) para explicar o processo de diferenciao cultural. Segundo ele, a realidade pode ser dividida em uma srie de esferas ou dimenses interdependentes, que ele chamou de modalidades e organizou numa es-cala ascendente.51 Aplicando essa teoria anlise das sociedades humanas, ele props que cada tipo de instituio social caracterizada por uma dessas modalidades. A igreja, por exemplo, seria pisticamente qualificada; o Estado juridicamente qualificado; a empresa economicamente qualificada, etc.

    Dooyeweerd procurou ainda colocar a diversidade nas formas da vida social ocidental em perspectiva histrica. Ele observou, por exemplo, que h sociedades nas quais no podemos distinguir essas instituies. Assim, por exemplo, em tribos indgenas encontramos as funes de liderana religiosa, poltica e familiar combinadas nas mesmas figuras. No h instituies sepa-radas. Examinando a histria do ocidente, Dooyeweerd tambm observou a recorrncia dessas estruturas sociais indiferenciadas, como a unio do poder religioso com o poder poltico na Idade Mdia. Como explicar esses fenmenos e ainda manter a idia de estruturas sociais normativas?

    50 SKILLEN, James W. From covenant of grace to equitable public pluralism: the Dutch Calvinist contribution. Calvin Theological Journal 31, n. 1 (April 1996): 67-96, p. 74.

    51 Dooyeweerd identificou 15 modalidades: numrica, espacial, cintica, fsica, bitica, psquica, lgica, lingstica, histrica, social, econmica, esttica, jurdica, tica e pstica (da f). Essas modali-dades seriam dimenses criadas pelo prprio Deus. Para cada esfera modal teramos uma lei divina, e o conjunto das leis csmicas foi denominado por Dooyeweerd cosmonomia.

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    A resposta est na compreenso dooyeweerdiana da histria. Segundo ele, a cultura um produto da ao humana sobre a criao sob as normas divinas para a histria. E uma das leis centrais da esfera histrica a lei da diferencia-o: o desenvolvimento de formas de vida social cada vez mais diversificadas produzindo-se pluralidade e riqueza cultural. A dinmica da diferenciao cul-tural seria a forma normal de desenvolvimento de uma sociedade, desde que ela se sujeite s normas divinas para a criao. Essa dinmica foi descrita por ele como abertura e desvelamento cultural (opening of culture process).52 Segue-se que sociedades nas quais a diferenciao est paralisada so sociedades regressivas e antinormativas. Mas qual seria a causa dessa paralisia cultural?

    Percebendo que o padro da estrutura social est sempre ligado cosmo-viso da respectiva sociedade e, em ltima instncia, s suas crenas religiosas, que fornecem a sua wetsidee, Dooyeweerd argumentou que a modalidade da f que fornece a uma sociedade a orientao sobre como ela deve se estruturar. A entrada do pecado no mundo, trazendo cegueira espiritual, teria bloqueado o avano das sociedades humanas ao impedi-las de compreender e desenvolver estruturas sociais diferenciadas. A graa comum permitiu que essa diferenciao acontecesse at certo ponto. Entretanto, somente com a influncia do evangelho na cultura ocidental, em especial a partir da Reforma, o processo de abertura modal pde se dar livremente, guiado pela f reformada e a luz da idia-de-lei bblica. O rpido processo de diferenciao cultural e social evidente a partir da influncia calvinista conferiu autonomia arte, cincia e poltica no a autonomia absoluta do Iluminismo, mas a autonomia relativa, no interior do sistema cultural, sendo que todas as esferas permanecem submetidas a Deus, cada uma a seu modo.53 Foi exatamente isto o que Abraham Kuyper chamou de sphere sovereignty a soberania em cada esfera.54

    52 Wolterstorff cita Dooyeweerd: [...] esta norma requer a diferenciao da cultura em esferas que possuem sua prpria natureza nica. A diferenciao cultural necessria para que a ordenana criacional, que clama pelo desvelamento ou desdobramento de tudo conforme a sua natureza prpria, possa ser realizada tambm no desenvolvimento histrico [...] esta diferenciao ocorre por meio de uma ramificao da cultura nas diferentes esferas de poder da cincia, arte, estado, igreja, indstria, comrcio, escola, organizaes voluntrias, etc. (WOLTERSTORFF, Nicholas. Until justice and peace embrace. The Kuyper Lectures for 1981 delivered at The Free University of Amsterdam. Grand Rapids: Eerdmans, 1983, p. 56). Wolterstorff critica a teoria de Dooyeweerd como uma teoria de modernizao que ignora as causas da diferenciao cultural. O presente artigo tenta mostrar justamente que a Reforma uma das causas desse processo, cujas razes estariam na cosmoviso bblica.

    53 Essa autonomia relativa teria se degenerado em autonomia absoluta com a vitria da cosmo-viso humanista secular sobre a cosmoviso reformada, culminando com o Iluminismo e o advento da modernidade. O processo de diferenciao tornou-se ento em fragmentao.

    54 Num sentido calvinista ns entendemos que a famlia, os negcios, a cincia, a arte e assim por diante, todas so esferas sociais que no devem sua existncia ao Estado, e que no derivam a lei de sua vida da superioridade do Estado, mas obedecem uma alta autoridade dentro de seu prprio seio; uma autoridade que governa pela graa de Deus, do mesmo modo como faz a soberania do Estado (KUYPER, Abraham. Calvinismo. So Paulo: Cultura Crist, 2002, p. 98).

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    Esta , portanto, a nossa explicao para o enigma da poltica revolucio-nria calvinista: a wetsidee calvinstica cooperou com os desenvolvimentos econmicos, sociais e polticos durante os sculos 16 e 17 ao fornecer uma estrutura de pensamento e vida religiosa na qual a resistncia ao Estado e o pleno envolvimento poltico s podiam ser vistos como conseqncias perfei-tamente naturais do evangelho e sem qualquer contradio de princpio com a liberdade e a tica evanglica. Entretanto resta ainda uma tarefa: precisamos explicar as diferenas j observadas entre Lutero e Calvino como diferenas de wetsidee e, portanto, de cosmoviso.

    5. A IDIA-DE-LEI EM LUTERO E EM CALVINO

    5.1 A influncia do nominalismo nas concepes luteranas da lei e do poder secular

    Quando consideramos a compreenso de Lutero a respeito da relao do cristo com o Estado, notamos que ele no entende a sujeio ao Estado como uma necessidade intrnseca prxis crist. Essa sujeio , antes, circunstancial. O cristo obedece ao poder secular para apoi-lo na luta contra os maus, mas no porque esteja sob esta obrigao, posto que em Cristo ele foi libertado da lei. Lutero trata, portanto, a relao do cristo com o poder secular como um problema da liberdade crist, e ensina claramente que a vivncia crist, caso o pecado fosse totalmente removido do mundo, dispensaria totalmente a lei e o prprio Estado, cuja nica funo a espada o juzo do pecado.

    A concepo luterana dos dois reinos,55 aqui refletida, foi profunda-mente influenciada pelo nominalismo. Lutero foi instrudo por mestres no-minalistas dentro da tradio de Guilherme de Occam, e em certa ocasio at mesmo declarou: Eu perteno escola de Occam.56 Os nominalistas devem ser entendidos a partir de sua reao sntese escolstica entre a metafsica aristotlica e a teologia crist, epitomizada no pensamento de Toms de Aquino.

    55 A doutrina luterana dos dois reinos reconhecidamente um tema difcil. Segundo W. Thomp-son, a ambigidade com que Lutero se refere a dois reinos ora como os regimentos espiritual e temporal, ora como o reino de Deus e o reino de Satans, levou no sculo 20 a duas escolas: a interpretao ortodo-xa, ligada a Paul Althaus, entende que os dois regimentos valem para todos os homens universalmente, consistindo de duas ordens divinas para o homem. J na interpretao do importante jurista alemo Johannes Heckel, apresentada na dcada de 1950, os dois reinos seriam duas formas de Deus governar os dois corpora do mundo, o corpo de Cristo e o povo do Diabo. Thompson tenta harmonizar as duas teorias e mostrar que para Lutero h uma ordem natural boa, criada por Deus, qual o homem deve se sujeitar. Seu sucesso limitado, porque ele deixa intocada a tenso entre essa crena luterana em uma ordem criada e a concepo nominalista de personalidade que Lutero sustenta (THOMPSON, W. D. J. Cargill. The two kingdoms and the two regiments: some problems of Luthers Zwei-Reiche-Lehre. Em: DUGMORE, C.W. Studies in the Reformation: Luther to Hooker. London: Athlone Press, 1980, p. 42-59).

    56 Ich bin von Ockhams Schule. (DOOYEWEERD, Herman. The Christian idea of the State. Nutley: The Craig Press, 1978, p. 16)

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    Na sntese tomista, a queda entendida como a perda da graa sobrenatural original, e no como uma corrupo radical da natureza; e a graa entendida como um donum supperaditum, uma ddiva sobrenatural que aperfeioa a natureza, mas que em nada se ope a ela. Portanto, Aquino estava pronto para admitir o poder da razo para explicar a estrutura da realidade, adaptando o sistema aristotlico ao cristianismo. Sem uma crtica radical do aristotelismo, uma concepo racionalista da natureza foi cristianizada, com o resultado de que a ordem csmica era vista como uma ordem racional, ou uma ordem de necessidade lgica.

    Os nominalistas se opuseram interpretao racionalista escolstica, argumentando que a ordem da natureza no necessria, mas contingente. Segundo eles, as leis que ordenam a nossa experincia so fruto do poder absoluto de Deus (potestas absoluta) no podendo ser construdas por um raciocnio metafsico. A idia de uma liberdade divina absoluta foi transferida para a antropologia nominalista, com o resultado de que o homem passou a ser visto como sendo essencialmente independente das leis estabelecidas pelo poder absoluto de Deus, embora submetido a elas.

    Com isso, eles no apenas rejeitaram a sntese de idias aristotlicas com a concepo bblica de soberania de Deus; o resultado foi a re-concep-o da relao entre natureza e graa. No pensamento nominalista, o ponto de contato entre ambas rompido. A graa a esfera da liberdade absoluta, enquanto a natureza a esfera do governo desptico de Deus. No possvel que a natureza funcione como prembulo para a graa, pois a graa uma superao total do modo natural de existncia.57 No h possibilidade de uma harmonia entre razo filosfica e f. As esferas da natureza (razo) e da graa (f) permanecem estanques e sem ponto de contato; a liberdade da graa no pode ser harmonizada com as leis que governam a vida humana para refrear o pecado. Assim os nominalistas

    [...] pensavam em termos de confronto entre graa e natureza. Era inevitvel que esta tradio (nominalista) influenciasse a maneira pela qual Lutero desenvolveu sua teologia e concebeu a relao entre Cristianismo e cultura.Lutero, corretamente, afirma a doutrina evanglica da imediata operao da graa soberana de Deus, atravs da Palavra. No pensamento de Lutero, contudo, h uma marcante distino entre a esfera ntima do divino, atividade espiritual, e a esfera exterior das prticas seculares. Na linha da posio nominalista, esta

    57 A lei colocada num nvel inferior. O prprio Deus no est limitado pela lei. Mas mesmo o cristo elevado acima da lei, ao menos em sua vida interior da graa. A lei meramente a ordena-o positiva da vida mundana temporal, onde o pecado reina. E mesmo quando a Igreja e a Escritura impem leis para a sociedade externa, o cristo no tem mais nada a ver com estas ordenanas em sua vida interior. Ele deve sujeitar-se a este comando positivo incompreensvel da vontade de Deus, mas apenas exteriormente, enquanto ele se move no mundo temporal. Mas na vida interior da graa a lei foi removida. (DOOYEWEERD, The Christian idea of the State, p. 15)

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    esfera exterior, em contraste com a esfera ntima, considerada como formal e convencional. Pelo menos em relao ao campo espiritual, ela colocada em posio de indiferena. A atividade cultural humana, que pertence a esta esfera externa, aceitvel, contanto que seus padres no sejam aplicados esfera espiritual. No h, porm, nenhuma conexo ntima entre ela e este campo espiritual.58

    , pois, exatamente esse dualismo natureza/graa em sua forma nomi-nalista que perpetuado na polaridade entre lei e liberdade evanglica que encontramos no pensamento de Lutero.59 Para ele a obedincia lei uma necessidade formal e no essencial; a vida sob a graa torna a sujeio lei desnecessria, exceto na medida em que ela serve expresso do amor cristo. E no caso de sua viso do poder secular, essa a nica razo porque o cristo deve se sujeitar a ele, no existindo qualquer necessidade disso do ponto de vista da liberdade evanglica. Na prtica, na wetsidee luterana as esferas ti-co-religiosa e poltico-jurdica permanecem sem ponto de contato justamente porque a vida sob a graa no contm em si a vida sob a lei.

    Segundo Eberhard Busch o que temos aqui uma transferncia das cate-gorias de lei e evangelho s categorias de Estado e Igreja, com reprodu-o dessa polaridade no interior da prtica poltica.60 O resultado disso que Lutero no sente necessidade de integrar plenamente a lei do Antigo Testamento e o poder secular em sua compreenso da prxis crist, procurando solues prticas para harmonizar as possveis tenses. No h uma preocupao em estabelecer conexes diretas entre o evangelho e a vida poltica:

    Lutero estava preparado para deixar o Estado ao capricho da razo humana. Deve-se dizer que, em seu ceticismo a respeito de todas as possibilidades humanas, ele mostrou grande indiferena a respeito do problema de como a natureza mundana se portava no Estado. Bastava-lhe que a igreja se limitas-se sua prpria misso proclamasse a graa aos pecadores e, dessa forma, confortasse aqueles que eram oprimidos pelas leis do Estado de modo que, ao mesmo tempo, estivesse apelando conscincia dos prncipes, que tambm eram cristos.61

    Assim Lutero sugere uma doutrina de no-resistncia absoluta frente tirania e ao poder secular. tambm possvel que Lutero tenha cedido em 1530 a uma teoria de resistncia baseada no direito privado por ser mais condizente com sua afirmao da liberdade subjetiva do cristo frente lei.

    58 KNUDSEN, Robert D. O calvinismo como uma fora cultural. Em: REID, W. Stanford, Calvino e sua influncia no mundo ocidental. So Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 17.

    59 DOOYEWEERD, The Christian idea of the State, p. 17.60 BUSCH, Igreja e poltica na tradio reformada, p. 166.61 Ibid., 164.

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    5.2 A superao do dualismo natureza/graa em Calvino e sua viso do Estado

    Calvino foi bastante influenciado pelo voluntarismo nominalista, rejei-tando como Lutero o tomismo e sua compreenso intelectualista da ordem csmica. Mas uma rejeio da forma nominalista de voluntarismo visvel em sua afirmao, destacada por Dooyeweerd, de que Deus o legislador absoluto, mas no arbitrrio (Deus legibus solutus est, sed non ex lex).62 Deus estabelece por sua soberania a ordem csmica, mas est absolutamente, pactualmente comprometido com ela, no operando como uma potestas abso-luta no sentido nominalista. A antropologia nominalista tambm abandonada, e o homem visto como absolutamente sujeito s leis de Deus.

    Por conseguinte, no h lugar para a tese de que a graa envolve uma superao da lei ou da ordem natural. Pelo contrrio, a graa leva o homem de volta lei, num sentido pleno, de tal modo que esta plenamente integrada na vivncia sob a graa. Nenhuma liberdade evanglica pode ser pensada parte dos limites da soberania de Deus, que se estende at o centro do homem, em seu corao.

    O efeito disso na compreenso calvinista da esfera poltica e do poder secular que eles no podem ser concebidos como estruturas meramente formais da vida humana nas quais a graa no tem um papel fundamental. Ao contrrio, busca-se uma compreenso integrada de graa e natureza, de tal modo que a liberdade evanglica possa ser pensada e vivenciada no interior das estruturas temporais da vida humana, comeando pela prpria lei do Antigo Testamento.63

    Conseqentemente, inconcebvel para Calvino que possa existir uma incompatibilidade de princpio entre a esfera tico-religiosa e a esfera pol-

    62 Cf. DOOYEWEERD, Herman. A new critique of theoretical thought. Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1953, vol I, p. 93, 99ss. A idia de ordem csmica de Calvino, como vimos anterior-mente, envolve a crena na diferena qualitativa infinita Criador-criatura e a afirmao da soberania csmica de Deus por meio de sua vontade soberana. Tal vontade no arbitrria, mas firme e fiel, donde podemos tambm descrever a cosmoviso calvinstica como sendo aliancista (covenantal worldview). Embora geralmente subjacente argumentao de Calvino, s vezes a wetsidee calvinista enunciada explicitamente. Um exemplo quando ele ensina sobre a criao, nas Institutas: [...] a natureza antes a ordem prescrita por Deus [...] prejudicial confusivamente envolver a Deus com o curso inferior de suas obras. (CALVINO, As Institutas, vol. I, p. 72, 73). Aqui Calvino nega que exista qualquer natureza seno aquela estabelecida pela vontade divina, e ataca a confuso entre o Criador e a criatura.

    63 Heiko Oberman procurou relacionar a viso abrangente do regum Dei com o assim chamado extra-calvinisticum, que seria uma espcie de princpio que permeia toda a teologia de Calvino e faz com que ela tenha uma dimenso extra, isto , uma tendncia a expandir o domnio de Deus. Assim Oberman descreve com a expresso Etiam Extra Ecclesiam (mesmo alm da igreja) o ensino de Cal-vino sobre o reino de Deus atravs da ordem poltica, transmitindo a idia de que o Reino de Deus um reino csmico, e no apenas eclesistico (OBERMAN, Heiko A. The dawn of the Reformation: essays in late medieval and early Reformation thought. Grand Rapids: Eerdmans, 1986, p. 234-258).

  • GUILHERME VILELA RIBEIRO DE CARVALHO, A COSMOVISO CALVINISTA E A RESISTNCIA AO ESTADO

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    tico-jurdica, como se ambas representassem dois nveis desconectados, mas circunstancialmente acomodados. Antes Calvino supe que eles s podem ser coerentes, e que deve haver, necessariamente, uma harmonia estrutural entre a tica evanglica e a instituio da justia pblica cuja execuo compete ao Estado. Se h uma aparente contradio entre certos aspectos da tica paulina, por exemplo, e a ordenao poltica, isso s pode se dever a circunstncias histricas especiais que condicionaram a resposta de Paulo; mas jamais poderia haver contradio entre graa e natureza, pois a graa existe para redimir a natureza. Assim Calvino se sente livre para afirmar, por exemplo, que o cris-to pode usar o recurso da lei para contender judicialmente com algum, at mesmo em defesa prpria, recusando uma aplicao ilimitada das restries paulinas aos processos judiciais em 1 Corntios 6.

    Em sua recusa em instaurar a Lei Mosaica como Lei do Estado, temos tambm uma evidncia de unidade entre natureza e graa bem como de dife-renciao modal. Calvino estabelece a eqidade como princpio primrio para o entendimento da justia social64 e estabelece a norma moral refletida no declogo como princpio para o direito, mas admite que a aplicao dessa lei, que tambm identificada com a lei natural implantada nos coraes dos homens,65 deve variar conforme as circunstncias da nao, da poca, etc.

    Com isso temos evidncia positiva de que j em Calvino a noo da soberania csmica de Deus sobre a criao promove a diferenciao modal, distinguindo a esfera poltica e conferindo-lhe autonomia relativa. Simultanea-mente ela mantm a unidade de natureza e graa, afirmando a legitimidade e origem divina dessa esfera. Essa evidncia positiva ajuda a corroborar a tese de Herman Dooyeweerd de que a idia-de-lei de Calvino estaria por trs do impacto poltico do calvinismo sobre a cultura ocidental.

    CONCLUSES

    Concordamos com Armando Silvestre no sentido de que o calvinismo est intimamente associado ao desenvolvimento do conceito moderno de Estado, atravs da teoria e prtica da resistncia ao poder secular implementada pelos calvinistas na Inglaterra, Esccia, Holanda, Frana, e mais tarde na Amrica.

    64 [...] a equidade o objetivo, a norma e o fim de todas as leis. (STROHL, O pensamento da Reforma, p. 235). Num estudo detalhado, Ford Lewis Battles mostra que Calvino refuta os restauracio-nistas mosaicos, que pretendem uma aplicao no-qualificada da lei mosaica ao direito. O reformador rene a concepo clssica da justia como eqidade, como encontrada por exemplo em Sneca, a uma definio bblica de eqidade. Assim ele estabelece uma concepo crist de justia como fun-damento para a construo e interpretao do direito, que em princpio poderia ser aplicada a diferentes situaes culturais (BATTLES, Ford L. Notes on John Calvin, justitia and the Old Testament law. Em: HADIDIAN, Dikran Y. Intergerini Parietis Septum: essays presented to Markus Barth on his sixty-fifth birthday. Pittsburgh: The Pickwick Press, 1981, p. 2-33).

    65 STROHL, O pensamento da Reforma, p. 235.

  • FIDES REFORMATA X, N 2 (2005): 21-44

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    Em nossa perspectiva, entretanto, essa influncia no tem a sua origem exa-tamente nas afirmaes positivas de Calvino a respeito dos limites do poder secular. Nesse ponto os luteranos claramente tm os mritos principais.

    O inegvel desenvolvimento das teorias de resistncia e da prpria con-cepo da esfera poltica que encontramos nos discpulos de Calvino se deve viso de mundo subjacente teologia de Calvino, de cujas implicaes o prprio reformador talvez no tivesse conscincia. Como props Dooyeweerd, a wetsidee calvinstica, em tenso tanto com o nominalismo luterano como com o racionalismo tomista, parece ter funcionado como estmulo e arcabouo para extensas transformaes na sociedade europia, abrangendo a economia, a cincia e a poltica. No campo da poltica ela viabilizou o envolvimento macio dos calvinistas com a resistncia poltica e a reorganizao do Estado que conduziu forma moderna de vida poltica. Essa wetsidee estaria em operao j na obra de Calvino, na autonomia relativa que ele confere esfera poltico-jurdica.

    Uma lio que a evoluo poltica do calvinismo oferece a de que um cristianismo integral no precisa ser necessariamente fundamentalista ou to-talista. O prprio cristianismo tem em si os elementos para a constituio de uma sociedade pluralista e livre, no havendo contradio entre a ortodoxia crist e autonomia relativa da esfera poltica. Uma poltica fundamentalista ao estilo dos estados islmicos seria, na verdade, uma poltica anticrist e anti-calvinista. Por outro lado, faz pouco sentido supor que um Estado pluralista moderno precise necessariamente ser um Estado completamente secular no sentido iluminista do termo; as intervenes da religio na poltica no deveriam ser consideradas promscuas por princpio. Se o calvinismo teve um importante papel, no passado, para o desenvolvimento de uma prtica poltica mais avanada, como podemos ter certeza de que novas contribuies no podem acontecer? Se o Estado moderno deve tanto ao calvinismo, como pode pretender-se absolutamente autnomo em relao religio?

    Os cristos comprometidos com a cosmoviso calvinstica devem uma vez mais permitir que o seu poder revolucionrio seja libertado, para produzir reformas na vida poltica do nosso pas e trazer glria ao nome do Senhor.

    ABSTRACT

    In this article the author raises initially the riddle indicated by the research of Armando Silvestre concerning the origins of Calvinistic revolutionary politics, which apparently owes more to the political arguments produced by the Lutherans that to Calvin himself. Instead of searching for the roots of Calvinist radical politics in explicit orientations of Calvin, as did Silvestre, the author suggests that the true origin of this politics is the Calvinistic worldview. Applying the philosophical-theological analysis of Herman Dooyeweerd to two fundamental political texts of Luther and Calvin, we observe that the

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    divergence they present on the relation between the ethical and political spheres can be explained as a divergence on their respective law-ideas, that is, their notions on the cosmic order. The Calvinistic law-idea or wetsidee of the absolute sovereignty of God on Creation made possible to Calvin and later Calvinism the differentiation and autonomization of the political sphere without losing the religious foundation, allowing the Calvinistic praxis of resistence to the State.

    KEYWORDS

    Calvinism; Politics; Ethics and Right; State; Worldview; Cultural diffe-rentiation; Nature and grace.