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A Educação em novas arenas: políticas, pesquisas e perspectivas

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  • A EDUCAO EM NOVAS ARENAS: POLTICAS, PESQUISAS E PERSPECTIVAS

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  • Organizadores:Clio da Cunha

    Wellington Ferreira de JesusRanilce Guimares-Iosif

    A EDUCAO EM NOVAS ARENAS: POLTICAS, PESQUISAS E

    PERSPECTIVAS

    BrasliaUnesco, 2014

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  • proibida a reproduo total ou parcial desta publicao, por quaisquer meios, sem autorizao prvia, por escrito, da editora e do Programa Mestrado e Doutorado em Educao da UCB.

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1999, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Coleo Juventude, Educao e Sociedade

    Comit EditorialAfonso Celso Tanus Gavo, Clio da Cunha, Cndido Alberto da Costa Gomes,Carlos ngelo de Meneses Sousa, Geraldo Caliman (coord.), Luiz Sveres, Wellington Ferreira de Jesus

    Conselho Editorial ConsultivoMaria Teresa Prieto Quezada (Mxico), Bernhard Fichtner (Alemanha), Maria Benites (Alemanha),Roberto da Silva (USP), Azucena Ochoa Cervantes (Mxico), Pedro Reis (Portugal).

    Capa: Edson FogaaReviso: ngela de Oliveira PereiraDiagramao: Luis Ricardo Rodrigues SantosImpresso e acabamento: Cidade Grfica e Editora Ltda.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Ctedra UNESCO de Juventude, Educao e SociedadeUniversidade Catlica de BrasliaCampus I, QS 07, lote 1, EPCT, guas Claras71906-700 Taguatinga DF / Fone: (61) [email protected]

    Liber Livro Editora Ltda.SHIN CA Lote 14 Bloco N Loja 02

    Lago Norte 71503-507 Braslia-DFFone: (61) 3965-9667 / Fax: (61) 3965-9668

    [email protected] / www.liberlivro.com.br

    C9724a

    A educao em novas arenas: polticas, pesquisas e perspectivas / Clio da Cunha:Wellington Ferreira de Jesus; Ranilce Guimares-Iosif (Orgs.) - Braslia: Liber Livro, 2014.

    460p. : 24cm

    ISBN: 978-85-7963-130-6

    Universidade Catlica de Braslia. UNESCO. Ctedra UNESCO de Juventude, Educao e Socidade.

    1. Polticas educacionais. 2. Pesquisa em educao. 3. Gesto escolar. 4. Prtica docente5. Polticas, gesto e avaliao. I. ttulo.

    CDU: 37.01

    ndices para catlogo sistemtico:1. Polticas: Educao 37.012. Educao: Polticas 37.01

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    mailto:[email protected]:[email protected]://www.liberlivro.com.br

  • SUMRIO

    PREFCIO ..........................................................................................9Afonso Galvo

    A EDUCAO EM NOVAS ARENAS: UMA BREVE INTRODUO ................................................................................13Ranilce Guimares-Iosif, Wellington Ferreira de Jesus e Clio da Cunha

    PARTE I POLTICAS, GESTO E AVALIAO:

    CENRIOS E ATORES

    1. NOVAS AGENDAS PARA A INTERNACIONALIZAO DA EDUCAO SUPERIOR: RUMO A OPES DESCOLONIAIS E FUTUROS PLURIVERSOS ..............................................................17Lynette Shultz

    2. POLTICA EDUCACIONAL E SITUAO DE POBREZA: EXPLORANDO NOVAS RESPOSTAS PARA PROBLEMAS ANTIGOS ..........................................................................................31Silvia Cristina Yannoulas

    3. OS EFEITOS DAS AVALIAES EXTERNAS SOBRE AS POLTICAS EDUCACIONAIS DO GOVERNO FEDERAL DO BRASIL ..........51Joo Luiz Horta Neto

    4. OS RUMOS DAS POLTICAS DE EDUCAO INTEGRAL NO BRASIL ..............................................................................................79Rosylane Doris de Vasconcelos

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  • 5. OS GRUPOS DE PRESSO DA EDUCAO E A LEI DE GESTO DEMOCRTICA ..............................................................................97Nelson Adriano Ferreira de Vasconcelos

    6. POLTICAS PBLICAS EDUCACIONAIS RECONHECEDORAS DA DIFERENAS: DESAFIOS DA EDUCAO ESPECIAL INCLUSIVA NO DISTRITO FEDERAL. .......................................115Vanessa Terezinha Alves Tentes e Andreia de Lima Campos Rocha

    7. POLTICAS PBLICAS DE EDUCAO NAS ARENAS DA GLOBALIZAO NEOLIBERAL: O PAPEL DO EDUCADOR ..... 133Jos Ivaldo Arajo de Lucena, Maria de Lourdes de Almeida Silva e Wellington Ferreira de Jesus

    8. A POLTICA EDUCACIONAL NO CONTEXTO NEOLIBERAL E SUAS IMPLICAES NA PROFISSIONALIZAO DOCENTE DA EDUCAO BSICA .............................................................151Isabela Cristina Marins Braga, Juliana Lacerda Machado e Ranilce Guimares-Iosif

    PARTE IIAS PESQUISAS EM POLTICAS EDUCACIONAIS:

    ARENAS E PERSPECTIVAS

    9. A PESQUISA NA PS-GRADUAO EM EDUCAO: INVESTIGANDO O IMPACTO DA POLTICA DE AVALIAO NA APRENDIZAGEM E CIDADANIA DOCENTE ....................171Isabela Cristina Marins Braga e Ranilce Guimares-Iosif

    10. A EDUCAO SUPERIOR E O TRABALHO DOCENTE ENQUANTO OBJETO DE ESTUDO: CAMINHOS DA PESQUISA ......................................................................................195Aline Veiga dos Santos e Ranilce Guimares-Iosif

    11. PESQUISA QUALITATIVA DE TIPO ETNOGRFICA EM ESCOLAS PBLICAS: A TRAMA, A AVALIAO INSTITUCIONAL E A CONSTRUO DO PROJETO POLTICO PEDAGGICO ........ 217Luciana Cordeiro Limeira e Wellington Ferreira de Jesus

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  • 12. CIDADANIA, PARTICIPAO SOCIAL, DEMOCRACIA E QUALIDADE NA EDUCAO: A REDESCOBERTA DESSES VALORES NA TRAJETRIA DE UMA PESQUISA .....................239Regina Toms Blum de Oliveira e Wellington Ferreira de Jesus

    13. GESTO ESCOLAR E PRTICA DOCENTE: INSERES NA TRAMA DA EFICCIA ESCOLAR ................................................253Magali de Ftima Evangelista Machado e Cllia de Freitas Capanema

    14. A CIDADANIA NAS POLTICAS E PRTICAS DA EDUCAO INFANTIL: A PESQUISA ENQUANTO CONTRUO COLETIVA ......................................................................................277Aline Leal Gonalves e Ranilce Guimares-Iosif

    PARTE IIINOVOS ESTUDOS E QUESTES PARA A

    PESQUISA EM EDUCAO

    15. CUSTO-ALUNO NO ENSINO FUNDAMENTAL E MDIO NO DISTRITO FEDERAL: UMA ANLISE COMPARATIVA ENTRE O COLGIO MILITAR DE BRASLIA E ESCOLAS DA REDE PBLICA DE ENSINO ...................................................................305Bruno T. Nunes e Flvia Vaz de Oliveira Lima

    16. AVALIAO DA GESTO DO INSTITUTO FEDERAL DE BRASLIA: UMA ANLISE DOCUMENTAL ...............................321Mari Neia Valicheski Ferrari

    17. EDUCAO PROFISSIONAL, CIENTFICA E TECNOLGICA: PROGRAMAS, ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS E DESENVOLVIMENTO LOCAL ....................................................343Marli Alves Flores Melo e Clio da Cunha

    18. UM CAPTULO PS-MODERNO PARA UMA EDUCAO MODERNA .....................................................................................369Martha Paiva Scrdua

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  • 19. POR UMA EDUCAO INCLUSIVA: ORIGENS NO MOVIMENTO DE RENOVAO EDUCACIONAL DE 1932 NO BRASIL ........405Maria das Graas Viana Bragana

    20. A EDUCAO QUILOMBOLA EM MESQUITA: HISTRIA, MARMELO, E IDENTIDADE CULTURAL ................................. 423Manoel Barbosa Neres e Wellington Ferreira de Jesus

    21. ILUMINISMO E EDUCAO: O PAPEL DA ENCICLOPDIA E A CONSTRUO DO PROJETO LIBERAL. ...................................441Antdio de Andrade Carvalho

    Sobre os Organizadores .....................................................................455

    Autores ............................................................................................456

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  • Prefcio | 9

    PREFCIO

    A internacionalizao da educao superior comeou nos anos de 1950, quando o capital se internacionalizou e passou a transgredir leis e fronteiras definidoras do Estado Nacional, criando uma agenda prpria. A lgica da circulao de capital, sem as amarras protetivas do estado, estava no cerne da poltica neoliberal.

    Tambm foi em 1950, que Alan Turing publicou o seu artigo Computing machinery and intelligence, iniciando a conceitualizao de uma revoluo no modo como recebemos, organizamos e processamos a informao que modificaria a natureza das relaes humanas numa dimenso planetria. A questo fundamental endereada por Turing (1950) remete possibilidade de considerar inteligente uma mquina que desempenhe to bem quanto humanos, ou mesmo melhor, certas tarefas cognitivas. Tal questo substituiu asseres anteriores, polmicas e confusas, sobre uma possvel capacidade pensante de mquinas. Em psicologia, a funo principal de modelos cognitivos tem sido a de construir, numa mquina, um sistema cognitivo capaz de processar informao de modo similar ao dos humanos. Isso envolve uma capacidade para gerar representaes de conhecimento, mecanismos de processamento e estruturas de organizao. A ideia que uma mquina, com estas caractersticas, torna possvel entender a estrutura da arquitetura da mente humana, sendo capaz de desenvolver uma conversa plena de significaes, respondendo questes de modo articulado, mesmo quando o conhecimento sobre um dado assunto incompleto. Esta no uma tarefa simples.

    A mquina de Turing se desenvolveu e potencializou a circulao de algo que vai para muito alm do capital dos liberais: o prprio conhecimento. Embora o conceito de inteligncia aplicado a mquinas ainda seja um exagero,

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  • 10 | Afonso Galvo

    j que elas no fazem a metaoperao de controlarem os smbolos com os quais operam, podemos dizer que elas possibilitaram um movimento de culturas como nunca visto. As pessoas hoje se comunicam, instantaneamente, independente do lugar do planeta em que se encontram. Assim, torna-se uma dissonncia cognitiva falarmos em internacionalizao de universidades no Brasil. O problema que, embora o mundo esteja internacionalizado, h indicaes de que a universidade brasileira ainda no participa disso nem conceitual, nem processualmente.

    Um dos pontos mais crticos da universidade brasileira justamente a falta de interao com instituies de prestgio, principalmente com aquelas de padro internacional. O Brasil possui, atualmente, cerca de 200 universidades e um grande nmero de centros universitrios e faculdades. No entanto, so poucas as universidades com parcerias de pesquisa consolidadas e com um programa comum que promova mobilidade de ambas as partes. Uma razo para isso a falta de pesquisa e de professores com formao em pesquisa no Brasil. Dos 340 mil professores atuantes na educao superior brasileira, apenas 25 mil possuem doutorado. Destes, a maioria atua em universidades federais, que, por sua vez, respondem por apenas 26 % do total de matrculas da educao superior.

    Alm da predominante falta de formao para a pesquisa entre nossos professores, h muitos outros entraves no funcionamento das universidades brasileiras que impedem o seu desenvolvimento de modo a se tornarem mais competitivas no cenrio internacional. Um primeiro, diz respeito prpria dificuldade de comunicao dos nossos professores. O idioma internacional da cincia o ingls. No Brasil, ainda so poucos os pesquisadores com domnio adequado desse idioma nas suas quatro dimenses (ler, escrever, ouvir e falar). Entre os estudantes universitrios, o domnio do idioma ingls ainda mais precrio. A ausncia de domnio do Ingls no ambiente acadmico impede no s a colaborao internacional entre universidades, como tambm a circulao de professores estrangeiros, seja como professores visitantes, seja como professores contratados.

    Um outro problema, que embora seja mais srio no contexto das universidades pblicas, o tambm nas universidades confessionais, refere-se

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  • Prefcio | 11

    `as regras de contratao. No importa a qualidade do professor, que pode ser at mesmo um prmio Nobel, para ser contratado no Pas, tem de se submeter a uma via crucis de exigncias, que no faz sentido, quando comparado com o modo rpido como professores internacionais so contratados em universidades de pases que competem conosco.

    Embora a internacionalizao seja importante, fundamental, mesmo ao desenvolvimento das universidades, convm, no entanto, questionar para que serve a universidade no contexto do mundo econmico globalizado sob o vis da economia neoliberal. Como argumenta Shultz, no primeiro captulo deste livro, a universidade contempornea, globalizada e internacionalizada esqueceu a noo de bem comum, que deveria pautar-lhe as aes para tornar-se coadjuvante na produo de conhecimento til economia neo-liberal, com efeitos constantemente nocivos ao planeta e sociedade como um todo. Assim, parece ocorrer uma internacionalizao, mas que no leva em conta a natureza diversificada e complexa da instituio universidade e a correspondente complexidade das diferentes sociedades em que est inserida.

    Os argumentos, acima, representam apenas algumas das poucas preocupaes de um debate de grande complexidade. Este livro aborda diferentes facetas dessa discusso em seus diferentes captulos de forma madura e consistente, sem a pretenso de esgot-lo. Um aspecto bastante positivo da obra concerne prpria desconstruo de alguns conceitos, que tem sido perigosamente tomados por garantido como a prpria aceitao inconteste das polticas de avaliao da educao superior, o modo como isso se relaciona com grupos de interesse e ideologias constitudas no contexto das polticas neoliberais vigentes. Em suma, trata-se de uma obra que certamente abre a nossa conscincia para novas possibilidades no debate sobre a poltica universitria mundial.

    Afonso GalvoReitor da Universidade Catlica de Braslia

    RefernciaTuring, A. (1950). Computing machinery and intelligence. Mind, 59, p.433-460.

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  • 13

    A EDUCAO EM NOVAS ARENAS: UMA BREVE INTRODUO

    A educao constitui, indiscutivelmente, um campo de extrema complexidade poltica e social na arena nacional e global. Em tempos de grandes avanos tecnolgicos e da ampliao de debates, parcerias e acordos internacionais entre governos, mercados e sociedade civil as polticas pblicas de educao assumem novas demandas sociais e so pensadas e gestadas com a participao de velhos e novos atores.

    Foi com base nesse cenrio que resolvemos organizar a presente obra, composta por trabalhos de pesquisadores que vem na poltica e na gesto da educao um campo relevante de discusso, pesquisa e prtica. Para compor a publicao, selecionamos trabalhos apresentados por pesquisadores locais e internacionais no I Frum e III Seminrio Internacional em Poltica e Governaa Educacional1; relatos de pesquisas de mestrado e doutorado realizadas por discentes e docentes da Universidade Catlica de Braslia (UCB) e da Universidade de Braslia (UnB) e; estudos tericos realizados por alunos da UCB em disciplinas da linha de concentrao do Programa de Ps-graduao em Educao Poltica, gesto e economia da educao.

    O livro composto por trs partes. A primeira Poltica, gesto e avalio: cenrios e desafios, oferece ao estudioso da rea de poltica e gesto da educao um panorama amplo e crtico dos novos desafios e disputas que cercam a arena da educao no Brasil e no mundo, desde a educao bsica educao superior.

    1 Terceira edio do evento realizado pelo Programa de Ps-graduao em Educao da Universidade Catlica de Braslia (UCB), entre os dias 26 e 27 de setembro de 2013, com a participao de pesquisadores nacionais e internacionais. O evento faz parte das atividades do grupo de pesquisa do Programa, intitulado Polticas Pblicas, Governana Educacional e Cidadania. Para ver programao completa do evento, veja o link: https://www.ucb.br/sites/000/2/ProgramacaoIForumeIIISeminario2013versao.pdf

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    https://www.ucb.br/

  • 14 | Ranilce Guimares-Iosif; Wellington Ferreira de Jesus e Clio da Cunha

    Dentre os vrios temas abordados nos oito captulos, essa parte da obra discute as novas agendas para a internacionalizao e os riscos dos modelos de governana corporativa em vigor; o espao da pobreza dentro das polticas de educao no Brasil; o impacto das avaliaes externas na poltica de educao nacional; os rumos e desafios da poltica de educao integral; a importncia da sociedade civil organizada e dos grupos de presso na formulao da Lei de gesto democrtica; os desafios das polticas de educao especial inclusiva do Distrito Federal diante das diferenas; a responsabilidade do educador nas arenas das polticas de educao em tempos de globalizao neoliberal e; o impacto das polticas educacionais na profissionalizao docente no contexto da educao bsica. Essa parte inicial conta com as contribuies de pesquisadores da Universidade de Alberta (Canad), da Universidade de Braslia; do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) e do Programa de Ps-graduao em Educao da UCB.

    A segunda parte da obra As pesquisas em polticas educacionais: arenas e perspectivas , apresenta ao leitor seis captulos resultantes de pesquisas realizadas no mbito da linha de pesquisa do Programa de Ps-graduao em Educao da UCB, entre o perodo de 2011 e 2013. Essa parte da obra procura evidenciar a relao dialgica que permeia o processo de contruo de uma pesquisa, que jamais pode ser encarada como uma jornada solitria. Todos os captulos dessa segunda parte evidenciam como orientadores e orientandos do Programa construram pesquisas no mestrado e no doutorado em educao, dando pistas da complexidade que compe essa dinmica, que envolve, dentre outros elementos, os seguintes: a delimitao do tema, a problematizao do objeto de estudo, a definio da reviso de literatura, a escolha metodolgica, a definio de categorias de anlise, a discuso dos resultados e a ampla disseminao da pesquisa.

    A terceira e ltima parte do livro Novos estudos e questes para a pesquisa em educao abre espao para que o leitor reflita sobre a necessidade de novas investigaes sobre temas tradicionais e emergentes na arena educacional local, nacional e internacional. Essa parte da obra composta por sete captulos tericos que apresentam as reflexes dos pesquisadores acerca dos seguintes temas: uma anlise do custo-aluno em escolas de ensino

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  • A educao em novas arenas: uma breve introduo | 15

    fundamental e mdio do Distrito Federal; a avaliao da gesto no Instituto Federal de Braslia; programas e desenvolvimento local na poltica de educao profissional, cientfica e tecnolgica; desafios ps-modernos para a educao contempornea; o Movimento de 1932 e as origens do movimento da educao inclusiva no Brasil; histria e identidade cultural na educao quilombola; a construo do projeto liberal na relao entre iluminismo e educao. Essa terceira parte congrega trabalhos resultantes de estudos coordenados pelos professores Clio da Cunha e Wellington Ferreira de Jesus, em suas atividades com alunos do Programa de Ps-graduao em educao da UCB, entre o perodo de 2012 e 2013.

    importante ressaltar que essa obra s se tornou possvel porque contamos com o apoio da UNESCO/Brasil tanto para a realizao do Seminrio Internacional como para a publicao do livro.

    A proposta est lanada e esperamos que as discusses, estudos e perspectivas aqui apresentadas possam contribuir com a consolidao terica e prtica do campo de pesquisa que abrange a rea de Poltica e gesto da educao no Brasil.

    Ranilce Guimares-IosifWellington Ferreira de Jesus

    Clio da Cunha

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  • PARTE I POLTICAS, GESTO E AVALIAO:

    CENRIOS E ATORES

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  • 17

    1NOVAS AGENDAS PARA A INTERNACIONALIZAO

    DA EDUCAO SUPERIOR: RUMO A OPES DESCOLONIAIS E FUTUROS PLURIVERSOS2

    Lynette Shultz3

    Introduo

    Na ltima dcada, presenciou-se uma proliferao de interesses e pesquisas sobre a internacionalizao da educao superior. Diante deste cenrio, grande parte deste captulo analisa a influncia de instituies transnacionais, internacionais/internacionalizadas, agncias e corporaes sobre os resultados de polticas educacionais nos nveis local, nacional e institucional.

    Este trabalho explora a maneira pela qual atores globais estabeleceram as redes que constroem, legitimam, disciplinam e organizam as prticas que aliceram a educao superior. Trata-se, portanto, de um estudo sobre as crescentes presses que sustentam uma proviso mercadolgica da educao, e de que forma essas presses alteram o que seria possvel no mundo acadmico hodierno. Examina, igualmente, o funcionamento de polticas educacionais em arenas neo-globalizadas e responde, identificando as opes que vo alm das solues corporativizadas e mercadolgicas do conhecimento,

    2 Texto traduzido por Tlio Igor Soares Pereira, aluno da graduao da UCB e assistente de pesquisa do Programa de Ps-Graduao em Educao da UCB. Revisado pela Dra. Ranilce Guimares-Iosif, professora do Programa de Educao da UCB.3 Professora do Departamento de Estudos de Poltica Educacional da University of Alberta, Canad e professora visitante do Programa de Ps-graduao em Educao da UCB desde (2011-2014).

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  • 18 | Lynette Shultz

    ensino e aprendizagem, s necessidades de resistncia e descolonizao da organizao da educao superior. O reconhecimento de processos e prticas educacionais descolonizantes fundamentais para a consecuo de uma justia pluriversa, abre novos espaos para a transformao de polticas globalizantes e mercantilizantes que no atendem aos anseios da maioria das pessoas do mundo.

    Uma Agenda Dominante: A Economia do Conhecimento e a Universidade Corporativizada

    Por que um modelo corporativo de universidade parece legtimo, e por que a universidade corporativizada se tornou um modelo global de educao superior?

    O neoliberalismo globalizado reformulou as barreiras entre o Estado, as instituies educacionais, o setor privado e a sociedade civil. Houve um aumento no volume, abrangncia e complexidade das atividades internacionais em universidades que so sustentadas por um investimento significativo de capital voltado no somente para a produo de conhecimentos, mas tambm para a qualificao de profissionais que promovem o crescimento da economia global (Altbach & Knight, 2007; Shultz, 2013). Essas atividades so frenquentemente enquadradas numa economia do conhecimento, onde o prprio conhecimento (ideias, pesquisa) posicionado numa rede de ensino e aprendizagem, global, altamente valiosa (ou seja, comercializvel). Isso criou a possibilidade para uma globalizao da qual as universidades sempre participaram, ainda que agora sob uma roupagem empresarial global e no como participantes ativos no desenvolvimento pblico de sociedades locais.

    O que tem ocorrido a deslegitimizao do conceito amplo de objetivos pblicos de bem comum das universidades para um sentido mais restrito, favorecedor da construo de capacidades individuais voltadas para o sucesso no setor privado. Consequentemente, o papel da educao superior como meio de construo de uma economia do conhecimento tem se tornado um fator basilar de polticas e agendas educacionais de desenvolvimento econmico em vrios pases e reas regionais de governana (Hartmann, 2007; 2011). Ideias so a nova mercadoria do momento e a criao do conhecimento descrita,

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  • | 19Novas agendas para a internacionalizao da educao superior: rumo a opes descoloniais e futuros pluriversos

    de fato, como a participao de estudantes e acadmicos consumidores e produtores , no grande negcio do capitalismo cognitivo (Shultz & Viczko, 2012; Shultz, 2013). Altbach e Salim (2011) descrevem como a lgica implacvel da economia do conhecimento global e as realidades da mobilidade acadmica transfronteiria influenciam a direo da educao superior (p. 14). Como bem salientado por Bastlich (2010), essas reformas da economia do conhecimento so pautadas por um ambiente poltico que mina o valor e o papel das universidades na democracia, e falha, ao no reconhecer e apoiar a natureza diversa e distinta das inovaes do conhecimento no ambiente universitrio (p. 845). Esse contexto de grandes reformas institucionais altera a percepo daquilo que tido como o modelo legtimo de organizao das universidades.

    Atualmente, presencia-se uma presso muito forte para que gestores universitrios, ao redor do mundo, construam redes internacionais de parcerias corporativas, almejando-se, assim, uma reputao que legitimaria a educao aos olhos dos negcios internacionais, selecionando os vencedores e perdedores desse novo contexto de educao globalizada. Rankings mundiais de universidades, como por exemplo a do Times Higher Education World University Rankings, tm adquirido particular relevncia como legitimizadores e deslegitimizadores de instituies.

    A Corporativizao da Educao Superior

    Uma das ferramentas governamentais utilizadas para mudar o propsito e a autonomia das universidades foi o estabelecimento de um processo poltico enrijecido e um regime poltico subsequente que trouxeram novos atores globais para a governana da educao superior. Torna-se cada vez mais evidente, os impactos que as condicionalidades impostas pelo Banco Mundial e por outras organizaes internacionais (como a OCDE e a UNESCO por exemplo) tiveram sobre as normas e as diretrizes polticas criadoras de um ambiente que favoreceu a proviso e a privatizao de polticas educacionais (Martens, Ruscone & Lueze, 2007). Universidades reformadas refletem o cerne das ideias desses novos atores globais: a de que um mercado global existe e que seu crescimento deve ser a considerao geral de prticas e polticas

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  • 20 | Lynette Shultz

    pblicas e institucionais. As decises mercadolgicas, ento resultantes, seriam as solues para tudo: desde modelos de gesto da educao superior at sobre estruturas curriculares e recursos humanos.

    mister notarmos, tambm, que as verdadeiras decises sendo tomadas em lugares como o Frum Econmico Mundial no so decises da esfera pblica ou dos parlamentos nacionais. Educadores tm notado que atores corporativos como Bill e Melinda Gates, a Fundao Hewlitt e a Clinton Global Initiative comearam a serem tratados como experts educacionais-chave e tm obtido pores significativas do cenrio de polticas internacionais. Essa realidade bem salientada por Stephen Ball (2012), na sua descrio do encontro anual da Clinton Global Initiative (p4):

    Imaginem uma sala repleta dos lderes mais inovadores, socialmente responsveis e determinados do mundo. O encontro anual da Clinton Global Initiative congrega chefes de Estado e de governo, lderes empresariais, estudiosos e diretores de ONGs. Os participantes analisam os desafios globais prementes, discutem as solues mais eficazes, e constroem parcerias duradouras que lhes permitam criar uma mudana social positiva. (Clinton Global Initiative in Ball, 2013, p.4).

    Um outro exemplo, descrito na Chronical of Higher Education de julho de 2013, o da Fundao Bill e Melinda Gates. Parry, Field & Supiano sugerem que o Efeito Gates se desenvolveu tanto das macias doaes voltadas para a educao superior (que, de acordo com os autores, variam em torno de 472 milhes de dlares apenas nos Estados Unidos) quanto de um lobby agressivo de polticos estaduais e administradores universitrios financeiramente limitados. (http://chronicle.com/article/The-Gates-Effect/140323/para 7. Accessed November 23, 2013). Essa ajuda financeira passiva, uma vez que no apresenta crticas s ideias educacionais da Fundao em que o espao estaria aberto para que Gates pudesse financiar pesquisas polticas e sentar-se nas grandes mesas decisoras (ibid). O efeito uma cmara de ressonncia de ideias afins, resultantes das investigaes encomendadas por Gates e defendidas por membros da equipe que se desclocam entre o governo e o mundo da Fundao.(http://chronicle.com/article/The-Gates-

    A EDUCACAO EM NOVAS ARENAS.indd 20 11/08/2014 16:10:55

    http://chronicle.com/article/The-Gates-Effect/140323/para7.AccessedNovember23http://chronicle.com/article/The-Gates-Effect/140323/para7.AccessedNovember23

  • | 21Novas agendas para a internacionalizao da educao superior: rumo a opes descoloniais e futuros pluriversos

    Effect/140323/para 10. Accessed November 23, 2013). No por acaso que grande parte da educao promovida pela Fundao Gates exige, tanto para a execuo dos programas quanto para sua consequente avaliao, elevados nveis de tecnologia da informao. De fato, a Fundao Gates se juntou a gigantes da publicao como a Pearson, estabelecendo e promovendo, juntos, um currculo comumatravs do qual suas asas filantrpicas sustentam os objetivos pela entrega e avaliao macia de educao, os quais esto bem posicionados para oferecer.

    Por que tais grupos so considerados hoje como decisores legtimos ou os grandes realizadores de mudanas? Os atores privados mais bem sucedidos da economia global so vistos como os porta-vozes legtimos de todas as polticas pblicas e sociais no mundo. Sempre que indivduos, instituies ou governos locais renunciam ao seu comprometimento com o mercado global ou com as ideias, normas e valores da austeridade (dispndio pblico reduzido), estes so renegados por atores polticos globais que deslegitimizam os anseios por bens sociais. Desde a ecloso da crise do sistema financeiro internacional em 2008, recursos pblicos destinados aos setores corporativos e financeiros eram vistos como necessidades bem-vindas e imediatas, ao passo que recursos voltados para os cidados comuns e instituies pblicas eram considerados demandas impossveis de serem preenchidas por governos financeiramente limitados. Universidades, assim como cidados comuns e outras instituies pblicas foram conclamados a fazerem mais com menos e a se voltarem para o setor privado no sentido de buscarem recursos financeiros para a realizao de pesquisas. O setor privado se tornou, num mundo caracterizado pela alta competitividade do mercado global do conhecimento, o principal legitimizador de polticas pblicas. Atores corporativos, e seus respectivos setores filantrpicos, entraram nesse jogo para moldarem as polticas (o papel filantrpico) e fornecerem servios (o papel empresarial).

    A mercantilizao da educao superior est acontecendo ao mesmo tempo em que questes mundiais prementes parecem estar ameaando at mesmo a vida no nosso planeta. Parece no haver fim para as catstrofes que conectam as pessoas ao redor do mundo: a economia global, a destruio do meio ambiente, a insegurana alimentar, a escassez de gua, as desigualdades

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    econmicas e sociais, etc. Neste momento to crucial, onde a necessidade de criao de conhecimentos transnacionais e transdisciplinares parece to urgente, muitos argumentam que as universidades esto sendo negligentes ao abandonarem seu papel principal de produtores de conhecimento pblico voltado para a soluo de problemas sociais. As universidades estariam optando, portanto, por opes mais lucrativas do uso de ideias que incrementam no somente o sucesso corporativo, mas tambm a dominncia global na chamada economia do conhecimento (Khoo, 2013; Man-Neef, 2005; Shultz 2013). Ainda que alguns indivduos tenham desafiado a concepo deste novo ambiente corporativizado, poucas instituies tm conseguido resistir s presses neoliberais globais para se tornarem escolas de treinamento, onde seriam dadas aos jovens as habilidades e as competncias necessrias para que pudessem participar como trabalhadores mveis da economia global. Mesmo onde esse apoio mais retrico do que real, a mudana de autoridade e legitimidade dadas s agendas corporativas, que guiam as universidades, no devem ser subestimadas. Tendo abandonado seus papis de guardies do bem comun, os governos assumiram a posio de protetores da economia e dos interesses de lderes corporativos. Na medida em que instituies de educao superior ao redor do mundo esto entrando nessa linha, poucas pessoas esto exigindo que as universidades mantenham o papel de educadores de cidados crticos e ativos da sociedade.

    Para alm de uma agenda dominante: em busca de pluriversalidade no contexto da matriz neo-colonial

    claro que, num mundo com tanta diversidade, deveramos resistir tentao de olharmos apenas para aquilo que constitui a agenda dominante. Walter Mignolo (2011) nos ajuda a perceber as mltiplas respostas s relaes atuais de poder, na medida em que ele sugere que uma consequncia no intencional do pensamento linear global foi o ponto de partida para o pensamento descolonial (p.78). Ele descreve o contexto globalizado como uma matriz colonial (2011, p.3), onde a disputa por controle, autoridade e conhecimento sero o novo campo de batalha do sculo 21 (p.67). Portanto, o papel da educao superior central no entendimento de como tal contexto

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    pode emergir e nos ajudar a entender o engajamento intenso de atores internacionais no estmulo lgica da mercantilizao da pesquisa, do ensino e da aprendizagem.

    Ao redor do mundo, pessoas, cujas epistemologias, experincias e perspectivas de vida foram renegadas por uma longa histria de deslegitimizao dos conhecimentos no-ocidentais, tm realizado contestaes, as quais criam uma onda de movimentos de descolonizao, que demandam que ns aceitemos, genuinamente, os desafios de percebermos como uma inteculturalidade (e inter-epistemologia) poderia nos ajudar a construir futuros globais cosmopolitanos e descoloniais (p. 293). Mignolo clama por um autoconhecimento radical baseado no localismo pluriversal que se transforma num pensamento descolonial analtico (p. 317), que envolve repensar o universalismo eurocntrico e mudar nosso entendimento sobre o mundo do conhecimento, onde vrios conhecimentos no representados nas experincias eurocntricas ou no pluralismo, substituem os problemas do universalismo e excepcionalismo europeus. A pluriversalidade d espao e visibilidade para epistemologias suprimidas ou escondidas pelo expansionismo colonialismo imperial (Cesaire, 2000; Dussel, 1995; Kusch, 2010; Mignolo, 2000; Mignolo, 2003), criando-se, por conseguinte, um rico (ainda que contestado) conhecimento. Um campo de batalha do conhecimento onde mediaes epistmicas fundamentais acontecem e um campo de descolonizao nos localiza na geopoltica do conhecimento (Mignolo, 2000; 2001). Usando o modelo das trajetrias da ordem mundial de Mignolo (2011), podemos perceber mltiplas alternativas e trajetrias no ensino superior global. As presses recorrentes por um ensino superior mercantilizado (defendido, por exemplo, em livros como The Innovative University: Changing the DNA of Higher Education from the Inside Out de Christensen e Eyring), realam a fora re-ocidentalizante que emergiu da crise financeira mundial e das j poderosas redes de atores educacionais que levantavam a bandeira do capitalismo e da economia global.

    A crise financeira evidenciou a importncia dos consumidores para o capitalismo. Sujeitos-consumidores vivem em um mundo particular e possuem uma certa psicologia: eles vivem para trabalhar e trabalham para

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    consumir, em vez de trabalharem e consumirem para viver. (MIGNOLO, 2011, p.36)

    Este cidado-consumidor reimaginado requer uma forma diferente de educao (e conhecimento muito diferente) de um cidado que compartilha uma existncia social e uma esfera pblica, uma vez que o papel reduzido dos cidados requer um ambiente de conhecimento muito controlado (Shultz, 2013). Em vez de transformar o sistema que est beira do colapso, os anseios pela re-ocidentalizao dizem: continue assim; compre mais; existe apenas uma opo e ns precisamos mant-la.

    Emergem, ao mesmo tempo, foras que poderamos chamar de foras des-ocidentalizantes (Mignolo, p. 44 52). Aqui, podemos perceber os esforos de naes e universidades individuais para se tornarem foras liderantes na corrida global pela dominao da economia do conhecimento. Maxim Khomyakov (2013) relata que os pases do BRICS (Brasil, Russia, India, China e Africa do Sul) criaram uma tabela de classificao de universidades alternativa (a chamada BRICS League Tables). Esses pases continuam ausentes das classificaes globais tradicionais (que so majoritariamente dominadas por universidades Americanas e outras baseadas na pesquisa e educao dispensadas em lngua inglesa). Em vez de desafiarem o sistema, esses pases e instituies procuram melhorar suas posies como lderes globais do mundo acadmico. Essa des-ocidentalizao sugere que o sistema no precisa ser mudado, mas que os jogadores precisam ser reordenados para reconhecerem os conhecimentos e realizaes de pesquisadores no-Britnicos, no-Americanos. Essa des-ocidentalizao desafia o privilgio epistmico no sistema dominante/dominado, sem, como consequncia, mudar o sistema. Compartilhando o que Mignolo chama de ponto zero epistmico, re-ocidentalizao e des-ocidentalizao criam um conflito, mas no criam transformao porque ambas emergem do mesmo local epistmico do conhecimento e das tradies ocidentais.

    O pluriversalismo cria o que ns podemos entender como uma noo transformada de justia uma justia pluriversa. Cornel West afirma, no seu trabalho Catastrophic Love: A justia aquilo que se parece com o amor tornado pblico (West, 2009). Ele argumenta que razovel responder aos

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    problemas sociais do nosso tempo com amor, o qual seria uma traduo de um desejo por unio, conexo e transformao das relaes. Tal unio/amor, como fundamento daquilo que pblico, requer, para que se possa criar uma esfera pblica autntica, o engajamento de todas as formas de diferena. West sugere que uma esfera social expandida necessria para responder s catstrofes sociais compartilhadas: pobreza crescente, racismo, patriarcalismo, colonialismo, bem como a negao da sade, educao, emprego, acesso a uma voz na esfera pblica, um ambiente saudvel (West, 2009). A pluriversalidade determina a incluso necessria de conhecimento indispensvel para, de fato, criar aquilo que por essncia, pblico. Instituies educacionais e educadores desempenham um papel importante na criao da pluriversalidade, uma vez que eles criam os espaos, onde variados conhecimentos podem existir como parte de espaos educacionais.

    Por fora das foras da ocidentalizao e da globalizao, Mignolo achou aquilo que ele entende como opes descoloniais: foras globais que revelam a[continuada] lgica do colonialismo e contribuem para um mundo em que muitos mundos podem co-existir (p. 54). Ainda que o universalismo ocidental se projete como o nico caminho do iluminismo e do conhecimento, existe uma conscincia e engajamento crescentes que refletem outras epistemologias e reconhecem as contribuies que tais conhecimentos tm trazido para comunidades locais e para o conhecimento mundial. Essas foras globais demandam que ns consideremos a pluriversalidade seriamente, uma vez que ela no somente permite que resolvamos os problemas urgentes do meio ambiente, das desigualdades sociais, dos problemas econmicos diante dos quais ns temos que confrontar, como tambm libera as epistemologias e, de fato as subjetividades e conscincia coletiva to esquecidas e, escondidas pelo racismo, patriarcalismo e imperialismo do colonianismo. O potencial de transformao das polticas e prticas educacionais descoloniais na criao e disseminao de conhecimento imenso. A criao de um conhecimento pluriverso parece ser uma possibilidade que pode promover um contexto realmente reformador para a educao superior. Uma reforma que seja mais justa e relevante para o provimento de conhecimento e educao realmente necessrios para os nossos tempos, uma educao que no se limite a

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    responder aos anseios da agenda reformista corporativista. O conhecimento descolonizado do pluriversalismo uma grande promessa de fora na resistncia contra a atualmente exigida corporativizao do conhecimento na educao superior.

    Muito dos conhecimentos de que precisamos para chegar a essa justia j foram estabelecidos, mas no esto sendo representados nas pesquisas de instituies americanas e europeias. No entanto, focando nas ideias e prticas indgenas, locacionais, ecolgicas, assim como de outros conhecimentos, dos quais podemos citar o ps-estruturalismo feminista, percebemos que a centralidade dos focos onto-epistmicos da educao esto mudando. Aqui, vemos, de fato, ligaes entre o passado e o futuro dos sistemas de conhecimento. Muitas contribuies intelectuais e organizacionais (como, por exemplo Ausubel, 2012; Dussel, 1995, 2013; Sandoval, 2000; Smith & Max-Neef, 2011; Tuhiwai Smith, 1999) esto criando, como resposta aos potenciais problemas de catstrofes globais, que realam a interseco entre as relaes socioambientais, econmicas, polticas e espirituais, um espao radical para pensamentos opcionais de vida que estejam fora dos padres ocidentais. Tal holismo cria reflexos epistemolgicos no-ocidentais assim como processos em que a descolonizao das relaes e do conhecimento possvel como forma de pensamento e ao contra a matriz colonial de poder.

    Na medida em que instituies de educao superior se defrontam com a tendncia inexorvel dos expoentes de um sistema mercantilizado de criao e de disseminao do conhecimento, os movimentos de opes descoloniais podem manter os espaos abertos para que pesquisas, ensino e aprendizagem possam contribuir para uma justia global pluriversa e no apenas para os objetivos que respondem exclusivamente a uma elite corporativa relativamente pequena. Isso certamente quebra as regras do jogo neocolonial criado pela economia global atual. O conhecimento necessrio para o bem-estar, localmente realizado e globalmente interconectado, deve refletir uma leitura pluriversal do mundo. Uma educao que ensine uma resilincia no corporativizada, uma simbiose fundamental e mutual que retribuem para o professor e o aluno, o administrador e o pesquisador, a humildade do

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    poder que Wade Davis (2001/2007) chama de etnosfera; uma soma total da imaginao, histrias, ideias, sonhos, linguagens e relaes entre as pessoas do mundo inteiro. Responder a essa esfera em sua totalidade e intrinsicamente ligada biosfera e atmosfera parece vital para a sobrevida e existncia humana neste planeta. No h lugar para o colonialismo na etnosfera, uma vez que ela apresenta e demanda uma viso lgica e pluriversal do mundo. A educao, para com e por meio de tal interconectividade, constitui uma poderosa agenda global emergente que as instituies de educao superior poderiam utilizar em seu prprio proveito. Para isso, seria necessrio que a procurassem e a nutrissem dentro de suas organizaes.

    Concluso

    A educao superior tem sido diversamente impactada pela globalizao e pelos esforos de se criar uma economia global do conhecimento. Como resultado, novas agendas e atores entraram na poltica e programao de universidades. Devemos notar, com particular preocupao, o impacto dos jogadores corporativos globais que, como novos atores polticos da educao superior, esto promovendo uma crescente legitimidade pela comercializao da pesquisa, do ensino, da aprendizagem, e de seus prprios produtos. Universidades e outras instituies de educao superior acabam se situando no que Mignolo (2011) denomina matriz global de poder, na qual alguns atores alegam que o modelo corporativo de universidade o nico modelo legtimo de educao superior. Indo alm dessa perspectiva, podemos perceber as possibilidades alternativas emergentes, que podem nos levar a uma troca interconectada de conhecimento baseada na justia pluriversal, liberando, assim, o conhecimento e os detentores invisveis de conhecimento do mundo corporativizado de ideias, alunos e professores. Devemos levar, com sria considerao, as questes que pressionam o mundo e o conhecimento que emergem de uma gama de disciplinas tradicionalmente marginalizadas no processo de globalizao.

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    2POLTICA EDUCACIONAL E SITUAO DE POBREZA:

    EXPLORANDO NOVAS RESPOSTAS PARA PROBLEMAS ANTIGOS4

    Silvia Cristina Yannoulas5

    Introduo

    As reflexes, aqui apresentadas, podem ser consultadas, detalhadamente, no captulo 1 do livro intitulado Poltica Educacional e Pobreza: Mltiplas Abordagens para uma Relao Multideterminada (Yannoulas, 2013b), publicado recentemente. O mencionado livro contm um conjunto de estudos desenvolvidos pelos participantes do Grupo de Pesquisa Trabalho, Educao

    4 As reflexes apresentadas neste captulo so oriundas da transcrio da palestra proferida pela autora no III Seminrio internacional em poltica e governana educacional da Universidade Catlica de Braslia (UCB), realizada no Campus II em 27/09/2013. Agradecemos Prof. Dra. Ranilce Mascarenhas Guimares-Iosif pelo convite para realizao de exposio oral no Seminrio. Agradecemos ao mestrando em Educao (UCB) Jos Ivaldo Arajo de Lucena pela transcrio do udio da palestra, e a Kelma Jaqueline Soares a cuidadosa reviso do texto enviado para publicao.5 Professora Adjunta do Departamento de Servio Social da Universidade de Braslia (SER/UnB), Coordenadora do Programa de Ps-Graduao em Poltica Social da Universidade de Braslia (PPGPS/SER/UnB). Lder do Grupo de Pesquisa Trabalho, Educao e Discriminao (TEDis). Licenciada em Cincias da Educao pela Universidade de Buenos Aires (UBA), mestre em Cincias Sociais pela Faculdade Latino-Americana de Cincias Sociais - Sede Acadmica Argentina (Flacso/Argentina), doutora em Sociologia com rea de concentrao em Sociologia da Amrica Latina e Caribe pelo Programa de Doutorado Conjunto FLACSO/Brasil e Universidade de Braslia (UnB) e Ps-Doutora pela Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais (FAE/UFMG).

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    e Discriminao (TEDis)6 e colaboradores, sobre a Relao entre Educao e Pobreza (REP)7. Em mesas anteriores do evento, j foram apresentados os captulos 2 (Duarte, 2013) e 4 (Horta Neto, 2013b).

    A tese de doutorado em Poltica Social de Duarte (2012 e 2013) apontou a concentrao de beneficirios do Bolsa Famlia e sobre o acesso dessas novas populaes (dentre essas, a populao em situao de pobreza) s escolas da rede pblica de ensino. Essa populao representa a maioria ou uma porcentagem muito alta do pblico estudantil nas redes de educao pblica e no est sendo devidamente atendido.

    J a tese de doutorado em Poltica Social de Horta Neto (2013a e 2013b), tratou da temtica da avaliao educacional. Especificamente, discutiu como as avaliaes realizadas pelo Instituto Nacional de Polticas Educacionais (INEP) e por outros organismos federados podem incidir ou no na formulao das polticas educacionais com vistas ao atendimento da populao em situao de pobreza. Indicou os efeitos negativos que as avaliaes educacionais podem causar aos processos de aprendizagem dos alunos do ensino fundamental.

    A ateno da nossa apresentao, hoje, se centra no levantamento de publicaes recentes online sobre a REP, elaborado inicialmente por Yannoulas; Assis; Monteiro (2012), nos anos de 2009 e 2010 e atualizado em 2013 (Yannoulas, 2013a). Este levantamento e anlise bibliogrfica foi o pontap inicial ao conjunto do projeto e seus diversos componentes, demonstrando-se de fundamental importncia para o delineamento temtico e metodolgico das pesquisas de graduao, mestrado e doutorado, que seriam desenvolvidas pelos pesquisadores do grupo TEDis e colaboradores. Tambm instrumentou nosso movimento de ida e, posterior, retorno a um conjunto de 13 escolas, que atendem populaes em situao de pobreza no Distrito Federal e no Entorno, visando investigar como o cotidiano escolar modificado pela situao de pobreza.

    6 O grupo de pesquisa TEDis se insere no Programa de Ps Graduao em Poltica Social (PPGPS) do Departamento de Servio Social (SER) da Universidade de Braslia (UnB). Mais informaes podem ser obtidas em: .7 A sigla REP originria de Parada (2001). Entendemos a pobreza como uma situao que tem a sua origem condicionada por vrios fatores e realidade passvel de transformao. O nosso estudo sobre educao est restrito a sua dimenso formal.

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    http://www.tedis.unb.br

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    Tomamos como ponto de partida a discusso da situao de pobreza no como um problema puramente tcnico ou explicado pelas condies individuais de cada sujeito. Trata-se de um problema de carter estrutural e no individual, que ao ser relacionado poltica educacional, permite tencionar a suposta universalidade da educao bsica, uma vez que foi garantido o acesso da populao pobre escola. Porm, essa insero das pessoas em situao de pobreza escola pblica ocorreu nos parmetros e no formato escolar que, historicamente, foi predefinido e predeterminado pelo modelo escolar da classe mdia e alta.

    Mas, antes de continuar, preciso definir e dimensionar o que seria pobreza. No incio do nosso projeto de pesquisa, em 2011, uma de cada seis pessoas do mundo sofriam os efeitos perniciosos da pobreza (ONU-Habitat, 2012). Em 2009, na Amrica Latina, 33% da populao encontrava-se em situao de pobreza ou 180 milhes de pessoas que sobreviviam com 2 dlares por dia. Mais de 9 milhes de brasileiros permaneciam em situao de extrema pobreza, o que, naquela poca, era sobreviver com 1 dlar por dia (OSRIO; SOARES; SOUSA, 2011).

    Um olhar especfico sobre a pobreza e o pblico estudantil, com base em Duarte (2012), indica que, tomando o Brasil como um todo, 44% da populao escolar no Ensino Fundamental pblico no Brasil so pobres. O critrio utilizado por Duarte (2012) para identificar populao em situao de pobreza foi o de considerar o nmero de estudantes das escolas pblicas que so beneficirios do programa Bolsa Famlia. No caso do Estado de Alagoas, 73% dos estudantes so beneficirios desse programa. Para a totalidade da regio Nordeste, temos 67% nessa situao.

    Esses dados indicam que, ao tratarmos do tema da REP, no estamos falando de minorias. Estamos dizendo que uma grande parte da populao inserida na escola pblica brasileira traz consigo as demarcaes de classe social, nesse caso, expressas pela situao de pobreza e extrema pobreza, centrada no recorte de renda (ser beneficirio de programa de transferncia de renda). Alm disso, esses nmeros indicam que a cobertura dos servios educacionais, como resultado do primeiro movimento de reformas educacionais na Amrica Latina, nas dcadas de 70 e 80, significou a entrada dos pobres na escola

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    pblica e a sada da classe mdia, desta mesma escola pblica. No Brasil, na dcada de 90, que tendemos a alcanar a suposta universalizao do Ensino Fundamental.

    Por essa tica, a pobreza no vista como problema tcnico, mas como o elemento que coloca em questo a universalidade do ensino fundamental e questiona as potencialidades do formato escolar no capitalismo. O grande nmero de pessoas pobres, ou extremamente pobres no pas e na escola, tambm permite questionar o modelo de desenvolvimento adotado pelo pas, com grande concentrao da renda, que mesmo diante do avano de produo econmica, de desenvolvimento e de infraestrutura, ainda registra um nmero acentuado de pessoas exatamente pobres e que carregam esse enriquecimento do pas as suas custas.

    Entendemos, portanto, que o estudo sobre a REP no pode ocorrer dissociado das reflexes sobre a multideterminao que a compe. Para avanar na busca de respostas sobre a REP, na seo seguinte, ser apresentado o percurso metodolgico que nos permitiu organizar e compreender as produes bibliogrficas levantadas sobre essa temtica.

    Percurso metodolgico

    O nosso objetivo foi o de explorar as pesquisas recentes sobre a escolaridade dos pobres como maneiras em que a sociedade, os cientistas e os polticos definem e regulam a desigualdade. Essa parte da pesquisa foi feita em duas etapas. A primeira foi realizada nos anos de 2010 e 2011. O perodo de anlise foi de 1999 a 2009. A publicao sobre a REP estava, fundamentalmente, disponvel em bases online de alta qualidade, como so a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertaes (BDTD) e o Scientific Electronic Library On Line (Scielo) para os artigos cientficos. Os resultados dessa primeira etapa da pesquisa foram publicados no nmero comemorativo 50 da Revista Brasileira de Educao da Associao Nacional de Pesquisas em Educao (ANPED), conforme consta em Yannoulas; Assis; Monteiro (2012). J a segunda etapa, que incluiu o perodo de 2011, consta em Yannoulas (2013a). Utilizamos como localizadores educao e pobreza. A busca feita na BDTD permitiu localizar 155 dissertaes e teses aprovadas no perodo 1999-2011, das quais

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    86 foram analisadas em profundidade, sendo 56 dissertaes e 30 teses. Recuperamos tambm um total de 70 artigos publicados no perodo 1999-2011 nas bases abertas controladas: Scielo e, complementarmente, no Google Acadmico Beta, porm, apenas 54 deles foram selecionados para anlise. Analisamos o total de 140 produes (54 artigos, 56 dissertaes e 30 teses).

    O propsito de fazer esse levantamento no era restrito a uma simples descrio, mas, centrou-se na busca de entender, preliminarmente, qual tem sido o movimento das cincias da educao e da anlise das polticas sociais sobre a REP. Com isso, intentamos compreender o movimento de transformao que est sendo registrado nas escolas e propor solues para essa nova populao escolar. Queramos apontar lacunas, apresentar os limiares de um campo de saberes conexos em processo de (re) definio e fortalecer o estudo da REP. O que comprovamos que, em grande medida, no h grandes novidades nessa rea, mas como diria Castel (2010) uma metamorfose8, uma recomposio da paisagem, sem constituir uma novidade absoluta.

    Os delineamentos da rea

    A partir dessa etapa exploratria da pesquisa, buscamos tentar definir os delineamentos da rea, como campo do saber, ou seja, quem estuda (autores, grupos de pesquisa, reas do conhecimento, regies geogrficas com maior nmero de produes), quando estuda (perodos com maiores nmeros de produes) e de que forma se estuda a REP (assuntos, conceitos, temas de maior concentrao). Apresentaremos a seguir esses delineamentos.

    Inicialmente, verificamos que o nmero de autores envolvidos nesse conjunto de produes era de 173 ao total, vinculados a 107 grupos de pesquisas, com vrios deles pertencentes ao mesmo grupo de pesquisa. Foram recuperados os curriculum vitae correspondentes aos 173 autores. Em casos, onde um mesmo autor fizesse parte de dois ou mais grupos de pesquisa, consideramos apenas aquele no qual o pesquisador atua como lder, ou, em caso de no ser lder, considera-se o grupo no qual se inscreve a produo selecionada.8 Segundo Castel (2010) a metamorfose abala certezas e recompe a paisagem social e poltica. Mas, no se constitu como novidade absoluta por estar inscrita no contexto de uma mesma problematizao (no caso, a Questo Social).

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    O perodo analisado, que registrou acentuada concentrao de artigos, teses e dissertaes ocorreu entre 2007 e 2008 (42 de um total de 140 produes). Essa concentrao indicaria um aumento, relativamente recente, no interesse sobre o tema. O crescimento tambm pode ser explicado pela expanso e consolidao dos programas de ps-graduao na ltima dcada, pois a maioria das produes selecionadas mantm algum vnculo com esses programas (SANTOS; AZEVEDO, 2009).

    Sobre as regies com maiores nmeros de trabalhos publicados, identificamos o predomnio por parte da regio Sudeste. Por outro lado, no localizamos um nico trabalho cientfico, para o perodo todo, na regio Norte. No temos, at o presente momento, uma resposta para essa questo, ou se apenas um reflexo da maior produtividade cientfica que se registra, historicamente, na diferena existente entre as regies brasileiras com o predomnio de publicaes e programas de ps-doutoramento no Sul e no Sudeste e uma baixssima participao no Norte e de alguns estados do Nordeste. Pode ser um reflexo dessa tendncia mais geral, mas achamos tambm que pode ter relao com alguma especificidade educacional entre o mbito rural e o urbano, mas no tivemos condies de aprofundar a pesquisa para verificar, ou no, essa possvel especificidade.

    Sobre as reas do conhecimento das instituies publicadoras das produes (das revistas onde foram publicados os artigos, ou dos programas onde foram aprovadas as dissertaes/teses), encontrou-se uma concentrao nas Cincias Sociais e Humanas, com nfase especial na rea educacional (70 das 140). Outras reas disciplinares com significativa incidncia foram Economia (29) e Servio Social (15). Localizamos tambm publicaes na rea da sade, mas que no dialogam, diretamente, com o enfoque da pesquisa sobre a REP. Na realidade, essas pesquisas centram-se em estudar de que maneira a sade das crianas afetada pela baixa escolaridade das mes. Nesse caso, no central a REP em si, mas sim os impactos da baixa escolaridade das mes. Ento, talvez, essa pulverizao entre as disciplinas seja explicada pela caracterstica do tema, que , essencialmente, interdisciplinar e no consegue ser explicado, totalmente, por uma nica abordagem. So necessrias diversas abordagens para conseguir uma compreenso mais profunda e complexa da relao.

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    J sobre os assuntos mais discutidos nas produes analisadas foram, nesta ordem, programas de transferncia de renda (25 produes do total de 140 selecionadas) e excluso social e desigualdade social (16 produes). Durante a etapa de coleta de dados da pesquisa, notou-se uma dificuldade com a localizao dos conceitos procurados, muitas vezes, estando dispersos pelo texto, sem uma clara definio. Localizamos uma multiplicidade de expresses e termos, por vezes, utilizados ingenuamente e que remetem a uma pluralidade de conceitos e enfoques tericos muito distantes da unanimidade.

    Verificamos tambm, no apenas a multiplicidade temtica, mas tambm a falta de especializao no tema. No localizamos grupos de pesquisa, ou universidades que apresentem trajetrias acadmicas individuais ou grupais construdas sobre esse tema. Isso pode estar relacionado alta rotatividade de autoria e baixa frequncia que o autor foi registrado, isto , os autores encontrados com publicaes sobre o tema da REP, esporadicamente ou eventualmente, desenvolveram alguma pesquisa sobre a REP, mas o tema no mantido como preocupao ao longo de uma dcada, por exemplo.

    Em consulta realizada aos sites da Associao Brasileira de Ensino e Pesquisa em Servio Social (Abepss, agosto de 2012), da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao (Anped, agosto de 2012), e da Associao Nacional dos Centros de Ps-Graduao em Economia (Anpec, outubro de 2012), constatamos que no h grupos temticos constitudos especificamente para tratar da REP. A consulta realizada s associaes cientficas que representam as grandes reas do conhecimento diretamente envolvidas no estudo dessa relao, conforme nmero de produes e de autores anteriormente citados, indica que no h uma preocupao significativa quanto s reflexes sobre a REP (Abepss, 2007 e SANTOS; AZEVEDO, 2009). Entretanto, necessrio destacar que h um tratamento indireto da REP em trs dos grupos temticos da Anped e que os grupos temticos da Abepss esto em processo de definio. No caso da Anpec, no h estrutura de grupos temticos permanentes, sendo constitudas comisses para elaborar trabalhos especficos conforme requerimentos.

    Na Anped, identificamos trs grupos que fazem, indiretamente, essa discusso, que o Grupo de Educao e Trabalho, Grupo de Sociologia do

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    Trabalho e o Grupo de Poltica Educacional, mas o enfoque no est centrado da discusso da pobreza. No caso da Abepss, observarmos que as reflexes sobre a REP so comparativamente poucas. Isso pode ser explicado, em grande medida, pela incipiente insero das Assistentes Sociais no mbito da Educao. Ainda est em fase de discusso no Congresso Nacional o projeto de lei da Camara (PLC) n 060/2007.9 Ainda h poucas assistentes sociais debruadas em pensar a problemtica educacional e, aquelas que o tem feito, costumam apresentar os seus trabalhos em eventos sobre polticas sociais e no sobre polticas educacionais.

    Categorizao temtica

    Ns nos perguntvamos qual o motivo para esse aumento de interesse pelo tema na ltima dcada. Possivelmente, isso pode estar relacionado com a emergncia e consolidao dos programas de transferncia de renda condicionada no sistema de proteo social brasileiro. Vrios programas sociais, anteriormente pulverizados, foram assumindo configurao prpria. Conforme, SILVA; YASBECK; DI GIOVANNI (2007), a implementao desses programas acompanhada da necessidade de avaliao e estudos de impacto desses programas sociais, o que, em alguma medida, contribuiu para novos estudos sobre a REP, ainda que por meio de perspectivas tericas e metodolgicas distintas. Paralelamente, observamos uma retrao das polticas e programas de trabalho ou para o trabalho (educao e qualificao profissional), como se o Estado abandonasse ou renunciasse meta do pleno emprego e ao trabalho como vnculo social fundamental e o substitusse pela garantia de renda e potencial consumo. Iremos discutir neste captulo uma tentativa de sistematizao sobre o tema. 9 Segundo SOARES e SOUZA (2013), o projeto de lei n 3688/2000 foi transformado no PLC n 060/2007 no Senado (dispe sobre a prestao de servios da Psicologia e do Servio Social em escolas pblicas da educao bsica). Outros projetos de lei que versam sobre o assunto so a Proposta de Emenda Constituio n 13/2007 (que visa acrescentar o inciso ao art. 208 da Constituio Federal de 1988 e prev a garantia do atendimento aos estudantes de equipe de psiclogos e assistentes sociais), o projeto de lei n 6478/2009 (que teve rejeio ao substitutivo, pois houve incoerncias conceituais no texto desse PL) e o projeto de lei n 6874/2010 (o qual tambm passou por consideraes relativas ao texto substitutivo e prope a alterao da LDB com vistas existncia de ncleo psicossocial nas escolas pblicas de nvel fundamental para intervir em situaes de risco).

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    Uma primeira organizao dos dados coletados por ocasio da pesquisa apontou para uma classificao em 12 maneiras diferentes de entender a REP. Principalmente, foram expressivas as alegaes que colocam a educao formal como estratgia para a ruptura do crculo da pobreza (20 de 140 produes), ou como mecanismo de manuteno da ordem constituda (tambm 20 de 140 produes), resultando na manuteno dos polos opostos em torno do poder da educao formal: antdoto contra os males da pobreza no polo positivo, reprodutora da ordem social estabelecida e criadora da pobreza no polo negativo. Outra parcela importante considerou a educao formal como uma das condies para a transformao social, para alm da sua limitao questo da pobreza (tambm 20 registros). Aps, a anlise dessas produes recentes, a nossa tentativa foi a de sistematizar os principais resultados encontrados nas produes cientficas recentes e propor outra ordem classificatria, que seria, basicamente: A REP segundo o acesso dos estudantes pobres escola (prisma da pobreza), a REP segundo a permanncia dos pobres na escola (prisma do sistema escolar) e a REP segundo o futuro dos estudantes pobres (prisma do mercado de trabalho).

    A primeira estaria mais centrada no acesso dos estudantes pobres escola. Seria a tentativa de entender a REP pelo prisma da situao de pobreza, ou seja, consideramos como ponto de partida a situao que o aluno pobre (denominado tambm nas publicaes analisadas de bolsista ou necessitado) carrega para o interior da escola. A REP analisada a partir das histricas articulaes entre as polticas educacionais e outras polticas sociais, especialmente sade e assistncia social. A escola vista como o local da proviso de servios sociais.

    O tema da tenso entre a universalidade das polticas educacionais e a focalizao dos programas de assistncia estudantil muito relevante nesse enfoque. Nesse sentido, destacamos, respectivamente, os trabalhos da pedagoga Campos (2003), da assistente social Soares (2011) e da economista Lavinas (2007).

    Para Campos (2003), esse espao de interseco entre a poltica de assistncia social (focalizada nos mais pobres) e a poltica educacional (universalista) no se expressa de forma clara. Campos (Idem) destaca que

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    os programas da poltica de assistncia social selecionam como pblico-alvo as parcelas mais pobres da populao (os miserveis) e qualquer melhoria da renda familiar motivo para desligamento do programa. J a poltica educacional pautada, ainda que de forma controversa, no acesso universal da populao-alvo. A interface entre essas duas polticas se coloca quando existem os programas de transferncia de renda para segmentos mais pobres da populao e executados por meio da escola (por meio do acompanhamento da frequncia escolar).

    Alm disso, para essa autora, outro problema da REP e da interseco entre as duas polticas sociais, estaria na nula participao do corpo docente na formulao dos programas sociais veiculados por meio da escola, bem como na nula participao dos assistentes sociais nas escolas. As interseces entre as polticas assistenciais (focalizadas nos segmentos mais pobres da sociedade) e as polticas educacionais (universalistas, em tese, abertas para toda a sociedade) denunciam uma convivncia pouco clara e uma tenso permanente entre as diferentes lgicas (focalizada e universalista). Mesmo atendendo faixas etrias includas na obrigatoriedade escolar, os programas assistenciais so paralelos s redes escolares, isto , em grande medida, utilizam a escola como meio de execuo desses programas.

    Soares (2011 e 2013) retoma a questo da relao entre programas de transferncia de renda e escola, desde a perspectiva qualitativa, apontando as percepes dos vrios atores envolvidos na trama que rene, no mesmo espao escolar, funes derivadas das polticas educacionais e assistenciais.10O estudante pobre visto, pelas professoras entrevistadas, por Soares (2011), segundo o ponto de vista das carncias anteriores, as quais ele traz desde a sua origem familiar e que existem antes mesmo de chegar escola. Por isso, necessria a proviso das necessidades materiais dos estudantes, por meio da transferncia de renda e dos outros programas educacionais, da merenda escolar, do uniforme, do transporte e outros.

    Por outro lado, as professoras e gestoras escolares, entrevistadas por Soares (Idem), consideram que a pobreza no um impedimento para a 10 So poucos os estudos que abordam a questo da REP desde o ponto de vista dos beneficirios, excludos ou desiguais. Destacamos: Frigerio (1992), Heckert (2004 e 2010), Naiff. (2008) e Soares (2011).

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    aprendizagem dos alunos. A pobreza pode at ser uma varivel que dificulta a permanncia desse estudante na escola, mas no determinante para o grau de aprendizagem do mesmo. A resposta para o bom desempenho escolar, no estaria no enfrentamento da pobreza ou em modificaes da estrutura escolar, mas sim, no esforo individual desse estudante e da sua famlia em obter bons resultados escolares. A condio de pobreza no seria impedimento para ocorrer aprendizagem e, tambm, no seria fator para modificar alguma composio pedaggica. A exigncia da condicionalidade se faz necessria para permitir o acompanhamento do estudante segundo sua presena na escola ou aos servios de sade de ateno bsica.

    A leitura dos condicionantes socioeconmicos do fenmeno educacional se completa com as anlises estatsticas que correlacionam poltica educacional e poltica de assistncia social. A economista Lena Lavinas (2007) comenta um segundo aspecto problemtico relativo s contrapartidas: a exigncia do cumprimento de obrigatoriedades como condio para o exerccio de um direito social fere os prprios princpios de cidadania. Essa cobrana se torna ainda mais problemtica se considerarmos que no h outros mecanismos de acompanhamento das famlias alm da cobrana de contrapartidas. Para a autora, o gasto social compensatrio (transferncias de renda) no tem condies de alterar o padro de desigualdade do pas. Em contraposio, so os fatores que elevam os rendimentos do trabalho das mulheres pobres o que reduz significativamente os nveis de pobreza a proviso de servios pblicos.

    Essa primeira proposta de ordem classificatria evidencia, portanto, que a REP pode ser estudada a partir da interface entre poltica de assistncia e a poltica de educao, as definies de pobreza e cidadania atuam como delimitao do patamar mnimo de direito educao no contexto do conjunto das necessidades a serem satisfeitas. O foco da crtica dessas pesquisas estaria no estabelecimento de linhas de pobreza e na determinao da quantidade e da qualidade de educao a ser recebida pelos pobres e garantida pelo Estado.

    Uma segunda forma de sistematizao a que estuda a REP segundo a permanncia dos pobres na escola (prisma do sistema escolar), que seriam os fracassados, os excludos os desiguais. A ateno est centrada no entendimento do percurso que esses alunos fazem dentro do sistema

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    educacional ou como transitam pela escola. Nesse caso, destaca-se a anlise do desempenho escolar desses alunos, quais so as suas aprendizagens escolares. H, portanto, uma preocupao maior com os aspectos educacionais do que com as condies socioeconmicas de acesso ao sistema escolar.

    Os estudos, dessa ordenao temtica, analisam como ocorrem os mecanismos de seleo e discriminao ao interior da instituio escolar. Os autores se perguntam os motivos pelos quais a expanso do sistema escolar no resultou nas mudanas almejadas. O fato de focarem no sistema escolar no significa que esses estudos no interpretem o conjunto de relaes sociais que atravessam a escola.

    Os autores includos no segundo grupo de estudos analisam os mecanismos especficos que atuam na REP. Estudam como operam os mecanismos de discriminao, seleo e excluso com base na classe social no interior da instituio escolar, na perspectiva da sociologia da experincia escolar (DUBET, 2003, 2008). Tambm se perguntam por que a expanso do sistema escolar no resultou nas mudanas almejadas? Por que a suposta igualdade de oportunidades no levou a uma igualdade de resultados?

    Destacamos o estudo de Peregrino (2010) que foca seu olhar nas trajetrias percorridas pelos jovens pobres na escola, fundamentalmente, a partir das desigualdades que marcam seus percursos. A pesquisadora utilizou fontes de pesquisa diversas, como as fichas dos estudantes matriculados desde a criao da escola, a observao no corredor da escola, os recreios no ptio, a praa prxima, entre outros espaos que fazem parte da dinmica escolar. A pesquisa objetivou mostrar os nexos entre a reproduo das relaes sociais de produo e as atuais polticas de expanso da escola com suas consequentes formas de escolarizao degradadas. Influenciada teoricamente por Bourdieu, a autora procurou desvendar as manobras pelas quais a instituio escolar atual, que permite s camadas populares o acesso e a permanncia prolongada, transforma os diferentes em desiguais num processo sutil e de degradao contnua do sistema educacional, utilizando-se para tanto do denominado efeito turma.11

    11 Sobre o efeito turma ver o verbete de Lafontaine (2011).

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    Os estudos sobre os mecanismos de seleo e discriminao ao interior da instituio escolar valem-se de conceituaes que permitem captar os circuitos educacionais segmentados (nveis do sistema), diversificados (especializaes ou tipos de estudo) e fragmentados/segregados (instituies fechadas com relativa homogeneidade cultural e social) com base na classe social e a raa/etnia dos frequentadores, ou o estudo das trajetrias educacionais diferenciadas em funo do gnero do corpo discente. No primeiro caso, estamos falando de atingir patamares de escolaridade diferentes ou frequentar instituies distintas em funo da origem racial e de classe. No segundo caso, estamos afirmando que possvel aprender coisas diferentes e transitar entre o sistema educacional e o mercado de trabalho de maneiras at opostas quando se membro de um ou de outro gnero, ou ainda segundo a escolaridade (anos e tipo) dos pais (TIRAMONTI, 2008).

    Por fim, a terceira forma de sistematizao, seriam os estudos preocupados com o futuro, ou seja, com a sada desses alunos do sistema educacional. central nesses estudos a identificao da REP pelo prisma do mercado de trabalho. Nesse caso, os autores analisam como operam os mecanismos de seleo do mercado de trabalho com base na certificao educacional e observam as adaptaes ou modificaes do sistema educacional ao sistema produtivo e ao mercado de trabalho.

    Nessa terceira categoria, registramos um nmero sensivelmente menor de produes12, o que pode ser um indicativo da menor preocupao cientifica pelo (futuro) trabalho e da maior preocupao com a (presente) renda, um deslocamento da preocupao pela escolaridade (individual e coletiva) como fator influente no mercado de trabalho, para uma preocupao com as maneiras em que acontece e se desenvolve a escolaridade no caso dos grupos desfavorecidos, e tambm com as influncias dos programas de transferncia de renda (positivas e negativas) nas escolaridades dos pobres. Esse deslocamento no uma transformao absoluta ao interior das cincias da educao, seria uma metamorfose porque habilita e legitima uma lgica diferente para lidar

    12 Seguindo o texto que origina este artigo (YANNOULAS, 2013a), no h um detalhamento e/ou exemplificao das produes bibliogrficas que tratam da REP pelo prima do mercado de trabalho. Isso ocorre porque se trata de categorizao temtica com baixo nmero de trabalhos acadmicos recuperados, selecionados e analisados.

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    com a escolaridade dos pobres, mas ainda no constitui uma ruptura absoluta ao interior do campo da REP.

    Existiria, ento, um reordenamento entre as polticas sociais porque passa a existir uma centralidade na renda, em detrimento do trabalho. Cada vez mais, verificamos a perda da utopia da escola como meio ou instrumento de mudana do pas, das pessoas e dos grupos ou coletivos. E cada vez menos, registramos a meta do vnculo com o mercado de trabalho e do emprego formal pleno. H um movimento de perda de relevncia e de aposta no trabalho (futuro de relao social) para a aposta na renda (presente de consumo).

    Concluso

    Realizamos um esforo no sentido de localizar e analisar as produes acadmicas recentes sobre a REP. Depois, mapeamos os assuntos nela envolvidos, bem como relacionamos as categorizaes temticas possveis da REP. Nesse sentido, realizamos uma sistematizao que considera as abordagens segundo a perspectiva ou prisma pelo qual a REP observada: se desde o ponto de vista do fenmeno educacional (os fracassados, os excludos e os desiguais) ou, desde o ponto de vista dos seus condicionantes (os pobres, os necessitados e os bolsistas) ou ainda desde o ponto de vista do mercado de trabalho (os trabalhadores e os desempregados do futuro).

    A nossa aposta com a apresentao realizada no contexto do seminrio, assumindo o risco de nos repetirmos, foi a de divulgar os resultados e achados de pesquisa, chamando reflexo e dando destaque ao estudo da REP, na medida em que so indicados os projetos societrios em disputa por detrs das maneiras de classificar as produes. O estudo da temtica da pobreza e a sua invisibilidade no espao escolar no deveria ocorrer no sentido de escamotear uma parte da realidade social, com uma finalidade intrnseca de dominao de uma classe sobre a outra, mas sim, como um processo social, cultural e poltico mais amplo com vistas a um novo formato escolar, e at mesmo, um novo modelo societrio.

    Essa invisibilidade do tema da situao de pobreza no mbito da educao nos leva, por vezes, a considerar que o fracasso escolar est centrado no indivduo

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    pobre, o qual, em grande medida, culpabilizado por essa situao, que tem origem na forma desigual como o sistema escolar se estrutura. Verificamos, de acordo com o levantamento realizado, que h um predomnio das polticas focalizadas para atendimento da populao em situao de pobreza por meio dos programas de transferncia condicionada. Entendemos que essas aes e programas ainda esto centrados no acesso dessa populao educao formal, mas pouco se relacionam com a dimenso de futuro e de garantia de acesso ao mercado de trabalho.

    As alternativas para a ampliao do papel dessas polticas sociais e da garantia do direito educao por parte da populao em situao de pobreza so complexas, mas podem adotar o caminho que enxerga a multideterminao da pobreza e do sentido da educao escolar. No compete escola a responsabilidade pela mudana social, mas preciso considerar o papel da escola como promotora da cidadania, tendo em vista, que uma sociedade que valoriza e reconhece o papel das professoras e professores, das trabalhadoras e dos trabalhadores da educao e da escola pblica como espao de cidadania, ser hbil em questionar a ordem vigente e propor novas formas de sociabilidade.

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