Upload
dinhnga
View
214
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
Pedro Abramo Profesor de la Universidad Federal de Río de Janeiro y del Lincoln Institute of Land Policy
Material presentado en el curso Mercados de suelo: teoría e instrumentos para la gestión de políticas. Junio 6 y 7, 2004, Buenos Aires: Lincoln Institute of Land Policy – Universidad Nacional General Sarmiento, Instituto del Conurbano.
A definição mais geral que se pode dar do circuito monetário urbano consiste em descrevê-lo
pelas relações triangulares que a moeda estabeleceria entre os agentes econômicos. Esses elos
triangulares e o tipo de circulação que provocam, evidenciam a dimensão seqüencial dos atos
mercantis1. Este circuito seria então uma descrição mínima da economia monetária de produção
residencial vista do ângulo do percurso seguido pelos empréstimos que concedidos aos
empresários urbanos, cujo objetivo é aumentar a quantidade de moeda em circulação apostando
no futuro por intermédio da produção de um bem qualquer. De acordo com a definição de
Parguez, o circuito vai descrever uma economia monetária de produção cujo modelo de
acumulação faz com que seja fundamentada no crédito2. Vamos tratá-lo aqui como um
encadeamento dos contratos monetários existentes entre os agentes de mercado residencial
cujo ponto de partida é o adiantamento (criação) monetário concedido a uma desses agentes
(empresário). A hipótese da "teoria do circuito" que vamos adotamos, vê a moeda como tendo
sido criada ex nihilo por um agente que, até agora, fora excluído de nosso raciocínio espacial,
mas que, no circuito monetário, vai assumir o papel de "emissor" de moeda de crédito. Este novo
personagem mercantil é o banco (ou o sistema bancário). Como veremos, ele terá
responsabilidade, tanto no jogo especular como na preservação (ou no fracasso) da convenção
urbana.
Nossa proposta de uma tipologia dos agentes do mercado residencial e das relações
estabelecidas entre si não corresponde nem à da ortodoxia neoclássica, nem à da sociologia
1 Para a exposição da economia monetária como dependente de atos triangulares, ou seja, considerando a
presença do banco no mercado enquanto fonte de decisões, ver Graziani, 1988. Para a discussão sobre o papel seqüencial da teoria do circuito, ver De Vroey, 1988.
2 Cf. Parguez, 1987.
1
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
2
urbana marxista3. Ela se restringe às questões referentes ao acesso à moeda e às
transferências de capacidade de despesa definidas por uma decisão de produção de bens
residenciais, assim como aos contratos monetários que codificam tais relações. Supomos, aqui,
que a demanda de moeda seja "endógena"4 e a circulação se restrinja à que Keynes qualificou
de industrial5. Em prosseguimento, retomamos os termos da circulação industrial sob o aspecto
do papel atribuído ao crédito pela "teoria do circuito"6. Como se sabe, os compromissos
funcionais, que o acesso à moeda estabelece, serão codificados por meio de contratos
monetários; no entanto, em que pese o papel determinante do contrato salarial nas relações
mercantis, mais nos interessa o contrato que se situa na abertura e no fechamento do circuito: o
que codifica os compromissos de empréstimo/dívida assumidos entre os diversos personagens
do mercado da localização residencial.
Para possibilitar a descrição das relações monetárias entre os agentes do circuito, é preciso
primeiro apresentar esses personagens. É a oportunidade de reafirmarmos nosso pensamento
heterodoxo, uma vez que esta apresentação dará destaque, em termos monetários, à idéia já
mencionada (de uma perspectiva mais cognitiva) de que os participantes do mercado residencial
são "agentes heterogêneos"7. Vamos, pois, trazer à cena estes personagens e suas estratégias
decisórias, antes de descrever as relações monetárias que se estabelecem entre eles.
Os personagens do circuito monetário urbano simples e suas estratégias mínimas No capítulo sobre a incerteza urbana, assinalamos que as decisões cruciais tanto poderiam
provir das famílias como dos capitalistas empresários. De modo que, a partir do momento em
que concebemos a ordem urbana como um mosaico de externalidades de vizinhança e as
residências como já não sendo construídas segundo o princípio ortodoxo do "capital flexível" (a
3 É preciso não esquecer que esta última tem por base a teoria da renda fundiária urbana. Neste sentido, o
levantamento dos promotores realizado por Topalov (1974, 1988) e Lipietz (1974) prende-se em grande medida, às particularidades da interpretação desses dois autores sobre a teoria da renda.
4 Para uma reexame das concepções heterodoxas da demanda endógena de moeda, ver Harris (1981), Lavoie (1982, 1986), Moore (1988), Graziani (1991) Messori (1991) e Wray (1986), 1988). Para uma perspectiva mais próxima dos neomarxistas, ver Dimitri (1990).
5 Alguns autores ligados à teoria do circuito recorrem também à circulação schumpeteriana; ver, por exemplo, Messori (1986, 1988).
6 Para uma exposição da teoria do circuito, ver Poulon (1982-a, 1982-b), Parguez (1984), Messori (1985), Lavoie (1987) e Graziani (1988, 1990).
7 Até aqui, utilizei mais freqüentemente o termo "ator", tanto para a oferta (capitalistas) como para a demanda (famílias ou trabalhadores) do mercado da localização. Com referência ao circuito monetário urbano, prefiro a palavra "personagem" para identificar os capitalistas, os trabalhadores e o banco, não porque modifique a "tipologia" dos participantes do mercado, mas sim para sublinhar que estamos, agora, mais numa perspectiva agregada do que num processo especular que propicia a emergência da convenção urbana. Enquanto "ator" remete à dimensão cognitiva e aos comportamentos individuais, "personagem" revela uma perspectiva agregada e mais funcional.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
3
cidade-Leggo), o lugar dos capitalistas-empresários, enquanto atores ativos da configuração das
externalidades, levou-nos a rejeitar a perspectiva ortodoxa da homogeneidade dos agentes do
mercado da localização. Neste sentido, a figura do empresário schumpeteriano é a que melhor
nos pareceu representar o desejo de encontrar um poder e uma capacidade de agir sobre o
mercado.
Essa clivagem entre os atores do mercado da localização também foi evidenciada no processo
especular urbano, onde o medo e a dúvida criadas pela incerteza produzem comportamentos
imitativos. Neste contexto, vimos que os capitalistas, tirando partido de sua posição de ator que
oferece bens residenciais, esforçavam-se para levar as famílias a acreditarem que eles sabiam
de antemão onde poderiam ocorrer as externalidades de vizinhança que elas esperavam.
Quando essa idéia de que os empresários teriam uma maior capacidade de antecipação vira
crença, suas proposições de inovação espacial tornar-se-ão críveis aos olhos das famílias. No
plano cognitivo do processo especular urbano, já clara uma certa "heterogeneidade" entre os
participantes do jogo das antecipações cruzadas.
No princípio era a despesa produtiva. E o capitalista-empresário Fora de um cenário estritamente cognitivo, pode-se pensar que a clivagem entre os atores do
mercado seria estabelecida em função de sua efetiva capacidade de acesso à moeda e de
despesa monetária. Essa observação faz duvidar da hipótese ortodoxa dos "cambistas
voluntários" iguais no que se refere às relações mercantis, e torna mais atraente a hipótese da
heterogeneidade dos indivíduos que supõe a existência de pelo menos duas categorias de
agentes, "os que têm possibilidade de tomar decisões econômicas relativas à produção, e os que
só podem decidir de suas ações ante a situação criada pelos primeiros"8. Como vimos no
capítulo sobre a convenção urbana, essa idéia, no estrito âmbito da pura especularidade
cognitiva, é dificilmente aceitável, uma vez que todos estariam envolvidos em um jogo cognitivo
e não haveria os limites que a contenção dos atos pode impor á imaginação. Mas no jogo
especular espacial e econômico, as antecipações devem ser traduzidas em atos mercantis e é
então que se diferencia a capacidade de os participante do jogo especular tomarem decisões:
ela vai depender da capacidade de despesa de cada um.
Seria possível estabelecer uma analogia entre a distinção de Cartelier acima mencionada e a
configuração da ordem residencial, dizendo que a capacidade de efetiva emergência de
externalidades de vizinhança em torno das residências nos leva de volta às decisões de
produção de bens residenciais, que nos remete, por sua vez, às diferenças de acesso à
capacidade de despesa e ao próprio papel que essas despesas teriam no que se refere às
8 Cartelier, 1990, p. 10.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
4
estratégias dos participantes do mercado. Sob esse aspecto, é o caso de lembrar o princípio de
funcionamento da economia capitalista, que Kalecki propôs em forma de aforismo: "os
capitalistas ganham o que despendem, enquanto os assalariados despendem o que ganham".
Ao mesmo tempo em que define diferentes estratégias mercantis, esta imagem estabelece uma
verdadeira distinção entre duas "classes" de agentes segundo tenham "possibilidade ou não de
assumir a iniciativa das despesas"9. Em outras palavras, ela permite discernir a heterogeneidade
dos atores do mercado do ponto de vista da circulação monetária10.
Em linhas gerais, o que se destaca nessa definição da não-homogeneidade dos agentes é a
existência, de um "lado" do mundo mercantil, dos que, ao obterem acesso à moeda graças a
uma "declaração de intenção de produzir", adquirem a possibilidade de utilizar um
encadeamento de relações de troca − para "essa gente", as portas da criação monetária serão
abertas a partir de uma decisão (um compromisso) de despesa produtiva − , ao passo que, do
outro "lado", encontram-se aqueles cuja possibilidade de acesso à moeda e, portanto ao poder
de despesa que ela confere, depende da decisão de despesa dos primeiros. Esta distinção está
no âmago das proposições de heterodoxas concernentes à circulação monetária e, mais
particularmente, no da "teoria do circuito". Ela permite explicar, de fato, as relações funcionais
estabelecidas entre as duas "classes". Mais adiante, voltaremos a essa desigualdade de acesso
à moeda para uma outra abordagem do circuito monetário; contudo, convém assinalar, desde já,
que tal acesso articula-se também, para ambas as "classes", com as estratégias de despesas
estabelecidas por cada uma.
O aforismo de Kalecki deixa claro que os que têm acesso à moeda (pelo viés da criação da
moeda de crédito) assumem o objetivo de captar um fluxo monetário superior ao que possuíam
no início do processo de circulação. Mas vão precisar despender e estabelecer uma estratégia
para operar essa captação, ou seja, produzir um bem. De sorte que os capitalistas-empresários
ganham justamente o que despendem e os outros, os assalariados (trabalhadores ou famílias)
terão como única estratégia despender o que ganham. E o que eles ganham não será mais que
a despesa dos capitalistas. É então que cabe indagar como as estratégias de despesas dos
capitalistas podem levá-los a captar um fluxo monetário. A resposta da tradição heterodoxa,
particularmente a pós-keynesiana, recorre uma vez mais a Kaleck, ao utilizar sua noção de mark
up.
9 Ibid. p. 11. 10 Sobre este ponto, convém lembrar a proposição de Cartelier e Benetti (1981) e, muito particularmente, a
de Cartelier (1985) quando dizem que os postulados da nomenclatura dos bens e da moeda são dois diferentes pontos de partida para a discussão sobre as relações mercantis (ver nosso capítulo sobre a convenção urbana).
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
5
Convém retornar agora à dimensão estritamente espacial e dizer que a estratégia dos
capitalistas-empresários urbanos terá particularidades que a distinguirão da de outros
capitalistas-empresários, visto que sua antecipação é baseada num exercício de previsão quanto
ao futuro da ordem residencial. Em outras palavras, vão antecipar no jogo especular urbano
procurando de indícios sobre a ordem espacial futura que lhes permitam fixar um mark up
(imposição de uma margem de lucro à demanda). É, portanto o caso de afirmar que, no tocante
às representações da circulação monetária, é possível estabelecer uma distinção entre os
capitalistas-empresários e situar no centro do circuito aquele que produz os bens residenciais.
Ele é o primeiro personagem do circuito: aquele cuja decisão de produzir desencadeará outros
atos de despesa monetária. É a expectativa da captação de um fluxo monetário futuro induzido
pela modificação da configuração da ordem espacial que vai definir o empresário urbano e suas
despesas produtiva.
Aqui nos parece pertinente dizer algumas palavras sobre a relação entre mark up urbano e
circuito monetário, retomando a idéia de diferenciação-inovação espacial apresentada no
capítulo sobre a incerteza urbana. Supúnhamos então que as práticas de inovação visavam,
sobretudo, a reintroduzir no mercado a capacidade de impor um lucro, e para destacar o caráter
crucial desses atos, utilizamos a hipótese schumpeteriana. Ao retomá-la de um ponto de vista
kaleckiano, dissemos que o poder desses empresários consistia em impor um mark up urbano.
Contudo, como esse mark up antecipado só poderia ser realizado sob o efeito uma convergência
das decisões de localização, sugerimos que seria, na verdade, a tradução monetária da
proposição de uma nova convenção urbana, que se daria pelo bias da estratégia dos
empresários-capitalistas de fixação do mark up.
Anteriormente, insistimos no fato de a convenção urbana ser o resultado de um processo
especular em que, diante da incerteza urbana radical e da obrigação de antecipar as escolhas de
localização dos outros agentes do mercado, os atores se valem de comportamentos miméticos
como "técnicas de tomada de decisão". Nesta representação da ordem espacial enquanto
mosaico de externalidades de vizinhança coordenadas pelas convenções urbanas, sempre
haveria a possibilidade de surgirem decisões cruciais que subverteriam a ordem estabelecida
pela convenção antiga, e outras que, ao rejeitarem a convenção estabelecida, proporiam uma
nova. Falamos da prática da diferenciação-inovação que, na tentativa de instaurar um mark up,
destrói as antigas e propõe novas convenções. Em seguida, sugerimos que, grosso modo, as
diferenciações espaciais poderiam seguir dois caminhos diferentes, vertical e horizontal11, o que
nos levou a uma segmentação da demanda segundo os recursos de que as dispõem para
decidir de suas despesas. A diferenciação horizontal procuraria captar a demanda no interior de
11 Ver o capítulo sobre a incerteza urbana.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
6
um mesmo "tipo" de família, ao passo que a diferenciação vertical proporia uma mudança na
"qualidade" do bem, o que nos remete a um deslocamento da demanda solvível, isto é, a uma
mudança nos "tipos" de famílias interessadas pela nova oferta de bens. A representação do
espaço enquanto mosaico de externalidades definido pelos recursos familiares permitiu-nos dizer
que as práticas de diferenciação-inovação produzem mudanças quanto às características do
bem moradia em si, mas induzem, ao mesmo tempo, modificações quanto à configuração das
externalidades de vizinhança. Ou seja, tratar-se-ia precisamente de diferenciações-inovações
espaciais.
Podemos supor, então, que, sempre que os empresários propõem uma nova intervenção na
ordem urbana, por meio de inovações espaciais, ela seria compatibilizada com as demandas
endógenas de moeda enquanto mark up antecipado. Em outras palavras, a dimensão cognitiva
da proposição que visa operar a coordenação residencial das famílias seria expressa em termos
monetários; portanto, é a criação monetária que permitiria as despesas necessárias para que a
crença referente à externalidade residencial de vizinhança se torne realidade. Ao antecipar o
mark up urbano por intermédio de suas demandas de moeda, os empresários provocam também
uma valorização monetária das localizações residenciais que confirma os indícios cognitivos das
proposições precipitadas pela emergência de uma nova convenção. É preciso assinalar que o
mark up urbano é concebido aqui num quadro shackleano, em que os preços são convenções, o
que nos afasta um pouco da conceituação tradicional de Kalecki, onde a incerteza radical não
tem um papel significativo na formulação das grandezas econômicas. Num universo onde os
preços são baseados em convenções, o mark up urbano estaria indissoluvelmente ligado às
convenções estabelecidas em torno da ordem residencial, e as criações monetárias seriam o seu
reflexo12.
De modo que é possível imaginar que, no desejo de modificações cada vez mais freqüentes das
características de uma localização, uma lógica de diferenciação-inovação espacial vertical
acarretará uma circulação em que o volume da moeda de crédito demandada será mais e mais
importante. Deste ponto de vista, a preocupação dos empresários com reiterar essa lógica traria
em si uma certa tendência a fazer do circuito monetário urbano o veículo de um crescimento
incessante desse volume, com todos os perigos que comporta13.
12 Para Kalecki, o mark up seria determinado pelo grau de poder que as empresas detêm sobre o mercado
e por sua capacidade de autofinanciamento em um ambiente mais agregado (ausência de dimensão micro-econômica) e de "certeza". Agliardi (1988) tentou introduzir uma dimensão de incerteza na formulação de Kalecki, utilizando procedimentos bayésianos. Essa abordagem foi criticada por Garretsen (1990) que introduz a operação de redução da incerteza ao risco knightiano e propõe uma linha de pensamento baseada nos preços definidos por convenção. Esta é a abordagem que vamos adotar.
13 Esta imagem de uma circulação monetária que permite assumir um número cada vez maior de compromissos de crédito-empréstimo, tendo por base uma convenção urbana, lembra Kinsky (1982) e
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
7
Essa tumefação, que poderíamos chamar de "efeito bola de neve" monetário (que aumenta de
volume a cada mudança de convenção urbana) seria de fato a manifestação do deslocamento
espacial dos efeitos de valorização. Estes, como vimos, são um resultado da lógica de
destruição criativa de localizações residenciais14. Entretanto, deviso às possíveis evasões do
circuito monetário urbano e ao eventual fracasso da convenção urbana como elemento da
coordenação das decisões de localização, essa tendência à expansão do volume de moeda de
crédito em circulação lembra as "bolhas especulativas" a que Galbraith freqüentemente se
refere15. Temos aqui um primeiro ponto de tensão entre a estratégia adotada por um dos
personagens do circuito monetário urbano (o empresário-capitalista) e a lógica circulatória que
ele deflagra. Se é verdade que esta tensão é relativa à capacidade de coordenação da
convenção urbana e aos efeitos agregados dos atos mercantis, é também verdade que, ao
introduzir volumes monetários crescentes, essa lógica pode ultrapassar os movimentos de
especulação espacial pura ("motivo-especulação" dos trabalhadores-famílias).
Sobre este último ponto, somos de opinião que a perspectiva da teoria do circuito deveria sair do
campo circulatório e abrir-se às proposições pós-keynesianas como as de Minsky e Davidson.
Segundo esses autores, a liquidez e a dinâmica especulativa de "Wall Street" estão a ponto de
serem realmente impostas à economia de produção. Aí está um primeiro indício de que o
funcionamento do circuito monetário depende da confiança de que goza a convenção urbana e
de seu poder de reunião. Além disso, quando os empresários levam sua decisão de produzir − a
que propicia a abertura do circuito − ao extremo da lógica de inovação espacial, ela se revela
capaz de conduzir a uma lógica de "Wall Street" pura, ou, segundo os termos de Parguez,
próxima à de uma "economia de quem vive de rendas"16. Significa que, quando radicalizam sua
lógica de acumulação mediante a inovação espacial, os empresários correm o risco de provocar
a negação da economia monetária de produção residencial e mergulhar a circulação monetária
em uma lógica de especulação pura. Então ocorreria a paralisia das decisões de despesa
produtiva e, portanto, a ruptura da circulação monetária urbana. Daí à crise urbana, é um
passo...
sua idéia de fragilização financeira. Por analogia, poderíamos falar de "fragilização urbana" e, portanto, da possibilidade de crises urbanas.
14 Ver o caítulo sobre a convenção urbana. 15 Cf. Galbraith, 1992. 16 Cf. Parguez (1987-a, 1987-b).
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
8
Os trabalhadores-famílias e os dois motivos da escolha de localização A esta altura, é tempo de introduzir outros personagens do circuito, aqueles que "despendem o
que ganham", ou seja, os assalariados17. Para a teoria de circuito, os trabalhadores (ou as
famílias) desempenham um duplo papel: "por um lado, fornecem a mão-de-obra necessária para
a produção; e por outro, justificam, ou não, as antecipações e as decisões das empresas à conta
da utilização que dão ao salário que lhes foi previamente atribuído."18 Então são os
trabalhadores-famílias que ratificam as antecipações de localização propostas pela oferta de
bens residenciais. E sua maneira de ratificar (ou rejeitar) a apreciação dos capitalistas-
empresários quanto à demanda e os preços, é partilhando, ou não, a opinião que estes
formaram sobre a configuração das externalidades de vizinhança e suas características quanto à
composição do bem residencial. Em outras palavras, os trabalhadores vão se fazer de "árbitros"
supremos da configuração espacial ratificando (ou não) o mark up urbano antecipado pelos
empresários, Mas como essa antecipação tem por base uma originada de um processo
especular cognitivo da qual os trabalhadores participam, a ratificação será também a
confirmação de suas próprias antecipações sobre o futuro espacial.
Embora essa operação pareça simples e pertinente ao interesse comum dos trabalhadores e
empresários, na prático não é assim. A bem da verdade, esses dois personagens, com sua
possibilidade de tomar decisões cruciais (oportunistas de um lado e inovação espacial, do outro),
transformam suas escolhas de localização em uma verdadeira aposta no futuro da ordem
espacial. Uma decisão tomada hoje, segundo uma antecipação formulada com base em uma
convenção urbana, sempre pode esbarrar em uma decepção: basta que a convenção não
consiga mais reunir em torno dela as crenças referentes às localizações. O trabalhador-família
pode se ver numa situação em que as esperadas externalidades de vizinhança não se realizem,
e como a decisão de compra-localização comporta uma certa irreversibilidade em razão das
próprias características do bem moradia, ele vai estar muito atento na hora de formular suas
antecipações espaciais.
Sabendo que podem se enganar e, principalmente, que as convenções urbanas podem ser
derrubadas, os trabalhadores vão obedecer a certas estratégias para tomarem suas decisões.
Se observamos, no capítulo sobre a convenção urbana, que o comportamento mimético era uma
forma se precaver contra a incerteza radical, está visto que essa estratégia terá agora
motivações diferentes. Para esquematizar a escolha de localizações dos trabalhadores-famílias,
17 Aqui seguimos a definição de Kalecki que atribui ao assalariado, à família e ao trabalhador um mesmo
papel funcional no tocante ao circuito monetário. A este respeito, ver Graziani (1988, 1990) e Lavoie (1987).
18 Lavoie, 1987, p. 68.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
9
vamos supor que ela seja regida por dois tipos de motivos ou "estímulos": um "motivo-residência"
e um "motivo-especulação". É preciso destacar que ambos remetem à configuração da ordem
espacial como mosaico de externalidades de vizinhança. A diferença será definida quanto ao
objetivo intrínseco a cada uma dessas motivações para a escolha de localização.
As antecipações formuladas segundo o "motivo-residência" tentarão identificar, acima de tudo, a
configuração da externalidade de vizinhança correspondente ao tipo de família visado. Dessa
forma, os trabalhadores tentam antecipar a localização de seus pares, com os quais pretendem
conviver19. Estamos, pois, em uma "pura" lógica de localização residencial, a da "busca de
externalidade de vizinhança", sem que qualquer outra intenção governe a antecipação espacial.
É o "motivo-residência" que estaria, portanto, na base das decisões dos trabalhadores-famílias.
Contudo, pode haver situações em que a escolha residencial não passe de um meio de
investimento. Já vimos que as famílias podiam pensar em decisões oportunistas, o que nos
levou a conclusão de que, em certos casos, sua escolha de localização seria um meio de
aumentar o "lucro" familiar, pois esta escolha corresponderia, então, a uma decisão de
investimento20. Num universo em que as convenções são constantemente subvertidas pelas
proposições de inovação espacial (em que as depreciações fictícias de estoques fazem parte da
configuração da ordem urbana), a coordenação residencial por convenções se acha à mercê das
mudanças virtuais. Então seria o caso de pensar que certos trabalhadores desejem lucrar com
esses movimentos de valorização criados pela "coreografia" das convenções urbanas.
Ao transformar sua decisão de localização em um meio de obter um ganho em dinheiro, o
trabalhador assemelha-se, efetivamente, ao profissional da antecipação de Keynes. Seu único
desejo será o de antecipar a configuração das externalidades de vizinhança para extrair um lucro
monetário e não para conviver com seus pares; assim, a antecipação de sua escolha residencial
será inspirada por um "motivo-especulação"21.
É preciso notar que tanto o "motivo-residência" como o "motivo-especulação" estimulam os
trabalhadores a seguirem um raciocínio especulativo concernente à ordem espacial futura. Visto
que estamos numa dimensão dos atos mercantis em que o curso do tempo desempenha um
papel relevante, todos os raciocínios serão feitos em termos de antecipação. E visto estarmos
num mundo mercantil onde a configuração da ordem espacial será o resultado da
interdependência das decisões de localização, podemos acrescentar que todos os raciocínios
19 Aqui, o critério de similaridade é o dos recursos monetários; contudo, podem ser acrescentados outros
critérios de identificação. 20 A este respeito, ver Abramo, 1994. 21 A idéia dos motivos de localização é fruto de uma tentativa de traduzir em termos espaciais a tipologia da
demanda de moeda tal como Keynes (1936) propôs.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
10
são fundados em expectativas cruzadas. Entretanto, se todas as decisões dos trabalhadores são
de ordem especulativa, somente as inspiradas pelo "motivo-especulação" terão semelhança com
a prática do keynesiano "profissional da antecipação". Ao contrário do "motivo-residência",
quando os trabalhadores procuram antecipar a ordem urbana para saber com mais precisão
onde vão morar aqueles com que se identificam, o "motivo-especulação" faz da decisão de
localização uma possibilidade de concretizar um ganho monetário com a antecipação das
mudanças suscetíveis de intervir na ordem urbana.
Nesse sentido, os objetivos desses trabalhadores são parecidos com os dos empresários
urbanos. Mas subsiste uma diferença determinante, pois os empresários podem propor
mudanças e realizá-las investindo despesas produtivas, enquanto o trabalhador movido pelo
"motivo-especulação", não passaria de uma espécie de "parasita" da lógica de inovação-
subversão espacial promovida pelos capitalistas-empresários. Este ponto é ainda mais
importante à medida que se articula com as possibilidades de crise no interior do circuito
monetário e, neste sentido, retoma a crítica de Keynes ao oportunismo dos profissionais da
antecipação. De fato, a dinâmica especulativa dos empresários resulta em proposições de novas
convenções urbanas que podem acarretar um redefinição da ordem residencial e, assim,
"oxigenar" a economia de produção residencial. Inversamente, as decisões dos trabalhadores,
fundadas no motivo-especulação, mostram-se passíveis de provocar a queda da convenção sem
que seus atos ofereçam por si mesmos uma nova proposição de coordenação espacial. Em
suma, quando se generalizam, essas decisão familiares motivadas pela especulação levam,
muito freqüentemente, ao risco de crise na coordenação das escolhas residenciais e, por
conseguinte, a um risco de bloqueio do processo de encadeamento seqüencial dos circuitos
monetários urbanos.
Em relação às decisões dos trabalhadores, convém assinalar um outro ponto que concerne ao
alto valor monetário dos bens residenciais e remete ao circuito monetário urbano. Em geral, as
famílias quando compram um bem dessa natureza, têm de assumir uma decisão de
endividamento, isto é, comprometer seus rendimentos futuros. É evidente, portanto, que, para
comprar (apostar na incerteza urbana), terão de fazer antecipações quanto à constância de seus
recursos, o que representa, de fato, uma aposta no futuro econômico (níveis de emprego e de
salário).
Em outras palavras, sendo o endividamento decorrente de uma decisão que compromete o
rendimento a longo prazo, os trabalhadores, no nível da individualidade de decisões, são
lançados numa aventura que consiste em desafiar um horizonte de incerteza econômica. E
porque sabem que suas antecipações podem ser obstruídas por acontecimentos imprevistos, e
que o contrato de endividamento vai obrigá-los a despender uma soma importante (ainda que se
achem em desemprego involuntário), eles terão de pensar seriamente nas possibilidades de se
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
11
livrarem da dívida. Sua avaliação sobre a liquidez da localização-moradia escolhida será,
portanto, um elemento fundamental em seus cálculos no momento de contrair um empréstimo.
Tratando-se de um compromisso inserido no tempo (histórico), eles tentarão antecipar a ordem
espacial vindoura, agora, porém, para estarem seguros da liquidez futura de sua residência-
localização.
Atinge-se aí uma dimensão do circuito monetário urbano que pode se tornar crítica, uma vez que
a decisão de endividamento é que vai permitir que sejam realizadas as antecipações dos
empresários. De fato, o endividamento das famílias é um ato (compromisso) de transferência dos
recursos monetários imprescindíveis para que os capitalistas possam reembolsar a soma
(moeda) que tomaram de empréstimo e saldar, portanto, suas próprias dívidas. Mas a prática da
inovação espacial leva à depreciação fictícia dos estoques do passado, o que representa uma
perda de liquidez urbana para as localidades com contratos de dívida mais antigos. Se os
trabalhadores estivessem em condições de antecipar uma tal desvalorização, não teriam se
endividado e os empresários estariam impossibilitados de concretizar suas próprias
antecipações. De acordo com os termos que apresentaremos mais adiante, o circuito não se
fecharia e, neste caso, seria de prever uma crise urbana por colapso da convenção estabelecida.
E, se o circuito monetário não se fecha, o resultado é a suspensão das demandas de criação
monetária (decisões de despesas residenciais produtivas); de modo que o bloqueio do circuito
monetário urbano conduziria a um bloqueio do processo de coordenação espacial.
Quando os trabalhadores decidem contrair dívida seguindo o raciocínio ditado pelo motivo-
especulação, seus cálculos já não são um desafio ao futuro econômico, mas uma aposta
estritamente financeira: decidem em função da relação existente entre a taxa de juros que lhes é
proposta e a expectativa do ganho que calculam realizar devido à valorização de sua
localização. Se a convenção urbana leva-os a concluir que este ganho será superior aos juros
que terão de pagar a seus credores, então eles contraem a dívida. Neste caso, a escolha da
localização torna-se um meio de enriquecimento especulativo. Estamos diante de uma lógica
financeira pura, em que os trabalhadores-famílias − que viraram "profissionais da antecipação" −
concebem a ordem urbana como um conjunto de externalidades de vizinhança que mudam de
valor no decorrer do tempo e em função das convenções urbanas.
Assim, um bem residencial que faz parte de uma determinada localização-convenção será uma
espécie de "ativo urbano", ou melhor, de "título urbano" cujo valor mudará ao arbítrio das
variações por que passam as crenças a respeito da localização dos diversos tipos de família.
Como dizia Keynes, ao "antecipar antes de todo mundo", podem chegar a comprar um "título de
localização" residencial baseados numa convenção estabelecida, que eles acreditam venha a
ser derrubada por uma outra de status mais elevado. Se a nova convenção relativa à localização
antecipada for confirmada pela produção de uma externalidade de vizinhança de tipo superior
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
12
(famílias mais abastadas), também o valor dos ativos residenciais será maior e, então, as
famílias-"especuladores profissionais" poderão concretizar um ganho monetário de antecipação.
À medida que essa lógica for perdendo importância no conjunto das decisões de localização, é
bem possível que se formem verdadeiras "bolhas" especulativas urbanas que causarão um
bloqueio no circuito monetário. A lógica de acumulação pelo crédito (da economia monetária de
produção residencial) será obstruída, efetivamente, pelos "profissionais da antecipação" de
Keynes que, especulando sobre o futuro da ordem urbana, poderão produzir "rumores urbanos",
suspeitas sobre a coordenação futura, e insuflar nos atores do mercado da localização a dúvida
quanto a suas próprias crenças. Em suma, essas antecipações serão capazes de acarretar a
queda das convenções urbanas e, portanto, o bloqueio da condição prévia e necessária ao
encadeamento dos atos de despesa que compõem o circuito monetário urbano. Na verdade, a
generalização, entre os trabalhadores-famílias, do desejo de participar da posição de
especulador sobre as mudanças da ordem urbana, ou seja, de tomar decisões ditadas pelo
motivo-especulação, pode gerar perturbações na coordenação das convenções urbanas e
provocar uma ruptura no "anel" que une o circuito monetário e a convenção. O rompimento
desse anel, que garantia de antemão a continuidade no tempo (cronológico) da crença a respeito
do futuro urbano e permitia a coordenação espacial dos atores urbanos, trará de volta um
ambiente de incerteza urbana radical22.
O banco e a criação do poder de despesa produtiva Numa economia monetária de produção em que os capitalistas-empresários decidem apostar no
futuro produzindo bens, o papel do banco(ou do sistema bancário) é bem simples23. Quando os
empresários prevêem o volume dos bens residenciais que a serem produzidos e sua localização
baseada na antecipação da ordem urbana futura (dado o rendimento das famílias), devem
possuir, para passar do "projeto" à ação, uma capacidade de despesa que, de saída, eles não
possuíam. Então, esses personagens precisam pedir abertura de um crédito monetário que lhes
permita efetuar as despesas necessárias à realização de seus planos. Segundo a hipótese
wickesselliana da economia de crédito24, eles vão se dirigir a um terceiro personagem que tenha
22 Sobre a idéia do anel que liga a convenção urbana ao circuito monetário, ver a noção de "corredor" no
capítulo antecedente. Voltaremos a ela no próximo capítulo. 23 Apresentaremos aqui uma versão sucinta da teoria do circuito monetário em que só o banco intervirá.
Para uma exposição mais sistematizada, ver Graziani (1988, 1990), Lavoie (1987), Shmitt (1988) e Vallageas (1988).
24 Reproduzimos aqui a definição de Graziani (1988, p 18): "in qualisiasi instanti, la quantità di moneta esistente può essere definita in due modi diversi del tutto equivalenti: a) dal punto de vista di coloro che hanno effetuato pagamenti, la moneta esistente non è altro che l'insieme dei debiti contrati verso il settore bancario; b) dal punto de vista di coloro che hanno effetuato incassi, le scorte liquide non sono altro che un credito verso il sistema bancario". (em qualquer instante, a quantidade de moeda existente pode ser
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
13
a capacidade de criar a liquidez de que precisam. Este novo personagem é o sistema bancário
(representado pelo banco), cujo poder de criação monetária mediante crédito vai permitir o
financiamento das aspirações de produção dos empresários.
O banco, porém, só concederá o crédito requerido se os capitalistas-empresários se
comprometerem a reembolsar o montante emprestado acrescido dos juros. Significa que os juros
serão um componente da dívida que eles se comprometem a restituir após a realização mercantil
de suas antecipações25. Convém assinalar que, para a teoria do circuito, a taxa de juros não é o
resultado da confrontação mercantil que existiria entre a oferta e a demanda de moeda em um
hipotético mercado monetário. Como diz Lavoie, "para a maioria dos circuitistas, as noções de
oferta e de demanda (de moeda) são, de alguma forma, inexistentes. A taxa de juros é o
resultado de um consenso de opinião entre os participantes do mercado monetário. A taxa
determinada é o resultado de uma convenção."26
Nesse sentido, a relação entre o banco e os empresários remete às questões concernetes à
capacidade de antecipar a ordem urbana e às decisões efetivas que objetivam transformá-la, ou
seja, ao referencial que ajuda a coordenar as antecipações das escolhas de localização e,
portanto, a efetuar a passagem da crença (virtualidade) à realidade espacial. Nesta relação, os
julgamentos lançados sobre o futuro da configuração residencial desempenharão um papel
fundamental. Pode-se dizer, de fato, que o compromisso de reembolsar o banco (juros inclusos),
assumido pelos empresários, vai estimular o próprio banco a apostar no futuro espacial
avalizando a produção de bens residenciais.
Em outras palavras, ao atender o pedido de moeda de crédito, o banco, por sua vez, torna-se um
"aventureiro" do futuro urbano pelo viés de suas antecipações. Entretanto, sua decisão de
apostar no futuro para auferir juros (na aventura conjunta com os capitalistas-empresários e seu
"espírito animal") intervém depois que os empresários declaram sua intenção de produzir. Por
conseguinte, o banco vai julgar suas proposições de antecipação da configuração residencial
futura, à luz de suas próprias antecipações econômicas (demanda efetiva) e urbanas
(configuração das externalidades de vizinhança). De modo que, após avalizar essas
proposições, é que o banco adiantará os meios monetários que permitem o desencadeamento
definida de dois modos diversos: a) do ponto de vista dos que efetuaram o pagamento, a moeda existente é exatamente o total do débito contraído com o setor bancário; b) do ponto de vista dos que receberam, o benefício líquido é justamente um crédito em relação o sistema bancário). Como veremos na descrição do circuito, o contrato crédito-dívida será a manifestação institucional dessas relações monetárias.
25 A este propósito, ver Messori, 1985, 211. 26 Lavoie, 1987, p. 91.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
14
das decisões de despesas produtivas urbanas (início do circuito monetário) e, portanto, das
efetivas transformações do parque residencial.
Conforme a explicação de Grazini, "o banco, por seu turno, exerce a função não menos delicada
de selecionar a empresa a que conceder um financiamento, avaliando a capacidade que cada
empresário, individualmente, possue de vencer a concorrência e superar os rivais na conquista
dos mercados27" Em termos estritamente espaciais, esse julgamento incidirá sobre a capacidade
de conquistar um mercado (oferecendo bens residenciais) mediante antecipação de uma
externalidade de vizinhança. Ao fazer com que sua criação monetária dependa de seus
julgamentos sobre as antecipações dos capitalistas-empresários, o banco adquire uma certa
"relação de poder" funcional dentro do circuito monetário urbano. De fato, só as antecipações de
configurações de externalidades que ele julgar aceitáveis poderão ser transformadas em um
efetivo desafio ao futuro urbano. Quanto às antecipações da ordem urbana (demanda de moeda
que visa a oferecer bens residenciais) julgadas pouco confiáveis ou demasiado distantes da
convenção estabelecida, o banco pode recusá-las; o que significa que, neste caso, as demandas
de moeda não serão traduzidas em capacidade de despesa, nem, conseqüentemente, em
proposições reais de mudança do espaço residencial28.
Contudo, a capacidade que os bancos têm de avaliar as antecipações dos empresários urbanos
não significa um maior poder de previsão (como o modelizador da teoria dos jogos) ou de
coordenação (como o secretário do mercado walrasiano). É o banco que, em última instância,
por se defrontar com um conjunto de demandas de moeda descentralizadas, todas portadoras
de antecipações do futuro urbano, dispõe, dispõe do maior número de informações sobre o que
os empresários pensam desse futuro. O que não significa que ele conheça a configuração da
estrutura residencial futura, mas apenas que tem acesso a declarações de intenção particulares
que não chegam ao conhecimento dos outros empresários. De modo que o papel e a posição do
banco é que estabelecem antes de tudo os critérios de julgamento em relação à demandas de
moeda dos capitalistas-empresários urbanos.
Esse papel que o banco exerce na avaliação das apostas sobre o futuro da ordem residencial
tem de ser aceito pela sociedade. Em outras palavras: é preciso que o conjunto da sociedade
reconheça também a função da moeda de crédito como tal, para que o banco se torne uma
27 Graziani, 1988, p. 19. No original:"le banche dal canto loro esertiano la funzione non meno delicata di
sceglieri el imprese cui concedere um finanziamento, calutando la capacità dei singoli impreditori de vincere la concorrenza e di superare i rivali nella conquista dei mercati". Na mesma ordem de idéias, Lavoie (1987, p. 68) escreve: "os bancos decidem em definitivo dos projetos de produção que parecem rentáveis".
28 Este ponto me parece importante, porquanto assinala que a dinâmica de produção dos bens residenciais pode ser obstruída pelos bancos, quando eles decidem jogar o que Parguez (1987, 1992) chama de jogo da "austeridade monetária".
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
15
"convenção" social. A esse respeito, Parguez observa que "a sociedade compreende uma
instituição que tem por função assumir as apostas sobre o futuro, em nome de todo o corpo
social; é o banco que desempenha este papel indispensável, Cada empresa recorre a um
desses bancos para solicitar o registro de sua aposta. Ao aceitar o compromisso, o banco
avaliza para a sociedade a legitimidade da aposta da empresa."29 É neste sentido que a teoria
do circuito concebe a taxa de juros como o resultado de uma opinião fundada em um consenso:
ela vai refletir, pois, os julgamentos que incidem sobre o futuro pela mediação do banco.
Não seria, porém, o caso de alimentar muitas ilusões quanto ao desaparecimento do horizonte
de incerteza radical. A eventualidade de mudanças e de acontecimentos não previstos continua
presente e a percepção hipnótica e rotineira mantida pela convenção é sempre portadora de um
fracasso virtual da coordenação das antecipações espaciais. Ao subscrever a demanda de
moeda dos empresários urbanos, isto é, ao criar a moeda de crédito e financiar a produção de
bens residenciais destinados aos trabalhadores-famílias, o banco faz uma aposta no futuro
espacial. Trata-se, porém, de uma "aposta indireta", visto que será assumida "sobre a liquidez
futura das empresas"30. Esta observação nos remete a um aspecto importante da teoria do
circuito quando tenta introduzir uma temporalidade no que se refere ao financiamento das
decisões de produção e a medida que essa temporalidade torna-se um elemento chave da
noção de "circuito".
Segundo os "circuitistas", o financiamento das decisões de produção na verdade deveria ser
entendido sob o aspecto de uma clivagem temporal, determinante para compreender a
verdadeira relação entre o investimento e a poupança31. O banco teria então diferentes funções
conforme se situe no início ou no final de financiamento. A teoria do circuito lança a idéia de que,
no início, antes que a empresa pague seus assalariados ou seu material, ela deve dispor de uma
fonte de financiamento: os adiantamentos dos banqueiros. Isto significa que "a moeda intervém
antes da troca de bem. Portanto, a produção requer o financiamento prévio pelo crédito."32 Essa
condição imprescindível para que as despesas produtivas obtenham o sinal verde é o que a
teoria do circuito chama de "financiamento inicial".
Em seguida, os empresários vão recuperar uma parte dos fundos que o banco lhes emprestou
seja pela realização das antecipações de produção, seja pela captação dos salários poupados
pelos trabalhadores (famílias). É o financiamento definitivo da produção que lhes vai permitir
29 Parguez, 1987, p. 765. 30 Cf. Léonard, 1984. 31 A esse propósito, ver Poulon, 1985, e Parguez, 1985. 32 Lavoie, 1987, p. 69.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
16
reembolsar o banco e quitar a dívida. Em que pese o debate sobre este ponto (e as clivagens
existentes entre os autores que se declaram ligados ao projeto de uma economia monetária de
produção), aqui nos atemos a este enunciado sucinto33. A nosso ver, a importância da distinção
entre o financiamento inicial e o definitivo, prende-se antes às particularidades do bem moradia e
ao papel, substancialmente diverso do papel do banco, que os intermediários financeiros podem
exercer no circuito monetário urbano.
Sabemos que o bem residencial (habitação) apresenta diferenças marcantes em relação a
outros bens mercantis34. Uma dessas características é a importância da despesa necessária a
sua aquisição, o que representa, para a demanda, uma verdadeira "barreira na entrada do
mercado". Historicamente, o alto valor individual do bem moradia em relação à renda média dos
trabalhadores (famílias) é que inibiu a produção-realização capitalista, propriamente dita, no
mercado residencial. Este obstáculo à "liberdade" de compra só será contornado com a entrada
em cena dos agentes de intermediação financeira e do "crédito" ao consumidor. O aumento da
propriedade familiar do bem residencial, ou, para usar a terminologia da sociologia marxista dos
anos setenta, os promotores imobiliários só puderam abandonar a lógica estritamente "rentista"
depois da instauração − e, posteriormente, da institucionalização − do "crédito" hipotecário. Ele é
que permitiu, de fato, a operação de transferências regulares e sistemáticas da poupança para o
mercado residencial e acabar, então, com as restrições de "financiamento definitivo" que
onerava a atividade dos capitalistas-empresários.
Vamos abordar o processo de constituição de um sistema hipotecário, reconhecido por quase
todos os estudos históricos referentes à formação do mercado capitalista dos bens residenciais,
pelo aspecto funcional da circulação monetária35. A intermediação financeira será focalizada
aqui somente para destacar o papel "passivo" que seus agentes exercem na circulação
monetária; para definir este papel utilizamos a idéia de Schmitt de que os recursos que esses
33 Os pós-keynesianos, por exemplo, porque consideram que a liquidez tem um papel central nas escolhas
dos capitalistas (Davidson, Minsky, Kregel, para citar os mais importantes), rejeitam a linha que consiste em analisar as relações de financiamento da produção com base na identidade entre investimento e poupança que os dois momentos evidenciam. Esta questão é objeto de discussão mesmo dentro da teoria do circuito: de um lado, encontram-se Parguez, Graxiani, Poulon, Lavoie; do outro, os autores ligados à perspectiva de Schmitt. A este respeito, ver Lavoie (1990-b), Carvalho (1992), Graziani (1988) e Schmitt (1988).
34 Ver a definição de bem residencial de Leeuw (1971), que se tornou clássica e é reproduzida em quase todos os manuais de "economia da habitação".
35 As análises históricas da tradição neoclássica e as de inspiração marxista concordam sobre este ponto. No que concerne aos estudos marxistas, ver Topalov (1988-a) para a França, Topalov (1988-b) para os Estados Unidos, Ball (1983) para a Grã Bretanha, e Valladares (1981) para um levantamento dos estudos desenvolvidos no Brasil. Para outros estudos baseados na metodologia proposta por Ball (1985, 1990) e Harloy e Ball (1991), ver a revista Housing Studies.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
17
agentes dispõe não são mais que o resultado de um "fluxo induzido" pelas decisões de despesa
produtiva dos capitalistas-empresários36.
Se nos prendermos à temporalidade do financiamento, é de imaginar que, em razão do alto valor
individual do bem residencial, o financiamento definitivo causará a intervenção de uma fonte de
"financiamento secundário" que passará apenas um fluxo induzido pelo financiamento inicial; e
que este financiamento secundário é que vai condicionar as despesas (compras) dos
trabalhadores (famílias) no que diz respeito a bens residenciais. Na verdade, esse fluxo induzido
recorre à poupança. Segundo os termos da teoria do circuito, enquanto agente de intermediação
na gestão das poupanças, o banco não teria um verdadeiro poder de criação monetária; seu
papel estaria restrito à operação que viabiliza as transferências de capacidade de despesa.
Tomando como hipótese que, no circuito monetário urbano, os trabalhadores só comprometem
sua poupança em apostas sobre a rentabilidade futura dos investimentos capitalistas-
empresariais (títulos e ações do mercado financeiro), pode-se dizer que a produção dos bens
residenciais só se realiza graças às transferências de poupança dos trabalhadores. Contudo, sua
decisão de poupar e de se contrair dívida deverá ser julgada pelo agente que serve de
intermediário nessas transferência; e visto que ele "administra" esse fluxo induzido, pode
escolher a quem emprestar.
É fácil sair dos limites da teoria do circuito e pensar em fenômenos de "racionamento de crédito"
ou até de "seleção adversa" tão caros, por exemplo, aos novos keynesianos37. A título de
ilustração, podemos imaginar que a dinâmica de inovação espacial levará alguns trabalhadores a
uma lógica de especulação urbana pura, como sugerimos acima. Neste caso, eles poderão ser
seduzidos pelo fato de os agentes de intermediação proporem taxas de juros superiores às que
são fruto do consenso (taxas por convenção). De acordo com o raciocínio da "seleção adversa",
vai ocorrer o estabelecimento de uma condição de acesso aos "financiamentos secundários" da
qual serão excluídos os trabalhadores movidos unicamente pelo "motivo-residência", por não
estarem em condições de pagar uma taxa de juros que consideram demasiado alta38. A partir
daí, se as decisões de endividamento que visam à compra de um bem residencial passam a ser
baseadas, acima de tudo, no "motivo especulativo", o circuito monetário urbano, com adoção de
uma lógica de "financiamento secundário", poderá adquirir um conteúdo especulativo puro e
levar à falência a convenção urbana vigente, o que acarretará o bloqueio das despesas
produtivas dos capitalistas-empresários e a volta da incerteza radical urbana.
36 Cf. Scmitt (1984) e Vallageas (1981). 37 Quanto a esses fenômenos, ver a apresentação de Stilitz (1985, 1988). 38 Para a exposição do caso do lemon market, que se tornou clássico, ver o artigo de Akerlof; para uma
exposição mais pedagógica, ver Robert e Milgron, (1990).
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
18
Raciocinando conforme os termos da assimetria informacional, pode-se imaginar também que os
agentes de intermediação sejam levados a duvidar, seja da capacidade que alguns poupadores
teriam para comprometer recursos futuros, seja da convenção urbana estabelecida, e introduzir
uma estratégia de racionamento de crédito para alguns desses trabalhadores (tipos de famílias).
Teremos então um mercado racionado que implica o não pagamento das dívidas pelos
capitalistas que produziram moradias justamente nos locais em que residem os trabalhadores
expostos à suspeita dos intermediários financeiros. O banco, diante da não-cobertura dos
empréstimos que lhes concedera, pode levar levado a reconsiderar os julgamentos relativos à (s)
convenção (ões) urbana (s) em vigor e assim contribuir para que o mercado entre num período
de dúvida quanto às crenças sobre o futuro espacial.
Essas duas breves observações têm o propósito de assinalar que o fato de se levar em conta o
agente de intermediação introduz elementos mais complexos do que a teoria do circuito dá a
entender, o que me propicia mencionar aspectos cognitivos do mercado que as análises da
referida teoria costuma subestimar. Esses novos escalões e relações intermediárias lembram as
observações dos pós-keynesianos americanos sobre o papel da instabilidade quando as
relações monetárias estão sujeitas ao que Minsky chama de o "paradigma de Wall Street"39.
Antes de mais nada, devo dizer que este parêntese é um alerta, uma vez que a descrição do
circuito monetário urbano que farei a seguir está centrada sobretudo na idéia de circularidade
seqüencial. Num primeiro momento, este enfoque leva a crer que o encadeamento seqüencial
dos circuitos monetários está em condições de fazer frente ao inesperado. Como sugeri no
capítulo anterior, a moeda (enquanto elo temporal) faria os atores do mercado da localização
emitirem julgamentos sobre a liquidez urbana, o que abriria o circuito à possível emergência de
fenômenos de especulação pura40. Neste sentido, o circuito monetário urbano será apresentado
sob a influência da "fragilidade" da coordenação espacial por convenção, isto é, como descrição
das relações hierarquizadas que os personagens do mercado (da produção residencial)
estabelecem entre si, durante o tempo em que partilham uma mesma representação da
configuração das externalidades de vizinhança.
Em suma, consideramos que descrever o circuito monetário urbano é o mesmo que descrever
de que maneira a importância dada à moeda propicia a hierarquização dos atos de despesa
mercantil, como diz Lavoie, assinalando que "alguns agentes são dominantes, outros,
dominados"41. A nosso ver, as "relações de poder" que se instauram entre os três personagens
39 Sobre o paradigma de Wall Street, ver Minsky (1975, 1982). 40 Sobre esta questão, convém ter sempre em mente a ligação da teoria do circuito à idéia da identidade
macro-econômica entre investimento e poupança. 41 Cf. Lavoie, 1987.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
19
do circuito só podem ser demarcadas, em sua amplitude, com a introdução das dimensões
especulares, cognitiva e subjetiva, dos julgamentos lançados para o futuro. Enfim, baseada nas
relações mercantis, a convenção urbana dará lugar a uma ordem espacial precária.
O mecanismo do circuito monetário urbano: a descrição das relações monetárias entre os diversos personagens do mercado da localização residencial
Breve esclarecimento
O propósito, aqui, é descrever as relações monetárias que se estabelecem entre os diferentes
participantes do processo de produção e estruturação do estoque residencial urbano. Interessa-
nos, sobretudo, evidenciar os fluxos monetários que se instauram entre os três personagens
acima apresentados e estruturam toda a economia de produção residencial. Por intermédio,
particularmente, da descrição do circuito monetário, discutiremos o processo de produção
material do quadro estruturado e a tipologia dos agentes que nele intervêm. Em compensação,
não trataremos das particularidades da organização do trabalho própria à esfera do BTP42.
Assim, no que se refere ao acesso à moeda e às despesas que ela permite, vamos nos restringir
ao âmbito de uma análise muito mais agregada do que a que se interessa pelo "mundo oculto e
barulhento da produção". O que não significa, insistimos, que não nos confrontemos com as
"relações de poder" e de "dominação"43, ao contrário; vamos focalizá-las de um ângulo diferente
do da teoria do valor: aqui, as relações monetárias entre os agentes e suas diferenciadas
capacidades e estratégias de despesas mercantis é que dão origem às relações de "dominação".
A partir das hipóteses da "teoria do circuito" concernente à dinâmica da economia monetária de
produção, faremos uma simples descrição das relações estabelecidas entre os três personagens
em causa, retraçando o percurso da moeda de crédito necessária à produção de bens
residenciais urbanos. Nossa abordagem consiste em assinalar os papéis funcionais durante todo
esse o percurso, e a hierarquização de suas relações tal como a mediação da moeda
estabelece. Seu trajeto, desde a criação até o momento em que a dívida é saldada, é que
chamamos, como o faz toda a tradição do pensamento econômico, de circulação ou melhor,
circuito monetário44. Vamos descrevê-lo como um esquema de representação abstrata que deve
42 No que se refere aos debates sobre as características particulares do processo de organização do
trabalho no BTP, existe toda um literatura que, de certa maneira, representa bem a "problemática" marxista da sociologia urbana dos anos setenta (ver Lipietz, 1974; Topalov, 1974, 1979, 1983; Dechervoit e Théret, 1979). Mais recentemente, uocorreu um mudança de pespectiva histórica nos estudos sobre a taxonomia do BTP.
43 Os termos "relação de poder" e "relação de dominação" foram empregados por Lavoie (1987, p. 92) que, aliás, os tomou emprestado de Perroux (1970).
44 Para uma leitura de um ponto de vista clássico, ver Cartelier (1990) e os artigos dos Cahiers d'Economie Politique; para uma perspectiva de releitura da história do pensamento econômico mais próximo do
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
20
servir de ponto de partida para a análise histórica específica das relações de produção
capitalista. Isso, porque toda regularidade mercantil precisa de um conjunto de regras e de
convenções que, "sob a forma de normas, de costumes, de leis, de malhas reguladoras,
assegurem, por meio da rotina do comportamento dos agentes em luta uns contra os outros, a
unidade do processo"45.
Contudo, a dimensão histórica que o circuito monetário utiliza para se reproduzir enquanto
regularidade mercantil pode assumir formas diferentes no tempo. Aqui, vamos vizualizar a
regularidade do circuito como garantida pela convenção urbana; ou seja: é a crença em uma
dada configuração de externalidade de vizinhança que será vista como garantia do caráter
seqüencial dos circuitos monetários urbanos durante um certo período e a despeito das forças
de "desordem". Mas a imposição de uma temporalidade pelas convenções urbanas não impede
que imaginemos outras "regras" e "instituições" que propiciem a regularidade das relações
monetárias requeridas para a produção dos bens residenciais. Aliás, até sugerimos a existência
de "macrocondições" sociais capazes de permitir (ou impedir) a manifestação histórica e
geográfica das relações de que falamos46.
Concernente à noção de circuito, impõe-se uma segunda explicação que remete à questão
anterior: diz respeito à dimensão temporal do discurso econômico Sabemos que a noção
clássica e marshalliana de tempo econômico estabelece uma clivagem entre o curto e longo
prazo. De acordo com esta visão da temporalidade, pode-se dizer que a noção de circuito dá
respaldo a análises que são mais da ordem do curto termo47. É por isso que a hipótese do
circuito representa a economia monetária de produção como economia seqüencial. Sobre este
ponto, se ela permite entrever uma crítica à ortodoxia, ainda é tímida quando se trata de levar
em conta o decurso do tempo. De fato, apresentar o circuito como uma seqüência de atos
mercantis constitui a crítica mais importante que os circuitistas acreditam ter emitido contra a
tradição ortodoxa., visto que significa rejeitar a simultaneidade walrasiana das relações
mercantis. Mas se essa rejeição está ligada à herança heterodoxa dos "anos de alta teoria" a
que nos referimos antes, a idéia de uma economia seqüencial que só leva em conta os fluxos
monetários também passa em branco sobre um elemento determinante da ordem residencial, a
saber, o parque residencial (estoque) e as mudanças que experimenta.
"Tratado sobre a Moeda" de Keynes (identidades monetárias) fundado, sobretudo, na noção de circuito monetário, ver Poulon (1982-a).
45 Lipietz, 1985. 46 Ver Abramo, 1996. 47 Isso, porque a teoria do circuito está voltada geralmente para a dinâmica dos fluxos, retomando a
hipótese de um único período de produção, o que significa excluir o problema do capital fixo. A este respeito., ver Parguez, 1984.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
21
Em outras palavras, prender-se ao encadeamento de períodos de curto prazo, característica da
temporalidade seqüencial do circuito, exclui a problemática da mudança estrutural. Alguns
autores têm tentado considerar os estoques monetários48, mas sem que isto resulte realmente
na introdução de elementos de temporalidade econômica de longo prazo. Não resta dúvida de
que essa exclusão limita o poder explicativo da teoria do circuito e leva alguns de seus
seguidores a propor, por exemplo, uma reaproximação entre suas análises do circuito monetário
e as da herança de Schumpeter49. Em nossa opinião, o problema dos estoques residenciais e
das modificações de suas características (que, por analogia, poderíamos chamar de "mudanças
estruturais") toca particularmente ao processo de produção e ao de configuração da ordem
residencial. Isto, porque a imobilidade e a duração de vida material desses bens urbanos
estabelecem um elo entre os resultados dos circuitos do passado e as decisões que estão na
origem dos novos circuitos.
Quanto a esse último ponto, digamos que existem dois tipos diferentes de efeitos de reiteração:
de um lado, os que podemos qualificar de "efeitos de estoque kalechianos" porque reunem
decisões do passado e do presente por uma mesma convenção urbana; do outro, os que
resultam de estratégias que visam a quebrar a rigidez de longo prazo das características físicas
das moradias urbanas recorrendo a práticas de inovação espacial − são os "efeitos
schumpeterianos". A nosso ver, a dinâmica do circuito monetário será mais que um momento do
processo de configuração da ordem-desordem residencial.
Apesar do caráter de curto prazo das decisões tomadas pelos capitalistas-empresários urbanos,
as que estão na origem do circuito nem sempre podem ser sempre reduzidas a "decisões de
rotina". Elas também podem ser "decisões cruciais" do tipo shackeliano e subverter as decisões
de despesa produtiva baseadas nas referências a antecipações anteriores. As decisões de
produção descentralizas que podem transformar a ordem residencial de modo inesperado, as
que se acham no início do circuito monetário, estão inseridas num quadro de incerteza urbana. A
convenção será então um dos meios que podem levar os atores do mercado residencial a
saírem da paralisia decisória em que a incerteza radical tende a mergulhá-los. No contexto
macro-econômico, essa convenção pode ser, reduzida, em extremo, a um único circuito
monetário pelo qual os capitalistas estabelecem uma nova convenção. Mas no âmbito do cálculo
de produção dos diversos elementos da ordem residencial, a convenção tocante à externalidade
de vizinhança deve obedecer, necessariamente, a uma temporalidade que vai além de um único
circuito monetário. Assim ea se torna o elo subjetivo (crença) capaz de articular um conjunto de
circuitos urbanos.
48 A esse propósito, ver as análises de Schmitt, 1984, 1988. 49 Ver Messori, 1985, 1987, 1988.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
22
Como veremos a seguir, é essa aptidão para "guiar" um conjunto de circuitos monetários que
nos vai permitir entender as transformações sofridas pelos estoques residenciais como um
processo de meio termo, ou, segundo a terminologia que nos propomos, como uma série de
transições entre os diversos estágios do "ciclo de vida" de uma localização ou área urbana50.
Além disso, a dimensão seqüencial dos circuitos monetários − porque recorre à temporalidade
dos estoques residenciais e à tensão entre a vontade de reiteração das característica do estoque
de uma localização (continuidade da convenção) e o interesse de inovação espacial −,
estabelece uma relação indissolúvel entre o circuito monetário urbano, onde a despesa produtiva
será o ato primeiro (produção de um bem residencial), e a convenção urbana (localização urbana
da decisão de produção). Para retomar o modelo temporal de Kregel51, diremos que a decisão
de curto prazo e as perspectivas de "longo prazo" que a convenção implica são
interdependentes.
Invertendo o raciocínio, pode-se dizer que, a partir de um circuito monetário urbano de curto
prazo, é possível estabelecer uma análise de médio prazo e assim prosseguir em direção a uma
análise da dinâmica espacial. É que o vamos ver mais adiante; mas antes, convém apresentar
um esboço do circuito monetário urbano simples.
O circuito monetário urbano simples O circuito monetário pode ser descrito como o caminho percorrido pela moeda a partir do
momento de sua criação até o de sua "destruição", isto é, quando ele retorna ao Banco52.
Messori assim define as características do circuito: "a análise do circuito monetário é focalizada,
portanto, sob dois aspectos. O primeiro, que compreende a fase de abertura do período, diz
respeito às ligações entre a decisão de produção e a disponilidade dos recursos monetários
líquidos necessários à realização desta decisão. O segundo, que assinala o fechamento do
período, diz respeito à distribuição do referido produto e à destinação da liquidez disponível na
fase inicial53".
50 No próximo capítulo, as mudanças da estrutura residencial voltarão a ser analisadas em termos reais,
como sugeri em Abramo (2000). O termo “área” que utilizo como sinônimo de localização, assume aqui o terceiro sentido que lhe atribui Le Robert: “região mais ou menos extensa ocupada por determinados seres, lugar de certas atividades, certos fenômenos.”
51 Cf. Kregel, 1976. 52 Nesta rápida exposição da teoria do circuito, seguimos as sínteses de Graziani (1988, 1990), Messori
(1985), Parguez (1984, 1986), Poulon (1982-b), bem com a de vários outros artigos que foram publicados na série MP da revista Economies et Societés.
53 Messori, 1988, p. 285: "l'analisi del circuito monetario si concentra, perciò, su due aspeti. Il primo, che investe la fase di apertura del periodo, i legami fra le dimensione di produzione delle imprese e la disponibilità dei mezzi liquidi necessari alla reallizzazione di tali decisioni. Il secondo, che determina la chiusura del periodo, riguarda la distribuzione del reddito prodotto e la destinazione della liquidità resa disponible nella faze iniziale".
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
23
Ao longo desse périplo entre a abertura e o fechamento do circuito, encontramos os três
personagens apresentados mais acima e suas relações funcionais. O primeiro momento do
circuito, ou sua fase de partida, é definido pela criação de moeda, isto é, pelo momento em que o
banco assume o ato-decisão de abrir um crédito a um capitalista-empresário que deseje apostar
no futuro pelo viés de uma produção de mercadorias. A expressão monetária desse desejo será
a "demanda de moeda endógena". Assim, a condição indispensável ao bom funcionamento do
circuito monetário, quando regido por uma lógica de acumulação por crédito54, é a crença
partilhada pelos empresários de que, no futuro, graças aos compradores, poderão reembolsar o
dinheiro despendido na produção de moradias e realizar o mark up antecipado. Os compradores,
então, precisam prever o nível de emprego futuro, pois o único suporte de que dispõem para se
decidirem a produzir é a expectativa da demanda. Com base nessa projeção (e se salário
monetário dos trabalhadores for determinado) eles poderão antecipar o mark up e solicitar ao
banco a abertura de um crédito. O banco aceitará ou não as apostas formuladas pelos
capitalistas, em função de sua própria avaliação do ambiente econômico e urbano futuro. a partir
dessa confrontação, o banco endossará (ou recusará) as apostas e fixará a taxa de juros55.
No circuito monetário urbano, o banco deve avalizar dois tipos de antecipações que nos parecem
ser de natureza diferente. O primeiro, estritamente econômico, exige um esforço de avaliação do
nível de emprego futuro (demanda efetiva), uma vez que dele depende a realização das
antecipações da demanda. O segundo, que aqui nos interessa particularmente, tem a ver com o
espaço urbano e se refere à antecipação da configuração das externalidades de vizinhança.
Para adiantar o dinheiro solicitado pelos capitalistas-empresários, o banco vai julgar os dois tipos
de antecipação. Podemos dizer, para citar Lavoie, que "são as antecipações das empresas que
deflagram os processos produtivos (a demanda efetiva). As empresas são responsáveis pelas
decisões de produção. E o grupo dos bancos, que também inclui o banco principal, o banco
central, fornece o crédito monetário que a produção requer."56 A partir daí, os capitalistas e o
banco assinarão um acordo de dívida-empréstimo que vai simbolizar a abertura do circuito e
definir sua primeira fase.
Como se constata, o quadro em que se dá a abertura do circuito pode ser pode ser caracterizado
pela esperança de ver realizadas as antecipações dos capitalistas. No entanto, essa esperança,
fundada sobretudo na relação subjetiva entre o que o banco pensa que os capitalistas pensam
do futuro e o que o próprio banco pensa desse futuro, (com base nas avaliações que faz das
avaliações dos outros), a decisão de abrir um circuito será tomada em um ambiente de
54 A esse respeito, ver Parguez, 1987. 55 Cf. a esse respeito, Graziani (1990, p. 12). 56 Lavoie, 1987, p. 68.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
24
"especularidade" econômica e urbana. Se tal raciocínio estiver correto, pode-se afirmar que a
existência do circuito só será possível se houver a "emergência" de uma crença quanto a
evolução econômica e urbana (convenção).
Uma vez concedido o empréstimo bancário, entra-se na fase intermediária do circuito. No
primeiro momento, os capitalistas compram de outros as mercadorias necessárias para dar início
à produção e, ao mesmo tempo, desbloqueiam os salários que permitem que os trabalhadores
se decidam a comprar bens ou a poupar − seja em forma líquida de depósitos bancários, seja
em forma de títulos, obrigações, ações etc.57 Se fosse preciso distinguir os fluxos monetários de
um circuito urbano e os de um circuito macroeonômico, poderíamos classificar as compras do
trabalhadores em duas categorias: as compras de bens residenciais, e as compras de outros
bens. Assim, supondo-se que a poupança seja nula, a parte dos salários despendida em
compras "não-urbanas" vai permitir a realização das antecipações dos capitalistas-empresários
não-urbanos, e a que é destinada às compras urbanas (residenciais) servirá para concretizar as
antecipações dos capitalistas urbanos. Nesse esquema simplificado, são as compras
intercapitalistas e as dos trabalhadores que possibilitam os empresários reembolsarem ao
banco. De modo que o retorno da moeda a seu ponto de partida zera o contrato de empréstimo-
dívida assinado entre as duas partes e sela o fechamento do circuito monetário. Segundo os
termos da teoria do circuito, é a fase do "financiamento definitivo"58
Na hipótese de os trabalhadores despenderem todo seu salário na compra de bens, a realização
da produção dos capitalistas urbanos vai depender da diferença entre o montante dos salários
gastos e o das compras de bens não-urbanos, que podemos chamar de consumo usual dos
trabalhadores (Ru=Nw-Cw; onde N é o emprego, w o salário monetário, Ru, a renda dos
capitalistas urbanos e Cw, o consumo usual dos trabalhadores). Neste caso, o fechamento do
circuito ocorrerá "sem evasão"59, já que os trabalhadores terão decidido poupar60.
Mas se os trabalhadores decidirem poupara uma parte do salário, os capitalistas deverão usar
de outras estratégias para reembolsar aos bancos, visto que uma parte da produção (resultado
da demanda antecipada), pelo menos numa primeira etapa, não será vendida. Então eles vão
precisar captar essa poupança por meio de títulos, ações etc., ou negociar com o banco seja o
57 Para um descrição desses mecanismos e dos problemas que levanta, ver Vallageas (1989) e Graziani
(1990). 58 Cf. Parguez (1982). 59 A esse propósito, ver Graziani, 1990, p. 13. 60 Supomos aqui que não existam locadores e que os aluguéis sejam investidos como em um sistema de
"consórcio", por intermédio dos agentes financeiros.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
25
escalonamento da dívida, seja uma proposta de o banco participar em ações61. Por outro lado,
os trabalhadores poderão escolher entre várias opções de poupança: manter o dinheiro em
forma líquida (depósito bancário), "investir" na compra de ações ou entrar no jogo da
acumulação financeira. A existência de uma poupança é que é a razão de ser da atividade dos
agentes financeiros cuja função será "reinsrir" no circuito uma moeda já criada. Sua ação,
portanto, não pode ser confundida com a do banco, pois a criação da moeda (finaciamento
inicial) é de natureza inteiramente diversa da de um eventual escalonamento da dívida ou do
financiamento de uma compra62. Isso nos parece ainda mais importante porque, no circuito
monetário, as mercadorias produzidas pelos capitalistas têm, na maioria dos casos, necessidade
dessa "intermediação" para serem vendidas, devido ao alto valor individual dos bens residenciais
urbanos.
Como o salário dos trabalhadores é insuficiente para pagar esses bens à vista, aqueles que
desejarem comprar uma casa para morar serão obrigados a se endividar. Mas quando se
endividam, estão antecipando o contexto econômico futuro, pois a decisão de assumir um
empréstimo é uma aposta na permanência de seus salários. Entretanto, nessa atmosfera de
ambigüidade em que deparam, de um lado, com a necessidade de acreditar na continuidade do
emprego e, de outro, com a incerteza de poder conservá-lo, a dúvida, estritamente relativa à
decisão de compra-endividamento de um bem urbano, será amenizada pela possibilidade de
recuperar a liquidez com sua revenda no mercado secundário.
Já vimos, aliás, que essa situação levaria os trabalhadores a formularem seus julgamentos de
antecipação quanto à "liquidez urbana". A decisão de adquirir um bem urbano faria com que
especulassem sobre as condições futuras dessa mercadoria, pois sabem que todo produto
urbano é parte de um conjunto de externalidades de vizinhança (ordem residencial) e que suas
características de localização se transformam no tempo. Se, ao antecipar o futuro, os
trabalhadores podem tentar prever as transformações físicas (e socioculturais) do estoque
residencial, são, principalmente, as variações monetárias que lhes interessam. O "motivo-
residência" está presente agora, mas o "motivo-especulação" que será o principal elemento de
estímulo à aposta sobre o futuro, seja porque os trabalhadores acreditam que o risco de
desemprego pode ser compensado por uma expectativa de venda do referido bem e, portanto,
por um reembolso da dívida aos agentes financeiros (estratégia defensiva), seja porque esperam
realizar um ganho monetário graças à valorização da mercadoria urbana (estratégia ofensiva).
61 Cf. a esse respeito, Vallageas (1989). 62 Como já foi assinalado, este ponto será determinante na crítica que os circuitistas dirigem à formulação
ortodoxa da identidade entre investimentos e poupança. Sobre esta questão, Schmitt (1984) criticou as formulações keynesianas que utilizam a idéia do multiplicador, e propôs um avant tout contable das relações macroeconômicas.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
26
Pode-se dizer, então, que, quando há risco de desemprego involuntário, ou seja, interrupção dos
rendimentos dos trabalhadores (e portanto a impossibilidade de pagarem suas dívidas), haverá a
possibilidade de revender o bem residencial no mercado secundário. Mas para que isto
aconteça, é preciso que o bem não se desvalorize, donde a obrigação de antecipar a liquidez
urbana. Em suma, a possibilidade de os trabalhadores anteciparem uma mudança no ambiente
pode reduzir suas reticências ante o endividamento. Contudo, a antecipação da liquidez urbana,
comporta um perigo: o de serem arrastados a uma lógica de "profissional das antecipações"
(motivo-especulação) passível de subverter s próprio critério da configuração da ordem
residencial (convenção). A decisão de localização fundada na busca de externalidades de
vizinhança será minada por um "movimento especulativo puro" que visa unicamente um ganho
monetário pelo viés da antecipação espacial, Como já foi dito, este processo pode liberar
"bolhas" especulativas e bloquear a mecânica da coordenação espacial.
A ambigüidade que ressalta dessa dinâmica de antecipação da liquidez urbana é manifesta por
essa incitação ao endividamento provocada pelo efeito valorização63. Se, por um lado, esse
movimento pode deflagrar o colapso de uma convenção urbana e o bloqueio de novos circuitos
monetários urbanos, por outro, ao encorajar as famílias a se endividarem, ele propicia o fim do
contrato de empréstimo-dívida entre os capitalistas e o banco. Observando este último aspecto
mais de perto, vemos que o bom andamento da circulação monetária supõe que os três
personagens do circuito partilhem da convenção urbana.
No circuito urbano, em termos agregados, os trabalhadores só tomam decisões de localização
efetiva caso recebam um salário. Assim, a antecipação urbana dos capitalistas financiados por
um banco deverá ser ratificada pelas despesas dos trabalhadores. Mas por que estes ratificariam
uma convenção proposta pela oferta capitalista? O que pode levá-los a confirmar crenças de
ordem cognitiva, isto é, a tomar uma decisão de despesa monetária. Aqui, é preciso ter em
mente que a produção de moradias leva tempo e há, portanto, uma certa demora entre a
emergência do processo cognitivo que produz a crença quanto à localização e o momento da
oferta-compra do bem residencial.
Sem dúvida alguma, é graças aos efeitos de reiteração da convenção (apresentados quando
falamos do corredor da convenção) que o financiamento definitivo poderá der realizado.
Primeiro, porque os capitalistas estipulam o mark up urbano antecipando monetariamente as
mudanças da configuração residencial futura. Esta prática terá, como conseqüência, uma
variação (valorização) dos preços monetários na localização-convenção, vista, por sua vez,
como vetor de expansão-mudança da espacialidade urbana. Essa movimentação dos preços vai
63 Para a apresentação o efeito de valorização, ver o capítulo sobre a convenção urbana.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
27
produzir um efeito de atração sobre a demanda pelo viés do motivo-especulação. Ou melhor,
dado que a taxa de aumento dos preços na área correspondente à convenção é superior à dos
estoques depreciados (em razão do mark up antecipado), os trabalhadores acreditarão que esse
processo de "valorização" terá continuidade no tempo. Pensando que a localização em causa vai
adquirir uma liquidez urbana crescente, serão levados a confirmar sua crença no momento da
decisão dos capitalistas e a partilhar, portanto, da convenção urbana em vigor. Aqui, é o "efeito-
valorização" que permite a confirmação das antecipações feitas pelos capitalias-empresários
urbanos; ele vai funcionar então como um "instrumento"' para incitar os trabalhadores à despesa
e a financiar de maneira definitiva o investimento produtivo dos capitalistas.
A segunda razão que leva os trabalhadores a confirmarem suas expectativas refere-se ao
processo de transformação real da ordem residencial; quando a convenção é partilhada pelos
capitalistas urbanos (e também pelo responsável pelas instalações urbanas − o governo), os
estoques residenciais da localização-convenção mudarão ao adotarem as características
propostas pela crença. Daí em diante, os trabalhadores terão razões suplementares para
acreditarem na concretização da externalidade de vizinhança esperada. Como as ofertas lhes
parecem sinais de confirmação da crença, eles estarão propensos a gastar. Neste caso, é o
"efeito de estoque real" que os estimula a financiar de forma definitiva as despesas produtivas
dos capitalistas urbanos.
Essas observações nos levam à concluir que, se a assinatura de um contrato (relação) de
empréstimo-dívida entre esses capitalistas-empresários e o banco (ponto de partida do circuito
urbano) exige a emergência de uma convenção urbana, sua expiração só ocorrerá se os
compradores (os trabalhadores) partilharem com os outros personagens do circuito das mesmas
crenças quanto à configuração das externalidades residenciais de vizinhança.
Para resumir o percurso do circuito monetário urbano simples, pode-se representá-lo como uma
seqüência de fases que põem em contato os capitalistas, os trabalhadores e o banco64. Numa
primeira fase, os capitalistas-empresários decidem do volume da demanda e da localização dos
bens residenciais a serem produzidos com base nas antecipações da demanda concernente às
externalidades de vizinhança. Depois de traduzir essas antecipações em termos monetários,
eles solicitam ao banco a abertura do crédito necessário para fazer face ao processo de
produção. O banco "avalia" as antecipações da demanda (quantidade e localização), tais como
foram formuladas pelos capitalistas, e se compromete a lhes fornecer o montante solicitado.
Enfim, os empresários depositam os primeiros salários e dão partida ao processo de produção.
Esses atos correspondem à segunda e à terceira fase do esquema abaixo.
64 Utilizo aqui o esquema proposto por Messori (1985, p. 211). Em artigo posterior, Messori (1988) voltará a
sua idéia de circuito de cinco fases e as reduzirá a três.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
28
1ª fase 2ª fase 3ª fase 4ª fase 5ª fase
Decisão de produção
Utilização do crédito para
adiantamento do salário
Processo de produção
Compras dos bens
produzidos no mercado
Regulação dos juros e da dívida dos capitalistas
Abertura de crédito
Decisão de endividamento
Anticipaçã do ambiente
construído futuro
Figura n° 4: as fases do circuito.
Após a fase das compras inter-capitalistas, entra-se na fase em que os trabalhadores escolhem
entre poupar e comprar mercadorias "correntes" e "urbanas". A aquisição dessas últimas (bens
residenciais urbanos) só será possível graças à assinatura de um novo contrato (relação) de
empréstimo-dívida (endividamento dos trabalhadores), que comprometerá uma parte de sua
poupança. Este crédito vai permitir que os trabalhadores comprem mercadorias urbanas e que
os empresários regularizem suas dívidas com o banco. Assim também seus homólogos não
urbanos reembolsarão seus empréstimos graças às compras intercapitalistas e às "compras
habituais" dos trabalhadores. Se a demanda efetiva for inferior à demanda antecipada, eles
tentarão captar a poupança dos trabalhadores, ou refinanciar suas próprias dívidas junto aos
bancos65. O circuito estará fechado quando os empresários tiverem reembolsado os bancos, isto
é, no momento do financiamento definitivo de suas despesas.
Neste estágio da descrição dos fluxos monetários gerados pela produção residencial urbana, um
outro personagem pode ser introduzido: o governo. quando os empresários tiverem reembolsado
os bancos, isto é, no momento do financiamento definitivo de suas despesas produtivas.
Entretanto, elas também estão ligadas à obrigação de antecipar a ordem residencial futura. Mas
é sabido que, quando a decisão de produzir instalações urbanas está sujeitas a essa mesma
lógica de antecipação fundada nas crenças (convenções urbanas), a concretização da demanda
também fica sujeita à incerteza radical urbana. Ou seja: esta decisão não escapará aos novos
65 Cf. a este propósito, Vellageas (1989) e Parguez (1986).
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
29
imprevistos de desordem espacial a que a coordenação das decisões de localização tomadas
pela convenção contém em si mesma.
O papel das despesas de estado no circuito monetário urbano O objetivo de introduzir o governo neste circuito é ampliar a análise da economia monetária de
produção residencial, a fim de integrar, do estrito ponto de vista do fluxo monetário de produção
residencial, o processo de produção das instalações urbanas. Grosso modo, serão considerados
apenas os bens urbanos que compõe o quadro das externalidades residenciais de uso coletivo,
cuja produção faz uso de formas particulares de financiamento. Com a introdução desse tipo de
bens no percurso funcional da moeda, vamos nos prender aos dois principais elementos
constitutivos da ordem residencial urbana: o estoque residencial e as instalações chamadas
públicas.
De fato, a entrada em cena do governo (ou do Estado) no teatro urbano não modifica as
características gerais do circuito anteriormente descrito66. No circuito da moeda, como Poulon o
denomina, "ele não é uma categoria de agente fundamental. O Estado é uma pessoa moral,
considerada à parte por necessidades específicas da análise, mas que participa de fato das três
categorias de base (o Estado é, efetivamente, ao mesmo tempo empresário, banqueiro e
consumidor final."67
O papel do governo no circuito monetário urbano será definido aqui somente em relação às
despesas ligadas à produção de uma categoria de mercadorias que possuem certas
características econômico-espaciais: individualidade, alto valor individual e imobilidade. De resto,
a radicalidade da irreversibilidade desses atos de produção fará os decididores recorrerem a
formas de financiamento muito específicas em comparação com o da produção realizada pelos
outros capitalistas-empresários. É evidente que o caráter irreversível da construção de
instalações urbanas é parte integrante do processo de configuração da ordem residencial, e tais
decisões estarão muito sujeitas à dinâmica de interdependência das escolhas de localização68.
É preciso ficar muito claro que esses bens (as instalações urbanas) são produzidos, atualmente,
por decisão do governo; a sociedade é que lhe delegou, historicamente, esta tarefa social, uma
vez que o livre jogo do mercado mostra-se incapaz de fornecer o conjunto das mercadorias
66 A introdução do governo e das despesas públicas terá uma repercussão inteiramente diferente em um
quadro macroeconômico; levará a opções de financiamento e a despesas que causarão impactos diferentes na determinação dos preços e das taxas de juros. Para uma discussão do papel das despesas públicas em termos macroeconômicos, segundo a teoria do circuito, ver Graziani, 1985.
67 Poulon, 1985, p. 72. 68 Essa característica é claramente evidenciada nos modelos ortodoxos de externalidade da NEU, em
particular, nos modelos de congestionamento; a este propósito, ver Kanenoto e Miyao (1987).
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
30
necessárias à vida urbana. O papel da despesa pública urbana e, portanto, do governo, mudou
ao longo da história do capitalismo devido à evolução que lhe coube desempenhar na regulação
das "relações sociais de produção". Segundo conceitos regulacionistas, esse papel é função da
relação entre o regime de acumulação e o modo particular de sua reprodutividade, ou seja, seu
modo de regulamentação69.
É perfeitamente admissível que uma parte dos equipamentos urbanos (ou mesmo o conjunto)
seja produzido pelos capitalistas-empresários. Entretanto, durante o período do pós guerra que
foi associado à fase "fordista" da expansão capitalista − conforme os termos da teoria da
regulação − o governo desempenhou um papel quase exclusivo na produção das instalações
urbanas70. Ainda que estejamos, hoje, num período de mudança, tanto do regime de
acumulação como do modo de regulação, essa produção ainda depende muito das despesas
públicas. Como veremos em seguida, a particularidade da posição do governo no circuito
monetário urbano tem muito mais a ver com a maneira específica com que ele financia essa
produção do que com uma renovação de sua função e de suas relações hierárquicas71.
Antes de mais nada, a presença do Governo, entendido como um personagem que decide
produzir ou não um bem urbano, não modifica o mercado global do circuito, porque suas
decisões são de uma natureza bastante semelhante a das outras decisões produtivas próprias
dos capitalistas-empresários. Digamos que levar em conta, no circuito monetário, decisões de
produção de instalações urbanas pode ser visto, para utilizar os termos de Parguez, como uma
"extensão do princípio da demanda efetiva ao governo."72 Aí, o financiamento inicial também vai
depender da avaliação do Banco Central quanto aos cálculos antecipatórios do governo, da
mesma maneira que o financiamento definitivo será função da realização ou não da demanda
antecipada e/ou da capacidade do governo, em concorrência com os outros capitalistas
empresários, para captar a poupança dos trabalhadores.
69 Para exemplos de estilização histórica regulacionista, ver Aglietta (1976), Delorme (1982), Lipietz (1988)
e Théret (1990). 70 Durante os anos setenta, deu-se um debate, particularmente no meio da tradição sociológica marxista,
sobre a relação entre a despesa pública urbana e a reprodução do capitalismo. Este debate, continuação crítica e/ou prolongamento das teses do CME e do estruturalismo althussiano, produziu uma volumosa literatura cujos autores mais conhecidos são Castels (1973), Loykine (1977), Preteceille (1975), Harvey (1979), Pickvance (1976) e Saunders (1981). Para um balanço rigoroso da literatura francesa sobre o assunto, ver Amiot (1986). Aqui, enfocaremos a funcionalidade dessas despesas no que se refere estritamente à circulação monetária, o que significa que a dimensão estrutural (ou funcional) das despesas urbanas, referente à "reprodução do poder social do capital" não nos concerne.
71 Apresentaremos aqui somente o aspecto do fluxo monetário ligado à decisão de produção de instalações urbanas quando tal decisão é tomada segundo uma lógica de reembolso por validaão mercantil.
72 Parguez, 1987, p. 765.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
31
Entretanto, a produção de instalações urbanas enfrenta um certo número de dificuldades no
tocante ao cálculo que pretende antecipar a demanda. Antes de tudo, há o fato de a mercadoria
"instalação urbana" ser um bem de vida material bastante longa, uma espécie de "capital fixo
urbano"73 dotado de um alto valor individual. No que se refere à realização − ou melhor, ao
financiamento definitivo, para usarmos os termos da teoria do circuito −, isso levanta um
problema de ordem temporal tanto mais crítico porque acrescido da dificuldade de antecipar a
demanda de bens invisíveis. Como sabemos, o caráter de imobilidade espacial das instalações
urbanas tem a ver com o fato de seu suporte ser o solo. E quando se considera a configuração
espacial como um conjunto de externalidades residenciais de vizinhança, pode-se dizer que a
realização da demanda antecipada de instalações urbanas dependerá do lugar que cada
instalação ocupará no ordenamento do espaço residencial. Em outras palavras, vai depender da
configuração das externalidades de vizinhança: a produção desses equipamento enfrentará,
portanto, o problema da coordenação das decisões descentralizadas de localização.
Mas a ordem residencial muda ao longo do tempo (cronológico) ao sabor das decisões
individuais de produção das capitalistas -empresários urbanos. Dado que a decisão de produzir
uma instalação urbana é irreversível do ponto de vista espacial (em razão da imobilidade radical
deste bem), e a demanda depende muito freqüentemente da ordem residencial em vigor, as
mudanças que interferem na configuração das externalidades de vizinhança vão transtornar as
antecipações do governo concernentes à demanda de infra-estrutura urbana. Durante toda a
vida material dessas instalações, paira o perigo de uma modificação da ordem residencial
passível de desprezar a demanda esperada. Por conseguinte, a antecipação da demanda de
instalações exige uma antecipação da ordem residencial futura.
Ademais, como a ordem residencial é o resultado das ofertas de bens-moradias feitas pelos
capitalistas-empresários urbanos, para que a demanda prevista seja concretizada, o responsável
pelas instalações (governo) terá de fazer antecipações da ordem residencial idênticas a dos
referidos capitalistas. Mas suas decisões de produção são descentralizadas, e cada um precisa
especular sobre a escolha de localização dos trabalhadores e apostar, portanto, na configuração
das externalidades de vizinhança e nas decisões de localização dos outros capitalistas no que se
refere à produção de residências, para poderem antecipar suas próprias escolhas de produção.
Encontramos aqui o ambiente especular urbano que precede o surgimento de uma referência
comum de coordenação espacial: a convenção urbana. E por estar estreitamente ligada à
configuração da ordem residencial, a decisão de produzir instalações urbanas em uma
localização dada, assim como a de produzir bens residenciais, deverá ser tomada em um clima
73 Cf. a esse respeito, Harvey, 1982 e 1985.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
32
de especularidade urbana: quando o governo decide produzir, está manifestando um julgamento
especulativo sobre as antecipações que os capitalistas urbanos farão sobre ordem urbana futura.
Da mesma maneira, pode-se dizer que as instalações urbanas e os bens residenciais têm
características comuns quanto ao financiamento definitivo. Primeiro, devido aos perigos ligados a
sua longa vida material e, sobretudo, ao caráter inamovível de seu suporte − o solo − por
conseguinte, à imobilidade radical que os prende indissoluvelmente à configuração da ordem
espacial. Mas a ordem urbana, ao contrário dos bens urbanos, não é estática ("imóvel"); ela
muda ao longo do tempo em razão da "mobilidade" das decisões de localização. Ou melhor:
enquanto as decisões de produção (de instalações e de residências), uma vez tomadas,
imobilizam-se espacialmente, as que hão de vir flutuarão ao sabor dos novos desejos de
produção. Em suma, é a tensão que se estabelece entre as decisões do passado (estoque) e o
desejo de anulá-las (depreciação fictícia gerada pela inovação espacial) que fazem com que as
escolhas produtivas ligadas às instalações e às residências sejam realizadas em um ambiente
de incerteza urbana. A partir daí, a antecipação da demanda necessária ao financiamento
definitivo da produção não passaria de um exercício de rotina, até pelas características espaciais
desses bens.
Por outro lado, o fato de se tratar de bens de alto valor individual só intensifica o problema do
financiamento definitivo da produção. Como a compra de residências urbanas obriga os
trabalhadores a se endividarem e a comprometer sua poupança, é de imaginar que também se
endividem para ter acesso às instalações urbanas, e aí, na gestão da poupança, também ocorra
intervenção dos intermediários financeiros. Existe, porém, uma notória diferença entre esses dois
tipos de bens, o que dará lugar a diferentes formas de financiamento definitivo da despesa de
produção: o caráter indivisível das instalações urbanas, cuja execução vai depender de um
conjunto de decisões de consumo (compra). É a conjunção dos três traços fundamentais − a
imobilidade espacial, o alto valor individual e a indivisibilidade radical − que radicaliza ainda mais
a incerteza que envolve a confirmação da demanda antecipada. É o alto risco de fracasso a que
está sujeito o financiamento das instalações urbanas que lhe confere formas particulares que o
distinguem do financiamento dos bens residenciais .
Grosso modo, essas diferenças manifestam-se em relação ao financiamento inicial e ao
definitivo. Quanto ao primeiro, a decisão de produzir uma instalação urbana não será subscrita
por qualquer outro personagem. Da mesma maneira que o governo, no momento em que
decide, assume a função de empresário capitalista, também assumirá o papel do banco na hora
do financiamento inicial. Considerando que essa decisão não é financiada pelos salários, isto é,
segundo uma lógica de acumulação por crédito, a única maneira de financiar essa despesa
pública é recorrer à criação monetária. Mas se o governo assume o papel do banco, sua dívida
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
33
será traduzida por um compromisso de reembolso futuro perante a sociedade. Assim, o
financiamento inicial das despesas públicas produtivas dará lugar a um acordo de "empréstimo-
dívida" institucionalmente denominado de "déficit urbano". Trata-se então de uma primeira
diferença em comparação com o financiamento dos capitalistas, uma vez que a relação de
empréstimo-dívida estabelecida no financiamento inicial dos bens que eles produzem envolve
um compromisso com o banco e não com a sociedade.
Essa questão é ainda mais importante porquanto vai definir as diferenças concernentes ao
financiamento definitivo. Se o dos bens residenciais depende das decisões de compra-
endividamento dos trabalhadores, o da produção de instalações urbanas, quando garantido pelo
governo, envolve a peculiaridade do comprometimento institucional assumido pelo financiamento
inicial. Neste caso, a despesa do governo "é financiada por uma poupança compulsória
personificada (que consiste) em uma arrecadação fiscal Assim, o déficit fiscal é financiado pela
sociedade"74. O que significa que a despesa pública será financiada de maneira definitiva por
uma aposta na poupança futura da sociedade: "a despesa pública seria financiada a curto prazo
por uma criação de moeda garantida pelo banco central; uma vez realizada a despesa, o
aumento da renda provocaria a formação de uma poupança monetária que permitiria colocar os
títulos por um valor correspondente à despesa inicial"75
Raciocinando do ponto de vista da despesa necessária à produção de instalações urbanas, e
abstraindo a possibilidade de colocação de títulos, pode-se dizer que o financiamento definitivo
dessa infra-estrutura vai depender das variações da base de cálculo dos impostos urbanos. Quer
dizer que o financiamento final vai depender do nível de emprego (do ponto de vista
macroeconômico) e das variações da ordem residencial (preço de convenção e volume do
estoque). Já que as despesas em instalações urbanas baseiam-se em critérios estritamente
espaciais e a poupança compulsória urbana está inserida em um decurso de tempo (histórico),
então o financiamento só poderá ser definitivo se as variações da base de cálculo do imposto
acompanharem as antecipações da ordem residencial. Assim, o governo deverá antecipar essa
ordem para financiar de forma definitiva sua despesa com instalações urbanas.
Em outras palavras, ele será obrigado a antecipar a ordem residencial urbana futura, seja para
prever a demanda de instalações urbanas (papel dos capitalistas) ou as possibilidades de
reembolso do déficit urbano (papel do banco). Como essa ordem é o resultado agregado de
decisões interdependentes de localização, sua antecipação leva o governo a investigar os
julgamentos dos outros participantes do mercado residencial. Em suma, as decisões de despesa
74 Parguez, 1987, p. 765. 75 Ibid., p. 765.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
34
produtiva do governo (instalações) demonstram que também ele participa da dinâmica especular
do circuito monetário urbano.
O circuito monetário urbano, a especularidade urbana e o estado A introdução de despesas governamentais no âmbito do estritamente urbano permite ampliar a
descrição do percurso da moeda quando se trata de uma economia monetária de produção
residencial. A primeira pergunta é saber como são tomadas as decisões concernentes à
localização das instalações produzidas. E vai evidenciar a relação que existe entre as decisões
de produção dos "objetos" que compõem a estrutura material da ordem residencial (residências
e instalações) e a coordenação espacial necessária à emergência das externalidades de
vizinhança.
Segundo os termos do circuito monetário urbano, digamos que as antecipações da configuração
residencial impostas pelas despesas produtivas do governo (estabelecimento de uma relação de
empréstimo-dívida ou financiamento inicial) e sua conclusão (fechamento do contrato ou
financiamento definitivo) articulam-se com as crenças que os outros participantes do mercado da
localização residencial alimentam à respeito da ordem espacial. Significa que a produção dos
"objetos" reais do espaço urbano não podem ser desassociados da coordenação cognitiva
(antecipações) do ordenamento espacial. Então, para que este circuito monetário seja aberto e
concluído é preciso que todos os personagens que dele participam partilhem de uma mesma
crença sobre o futuro urbano. A partir daí, seria possível imaginar a convenção urbana como a
crença que selará o início e o fim das relações de empréstimo-dívida entre os diversos
personagens do circuito monetário. Neste sentido, pode ser considerada como a condição
cognitiva de conjunção das crenças relativas às ordem urbana futura e das decisões de despesa
necessárias à transformação das virtualidades em realidade urbana.
Antes de descrever esquematicamente o papel da convenção num circuito em que o governo
intervém, vamos voltar um pouco aos financiamentos, o inicial e o definitivo, da produção de
instalações urbanas. O Estado, como todo fornecedor de mercadorias, terá de fazer um cálculo
de antecipação da demanda antes de decidir do volume de empregos que deverá utilizar. Para
um dado salário monetário e um mark up nulo, por definição, ele poderá recorrer ao personagem
que detém o poder de adiantar as somas necessárias à produção: o Banco Central. Contudo,
antecipar a demanda de infra-estrutura num ambiente onde cada decisão de produção de bens
residenciais pode virar uma "decisão crucial" no sentido shackleano do termo, e portanto,
subverter as antecipações passadas, torna a decisão de produzir-localizar uma instalação
urbana uma verdadeira aposta no futuro espacial. Aqui é preciso não esquecer as três principais
características da infra-estrutura urbana (alto valor individual, imobilidade espacial e
indivisibilidade) para compreender a particularidade de seu financiamento. Assim, o perigo de um
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
35
eventual bloqueio da oferta capitalista de instalações pelo livre jogo do mercado levará a
sociedade a aceitar que o banco central adiante a um Estado, a partir daí, "empresário", a
moeda necessária a sua produção (financiamento inicial).
Ao contrário do compromisso assumido entre o banco e os capitalista-empresários, que estipula
obrigações de reembolso no plano individual, o financiamento inicial da produção do governo é
uma aposta no futuro da sociedade como um todo. Quando o Banco Central adianta os fundos
necessários à produção de infra-estrutura urbana, o contrato de empréstimo-dívida é
estabelecido entre o conjunto da sociedade e o Estado. E a dívida do governo − o déficit urbano
− deverá ser necessariamente reembolsada (financiamento definitivo), visto que o compromisso
de saída − o "acordo social" − assim o exige.76
Mas se a antecipação dos capitalistas é, acima de tudo, um cálculo para tentar prever os preços
e o volume da demanda futura e, assim, avaliar o financiamento definitivo da produção, o cálculo
de antecipação do governo apresenta outras particularidades quanto a este financiamento.
Primeiro, porque a elaboração de um bem invisível exige que um conjunto de consumidores
tenha decidido comprá-lo. Como seu "valor de uso" não pode ser realmente concretizado pelo
efeito de uma decisão única, é preciso uma soma de decisões individuais. Ora, isso introduz um
problema de coordenação muito mais complexo do que o que atinge outros tipos de bens: cada
instalação deverá ser "consumida" por muitos trabalhadores-famílias durante um certo tempo, e
a não-venda dessa instalação (a construção de um "estoque involuntário") acarreta um problema
crítico, pois levanta a questão da realização das instalações cuja produção está sujeita ao
embaraço de sua imobilidade espacial. O problema de coordenação acima mencionado é
resolvido, geralmente, por uma outra fórmula: a participação da sociedade, exigida pelo
financiamento definitivo dessa infra-estrutura (ou pelo menos de uma parte dela), consistirá em
uma poupança compulsória denominada "imposto urbano".
Por imposto urbano, entenda-se a participação da renda social cujo cálculo terá como referência
o preço e a estrutura dos estoques residenciais urbanos. Significa que ele vai repercutir na renda
dos personagens do circuito, mais particularmente na dos trabalhadores, por meio da expressão
monetária dos estoques. De modo que uma variação dos salários das famílias só será traduzido
em uma variação da percepção fiscal se ocorrer, ao mesmo tempo, a intervenção de uma
mudança nas grandezas (preço e/ou volume dos estoques) do espaço urbano. Mas se o
financiamento definitivo da produção de infra-estrutura urbana (a quitação do déficit urbano) é
76 Um não-reembolso crônico poderá provocar uma crise de credibilidade em relação ao governo, cuja
manifestação mais comum é a crise fiscal; a este respeito, ver Graziani (1985). Para um balanço dos recentes modelos macroeconômicos ortodoxos no que se refere à relação entre a despesa pública e a credibilidade (modelos de ciclo político), ver Artus (1993, p. 237-258).
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
36
realizado graças a esse imposto que, por sua vez, é função das modificações da estrutura
residencial, daí resulta que o governo deve antecipar a poupança compulsória necessária ao
reembolso definitivo da dívida (déficit urbano) que teria assumido com a sociedade. Por
conseguinte, antecipar a imposição urbana é, acima de tudo, antecipar o futuro da ordem
espacial urbana77.
Aliás, a poupança compulsória que vai permitir o financiamento definitivo também será função
das despesas que o governo decidir assumir. O imposto urbano surge então como o meio que o
governo utiliza para captar uma renda criada por suas próprias decisões de despesa. Contudo,
se desconsiderarmos o efeito macroeconômico global (tY'>tY), o retorno ao circuito urbano da
moeda despendida pelo Estado vai depender da ampliação da base de cálculo do imposto
urbano (preço e volume do estoque imobiliário). Quer dizer que, se o financiamento definitivo da
produção de infra-estrutura urbana é efetuado graças a uma poupança compulsória, isto
acontece de maneira indireta, visto que o montante dessa poupança estará vinculada aos
estoques e aos preços residenciais.
O financiamento do déficit urbano, portanto, não pode ser reduzido a um cálculo da variação das
rendas efetuado com base em uma decisão de despesa (e conseqüentemente de financiamento)
compreendida segundo os termos habituais da macroeconomia keynesiana78. A decisão de
produzir um bem-instalação urbano implica a introdução de uma outra variável que vai permitir a
antecipação da demanda. Esta variável, que também serve de base para o cálculo da poupança
urbana compulsória, será a própria configuração espacial. Raciocinando em termos estritamente
espaciais, uma despesa pública urbana não poderia gerar por si só (pela via tradicional do
multiplicador) os efeitos necessários ao financiamento definitivo (poupança compulsória) dessa
instalação. Quando decide produzir uma instalação (poupança compulsória) o governo deverá
antecipar o financiamento definitivo que lhe vai permitir saldar o déficit urbano e, para isso, terá
de antecipar as mudanças ligadas ao preço, ao volume e à localização dos estoques
residenciais.
Desse ponto de vista, na ocasião da abertura do circuito monetário urbano, os capitalistas bem
como o governo devem antecipar (por razões diferentes) a ordem residencial. Os primeiros, para
77 Segundo uma formulação bastante simplificada, o imposto urbano poderia ser representado da seguinte
maneira: Tu = Σtu.pui. Kui e (i = 1,2,...n) onde Tu é o montante do imposto urbano, tu é uma taxa fixa, pu, o preço dos bens residenciais e Ku, o bem residencial, sendo o índice i a referência do estoque. Assim, dado que a taxa tu é constante, a antecipação de Tu remete à antecipação dos preços e das quantidades dos bens residenciais, isto é da ordem residencial.
78 É comum recorrer ao raciocínio keynesiano tradicional que utiliza a noção de multiplicador para chegar ao equilíbrio I-S; para uma exposição didática, ver Dornbusch e Fischer (1981). Para os desenvolvimentos macroeconômicos ortodoxos mais recentes que criticam a formulação tradicional keynesiana, ver Blanchard e Fischer (1989).
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
37
preverem a localização (e o tipo) dos bens residenciais demandados e o mark up urbano que
devem impor; o segundo, para prever a demanda em infra-estrutura e o montante da poupança
urbana compulsória. Uma vez formuladas essas antecipações espaciais, os bancos adiantam a
moeda necessária à produção de bens residenciais e o Banco Central adianta o montante que o
governo vai precisar para depositar os salários e comprar as mercadorias necessárias à
produção das instalações urbanas, como vemos na figura abaixo.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
38
julgamento dos bancos a respeito das antecipações dos capitalistas
decisão de produção dos dos capitalistas urbanos criação monetária
-antecipação da dd empréstimo- pelos bancos
-antecipação do mark up urbano despesas antecipação da especularidade convenção ordem espacial urbana urbana produção despesas decisão de produção do Estado déficit criação monetária antecipação da dd urbano pelo Banco Central antecipação da poupança obrigatória urbana
Figura n. 5: a abertura do circuito monetário urbano
Após a fase de produção dos elementos constitutivos da ordem residencial, entra-se na do
financiamento definitivo, quando os trabalhadores vão decidir comprar os bens ou poupar. Se
escolherem despender a totalidade de seu salário em mercadorias, a poupança-moradia
(requerida pelo consórcio) servirá de financiamento definitivo da produção de residências
urbanas, já que, individualmente, os trabalhadores não podem adquirir esses bens em virtude do
alto valor monetário. Esta "poupança por diferença" também resulta em um fluxo estritamente
financeiro que permite a abertura de um crédito que vai viabilizar a realização da demanda
antecipada pelos capitalistas urbanos. Mesmo nos casos em que exista, de início, suficiente
volume de recursos para financiar de forma definitiva a produção de bens residenciais, essa
produção não poderá ser concretizada sem que uma parcela dos trabalhadores tenha tomado
decisão de compra-endividamento. Como se sabe, tal decisão independerá de uma opção de
despesas correntes; é uma aposta no salário futuro e exige que esses trabalhadores antecipem
condições econômicas vindouras.
No que tange à dimensão espacial, essa mesma decisão fará intervir um cálculo antecipatório da
liquidez urbana futura. Ademais, como a escolha de localização é fundada na busca de
externalidades de vizinhança, os trabalhadores esperam que essas externalidades sejam
mantidas no tempo. Em ambos os casos (aspecto financeiro e aspecto espacial), para se
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
39
decidirem pela compra-endividamento, serão obrigados a antecipar a ordem espacial. Ou
melhor, recorrem a uma convenção urbana, e é quando tomam a decisão de compra-
endividamento que eles ratificam a convenção da qual participavam no momento em que os
capitalistas-empresários urbanos e o governo tomaram a decisão de produzir; ou então,
inversamente, é quando não tomam essa decisão que os trabalhadores expressam sua recusa à
convenção em causa. De modo que o fecho do investimento dos capitalistas urbanos (o
financiamento final e, portanto, o fim da relação de empréstimo-dívida estabelecida entre eles e
os bancos) exige que os trabalhadores partilhem da convenção urbana que fundamentou as
despesas produtivas. Neste mesmo sentido, o reembolso do déficit público urbano vai exigir que
o governo faça antecipações sobre a evolução da estrutura residencial, semelhantes às dos
capitalistas urbanos.
Em outras palavras, se os cálculos de antecipação de poupança compulsória (do imposto
urbano) e da demanda de instalações que norteiam a decisão de produzir essa infra-estrutura
são formulados pelo governo com base na convenção urbana, o reembolso do déficit público só
acontecerá se a variação sofrida pelos estoques e preços residenciais confirmar a convenção.
Assim, a confirmação-realização das antecipações ligadas à poupança compulsória requer que o
governo e os capitalistas urbanos procedam da mesma forma com referência à evolução da
ordem espacial, visto que são estes últimos que produzem os estoques e fixam o mark up
urbano. Então, o Estado, para produzir, terá de investigar as decisões dos capitalistas. Também
esses empresários terão de especular sobre as decisões produtivas do governo para assumirem
o compromisso de produzir, uma vez que o governo tem o poder de modificar a configuração das
externalidades79. Como já vimos, essa lógica cognitiva de antecipações cruzadas, em que cada
um decide especulando sobre as intenções do outro (eu penso que ele pensa que eu penso...")
vai dar num ambiente de especularidade urbana80.
Se, nesse jogo de antecipações especulares81 a que governo e capitalistas urbanos se
entregam, forem enxertadas as escolhas dos trabalhadores concernentes à compra-consumo, ou
à não-compra, de bens residenciais e instalações urbanas (que permitirão ou não que as
antecipações do governo e dos capitalista se realizem), chegamos a uma situação em que todas
as estratégias de despesa urbana são adotadas em um cenário de especularidade. Como não
79 Basta imaginar, por exemplo, que uma infra-estrutura cuja demanda provenha de um certo tipo de
famílias de baixa renda ocorra em uma localização a que os empresários houvessem atribuído uma externalidade de vizinhança correspondente a famílias de renda mais alta. Neste caso, a decisão do governo pode conturbar as antecipações dos empresários e levar ao fracasso suas escolhas de produção.
80 Ver capítulo sobre a convenção urbana. 81 O termo antecipação especular foi tirado de Orléan (1988, 1990).
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
40
há regra de coordenação exterior e superior a esses três personagens (como o secretário do
mercado walrasiano), a própria existência do circuito monetário estará ligada ao surgimento do
que Eymard-Duvernay chama de a "convenção constitutiva"82, a saber: uma convenção que
reúne em seu interior todas as crenças relativas ao futuro urbano e, assim, torna possível a
coordenação das decisões descentralizadas de localização. A figura n. 6 permite vizualizar a
posição que a convenção urbana ocuparia no fechamento do circuito monetário urbano.
82 Eymard-Duvernay (1990, p. 7) utiliza este termo para analisar certos fenômenos inerentes à empresa.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
41
déficit urbano empréstimo-dívida
convenção urbana produção infra-estrutura urbana bens residenciais mudança da ordem urbana construída
fechamento fechamento SE confirmação da convenção urbana (Ku'.pu' > Ku.pu) efeito de estoque real + ampliação da base efeito de valorização do imposto urbano monetária (se Tu=T.Ku.pu, Tu'>Tu) decisão de compra-dívida dos trabalhadores
Figura nº 6: o fecho do circuito monetário urbano
Quando os personagens responsáveis pela estruturação residencial urbana decidem produzir
compartilhando das mesmas antecipações, isto é, de uma mesma convenção urbana, então a
modificação da estrutura material do espaço é a confirmação das especulações que fizeram
sobre a evolução urbana. E esta confirmação vai produzir um efeito de reiteração das crenças
que alimentam os trabalhadores-famílias, seja porque as novas instalações e os novos bens
residenciais traduzem em termos materiais os sinais que antes eram apenas cognitivos (efeito de
estoque real), seja porque a antecipação do mark up urbano feita pelos capitalistas significa uma
efetiva mudança dos preços ("efeito de valorização monetária")83. O efeito de valorização
também serve de elemento de atração da demanda, á medida em que a influência positiva que
ele exerce sobre a liquidez esperada, estimula os trabalhadores à compra-endividamento. Se
decidirem utilizar todo o fluxo do financiamento que a "poupança por diferença" encoraja, na
compra dos bens residenciais produzidos, os capitalistas urbanos poderão reembolsar aos
bancos. Da mesma maneira, quando os trabalhadores confirmarem as antecipações desses
capitalistas, a base sobre a qual governo calcula o imposto urbano será ampliada e o Estado
também poderá quitar sua dívida (déficit urbano) com a sociedade.
83 Sobre o papel dos efeitos de estoque e de valorização enquanto elementos de reiteração da convenção
urbana, ver o trecho que trata do corredor da convenção no capítulo sobre a convenção urbana.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
42
A partir daí, os bancos e os Bancos Central recebem de volta a moeda que emprestaram,
respectivamente, aos empresários e ao governo. Este retorno ao emissor simboliza a
"destruição" da moeda de crédito ou o encerramento dos acordos de empréstimo-dívida que
sinalizaram a partida da trajetória urbana da moeda. No caso acima descrito, o circuito não
sofreu "evasão", o que significa que a poupança em jogo não passava de uma "poupança por
diferença", e os trabalhadores colocavam todos os recursos financeiros na compra de bens
residenciais. Mas quando introduzimos a intervenção de evasões, ou de uma "lógica de
austeridade" que revela, segundo a definição de Parguez84, "estratégias de arrendador", então a
dimensão monetária da crise urbana pode ser evidenciada.
Grosso modo, o circuito monetário urbano pode ser sintetizado mediante a representação
diagramática (figura n. 7) onde se vê que as antecipações dos capitalistas-empresários é "que
deflagram o processo produtivo (a demanda efetiva). O grupo dos bancos, incluso o banco
dominante − o Banco Central − , fornece o crédito monetário que a produção necessita, e as
famílias (trabalhadores) desempenham um duplo papel; por um lado, fornecem a mão de obra
exigida pela produção e por outro, caucionam ou não as antecipações e as decisões dos
capitalistas (e do governo) com a utilização que dão ao salário que lhes foi previamente
outorgado."85 Além disso, os fluxos monetários são hierarquizados: os capitalistas só podem
produzir depois de o banco o adiantar a moeda-crédito ter sido adiantada pelos bancos, da
mesma maneira que os trabalhadores só podem gastar depois que os capitalistas decidirem
produzir. Mas os capitalistas só reembolsarão aos bancos se a produção for realizada, isto é,
somente se os trabalhadores usarem seus salários para despender ou poupar. Finalmente, para
que os bancos possam emprestar, os capitalistas devem estar dispostos a participar do jogo da
acumulação, pela via da produção. Essas relações funcionais hierarquizadas traduzem bem as
ligações triangulares que são tecidas entre os diferentes personagens de uma economia
monetária de produção, onde toda decisão (ou intenção) de despesa de um remete a dos outros
dois.
Retraçar o percurso da moeda permite visualizar os respectivos papéis das despesas monetárias
de cada um dos personagens que participam do processo de produção capitalista da ordem
urbana e, assim, confirmar as hipótese da heterogeneidade dos atores do mercado de
localização residencial. Contudo, a constatação da circulação monetária urbana não deve fazer
esquecer que ela depende de um conjunto de decisões econômicas de caráter estritamente
84 Cf. Parguez (1987, 1991). Neste trabalho não desenvolvemos essa aspecto da crise monetária urbana.
Entretanto, ele pode ser útil para a compreensão de certos ângulos das crises do sistema de financiamento de habitações em regime fordista.
85 Lavoie, 1987, p. 68.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
43
individual. Ou seja, as decisões que visam produzir, comprar-contrair dívida e adiantar a moeda
não poderiam ser consideradas alheias à vontade e ao julgamento de cada um, como se os que
escolhem a localização obedecessem à uma lei superior imposta, independentemente dos
desejos individuais.
Em outras palavras, é preciso compreender que o circuito monetário urbano está inserido em um
"mundo mercantil" onde as decisões de localização são descentralizadas e os planos de ação
estabelecidos de um ponto de vista estritamente individual. Neste cenário de opções autônomas
e descentralizadas, a configuração de uma ordem espacial caracterizada por um mosaico de
externalidades residenciais recorre necessariamente a mecanismos cognitivos de coordenação
das ações. É a convenção urbana que vai servir de referência a esta coordenação; é nela que se
baseiam os julgamentos relativos à demanda de moeda necessária à produção dos estoques
residenciais (abertura do circuito monetário urbano), bem como as decisões que levarão a termo
os compromissos de empréstimo-dívida.
Nesse sentido, a convenção urbana afirma-se como elemento chave de coordenação do circuito
monetário; estabelece o elo entre a dimensão múltipla das decisões individuais de localização e
seu resultado agregado, a saber, a ordem urbana. E expressa também a articulação entre a
dimensão monetária e a dimensão real da configuração residencial da estrutura urbana
mercantil. A transformação da crença espacial em realidade urbana põe em destaque de fato a
relação que existe entre o caráter cognitivo das antecipações (cuja expressão é monetária) e os
atos que a transformam em uma realidade mercantil. Entretanto, num mundo mercantil, essas
antecipações só podem se tornar verdadeiras ações de mercado quando se manifestam como
decisões de despesa. Para que essa crença espacial vire realidade, será preciso, pois, que as
despesas monetárias "construam" o real enquanto o produzem. É então que se pode falar de
economia de produção: em razão do papel da moeda enquanto elemento de coordenação dos
atos mercantis no tempo.
A representação cognitiva do espaço (economia das expectativas) nada seria sem a moeda: ao
mesmo tempo em que ela estabelece o elo entre presente e futuro, também proporciona o poder
de despesa aos que a possuem, o que lhes permite materializar o virtual. Em uma sociedade
mercantil, a dimensão de temporalidade cronológica dos atos de localização refere-se portanto a
um duplo aspecto da moeda. De um lado, à emergência de uma virtualidade (convenção) que só
pode ser traduzida em termos monetários; do outro, à "destruição" da representação cognitiva (a
vitualidade que é transformada em realidade) graças ao poder de compra da moeda. É essa
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
44
"máquina de transportar no tempo possibilidades de intervenção mercantil que tece a relação
entre virtual (monetário) e real, entre futuro e presente.86
O circuito monetário urbano representa então o momento da passagem da crença espacial à
realidade urbana; em suma, o ponto de encontro entre o monetário e o real. Voltando a idéia da
não-simultaneidade das ações e do curso cronológico do tempo, pode-se sugerir que a
transformação da estrutura residencial recorre a um encadeamento de circuitos monetários
"guiados" por uma referência comum de coordenação espacial: a convenção urbana. Destarte, a
transformação efetiva da convenção em realidade urbana surgiria no mercado como um
encadeamento de circuitos monetários. A partir daí, manifesta-se um duplo movimento que
estabelece o elo entre a economia de produção (materialidade residencial).
Do ponto de vista cognitivo, vimos que o circuito monetário servia de mecanismo de reiteração
da convenção ao longo do tempo (por meio dos efeitos de estoque e de valorização monetária
que produz) ao mesmo tempo em que permitia o estabelecimento das relações de empréstimo-
dívida necessárias à emergência da materialidade residencial. No entanto, o encadeamento
desses circuitos também pode ser visto do ângulo da dimensão estritamente real dos atos de
produção. Desse ponto de vista, são as características próprias dos estoques residenciais de
cada localização urbana que se transformarão, a despeito das mudanças que possam ter
interferido no tocante à configuração das externalidades urbanas. Vê-se que a irreversibilidade
das escolhas de produção de estoques residenciais (tempo histórico) alude a um horizonte
temporal mais longínquo do que o da concretização das externalidades de vizinhança pela
coordenação das escolhas de localização.
As decisões do passado deixam traços na estrutura urbana (em razão da longevidade do bem
residencial), e surgirão tensões entre seus efeitos e as decisões produtivas do presente que
serão traduzidas pelo circuito monetário. Esquematicamente, e devido à transformação das
antigas características do estoque residencial de uma determinada localização, o encadeamento
dos circuitos monetários vai estabelecer um período de transição entre a convenção urbana
passada e a que lhe ocupa o lugar. Assim, se nos limitarmos apenas à dimensão real dos
estoques residenciais de uma localização urbana, é possível atribuir-lhe um "ciclo de vida" que
seria justamente o do nascimento, da morte e da sucessão de convenções que lhe são
concernentes. Essa dinâmica seqüencial − os deslocamentos espaciais que geram as inovações
e a tensão entre as decisões de produção do passado e as que estão voltadas para o futuro
(quando são tomadas do ângulo estritamente real das residências urbanas) − remete, portanto, à
86 Devemos a Davidson (1978) esta imagem da "máquina" para designar o que transporta no tempo o poder
de despesa.
III. A especularidade e o circuito monetário urbano: um esboço da economia monetária de produção residencial urbana
45
temporalidade de longo prazo das convenções urbanas. É esse movimento conjunto, ancorado
na dimensão real dos estoques residenciais é que vamos chamar de dinâmica espacial.
/////////////////////////////