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“Nossa, você conseguiu fazer tudo isso sem pedir ajuda a ninguém?”. Essa pergunta, disfarçada de elogio, esconde uma triste verdade. A nossa cultura considera o esforço individual como sendo superior ao coletivo. Realizar algo sozinho é melhor visto do que compartilhar desafios e buscar soluções por meio do diálogo com outras pessoas. É esse o modelo de liderança e heroísmo que nos tem sido ensinado desde sempre: o sujeito acima dos meros mortais, aquele capaz de propor soluções e caminhos graças à sua experiência ou habilidade superior. O Super Homem é nosso modelo de liderança. Nesse cenário, pedir ajuda é algo ruim. Compartilhar desafios e procurar pessoas para resolvê-los lado a lado é, no mínimo, entendido como atestado de incapacidade ou dependência, como se pedir ajuda significasse que estamos de alguma maneira falhando em nossas missões como seres humanos. Participamos de uma cultura bastante cruel e individualista (sobre a qual escrevi em algumas oportunidades, como aqui e aqui) que nos cobra uma necessidade de grandeza. Só consideramos positivo aquilo que atinge o máximo possível de pessoas e que se destaca entre os esforços como o melhor.

Aartedepedirajuda Tales

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ai criei esse arquivo ai que estou publicando e formando a rede de apoio para voltar caso precise.

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  • Nossa, voc conseguiu fazer tudo isso sem pedir ajuda a ningum?. Essa pergunta, disfarada de elogio, esconde uma triste verdade. A nossa cultura considera o esforo individual como sendo superior ao coletivo. Realizar algo sozinho melhor visto do que compartilhar desafios e buscar solues por meio do dilogo com outras pessoas. esse o modelo de liderana e herosmo que nos tem sido ensinado desde sempre: o sujeito acima dos meros mortais, aquele capaz de propor solues e caminhos graas sua experincia ou habilidade superior.

    OSuperHomemnossomodelodeliderana.

    Nesse cenrio, pedir ajuda algo ruim. Compartilhar desafios e procurar pessoas para resolv-los lado a lado , no mnimo, entendido como atestado de incapacidade ou dependncia, como se pedir ajuda significasse que estamos de alguma maneira falhando em nossas misses como seres humanos. Participamos de uma cultura bastante cruel e individualista (sobre a qual escrevi em algumas oportunidades, como aqui e aqui) que nos cobra uma necessidade de grandeza. S consideramos positivo aquilo que atinge o mximo possvel de pessoas e que se destaca entre os esforos como o melhor.

  • Isso acontece porque desde pequeninos vamos aprendendo que devemos ser os melhores entre todos, aqueles que se destacam nas notas, nos esportes, nos relacionamentos, nas contas bancrias, em tudo. No h espao para no ser o melhor e no h espao para duas pessoas serem as melhores ao mesmo tempo. A minha pergunta, que fundamenta este texto inteiro, : por que resolver as coisas sozinhos? Tenho refletido sobre isso desde que assisti a um vdeo daAmanda Palmer no TED, no qual ela explica a maneira como leva a sua arte.

    AartedeAmandaPalmerEla conta vrias coisas, como o fato de que j trabalhou como esttua humana na rua, retribuindo doaes com um olhar profundo e um agradecimento sincero e promovendo um tipo de contato que falta na vida de muitos passantes. Alm disso, nos shows que faz com suas bandas, Amanda geralmente se hospeda na casa de fs, recebe comida e estabelece relaes significativas com as pessoas. possvel baixar suas msicas gratuitamente em seu site. A escolha de pagar ou no, e quanto, das pessoas que faro o download do material. Essa uma proposta revolucionria (um exemplo parecido vem do Radiohead). Nem todo mundo tem dinheiro disponvel para apreciar suas msicas, mas talvez gostassem ouvi-las mesmo assim. Amanda estimula a pirataria e a distribuio livre do contedo que produz. No devemos nos equivocar, contudo: o que ela faz fruto de trabalho, criao artstica, um processo que consome tempo e que deriva da experincia dela como artista. Ser que, agindo assim, ela est desvalorizando o seu trabalho?

  • Emumafesta,Amandaofereceusenuaparaquefsescrevessememseucorpo.

    O que Amanda faz no desvalorizar o seu trabalho, mas sim abri-lo para todas as pessoas. Ela no coloca um preo fixo sobre um produto especfico. O que ela faz pedir aos seus fs que contribuam com o seu trabalho. Um caminho arriscado, talvez? De um ponto de vista economicamente tradicional, pode ser. Contudo, o que Amanda prope no uma troca meramente econmica, mas sim uma relao, uma troca de afetos. Em certo ponto de sua fala no TED, Amanda diz que se perguntou: justo se hospedar na casa das pessoas, comer sua comida e receber o dinheiro de quem se dispe a pagar? Ela responde: sim, , pois ela est oferecendo algo em troca medida que sua arte toca a vida das outras pessoas. O que ela prope ainda mais possvel hoje em dia, graas internet. Para entendermos isso, olhemos rapidamente a teoria da cauda longa.

  • AtaldacaudalongaA internet mudou a maneira como nos relacionamos com a produo de contedos, informaes e projetos artsticos. O mais evidente dos seus efeitos foi o deslocamento do poder de produo de contedo da mo de poucas pessoas e instituies para uma pluralidade incontvel de criadores espalhados pelo mundo. Historicamente, os meios de produo sempre foram escassos em comparao quantidade de consumidores de contedo. A cultura humana sofreu um grande salto com a criao da prensa mvel, que permitia a impresso seriada de livros. At ento, livros eram produzidos mo, um processo artesanal lento e que limitava o acesso ao conhecimento escrito a poucas bibliotecas inacessveis s massas. O tempo cuidou de baratear a produo dos livros, aumentando sua circulao, e logo outros meios de difuso de conhecimento surgiram, como o rdio, o cinema e a televiso. Todos eles, porm, apresentavam caractersticas semelhantes: alto custo de produo, que, portanto, estava concentrada nas mos de poucos. Em termos econmicos, isso significa que valeria mais a pena vender um produto altamente rentvel para milhes de pessoas do que milhes de pequenos produtos para indivduos ou pequenos grupos. Produzir um item em srie mais barato do que produzir milhes de pequenos itens individualmente.

  • A ideia da cauda longa a seguinte: a cabea do dinossauro corresponde produo em massa, mais genrica, que produzida em larga escala. A srie Harry Potter um exemplo, impresso exausto em vrios idiomas e um sucesso inegvel de pblico. A cauda, por outro lado, representa todos os pequenos escritores que por anos tiveram poucos leitores, seja por escreverem materiais especficos demais (que no alcanaram um pblico mais amplo), seja por no conseguirem entrar no restrito universo das editoras comerciais. O que a internet fez com esse cenrio? A internet tornou possvel que at mesmo a pontinha do rabo do dinossauro disponibilizasse seu material em um site a um custo baixssimo (e que fica cada vez mais baixo, ampliando o acesso e a possibilidade de produo). Conforme os anos passam, vemos revolues neste sentido, j que pessoas antes silenciadas em suas posies distantes dos grandes meios de produo comearam a fazer vdeos para o YouTube ou escrever em blogs. Na internet, mesmo l na ponta da cauda, eu posso encontrar leitores. Posso escrever fanfictions de robs gigantes apaixonados por lulas que brilham ao

  • sol e ainda assim encontrar as outras nicas sete pessoas no universo que curtem isso. E estabelecer uma relao significativa com elas, se assim quiser.

    EmdefesadoafetoComo escritor homossexual, eu vou e volto quanto seguinte questo: deve existir uma literatura LGBT? Quem defende que no, diz que a literatura deve ser o mais universal possvel, o que iria alm de um selo como esse. Quem defende que sim, argumenta que a arte poltica e deve encontrar espao para representar pessoas das mais diversas origens e vivncias. O argumento dos primeiros : a arte deve estar na cabea do dinossauro. O argumento dos segundos: a arte deve estar onde estiver, no dinossauro, mesmo que l no meio da cauda. Toda a nossa cultura ocidental est orientada pela cabea do dinossauro; esse o nico modelo de sucesso sobre o qual temos referncia. Devemos ser os melhores, os mais intensos, aqueles que alcanam mais pessoas. A arte deve ser universal e perdurar pelo mximo de tempo, se possvel at o infinito. S que no precisa ser assim.

  • Eusempreconsigofazervocsorrir

    Aps oito anos como blogueiro, aprendi algumas coisas sobre o ato de escrever. A primeira delas sobre a minha motivao: eu escrevo porque atravs das letras posso afetar as pessoas. Se tem uma coisa que me d vontade de continuar escrevendo (e vivendo, alis), a possibilidade de entrar em contato com pessoas em diversos lugares e propor algum tipo de conexo. Eu sei que isso acontece, pois aqui e ali, nesses oito anos, pessoas entraram em contato comigo porque se sentiram tocadas pela minha escrita. Isso mgico, porque d sentido ao meu trabalho como escritor. mgico porque significa que no estou escrevendo para o nada, estou escrevendo para pessoas reais, com sentimentos e desejos. Escrever uma forma de contato com aqueles que me leem.

    OqueeutenhoapedirVim a So Paulo para viver como escritor: a histria desta trajetria est sendo escrita aqui neste site texto aps texto. Eu cheguei aqui de olho na cabea do dinossauro, pensando em So Paulo como a cidade das oportunidades, das

  • grandes editoras, dos escritores estabelecidos, dos grandes meios de comunicao. Desde que cheguei, entretanto, fui encontrando pistas de que talvez o caminho no seja por a. Tenho trs livros publicados, mas eles tm uma deficincia em relao ao que escrevo na internet: no propiciam o contato entre os leitores e mim. Excetuando as pessoas que leram meus contos sentados na minha frente (sim, eu fao essa maldade, s vezes), no tive pouqussimo retorno do que pensaram ou deixaram de pensar sobre ou a partir do que escrevi. Eu no quero isso. Se a cabea do dinossauro significa distncia, no o que eu quero. Eu anseio por proximidade, por afeto. Por isso, decidi comear a disponibilizar a minha produo artstica abertamente aqui no blog. Conforme eu escrever novos contos, eles sero disponibilizados na categoria fico. De graa.

    Aartedepedir2paraouviropedidoprecisoestardispostoaescutarPostedon2Abril,2015bytalesgubes

    Estou lendo A Arte de Pedir, da Amanda Palmer. O foco do livro o mesmo dapalestra que ela ofereceu no TED, e sou da opinio de que todas as pessoas da Terra deveriam ver esse vdeo ao menos uma vez por dia. Em resumo, tanto palestra quanto livro tratam da abertura a pedir ajuda. Pedir ajuda, como Amanda aponta no livro, diferente de mendigar. Pedir ajuda envolve oferecer algo em troca, enquanto mendigar implica em um estado de misria que reduz ou elimina as chances de criar valor para outra pessoa. Embora eu ainda no tenha muito clara uma posio sobre como lidar

  • com pessoas que mendigam dado que esto em uma condio de invisibilidade social e, frequentemente, de difcil reparao , eu achava que j tinha resolvido minha postura sobre pessoas que pedem ajuda. Afinal, faz todo sentido que eu acolha e apoie quem pede ajuda quando tenho um projeto do Ninho de Escritores no Unlock, plataforma de financiamento coletivo recorrente. Se eu estou pedindo, certamente entendo o lado de quem pede e estou disposto a ouvir, olhar, me envolver. Mas claro que a vida no seria to simples, n? Eu estava com meu namorado e uma amiga bebendo e rindo em um bar. Noite de tera-feira, barulho e piadas. Da surgiu um cara perguntando se a gente gostava de mgica. Minha resposta foi imediata: Sim, mas no precisa fazer nada, porque no importa o que tu faa, no vamos te dar dinheiro (e bl bl bl). O moo, com o tipo de pacincia que s se constri pedindo ajuda na rua em troca de um pouco de mgica, respondeu: Tudo bem, mas posso fazer a mgica mesmo assim? Se vocs no tiverem nada para contribuir, sem problemas. Ele fez a mgica. Eu mordi a lngua e dei dinheiro. O que ele me ofereceu l foi valor, no s por me surpreender e encantar, mas especialmente por me mostrar que at ento eu s havia entendido intelectualmente a arte de pedir. Eu estava l, na minha mesa com pessoas queridas, interessado em nada do mundo alm daquelas duas pessoas. Eu poderia estar em qualquer outro lugar, atrasado ou relaxado, parado ou caminhando, em p ou sentado. Eu estava fechado. Ao decidir de antemo que no daria dinheiro ao mgico, eu havia tambm decidido que nada do que ele fizesse seria o suficiente para me alcanar. Eu estava disposto a matar qualquer relao que ele tentasse construir. Por qu? Porque mais seguro assim, de longe.

  • Chegar perto, enxergar de verdade, dar-se tempo para escutar: isso tudo muito mais difcil.