“ADEPTOS DA MANDINGA”

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS TNICOS E AFRICANOS

Josivaldo Pires de Oliveira

ADEPTOS DA MANDINGA:CANDOMBLS, CURANDEIROS E REPRESSO POLICIAL NA PRINCESA DO SERTO (FEIRA DE SANTANA-BA, 1938-1970)

Salvador BA 2010

Josivaldo Pires de Oliveira

ADEPTOS DA MANDINGA:CANDOMBLS, CURANDEIROS E REPRESSO POLICIAL NA PRINCESA DO SERTO (FEIRA DE SANTANA-BA, 1938-1970)

Tese de Doutorado apresentada ao Programa Multidisciplinar de Ps-Graduao em Estudos tnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Estudos tnicos e Africanos. Orientador: Dr. Jeferson Afonso Bacelar

Salvador BA 2010

Biblioteca CEAO UFBA O48 Oliveira, Josivaldo Pires de. Adeptos da mandinga : candombls, curandeiros e represso policial na Princesa do Serto (Feira de Santana-BA, 1938-1970) / por Josivaldo Pires de Oliveira. - 2010. 215f. : il. Orientador: Prof. Dr. Jeferson Afonso Bacelar. Tese (Doutourado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, 2010. 1. Candombl - Feira de Santana (BA). 2. Perseguio religiosa - Feira de Santana (BA). 3. Curandeiros - Feira de Santana (BA). I. Bacelar, Jeferson Afonso. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.

CDD 299.6098142

CDD

Folha de Aprovao

Tese de Doutorado aprovada pela comisso examinadora do Programa Multidisciplinar de Ps-Graduao em Estudos tnicos e Africanos, em 11 de junho de 2010.

BancaJeferson Afonso Bacelar (Orientador/UFBA) Doutor em Antropologia - UFBA Lucilene Reginaldo (UEFS) Doutora em Histria - UNICAMP Walter Fraga Filho (UFRB) Doutor em Histria - UNICAMP Luis Nicolau Pars (UFBA) Doutor em Antropologia Universidade de Londres Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira (UNEB) Doutora em Histria - UFPE

A meu pai, Joo Paulino de Oliveira, pela sua vitoriosa competncia de gestor familiar (In memoriam)

A minha me, Eurides Pires de Oliveira, quem ainda se encontra na mgica tarefa da gesto familiar. Sou grato por tudo que eles me ofereceram!

AGRADECIMENTOS

J no lembro quantas foram as vezes que eu fui interpelado pelas pessoas mais simples da minha comunidade, a exemplo das amigas e amigos dos meus pais, e me perguntavam: e a rapaz, quando que vai virar advogado, ou mdico mesmo? Voc no vai ser doutor? Ento eu tentava esclarecer que seria doutor em Cincias Humanas. Sem sucesso, pois algumas vezes vinha a trplica: e o que isto mesmo? Entendendo que eu no teria grande sucesso neste debate, s me restava uma coisa: admitir que eu era um privilegiado, pois aquelas pessoas se preocupavam comigo, era a comunidade apostando no filho do vizinho que foi para a universidade. Assim, comeo agradecendo a estas pessoas, muitas das quais no passaro pela universidade, mas continuaro apostando, quando no em seus prprios filhos, nos filhos dos vizinhos. Por falar em comunidade, devo adiantar de logo os agradecimentos aos meus comuns: minha me, meus irmos e sobrinhos que tm sido muito fortes depois da partida do meu velho pai. Agradecimentos tambm de primeira mo a minha querida esposa Ellen de Alcntara Oliveira e as nossas pequenas Kissa e Maisha. Ambas ainda muito pequeninas, mas isto nunca foi impedimento para que uma delas sempre tentasse redigir alguma parte do texto da tese, quando no desligava o computador em busca da ateno do pai que insistia em se tornar doutor. Aproveito o ensejo familiar para agradecer a grande comunidade da capoeira, minha outra famlia. Mestres, Contramestres e aprendizes que mesmo fora da universidade, sempre foram meus leitores de primeira mo e, por conseguinte, bons conselheiros para o trabalho acadmico. Alguns destes tambm vivenciam o universo de produo acadmica compondo o quadro docente das mais distintas instituies. Desta forma registro aqui os meus sinceros agradecimentos a Pedro Abib, capoeirista, bomio e importante intelectual da Faculdade de Educao da UFBA. Estendo esses agradecimentos para Luiz Victor Castro Junior, que tem conduzido uma importante produo acadmica junto UEFS. Por fim, ainda na ala dos capoeiras acadmicos, registro aqui agradecimento especial ao parceiro de

produo intelectual e simblica no mundo da universidade e da capoeira, Luiz Augusto Pinheiro Leal, membro do Malungo Centro de Capoeira Angola, ncleo do Estado do Par, onde tambm exerce docncia na UFPA. Agradeo principalmente pelas leituras e sugestes que fez a parte da tese. E por falar de leitores do trabalho ainda em elaborao, devo agradecer a amiga Ana Maria Carvalho Oliveira (UNEB) pelas divertidas conversas sobre pesquisa histrica e pela leitura atenta de parte da tese. Ao Instituto Maria Quitria-IMAQ, na pessoa de Z Luiz, Gabriel Ferreira e os amigos Roquinho e Edsvnio, guerreiros e fomentadores dos saberes populares no semi-rido de Santa Luz - BA. turma do Malungo Centro de Capoeira Angola de Feira de Santana: agora terei um pouco mais de tempo para vocs, irmos de travessia! Esse tempo se estende a todos os irmos de capoeira que tem cobrado minha presena nos encontros de capoeiragem. A todos minha gratido. Devo Gratido tambm a Carlos Mello, pesquisador das coisas feirenses, um dos responsveis pela preservao do acervo do centenrio jornal Folha do Norte. Agradeo tambm Faculdade Nobre de Feira de Santana, na pessoa de seu diretor acadmico David Macdo, pelo apoio s impresses preliminares da tese, que no foram poucas. Na UEFS, muitos amigos direta ou indiretamente colaboraram para a realizao deste trabalho. Wlney da Costa Oliveira, sempre com palavras de conforto: tudo vai terminar bem!. Wilson Pereira de Jesus com suas cobranas de pai: cad a tese, j defendeu?. Lucilene Reginaldo, sempre otimista com as chances que eu tinha de encontrar alguma fonte e da capacidade criativa de redigir uma bela narrativa, coisa que ela acreditava que eu faria. Por essa razo foi to precisa em suas intervenes na banca de qualificao. E por falar dos amigos da UEFS, no poderia deixar de agradecer ao pessoal do CEDOC/UEFS, na pessoa simptica de Zlia, Danilo e os atuais bolsistas que sempre estiveram disposio. Agradeo muito a estas pessoas, pois os documentos do CEDOC foram determinantes na minha pesquisa. Tambm foi de muita valia as consultas e reproduo (autorizada) de documentos da Biblioteca Setorial Monsenhor Renato Galvo (UEFS). E nesse sentido agradeo a Cristiana Oliveira (UEFS) e ao amigo

Clovis Ramaiana Morais de Oliveira (UNEB) que sempre estava por l me enriquecendo com sua sapincia sobre a Histria de Feira de Santana. Estendo esses agradecimentos ao amigo Aldo Jos Morais Silva (UNEB). No Ps-Afro/UFBA, agradeo a leitura atenta do professor Luis Nicolau Pars, me alertando para certos cuidados com o texto. Agradeo tambm aos professores Lvio Sansone, Joclio Teles dos Santos e Cludio Pereira, pelo empenho que os mesmos tm dedicado ao sucesso do Ps-Afro. Aos amigos e companheiros de ingresso Fbio Lima, Rosemeire Ferreira e ao imbatvel Valdlio Silva, quem muito incentivou a minha persistncia, pois as adversidades marcaram esses quatro anos com ganhos e perdas na minha trajetria pessoal: ganhei duas lindas filhas, mas perdi o meu inesquecvel pai. Os amigos e familiares me acolheram e juntaram meus cacos, alertando-me sobre as responsabilidades que eu tinha que dar conta. E justamente por isso que agradeo de forma veemente ao amigo e orientador Jeferson Bacelar. Cauteloso, paciente e compreensivo, o principal responsvel pelos acertos que por ventura eu tenha logrado neste trabalho e dever ser absolvido de qualquer culpa em relao aos provveis deslizes que possam ser encontrados no trabalho que ora apresento. Agradeo ainda ao Colegiado de Histria, do Departamento de Cincias Humanas da UNEB/Campus VI, que me tendo nomeado a pouco tempo, colaborou na medida do possvel para que eu terminasse o curso sem prejuzos para nenhuma das partes. No Departamento de Histria da UFBA, no poderia, em hiptese alguma, deixar de tecer meus agradecimentos especiais quelas que me acolheram desde o primeiro contato que tive com esta universidade, ainda em 2002, e que continuam apostando nos meus projetos: obrigado Lina Maria Brando de Aras e Maria Hilda Baqueiro Paraso, amigas de sempre. Por falar em amigos de sempre, no deixaria de lembrar Cntia Mota (UFRB), Suani Vasconcelos (UEFS), Elenita Pinheiro (UFU), Joceneide Cunha (UNEB), Jairo Carvalho Nascimento (UNEB), Iara Nancy de Arajo Rios (FAN) e o inesquecvel comparsa de muitas labutas Srgio Guerra Filho (UFRB). Agradeo a todos pela f depositada em mim.

Por fim, registro aqui a minha gratido a CAPES, pela bolsa concedida, pois sem a mesma a tarefa seria mais difcil ainda.

Feira de Santana era, em 1950, uma das mais importantes comunidades da Bahia. Em populao, o municpio ocupava o quarto lugar no Estado, enquanto a cidade vinha em segundo lugar, aps a Capital. Essa importncia explica-se pela feliz combinao de fatores geogrficos e humanos que fazem de Feira de Santana a Princesa do Serto. (...) A ocupao do povo do municpio at um certo ponto indica a sua origem racial. Quase todos os negros e muitos mulatos so pequenos proprietrios de terra e roceiros. Por outro lado, a maioria dos brancos exerce sua atividade no comrcio. Tais distines no esto rigorosamente definidas, mas, em geral, pode-se afirmar com segurana que os negros se incluem na ordem social e econmica inferior e que os brancos predominam na classe superior. Mulatos encontram-se em todas as camadas econmicas e sociais do municpio. O acidente de bero favorece os brancos em Feira de Santana, mas quase no h barreiras para impedir que um negro ou um mulato ambicioso adquiram bem-estar financeiro e prestgio social. (Rollie E. Poppino, 1968)

RESUMO

Escrevendo sobre Feira de Santana na dcada de 1950, o historiador Rollie Poppino, afirmou que os cultos africanos denominados por ele como candombl tinham melhores sucessos que as seitas protestantes e que predominavam entre os negros e mulatos das classes inferiores da cidade. Afirmou ainda, que se conhecia muito pouco sobre estas prticas por conta da guerra que o clero e as autoridades civis ofereciam contra essas atividades no municpio. Poppino destacou tambm que o curandeirismo era freqente em Feira de Santana desde tempos remotos, justificando assim uma acirrada represso. Est a, resumido nas linhas de Rollie Poppino, o objeto da presente tese. As autuaes que faziam as autoridades policiais e judicirias sobre os agentes do curandeirismo implicavam nas denncias e prises de adeptos das religies afro-brasileiras em Feira de Santana, identificadas pelas fontes pelo termo predominante de candombl. Por outro lado, os chamados adeptos da mandinga, ou seja, os agentes dos candombls encontravam formas de resistir s represses ao culto afro-brasileiro e suas atividades correlatas, a exemplo das praticas de cura. Amparado em fontes diversas como processos criminais, jornais e literatura e em uma metodologia respaldada no conhecimento indicirio, procuro evidenciar a represso no universo dos candombls em Feira de Santana entre 1938 e 1970, tornando possvel observar um silencioso processo de criminalizao das prticas de candombl como conseqncia da perseguio policial e autuao judiciria aos agentes do curandeirismo. Palavras-chave: Histria social; Feira de Santana; represso; candombl; Curandeirismo.

ABSTRACT

Writing of Feira de Santana in the 1950s, historian Poppino Rollie said that "African religions" referred to him as Candombl had better success than the "Protestant sects" and that prevailed among blacks and mulattos of the "lower classes" of city. He added that if he knew very little about these practices because of the "war" that the clergy and civil authorities offered against such activities in the municipality. Poppino also pointed out that shamanism was common in Feira de Santana since ancient times, thus justifying a fierce repression. It is there, summed up in lines Rollie Poppino, the object of this thesis. The assessments were that the police and judicial authorities on shamanism agents implied in the complaints and arrests of supporters of the african-Brazilian religions in Feira de Santana, identified by the term predominant sources of Candombl. Moreover, the so-called fans of Mandingo, or agents of Candombl found ways to resist repression worship african american and its related activities, like the practice of healing. Bolstered sources as diverse as criminal proceedings, newspapers and literature and a methodology supported the "knowledge circumstantial," I try to highlight the repression in the universe of Candombl in Feira de Santana between 1938 and 1970, making it possible to observe a quiet process of criminalizing the practice of Candombl as a result of police harassment and legal proceedings against the agents of shamanism.

Keywords: Histria social; Feira de Santana; repression; candombl; shamanism.

SIGLAS E ABREVIATURAS

Arquivo Pblico Municipal de Feira de Santana Biblioteca Municipal Arnold Silva Biblioteca Setorial Monsenhor Renato Galvo Centro de Documentao e Pesquisa Federao Baiana do Culto Afro-Brasileiro Jornal Folha do Norte Museu Regional Casa do Serto Ordem dos Advogados do Brasil Universidade Estadual de Feira de Santana Universidade Federal da Bahia Universidade do Estado da Bahia

APMFS BMAS BSMRG CEDOC FEBACAB JFN MRCS OAB UEFS UFBA UNEB

MAPAS E QUADROS

1. Mapa da Bahia Localizao de Feira de Santana 2. Limites Distritais de Feira de Santana 3. Dispora Africana para o Brasil 4. Estudos sobre o negro na Bahia (1896-1947) 5. Mapa dos processos criminais - Curandeirismo 6. Localizao dos Candombls (dcadas de 1940/50/60)

34 37 47 52 63 92

FOTOGRAFIAS E OUTRAS ICONOGRAFIAS

1. Imagem da feira (de Feira de Santana) em meados do sculo XX 2. Ialorix Helena do Bode (1972) 3. Perfil de Alosio Resende 4. Baianas na Festa de Senhora Santana 5. As baianas no cortejo de levagem da lenha (Festa de Santana)

36 70 82 96 100

6. Senhoras do candombl louvando Santana nas escadarias da Igreja 102 Matriz 7. Me Socorro em um momento singular da Festa da Padroeira (1973) 103

8. Dolores do Acaraj frente do cortejo das baianas. Festa de Santana 106 (1951) 9. Nelson Hungria (1891-1969). 10. A Guarda Municipal em desfile de 7 de setembro de 1939 11. Viaturas do Batalho. Dcada de 50. 12. Licena policial emitida em favor do curandeiro Mass 13. Imagens de Exu (estruturas de ferro) 14. Ia detida na delegacia de Polcia 113 131 132 151 156 167

15. Me Socorro e suas filhas de santo pousando junto a figuras da 177 poltica local 16. O casamento do jornalista Franklin Machado (1970) 182

SUMRIO

INTRODUO 1. TECENDO O OBJETO: A PRICESA DO SERTO E OS ADEPTOS DA MANDINGA 1.1 A inveno da Princesa do Serto 1.2 Rollie Poppino e a historiografia feirense 1.3 Candombl e curandeirismo como culturas afro-diaspricas 2. O UNIVERSO DOS CANDOMBLS: PISTAS, INDCIOS... 2.1 Os testemunhos da literatura: fico e narrativa memorialista 2.2 Alosio Resende: o poeta dos candombls 2.3 Os candombls da Cidade 2.4 Os candombls na avenida: as baianas na festa da Padroeira 3. AS FACES DA REPRESSO: PRTICAS JURDICAS, SABER MDICO E AO POLICIAL 3.1 As prticas de Curandeirismo na jurisprudncia brasileira 3.2. Mdicos e curandeiros na imprensa feirense 3.3 Polcia para os candombls e adeptos da mandinga 3.4 Denuncias e autuaes 4. NAS MALHAS DO PODER E DA RESISTNCIA 4.1 No vivo de candombl: a histria de um notrio curandeiro 4.2 De curas e males de cabea: zeladores, ias e delegados 4.3 Memrias da represso e a experincia da resistncia CONSIDERAES FINAIS FONTES REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ANEXOS

16 31 32 41 48 67 68 77 87 96 110 112 119 129 136 148 149 164 173 188 193 196 206

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INTRODUO

O tema da histria sobre aspectos das culturas das populaes afrobrasileiras j me acompanha desde o curso do mestrado realizado entre 2002 e 2004. Naquela oportunidade, trabalhei com a histria da capoeira na Bahia, precisamente em sua capital, nas primeiras dcadas do sculo XX. A pesquisa foi desenvolvida no Programa de Ps-Graduao em Histria da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, da Universidade Federal da Bahia. As fontes que levantei, naquela poca, apontaram um elemento que no era preocupao especfica do trabalho, mas no deixou de me despertar certa curiosidade. Tratava-se dos vrios e interessantes registros feitos pela imprensa local sobre a represso aos candombls na capital baiana. No abordei este aspecto do universo afro-brasileiro naquele momento, pois estava preocupado com os capoeiras que dificilmente apareciam na documentao, deixando de lado maior ateno para a represso aos candombls. S passado algum tempo, o tema voltou a explicitar-se na minha frente, sendo que desta vez no se tratava da capital baiana (e nem de farta documentao!). No tendo os capoeiras para desviar a minha ateno, aceitei de pronto o desafio de investigar a represso no universo dos candombls na cidade de Feira de Santana, a Princesa do Serto, entre 1938 e 1970. Rollie Poppino afirmou em seu livro sobre Feira de Santana, que em meados do sculo XX, portanto, aproximadamente ao perodo aqui pesquisado, muitos negros e mulatos eram pequenos proprietrios de terra e roceiros. No entanto, a maioria dos brancos exercia suas atividades de comrcio, o que implicava certa hierarquia scio-econmica entre brancos de um lado e negros e mulatos de outro. Nos termos de Poppino, os negros se incluem na ordem social e econmica inferior e que os brancos predominam na classe superior. 1

1

POPPINO, Rollie E. Feira de Santana. Salvador: Itapo, 1968, p. 16

17 Mesmo com essa composio tnico-racial e hierrquica da sociedade feirense daquele perodo, Poppino no deixou de alertar que ainda assim muitos mulatos se encontravam em outras camadas sociais e econmicas no municpio e no se poderia descartar que um negro ou mulato adquirisse conforto financeiro e prestgio social. As observaes de Poppino so pertinentes, essas hierarquias implicavam em conflitos de ordem social que atravessavam tambm a problemtica da disparidade econmica e financeira entre os diferentes grupos sociais. Mas tudo isto refletia e era refletido nas experincias culturais que caracterizavam esses grupos. A macro-leitura de Poppino, no permitiu evidenciar para o leitor, em seu texto, o desenrolar desses conflitos nos embates culturais no cotidiano da cidade. Como era o caso, por exemplo, dos discursos e prticas de carter disciplinador e repressivo dos segmentos da elite local fazendo alvo nos agentes dos candombls e nos curandeiros da regio. Muitos destes embates no deixaram de ser registrados pelos peridicos locais. Em 1938 o jornal feirense Folha do Norte publicou um interessante debate entre dois de seus colaboradores: o poeta Alosio Resende que publicava periodicamente poesias e sonetos no referido semanrio e um colunista que assinava como Regenerador, uma coluna intitulada: Comentrios e crticas.2 O fato que em um desses comentrios o colunista criticou o candombl associando-o ao curandeirismo e feitiaria, rotulando-o ento de prtica incivilizada que merecia controle por parte das autoridades. Alosio Resende partiu em defesa do candombl caracterizando assim um importante duelo entre os dois colaboradores daquele peridico. A partir de ento, o poeta passou a publicar inmeros poemas, sonetos e crnicas valorizando o candombl e inclusive as prticas de curandeiros. O principal argumento do poeta foi alegar que enquanto em outras cidades se criavam sociedades de estudos africanistas, em Feira de Santana havia por parte de certos segmentos um ataque contra os candombls. Este caso revela o campo

2

Ver as edies de 15/10/1938, p. 1 e 22/10/1938, p. 1, do jornal Folha do Norte, Feira de Santana.

18 de conflito que caracterizava a relao dos candombls e curandeiros com certos segmentos sociais das elites de Feira de Santana naquele perodo. 3 Este evento foi o suficiente para justificar a baliza inicial da tese. Outro perodo que eu achei conveniente para amarrar o recorte temporal foi a dcada de 1960. Em 1966, por exemplo, o jornal Folha do Norte publicou uma matria com a relao de 28 terreiros de candombl que funcionavam em Feira de Santana. Intitulada Candombls da Cidade, esta iniciativa no me pareceu maliciosa, com carter de denncia policial, por mais que na poca ainda ocorressem casos que caracterizassem a represso, especialmente contra os curandeiros que em grande parte tinham relao com os cultos afro-brasileiros. A notcia parecia estar preocupada em divulgar os candombls na inteno de atrair as pessoas para sua apreciao, pois na notcia constava alm do nome do terreiro e seu responsvel, os locais e datas que os mesmos realizavam suas festas. Um verdadeiro guia das festas de candombls na cidade. Tal atitude merece destaque, pois a publicao desta matria caracteriza por um lado uma nova fase da relao dos candombls com a sociedade e com as autoridades locais e, por outro, a fluidez entre a represso e a tolerncia dos candombls em Feira de Santana. possvel que esta relao j existisse desde tempos remotos, pois adeptos dos candombls desde muito participavam dos festejos populares da cidade e h casos em que me de santo e/ou curandeira citada em notas rpidas dos jornais como pessoas que gozavam de certo prestgio, casos estes que, infelizmente, foram pouco documentados.

Curandeiro uma definio jurdica (Cdigo Penal Brasileiro de 1940) para o indivduo que exerce prticas de curar sem a devida autorizao legal. Aqui, alm dessa acepo, ser entendido como aqueles agentes que dominavam determinados saberes tradicionais de cura que, utilizando de garrafadas, insumos, chs, e outras substncias, buscavam amenizar e ou curar determinadas enfermidades de outros indivduos. Em determinados momentos tambm irei utilizar o termo saberes mgicos por se tratarem de prticas que tambm estavam relacionadas ao universo simblico das crenas e rituais religiosos. Eram eles os chamados rezadores, benzedeiros e raizeiros procurados por indivduos de diferentes classes sociais para prestarem os seus servios. No estabeleo aqui equivalncia entre os curandeiros e adeptos dos candombls (religio de tradio africana), entretanto muitos destes (denominados zeladores) eram autuados pela justia. Neste sentido muitos curandeiros eram tambm adeptos dos candombls.

3

19 Entre 1965 e 1972, foi registrada pelas lentes de alguns fotgrafos da cidade a participao dos adeptos dos candombls na Festa de Santana, espao disputado por diferentes segmentos sociais para exibir seu prestgio junto sociedade de ento. Assim, a histria da represso aos candombls e curandeiros em Feira de Santana, representa tambm uma histria das manifestaes simblicas da resistncia cultural dos adeptos da mandinga. Ao tempo que se constituam alvos da criminalizao silenciosa agenciada pela perseguio policial e autuao judiciria, estes agentes do culto e da cura criavam formas muito peculiares de afirmao e de escrita das suas prprias histrias. Histrias estas que preenchem as pginas da presente tese. Se o tema em questo, por si s, representou um desafio de investigao, por conta do tema e da abordagem, as dificuldades com fontes ratificam este desafio. Entretanto, antes de me referir relao das fontes que utilizei, necessrio registrar alguns obstculos que tem caracterizado o rduo trabalho do pesquisador em histria nos arquivos feirenses. Primeiramente, a dificuldade de movimentao no espao do Arquivo Municipal de Feira de Santana. A burocracia estabelecida pela administrao do arquivo, s vezes interfere com a qualidade do trabalho. No meu caso, foi exigida mais de uma vez um documento assinado pelo meu superior ( orientador de tese ou coordenador do programa) para que eu tivesse acesso aos documentos, mesmo depois de ter apresentado o referido documento em visitas anteriores. Com toda essa dificuldade, consegui adquirir uma cpia das Posturas Municipais que me interessavam graas ajuda de um funcionrio do Arquivo e da Professora Dr. Ana Maria Carvalho de Oliveira, que conclua sua pesquisa de doutorado naquele momento, gozando tambm da mesma dificuldade. Na Biblioteca Municipal Arnold Silva, grande parte das edies do jornal Folha do Norte, o qual utilizei como fonte de pesquisa, havia se deteriorado por conta da precria condio de preservao documental daquele acervo, tive ento que rastrear as edies em outros arquivos, a exemplo da Biblioteca Setorial Monsenhor Galvo, da Universidade Estadual de Feira de Santana, assim como na prpria sede do jornal Folha do Norte.

20 Outra dificuldade, que importantes documentos que muitos de ns pesquisadores da histria feirense no tivemos acesso encontram-se em posses particulares, espero que um dia estas pessoas as possam disponibilizar. Mas, mesmo com toda esta dificuldade, foi possvel rastrear fontes importantes para a realizao da pesquisa e elaborao da tese, pois algumas iniciativas, ainda muito tmidas, tm permitido a conservao e disponibilizao de fontes histricas para os estudos sobre Feira de Santana e regio. O primeiro conjunto de fontes que tive contato foram os processos criminais disponveis no Acervo do Centro de Documentao e Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana-UEFS. Essa documentao formada por habeas corpus, queixa-crime, inquritos policiais e sumrios de culpa. A partir desta documentao foi possvel recortar a temporalidade da pesquisa. No se trata de um conjunto muito grande de documentos e sim de uma tmida quantidade de processos bastante ricos no que diz respeito ao objeto da tese e ao carter de abordagem na narrativa impetrada. Foram 12 processos crimes, sendo dois deles representativos dos primeiros anos do sculo XX e o restante compreendendo as dcadas de 1940, 1950 e 1960. Essa temporalidade indicada pelos processos crimes me convenceu para o presente recorte, principalmente depois dos dados que encontrei nos peridicos jornalsticos, mais precisamente no jornal Folha do Norte. Este peridico o mais antigo jornal baiano ainda em circulao e no perodo que corresponde pesquisa, em edies semanais, foi possvel extrair dessa documentao importantes fontes que revelavam pistas do objeto que eu perseguia. Seguindo a sugesto dessa documentao configurei o recorte entre 1938 e 1970, com justificativa fundada na experincia de eventos bastante peculiares sobre o tema em questo, apresentado em pargrafos anteriores. A partir dos processos crimes e das notcias de jornais busquei identificar pistas em fontes de outro carter, cheguei ento at as fontes de memria, a saber: escritos memorialsticos, romances, poesias, crnicas, fotografias e alguns depoimentos orais. Essa documentao representa o

21 registro das experincias cristalizadas nos diferentes lugares da memria sobre o universo dos candombls em Feira de Santana, no perodo em questo. A curiosidade pelos lugares onde a memria se cristaliza e se refugia est ligada a um momento particular de nossa histria onde a memria no existe mais.4 Segundo Pierre Nora, o sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. H locais de memria porque no h mais meios de memria.5 Nessa perspectiva, considero aqui a literatura em seus diferentes gneros assim como a fotografia como lugares de memria cristalizada, constituindo-se assim em fonte para a pesquisa em questo. Os escritos memorialistas e a literatura evidenciam , por exemplo, a leitura que determinados indivduos (no caso seus autores) faziam das experincias processadas no universo dos candombls, registrando importantes aspectos como a represso s prticas de culto e de cura. Essas narrativas configuram uma memria social que se constituiu sobre estas experincias. Entretanto, o uso dessas memrias como fonte implica em critrios de ordem metodolgica e de sua relao com fontes de outra origem, principalmente quando h a necessidade de confrontar os fatos narrados e que nem sempre obtemos sucesso.6 Isto ficou evidente com os depoimentos orais aqui utilizados. Algumas informaes no foram possveis serem confrontadas por outras fontes, entretanto obtive sucesso em grande parte das informaes que foi possvel cruz-las principalmente com as notcias de jornais e determinadas fotografias. Optei por trabalhar com temas na aplicao das entrevistas, com base em um roteiro semi-estruturado, o qual orientava o entrevistado a partir de questes abertas sobre o tema da tese. 7 O resultado

4

NORA, Pierre. Entre memria e histria: a problemtica dos lugares. In: Projeto Histria, So Paulo (10) dez. 1993, p. 7. 5 Idem. 6 Segundo James Fentress e Chris Wickan a memria social faz muitas vezes exigncias factuais sobre acontecimentos passados. Por vezes podemos confrontar estas exigncias factuais com fontes documentais, outras no podemos. FENTRESS, James e WICKAN, Chris. Memria social: novas perspectivas sobre o passado. Lisboa: Teorema, 1992, p. 41. 7 Pela vastido da bibliografia sobre histria oral, fiz algumas escolhas para me orientar no trato dessa documentao. Consultei, entre outros, ALBERTI, Verena. Fontes orais: histrias dentro da histria. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes histricas. So Paulo: Contexto, 2006; FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaina (org.). Usos e abusos da histria oral. 2

22 foi bastante positivo, podendo cruzar com as fontes judicirias, jornalsticas, literrias, etc. O carter variado das fontes que utilizei, implicou em adotar uma metodologia caracterstica do uso multifacetado de fontes. Neste sentido, no restavam dvidas quanto a recorrer ao mtodo interpretativo que eu j vinha utilizando em pesquisas anteriores. Trata-se de um mtodo caracterizado pelo conhecimento indicirio. Como discorro a seguir. Muitos de ns na adolescncia tnhamos a ateno roubada pelas narrativas de investigao policial envolvendo o habilidoso detetive Sherlock Holmes, veiculados na dcada de 1980, atravs de desenhos animados em programas de televiso no Brasil. Suas tcnicas fundamentadas no conhecimento indicirio, o qual consistia em reunir pistas dispersas sobre o objeto de investigao na inteno de confeccionar uma teia de significados a ser interpretado, sempre alcanavam resultados plausveis. Para minha surpresa, as histrias de Sherlock Holmes, antes vistas na TV e agora acompanhadas pelos vrios contos reunidos na obra do escritor ingls Sir Arthur Conan Doyle, se tornaram teis s investigaes histricas que tenho impetrado desde ento.8 Este mtodo interpretativo tambm conhecido como paradigma

conjectural ou indicirio se afirmou no final do sculo XIX como cincia humana, quando estudiosos procuravam indcios, aparentemente insignificante,

edio. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1998; FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). Entre-vistas: abordagens e uso da histria oral. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1998. 8 Em dezembro de 2001 prestei seleo para o curso de mestrado do Programa de PsGraduao em Histria da UFBA. Naquela oportunidade j propunha a metodologia em questo no projeto de investigao. A pesquisa foi concluda com sucesso em 2004 e o texto final defendido com o ttulo: Palas ruas da Bahia: criminalidade e poder no universo dos capoeiras na Salvador republicana (1912-1937). No mesmo ano da defesa o texto foi contemplado com Meno Honrosa no Concurso Nacional Silvino Romero de Monografia sobre Folclore e Cultura Popular (IPHAN/MinC). Em 2005 o texto foi publicado pela Editora Quarteto, sob o ttulo: No tempo dos valentes: os capoeiras na cidade da Bahia, contando ainda com o Prefcio do professor Dr. Jeferson Bacelar, orientador da presente tese.

23 para revelar determinadas realidades. Tratava-se das pistas, dos sinais deixados nos variados registros da vida cotidiana.9 Mdico de formao e escritor por convico, Conan Doyle se destacou no gnero policial do romance ingls, tendo se notabilizado internacionalmente com a srie de aventuras de Sherlock Holmes. Esse personagem teve apario no sculo XIX alcanando os primeiros anos do sculo XX, quando seu criador Conan Doyle havia decidido dar um fim nas aventuras do astuto investigador policial. As tcnicas do conhecimento indicirio e da interpretao dedutiva reveladas nos romances policiais de Conan Doyle definiram muito bem o seu perfil de escritor pela crtica literria: nenhuma curiosidade, nenhum detalhe da vida ou de seus legados, por mais diminuto que fosse, deixava de merecer a ateno de Conan Doyle ou escapava da sua viso csmica. 10 Esses elementos podem ser observados, entre outras, em uma rpida passagem de uma das conhecidas aventuras de Sherlock Holmes. Certa feita, Holmes interpelou o seu colega de trabalho, Dr. Watson, dizendo estar surpreso pelo fato do mesmo no se interessar em investir seu capital em aes da frica do Sul. Espantado, Dr. Watson questionou como sabia tal coisa, j que ainda no havia revelado. Ento respondeu o arguto investigador policial: pois bem, no foi realmente difcil adivinhar, ao ver a separao entre o seu dedo indicador e o polegar da mo esquerda, que voc se propunha a investir o seu capital nas minas de ouro.11 Continua Holmes com suas dedues:

Posso mostrar-lhe rapidamente uma relao bastante prxima. Estes so os elos perdidos de uma cadeia muito simples: 1) voc tinha giz entre os dedos indicador e polegar, quando voltou do clube na noite passada; 2) voc fica com giz quando joga bilhar; 3) voc no joga bilhar seno com Thurstom; 4)

Para uma apresentao mais sistemtica da metodologia proposta por Ginzburg ver RAMINELLI, Ronald. Compor e decompor: ensaio sobre a histria em Ginzburg. In: Revista Brasileira de Histria, So Paulo, v. 13, n 25/26, set.1992/ago. 1993, p. 81-96. 10 Introduo. In: DOYLE, Conan. O trem perdido e outros contos sensacionais. Traduo de Fernando Ximenes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1984, p. 10. 11 DOYLE, Conan. Aventura de Sherlock Holmes. So Paulo: Clube Internacional do Livro, 1999, p. 116.

9

24disse-me h quatro semanas que Thurstom tinha opo sobre algumas propriedades na frica do Sul, opo que expiraria dentro de um ms e que ele desejava compartilhar com voe; 5) o seu livro de cheques est fechado na minha gaveta e voc no me pediu a chave; 6) portanto, no se prope investir o seu dinheiro nesta empresa.12

Reunindo diferentes pistas deixadas pelas aes do Dr. Watson e se apropriando do mtodo dedutivo, Holmes no encontrou dificuldade para construir uma teia de significados e decifrar aquilo que no havia sido explicitado pelo seu colega Dr. Watson. Se passado quase cem anos das narrativas sobre as aventuras de Sherlock Holmes, escritas por Conan Doyle, o lingista e escritor italiano Umberto Eco, lanou mo do conhecimento indicirio para dar conta da astcia investigativa de seu personagem Guilherme de Baskervile, em O nome da rosa.13

Guilherme era um frade franciscano que em companhia de seu

aprendiz o novio Adso de Melke, se empenhava em investigar uma srie de assassinatos que estavam ocorrendo em um mosteiro medieval do sculo XIV em algum lugar da Itlia. O mtodo utilizado pelo frade constitua-se dos mesmos elementos que caracterizavam as tcnicas sherlockianas, a saber: a interpretao dos indcios e a conjectura dos elementos elencados na cena do crime. Umberto Eco j informava ao leitor sobre a habilidade investigativa de seu personagem. Na primeira parte do romance, intitulada Onde se chega aos ps da abadia e Guilherme d provas de grande argcia, fica evidente o seu conhecimento sobre o mtodo indicirio. Logo quando chegaram ao mosteiro Guilherme e seu acompanhante se depararam com um punhado de monges que estavam em busca do cavalo do abade que havia se perdido. Quando um dos monges despenseiros do abade interrompeu a perseguio para saudar os visitantes, Guilherme o confortou afirmando que o cavalo que eles procuravam havia passado por ali e deu todas as informaes precisas sobre o animal inclusive onde encontr-lo. O monge

12 13

Idem. ECO, Umberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Record, 1995.

25 perguntou ento quando havia visto, ele respondeu: Na realidade no o vimos, no , Adso? (...) Mas se est procura de Brunello, o animal no pode estar seno onde eu disse.14 Guilherme identificou a localizao do animal, suas caractersticas particulares e o mais desconcertante para o monge que atentamente o ouvia: o nome do cavalo do abade, sem ao menos t-lo visto. O monge seguiu suas informaes e encontrou o animal. A explicao, aparentemente simples foi a seguinte:

No trevo, sobre a neve ainda fresca, estavam desenhadas com muita clareza as marcas dos cascos de um cavalo, que apontavam para o atalho nossa esquerda. A uma distncia perfeita e igual um do outro, os sinais indicavam que o casco era pequeno e redondo, e o galope bastante regular disso ento deduzi a natureza do cavalo, e o fato de que ele no corria desordenadamente como faz um animal desembestado. L onde os pinheiros formavam como que um teto natural, alguns ramos tinham sido recm-partidos bem na altura de cinco ps. Uma das touceiras de amoras, onde o animal deve ter virado para tomar o caminho sua direita, enquanto sacudia ativamente a bela cauda, trazia presas ainda entre os espinhos longas crinas negras... (...) do modo como o trevo estava disposto, o caminho no podia seno levar quela direo.15

A astcia de Guilherme de Baskervile se deu exatamente em observar no detalhe, rastros que o animal deixou por onde passou, mas tambm na deduo das pistas deixadas nestes rastros. Pegadas do animal, galhos quebrados por onde passava, pistas aparentemente inobservveis, mas que levavam ao objeto perseguido: Brunello, o cavalo do abade. Esta tcnica de interpretao do detalhe e em especial o exemplo do animal tem razes longnquas. Zadig, o sbio da Babilnia, personagem criado por Voltaire, no sculo XVIII, pode representar o primeiro registro do mtodo indicirio na literatura. Utilizando-se da interpretao dos indcios Zadig identificou onde se encontravam os animais perdidos da realeza, a saber: a cadela da rainha e o

14 15

Idem, p. 37 Idem

26 cavalo do rei de Babilnia.16 A preciso das informaes era tamanha que Zadig foi preso acusado de t-los roubado. Aps ser interrogado pelos magistrados do rei, Zadig foi absolvido por conta de uma explicao to convincente quanto a que centenas de anos depois daria Guilherme de Baskervile, para descrever o animal perdido do abade.17 Entretanto, o mtodo indicirio s viria se afirmar enquanto paradigma cientfico na historiografia na segunda metade do sculo XX. O paradigma indicirio ganhou visibilidade entre os historiadores brasileiros, principalmente, a partir da obra do italiano Carlo Ginzburg, especialmente com a publicao de um artigo que exponha a metodologia passo-a-passo. Em Sinais: razes de um paradigma indicirio, Ginzburg demonstra como pode ser apropriado o conhecimento indicirio para o trabalho dos historiadores.18 Referindo-se ao tempo remoto do conhecimento indicirio Ginzburg afirma que o caador teria sido o primeiro a narrar uma histria porque era o nico capaz de ler, nas pistas mudas (se no imperceptveis), uma srie coerente de eventos.19 O historiador italiano afirma que Decifrar ou ler as pistas dos animais eram metforas que deveriam ser tomadas ao p da letra como a condensao verbal de um processo histrico que levou, num espao de tempo talvez longussimo, inveno da escrita.20 Eis ento o paradigma indicirio aplicado ao trabalho do historiador, o qual tomei na presente tese como orientao metodolgica. 21 O mtodo indicirio implica ainda, especialmente no caso aqui pretendido, no exerccio da cumplicidade disciplinar entre a Histria e outras disciplinas das cincias humanas e sociais a exemplo da antropologia. Ao16

VOLTAIRE. Zadig ou o destino. 2 edio. Traduo de Antnio Geraldo da Silva. So Paulo: Editora Escala, 2008, p. 25-29. 17 A relao do mtodo Zadig com a constituio do paradigma indicirio e sua aplicao na pesquisa histrica ver: CHALHOUB, Sidney. Vises da liberdade: as ltimas dcadas da escravido na corte. So Paulo: Companhia das Letras, 1999. 18 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e histria. 2 edio. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. 19 Idem, p. 152. 20 Idem. 21 O paradigma indicirio foi bastante difundido no Brasil a partir da dcada de 1980, principalmente com as tradues dos trabalhos de historiadores como Carlo Gizburg e Robert Darnton. A partir deste perodo antroplogos como Clifford Geertz e Claude Lvi-Struass, bastante lidos pelos historiadores, passaram a influenciar os estudos de histria no Brasil.

27 comentar sobre dificuldades tericas e metodolgicas em seus estudos sobre a histria social inglesa do sculo XVIII, o historiador ingls E. P. Thompson, afirmou ter se deparado com problemas de recuperao e compreenso da cultura popular e do ritual, segundo ele questes mais prximas da antropologia social que da histria econmica.22 Essas preocupaes levaram Thompson a considerar outras leituras sobre a fronteira entre a Histria e a Antropologia. Thompson afirma que para ns, historiadores, o estmulo antropolgico se traduz primordialmente no na construo do modelo, mas na identificao de novos problemas, na visualizao de velhos problemas em novas formas. 23 As novas preocupaes ou novas formas de abordar os velhos problemas que provocaram o historiador ingls na deda de 1970, foi resultado da aproximao cada vez mais evidente das diversas disciplinas das cincias humanas, em especial entre a Histria e a Antropologia. A ponte que se deve configurar entre essas disciplinas interessa menos aos objetos, por vezes coincidentes, e mais s questes tericas que possam orientar as prticas metodolgicas (que no se restringem a um determinado modelo) e a elaborao do campo conceitual de investigao.24 Essas questes me ajudaram a pensar o tema desta tese e a viabilidade do paradigma indicirio no trato das fontes que constituem este trabalho. No primeiro captulo, intitulado Tecendo o objeto: a Princesa do Serto e os adeptos da mandinga procuro situar Feira de Santana como objeto historiogrfico e justificar o tema aqui abordado do ponto de vista de uma histria social que vem se produzindo nos ltimos anos e alargando as possibilidades de compreenso desta que foi nomeada a Princesa do Serto. O captulo se inicia com uma narrativa sumria da vila colonial na Cidade Princesa, dando conta de informaes pontuais como a sua condio peculiar de cidade comercial e estratgica localizao geogrfica. Pondero ainda oTHOMPSON, E. P. Folclore, Antropologia e Histria Social, op. cit., p. 227. Idem, p. 229. A esse respeito ver ainda THOMPSON, E. P. Costume e Cultura. In: ______ Costume em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. 24 SCHWARCZ, Lilia M. Entre amigas: relaes de boa vizinhana. In Revista USP Dossi Histria Nova, n 23, set/out/nov. 1993, p. 68-75.23 22

28 privilgio de ter sido eleita como uma das cidades do interior baiano contemplada pelo Projeto Colmbia no conjunto de estudos de comunidades, resultando em uma das poucas monografias publicadas a partir daquelas pesquisas, constituindo assim um marco para historiografia feirense. 25 O captulo se encerra anunciando a represso aos candombls e prticas de curandeirismo como objeto de investigao, ampliando ainda mais as possibilidades de compreenso histrica da Princesa do Serto. O segundo captulo intitula-se O universo dos candombls: pistas, indcios..., nele trato do universo que constitui o objeto da tese propriamente dito. Procuro identificar as prticas de candombl na cidade a partir de diferentes registros da experincia humana, a exemplo da literatura, jornal, processos criminais e fotografias. O objetivo deste captulo justamente revelar a dimenso da participao dos agentes do candombl e das prticas mgico-curativas na vida da cidade. Inicialmente, procuro identificar a visibilidade do universo afro-brasileiro no romance e crnica memorialista produzida sobre Feira de Santana. Nesse sentido, os escritos de Juarez Bahia e Antnio do Lajedinho me serviram como testemunhos histricos.26 Ainda utilizando a literatura como importante registro, exploro a produo potica de Alosio Resende, veiculada pelo jornal Folha do Norte, como fonte para discutir as pistas que revelam a experincia dos candombls na Princesa do Serto. Alosio Resende no publicou apenas poesias, mas tambm interessantes crnicas e opinies sempre abordando questes relacionadas ao universo afroreligioso, a exemplo das polmicas que o poeta travou em torno da represso e discriminao da religio dos orixs. Desta forma foi possvel me apropriar de sua produo para dar conta de questes importantes no referido captulo. Ainda neste captulo, procuro construir, a partir de dados coletados na imprensa e literatura local, um mapa das prticas afro-religiosas na cidade dePOPPINO, 1968. O Projeto Colmbia consistiu em um convnio firmado entre o governo do Estado da Bahia, quando Ansio Teixeira era Secretrio de Educao, e a Columbia University, com o intuito de desenvolver estudos sobre as vilas rurais do interior da Bahia, na dcada de 1950. 26 BAHIA, Juarez. Setembro na Feira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986; LAJEDINHO, Antnio do. A Feira na dcada de 30 memrias. Feira de Santana: Edio do Autor, 2004; LAJEDINHO, Antnio do. A Feira no sculo XX memrias. Feira de Santana: Talentos, 2006.25

29 Feira de Santana, com referncia s dcadas que correspondem 1940, 1950 e 1960. Por fim, apresento, atravs de algumas fotografias e outras fontes, a visibilidade dos adeptos do candombl nos festejos em louvor Senhora Santana, padroeira da Princesa do Serto. O terceiro captulo intitula-se As faces da represso: juzes, mdicos e ao policial. Aqui discuto o universo de represso aos adeptos dos candombls e das prticas mgico-curativas, ou seja: curandeiros acusados de crimes contra a sade pblica. Na primeira parte do captulo procuro discutir como o curandeirismo interpretado pela jurisprudncia brasileira, especialmente na perspectiva do jurista Nelson Hungria, um dos responsveis pela elaborao do Cdigo Penal de 1940 e, portanto, seu principal intrprete. Procuro apontar ainda como esta interpretao implicou em represso policial e autuao judiciria dos adeptos das religies afro-brasileiras. Discuto tambm neste captulo as evidncias de uma preocupao da classe mdica feirense com as prticas dos curandeiros, o que implicava em estes mdicos cobrarem aes mais enrgicas da polcia para conter esses agentes acusados de crimes contra a sade pblica. Na ltima parte do captulo procuro discutir as denncias e autuaes realizadas pela justia feirense contra estes mestres do saber mgico-curativo e, por conseguinte, contra adeptos do candombl. Nas malhas do poder e da resistncia o ttulo do quarto e ltimo captulo. Nele procuro amarrar o tema da tese discutindo algumas experincias bastante representativas tanto da represso policial contra curandeiros e adeptos do candombl quanto das possibilidades de resistncia simblica construda, por exemplo, na relao estabelecida entre adeptos da mandinga e segmentos da elite feirense a exemplo de jornalistas e polticos. O captulo se inicia discorrendo sobre a saga de um curandeiro autuado no distrito de Bonfim de Feira, indiciado pela justia e incurso nos artigos 284, a saber: crime de curandeirismo. Atravs da narrativa sobre o caso do curandeiro Mass, foi possvel revelar outras questes importantes como, por exemplo, a relao do curandeiro com o culto ao Exu e ao candombl de caboclo no interior feirense e a cumplicidade de autoridades policiais nas prticas dos curandeiros locais. Se neste caso a polcia abortou a instalao de um candombl na residncia de

30 um curandeiro, a segunda parte do captulo narra como a polcia interferiu nos rituais de iniciao de uma Ia em Feira de Santana, por ter o delegado autuado sua av acusando-a de feitiaria, o que implicou na deteno carcerria da Ia. O captulo se encerra discutindo como os adeptos da mandinga encontraram formas de driblar a represso policial, atravs de estratgias diferenciadas de resistir perseguio do culto e de suas prticas correlatas. Estas experincias foram denunciadas por alguns depoimentos e identificadas nas entrelinhas da documentao que sugeriam, por exemplo, a existncia de relaes de ialorixs e babalorixs com membros da elite local, inclusive observadas em notcias de jornais e fotografias que registravam determinados eventos sociais. Desta forma apresento ao Programa de Ps-Graduao em Estudos tnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia, a tese: Adeptos da mandinga: candombls, curandeiros e represso policial na Princesa do Serto (Feira de Santana-BA, 1938-1970).

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CAPTULO PRIMEIRO

TECENDO O OBJETO:A Princesa do Serto e os adeptos da mandingaA bena, inh, Fulana! Deus te leve para Feira de Santana! Eurico Alves Boaventura. A Paisagem urbana e o homem, p. 85

Das mais naturais e singelas foi a maneira pela qual surgiu a cidade de Feira de Santana. Nos fins do sculo XVIII, dois velhinhos, portugueses de nascimento, Domingos Barbosa de Arajo e Ana Branda, os quais moravam em uma fazenda denominada Sant Ana dos Olhos Dgua, resolveram construir uma pequena capela para louvar So Domingos, Sant Ana. Em torno, surgiram os primeiros casebres. Com o passar do tempo esse pequeno lugarejo foi se transformando em pouso obrigatrio dos viajantes que vinham de diversos lugares em demanda ao porto de Nossa Senhora do Rosrio da Cachoeira, da surgindo a feira livre. Com o desenvolvimento o lugarejo se transformou em vila. Anos depois, por fora do Decreto n. 1. 326 de 16 de junho de 1873, a vila recebeu foros de cidade com a denominao de Cidade Comercial de Feira de Santana que mais tarde com a vigncia do Decreto Estadual 11. 089 passou a denominar-se Feira de Santana, que prevalece at hoje. Alguns anos mais tarde, o Padre Ovdio de So Boaventura, conseguiu influenciar para que as feiras livres fossem fixadas as suas realizaes nos dias de segundas-feiras. Feira de Santana teve papel preponderante no Movimento Federalista de 1838, insurgindo-se contra a revoluo que irrompeu na provncia da Bahia e, em territrio, desenvolveu vrias lutas das Sabinadas (sic. para todo perodo). (Feira Hoje, 22/01/1966, p. 1.)

32 Certa feita um determinado cidado procurou a redao do jornal local para reclamar do barulho infernal dos batuques dos candombls nas avanadas horas da noite. O denunciante solicitava ao por parte das autoridades policiais. E para provocar mais ainda os prepostos da polcia, o indivduo alertou que o seu sono estaria sendo interrompido por conta dos abusos provocados pelos adeptos da mandinga.27 Este caso teve lugar na Cidade de Feira de Santana, a Princesa do Serto, no ano de 1946. Era desta forma que se justificava a represso policial aos candombls e, por conseguinte aos agentes dos saberes mgicos de cura, denominados curandeiros, mas adjetivados na referida notcia como adeptos da mandinga em Feira de Santana. Os chamados adeptos da mandinga so os personagens que protagonizam a presente tese e, neste captulo, me ocupo em situar a cidade de Feira de Santana na historiografia baiana e o tema em questo enquanto objeto da narrativa aqui intentada.

1.1 A inveno da Princesa do Serto

Em Pequenos Mundos, livro que procura inventariar a cultura popular do interior baiano, Nlson de Arajo, seu autor, descreveu Feira de Santana como sendo um centro urbano em permanente expanso, encravado na principal encruzilhada rodoviria do Nordeste.28

O autor informou ainda que

Feira era uma cidade que de longa data tem sido ponto de confluncia de diferentes regies brasileiras, portanto atraindo migraes de vrios lugares. Nelson de Arajo afirmou que a referida cidade representava um choque de culturas onde o Recncavo e Salvador disputam a predominncia com a cultura local e a proveniente do Nordeste Setentrional.29

Candombls na cidade. In: Folha do Norte, Feira de Santana, 20/07/1946, p. 4. ARAJO, Nlson de. Pequenos mundos: um panorama da cultura popular da Bahia (Tomo I O Recncavo). Salvador: UFBA/FCJA, 1986, p. 190. 29 Idem.28

27

33 A descrio de Nelson de Arajo no deixou de revelar Feira de Santana como um paradoxo geogrfico que deve ser entendido na perspectiva das relaes histricas e culturais estabelecidas com o recncavo aucareiro, incluindo a a capital do estado, e com o Nordeste setentrional, ou seja, o semirido fronteirio do norte da Bahia. Sua localizao estratgica implicou na constituio de uma cidade com caractersticas polticas e culturais bastante peculiares. Sua narrativa histrica permite entender as razes que levaram a Feira de Santana ser inventada como a Princesa do Serto. No incio do sculo XIX, von Martius e von Spix dois famosos naturalistas alemes em viagem pelo Brasil se depararam, no interior da Bahia, com um pequeno arraial que sediava uma feira livre local, no passando de um msero povoado, segundo as impresses dos naturalistas alemes. Ledo engano, tratava-se do arraial de Feira de Santana pertencente parquia de So Jos das Itapororocas, criada em 1696, subordinada comarca da vila de Cachoeira. Deixaram os excepcionais viajantes de descreverem aquela que se tornaria uma das mais importantes cidades do Estado da Bahia e, por conseguinte, do Nordeste Brasileiro. Segundo Rollie Poppino, os viajantes alemes desacertaram com o dia da visita no vilarejo de Senhora Santana. Em 1819 as feiras realizavam-se s teras-feiras e von Spix e von Martius passaram por Feira de Santana no dia 1 de maro, que caiu numa segundafeira.30 Afirmou ainda o historiador que mais importante do que isto seria o fato da populao ter abandonado a regio de Feira de Santana por conta de uma seca extravagante que ocorrera naquela poca. Poppino afirmou tambm que poucos anos aps a visita dos naturalistas, portanto, ainda na dcada de 1820, registrou-se que Feira de Santana havia sido considerada o maior arraial da parquia de So Jos das Itapororocas e uma das trs principais feiras da provncia.31 Se no fossem estas questes com certeza os viajantes se

POPPINO, 1968, p. 21. Essa informao Poppino extraiu do artigo de Jos Domingos Antnio Rabelo intitulado Corografia ou abreviada histria geogrfica do imprio do Brasil, publicado em 1862 pela Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro.31

30

34 impressionariam com o que veriam e o lugar de Feira de Santana seria outro nas pginas de Viajem pelo Brasil.32 Localizada na regio leste do Estado, a pouco mais de cem quilmetros da capital, Feira de Santana tem sua histria relacionada ao desenvolvimento da referida feira livre, a qual se tornou importante entroncamento comercial para mercadores de gado provenientes do Alto Serto baiano e regio do Piau e Gois. Esses mercadores dirigiam seu gado at o porto da Cachoeira, no Recncavo baiano para escoar seus produtos para o mercado da capital.33 Sua origem, como j foi sinalizada, remonta ao sc. XVIII conseqncia do desmembramento da propriedade de Antnio Guedes de Brito, estabelecendo assim, numerosas fazendas de criao de gado, atividade que j havia se mostrado adequada para a regio desde meados do sc. XVII. Dentre as muitas fazendas que a tiveram origem, estava a de Santana dos Olhos dgua, de propriedade do casal portugus Domingos Barbosa e Ana Brando.34 A fazenda de Santana dos Olhos dgua, assim como muitas outras da regio, constituiu-se em um povoado no qual se estabeleceu uma capela em louvor a So Domingos e Senhora Santana. Em torno desta pequena comunidade a populao adjacente passou a se reunir periodicamente, dando origem a uma pacata feira livre, ainda em meados do sculo XVIII.35 Em 1833 o arraial de Feira de Santana foi elevado por decreto imperial categoria de vila, nascia ento o municpio de Feira de Santana tendo o arraial como sede.

SPIX, J. B. von e MARTIUS, C. F. P. von. Viajem pelo Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. Vale ressaltar que a forma insignificante com a qual os naturalistas descrevem a parquia de Feira de Santana foi criticada pela maioria daqueles que se dedicaram histria de Feira de Santana, a comear pelo brasilianista Rollie Poppino. 33 Para maiores dados sobre a localizao e outros aspectos geogrficos ver FREITAS, Nacelice Barbosa. Urbanizao em Feira de Santana: influncia da industrializao (19701996). Dissertao de mestrado. Salvador: UFBA, 1998; ALMEIDA, Oscar Damio de. Dicionrio de Feira de Santana. Feira de Santana: Editora Talentos/Grfica Santa Rita, 2006. 34 SILVA, Aldo Jos Morais. Natureza s, civilidade e comercio em Feira de Santana: elementos para o estudo da construo de identidade social no interior da Bahia (1933-1937). Dissertao de mestrado. Salvador: UFBA, 2000, p. 16-17. 35 Idem. Ver tambm POPPINO, Rollie E. Feira de Santana, p. 18-24.

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35 A pacata feira livre do sculo XVIII se tornou ao longo do sculo XIX um importante centro de comrcio que mediava as relaes do Alto Serto com as regies do Recncavo, por conta de uma localizao geogrfica estratgica. Feira de Santana era no sculo XIX e no deixou de ser no sculo XX, como definiu muito bem Thales de Azavedo nos anos 1950, um ponto-chave, um verdadeiro entrocamento entre as estradas no sistema de rodagem que ligava o Sul ao Nordeste e Norte do Pas. Era Feira de Santana, local de reabastecimento de veculos e passageiros, de retirantes, de paus-de-arara, de caixeiros-viajantes, de comerciantes, de tcnicos e funcionrios pblicos que exercem ao longo daquele longo eixo seu papel criador de pioneiros e bandeirantes.36 Mapa da Bahia (localizao de Feira de Santana)

Fonte: Adaptado de MATTOS, Olandir Carvalho. Atlas da Bahia. Salvador: G. R. DOREA, 1971, p. 31.

36

AZEVEDO, Tales. Prefcio. In: POPPINO, Rollie E. Feira de Santana, p. 3.

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A criao do municpio de Feira de Santana, em 1833, teve razes no apenas polticas mas tambm econmicas tendo em vista que no perodo de sua criao toda produo agrcola e pastoril desta regio da Bahia e de outros Estados, como informado anteriormente, passava pela sua feira livre, a caminho do grande mercado de Salvador, capital do Estado. Feira de Santana pouco a pouco se tornava o entreposto comercial e canal de comunicao dessa grande regio. Na passagem do sculo XIX para o sculo XX, as elites feirenses estrategicamente associavam Feira de Santana ao clima saudvel, comrcio dinmico e prograssista, assim como aos imprescindveis cdigos de civilidade. Constituia-se para Feira de Santana uma identidade social vinculada idia de cidade moderna e civilizada em pleno interior da Bahia.37 O sculo XX inventou, ento, uma Princesa para o Serto.Senhores: Se houvesse de dar um nome a esta srie de excurses, que, muito a pesar meu, vai acabar, e j quase por momentos, chamar-lhe-ia eu "a minha viajem ao corao da Bahia"; pois o corao da terra flajelada o de que, com os meus companheiros, viemos todos busca, nesta romagem plos sertes e pelo recncavo, de Vila Nova da Rainha Feira de Santana, da antiga corte sertaneja bela princesa do serto.38

O trecho acima foi extrado de um documento intitulado Conferncia de Feira de Santana. Datado de 1919, este documento tem como autor nada menos que Rui Barbosa, em campanha presidencial pelo interior da Bahia. neste texto que aparece pela primeira vez a expresso princesa do serto para fazer referncia Feira de Santana. Por mais que acompanhado a esta expresso o ilustre poltico baiano ultilizase corte sertaneja, foi Princesa, o termo adotado para nomear a cidade de Feira de Santana.

OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Feira de Santana em tempos de modernidade: olhares, imagens e prticas do cotidiano (1950-1960). Tese de Doutorado em Histria. Recife: UFPE, 2008, p. 20. Sobre a construo social de cidade moderna e civilizada para Feira de Santana, ver ainda: OLIVEIRA, Clvis Frederico Ramaiana Morais. De emprio a Princesa do Serto: utopias civilizadoras em Feira de Santana (1819-1937). Dissertao de Mestrado em Histria. Salvador: UFBA, 2000 e SILVA, Aldo Jos Morais, op. cit. 38 BARBOSA, Rui. Conferncia de Feira de Santana. In: GAMA, Raimundo. Feira de Santana e Rui Barbosa: o pouso da guia na terra formosa e bendita. Feira de Santana: s/d, 2002.

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37 A evoluo da cidade de Feira de Santana tambm no escapou crnica memorialista do ilustre escritor feirense Eurico Alves Boaventura:

Da Fazenda Santana dos Olhos dgua vai-se ao arraial de Santana da Feira e chega-se vila e a cidade de Feira de Santana. Corre constante bilioso arrepio de tropas de todo canto. Do Piau, de Gois, de Minas de So Francisco. Abrem-se ruazinhas vazias pelo planalto. E da velha estrada de tropas e boiadas bem larga, que marchava em direitura do serto alto, ou de l voltava, j vai ficando s a lembrana no traado irregular da Rua Direita, por sinal, a mais torta da urbe. Rua incerta como a marcha dos almocreves de ento. Passou a cidade a vila incipiente e era, por lei, a comercial Cidade de Feira de Santana. Ou como se lia em velhas escrituras no Riacho alta e comercial cidade de Feira de Santana. Comrcio bom de verdade. Espalhada aos quatro ventos a sua fama.39

O escritor saudou Feira de Santana pela sua histria de crescimento urbano e afirmao de cidade comercial, pelo papel desempenhado como importante entrocamento comercial fazendo desta, que antes era uma pequena vila que acolhia tropeiros nordestinos que vinham em busca do mercado da capital, a alta e comercial cidade de Feira de Santana, a Princesa do Serto.

BOAVENTURA, Eurico Alves. A paisagem urbana e o homem: memrias de Feira de Santana. Feira de Santana: UEFS Editora, 2006, p. 74.

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Imagem da feira em meados do sculo XX, nas imediaes da Praa Joo Pedreira. Ao fundo do aglomerado de pessoas, o mercado que atualmente funciona como o MAP- Mercado de Artes Popular. Fonte: Biblioteca Setorial Monsenhor Galvo - UEFS.

No final do sculo XIX, Feira de Santana era composta pela sua sede e mais os distritos de Almas (atual municpio de Anguera), Bomfim de Feira, Humildes, Remdios da Gameleira (atual Ipua), Bom Despacho (atual Jaguara), So Jos das Itapororocas (atual Maria Quitria), Santa Brbara (ou Pacat), Tanquinho e So Vicente (ou Tiquaru). Em meados do sculo XX, muitos desses distritos encontravam-se emancipados politicamente, como foi o caso de Almas que se constituiu no municpio de Anguera e Tanquinho que constituiu o municpio de mesmo nome. Entretanto, muitos destes permaneceram e suas denominaes foram mantidas, como ilustra o mapa seguinte.

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Limites distritais de Feira de Santana, com referncia primeira metade do sculo XX. Fonte: PINTO, Raymundo. Pequena histria de Feira de Santana. Feira de Santana: SICLA, 1971, p. 33.

Essas denominaes tambm podem ser observadas em documento elaborado pela Secretaria de Planejamento Urbano de Feira de Santana que mesmo no sendo datado, pela configurao nominal dos distritos e municpios circunvizinhos, o documento deve corresponder a meados do sculo XX:LIMITES MUNICIPAIS Limites com outros municpios: Ipir; Riacho de Jacupe; Serrinha; Irar; Corao de Maria; Santo Amaro; Santo Antnio; So Gonalo; Santo Estevo. Limites com os distritos: Humildes; Ipua; Maria Quitria; Itacuru; Almas; Bom Despacho; Tanquinho; Santa Brbara; So Vicente.40

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Documento datilografado sob o ttulo: Limites Municipais. Arquivo Pblico Municipal de Feira de Santana, s/d. (Documento no catalogado).

40 Alguns estudos ainda em andamento tm apontado entre esses distritos a existncia de comunidades quilombolas que remetem sua gnese de formao ao sculo XVIII.41 Entretanto, as migraes que ocorreram na psabolio parecem ter sido a maior responsvel pela constituio destas comunidades na forma que a encontramos em meados do sculo XX. Este dado pode ser sugerido quando comparamos os ndices populacionais. Relacionando os dados estatsticos de 1872 e 1940 observa-se um aumento da populao negra nessa regio caracterizando assim a predominncia dos descendentes de africanos. Em um quadro demonstrativo elaborado por Poppino intitulado Grupos raciais em Feira de Santana, com referncia a essas datas, encontram-se as seguintes cifras: em 1872, a populao branca soma 14.653 (28%), ao tempo que em 1940 atinge apenas 10.122 (12%); a populao de negros em 1872 soma 12.761 (25%); ao tempo que em 1940 atinge o nmero de 23.553 (28%); quanto populao de mulatos, em 1872 soma 21.718 (42%) conseguindo alcanar em 1940 a alta cifra de 49. 593, portanto 60% da populao de Feira de Santana.42 Com base nestes dados nota-se que a populao de negros e mulatos predominou em Feira de Santana, na primeira metade do sculo XX. Poppino chegou a afirmar que a maioria dos habitantes que chegaram aps 1872, era de origem africana, indicando assim as cifras da populao negra em Feira de Santana no perodo que corresponde pesquisa da presente tese. 43 A observao de Poppino sugere que entre o Recncavo e o Serto baiano estabeleceu-se um circuito de mo dupla na constituio das comunidades distritais de Feira de Santana e, portanto, das experincias culturais

Algumas referncias a essa questo encontram-se em MOREIRA, Vicente Diocleciano. Projeto memria da feira livre de Feira de Santana primeira fase: texto n 4. A escravido em Feira de Santana (primeira parte), memeo. O estudo da professora Maria ngela Nascimento sobre a Matinha dos Pretos, comunidade negra rural de Feira de Santana, elevada recentemente categoria de distrito, apresenta pistas importantes pra revelar a histria de muitas comunidades de quilombos. NASCIMENTO, Maria ngela. As prticas populares de cura no povoado de Matinha dos Pretos- BA: eliminar, reduzir ou convalidar? Tese de doutorado. So Paulo: USP, 1997. 42 POPPINO,p. 248. Destaco as categorias entre aspas por serem nomeadas pelo prprio autor. 43 Idem, p. 18.

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41 reelaboradas entre negros e mestios, reinventores das prticas e saberes afro-brasileiros naquela que j fora batizada como Princesa do Serto.44

1.2 Rollie Poppino e a historiografia feirense

Na ltima dcada os historiadores comearam a se interessar pela experincia da escravido africana no serto baiano, o que j soma um conjunto importante de estudos sobre o negro no Alto Serto e vale do So Francisco.45 Estes trabalhos tm contribudo com o processo de descentralizao espacial dos estudos sobre o negro na Bahia, mas no contempla ainda uma realidade mais ampla, que d conta, por exemplo, da regio de Feira de Santana, de difcil definio geogrfica, considerada o Portal do Serto da Bahia. Entretanto, a historiografia de Feira de Santana, pode ser datada pelo menos da dcada de 1960, com a publicao do livro Feira de Santana, de Rollie Poppino.46 A pesquisa que deu origem a esta publicao est relacionada a um conjunto de estudos de carter histrico e social desenvolvidos na Bahia que no teve como objetivo revelar o universo das relaes tnico-raciais e dos saberes e prticas afro-brasileiras, mas, no caso de Feira de Santana, deixou importantes pistas. Vale aqui traar em

Um projeto de pesquisa que procura trabalhar a histria dessas populaes foi proposto pela parceria entre a Universidade Estadual de Feira de Santana e Universidade do Estado da Bahia. O projeto intitula-se Itinerrios da memria: comunidades negras rurais no Paraguau (Bahia, 1880-1940). 45 A ttulo de exemplo ver: NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifndio um estudo de histria regional e local. Salvador: Edufba/Feira de Santana: UEFS, 1997; PIRES, Maria de Ftima Novais. O crime na cor: escravos e forros no alto serto da Bahia (1830-1888). So Paulo: Annablume/Fapesp, 2003; PINHO, Jos Ricardo Moreno. Escravos, meeiros ou quilombolas? Escravido e cultura poltica no Mdio So Francisco. Dissertao de mestrado. Salvador: UFBA, 2000; PINA, Maria Cristina Dantas. Santa Isabel do Paraguass: cidade, garimpo e escravido nas lavras diamantinas, sculo XIX. Dissertao de mestrado. Salvador: UFBA, 2000. 46 A publicao contou com apoio do governo do Estado e foi editada em 1968, pela Editora Itapo. Vale ressaltar que para a realizao dessa pesquisa, Poppino teve acesso a uma documentao que ainda hoje os historiadores tm dificuldade de acessar, por estarem muitas dessas fontes em arquivos familiares, e por revelarem questes muito particulares da vida poltica de membros dessas famlias as mesmas dificultarem a sua consulta. Pelo menos esta minha sugesto para entender onde esto muitas das fontes citadas por Poppino, pois no se encontram nos arquivos pblicos municipais.

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42 linhas gerais o que foram estes estudos e sua importncia para a investigao do universo afro-brasileiro em Feira de Santana. Os estudos sociais brasileiros foram marcados nas dcadas de 1940 e 1950 pelos estudos de comunidade, tratava-se de um conjunto de investigaes de carter etnogrfico que tinha como objetivo bsico apreender o conhecimento da realidade brasileira em seus diferentes aspectos regional e local. Entre os grandes projetos desenvolvidos em diferentes regies do Brasil, ressalte-se aquele coordenado por Thales de Azevedo e Charles Wagley resultante do convnio estabelecido entre o Estado da Bahia e a Universidade de Colmbia, no incio dos anos 1950. Este projeto tinha como objetivo desenvolver estudos sobre as vilas rurais no interior baiano para um melhor conhecimento e fundamentao de polticas sociais de desenvolvimento para essas regies. Tratava-se de um projeto idealizado por Ansio Teixeira, ento secretrio estadual de Educao e Sade, que tinha a inteno de conhecer a vida social de trs comunidades rurais prximas a Salvador com o objetivo de colher subsdios para o desenvolvimento de futuras polticas pblicas de modernizao dessas reas.47

Em entrevista a Marcos Chor Maio, Thales ratifica os objetivos do Projeto Columbia:A antropologia estava muito preocupada com a mudana social. Ansio [Teixeira] era uma pessoa progressista, ento queria trazer algum elemento que contribusse para que esse progresso se fizesse na direo realmente do novo, do adiantamento. Ele [Ansio Teixeira] queria modernizar as instituies, atualizar os mtodos de ao... nesse sentido

MAIO, Marcos Chor. Abrindo a caixa-preta: o Projeto Unesco de relaes raciais.In: PEIXOTO, Fernanda Aras, PONTES, Heloisa. e SCHWARCZ, Lilian Moritz. (org). Antropologias, histrias, experincias. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2004, p. 150. O convnio Universidade de Colmbia/Estado da Bahia ocorreu na gesto do governador Otvio Mangabeira (1947-1951), portanto paralelo implantao do Projeto Unesco de Relaes Raciais.

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43que falei em progressista. Ele era um homem contrrio rotina tradicional.48

Thales destacou a preocupao que se tinha com a mudana social e que na Bahia no se restringia apenas a uma preocupao terica das cincias sociais, mas tambm do programa de gesto pblica de Ansio Teixeira. Portanto, para agenciar uma mudana social, do ponto de vista das polticas pblicas de desenvolvimento social, era necessrio conhecer a realidade local atravs de pesquisas cientficas sobre essas regies. nesse sentido que os estudos de comunidade seria a metodologia adotada por dar conta de uma realidade totalizante da comunidade de interesse. Assim se caracterizaram os chamados estudos de comunidade, como pontuou Octavio Ianni:

nfase em estudos sobre mudanas sociais, aculturao e assimilao, problemas educacionais, condies de modalidade social, causas e efeito das migraes, configuraes de estruturas demogrficas, ciclo econmicos, subdesenvolvimento e crescimento econmicos, crises e conflitos polticos, alteraes nas estruturas de poder, formao da estrutura societria de classe, destruio dos remanescentes da sociedade escravocrata de castas, etc.49

As monografias resultantes da execuo do Projeto Colmbia no foram publicadas em sua totalidade, entretanto uma delas inclusive no referendada na bibliografia que consultei sobre o referido Projeto, caracteriza precisamente os estudos de comunidades a partir dos parmetros estabelecidos no Projeto Columbia e elencados acima por Octvio Ianni.50 Trata-se do estudo

MAIO, Marcos Chor. Thales de Azevedo: desaparece o ltimo dos pioneiros dos antroplogos brasileiros de formao mdica. In: Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 3, n 1, mar./jun. 1996, p. 161. 49 IANNI, Octavio. Sociologia da sociologia Latino-Americana. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1971, Captulo III: Estudo de comunidade e Conhecimento Cientfico. 50 Vale ressaltar que no encontrei referncia monografia de Poppino na literatura consultada sobre estudos de comunidade que cita o Projeto Columbia. Na busca de informaes sobre esta monografia e o Projeto Columbia consultei as seguintes referncias: MAIO, Marcos Chor. Abrindo a caixa-preta: o Projeto Unesco de relaes raciais (2004); MAIO, Marcos Chor. Thales de Azevedo: desaparece o ltimo dos pioneiros dos antroplogos brasileiros de formao mdica (1996); BRANDO, Maria de Azevedo. Thales de Azevedo e o ciclo de

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44 desenvolvido pelo pesquisador norte-americano Rollie E. Poppino sobre Feira de Santana.51 O trabalho de Rollie Poppino considerado um marco da historiografia de Feira de Santana, por ser ele o primeiro estudo desenvolvido por um profissional de pesquisa atendendo a todo um critrio terico e metodolgico da investigao cientfica sobre este municpio. Os mritos dessa monografia para o estudo social brasileiro foram frisados por Thales de Azevedo, o autor do Prefcio: Este livro vem a representar na historiografia baiana e nordestina o que representam para a economia cafeeira os estudos histrico-sociais de Fernando de Azevedo, de Stanlei J. Stein e outros.52 Ao observar o ndice do trabalho de Poppino, nota-se uma estrutura que corresponde s caractersticas dos estudos de comunidade, do perodo em questo. O texto est organizado em quatorze captulos versando sobre desenvolvimento econmico, instituies sociais, transformaes polticas, economia local, transporte, comunicao, populao, sade e desenvolvimento cultural. A periodicidade do estudo foi demarcada entre 1860 e 1950, possibilitando assim a compreenso do processo histrico de formao daquela sociedade destacando os seus diferentes aspectos: objetivo bsico do Projeto Columbia. No prefcio da nica edio publicada em 1968, Thales comea discutindo os estudos empreendidos pelo Programa de Pesquisas Sociais Estado da Bahia Columbia University. Primeiramente, o Programa tinha como objetivo, afirma Thales, adquirir um conhecimento da sociedade e da cultura dos habitantes da regio rural da Bahia e uma compreenso da dinmica das

estudos da UNESCO sobre relaes raciais no Brasil. (1996); IANNI, Octavio. Sociologia da sociologia Latino-Americana (1971); CASTRO, Elisa Guaran de. Estudos de comunidade: reflexividade e etnografia em Marvin Harris (2001); MELATTI, Julio Cezar. A antropologia no Brasil: um roteiro (1983); WOORTMANN, Klaas. A antropologia brasileira e os estudos de comunidade (1972). 51 Entre os trabalhos mais conhecidos desenvolvidos junto ao Projeto Colmbia destacam-se os estudos de comunidades no Recncavo e no Alto Serto baianos, realizados respectivamente por H. W. Hutchinson, Marvin Harris e Anthony Leeds. 52 AZEVEDO, Thales de. Prefcio. In: POPPINO, 1968, p. 3

45 mudanas de cultura que agora [dcada de 1960] se verificam.53 Por isso a preocupao com um recorte de longa durao. O trabalho de Poppino deu conta dessa necessidade do Programa, pois se dedicou tarefa de reconstruir a vida poltica, econmica, religiosa, comercial, associativa de uma cidade da importncia que tem Feira para a Bahia, alis, para o Nordeste. 54 Por conta dessa abordagem, Poppino fez, em notas de roda-p ou em pargrafos rpidos do texto, importantes referncias s prticas de candombl e curandeirismo, o que implica a necessidade da leitura cuidadosa de sua obra, para ampliar as possibilidades de investigao das prticas afro-brasileiras em Feira de Santana.55 A equipe de pesquisadores do Projeto Columbia se caracterizava como multidisciplinar uma vez que alm dos antroplogos e socilogos envolvidos, a evidncia atribuda Histria por aquele Programa exatamente o estudo de Rollie E. Poppino sobre Feira de Santana.56 Concluiu Thales que o Projeto Columbia, cumpriu mais uma etapa do seu plano de estudos com a publicao do livro Feira de Santana. Se os resultados da execuo do Projeto Columbia, em termos de polticas sociais de desenvolvimento para o interior da Bahia, no foram alcanados, algo de relevante pode ser registrado no campo do desenvolvimento das cincias sociais e humanas. Por exemplo, a participao de Thales de Azevedo como pesquisador no Projeto UNESCO de Relaes Raciais emergiu, segundo Maria Azevedo Brando, da vigncia do Programa de Pesquisas Sociais Estado da Bahia-Columbia University. Por outro lado o estudo de comunidade desenvolvido sobre Feira de Santana, sob a responsabilidade do historiador Rollie Poppino, revelou alm da histria e estrutura poltica, econmica e scio-cultural deste municpio at os anos 1950, as possibilidades de pesquisas sobre Feira de Santana em suas multifacetadas

AZEVEDO, Thales de. Prefcio. In: POPPINO, p. 1 Idem, p. 3. 55 Ver os captulos intitulados: A sade pblica, em Feira de Santana e O papel da Igreja. Outras referncias aos descendentes de africanos podem ser identificadas em diferentes captulos. 56 AZEVEDO, Thales de, p. 254

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46 realidades histricas, vindo a constituir uma historiografia para a Princesa do Serto. A produo acadmica sobre a histria de Feira de Santana, aguardaria pelo menos trs dcadas aps a publicao do livro de Rollie Poppino, mas no deixaria de ser influenciada pelas suas sugestes, explcita e implicitamente. No incio da dcada de 1990 comearam surgir os primeiros trabalhos, oriundos de programas de ps-graduao, principalmente do mestrado em Histria da Universidade Federal da Bahia que tinham a Princesa do Serto como objeto de estudo. Pontuarei a seguir alguns destes trabalhos, frisando apenas os temas que ganharam visibilidade nessa produo evitando, no entanto, ser repetitivo ao resenh-los pois o mesmo j foi feito demasiadamente por outros autores, inclusive em trabalhos defendidos recentemente. Me limitarei ento a situa-los do ponto de vista temtico57 Em 1990, Celeste Maria Pacheco de Andrade defendeu sua dissertao de Mestrado intitulada Origens do povoamento de Feira de Santana: um estudo de histria colonial.58 Utilizando fontes de carter variado, a autora se mostrou inovadora em relao a Poppino ao desenvolver um esludo sobre a formao histrica de Feira de Santana, principalmente pela maior criticidade na leitura e interpretao das fontes. Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana, Celeste Maria Pacheco de Andrade pode ter influenciado com seu estudo outros pesquisadores oriundos do curso de Histria desta Universidade. Este pode ter sido o caso de Aldo Jos de Morais Silva e Cloves Ramaiana de Morais Oliveira, em seus trabalhos intitulados respectivamente: Natureza s, civilidade e comrcio em Feira de Santana: elementos para o estudo da construo de identidade social no interior da Bahia (1833-1937) e De emprio a Princesa do Serto: utopias civilizadoras em Feira de Santana (1819-1937).59

Um interessante balano sobre a historiografia feirense pode ser consultado em OLIVEIRA, Clvis Frederico Ramaiana Morais. De emprio a Princesa do Serto: utopias civilizadoras em Feira de Santana (1819-1937). Dissertao de Mestrado em Histria. Salvador: UFBA, 2000 e OLIVEIRA, 2008, op. cit. 58 ANDRADE, Celeste Maria Pacheco de. Origens do povoamento de Feira de Santana: um estudo de histria colonial. Dissertao de Mestrado em Histria. Salvador: UFBA, 1990. 59 Ambas as dissertaes foram defendidas no Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal da Bahia no ano de 2000.

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47 A questo da modernidade, valores civilizatrios e a cidade como objeto histrico parece terem sido temas de grande seduo da historiografia feirense a partir deste perodo, pois seguiram-se aos trabalhos desses autores, pesquisas como a de Alane Carvalho em Feira de Santana nos tempos da modernidade: o sonho da industrializao e Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira em Feira de Santana em tempos de modernidade: olhares, imagens e prticas do cotidiano (1950-1960).60 Ttulos parecidos, mas com abordagens completamente distintas. Enquanto o primeiro dava conta de estudar o processo de industrializao na dcada de 1970, o outro procura entender os hbitos e costumes no processo de consolidao de uma identidade de civilidade e modernidade para Feira de Santana na dcada de 1950. A tese da modernidade na Feira do sculo XX, continuou seduzindo os estudiosos mesmo em trabalhos que propunham um recorte temtico diferenciado, como o caso da pesquisa de Eronize Lima Souza sobre polcia, violncia e criminalidade, e Kleber Jos Fonseca Simes que estudou a construo social da masculinidade em Feira de Santana.61 Outros temas que custam caro a produo historiogrfca brasileira tambm tiveram lugar na historiografia feirense, como o caso de uma histria das mulheres na Princesa do Serto e nessa perspectiva podem ser consultado trabalhos como O caminho da autonomia na conquista da dignidade: sociabilidades e conflitos entre lavadeiras em Feira de Santana (19291964), de Reginilde Rodrigues Santa Brbara e Timoneiras do bem na construo da cidade Princesa: mulheres de elite, cidade e cultura (1900-1945), de Cristiana Barbosa de Oliveira Ramos.62

CARVALHO, Alane. Feira de Santana nos tempos da modernidade: o sonho da industrializao. Dissertao de Mestrado em Histria. Salvador: UFBA, 2002; OLIVEIRA, 2008, op. cit. 61 SOUZA, Eronize Lima. Prosas da valentia: violncia e modernidade na Princesa do Serto (1930-1950). Dissertao de Mestrado em Histria. Salvador: UFBA, 2008; SIMES, Kleber Jos Fonseca. Os homens da Princesa do Serto: modernidade e identidade masculina em Feira de Santana (1918-1938). Dissertao de Mestrado em Histria: UFBA, 2007. 62 SANTA BRBARA, Reginildes Rodrigues. O caminho da autonomia na conquista da dignidade: sociabilidades e conflitos entre lavadeiras em Feira de Santana (1929-1964). Dissertao de Mestrado em Histria. Salvador: UFBA, 2007; RAMOS, Cristiana Barbosa de Oliveira. Timoneiras do bem na construo da cidade Princesa: mulheres de elite, cidade e cultura (1900-1945). Dissertao de Mestrado em Cultura, Memria e Desenvolvimento Regional. Santo Antnio de Jesus: UNEB, 2007.

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48 Os trabalhos aqui citados no representam toda a produo histrica sobre Feira de Santana mas constituem uma panormica da historiografia feirense ps Rollie Poppino, assim situando o seu magistral trabalho sobre Feira de Santana como marco para a historiografia feirense. Entretanto mesmo tendo estas pesquisas abordagens temticas importantes com uma interpretao criativa e inovadora sobre a histria social da Princesa do Serto, h ainda nichos que precisam ser revelados como o caso de uma histria sobre curandeiros e candombls, sobre os quais as referncias ainda se restringem a notas rpidas de ps-de- pginas, ou seja , muitas das experincias do niverso afro-brasileiro de Feira de Santana ainda se calam sob os silncios da histria.

1.3 Candombl e curandeirismo como culturas afro-diaspricas

Na introduo do livro Dispora negra no Brasil Linda M. Heywood pontuou algumas questes que caracterizam elementos de preocupao entre historiadores e antroplogos que tem se dedicado dinmica da dispora e a experincia de africanos e crioulos no Brasil. A pesquisadora norte-americana interrogou em seu texto o quanto ainda se desconhecia acerca dessas experincias no que ela definiu como processo de crioulizao das comunidades americanas. neste sentido.64 Nos anos 1990 surgiram vrios trabalhos que desempenharam bastante ateno na origem africana das culturas afro-diaspricas. Estes trabalhos tm evidenciado uma considervel mudana de abordagem no campo da histria. A nfase tradicional em comrcio escravo e tradio agrcola sobre os estudos de63

Entretanto, importantes avanos tm sido feito

HEYWOOD, Linda M. (Org.). A dispora negra no Brasil. So Paulo: Contexto, 2008, p. 2223. 64 A respeito do processo de crioulizao em sociedades americanas ver MINTZ, Sidney W. e PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro americana: uma perspectiva antropolgica. Rio de Janeiro: Ed. Pallas / Universidade Cndido Mendes, 2003. Para o caso mais especfico da experincia baiana, ver: PARS, Luis Nicolau. O processo de crioulizao no recncavo baiano (1750-1800). In: Afro - sia: Revista do Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, 33 (2005), p. 87-132.

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49 frica foram dividindo interesses com outros temas como religio, poltica, msica, e tradies culturais simblicas, os quais constituem os principais legados das comunidades afro-diaspricas nas Amricas.65 nesta dinmica de trocas culturais que se pode entender a constituio dos saberes afrobrasileiros, que segundo a bibliografia est relacionado ao chamado mundo atlntico que se constituiu a partir do sculo XVII. A abertura do Atlntico, conseqncia da navegao europia na chamada modernidade, foi crucial e teve um significado muito mais profundo do que possamos imaginar. Segundo John Thornton, este evento no s fomentou como reconfigurou um conjunto de sociedades, propiciando a criao de um Novo Mundo.66 Essa nova configurao envolveu a frica por completo, pois em meados do sculo XVII os africanos representavam a maioria dos novos colonos no mundo Atlntico.67

Adaptado do livro Dispora africana para o Brasil. Mapa extrado de HEYWOOD, Linda M., op. cit. p. 12.

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Idem, p. 17. THORNTON, John. A frica e os africanos na formao do mundo atlntico (1400-1800). Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 54-55. 67 Idem66

50 O convvio dos africanos com as sociedades do Novo Mundo reelaborou lentamente uma experincia cultural de vida com as populaes americanas influenciadas por caractersticas herdadas do alm mar, sendo que nessa dinmica de reinvenes culturais alguns valores foram perdidos, outros misturados. Herbert S. Klein afirma que a cultura que eles [os africanos] e os escravos nascidos nas colnias criaram derivou-se de fontes africanas, americanas e europias, e foi parcialmente compartilhada pela elite branca que os mantinha em cativeiro.68 Muitos dos aspectos da cultura dos trabalhadores escravos eram comuns a outras sociedades escravocratas nas Amricas sendo grande parte desenvolvida dentro do contexto latino americano. No Brasil assim como em outras regies da Amrica Latina, na experincia da escravido, houve o desenvolvimento, por exemplo, de poderosos movimentos de prticas religiosas proscritas que foram intensamente influenciadas por um sincretismo das divindades religiosas africanas. 69 Essas experincias religiosas somadas dinmica da vida social entre africanos e crioulos caracterizados inclusive por uma gama diversificada de conflitos e experincias culturais implicou na criao de um sistema religioso, proporcionando assim uma melhor possibilidade de sobrevivncia e adaptao dos africanos que chegavam e tinham que aculturar-se ao novo mundo em que se encontravam.70 Essas questes possibilitaram o desenvolvimento das prticas de divinao e curandeirismo, levando assim ao surgimento de especialistas em feitiaria ligados aos saberes afro-ancestrais. Devido importncia que esses ofcios tinham na frica e falta de uma funo assim claramente definida dentro da sociedade brasileira, por exemplo, seria inevitvel que a influencia africana predominasse nas experincias de almmar. nesse contexto que pode ser entendida a apario histrica das religies afro-brasileiras, a exemplo dos candombls e suas prticas correlatas,68

KLEIN, Hebert S. O trfico de escravos no Atlntico: novas abordagens para as Amricas. So Paulo: FUNPEC, 2004, p. 176. 69 Idem. 70 Idem. Ver tambm MINTZ, Sidney W. e PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro americana: uma perspectiva antropolgica. Rio de Janeiro: Ed. Pallas / Universidade Cndido Mendes, 2003.

51 como o caso dos saberes mgico-curativos, denominados curandeirismo e feitiaria. No final do sculo XIX comeam surgir os primeiros estudos sobre essas experincias afro-diaspricas. Em 1896 Nina Rodrigues publicou O animismo fetichista dos negros baianos. Entretanto, o livro que o legitimou como precursor da etnografia sobre o negro no Brasil e, em especial, na Bahia, foi Os africanos no Brasil, editado postumamente em 1932.71 A partir de Nina Rodrigues outros passaram a desenvolver interesse pelos estudos do negro na Bahia, este foi o caso de Manuel Querino, Edison Carneiro e Artur Ramos, constituindo-se autores clssicos dos estudos sobre o negro na Bahia. Manuel Querino responsvel por um conjunto de etnografias que versam sobre diferentes temas tratando da influncia do colono preto na formao da civilizao brasileira. Seus principais trabalhos foram publicados, principalmente, em A raa africana e seus costumes na Bahia e Bahia de Outrora, de 1916 e na edio pstuma de Costumes africanos no Brasil, publicada em 1938.72 Mesmo sendo consideradas por Edison Carneiro como pesquisas sem o mesmo carter cientfico que as de Nina Rodrigues, seu trabalho representava juntamente com o de Nina Rodrigues, at a dcada de 1920, os poucos estudos de etnografia do negro na Bahia. Segundo Waldir Freitas de Oliveira, neste perodo pouco fora acrescentado aos estudos de Nina Rodrigues e Manuel Querino, no tocante aos estudos afro-brasileiros, que caberia a Artur Ramos a difcil tarefa de retom-los, na dcada seguinte, reivindicando, para Nina Rodrigues, o ttulo de pioneiro desses estudos no Brasil. 73 Os autores que representavam esse bloco de estudiosos j definido como escola baiana de antropologia, no convergiam em muito dos aspectos da produo intelectual, s vezes sendo alguns deles identificados por ter em71

RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Salvador: P555 Edies, 2005; RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. Op. cit. 72 QUERINO, Manuel. Bahia de Outrora. Salvador/BA: Livraria Econmica, 1916; QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Civiliza