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Alejandro Zambra - A Vida Privada Das Rvores Retai

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  • A VIDAPRIVADA

    DASRVORES

    ALEJANDRO ZAMBRA

    TRADUO Josely Vianna Baptista

  • Para Alhel e Rosrio

  • No tenho lembranas de infncia.Georges Perec

    como a vida privada das rvores ou dos nufragos.Andrs Anwandter

  • INVERNADOURO

  • JULIN DISTRAI A MENINA COM A VIDA PRIVADA DAS RVORES, uma srie de histrias que inventou para faz-la dormir. Os protagonistas so um lamo e um baob que de noite, quando ningum estvendo, conversam sobre fotossntese, esquilos, ou sobre as numerosas vantagens de seremrvores e no pessoas ou animais ou, como eles dizem, estpidos pedaos de cimento.

    Daniela no sua filha, mas difcil para ele no pensar nela como filha. Faz trs anos queJulin chegou famlia, pois foi ele quem chegou, Vernica e a menina j estavam l, foi elequem se casou com Vernica e, de certa forma, tambm com Daniela, que no comeo resistiu,mas aos poucos foi aceitando sua nova vida: Julin mais feio do que o meu pai, mas simptico do mesmo jeito, dizia para as amigas, que assentiam com imprevista seriedade, emesmo com gravidade, como se de repente compreendessem que a chegada de Julin no eraum acaso. Com o passar dos meses, o padrasto conseguiu at um lugar nos desenhos escolaresde Daniela. H um deles, particularmente, que Julin mantm sempre vista: os trs esto napraia, a menina e Vernica fazem bolos de areia, e ele aparece de jeans e camisa, lendo efumando sob um sol perfeito, redondo e amarelo.

    Julin mais feio do que o pai de Daniela; em compensao, mais jovem, trabalha mais eganha menos, fuma mais e bebe menos, faz menos esporte no faz absolutamente nada deesporte e sabe mais de rvores que de pases.

    menos branco e menos simples e mais confuso do que Fernando Fernando, pois assimse chama o pai de Daniela, ele precisa de um nome, mesmo no sendo, exatamente, inimigo deJulin nem de ningum. Pois no h, na verdade, um inimigo. E o problema justamente este,no haver inimigos nesta histria: Vernica no tem inimigos, Julin no tem inimigos,Fernando no tem inimigos, e Daniela, descontando um coleguinha folgado que vive fazendocaretas para ela, tambm no tem inimigos.

    s vezes, Fernando uma mancha na vida de Daniela; mas quem no , de vez em quando, umamancha na vida de algum?

    Julin Fernando menos a mancha, mas s vezes Fernando Julin menos a mancha.E quem Vernica?

    Por enquanto Vernica algum que no chega, que ainda no voltou de sua aula de desenho.Vernica algum que falta, levemente, no cmodo azul o cmodo azul o quarto de Daniela,e o cmodo branco o quarto de Vernica e Julin. H tambm um quarto verde, que eleschamam, brincando, de quarto de hspedes, porque no seria fcil dormir naquela desordemde livros, pastas e pincis. maneira de um sof desconfortvel, ajeitaram o grande ba ondemeses antes guardaram as roupas de vero.

    Nas ltimas horas de um dia normal costumam manter uma rotina impecvel: Julin eVernica saem do quarto azul quando Daniela adormece, e depois, no quarto de hspedes,Vernica desenha e Julin l. De tempos em tempos, ela o interrompe, ou ele a interrompe, eessas interferncias mtuas constituem dilogos, conversas banais ou, eventualmente,importantes, decisivas. Mais tarde se mudam para o quarto branco, onde veem tev ou fazemamor, ou comeam a discutir nada srio, nada que no possa ser resolvido imediatamente,antes do filme acabar, ou at que um dos dois ceda, por estar a fim de dormir ou de trepar. O

  • final recorrente dessas brigas uma transa rpida e silenciosa, ou ento uma transa demorada,que deixa escapar suaves risos e gemidos. Depois vm cinco ou seis horas de sono. E a comeao dia seguinte.

    Mas esta no uma noite normal, pelo menos ainda no. Ainda no completamente certoque haver um dia seguinte, pois Vernica no regressou da aula de desenho. Quando elavoltar, o romance acaba. Mas enquanto no volta o livro continua. O livro segue em frente atela voltar ou at Julin ter certeza de que ela no voltar mais. Por enquanto est faltandoVernica no quarto azul, onde Julin distrai a menina com uma histria sobre a vida privadadas rvores.

    Neste exato momento, refugiadas na solido do parque, as rvores comentam o infortnio deum carvalho em cuja casca duas pessoas gravaram seus nomes como prova de amizade.Ningum tem o direito de fazer uma tatuagem sem o seu consentimento, opina o lamo, e obaob ainda mais enftico: o carvalho foi vtima de um lamentvel ato de vandalismo. Essaspessoas merecem um castigo. No vou descansar at que tenham o castigo que merecem. Voupercorrer cus, mares e terras a persegui-los.

    A menina ri com gosto, sem o menor sinal de sono. E faz as perguntas de praxe, nunca umanica pergunta, so pelo menos duas ou trs, feitas com pressa e ansiedade: O que vandalismo, Julin? Voc pode buscar um copo de limonada pra mim, com trs cubinhos deacar? Alguma vez, voc e a mame j riscaram uma rvore como prova de amizade?

    Julin responde pacientemente, tentando respeitar a ordem das perguntas: vandalismo oque os vndalos fazem, os vndalos so pessoas que estragam as coisas pelo puro prazer deestrag-las. E sim, claro que eu posso buscar um copo de limonada. E no, eu e sua mamenunca gravamos nossos nomes na casca de uma rvore.

    No comeo, a histria de Vernica e Julin no foi uma histria de amor. Na verdade, eles seconheceram mais por motivos comerciais. Ele vivia, na poca, os estertores de um prolongadonamoro com Karla, uma mulher distante e sombria que por um triz no virou sua inimiga. Nohavia para eles grandes motivos de comemorao, mas mesmo assim Julin ligou, porindicao de um colega de trabalho, para Vernica, a doceira, e encomendou um bolo trsleites, que acabou alegrando bastante o aniversrio de Karla. Quando Julin foi buscar o bolono apartamento de Vernica, o mesmo onde vivem agora, viu uma mulher morena e magra, decabelos longos e lisos, olhos escuros, uma mulher, por assim dizer, chilena, de gestos nervosos,sria e alegre ao mesmo tempo; uma mulher bonita, que tinha uma filha e talvez tivessetambm um marido. Enquanto esperava, na sala, que Vernica terminasse de embalar o bolo,Julin conseguiu entrever o rosto branco de uma menina bem pequena. Depois houve umbreve dilogo entre Daniela e sua me, um dilogo spero e cordial, cotidiano, talvez umaqueda de brao sobre escovar os dentes.

    Seria inexato dizer que naquela tarde Julin ficou vidrado em Vernica. A verdade quehouve trs ou quatro segundos de bobeira, ou seja, Julin devia ter sado daquele apartamentotrs ou quatro segundos antes, e se no o fez foi porque gostou de ficar olhando por mais trsou quatro segundos o rosto escuro e ntido de Vernica.

  • Julin termina seu relato, satisfeito com a histria que contou, mas Daniela no s no dormiucomo parece animada, disposta a levar a conversa adiante. Com delicado rodeio, a meninacomea a falar do colgio at confessar, de imprevisto, sua vontade de ter cabelo azul. Ele sorri,pensando que se trata de um desejo metafrico, como o sonho de voar ou de viajar no tempo.Mas ela fala srio: duas meninas e at um menino da minha sala pintaram o cabelo, diz, eutambm quero ter pelo menos uma mecha azul no sei se azul ou vermelha, ainda no decidi,murmura, como se a deciso dependesse dela. um assunto novo: Julin acha que de tarde amenina falou com a me sobre isso, e agora quer a aprovao do padrasto. E o padrasto ensaia,s cegas, uma posio no jogo: voc s tem oito anos, por que vai estropiar o cabelo sendoainda to pequena, diz a ela, e improvisa uma efusiva histria familiar que de um jeito ou deoutro demonstra que loucura tingir o cabelo. O dilogo prossegue at que, um pouco irritada,a menina comea a bocejar.

    V Daniela dormindo e se imagina, aos oito anos, dormindo. automtico: v um cego e seimagina cego, l um bom poema e se pensa escrevendo-o, ou lendo-o, em voz alta, paraningum, animado pelo som obscuro das palavras. Julin s atenta para as imagens, acolhe-ase depois esquece-as. Talvez tenha se limitado a seguir imagens desde sempre: no tomoudecises, no perdeu nem ganhou, s se deixou atrair por certas imagens, e seguiu-as, semmedo e sem coragem, at aproxim-las ou apag-las.

    Deitado na cama do quarto branco, Julin acende um cigarro, o ltimo, o penltimo, outalvez o primeiro de uma noite longa, longussima, fatalmente destinada a repassar os prs eos contras de um passado francamente nebuloso.

    No momento a vida um rolo que parece resolvido: foi convidado para uma novaintimidade, para um mundo onde lhe cabe ser uma espcie de pai de Daniela, a menina quedorme, e o marido de Vernica, a mulher que no chega, ainda, de sua aula de desenho.Adiante, a histria se dispersa e quase no h maneira de continu-la, mas, por ora, Julinconsegue um certo distanciamento, e dali olha, com ateno, com legtimo interesse, a reprisede uma antiga partida entre o Inter e o Reggina. evidente que a qualquer momento vai sair ogol do Inter, e Julin no quer, por nada no mundo, perder esse gol.

  • VERNICA CURSAVA O SEGUNDO ANO DE LICENCIATURA EM artes quando Daniela chegou para bagunartudo.

    Antecipar-se dor foi sua forma de experimentar a dor uma dor jovem, que crescia edecrescia, e s vezes, ao longo de certas horas especialmente clidas, tendia a desaparecer. Nasprimeiras semanas de gravidez, decidiu guardar a notcia para si, no contou nem mesmo paraFernando ou para sua melhor amiga. O caso que no tinha, a rigor, uma melhor amiga, querdizer, tinha muitas amigas, que sempre a procuravam em busca de conselhos, mas a confiananunca era totalmente recproca. Aquele tempo de silncio foi um ltimo luxo que Vernicapermitiu-se, uma dose extra de privacidade, um espao para construir, com duvidosa calma,suas decises. No quero ser uma estudante-grvida, no quero ser uma me-estudante,pensava; definitivamente no queria se ver, dali a alguns meses, enfronhada num vestido bemlargo e bem florido, explicando ao professor que no tinha conseguido estudar para a prova, oudepois, dois anos mais tarde, deixando a criana aos cuidados das bibliotecrias. Ficava empnico s de imaginar o rosto abobado das bibliotecrias, transformadas, de repente, em fiisguardis de filhos alheios.

    Naquelas semanas visitou dezenas de galerias de arte, interrogou sem pudor seusprofessores e perdeu vrias horas se deixando cortejar por alunos dos cursos superiores, que,revisivelmente, eram insuportveis almofadinhas almofadinhas que diziam que secomportavam mal, mas que prosperavam mais rapidamente que seus irmos engenheiros eque suas irms psiclogas educacionais.

    Antes do previsto, porm, Vernica deu com o ressentimento que andava procurando:aquele no era um mundo do qual quisesse fazer parte no era, nem de longe, um mundo doqual ela pudesse fazer parte. Da, toda vez que era assolada por um pensamento negro sobresua adiada vocao, recorria aos contraexemplos que havia acumulado. Em vez de pensar nosaudvel desprezo pelas modas artsticas de alguns de seus professores, lembrava as aulasministradas por dois ou trs charlates, desses que sempre conseguem ancorar nas faculdadesde arte. E em vez de rememorar os trabalhos honestos, verdadeiros, de alguns de seus colegas,preferia voltar s inocentes galerias onde os adiantados do curso mostravam suas descobertas.

    Os jovens artistas imitaram perfeio o dialeto da academia, e completaram comentusiasmo os interminveis formulrios das bolsas do governo. Mas o dinheiro logo acabou, eos artistas tiveram que se resignar a dar cursos para amadores, como os que Vernica faz, nainspita sala de eventos de um municpio vizinho. De manh, Vernica assa biscoitos e atendeao telefone. De tarde, divide as tarefas e vai a esses cursos que s vezes lhe do tdio, outrasvezes grande proveito: trabalha com desenvoltura e severidade, finalmente confortvel em suacondio de amateur. J devia ter voltado da aula de desenho h mais de uma hora, na certa jest a caminho, pensa Julin, vendo tev. Aos quarenta e trs do segundo tempo, contra todoprognstico, o Reggina faz um a zero. E assim termina a partida: Inter 0 Reggina 1.

    Semana passada, Julin fez trinta anos. A festa foi um pouco estranha, marcada pelo desnimodo aniversariante. Assim como algumas mulheres diminuem a idade, ele s vezes precisaacrescentar alguns anos sua, olhar para o passado com um volvel travo de amargura.Ultimamente deu de cismar que devia ter sido dentista ou gelogo ou meteorologista. De

  • repente, acha estranho seu ofcio: professor. Mas sua verdadeira profisso, pensa agora, tercaspa. Imagina-se dando esta resposta:

    Qual a sua profisso?Ter caspa.

    Est exagerando, claro. Ningum consegue viver sem exagerar um pouco. Se existem perodosna vida de Julin, deveriam ser expressos segundo um ndice de exagero. At os dez anosexagerou muito pouco, quase nada. Mas dos dez aos dezessete anos a impostura acentuou-seconsistentemente. E dos dezoito em diante transformou-se num especialista nas mais diversasformas de exagero. Desde que est com Vernica o exagero vem diminuindoconsideravelmente, apesar das recadas naturais que vira e mexe acontecem.

    professor de literatura em quatro universidades de Santiago. Gostaria de se dedicar a umaespecialidade, mas a lei da oferta e da procura obrigou-o a ser verstil: d aulas de literaturanorte-americana e de literatura hispano-americana e at de poesia italiana, apesar de no falaritaliano. Leu atentamente Ungaretti, Montale, Pavese, Pasolini, e poetas mais recentes, comoPatrizia Cavalli e Valerio Magrelli, mas de maneira nenhuma especialista em poesia italiana.Alm do mais, no Chile no to grave dar aulas de poesia italiana sem saber italiano, porqueSantiago est cheia de professores de ingls que no sabem ingls, de dentistas que mal sabemextrair um dente e de personal trainers com sobrepeso, e de professores de ioga que noconseguiriam dar aulas sem uma generosa dose prvia de ansiolticos. Graas a suainquestionvel capacidade de improvisao, Julin consegue se sair bem em suas aventuraspedaggicas. Sempre d um jeito de salvar a situao camuflando alguma frase de WalterBenjamin ou de Borges ou de Nicanor Parra.

    professor, e escritor de domingo. H semanas em que trabalha a maior quantidade de tempopossvel, num ritmo obsessivo, como se tivesse um prazo a cumprir. o que ele chama de altatemporada. O normal, em todo caso, na baixa temporada, ele adiar suas ambies literriaspara os domingos, assim como outros homens destinam os domingos para a jardinagem oupara a carpintaria ou para o alcoolismo.

    Acabou de terminar um livro muito breve que, no entanto, passou vrios anos escrevendo.No comeo, dedicou-se a acumular materiais: chegou a juntar quase trezentas pginas, masdepois foi descartando passagens, como se em vez de somar histrias quisesse subtra-las ouapag-las. O resultado pobre: uma esqulida resma de quarenta e sete folhas que ele seempenha em considerar um romance. Ainda que tarde houvesse resolvido deixar o livrodescansando por algumas semanas, desligou a tev e comeou a ler, novamente, o manuscrito.

    Agora l, est lendo: se esfora para fingir que no conhece a histria, e por instantes alcanaessa iluso deixa-se levar com inocncia e timidez, convencendo-se de que tem diante dosolhos o texto de outro. Uma vrgula mal colocada ou um som spero, no entanto, conseguemtraz-lo de volta realidade; e ento, ele novamente um autor, o autor de algo, uma espcie depolicial de si mesmo que sanciona suas prprias faltas, seus excessos, seus pudores. L de p,caminhando pelo quarto: talvez devesse sentar-se ou recostar-se, mas permanece ereto, com as

  • costas rgidas, evitando se aproximar da lmpada, como se temesse que um maior caudal deluz tornasse visveis novas incorrees no manuscrito.

    A primeira imagem a de um homem jovem dedicado a cuidar de um bonsai. Se algum lhepedisse para resumir seu livro, provavelmente responderia que se trata de um homem jovemque se dedica a cuidar de um bonsai. Talvez no dissesse um homem jovem, talvez se limitassea esclarecer que o protagonista no exatamente um menino, ou um homem maduro, ou umvelho. Certa noite, h vrios anos, ele comentou a imagem com seus amigos Sergio eBernardita: um homem trancado com seu bonsai, cuidando dele, comovido com apossibilidade de uma obra de arte verdadeira. Dias depois eles lhe deram de presente, comouma brincadeira cmplice, um pequeno olmo. Para voc escrever seu livro, disseram.

    Naquele tempo Julin morava sozinho, ou mais ou menos sozinho, ou seja, com Karla, aquelamulher esquisita que quase virou sua inimiga. Na poca, Karla quase no ficava em casa, eprocurava no ficar em casa principalmente quando ele voltava do trabalho. Depois depreparar um ch com amaretto agora acha repugnante, mas naquele tempo ele adorava chcom amaretto , Julin cuidava da rvore. No s a punha na gua ou a podava se fosse preciso:ficava observando-a ao menos por uma hora, esperando, talvez, que se movesse, do mesmomodo que alguns meninos, de noite, ficam quietos na cama por um tempo, imersos nopensamento de que vo crescer.

    S depois de vigiar o crescimento de seu bonsai, Julin sentava-se para escrever. Haviamadrugadas em que ele preenchia pginas e pginas com repentina confiana. E havia noitesno to boas em que no conseguia passar do primeiro pargrafo: ficava encalhado diante datela, abstrado e ansioso, como se esperasse que o livro se escrevesse sozinho. Morava nosegundo andar de um edifcio defronte Praa uoa. No trreo funcionava um bar de ondevinha uma desordem de vozes e o bate-estaca constante da msica eletrnica. Ele gostava detrabalhar com esse barulho de fundo, embora se distrasse irremediavelmente quando davacom alguma conversa especialmente cmica ou srdida. Lembra-se, particularmente, da vozaguda de uma mulher mais velha que costumava relatar a morte de seu pai a quem quisesseouvi-la, e o pnico de um adolescente que, em certa madrugada de inverno, prometia aos gritosque nunca mais ia transar sem camisinha. Pensou vrias vezes em como seria valioso registraressas vozes, dedicar-se a anotar esses dilogos; imaginava um mar de palavras viajando docho at a janela e da janela at o ouvido, mo, ao livro. Nessas pginas acidentais decertohaveria mais vida que no livro que tentava escrever. Mas em vez de se contentar com ashistrias que o destino punha a seu dispor, Julin seguia com sua ideia fixa do bonsai.

  • D O FORA DA MINHA CASA SEU FILHO DA PUTA.

    Uma tarde, ao voltar do trabalho, Julin encontrou esta mensagem, escrita a traos grossos,com tinta vermelha, na parede da sala. Um certo alarmismo o fez pensar que a mensagem foraescrita com sangue. E mesmo logo depois tendo visto o galo de tinta e descoberto umaspoucas manchas espalhadas no tapete, aquela cena falsa ficou gravada em sua memria: aindahoje se surpreende imaginando Karla cortando a pele e lambuzando o dedo indicador numacrescente poa de sangue. Ainda hoje considera uma injustia sua namorada ter escrito seufilho da puta na parede da sala, pois nessa histria ele podia ser qualquer coisa, menos umfilho da puta. Tinha sido um idiota, babaca, preguioso, egosta, mas filho da puta no. Almdo mais, teve um tempo em que aquele apartamento era dos dois, foi ela quem de repentecomeou a se distanciar. Julin conformou-se rapidamente, quase de imediato, com a ausnciade Karla, esse foi seu nico erro um erro necessrio, pensa agora, quando ela no existe mais:j saiu, para sempre, de sua vida.

    Com a mala numa das mos e o bonsai na outra, naquela mesma noite Julin deixou oapartamento, e passou as semanas seguintes em pleno limbo alcolico, hospedado na casa deamigos, com vontade de contar sua histria a quem quisesse ouvi-la. Mas no era bomcontando sua histria. Procurava se esconder nos traos seguros de seu passado recente, masesses traos seguros eram poucos e Julin sabia disso muito bem. Mas nem a pau que voc vaiabrir o bico, disse-lhe certa vez seu amigo Vicente, no final de uma lenta noite decamaradagem. E no lhe faltava razo. O bonsai, entretanto, ressentia-se fortemente dasmudanas de domiclio.

    Apesar dos cuidados culpados de Julin, ao chegar estao final a rvore j estava quaseseca.

    Seria preciso redigir muitos pargrafos, talvez um livro inteiro, para explicar por que Julin nopassou aquele tempo na casa de seus pais. Basta dizer, por ora, que na poca Julin brincavaque no tinha famlia. H os que brincam de ter famlia: organizam tediosas reunies em queos brindes e as frases feitas do lugar a apressadas reconciliaes. Julin, por sua vez, brincavade no ter famlia: tinha alguns amigos muito bons, outros nem tanto, mas no tinha famlia.

    Num domingo, olhando os classificados do jornal, viu um endereo idntico ao doapartamento de Vernica. Era um segundo andar, num condomnio de La Reina, longe docentro, muito grande para um homem sozinho, e muito caro para um professor principiante.Julin procurava um lugar pequeno e barato, um refgio onde pudesse comear uma vida novano muito diferente de sua antiga vida, de modo que, naquele domingo, teve bom senso edescartou a ideia. Mas no domingo seguinte viu o anncio novamente e j no foi to sensato:saiu, sem mais prembulos, para ver o apartamento, pensando que seria agradvel recordar olar de Vernica. Assim que chegou reconheceu o caro meio idiota do zelador e o insistenteamarelo dos alfeneiros, podados, pensou, com um estranho empenho artstico. No selembrava do gigantesco cacto do jardim, nem das grossas grades pretas que protegiam asjanelas, mas gostou do lugar, gostou que tivesse sacadas e meninos que esperavam a hora doalmoo dando voltinhas de bicicleta.

  • Em vez de Vernica e Daniela havia trs cmodos no muito grandes e a sala que ele jconhecia. Era espao demais para Julin com seus poucos livros e seu mirrado bonsai, masestava decidido: pechinchou com o dono at conseguir baixar um pouco o preo e fechou umatarantado contrato que com certeza ia obrig-lo a batalhar por mais aulas, ou a organizaralguma oficina itinerante de poesia com os adolescentes do bairro.

    Desde ento viveu naquele lugar semivazio. Saa s oito da manh e voltava ao cair da noite,para trancar-se e escrever e presenciar a irreversvel agonia de sua rvore.

    Certa noite, Sergio e Bernardita foram visit-lo. Naquela casa de solteiro, faltavam colheres,panelas, almofadas, cinzeiros, lmpadas e at algumas cortinas, por isso Julin sentiu-se meioridculo ao agradecer os presentes que eles tinham trazido: um livro de Jeanette Winterson euma quantidade inacreditvel de velas aromticas e esferas de vidro que Bernardita distribuiurapidamente pelos cantos da casa.

    Depois de se desculpar pela pouca sorte do bonsai, Julin contou a histria que realmentequeria lhes contar: j estivera naquele apartamento, conhecera seus habitantes anteriores(usou essa palavra um tanto pomposa, habitantes), uma mulher jovem e sua filha. Era fcilperceber em seu relato uma misteriosa nfase, uma espcie de admirao que seus amigosconsideraram reveladora.

    E por isso voc alugou este lugar, disse Bernardita, com amvel ironia. Por amor scoincidncias.

    No, respondeu Julin, envergonhado. Com vigor, e mesmo certa brusquido desnecessria,replicou: Aluguei porque achei conveniente.

    Sim, Julin, admita, disse Sergio. Voc o alugou porque andou lendo muitos romances dePaul Auster.

    Sergio e Bernardita no conseguiram segurar uma imprudente gargalhada. Julin tambm riu,mas sem vontade, ou com vontade que seus amigos fossem embora no final do ataque de riso.Por causa da desagradvel brincadeira, Julin nunca mais leu romances de Paul Auster. E emmais de uma ocasio chegou a desaconselhar sua leitura, argumentando que, salvo poralgumas pginas de A inveno da solido, Auster no passava de um Borges diludo.

    Mas essa outra histria, uma histria menor, que no vem ao caso embora talvez fossemelhor seguir aquelas pistas falsas, Julin gostaria imensamente de um livro diletante cheiode pistas falsas. Sem dvida seria muito melhor rolar pelo cho de tanto rir, ou construir umeloquente rctus de desprezo. Seria prefervel fechar o livro, fechar os livros, e enfrentar, semmais, no a vida, que muito grande, mas a frgil armadura do presente. Por ora, a histriaavana e Vernica no chega, bom deixar isso claro, repetir isso mil e uma vezes: quando elavoltar, o romance acaba, o livro segue em frente at que ela volte ou at que Julin tenhacerteza de que ela no vai mais voltar.

    Nos dias que se seguiram visita de seus amigos, Julin ficava imaginando as inumerveiscenas secundrias que Vernica e a menina tinham vivido naquele apartamento. Ao voltar do

  • trabalho abria a porta encenando o temor de quem entra num lugar alheio. Dormia,consequentemente, no quarto de hspedes, que ento chamava de quarto verde o menor,que escolheu, talvez, pelo hbito de se esconder num canto. O quarto azul se manteve intacto,vazio, enfeitado apenas com uma broxa hirsuta e uns jornais esquecidos no cho. No quartobranco, trinta ou quarenta livros empilhados sobre algumas caixas, e uma tbua grossasustentada por dois precrios cavaletes, conformavam uma espcie de estdio. Escrevia attarde da noite, mas sem ordem, sem mtodo: parecia disposto a se deixar distrair pelo voo deuma mosca ou pelo ronco da geladeira. Mas sua maior distrao vinha de lembranas falsas,inventadas: imaginava Vernica na sacada, ou lendo revistas, ou ensaiando, diante do espelho,um penteado novo. Escrevia pensando em Vernica, no fantasma de Vernica olhando-oescrever.

    Um dia resolveu ligar para ela, com a desculpa de mais um bolo. Procurou em seus papis,mas o nmero que tinha anotado era seu atual nmero de telefone, e o colega de trabalho quelhe recomendara os bolos de Vernica morava agora nos Estados Unidos. Falou, ento, com odono do apartamento, que aceitou, a contragosto, coloc-lo em contato com algum queconhecia algum que talvez pudesse saber onde localizar Vernica. S depois de uma semanade obsessivas manobras Julin conseguiu o nmero, e mais uma semana se passou at queousasse ligar para ela.

    Contou, por telefone, da coincidncia, mas ela no pareceu muito interessada. Voc j sabemeu endereo, agora sua vez de vir me trazer o bolo, disse ele, com fingida jovialidade.Vernica, que estava mais do que acostumada com galanteios, assentiu e disse, imprimindo voz um tom impessoal, burocrtico: depois de amanh, s sete, irei deixar o bolo a. O plano deJulin era totalmente fantasioso: imaginava Vernica emocionada com lembranas recentes,envergonhada por conversar tanto tempo com um desconhecido, mas disposta a prolongar avisita, a continuar revelando sua intimidade por vrias horas, at baixar, definitivamente, aguarda: imaginava-se transando com Vernica na sala, e depois, de novo, na cozinha, eempurrando-a contra a porta, no final, guisa de despedida.

    J Vernica limitou-se a observar com reserva as paredes de seu antigo apartamento,reprimindo um involuntrio ar de desdm e certo desencanto. Nem chegou a reparar nobonsai seco, no cadver de bonsai que Julin pousara no cho, de propsito, com a esperanade que sua presena provocasse, ao menos, um tmido dilogo sobre plantas, talvez umahistria relacionada a seringueiras mortas ou trepadeiras destrudas por um cachorro gordo epreto. Mas Vernica simplesmente sorriu, pegou o dinheiro e fez meno de sair. Como ltimoe penoso recurso, Julin disse, impetuosamente: o outro bolo era para minha namorada, oumelhor, minha ex-namorada. Este para minha me. E essa rvore que voc est vendo a estsecando.

    Vernica deu apenas esta resposta: ah.E sorriu, novamente, e foi embora.

    Mas houve uma segunda e uma terceira e uma quarta e at uma quinta encomenda. Naquelesmeses, Julin engordou vrios quilos, pois o bolo trs leites era seu caf da manh, almoo e

  • jantar, iludido que estava de ir vencendo, pouco a pouco, a resistncia de Vernica. Para tornarsua vida verossmil, Julin justificava cada novo bolo com compromissos familiares ou sociais,enquanto Vernica lhe sugeria variar o cardpio, pois j estava comeando a se cansar depreparar sempre o mesmo doce. Mas Julin no queria massas folhadas nem bolos florestanegra nem de abacaxi nem crepes de laranja. Julin queria o de sempre, o trs leites, commuito vinho do Porto, por favor.

    L pelo bolo nmero cinco, ela parecia muito mais receptiva e curiosa que das outras vezes.Julin pensou que talvez agora ela finalmente aceitasse tomar um caf com ele, ou uma taa devinho, uma xcara de vinho, na verdade, pois Julin no tinha taas, nem mesmo copos, sxcaras. E no se enganou. Agora Julin era, para Vernica, um homem agradvel e no to feio,ainda que, certamente, no chegasse a se imaginar em cima ou embaixo de Julin, muitomenos prensada contra a porta, protagonizando aquela frentica ltima transa com que elesonhava insistentemente.

    Mas agora Julin j no sonhava exclusivamente com transas ocasionais. Sonhava queVernica ficava para dormir, e que ele dormia na casa de Vernica, que morava com Vernica,que transava com Vernica lentamente, em absoluto silncio, para no acordar a menina, quefaziam amor aos gritos, extasiados, quando a menina se hospedava na casa de seus avs ou deseu pai que ele imaginava alto e loiro e gordo, muito antes de saber que era alto e loiro emagro.

    Na tarde do quinto bolo, Vernica aceitou a xcara de vinho que Julin ofereceu. No houvesexo, em todo caso.

  • SOB A LUZ ARTIFICIOSA DO PRESENTE, SUA VIDA COM KARLA se revela como uma nuvem, uma lagoa. Pensanela como num lugar de passagem, um pas contemplado da janela de um trem vagarosodemais. Naquela noite da mensagem na parede, Julin adiantou-se muitas vezes a uma cenaque pensava ser inevitvel, mas que nunca aconteceu: via-se diante de Karla, passando oindefectvel caf ela construiria pausas repentinas e histrinicas e depois diria frasesdesoladas, longamente ensaiadas e, apesar de tudo, honestas. Mais tarde, j de volta a sua novavida, Julin encontraria as respostas que tentara dar cabisbaixo, com gaguejos.

    Mas no houve outra oportunidade de aplacar a fria ou a indiferena de Karla. Mais deuma vez esteve a ponto de provocar essa ltima cena, mas a fora que o animava talvez fossemuito fraca: a mera ideia de se ver envolvido numa discusso lhe dava um tdio profundo.Julin no queria recuperar o amor, pois deixara de am-la havia muito tempo. Deixara de am-la um segundo antes de comear a am-la. Soa estranho, mas assim que ele sente: em vez deamar Karla, ele amara a possibilidade do amor, e depois a iminncia do amor. Amara a ideia deum vulto se movendo entre lenis brancos e sujos.

    Sou sozinha, dizia Karla, quando perguntavam por sua famlia: no tenho pais, no tenhofamlia, sou sozinha. E era verdade: o pai de Karla morrera havia pouco, e a me morreramuitos anos antes, ao abandonar seu marido e sua filha e partir para Cali, atrs de um vagosonho esotrico. A vantagem de Karla era no ter famlia; a desvantagem de Julin era no ster pai e me e irm, mas tambm uma confusa variedade de avs, tios, primos e at sobrinhos.Karla ofereceu a ele um lugar perfeito para isolar-se do passado. No passado de Julin nohavia nada do que fugir, mas era disso, justamente, que fugia: da mediania, das inumerveishoras perdidas na companhia de ningum.

    Karla fazia filosofia na Universidade do Chile, mas no pretendia obter um diploma, nemtrabalhar, nem nada parecido. Seu nico desejo era ficar em casa ouvindo msica e fumandomaconha. Comia quase que exclusivamente chocolate ou talharim com queijo ralado, aindaque com a chegada de Julin, que era bom cozinheiro, o menu tenha se ampliado a talharimcom pesto, ravili, frango frito e at porotos con mazamorra. Ele dava aulas e ela recebiapontualmente o dinheiro da herana, de modo que podiam dar-se a certos luxos: ele compravaos livros e ela os discos, a maconha e o Rivotril, que era o novo vcio, meio foroso, de Karla.

    Concentrado em suas aulas e com a ideia fixa em seu livro, Julin passou ao largo deepisdios cruciais da vida de Karla: no reparou na avidez com que ela esperava, toda noite,telefonemas muito longos ou talvez muito breves no perguntava quem tinha ligado, o quequeria, onde voc vai, ou melhor, perguntava, mas sem nfase, ceitando, de antemo, asevasivas e a porta se batendo quando saa.

    Nunca soube exatamente por que Karla comeou, de repente, a faltar. No comeo, elaesboava explicaes rudimentares: demorei porque conheci uma mulher doente que precisada minha ajuda, disse certa manh, mas ele mal acusou o recebimento no viu ou no quisver nos olhos pardos de Karla um brilho seco e urgente. Depois, ela comeou a se hospedar nacasa da tal mulher, com o pretexto de cuidar dela. E no houve necessidade de novasexplicaes. A cada dois ou trs dias Julin encontrava gavetas entreabertas, pratos por lavar e

  • outros vestgios da presena de Karla. Semanas se passaram antes que se vissem de novo, poracaso, no patamar da escada. Ento se cumprimentaram desajeitadamente, sem beijos, comuma espcie de dilogo: minha amiga est melhor, disse ela, graas a mim. Quando voc vaivoltar?, perguntou Julin, desconcertado, mas no houve resposta. Devia t-la pressionado, t-la obrigado, talvez, a confessar aquilo de que ele negligentemente comeava a desconfiar: queaquela mulher era a me de Karla.

    Da calada em frente, Julin contemplava as ausncias de Karla com indiferena, e mesmocom alvio. Tarde aps tarde a imaginava caminhando por Irarrzaval, com o disc-man ligadoem canes dos Tindersticks, pensando em sua me, na mulher que Julin pensava ser a medela. Talvez

    ela tivesse inventado que tinha me, talvez tivesse convencido a mulher de que podia sersua me, e tivesse lhe pedido, tivesse suplicado que fosse sua me, pensava Julin, chateadopor no entender uma trama que, no fim das contas, no lhe interessava realmente.

    Nunca avanava muito em suas conjecturas sobre Karla. Tinha mais em que pensar. s vezes, amadrugada o surpreendia se altercando com retorcidas solues para seu romance, que noera exatamente um romance, mais parecia um livro de recortes ou de anotaes. No queria, naverdade, escrever um romance; queria simplesmente encontrar uma zona nebulosa e coerenteonde amontoar as lembranas. Queria enfiar a memria numa mochila e carregar essa mochilaat que o peso acabasse com suas costas.

    No fim de uma noite fria de escrita, Julin decidiu que no ia continuar enchendo pginascom histrias difusas e indecifrveis; escreveria, em vez disso, um dirio do bonsai, umcuidadoso registro do crescimento da rvore. Parecia simples. Toda tarde, ao voltar para casa,anotaria num caderno as mnimas variaes por que a rvore tivesse passado durante o dia: odespontar de uma folha, um tmido encurvamento do tronco, a presena de seis pedrasmicroscpicas que no estavam l no dia anterior. De forma quase automtica, a vidacomearia a penetrar nos dados seguros, objetivos, que ele iria coletando.

    Deitou-se feliz, satisfeito, com a vida pela frente. Mas ainda nem fechara os olhos quandoouviu a fechadura. Eram Karla e a mulher doente, voltando, quem sabe, de um silenciosopasseio pelo parque.

    Julin foi at a sala e cumprimentou-as, procurando, na surpresa, algum trao que delatasse oparentesco, mas s constatou uma ligeira semelhana, que tanto se d entre irms ou primasou mesmo entre amigas, o que, em todo caso, era novidade, pois Karla no tinha ou no diziater nem irms nem primas nem amigas. Mas o que o impressionou foi que a mulher noparecia estar doente. Comparando-se sua expresso vivaz e tranquila com a rudeza de Karla,parecia que a doente era Karla e sua me, sua possvel me, a enfermeira.

    A mulher respondeu ao cumprimento de Julin com um misto de amabilidade e mesura, aopasso que Karla limitou-se a insinuar que desejava ficar a ss com sua convidada. Assim ela achamou, minha convidada. Ele pensou que podia estender a cerimnia, que seria lcitoperguntar, amparado no senso comum, se eram primas ou amigas ou me e filha. Como era dese esperar, Karla perdeu a pacincia e disse v dormir, ns queremos ficar sozinhas, espero

  • que possa entender que ns queremos ficar sozinhas.Julin fez o possvel para escutar, l do quarto, o que as mulheres conversavam. Mas quase

    no falavam. Ficavam em silncio e durante quase uma hora aquele silncio foi crescendo atse tornar insuportvel. As mulheres saram da casa juntas e Karla no voltou naquela noitenem nos meses seguintes. E quando voltou foi s para escrever, na parede da sala, com tintavermelha ou talvez com sangue: d o fora da minha casa seu filho da puta.

    raro ele se lembrar de Karla. Dias atrs, quando o gato de Daniela morreu, Julin se lembroude um poema de Wislawa Szymborska, e foi at a biblioteca, pensando em l-lo para consolar amenina. Depois de procurar um pouco entre as estantes, percebeu que aquele volume verde,da editora Hiperin, era mais um dos livros que deixara na casa de Karla. A lembrana de Karlaest ligada quase que exclusivamente lembrana dos livros que no conseguiu levar consigona noite da mensagem na parede. Agora Karla no passava de uma ladra de livros. assim queele s vezes a chama, resmungando, enquanto examina inutilmente as estantes: a ladra delivros.

    Imagina Karla tomando ch com sua possvel me ou enfermeira, discutindo sobre formasde conseguir dinheiro para um tratamento dentrio, ou para fazer uma viagem a Londres ou aParis ou a Lisboa. Ter vivido aqueles anos na companhia de Karla lhe parece terrvel. Terrvel edesolador.

    Agora Julin tem uma famlia de verdade, dessas que passam a tarde de sbado fazendotarefas de cincias ou vendo filmes de Tim Burton. Daniela acaba de dormir e ele agua oouvido, pois pressente a chegada de sua mulher, mas s se percebe, ao longe, o roucoborbulhar do aqurio que puseram na sala h alguns meses. Sigilosamente, Julin se aproximade Cosmo e de Wanda, que continuam sua invarivel viagem pela gua suja, e os observa comuma ateno desmedida, colado ao vidro. Sbita, teatralmente, Julin adota a atitude de umvigilante, de um vigilante de peixes, de um homem especialmente treinado para evitar que ospeixes abandonem o aqurio.

    Quando algum no chega, nos romances, pensa Julin, porque alguma coisa ruimaconteceu. Mas por sorte isto no um romance: em questo de minutos Vernica chegarcom uma histria real, com um motivo razovel que justifique sua demora, e ento vamosconversar sobre sua aula de desenho, sobre a menina, meu livro, os peixes, sobre a necessidadede comprar um celular, sobre um pedao de pudim que ficou no forno, sobre o futuro, e talvezum pouco, tambm, sobre o passado. Para manter a calma, Julin pensa que a literatura e omundo esto cheios de mulheres que no chegam, de mulheres que morrem em acidentesbrutais, mas que pelo menos no mundo, na vida, tambm h mulheres que devemacompanhar, de imprevisto, uma amiga ao hospital, ou mulheres cujo pneu do carro fura nomeio de uma avenida sem que ningum se prontifique a ajud-las.

    Vernica uma mulher que no chega, Karla uma mulher que no estava.A me de Karla uma mulher que foi embora e que voltou quando ningum a esperava.Karla uma mulher que no esteve.Karla uma mulher que esteve, mas no esteve. Saiu, foi procurar sua me, do mesmo

  • modo que outros saem para caar. Saiu, foi comprar cigarros. Karla no esteve, no estava: saiupara comprar cigarros, foi procurar a me, foi caa.

    O pneu de Vernica furou. Ela sabe que no posso ir procur-la. No posso deixar a meninasozinha. Vernica vai trocar o pneu.

    Vernica uma mulher no meio da avenida trocando um pneu. Centenas de carros passama cada minuto, mas ningum se detm para ajud-la. isso que est acontecendo, pensaJulin, que resolve se apegar imagem de Vernica perdida, trocando um pneu, sozinha, numaavenida distante.

  • DANIELA ACORDA. SEMPRE ACORDA MEIA-NOITE, E A MEIA-NOITE chegou h pouco. Com voz apagada echorosa pede a Julin que a faa dormir novamente. A mame j vai chegar, diz Julin: acaba deligar, est bem, teve que ir at ao hospital levar uma amiga. Uma amiga grvida que estava comcontraes, esclarece. E acrescenta: dois pneus furaram no caminho.

    A menina no conhece a palavra contraes, e tambm no sabe que dois pneus furarem muito incomum, mas Daniela no est preocupada com a demora da me, pelo menos noexatamente. S quer que Julin fique com ela, que a faa dormir novamente, que a defenda daescurido.

    No sei por que todas as crianas tm medo do escuro. Na sua idade eu no tinha medo doescuro, diz a ela, e mentira, ou talvez seja verdade: quando Julin era criana no temiapropriamente o escuro, mas a possibilidade de ficar cego. Certa noite acordou sem resquciosde luz a que recorrer: primeiro teve a impresso de que algum tinha fechado o quarto, edepois a pavorosa convico de que tinha ficado cego. Desde ento, no suporta o escuroabsoluto, os cmodos fechados.

    Quer que a gente invente outra histria da Vida privada das rvores?Quero, responde Daniela.

    H algumas semanas Daniela respondeu que no. J estou grande para histrias, consigodormir sozinha, disse de repente. O mau humor da menina obedecia a um motivo bemdefinido: na casa de Fernando, provavelmente depois de uma longa sesso de playstation,encontrara um vdeo do casamento de seus pais. Talvez um pouco inquieto com a crescenteimportncia de Julin na vida da menina, Fernando no tenha parado a gravao, e em vezdisso tenha sentado ao lado dela, ansioso por responder s perguntas de Daniela, que, noentanto, manteve a vista fixa na tela, em silncio absoluto. Voltou para casa ensimesmada earisca, e s depois de um rduo interrogatrio revelou a Vernica o motivo de sua tristeza.

    Depois comearam as linhas cruzadas, as recriminaes de Vernica, os arrevesadosargumentos de Fernando e as gestes amveis de Julin, que, como de hbito, viu-se obrigadoa dar uma de mediador. Voc sabe como a Vernica , disse a Fernando, conciliador, o que noera verdade, claro: Fernando sabe enfrentar clientes difceis, sabe conseguir preosconvenientes, e sabe at tocar no violo alguns trechos de Villa-Lobos, mas certamente nosabe como Vernica . No conseguiu saber, pois o casamento durou apenas trs meses, ouquase cem dias, como costuma precisar Fernando foi a guerra dos cem dias, dizia, por trs deum sorriso amplo, quando lhe perguntam sobre aquele tempo com Vernica.

    Vernica e Fernando se casaram dispostos a cumprir com a conveno de serem felizes.Tinham decidido congelar, por um tempo, as diferenas, como se realmente fossem um casal eno uma plida ideia que adquirira forma apesar dos maus augrios. No dia do casamento,Vernica tinha vinte e um anos, Fernando quase trinta, e Daniela acabara de completar seismeses de vida. Ele pensava que com o tempo acabariam se acostumando a viver juntos ela,por sua vez, pressentia que o casamento ia durar, no mximo, um par de anos, e Daniela nopensava em nada, pois bebs de seis meses no pensam.

    (Concordo, foi uma brincadeira de mau gosto, mas eu precisava faz-la. prefervel pensar

  • que aquele tempo no passou de uma brincadeira um rudo brusco e passageiro que noouvimos mais.)

    Ainda cedo para saber o que foi que Daniela sentiu naquela tarde diante da tev. Na certa viu,pela primeira vez, seus pais juntos, como um verdadeiro casal: Vernica fantasiada de noiva,com o cabelo arrumado num glido coque, menos esbelta que agora, porm muito bela;Fernando sorrindo a torto e a direito, mais eufrico que nervoso, usando com naturalidade umsmoking recm-alugado. Um padre muito magro, de mos finas e dico perfeita, abenoou aunio, e ento os pais de Daniela se beijaram nos lbios com uma espcie de pudor, oureticncia. Foi um bom casamento, em todo caso, muito bom em alguns momentos. menorprovocao, as tias distantes derramavam lgrimas de alegria, enquanto os ancios semisturavam teimosamente com a juventude. Os funcionrios, penteados com gomalina,brigavam com suas gravatas novas, de ns grossos e cores berrantes, e suas acompanhantesexibiam vestidos de ltima hora e olhavam para a cmera com uma alegria que parecia forada,mas que sem dvida era autntica.

    Mais perturbador que ver seus pais se beijando deve ter sido, para Daniela, ver a si mesma, aosseis meses, sorrindo ou chorando enquanto a trocavam de braos, conforme algum ia aobanheiro ou derramava o ponche. Os convidados do casamento fizeram, copo na mo,generosos discursos que terminavam invariavelmente com uma aluso a Daniela, Danielita,Dani, que a partir de agora, diziam, seria ainda mais feliz. A menina de meses apareciachorando ou rindo ou meio dormindo no colo de gente de quem no se lembra, vestida, oumelhor, enfeitada para a ocasio, com o cabelo mais claro e as faces rosadas.

    Daniela no viu e talvez nunca veja o segundo vdeo, o do segundo casamento de sua me, masse lembra, com alguma nitidez, do dia em que Vernica se casou com Julin. So imagensdemais: dois casamentos, duas festas, dois destinos diferentes. De um lado esto seus pais eela mesma, aos seis meses, e do outro sua me e Julin e ela, de novo, aos cinco anos. Em vez daintimidante solenidade da igreja, h um escritrio pobre, uma escrivaninha de madeira recm-envernizada, uma mulher que prolonga demais as frases, um livro bem grande que os noivosassinam apressadamente, e um beijo seguro e breve. Depois a me corre at a filha, que quermas no quer ver-se envolvida num abrao duplo ou triplo, comemorado com um buliosoaplauso pelos poucos presentes.

    O que menos lhe agradou nesse segundo casamento foi sua me ter preferido um traje azulem vez de um vestido de noiva. Mas correu tudo bem. Foi, de fato, a primeira festa de sua vida,a primeira festa de que se lembra: comeu trs pedaos do colossal bolo trs leites com queVernica homenageou sua histria com Julin, e danou, danou muito, com seus primos, comseu av, com sua me e at com seu estreante padrasto, que naquele tempo era, para ela,pouco mais que um convidado para o almoo, e que agora, trs anos mais tarde, acaba de faz-la dormir com uma histria sobre rvores.

    Quer que a gente invente outra histria da Vida privada das rvores?Quero, responde Daniela. E Julin assente, chateado, pois est com dor nos olhos, nos

  • ouvidos, no sabe direito: gostaria de dormir, de repente, irresponsavelmente, e acordaramanh, ou ontem, renovado. Tem de ser uma histria curta, s o comeo, at que a meninaretome o sono: talvez a histria de um gigante que cuida das rvores como se fossem as plantasde um pequeno jardim, ou a aventura de um menino que subiu num p de azinheiro e nuncamais quis descer. Julin pressente que a narrao vai se emaranhar. Talvez seja melhorimprovisar, pensa, talvez a nica coisa que faa sentido seja improvisar:

    O lamo e o baob conversam sobre as pessoas loucas que costumam ir ao parque.Concordam, de antemo, que so muitas as pessoas loucas que vo ao parque. O parque estcheio de loucos, mas minha pessoa louca favorita, diz o baob, uma mulher de braoscompridssimos que veio falar comigo uma vez. Lembro-me disso como se fosse ontem,embora tenha sido h muito tempo, eu devia ter s uns duzentos e quinze ou duzentos e vinteanos quando ela veio, voc nem tinha nascido.

    Julin compreende na hora que cometeu um erro: Daniela sai da sonolncia, admirada coma idade do baob, principalmente porque acha que o lamo e o baob sempre viveram juntos,que por isso que eles so to amigos, porque passaram a vida plantados no parque. Paraconsertar a situao, Julin inventa uma nervosa fieira de dados, dos quais se depreende que obaob tem mil e quinhentos anos e o lamo apenas quarenta. Daniela continua confusa eJulin prossegue, consciente de que deve se esforar muito para recuperar o relato:

    Era, diz o baob, uma mulher de braos compridssimos. No comeo pensei que fosse umamenina, porque estava usando aparelho, mas no era uma menina, e sim uma mulher debraos muito compridos, que quase tocavam o cho. Uma mulher no necessariamente bonita,mas bastante esquisita: olhos verdes, cabelo curto e branco, pele escura, e um grande aparelhonos dentes, e aqueles braos compridos que quase tocavam o cho. Era ou tinha sido pintora, ese chamava Otoko.

    Julin decidiu se concentrar na mulher louca, embora j no pense nela como uma mulherlouca, e sim como uma mulher sozinha ou uma mulher que fala sozinha, com as rvores.Ensaia, ento, o monlogo de Otoko diante do velho baob:

    Sou pintora, diz Otoko, mas surgiu um inconveniente e preciso deixar de ser pintora. Oinconveniente so meus braos, que cresceram demais. muito difcil pintar com braos tograndes, meus olhos ficam cansados, a tela fica longe, mal consigo foc-la.

    Receitaram-me culos, mas no pretendo us-los, ao menos at tirar o aparelho. Desdepequena meu lema foi: ou aparelho, ou culos. Escolhi o aparelho, como eu ia saber quedepois meus braos ficariam to compridos e que eu no conseguiria pintar e tudo o mais

    No comum os braos das pessoas crescerem tanto. Os galhos sim, os galhos crescem, vocsabe disso melhor do que eu, baob. Os galhos crescem at que, de repente, morrem, mas no comum os braos das pessoas crescerem tanto.

    No comum, e talvez tambm no seja assim to estranho. Talvez eu seja uma em mil ouuma em um milho, e gosto disso, um privilgio. um inconveniente e um privilgio.

    Ento, vou procurar outro trabalho. Pensei em me dedicar a catar folhas do cho, pois fcil

  • para mim, no preciso nem me agachar. Vagarei pelos parques o dia todo catando folhas docho.

    Embora no seja mais necessrio, pois Daniela dormiu novamente, Julin continua o relato,mas agora quem fala no mais a pintora ou a catadora de folhas, e sim alguma outra mulher,mais bonita que Otoko, ou pelo menos com os braos no to grandes, normais. No Vernica, de jeito nenhum Vernica, que ainda vagueia por alguma avenida distante. De certomodo, Vernica a nica mulher que no poderia estar no relato que Julin improvisa em vozalta, para ningum, para a menina que dorme.

  • NO MESMO DIA EM QUE DANIELA ENCONTROU AQUELE ANTIGO vdeo do casamento, Vernica e Julinaproveitaram para fazer amor com ansiedade, ou com escndalo, como disse Vernica, rindo,enquanto mordia as costas de Julin.

    Entornaram duas garrafas de vinho e acabaram a noite trocando, arrebatados, grandesfrases, com as quais dilatavam indefinidamente o presente. Mas houve, sem dvida, um lapso,uma repentina queda na realidade. Vernica olhou para Julin e disse, lentamente, como sesoletrasse as frases: se eu morrer no quero que a menina v morar com o Fernando. Prefiroque ela fique com voc ou com a minha me. Transformado no marido perfeito de um filmeruim, Julin abraou-a com fora e disse: voc no vai morrer. E penetrou-a novamente, e riramde novo, e continuaram bebendo e transando at o amanhecer.

    A lembrana daquelas frases o atingem como uma infalvel punhalada. Acaba de dar umasrie intil de telefonemas que s aumentaram seu desespero. Julin anda pela casaarqueando os dedos nos sapatos, forando as pisadas, como se caminhasse por um camposemeado de flores ou de explosivos. No quarto da menina um relgio em forma de BobEsponja marca duas e meia da manh. Deve ser a primeira vez que algum olha para esserelgio s duas e meia da manh, pensa Julin, como se essa ligeira certeza amenizasse aespera.

    O romance continua, embora s para render-se ao capricho de uma regra injusta: Vernicano chega. Por ora no h imagens de poca, nem msica de fundo, s uma fraseaparentemente fora de lugar, excessiva, que Julin repete em voz alta e crescente, e depois emvoz baixa, at recobrar o silncio como se algum, de uma poltrona escondida, se divertissecontrolando o volume da voz de Julin, que pronuncia, dez vezes, aquela frase fora de lugar:sou o filho de uma famlia sem mortos, diz, olhando para a parede como se fosse uma vitrine:oi, sou o filho de uma famlia sem mortos.

    Isso foi h muito tempo, num ptio escondido da faculdade, enquanto queimava uma erva ebebia, a goladas, um pegajoso vinho com melo. Junto com um grupo de colegas de cursotinham passado a tarde trocando histrias familiares onde a morte aparecia com angustianteinsistncia. De todos os presentes, Julin era o nico que vinha de uma famlia sem mortos, eesta constatao o encheu de uma estranha amargura: seus amigos cresceram lendo os livrosque seus pais ou seus irmos mortos tinham deixado em casa. Mas na famlia de Julin nohavia mortos nem livros.

    Uma casa geminada com um jardim de alvoroadas flores em frente: vero aps veropintavam os tijolos com uma camada da cor branco inverno gostava de repetir o nomedaquela cor: branco inverno. Talvez s tenham pintado a casa uma ou duas vezes, mas Julinprefere pensar que todo ano, perto do incio do vero, a famlia inteira se reunia para pintar ostijolos. Durante dcadas a casa continuou sendo nova. E talvez ainda seja nova, talvez uma novafamlia tenha acabado de se instalar ali, provvel, conjectura Julin, que no demore muitoem fugir para dentro.

    Remexendo num fundo de espessa nostalgia, Julin chega imagem de um dardorompendo o cu de 1984, o ano das Olimpadas de Los Angeles. Definitivamente, perdeu

  • tempo com sua ideia fixa dos bonsais. Agora pensa que o nico livro que valeria a pena escreverseria um longo relato sobre aqueles dias de 1984. Esse seria o nico livro lcito, necessrio.

    No sem esforo consegue isolar a cena: est sentado ou encarapitado numa poltrona preta,de couro falso e convincente, diante da tev, concentrado no voo de um dardo. Bem pertodessas casas de meia-tigela vive a morte, mas esse menino de 1984 no sabe disso, no podesaber: observa o voo de um dardo ou a prova da marcha gosta muito de observar esses atletasmexicanos que so proibidos de correr, diverte-se imitando-os caminhar, a toda pressa, emperfeita progresso.

    Numa dessas tardes, o pai de Julin volta do trabalho com quatro caixas enormes, queJulin e sua irm ajudam a desempacotar: a primeira contm as cem fitas da coleo Os grandescompositores, e as trs restantes constituem uma biblioteca de literatura universal, espanhola echilena; dezenas de livros de cor bege, vermelha e caf, respectivamente, em ediespopulares, de pginas grossas e amareladas. At esse dia s havia em casa uma enciclopdiasobre conserto de automveis e um curso de ingls da BBC. Os novos livros instauram umamnima abundncia, na medida da prosperidade da famlia.

    No foi fcil construir essa famlia. Foi preciso esquecer os amigos e inventar novos amigos.Foi preciso dedicar-se ao trabalho avanar, com antolhos, atravs da multido, vencendo riosde perguntas incmodas, procurando uma trilha ou um atalho que levasse a um futuro semfelicidade e sem pobreza. J no existem bas ou s existem bas vazios, esvaziados, semanis, sem mechas de cabelo, sem cartas bem dobradas prestes a se rasgar, sem fotos em spia.A vida um enorme lbum no qual possvel construir um passado instantneo, de cores vivase definitivas.

    Julin amaldioa sua ideia fixa: devia ter se dedicado, no fim, a registrar as conversas quevinham do bar de baixo, quando morava com Karla. Teria sido muito melhor. Em vez deacender uma imagem morta devia ter descrito vidas como a desse menino de 1984. Em vez defazer literatura devia ter mergulhado nos espelhos familiares. Pensa num romance de apenasdois captulos: o primeiro, muito breve, consigna o que esse menino sabia naquela poca; osegundo, muito longo, virtualmente infinito, relata o que esse menino no sabia. No que euqueira escrever essa histria. No um projeto. O que eu queria mesmo era t-la escrito anosatrs e poder l-la agora.

    No final do dia, depois de montar a biblioteca na sala, o pai rene a famlia em torno de umtabuleiro de Metrpolis. H famlias em que s nove da noite o homem comea a beber vinho ea mulher a passar roupa, alheios sorte das crianas, que brincam, no ptio, de se machucar,ou no quarto, com as luzes apagadas, ou no banheiro, fazendo bolhas de sabo, ou na cozinha,fabricando inslitas sobremesas com leite talhado. Tambm h famlias que veem a noite cairno compasso de responsveis conversas de salo. E tambm h famlias que a essa horarecordam seus mortos, com a aura da dor rodeando seus rostos. Ningum brinca, ningumconversa: os adultos escrevem cartas que ningum vai ler, as crianas fazem perguntas queningum vai responder.

  • Esta, por sua vez, uma famlia que espera o toque de recolher jogando Metrpolis. Est tudopronto: o hospital, a priso, o cinema, o banco, os dados, as cartas do destino, as casas, osedifcios, as ruas. Os jogadores so um homem srio, que vem de baixo e vai para cima, umamulher de aspecto doce e triste, uma menina bonita e frgil, e um menino de oito ou nove anosque se chama Julin, mas que devia se chamar Julio uma histria inverossmil, pormverdadeira: pretendiam cham-lo de Julio, foi esse nome que pronunciaram diante do oficialdo registro civil, mas ele entendeu Julin e escreveu Julin na certido de nascimento, e os paisno pediram a retificao, pois naqueles tempos at um oficial do registro civil inspiravarespeito e temor irrestritos.

    Ao redor da mesa h um homem moreno, uma mulher branca, uma menina menos branca eum menino menos moreno. O homem moreno sempre ganha. A mulher branca logo se entediae sai. A menina branca continua jogando at perder tudo e promete a si mesma, com olhosinquietos, que da prxima vez derrotar o homem moreno. O menino menos moreno de nometrocado no quer ganhar nem perder, s quer mais coca-cola. O pai gosta que sua filha no serenda, mas est feliz de ganhar dela, de ter ganhado, de continuar ganhando sempre. A me, aocontrrio, h pouco hipotecou suas propriedades e dividiu o dinheiro, em partes iguais, entreseus filhos. Est sentada, ensaiando os acordes de uma cano de Violeta Parra, prestes acantar. disso que se trata, mais ou menos: de v-los jogar, de observar seus rostos de 1984, derir deles, de ter pena deles, de acompanh-los em seu honesto e tenso tdio.

    Agora Julin mora perto de uma rua azul celeste, Tobalaba, e antes morou a alguns passosde uma rua azul, Irarrzaval, diante da Praa uoa, na companhia de uma mulher que estevea um passo de se transformar em sua inimiga. Chegou a essa casa vindo de outras ruas que noaparecem no Metrpolis, pois ficam longe, a oeste da grande capital. Essas ruas sem cor tm,na memria, um matiz acinzentado. Durante a infncia e na primeira parte da juventude deJulin essas ruas foram brancas. S agora so empoeiradas. S agora, h pouco, o tempoconseguiu suj-las.

  • SO QUATRO DA MANH E JULIN RECONSIDERA UMA POSSIBILIDADE que antes havia negadocompletamente: Vernica no est presa numa avenida distante, est na casa de um homemque desta vez a convenceu a no voltar mais. Constri o quadro, sem perder nenhum detalhe:imagina as paredes midas e a luz de um aquecedor de parafina iluminando os amantes, queno posam, no tm tempo de parar e cumprimentar a cmera. H um cheiro de casca delaranja ou de varetas de incenso, de perfume gasto pelo roar dos corpos e as coxas brilhantese a pele de Vernica lustrosa e quente.

    No uma casa, pensa Julin. Leva um longo segundo para criar, em seu lugar, um quartovistoso, repleto de espelhos, com uma piscina percutindo um sutil rudo artificial. ImaginaVernica embotada por um usque rascante, embalada por algumas carreiras de cocana, semexendo, sem pressa, em cima de algum. uma explicao redonda, inquestionvel:Vernica no chega porque est na cama com o professor de desenho, era uma transa rpidaque se transformou numa transa demorada. Costuma passar. Naquele momento o professorde desenho ou de gramtica ou de fsica quntica a penetra pela sexta ou stima vez no sepreocupe, diz Julin, em voz alta: no se preocupe, que j fiz a menina dormir, j contei umahistria para ela, no tenha pressa, continue fodendo, por favor, sua cadela de merda, ainda vaidar tempo de fazer mais um boquete.

    Mas este no um desses programas onde preciso se fantasiar de mendigo e sobreviver aodesprezo dos demais. Nem mesmo avivando o fogo de uma conjectura horrvel Julin conseguemudar a trama: tem certeza de que no esse o motivo da demora de sua mulher. A imagem deVernica perdida numa avenida distante se agiganta, transforma-se numa espcie de verdade.

    Est jogado no cho, como um leo em sua jaula ou melhor, mais como um gato, ou comoesses peixes excntricos e horrveis que a menina escolheu, por piedade, meses atrs. Seescaparmos desta, pensa Julin, vamos juntar dinheiro para tirar umas frias em Valdivia ouem Puerto Montt, ou talvez no convenha esperar tanto: se escaparmos desta, no sbadoiremos, finalmente, conhecer a neve. Tinha descartado a ideia, movido por um antigoressentimento de classe, mas agora volta a contempl-la: a neve chilena para os ricos, sabemuito bem disso, mas j conseguiu se acostumar a conviver com pessoas distantes que depoisde um tempo acabam se transformando em pessoas amveis. Logo o plano desbaratado, nopodia durar. Descobriu, em sua prpria linguagem, uma fenda profunda: no vamos escapardesta. Escapar desta equivale a que Vernica cruze, como se nada tivesse acontecido, umumbral fechado h horas. Escapar desta seria, talvez, acordar. Mas no pode acordar: estacordado.

    Mesmo assim, continua pensando na neve, num espao espectral, relegado aos romances:um mundo onde os jovens ficam gravemente doentes e os velhos recordam amores dopassado. A neve uma japonesice tosca e bela, como os bonsais de sua ideia fixa. Gostaria deconhecer de ter conhecido, desde sempre, a neve. Aos dezoito anos, por exemplo, ter subidonum nibus, ter arrumado um emprego na cozinha de um hotel cinco estrelas, sob as ordensde um chefe explorador, um militar recm-aposentado, certamente. Imagina-se olhando, l debaixo, da neve, um telefrico repleto de minsculos turistas.

    Aproxima-se da parede do quarto branco: pondera, com uma seriedade absurda, se a

  • parede branca como o inverno ou branca como a neve. No sabe se possvel pintar umaparede da cor da neve. Fecha os olhos e pressiona as plpebras durante vinte, trinta segundos.E volta, com cuidado, com medo, a este relato de contornos fixos, que s vezes se assemelha aum livro que ensina a pintar. H trs lugares, e trs pequenas bibliotecas populares: azul,branco, verde, bege, vermelho e caf. A rua Arturo Prat cor de caf. A literatura chilena corde caf. A sala branca e talvez a neve tambm seja branca. As ruas no so brancas: as ruas soazul claro ou azul escuro, verde-gua, verde-esmeralda, vermelhas, rosadas, amarelas:Ahumada vermelha, Recoleta rosada, e Tobalaba, a rua paralela passagem onde vive agora, azul celeste, como a Bilbao. Diez de Julio e Vicua Mackenna so ruas cor de laranja.

    Enquanto o pai e as crianas jogam Metrpolis, a me dedilha, com trabalhosa exatido,uma cano de Violeta Parra. Minha me, pensa Julin, cantava canes de esquerda como sefossem de direita. Minha me cantava canes que no devia cantar. Deitava no sof, de noite,para se entreter, para sonhar com uma dor verdadeira. Minha me era um dispositivo quetransformava as canes de esquerda em canes de direita. Minha me cantava, abertamente,as mesmas canes com que outras mulheres, vestidas de preto, velavam seus mortos.

    E escuta a voz doce de sua me entoando aquela cano de Violeta Parra:

    Para olvidarme de tiVoy a cultivar la tierraEn ella espero encontrarRemedio para mis penas.

    Agora procura, no escuro, o rosto acobreado de Violeta Parra: imagina-a cantando, numcmodo gelado, de teto alto e cho de terra, na noite em que deu com a imagem de umamulher sozinha que conversa com as flores:

    Cogollo de toronjilPa cuando aumenten mis penasLas flores de mi jardnHan de ser mis enfermeras.

    As flores do meu jardim / vo ser minhas enfermeiras, canta Julin, num murmrio seco. No de hoje que considera esta cano a mais bonita que jamais ouviu. Mas agora preferiria deixaressa msica para trs.

    Atordoado pela espera, Julin concebe uma longa e imprecisa lista de mulheres sozinhas, demulheres sozinhas que falam sozinhas. Minha pessoa louca favorita, pensa, Emily Dickinson.J tenho duas, diz, Violeta Parra e Emily Dickinson, elas encabeam a lista de mulheressozinhas, elas falam com ningum no jardim. V o rosto branco e evasivo de Emily Dickinson:Our share of night to bear / Our share of morning, recita Julin, em voz alta, para ningum, para amenina que dorme. E repete, de forma involuntria, como se esbarrasse em sua prpria voz, os

  • versos de Emily Dickinson: Our share of night to bear / Our share of morning.

    Traduz, grosseiramente, s o ttulo, nada mais que o ttulo: Suportar nossa parte da noite,saber levar nossa poro de noite, carregar nossa parte da noite, suportar a escurido. A pontado lpis faz riscos, a tinta cobre a pgina de gua negra. E Julin soma vozes pgina negra. Suaverdadeira profisso somar vozes. Sua verdadeira profisso contar carros que passam aolargo ou se detm, de repente, no meio da avenida. Sua verdadeira profisso desenharmulheres sozinhas e pedaos de neve escura. Sua verdadeira profisso criar palavras eesquec-las no rudo.

    Agora recita, mais uma vez, como um louco, para ningum: Tolerar, aturar, carregar,suportar, levar, aguentar, encarregar-se; encarregar-se da noite aceitar a escurido, saberlevar nossa poro de noite, aceitar uma parte da noite, vencer a escurido, subtrair-se da luz,adentrar na noite, encarregar-se da escurido, encarregar-se da noite.

    A ponta do lpis faz riscos, a tinta cobre a pgina de gua negra.

  • E DANIELA? O QUE SER DE DANIELA?

    Est sentado, remexendo o ch na xcara, h quarenta minutos. E d com esta perguntaurgente, que no contribui para a distncia isso que ele quer: distncia. Quer inventar,conseguir, comprar anos ou quilos de distncia, pois so quase cinco da manh e o livrocontinua. O livro continua mesmo que o fechem.

    E esse outro livro, o que leu e releu at estrag-lo, at torn-lo ininteligvel: um dia Daniela vail-lo. E depois de l-lo vai se aproximar de Julin e dizer li seu romance, gostei, nogostei, muito curto. Ou no se aproximar, pois nessa poca ele estar bem longe, sozinho,ou acompanhado, com seus prprios filhos, talvez. Esta ltima possibilidade o deixaenormemente contrariado.

    Devia era meter a cabea no ar gelado l de fora. Devia era abrir as janelas, mas desistiu deabrir janelas. Procura, s cegas, seu novo lugar num jogo cujas regras desconhece.

    Talvez os inimigos que nunca teve tenham resolvido se reunir.Talvez tudo seja mais simples e ele esteja exagerando, como sempre: a calma voltar e ele

    voltar a ser, por fim, uma voz em off. o que ele quer ser, chegar a ser, quando velho: uma vozem off.

    O futuro das vozes em off, diz Julin, em voz alta.Ol, boa noite, diz: sou uma voz em off.Sou a melhor voz em off disponvel no mercado.

    Imagina Daniela aos quinze anos, num nibus, voltando de uma viagem ao campo: sua peleescureceu levemente, mas o olhar o mesmo seus olhos quase verdes percorrem a paisagemcom serenidade. No l, no ouve msica; de vez em quando pisca como se enredasse seusclios longos, e ento retorna paisagem de aridez, cavalos soltos e insistentes anncioscomerciais.

    Imagina Daniela aos vinte anos, numa sala de espera, folheando revistas, amarrando ocabelo mesclado de tons azuis. Julin poderia permanecer nessa imagem at saber o que estesperando, quem Daniela est esperando. Mas no quer saber tanto. Quer saber pouco, ojusto.

    Ento a imagina aos vinte e cinco anos, num parque: Daniela se protege do sol com as duasmos, e procura, ao longe, um vendedor de sorvetes ou de algodo doce, ou uns amigos que aconvidaram para um piquenique ou para um churrasco ou para uma preparao de peiote.

    E aos trinta anos assim pensa Julin, de cinco em cinco; imagina Daniela aos trinta anos,na praia, com Ernesto, seu namorado. Caminham pela orla, ele se adianta, ou talvez seja elaquem esteja arrastando os passos, pisando forte para sentir o cho sob a areia.

    Aos trinta anos, Daniela ler o romance de Julin. No uma profecia; no tem foras parafazer profecias, e tambm no exatamente um desejo, mas uma espcie de plano, o roteiro deuma noite em branco, criado rapidamente, ditado pela desesperana. Quer entrever um futuroque prescinda do presente; acomoda os fatos com vontade, com amor, de maneira que o futuro

  • permanea a salvo do presente.No importa que Vernica chegue ou no chegue, que morra ou sobreviva, que saia, que

    fique; haja o que houver, Daniela ter trinta anos e um namorado chamado Ernesto. Aos trintaanos, haja o que houver, Daniela ler meu livro, diz Julin: sua voz como um sorvo de ar seco;seu rosto adentra, sem medo, na penumbra.

    Julin uma mancha que se apaga e some.Vernica uma mancha que se apaga e permanece.O futuro a histria de Daniela.E Julin imagina, escreve essa histria, esse dia do futuro: o cenrio o mesmo, Daniela

    continua vivendo no mesmo apartamento de agora, de ento, foi reformado h pouco tempo as paredes j no so verdes, azuis e brancas, mas tem coisas que, apesar dos anos,permaneceram intactas: Daniela sabe onde encontrar o ch, a torradeira, os alfinetes, alanterna, a roupa de vero. J no h tapetes sujos nem vidros trincados. J no h aranhas,nem baratas, nem formigas. Daniela ocupa o quarto de sempre, o quarto azul, e no quartobranco esto os livros e os discos o quarto de hspedes agora , com propriedade, um quartode hspedes: quase todas as suas amigas moraram ali depois de sair de casa ou perder oemprego.

    psicloga. Houve um tempo em que era quase impensvel algum tomar uma deciso semprimeiro consultar seu psiclogo. Foi uma moda que chegou ao Chile um pouco tardiamente eque durou pouco: da noite para o dia centenas de psiclogos ficaram sem trabalho, decerto emvirtude da invaso da ioga e dos especialistas em reiki. Quando Daniela comeou a estudarpsicologia na Universidade do Chile aquela j era uma carreira incerta. Uma vez formada,depois de segurar por alguns meses o desemprego de praxe, finalmente conseguiu umtrabalho como locutora na rdio estatal.

    O segmento de Daniela vai das nove s onze da manh e consiste, como todos os programasda rdio estatal, em escutar os cidados. Habitualmente ela toma um banho e o caf da manhantes de comear a transmisso, mas desta vez decidiu se ater ao mnimo esforo. Doisminutos antes do programa comear, apanha vrias espumas acsticas e as instalacuidadosamente nas portas e nas janelas do quarto. Volta para a cama, aperta um botovermelho, e depois de um rpido ensaio consegue soltar convincentemente a voz.

    A voz de Daniela conserva um frescor enganoso. a voz rouca de uma menina ou a voz clida deuma mulher de cinquenta anos. Seus ouvintes no sabem sua idade, pois ela raramente aludea si mesma; comea a falar sobre o que quer que seja, at que entra a primeira ligao, mastoma muito cuidado para que o assunto escolhido no a leve a se expor demais. Nesse sentido, como sua me: nada de confidncias gratuitas, s normas gerais, comentrios argutos edivertidos, banalidades, opinies contundentes que, no entanto, pouco ou quase nada revelamda voz que as enuncia. A maioria de seus colegas massageia sem pudor o prprio ego napacincia dos demais. Ela no. Por isso agradvel ouvir seu programa.

    Quando conheceu Ernesto? Na Universidade, talvez, ser que foi seu colega de curso, seu

  • aluno, seu professor? Um conferencista, um acadmico que deu uma palestra e a viu, naprimeira fila, na ltima fila? Quem Ernesto? Como ele ? No importa: o fato que vivemjuntos na casa de Daniela, nesta casa, embora hoje ela esteja sozinha ontem foi lev-lo aoaeroporto, ele viajou para Quito, onde trabalha num projeto de turismo ecolgico.

    Daniela no gosta que Ernesto viaje tanto, por isso agora, enquanto escuta as confidnciasde uma ouvinte, persiste um lento obscurecimento; este , de novo, um primeiro dia semErnesto, uma situao que conhece de sobra. Um tempo de solido e lento obscurecimento.Daniela precipita as pausas, entrecorta as frases com severidade, mas mesmo assim continuasendo clida, nunca chega a perder a conscincia de que existe um pequeno grupo cativo depessoas que a escutam dia aps dia.

    No pode negar que gosta cada vez mais da solido; as semanas com Ernesto, por sua vez, tmsido travadas, speras. No que haja violncia ou tdio. uma espcie de falha, uma velaturaque algum espalhou sobre a tela onde Ernesto e Daniela posam para a posteridade. Sabe quemuito em breve Ernesto no voltar mais. Imagina-se desconcertada, e depois furiosa, efinalmente invadida por uma decisiva quietude. Tudo bem, era sem compromisso, como deveser: ama-se para deixar-se de amar e se deixa de amar para comear a amar outros, ou para ficarsozinho, por um tempo ou para sempre. Esse o dogma. O nico dogma.

  • FIXA A VISTA NA CORRENTEZA: A PONTE AVANA, NS AVANAMOS, a gua fica quieta, estanca. Era isso quedizia Julin, seu padrasto, na ponte qual costumava lev-la quando menina. No comeo difcil, mas voc logo se acostuma, como esses desenhos estranhos que precisamos olhar atque aparece sobre eles uma figura, um drago, um urso, o rosto de algum; de novo, olhe, fixe avista, force os olhos na gua at sentir que est avanando, que a ponte est avanando, at queo rio deixou de ser um rio. A gua perde velocidade, e voc, agora, quem avana pela gua,num barco.

    Julin apoiado na balaustrada de uma ponte do rio Mapocho; Daniela nunca falou dessalembrana, da qual, no entanto, lanou mo numerosas vezes para construir vnculos.Primeiro houve uma pequena traio, uma travessura, por assim dizer: aos quinze anos, numatarde em que passeava com seu pai, com seu verdadeiro pai, no pde resistir ideia de lev-lo ponte, ainda que para isso tivessem de caminhar um longo trecho. Fazendo-se de misteriosalevou-o pela mo, e ao chegar ponte repetiu, com estudada solenidade, as palavras de Julincomo se fossem suas. Esteve a ponto de lhe falar das caminhadas com seu padrasto, daquelesdias em que atravessavam a cidade s para parar um pouco e concentrar-se na correnteza. Masno o fez. Em vez disso, falou, este meu lugar favorito, papai, e no estava mentindo: daquivoc consegue fazer o rio parar, fazer com que a ponte seja um barco que se aproxima ou seafasta da terra firme.

    Desde aquele passeio, Daniela decidiu que esta seria sua brincadeira ntima, seu cdigosecreto: cada namorado seu foi levado ponte do Mapocho, e ela fez com que todos pensassemser as primeiras testemunhas daquela cerimnia particular. Naquela manh lembrou-se daltima vez em que usou aquela imagem, com Ernesto, e sente vontade de ir at a pontesozinha, para jogar alguma coisa uma fotografia, um chapu, qualquer coisa na correnteza;pensa no puro prazer de ver esse objeto perder-se no caudal, e talvez pense, tambm, emfechar um ciclo, embora ela no acredite nessa conversa mole de fechar ciclos, de culminarprocessos. Tende a acreditar que os processos no existem, que os ciclos que somos capazes dever nunca so os indicados.

    Daquela vez, com Ernesto, na ponte, foi diferente. Desde o incio ele se mostrou reativo aossegredos, de maneira que reagiu com receio diante da confisso, sem sequer desconfiar eleno era um homem desconfiado de que estava sendo vtima de uma brincadeira, de que era oprotagonista de um filme mudo. Sentiu-se, antes, oprimido pelo tom confidencial que Danielaimprimiu s palavras. Depois, rompeu o silncio com um comentrio sobre a ponte, sua datade construo, e uma pretensiosa lista de edifcios e monumentos construdos na mesmapoca. Assim era Ernesto: um jovem pedante que sabia um pouco de tudo. Mas esse choque derealidade no bateu mal em Daniela.

    Meu pai nunca escreveu um livro, diz Daniela, em voz alta. Descobriu este pensamento, que uma obviedade: seu pai no escritor. Seu padrasto tambm no era exatamente um escritor,um escritor de verdade, mas por enquanto precisa forar as ideias, estic-las, exager-las umpouco.

    Qual a profisso de seu pai?Engenheiro.

  • Qual a profisso de sua me?Ilustradora.

    No costumavam perguntar a profisso de seu padrasto, ainda que em sua gerao quase todasas crianas tivessem padrastos ou madrastas, que elas no chamavam por esses nomespejorativos, talvez porque com os anos acumulassem vrios padrastos e madrastas umalonga fila de pessoas que logo esqueciam, pois no as viam mais: desapareciam, para sempre,ou reapareciam anos mais tarde, por acaso, numa fila de supermercado.

    No o seu caso. Ela s teve um padrasto, motivo pelo qual, pensa agora, devia considerar-se uma sortuda. Ter tido apenas um padrasto era sinal de estabilidade. A pergunta pelaprofisso do padrasto no figurava nos questionrios, ento nunca teve oportunidade dedecidir uma resposta: escritor ou professor, essas teriam sido as opes. De segunda a sbadoera professor, e aos domingos escrevia.

    E se o seu pai escrevesse, por exemplo, suas memrias?Ou ser que ela mesma, que nunca pensou em escrever, devia dedicar-se ao resgate da

    histria de seu pai? Por que preciso resgatar histrias, por acaso elas no existem por simesmas? Quem melhor personagem: seu pai, sua me, seu padrasto? A solido se viroucontra ela. Est aflita com esse jogo que talvez devesse se chamar o engenheiro e a ilustradora,ou a ilustradora e o escritor. Qual seria o melhor romance: o de um engenheiro que se apaixonapor uma ilustradora ou o de uma ilustradora que se apaixona por um escritor?

    Depois de apresentar seu programa, Daniela pensa em sua me, que est viva, ou est morta.No se sabe.

    Talvez uma noite ela simplesmente no tenha chegado, foi Julin quem lhe disse ela novai voltar mais, ou morreu, ou aconteceu uma coisa muito ruim, muito triste. AgoraDaniela pensa em sua me, e depois em seu pai. Tem vontade de v-los. E escolhe bem: escolhevisitar o pai.

    Apesar da presena irregular na vida de Daniela, Fernando esteve presente na maioria dosdesenhos que a menina fez em sua infncia. s vezes no conseguia resistir tentao decaricaturar alguns de seus traos especialmente as orelhas , mas em geral tendia aembelez-lo, a idealiz-lo. H um desenho, feito por Daniela aos seis anos, em que ela apareceao lado do pai, na neve, esquiando. Na poca, ela no conhecia a cordilheira, mas tinha visto natev uma reportagem sobre a neve, que coloriu de amarelo, desenhando os esquis como garfos.

    Exceto pelos remotos cem dias que o casamento de seus pais durou, Daniela nunca moroucom Fernando. Depois daqueles meses ele passou a se mudar para apartamentos cada vezmais amplos, montando e desmontando famlias com garotas cada vez mais jovens. H dezanos, vive no bairro dos velhos arranha-cus um dia foram arranha-cus de verdade, masdepois foram superados por edifcios ainda mais altos.

    Recm-formado em engenharia comercial, Fernando foi gerente da happybirthday.cl, umaempresa especializada em organizar todo tipo de festa de aniversrio, que durou apenas seis

  • meses muito menos do que eu esperava e muitssimo mais do que o meu casamento,brincava Fernando, que era especialista em rir de si mesmo, ou como ele diria, brincandonovamente: sou especialista em me autodirigir brincadeiras. Defini-lo como um humoristaseria incorreto, de qualquer forma, pois Fernando no era bem o que chamamos de engraado,tendia mais para o srio; mas sem dvida guardava, como defesa, um certo humor distintivo.Happybirthday.cl foi um passo em falso depois do qual seus negcios melhoraramnotavelmente. O cabar que instalou no bairro vermelho , na verdade, s um divertimentopara ele. Suas outras empresas andam praticamente sozinhas e rendem muito dinheiro.

    No a primeira vez que Fernando sente o que est sentindo agora, ao receber Daniela: umaalegria que beira a plenitude, uma felicidade quase absoluta que revela, no entanto, sua formaincompleta, o tnue vis que desfigura a imagem. Queria ter intudo sua visita, saber comantecedncia que ela viria sem aviso, movida por uma urgncia secreta ou simplesmente paraconversar para construir a cena do pai e da filha que comem um espaguete e tomam caf,enquanto falam do clima ou de uma nova estrada que onstruram no norte.

    Como representar o que acontece enquanto conversam, o que deixam de dizer um para ooutro, aquele fundo de censuras tmidas, de mincias, que se agita enquanto falam? Comoiluminar as reas que ambos decidiram deixar s escuras? Depois de uma poca difcilretornaram ao pacto de no agresso, indireta cumplicidade dos que esto conscientes decompartilhar apenas um fio de vida. Agora eles conversam, claro que conversam, e no noestilo de perguntas e respostas. No um interrogatrio. , com propriedade, uma conversa. Asuperfcie combina com eles. Gostam de praticar o esporte de passar o tempo juntos.

    Falam de Ernesto, que Fernando s viu umas duas ou trs vezes. Para agradar a filha, dizque aprova a relao, e Daniela, sabendo que sua histria com Ernesto vai terminar em questode semanas, aprecia esse gesto tardio de seu pai. Generosamente retrocede dois anos, volta aotempo do incio da paixo, e pe as palavras de seu pai num lugar onde elas funcionam, ondeso oportunas.

    Falam tambm do Rita Lee, o cabar de Fernando. Como de hbito, Fernando comete o erroque cometeu durante toda a sua vida: esquecer que um pai, levar o entusiasmo s alturascomo um avio, confiar sua filha detalhes alm da conta. Inexplicavelmente, Fernando achaque Daniela pode achar graa no relato de seus namoricos com uma danarina do lugar.

    Se voc escrevesse um livro, diz Daniela, aps um longo silncio, no teria de me contar ahistria que acaba de contar sorri, com crueldade, satisfeita com suas palavras. A alegria deter encontrado essa frase supera a vergonha que lhe causou aquela histria. Imaginou seu paiolhando, embevecido, uma pobre mulher tirando seu brilhante baby-doll escarlate. Sentiupena dele e um pouco de vergonha. Mas depois pensou que esse livro que seu pai deveriaescrever: o livro das histrias que seria melhor no contar a ningum, no divulgar, levar para otmulo; um livro de confisses que no diriam nada a ningum, a que ningum daria valor. Oimportante seria guard-las, poupar o flego gasto em cont-las.

    Voc nunca pensou em escrever um livro?

  • No. Por qu?Por nada. bobagem escrever livros. melhor falar. Desculpe.Desculpe o qu?Desculpe o que eu disse sobre o livro que voc deveria escrever.

    Ele no entende, ela sabe que ele no entende, e melhor assim. Ponto.

  • DANIELA NO SE INTERESSA POR LITERATURA. L MUITO, mas principalmente livros de histria ou dememrias ou de ensaios. A verdade que no suporta a fico, fica impaciente com a comdiaabsurda dos romancistas: vamos fazer de conta que existia um mundo que era mais ou menosassim, vamos fazer de conta que eu no sou eu, e sim uma voz confivel, um rosto branco poronde passam rostos menos brancos, meio escuros, escuros.

    Porm, depois do almoo com seu pai, Daniela decide ler o romance de Julin. fcil para elaencontrar o livro: est na estante de sempre, desde sempre, resguardado pela impassvelordem alfabtica. Durante muitos anos lhe faltou curiosidade, e talvez coragem, para l-lo.Agora, ao abri-lo, d com esta mensagem na folha de rosto: Para Daniela, com amor,esperando que no se entedie.

    Reconhece a caligrafia de seu padrasto as letras retocadas com esmero, como sequisessem evitar um leve tremor que mesmo assim ficou impresso no papel. a letra de umfumante, pensa, embora no exista algo como a letra de um fumante. Disposta a se deixar levarpela solido, Daniela se espanta ao reconhecer, com tanta preciso, a letra de Julin. Nunca oviu escrever mo, lembra-se mais dele fumando, diante do computador, digitando a umavelocidade que, na poca, parecia invejvel, e depois, cinco segundos mais tarde, apagandocom a mesma rapidez as palavras que acabara de escrever.

    Talvez devesse ir ao parque, ou ao aeroporto, procurar alguma coisa, esperar algum. Maspreferiu ficar em casa, provocando as goteiras da lembrana. Age como se tivessem pedido queficasse em casa. E l como se ler fosse um ato de obedincia, como se tivesse de escrever umresumo, uma composio escolar: quarenta e cinco minutos, cronometrados, para responder auma nica e injusta pergunta: como se l o livro de um padrasto?

    O romance de Julin to curto que meia hora seria suficiente para l-lo. Mas Daniela se detmno meio da pgina para ver se o caf est pronto, para servir-se uma xcara de caf, e depois fazpausas cada vez que d um gole, e depois de cada gole olha para o teto, ou acende um cigarro, ecomea a parar, tambm, depois de cada tragada. Chega a atrasar a leitura para renovar asespumas acsticas. Precisa de silncio para escutar os sorvos de caf e as tragadas. Precisa desilncio para observar a fumaa dispersa no feixe de luz que entra pela janela.

    No se entedia, ou se entedia pouco. Espera encontrar, no livro, aspectos de si mesma, claresde um passado remoto, de um tempo que certamente viveu, mas do qual se lembra comdificuldade. No tem lembranas de infncia. No seria capaz de relatar sua vida: persistemapenas umas poucas cenas nuas que a memria passa e repassa. So indcios, ou restos. Sopedaos que s depois de um esforo enorme poderiam constituir uma histria, uma vida.

    Mas procura, procura-se: talvez de um pargrafo a outro tenham se passado dias, semanasou meses. Talvez ela tenha entrado, sem aviso, quando Julin estava escrevendo, restandodessa interrupo, no livro, uma frase, ou ao menos uma palavra. Por isso sublinha algunstrechos, que no so os seus preferidos, mas so frases que talvez ela tenha dito e Julin tenharoubado, copiado. Alegra-se, deixa-se levar pela miragem de que nesse livro pulsa a linguagem

  • dela, de Daniela.

    uma histria de amor, nada muito especial: duas pessoas constroem, com vontade einocncia, um mundo paralelo que, naturalmente, bem rpido desmorona. a histria de umamor medocre, juvenil, na qual reconhece sua classe: apartamentos exguos, meias-verdades,frases de amor automticas, covardias, fanatismos, iluses perdidas e depois recuperadas asbruscas mudanas de destino dos que sobem e descem e no partem nem ficam. Palavrasvelozes, que antecipam uma revelao que no chega.

    No h mundos paralelos, Daniela sabe disso muito bem. Sobreviveu mediocridade: estoudisposta a tudo, gostava de dizer anos atrs. E era verdade. Estava disposta a tudo, a fazerqualquer coisa, a receber o que quisessem lhe dar, a dizer o que fosse preciso dizer. Estavadisposta at mesmo a ouvir sua prpria voz dizendo frases que no queria dizer. Mas agorano. Agora no est mais disposta a tudo. Agora livre.

    Daniela termina de ler e volta mediatamente aos trechos sublinhados. Procura sua linguagem,procura-se, mas no se encontra. No est no livro. Perdeu-se. E essa ausncia no a desagrada.Invadida por um misto de alvio e decepo, fecha o livro. Sua vida no mudou. Provavelmenteamanh ir rel-lo para confirmar suas impresses. Mas no ir ponte, no vai recordarnenhuma histria que d sentido a seu presente, ao passado, ao futuro. No quer se enganar.Sua vida no mudou: no sabe mais, no sabe menos. No sente mais, no sente menos.

    mais fcil ler o livro de um padrasto que ler o livro de um pai? Devia pensar em jardins, emmulheres falando sozinhas. Trocando pneus furados numa avenida distante. Devia pensar nabeleza frgil das rvores doentes. Devia imaginar um parque coberto de toldos derrubados.Devia pensar na solido de um homem confinado s quatro paredes de um apartamentomido, um homem que desistiu de dizer as falas que lhe cabem.

    Julin gostaria que recordasse as histrias das rvores, ou as tortuosas horas que passavamdecorando a tabuada, com aquele tom sentencioso, pedaggico, que ele s vezes usava.

    Julin gostaria que Daniela se lembrasse dele depois de ler seu livro. Mas no. A memria no nenhum refgio. Resta apenas um balbucio inconsistente de nomes de ruas que no existemmais.

    noite.Daniela retira as espumas acsticas, pois quer dormir ouvindo os passos, os latidos, as

    buzinas, os alarmes de segurana, as conversas dos vizinhos. Pensa em si mesma, em quandoera menina e fingia dormir enquanto Julin lia e sua me pintava. Pouco a pouco vai caindo nosono.

    Agora dorme. Est dormindo.

  • INVERNO

  • Life as a book that has been put down.John Ashbery

  • O PROFESSOR DE EDUCAO FSICA UM NAZISTA, DISSE DANIELA.

    Caminham com cuidado, evitando as poas, dividindo o nico guarda-chuva que havia emcasa. Dessa vez teria sido melhor ir de txi, mas Julin preferiu caminhar, como sempre, as setequadras. Acaba de sugerir que andem em silncio, brincando, contando os passosmentalmente: quando chegarmos ao colgio voc me diz quantos passos contou e eu digoquantos eu contei, e ento vamos saber se caminhamos igual.

    Mas Daniela no quer brincar de contar passos. O que ela quer falar do professor deeducao fsica, que um nazista, conforme disse, e Julin, que odeia professores de educaofsica e toda pessoa por demais esportista, v-se obrigado a defend-lo, a esboar umaincompreensvel sntese da segunda guerra mundial, e da primeira, e at da revoluo russa. Oprofessor de educao fsica no um nazista, diz, arrematando, justo quando um carro passalevantando uma enxurrada da qual quase no conseguem se esquivar. O professor um bomhomem, repete Julin, talvez exagere e mande vocs fazerem muitas abdominais, mas otrabalho dele.

    Voc j quis ser professor de educao fsica?No.J quis fazer parte do Greenpeace?No.J quis ser outra coisa?

    que a gente sempre quer ser outra coisa, Daniela, responde ele ia dizer Danielita ou Dani,mas disse Daniela. A gente nunca est contente com o que . Seria estranho estar totalmentecontente. Quando eu era menino queria ser mdico, como todos os meninos. Todos osmeninos queriam ser mdicos.

    Eu no. Eu no quero ser mdica, nenhuma de minhas amigas quer ser mdica, um tdio.Ganham muito dinheiro, mas um tdio.

    Na verdade, Julin nunca quis ser mdico. Mentiu por pressa, para se livrar da pergunta.Caminha de lado, cobrindo Daniela, ajustado ao papel de bom pai ou padrasto ou irmo maisvelho ou seja l o que for. Nunca quis ser mdico, muito menos professor de educao fsica.Nem mesmo quis, jamais, ser professor de literatura. Queria quer ser escritor, mas serescritor no exatamente ser algum.

    Chove intensamente. Ao longo