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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTE E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM LETRAS DOUTORADO EM TEORIA DA LITERATURA JUDITE MARIA DE SANTANA SILVA WALY SALOMÃO: ALGARAVIAS DO PÓS - TUDO RECIFE 2010

algaravias do pós tudo

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTE E COMUNICAO

    PROGRAMA DE PS - GRADUAO EM LETRAS DOUTORADO EM TEORIA DA LITERATURA

    JUDITE MARIA DE SANTANA SILVA

    WALY SALOMO: ALGARAVIAS DO PS - TUDO

    RECIFE 2010

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    JUDITE MARIA DE SANTANA SILVA

    WALY SALOMO: ALGARAVIAS DO PS - TUDO

    RECIFE

    2009

    RECIFE

    2010

    Tese de Doutorado apresentada Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Teoria Literria. Orientadora: Professora Doutora Maria do Carmo de Siqueira Nino.

  • 3

  • 4

  • 5

    In memoriam

    Waly Salomo

    Mltiplo

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    AGRADECIMENTOS

    Ao meu Deus pelo dom da vida e a graa da inteligncia com que me contemplou

    menina de engenho;

    Aos meus filhos Israel Jnior, Isleyde Maria e Ismael Antonio que me

    acompanharam durante anos da minha vida acadmica e que pacientemente

    toleraram tantos momentos de minha ausncia;

    Aos meus irmos e irms pelo reconhecimento e credibilidade com que sempre

    apostaram na minha capacidade intelectual;

    Ao amigo Ismael Lus de Frana, meu fiel condutor nessa trajetria de idas e vindas

    em busca do conhecimento;

    A Vnia Maria Pimentel, pela pacincia de tantas horas formatando e pesquisando

    textos em toda minha caminhada acadmica;

    A inesquecvel amiga Dr. Zuleide Duarte que pacientemente lia os meus escritos

    fazendo correes e sugestes to necessrias;

    A minha orientadora, Dr. Maria do Carmo Nino pelo acompanhamento paciente,

    tolerante e pela grande contribuio para a construo dessa Tese.

    Aos professores do Programa de Ps-graduao em Letras, minha gratido.

  • 7

    Gemedeira das gemedeiras de Waly Salomo

    Eu agora vou cantar

    durante noites e dias

    a histria de Waly,

    de suas belas poesias.

    Vou cantar rindo e chorando

    ai-ai, ui-ui,

    seus ecos e algaravias.

    Sem aquelas nostalgias,

    sem voltar vistas pra trs,

    ele viu a herana herege

    e todo mal que ela faz.

    Viu que a sua poesia

    ai-ai, ui-ui,

    era muito mais capaz.

    Sendo ele o capataz,

    traficou pitanga em chama,

    ti-sangue, camio,

    (sujou o seu p na lama),

    o sol todo em extino,

    ai-ai, ui-ui,

    horas turvas e suas tramas.

    Ele era a sua mucama,

    o algoz de suas fronteiras,

    diamante em combusto,

    engenheiro de suas beiras

    foi tal qual Paul Valry,

  • 8

    ai-ai, ui-ui,

    fez poema sem poeira.

    Foi no canto da sereia

    e cantou Yemanj

    Escreveu cartas abertas

    Pulava de l pra c

    Espalmava a mo na cara,

    ai-ai, ui-ui,

    para teatraliz.

    Eu agora vou falar

    de todos os livros do moo:

    Me segura queu vou dar

    um troo e pulou no poo

    Gigol de bibels

    ai-ai, ui-ui

    Isso aqui s um esboo.

    Vou tentar roer o osso

    e falar do Armarinho

    de Miudezas do Waly

    e do seu outro livrinho

    que o Algaravias,

    ai-ai, ui-ui

    No vou sair de fininho.

    Sailormoon por seu caminho

    descobriu Mel do Melhor,

    pagou Tarifa de Embarque,

    recusou vu de fil

    Gastou cuspe com sua Lbia,

    ai-ai, ui-ui,

    era fogo no gog.

    E gemendo de dar d

    Vou cantando at o fim

  • 9

    o Waly de Jequi

    que exemplo para mim

    por ter juntado no verso

    ai-ai, ui-ui,

    o Xang com querubim.

    Licena peo por fim:

    Foi to bom estar aqui.

    grande a alegria,

    Relembrar o Waly,

    Encontrar estas pessoas

    ai-ai, ui-ui,

    Sinceras no aplaudi.

    Esta gemedeira foi apresentada e entoada por Leo Gonalves num elegante

    parangol o work in progress no Colquio Algaravias, na FALE/UFMG, em 2003,

    durante homenagem ao poeta Waly Salomo, dirigida por Maurcio Vasconcelos.

  • 10

    RESUMO

    Partindo do pressuposto de que os anos sessenta coincidiram com a emergncia da

    condio histrica ps-moderna, propusemos estudar a obra de Waly Dias Salomo,

    sob a tica barroca/neobarroca a partir das teorias de Severo Sarduy e Omar

    Calabrese alm de outros estudiosos como Cludio Daniel e Afonso vila. Nossa

    inteno foi de oportunizar uma releitura dos debates sobre as Vanguardas poticas

    contemporneas que introduziram a ps-modernidade considerando-as como

    programas estticos cujo foco era atenuar os limites entre as diversas formas de

    arte. Iniciamos por abordar os procedimentos e mtodos utilizados pelo escritor e

    poeta aglutinador de muitos caminhos, cujos mecanismos prprios nos permitiram

    identificar em sua produo potica sugestivas ressonncias de um barroco

    reciclado. Elementos como labirinto, ironia e paradoxo, procedimentos barroco por

    excelncia, foram apontados nesta tese como sendo vetores da poesia walyana. De

    fato, ao estabelecer um dilogo constante de suas obras com a tradio literria e

    com a contemporaneidade Waly cria uma hibridizao cuja afinidade com a poesia

    (neo) barroca evidente.

    Palavras-chave: Waly Salomo, Vanguardas contemporneas, hibridizao, Poesia Barroca/Neobarroca.

  • 11

    ABSTRACT

    Assuming that the sixties coincide with the emergence of postmodern

    historical conditions, we propose to study the work of Dias Waly Salomo

    from the Baroque /Neo-Baroque perspective, from the theories of Severo

    Sarduy and Omar Calabrese and other scholars as Claudio Daniel and Alfonso Avila.

    We intend to create opportunities for a new reading of debates on the contemporary

    poetic vanguards wich introduced postmodernism, regarding them as an aesthetic

    programs whose focus was to soften the boundaries between different art forms. We

    begin by discussing the procedures and methods used by the poet and writer who

    agglutinates many ways and whose own mechanisms allow us to identify echoes

    suggestive of a recycled baroque in his poetry. Elements such as the labyrinth, irony

    and paradox, Baroque procedures par excellence, were appointed in this thesis as

    vectors of walyan poetry. In fact, establishing a constant dialogue with his works

    from the literary tradition and contemporaneity, Waly create a hybrid whose affinity

    with (neo) baroque poetry is evident.

    Keywords: Waly, Vanguards contemporary, hybridization, Poetry Baroque / Neo-Baroque.

  • 12

    RSUM

    En supposant que les annes soixante a concid avec l'mergence de la condition

    historique postmoderne, nous avons propos d'tudier les travaux de Dias Waly

    Salomo, dans la perspective baroque / no-baroque des thories de Severo Sarduy

    et Omar Calabrese et d'autres spcialistes comme Claudio Daniel et Avila Alfonso.

    Notre intention tait de crer des possibilits relecture des discussions sur l'avant-

    garde potique contemporaine qui a introduit le postmodernisme les considrant

    comme des programmes dont l'esthtique accent a t mis ramollir les frontires

    entre les diffrentes formes d'art. Nous commenons par discuter des procdures et

    mthodes utilises par l'crivain et pote fdrateur de nombreuses faons, dont les

    mcanismes que nous possdons, permettent de dterminer dans son cho posie

    suggestive d'un baroque recycls. Des lments tels que le labyrinthe, l'ironie et le

    paradoxe, l'excellence des procdures par baroque, a t nomm dans cette thse

    comme des vecteurs de walyana posie. En fait, d'tablir un dialogue constant avec

    leurs uvres de la tradition littraire et de la contemporanit Waly crer un hybride

    dont l'affinit avec la posie (no) baroque est vident.

    Mots-cls: Waly, Vanguards hybridation contemporaine La posie baroque / no-baroque.

  • 13

    LISTA DE ABREVIATURAS

    AL: Algaravias: cmaras de ecos

    AM: Armarinho de miudezas

    BB: Babilaques

    GB: Gigol de bibels

    GG: Gilberto Gil

    HO: Hlio Oiticica qual o parangol ?

    JB: Judite Botafogo

    JM: Jornard Muniz

    LA: Lbia

    MM: O Mel do melhor

    MS: Me segura queu vou dar um troo

    PV: Pescados Vivos

    SS: Sinara Salomo

    TE: Tarifa de Embarque

    WS: Waly Salomo

  • 14 SUMRIO

    1 INTRODUO...................................... 15 2 VANGUARDAS POTICAS CONTEMPORNEAS.................................. 24 2.1 VANGUARDAS: CONCEITOS E APORIAS.... 24

    2.2 AS VANGUARDAS POTICAS NO BRASIL........................................... 30

    2.3 WALY SALOMO E AS VANGUARDAS CONTEMPORNEAS............ 36

    3 WALY EM DIAS DE SALOMO............................................................ 46 3.1 ALGARAVIAS DO PS-TUDO................................................................ 46

    3.2 BARROCO E MODERNIDADE............................................................... 56

    3.3 O NEOBARROCO: UMA ARTE POTICA DA

    CONTEMPORANEIDADE.............................................................................

    62

    3.3.1 O Omar Calabrese, Leitor e Critico do Neobarraco.............................. 67

    4 TRAOS BARROCOS NA POESIA WALIANA........................................ 71 4.1 A IRONIA................................................................................................. 74

    4.2 O LABIRINTO.......................................................................................... 77

    4.3 O PARADOXO......................................................................................... 81

    4.4 OUTRAS RIQUEZAS FIGURATIVAS...................................................... 83

    5 DIALOGISMO E INTERTEXTUALIDADES............................................... 87 5.1 OS DILOGOS CULTURAIS WALYANOS............................................. 97

    5.1.1 Waly e as Artes Plsticas: No Princpio No Era o Verbo.................. 97

    5.1.2 Waly Salomo e a MPB........................................................................ 109

    5.1.3 Waly Ator e Produtor Cultural.............................................................. 111

    5.1.4 Waly e Arte Eletrnica.......................................................................... 112

    5.2 O MEL DO MELHOR: AS INTERTEXTUALIDADES POTICAS........... 113

    5.2.1 O Mel do Melhor de um Leitor Desvairado........................................... 113

    5.2.2 Tarifa se Embarque: um Itinerrio Para Todo/Qualquer Lugar

    Nenhum.........................................................................................................

    118

    5.2.3 O que Caa na Rede de Waly Era Peixe............................................. 122

    5.3 ENTRE A ARTE E A VIDA, O CANTO.................................................... 131

  • 15

    5.4 OUTROS PROCEDIMENTOS INTERTEXTUAIS NA POESIA

    WALYANA.....................................................................................................

    138

    5.4.1 A Pardia.............................................................................................. 138

    5.4.2 A Parfrase........................................................................................... 142

    5.4.3 A Citao............................................................................................. 145

    6 CONSIDERAES FINAIS....................................................................... 148

    REFERNCIASBIBLIOGRFICAS.............................................................. 155

    APN DICE A ENTREVISTAS..... 164

    ANEXO A LETRAS DE MSICAS............................................................. 177

  • 16

    1- INTRODUO

    Os estudos sobre Modernismo / Ps-modernismo / Tropicalismo /

    Ps-tropicalismo / Concretismo / Ps-concretismo e outros movimentos deles

    decorrentes e a eles ligados, se por um lado avanaram na compreenso do que

    foram essas estticas na evoluo da literatura brasileira contempornea, por outro,

    obscureceram obras de autores de fundamental importncia para a iluminao do

    caldeiro de tendncias estticas originadas dessas matrizes. Dentre os autores que

    pontificaram na literatura brasileira a partir dos anos 60 destacamos o poeta Waly

    Dias Salomo, baiano de Jequi, que correu o mundo potico pilotando a Navilouca

    no cenrio do ps-tudo.

    Trata-se de um poeta polivalente e radical, um escritor e artista multimdia,

    uma pessoa voraz que se entregava por inteiro a tudo que fazia como algum que

    tinha pressa em exercer toda a sua criatividade. Senhor de uma histria bastante

    enviesada, com direito a prises, represso, milagres brasileiros e onda neoliberal.

    A sua intrigante escrita e extraordinria capacidade de transitar nas mais diferentes

    vertentes das artes, mesclando tradio e modernidade, erudito e popular, escrito e

    oral em diferentes cdigos, foram fatores que nos despertaram o desejo de no

    apenas ler esse poeta marcado por uma nsia devoradora da cultura, mas,

    sobretudo, nos debruarmos mais refletidamente sobre a natureza reinventada do

    seu fazer literrio.

    Waly freqentemente definido com muitos adjetivos. A ele cabem os rtulos

    de ensasta, poeta, msico, parodista, teatratrlogo, performer, aventureiro e

    promotor cultural. Um homem da fico, da poesia e da arte em geral, da vivncia e

    da inveno de diversas formas de arte, como vemos nas diferentes etapas de sua

    obra desde os fragmentos do seu primeiro texto publicado (1972) Me segura queu

    vou dar um troo que foi redigido no crcere, formado de delrios textuais

    programticos (uma escrita tumulturia sintomtica do discurso da poca, onde

    loucuras e viagens, parania e violncia so o pano de fundo de uma experincia

    mltipla e contraditria) at Pescados Vivos (2004), obra pstuma, em que o poeta

    no separa os fatos vividos dos fatos inventados. WS no se deixou apreender com

  • 17

    facilidade: provocou elogios e crticas, estimulou discusses e polmicas. Sua vida

    foi um verdadeiro paradoxo.

    H de se conhecer esse homem, uma figura no mnimo nica, que produziu

    uma obra to significativa e provocadora, atenta s questes sociais de seu tempo,

    ao papel da literatura, do escritor, do artista, evoluo da arte e sua funo social.

    O poeta Waly Salomo foi um leitor voraz da cultura universal e nacional, como

    tambm, um criador robusto de obras de fluxos intersemiticos os mais

    surpreendentes, inusitados, polissmicos e heterogneos. Um escritor muito bem

    antenado com o seu tempo. Sinal claro desses fluxos foi a sua grande

    aproximao com as artes plsticas, com a arte eletrnica, com a msica, o teatro e

    a literatura. Waly foi doubl de letrista, produtor musical e cultural, alm de

    ambientalista, organizador de coletneas, agitador cultural, propagandista,

    publicitrio, guerrilheiro. Enfim, mltiplo.

    Waly tornou-se conhecido no Brasil pelas composies da MPB e pela sua

    participao nos movimentos contraculturais ao lado de Gilberto Gil, Torquato Neto

    entre outros e no pela poesia. preciso ler Waly para melhor compreender o

    dilogo constante de suas obras com a tradio literria e com a

    contemporaneidade. Por isso, inevitvel, comear falando dele prprio, do seu

    jeito, suas formas, suas faces de 1.001 mscaras como afirma Antonio Risrio:

    Waly um farsante declarado e colorido num ambiente cultural infestado por

    beletristas seriosos e cinzentos.

    Filho direto do Tropicalismo, Waly uma das caras - metades dos nossos

    anos 70. Enquanto uma parte da nossa juventude fugia para o exterior tentando

    salvar a prpria pele do terror da ditadura brasileira, outros aderiam ao desbunde

    (forma que a contracultura assumiu nos anos, ento, tristes e brutais trpicos). Waly

    foi um dos cones dessa contracultura tropical e, enquanto baiano, descendente

    legtimo da verve cida de Gregrio de Mattos com o emaranhado retrico do Padre

    Antonio Vieira.

    Depois das aventurosas cenas dos anos 70, Waly ocultou sua voz, recolheu

    suas armas por 11 anos, foi produzindo no silncio e s retornou em 1983 com a

    obra Gigols de bibels. Nesse livro ele reedita o Me segura... e, junta a ele vrias

    letras musicadas e textos mais experimentais e menos delirantes. Ainda nos anos

    80, Waly prepara coletneas pstumas de amigos: Os ltimos dias de Paupria,

  • 18

    textos de Gelia Geral de Torquato Neto, e Aspiro ao grande labirinto, artigos e

    escritos de Hlio Oiticica de quem lanou tambm uma biografia nos anos 90; dois

    grandes companheiros de gerao prematuramente mortos e dos quais Waly tomou

    para si a responsabiliade da guarda da memria artstica.

    Waly exerceu o cargo de Secretrio Nacional do Livro e da Leitura no

    Ministrio da Cultura em 2003. Seu maior sonho, nesse cargo, era transformar o livro

    em carta de alforria. Para Waly, s a leitura liberta, induz o homem a pensar: pensar

    livremente, formar livremente; esse era o legado verdadeiramente radical do esprito

    novo. Waly era um sonhador, e dizia como Shakespeare: somos feitos do mesmo

    material de que so feitos os sonhos, o sonho no pode acabar. Sua performance

    literria iniciou-se por volta dos anos 60 e aportou nos dias atuais atravs de

    diversas formas de arte. Foi um intelectual que soube beber nas duas fontes; foi

    buscar na tradio acadmica letrada, os elementos, o material para o seu fazer

    literrio, numa linguagem de maior acessibilidade, numa nova tica, hbrida e

    instigante.

    Vale esclarescer que este trabalho, como se expressa no ttulo, no se

    resumiu apenas ao estudo da obra Algaravias de Waly Salomo, mas, destinou-se a

    apontar como o poeta embaralhou todos os cdigos, jogou com todas as cartas,

    dissolveu todas as fronteiras e somou todas as linguagens dentro de um mesmo

    suporte: a literatura. Este estudo se situou na perspectiva dos estudos culturais (sem

    avano no social) onde a literatura acolhida como prtica intersubjetiva,

    construindo assim, uma ponte entre o literrio e o cultural sem postular o predomnio

    de um sobre o outro. Nesta direo, vale relembrar Baudrillard (1991) para quem

    desmultiplicao, proliferao e disperso aleatria constituem o esquema prprio

    de nossa cultura.

    Apesar da importncia de divulgar a poesia de Waly Salomo, considerando

    que o mesmo alm de ser pouco conhecido, visto entre ns, como letrista da MPB

    e no como poeta, nossa pesquisa teve como foco principal estudar a criao

    potica desse baiano ousado, inquieto e irreverente, dado, agridoce, curioso e

    levado, como afirma Risrio, apontando suas afinidades com a tradio barroca. A

    partir de marcas textuais prprias do tratamento esttico aqui preconizado,

    analisamos tambm as estratgias textuais utilizadas pelo autor nas quais as

    caractersticas de uma cosmoviso barroca/neobarroca so fortemente percebidas.

  • 19

    Comeamos por discutir as Vanguardas, seus conceitos e aporia, sua

    trajetria no contexto brasileiro com base em autores como Jorge Schwartz,

    Edoardo Sanguinetti, Gonzalo Aguillar, Otlia Arantes, Maria Eugnia Boaventura,

    Antonio Risrio, Eduardo Subirats, Philadelpho Meneses e Ferreira Gullar. Em

    seguida, mostramos a insero do poeta WS no contexto das vanguardas, com o

    objetivo de apontar para a atualidade de sua poetica relacionada a muitas das

    propostas desses movimentos da poesia brasileira, que no se limitaram a um

    determinado contexto histrico, mas relacionaram-se, inclusive, com experincias

    realizadas nos dias de hoje, no campo da poesia eletrnica ou digital.

    Os anos 60/70, perodo da polmica trajetria das vanguardas poticas

    brasileiras representadas pela poesia Concreta, Neoconcreta, Prxis e Poema

    processo com base na anlise de alguns procedimentos tcnicos, conceitos tericos

    e princpios formais, bem como, nas prticas poticas desses movimentos

    enfocaram as correntes literrias manifestadas nessa efervescncia cultural,

    sobretudo, o Tropicalismo ao qual tambm Waly Salomo esteve ligado.

    Waly, a partir desses movimentos, fez uma releitura criativa dessa herana

    cultural, ao mesmo tempo em que dialogou com formas e procedimentos da

    vanguarda internacional e nacional (e em particular com a Poesia Concreta,

    Neoconcreta, Tropicalista), visando reinveno da escrita e mesclando recursos da

    literatura, da msica, da pintura e outras formas de expresso. A escrita renovada

    de WS demanda outro tipo de recepo por parte do leitor, que participa da

    descoberta ou da construo de significados, numa reinveno da leitura.

    Ao aprofundar a leitura de autores da cena cultural a partir dos anos 60,

    enfatizando a srie literria, encontramos na potica de Waly Salomo, matria para

    maior entendimento do que foi e o que hoje a produo potica das ditas

    vanguardas e, mais importante ainda, de como frutificaram essas tendncias,

    digeridas, relidas e recriadas por um autor que, ao lado do trabalho como produtor

    cultural foi um poeta que refletiu sobre a literatura, produzindo textos de excelncia

    potica inegvel. Um fazer potico permeado por ironias com um tipo de escrita

    marginal, de perfil confessional e que alimentava as vozes histricas e depressivas

    nos anos1970, em sua sanha de experincias de dor, sufoco e

    neonaturalismo (SUSSEKIND, 1988: 42-43).

  • 20

    No segundo captulo abordamos sobre os conceitos da palavra algaravias e

    sua relao com a potica walyana dentro de um contexto cultural hbrido e

    contemporneo. Partindo da relao dicotmica Barroco x Modernidade apontamos

    tambm para os conceitos de Ps-modernidade ou Ps-tudo sob o prisma de vrios

    autores utilizados neste trabalho como sendo um conceito complexo que segundo

    Severo Sarduy e Omar Calabrese pode ser considerado Neobarroco. Waly visita a

    tradio barroca ao mesmo tempo em que explora as possibilidades da inveno

    esttica de outros meios de expresso situando-se no territrio das vanguardas da

    segunda metade do sc. XX. A estratgia criativa adotada pelo poeta incita a

    participao inteligente do leitor para a descoberta de muitas vias interpretativas.

    Focalizamos, na poesia de Waly Salomo, alguns aspectos caractersticos do

    neobarroco que favorecem a transgresso das normas, a manuteno das

    dualidades, a convivncia de elementos heterogneos, a profuso aparentemente

    catica de elementos, a ambigidade, a fragmentao, o hibridismo, a constante

    presena do conflito, entre outros. perceptvel ainda a presena da ironia, do

    labirinto e do paradoxo como traos barroquizantes na potica walyana alm de

    outras riquezas figurativas como as metforas, metonmias, antteses, hiprboles,

    hiprbato, que lhe entranha toda tessitura potica.

    No captulo que trata dos dialogismos e das intertextualidades focalizamos os

    dilogos culturais entre literatura e outras artes com nfase para a aproximao

    entre msica, literatura e artes plsticas. O adensamento dessa pesquisa bebe

    tambm nas fontes de Bakhtin e Kristeva por tratarem os referidos tericos da

    reverberao de vozes entre si, propiciando o dilogo: sem o intertextual no pode

    haver o textual. Dedicamos tambm uma ateno especial ao sub-captulo que trata

    da relao da poesia de Waly com as artes plsticas considerando os Balilaques

    parte importantssima de sua produo. Dos procedimentos intertextuais percebidos

    na poesia de Waly destacamos a pardia, a citao e a parfrase, estudo em que

    buscamos suporte nas teorias de Linda Hutcheon e Afonso Romano de SantAnna.

    Reconhecendo a intensa articulao nos discursos walyanos nos quais o

    autor recorre sempre aos planos verbal e/ou no verbal bem como aos planos de

    outras artes e outras reas, apontamos para o fato de se poder escutar a

    plurivocidade no mbito da lgica multicultural. A poesia de Waly se fez e se

    manteve muito ligada a vrias formas de arte: msica (autor de mais de 70 canes

  • 21

    da MPB), pintura, teatro, como tambm ao esprito libertrio das vanguardas

    artsticas do sculo XX que contriburam para lev-lo a se expressar no apenas em

    prosa ou versos. Sua esttica sem fronteiras aproximou a msica da literatura, das

    artes plsticas, da vida no palco e da heterognea discursividade, um dos aspectos

    fundamentais de sua produo literria.

    Analisamos a produo de Waly Salomo com recorte para a poesia, sua

    trajetria multicultural e crtica considerada no contexto do Modernismo / Ps-

    modernismo que, com diferentes inflexes, predominou nesse perodo no panorama

    internacional. Para chegar forma desejada deste trabalho foi preciso intensificar

    leituras e leituras prospectivas de textos que se inserem nas correntes Moderno /

    Ps-moderno / Neobarroco alm das obras do autor analisadas luz das

    intertextualidades literrias. As obras relacionadas para esta anlise so: Algaravias,

    Tarifa de Embarque, Lbia e Pescados Vivos, todas relidas na coletnea O Mel do

    Melhor.

    Por tantas vezes nos indagamos: por que estudar a poesia de Waly Salomo?

    Ao ler seus textos perguntavmos pelo que Waly afinal , que estilo tem esse

    poeta? Que fora estranha anima seus versos, seu corpo aparentemente to afeito

    ao palco da vida, s produtividades disruptoras, s hibridizaes trgicas, s

    impuras secrees, s adlteras misturas, faina onvora do mundo? No so

    simplesmente perguntas retricas, pois so tais foras que balizam a sua produo

    escrita naquilo que ela tem de mais imediatamente conectado vida cultural Essa

    inquietao adveio do impacto que seus poemas nos causaram e, como ao l-los

    ramos seduzidas a tantas outras leituras e outras linguagens e outros discursos:

    lingsticos, literrios, histricos, filosficos, antropolgicos, artsticos e culturais,

    sobretudo outra forma de pensar a cultura como sendo a soma das diferenas.

    Ao adentrar nos textos walyanos percebe-se de imediato que, por mais que

    se fale de suas obras, resta sempre, como no primeiro momento, linguagem, sujeito,

    ausncia. Sua escrita no forma um segmento especfico nem tem limites definidos.

    Ela se atropela constantemente pelos diferentes cdigos e vises que se aglutinam

    a sua volta, gerando diferentes perspectivas e mltiplas leituras. Escrever sobre

    Waly correr o risco de se dizer alguns dos vrios e inevitveis clichs que so

    repetidos sobre ele, como ele prprio enfatiza no poema:

  • 22

    Quem fala que sou esquisito hermtico por que no dou sopa estou sempre eltrico Nada que se aproxima nada que estanho Fulano sicrano beltrano Seja pedra seja planta seja bicho seja humano Quando quero saber o que ocorre a minha volta Ligo a tomada abro a janela escancaro a porta Experimento invento tudo nunca jamais me iludo Quero crer no que vem por a beco escuro Me iludo passado presente futuro Urro arre i urro Viro balano reviro na palma da mo o dado Futuro presente passado Tudo sentir total chave de ouro do meu jogo fsforo que acende o fogo de minha mais alta razo E na seqncia de diferentes naipes Quem fala de mim tem paixo. (SALOMO, 1983, p. 11)

    Esse tipo de sabedoria fornece a Waly as linhas, o norte para os gestos de

    sua escrita. um sujeito despachado que escreve como um exerccio de vida. Suas

    vozes vo se sucedendo, sobrepoem-se como camadas cada uma com sua

    sedimentao prpria. So imagens que permitem ao leitor atento observar as

    mltiplas faces nas brechas da escrita de um fazer ativo como criao da vida e da

    vida como criao. Escrever, para Waly, e colocar-se em perdio diante de si,

    diante dos outros, diante da vida. Sua voz seu gesto, seu corpo, seu ser feito

    pssaro em pleno vo.

    Segundo o professor Sandro Ornellas da Universidade Federal da Bahia em

    seu ensaio Waly Salomo e o teatro do corpo (2008), Waly politizou seu discurso

    na farsa do Me segura... , quando escreveu como presidirio, sambista militante

    esquerdista, maconheiro, capoeirista, surfista ou retirante nordestino, grupos com

    seus jarges compostos por tiques verbais, fluxos frasais, gaguejos, palavras-valise

    como cdigo secreto, que impede qualquer tipo de captura e cooptao por parte

    dos aparelhos de significao da Lei. O baiano soube driblar tantas situaes, tantas

    linguagens e transpor tudo isso para a escrita apontando nos seus textos os sujeitos

    minoritrios. Jos Miguel Wsnik chegou a afirmar que Waly era um agrupamento

    verbal, uma enunciao grupal, um corpo que se escrevia por sujeitos-fluxos,

    seriados e paralelos como linhas simultneas que se cruzam, se tocam e se

  • 23

    contradizem, no por um simples movimento linear: marginal e artstico, sambista e

    escritor, retirante e cosmopolita, popular e erudito, guerrilheiro e militar, clandestino

    e desbundado. (WISNIK, 1989: 173).

    No podemos negar que o fascnio pelas obras de Waly nos veio pelas

    canes, entre elas, Alteza, Mel, Olho dgua, Vapor Barato, etc. Este fato nos

    provocaram inquietaes em querer saber mais sobre o autor dessas letras. A

    fascinao um bom comeo numa pesquisa, mas muito perniciosa para

    sustent-la. Ao comparar muitas de suas letras a outros poemas nos intrigava,

    chocava at. Resolvemos intensificar um estudo sobre o contexto em que viveu

    Waly Salomo e digo como o prprio Waly, quanto mais nos aproximvamos do

    tema mais distante nos encontrvamos dele. Decidimos ento buscar maiores

    informaes em pessoas que conviveram com Waly. Elencamos uma srie de

    questionamentos e partimos para as entrevistas. Primeiro entrevistamos o ento

    Ministro da Cultura Gilberto Gil, companheiro dos movimentos contraculturais ao

    lado de Waly. Com Gil estivemos durante horas degustando os relatos das

    experincias de vida entre os dois astros; em seguida, visitamos o professor, escritor

    e cineasta Jomard Muniz de Brito com quem dialogamos sobre o fazer potico de

    Waly. Eis sua resposta sobre o assunto:

    Waly fazia a psicanlise dele no cotidiano. A poesia de Waly so as rasgaes de seda do cotidiano. So os rasgos do mel e do fel. Waly um poeta cido, diz coisas fortssimas sobre a Bahia, as queimaes todas, as desgraas todas; no s elogios; ele escreve coisas cidas, o humor corrosivo sobre a Bahia. Ele sempre foi uma pessoa arrebentadora, gritava para o mundo o que sentia, um crtico virulento. A postura de Waly era muita de assumir a terceira margem, a quarta margem, a margem da margem da margem; o avesso do avesso; desafinava o coro dos contentes e contrariava os cnones para dizer do seu estar no mundo. (Entrevista em 03 de agosto de 2007).

    Neste contexto, apontamos outro fator relevante: a visita a Jequi no serto

    baiano onde nasceu Waly. Foi uma experincia emocionante, pois ali pudemos

    encontrar no s personagens histricas com as quais Waly conviveu, mas,

    sobretudo, descobrimos a sua famlia. Em Jequi ainda residem 04 irmos:

    Guilherme, Omar, Kandija e Sinara e foi estimulante conversar com eles. Sinara foi

    a pessoa escolhida, por eles, para nossa entrevista, que emocionada nos disse:

  • 24

    custou a gente entender por que ele pensava diferente e no se contentava com a

    mesmice; Waly nasceu pra o mundo, pensava alto, sonhava grande, ele sempre

    quis mostrar que era possvel fazer diferente.

    Waly produziu suas obras desde a fase transgressora da represso dos anos

    60; bebeu na antropofagia oswaldiana e aportou na contemporaneidade como uma

    voz dissonante na literatura brasileira. Com um p nos Clssicos e outro nos

    Modernos tentou equilibrar-se entre msica, poesia e outras artes e assim construiu

    suas algaravias, onde s os momentos trocados pelo olhar potico conseguem

    contar. Nesse sentido, vale assinalar que, desde sua estria com o Me segura...

    Waly metabolizou tendncias e dissipou fronteiras sempre aberto a novas de(s)

    colagens, sem nunca se deixar vencer ou se render ao cansao gerado pela figura

    engessada do cnone: no cultivei nem cultivo a palidez altiva (SALOMO,

    2000:30). Inconformado, frequentemente rechaou toda forma de carapua e

    congelamento que lhe fosse imposto.

    Nas consideraes finais desta tese enfatizamos que trabalhar com a

    produo literria de Waly Salomo um grande desafio dada a complexidade de

    sua obra. No fcil classificar uma obra em que quase tudo indefinido. No

    entanto, foi essa complexidade que nos atraiu como j tem atrado a tantos

    estudiosos, poetas e pesquisadores como Antonio Risrio, Antonio Medina, Antonio

    Ccero, Leyla Perrone-Moiss, Davi Arrigucci, Jos Miguel Wisniik, Walnice Nogueira

    Galvo, Helosa Buarque de Hollanda, Evando Nascimento que referendaram suas

    obras.

    A importncia e pertinncia dessa pesquisa se justificam, considerando a

    relevncia da obra Waly Salomo para a literatura brasileira. Procuramos tambm

    demonstrar o quanto a poesia de Waly, alm de ser reconhecida no meio artstico

    musical, merecedora de estudos crticos acadmicos, por apresentar

    caractersticas de valor artstico-literrio de acordo com as teorias aplicadas poesia

    em geral. Ao apresentar Waly como um poeta neobarroco, visamos contribuir com

    mais um material de consulta e de estudos para os que porventura se enveredarem

    tambm por esses descaminhos.

  • 25

    2- VANGUARDAS POTICAS COMTEMPORNEAS

    2.1- VANGUARDAS: CONCEITOS E APORIAS

    O plural designativo do termo vanguarda assinala a convergncia, num

    quadro histrico determinado, de movimentos estticos que, semelhana das

    vanguardas militares, se propunham sobrepor-se s correntes at ento

    hegemnicas. A palavra vanguarda designa parte de um exrcito que avana na

    linha de frente de um combate para se antecipar ao corpo principal de soldados e

    defend-los. por esse caminho que se discute a questo de uma vanguarda

    poltica. Para o poeta e crtico alemo Hans Magnus Enzensberg, em Aporias de

    Vanguarda (1971), a palavra passou da noo de estratgia militar para as artes por

    volta de 1850, na Frana revolucionria. A partir desse momento, a palavra

    vanguarda assumiu um sentido figurado que vai ocultar seu significado original.

    J no seu nascedouro, o termo comporta uma srie de acepes antagnicas.

    Poggioli ( 1986:82-83) relata que seu primeiro uso em arte remonta a 1845 quando

    de sua entrada definitiva no cenrio literrio e artstico depois de ser usado por

    Baudelaire. Podemos ento dizer que a vanguarda passa a fazer parte do iderio

    da modernidade ainda que s venha a se instaurar como fenmeno esttico

    significativo nas artes com o Futurismo italiano, meio sculo depois. o momento

    em que os prprios artistas se auto-denominam vanguardistas e a palavra adquire

    um teor mais explcito de projeto artstico-cultural.

    Para o crtico Antonio Risrio expresses como vanguarda cientfica ou

    vanguarda artstica se encontram, evidentemente, mais distantes da rea

    semntica do militarismo. A vanguarda cientfica diz respeito questo das

    inovaes criativas no terreno das cincias, como a biologia, a qumica ou a fsica. E

    a vanguarda artstica designa um grupo autoconsciente, programaticamnete

    empenhado na renovao sistemtica dos procedimentos estticos. Como quer que

    seja, as acepes da palavra vanguarda extrapolam qualquer tentativa de absoluta

    preciso terminolgica, dada a diversidade de cada cultura onde a radicalizao das

    propostas estticas se produziu na tardia-modernidade. no incio do sculo XX que

  • 26

    o termo ganha o contorno preciso de vanguarda artstica, desvinculando-se daquele

    designador de artistas ligados vanguarda eclusivamente poltica. Vanguarda

    designa aquilo que pioneiro, que est frente, o fator revolucionrio, inovador, que

    prope uma nova tica, um novo modo de expresso. ela que gera a

    modernidade.

    O surgimento dos movimentos de vanguarda no comeo do sculo XX

    provocou uma transformao cultural a qual ainda hoje vigora. Nos anos cinqenta

    e sessenta, as vanguardas resgataram o que j havia sido formulado pelas primeiras

    vanguardas do incio do sculo - Vanguarda histrica, no que se refere idia de

    vanguarda como grupo unido a uma doutrina e disposto a romper com a ordem

    estabelecida. Uma vanguarda isolada, sem desdobramentos ou sem rivais uma

    impossibilidade histrica. Como movimentos ou formaes, as vanguardas

    participaram ativamente durante perodos relativamente curtos, mas os

    procedimentos artsticos vanguardistas perduraram ao longo do sculo. Quando

    uma delas cumpre o seu priplo, inicia-se uma nova, que igualmente se extingue ao

    realizar o seu projeto, e assim sucessivamente (POGGIOLI, 1986:83)

    De modo genrico, as vanguardas caracterizam-se pelo culto do niilismo,

    agonismo, futurismo, decadncia, numa palavra, pela ruptura total e irrestrita com o

    passado nas suas mil formas e nas suas mltiplas solues (POGGIOLI, 1986; 61-

    77). No terreno da poesia, as vanguardas caracterizam-se em trs formas de

    rebelio: 1- contra a beleza o desdm tradicional exigncia da beleza, tanto no

    objeto como na sua representao artstica, em razo do apoio tcito numa

    esttica heternoma, metafsica e racionalista; 2- contra a rima e os moldes

    formais, tendo em vista a criao de um novo instrumento potico, paradoxalmente

    arquimusical, que se denominava verso livre; 3- contra a linguagem a poesia

    deve resolver os seus prprios problemas com os seus prprios meios, reduzir-se a

    expressar-se sem mais pr-fabricao do que a palavra; chegar ao leitor e nele

    permanecer sem o auxlio mnemotcnico da rima, de forma que se reduza a slaba

    linguagem potica (MORENO 1988: 63-65).

    Divisadas, todavia, a posteriori, parecem delimitadas no tempo: fenmeno

    sem precedentes na tradio cultural do mundo ocidental (idem: 163), as

    vanguardas nas artes plsticas, na msica e na literatura desenvolveram-se

    primordialmente nas duas primeiras dcadas do sculo XX, mais propriamente,

  • 27

    entre 1907, com o Cubismo e 1924, com o Surrealismo. Obviamente, a etimologia

    da palavra vanguarda no a define nem a caracteriza, mas assinala, quando

    menos, o espao virtual que preenche em relao s foras estticas reinantes em

    determinado momento. Demarc-las, descrev-las, constitui, at certo ponto,

    pleonasmo: a definio implica-lhe as caractersticas, intrnsecas ou extrnsecas, e

    estas supem uma definio, que no nica nem imutvel.

    Como definir uma prtica to disseminada e controvrsia? Peter Brger, em

    sua obra Teoria de Vanguarda (1980), define as vanguardas a partir de critrio

    nico: a superao da instituio arte. A oposio entre prxis vital e instituio

    arte o trao bsico das vanguardas histricas tal como ele as denomina e

    essa tenso se expressa na superao da autonomia da obra. Muito embora

    saibamos que um critrio nico corre o risco de se desconsiderar as relaes

    contingentes sobre as quais se estrutura cada movimento de vanguarda.

    Dialogando sobretudo com Adorno, Lukcs e Benjamin o professor alemo

    visa, em seu ensaio, reavaliar as relaes entre arte e sociedade na primeira metade

    do sculo passado, bem como, suas possveis conseqncias na outra metade, com

    o advento das Neovanguardas. Se, por um lado, alguns aspectos do pensamento de

    Brger parecem hoje um tanto enrijecidos, com uma noo de classe social tributria

    da realidade vivenciada por Marx no sculo 19, noo a ser, portanto

    redimensionada, por outro, suas conceituaes so de grande atualidade,

    merecendo todas as discusses que as cercam, desde a divulgao inicial. Mesmo

    quando se discorda, aprende-se muitssimo com o autor.

    A tese fundamental do livro que a vanguarda prope uma autocrtica,

    refletindo sobre os prprios recursos artsticos no momento em que a autonomia da

    arte atinge o pice na sociedade burguesa. A expresso autonomia da arte

    significa que uma parte da produo cultural se separou, ganhando foros de

    independncia. Trata-se, portanto, de uma abordagem poltica da esttica, a qual

    teria se desvinculado dos outros processos sociais ou do que Brger chama de

    prxis vital. As vanguardas histricas ( sobretudo Dadasmo e Surrealismo) teriam se

    incumbido de romper com esse esteticismo que segrega a arte do contexto social.

    Em suma: os movimentos histricos de vanguarda negam determinaes que so

    essenciais para a arte autnoma: a arte deslocada da prxis vital, a produo

    individual e divorciada desta, a recepo individual.

  • 28

    Na primeira parte de sua Teoria de Vanguarda, Peter Brger levanta uma

    discusso acerca dos movimentos histricos de vanguarda com base em suas

    tentativas de transgredir os limites da arte como instituio e romper com a idia da

    arte como representao. Ele estabelece duas teses: na primeira, diz que a

    vanguarda permite reconhecer determinadas categorias gerais da obra de arte na

    sua generalidade, e que, portanto, a partir da vanguarda podem ser conceitualizados

    os estgios precedentes no desenvolvimento do fenmeno arte nas sociedade

    burguesa, mas no o inverso. Na segunda, afirma que o subsistema artstico atinge,

    com os movimentos de vanguarda europia, o estado da autocrtica. Mais adiante, o

    terico usa o Dadasmo como exemplo, afirmando que este foi o mais radical dos

    movimentos da vanguarda europia, j que no critica as tendncias artsticas

    precedentes, mas a instituio arte tal como se fosse sociedade burguesa.

    O terico revela, no entanto, que as vanguardas das dcadas de 1950 e

    1960, as chamadas neovanguardas, nem chegaram perto das vanguardas histricas

    no que diz respeito ao valor de protesto e efeito de choque, embora possam ter sido

    mais bem arquitetadas que as antecedentes. Para Peter Brger, elas so ineficazes,

    pois repetem um gesto que era inicialmente uma provocao como resposta

    autonomia esteticista da arte. Essa a grande aporia sinalizada pelo autor e que

    reverberam tambm na produo contempornea: emergindo com o propsito de

    gerar um choque, que por sua vez desestabilizaria a instituio arte para romper

    com o esteticismo e propiciar uma experincia que fizesse convergir arte e

    sociedade. A repetio do gesto vanguardista acaba por se institucionalizar e por

    reforar a acomodao esteticista. Isso corresponde ao que Octavio Paz, em seu

    tambm fundamental Os filhos do barro, chamou de tradio de ruptura, ou seja,

    de tanto romper em nome do novo, a prtica vanguardista geraria o efeito oposto,

    engendrando outra forma de tradio.

    A partir desses dois grandes pensadores da Vanguarda, Brger e Paz, muito

    se pode refletir atualmente sobre a questo. Para Brger a neovanguarda

    institucionaliza a vanguarda como arte e nega assim as genunas intenes

    vanguardistas. As neovanguardas contradizem as intenes da vanguarda histrica

    no que diz respeito ao rompimento com a instituio arte, por isso elas podem ser

    vistas como afirmao de uma regresso, um anacronismo. Ao institucionalizar a

  • 29

    vanguarda como arte, as neovanguardas cumprem o destino que lhes est

    reservado: j nascem historicizadas (PIZZARRO, 1995: 3vl. 355-356).

    Segundo Octvio Paz (1993) o que distingue a modernidade brasileira de

    outras pocas, no a celebrao do novo simplesmente, ou do surpreendente,

    mas, sobretudo, a questo de ser uma ruptura; crtica ao passado imediato e

    interrupo da continuidade. Como esttica de ruptura o vanguardismo refrata a

    imagem incidida e deslocada da sociedade da poca, a crise de valores, o colapso

    espiritual, a vertiginosa mutao tecnolgica e a modernizao urbana; a

    insurgncia de setores marginalizados e de ideologias sociais desfaz esquemas

    tradicionais e exigem novos meios expressivos aptos a representarem a cambiante

    multifacetada realidade.

    O que se nota, das vanguardas histricas as neovanguardas, pode ser

    definido, de um modo mais amplo, tomando-se o sintagma vanguarda esttica

    como sinnimo de ao grupal empenhada na negao do passado esttico

    imediato, mergulhada num processo de auto-questionamento permanente e em

    busca programtica do novo no contexto cultura urbano-industrial, sob os signos da

    presso das massas e da efetiva globalizao do planeta. A prpria poca em que

    surgiram as vanguardas vista, por seus agentes sociais como radicalmente distinta

    de tudo o que aconteceu antes.

    O cerne de todos os movimentos de vanguarda formal se desnuda com a

    ruptura ostensiva com o passado e a agresso s convenes ditas realistas ou de

    cpias sensveis. O esprito moderno aproxima futuristas e ultrastas, criacionistas e

    dadastas, desvairistas e estridentistas1. Quase todas as teorias de modernidade de

    Jauss Jlia Kristeva esto baseadas na idia de que a arte moderna se caracteriza

    pela ruptura com os cdigos dados ou pr-estabelecidos ( SCHWARTZ, 1995:22).

    Os escritores vanguardistas superam a intransigncia lapidada de seus

    primeiros pronunciamentos e se acentuam na fisionomia dos diversos movimentos

    cujo objetivo era quebrar esquemas rgidos e adequar a literatura ao novo ritmo da

    vida moderna e inventar meio de representao que apontem a espontaneidade, a

    1 Estridentismo um movimento interdisciplinar artstico que comeou 31.12. 1921 de dezembro na

    cidade de Mxico, depois do lanamento do manifesto Atual N1 para o poeta Manuel Bordos Bordo.

    Este movimento no tem uma data de declnio preciso e em autores ainda est acontecendo nos

    anos 80 e 90 do sculo de XX

  • 30

    dissonncia, o imprevisto e o fragmentrio ( Cf. HOLLANDA 1981). As vanguardas

    estticas apresentaram-se como espcie de ponta de lana no processo do

    modernismo brasileiro, no processo de autonomizao da arte. Elas encontraram

    cho frtil, diz Ferreira Gullar (1989), na periferia onde o desejo ardente do novo era

    mais forte que as condies objetivas da modernidade. Alguns vanguardistas mais

    lcidos como Csar Vallejo, Maria Tede e Mrio de Andrade recusaram a mitologia

    da mquina e os traos da retrica fascista que a obra de Marinetti trazia em seu

    bojo.

    A vanguarda apresentou variedade de caminhos nas diversas instncias do

    fazer narrativo: nas representaes dos espaos, no sentimento do tempo, no grau

    de oralidade dos dilogos, na autenticidade do tom e na formao do ponto de vista.

    Embora seja comum enquadrar as Vanguardas Latino Americanas no perodo dos

    anos 20, vemos que em 1909 Ruben Dario, modernista hispano-americano o

    primeiro a publicar uma resenha sobre o inovador trabalho de Marinetti, o Manifesto

    Futurista. E nesse mesmo ano aparece, no Brasil, a primeira meno ao Futurismo

    feita por Amante Diniz em jornal da Bahia.

    Vrios tericos situaram as vanguardas na Amrica Latina no perodo que vai do

    final da 1 guerra 1919 at a crise econmica, poltica e cultural provocada pela

    queda da Bolsa de Nova York em 1929. Jorge Lus Borges adota 1922 como data

    inicial geradora da era das letras. O escritor mexicano Jos Emlio Pacheco um

    dos primeiros crticos contemporneos hispano-americano a chamar a ateno para

    a internacionalizao do fenmeno de 22. A semana de 22 o divisor de guas na

    cultura e nas artes no Brasil. Angel Rama, crtico literrio uruguaio, considera o

    histrico evento como ingresso oficial das Vanguardas Latino-americanas. Dado o

    carter radical de suas reinvidicaes, dada a negatividade dos cdigos com que

    opera a Vanguarda tanto artstica quanto literria se define pela ruptura. E afinal de

    contas, as rupturas podem ser os pontos-chave do conhecimento porque so elas

    que revelam as contradies da cultura e da vida.

  • 31

    2.2- AS VANGUARDAS POTICAS NO BRASIL

    No final da dcada de 1950 e de 1960, no Brasil, no campo das artes

    plsticas, a partir do Concretismo e do Neoconcretismo, os artistas de vanguarda,

    baseados em consideraes e experimentaes sob alguns aspectos semelhantes,

    mas, sob outros, diferentes das que haviam sido feitas na Europa pela vanguarda

    histrica, sentiram a necessidade de quebrar as compartimentaes, as categorias e

    os gneros artsticos.

    Os movimentos de vanguardas surgidos no Brasil a partir dessas dcadas

    recuperam as idias fundamentais do Modernismo em dois aspectos: primeiro como

    os poetas da gerao de 1922, os textos desses vanguardistas demonstraram a

    busca de mensagens ou de temticas que fizessem do poema um testemunho

    crtico da realidade sociopoltica nacional; segundo, a procura de cdigos, os quais,

    rejeitando a tradio do verbo, tornassem o poema um objeto de linguagem de fcil

    percepo, integrado - ou integrvel - na estrutura dos meios de comunicao de

    massa ( LONTRA, 2000: 14).

    Carlos Andr Carvalho, em seu livro sobre o Tropicalismo (2008), afirma que

    no ser difcil mostrar que a cada manifestao coletiva ou a cada ensaio

    individual, h uma preocupao de expressar- seja em verso ou em prosa- a

    essncia da nossa nacionalidade. A preocupao com a nacionalidade, a nsia em

    retratar as circunstncias locais, o modo de vida, de pensar, de sentir do homem

    brasileiro vem desde os nossos primeiros textos barrocos, como muito bem lembra

    Hilda Lontra. O discurso nacionalista j vinha tentando caminhos prprios,

    irregulares e rebeldes desde os momentos iniciais da Literatura Brasileira, quando a

    situao de colnia praticamente forava os autores a assumirem uma atitude

    pacfica e submissa diante da metrpole. Entre os romnticos, no entanto, essa

    busca veiculada pela palavra no foi harmoniosa nem regular. Diz Hilda Lontra:

    Com o advento do realismo literrio, o inconformismo cultural,

    expresso pela crtica aos ideais de nacionalismo vigente e pela busca da liberdade formal que traduzisse, com ajuste, a urgncia da reviso de valores que norteavam a cultura da nao, favoreceu a unio de artistas que partilhavam do mesmo ideal renovador (LONTRA, 2000: 12).

  • 32

    Uma nova dimenso dada poesia a partir de 1945 por conta das presses

    histricas internacionais, principalmente a recuperao dos danos causados pela

    guerra, e as circunstncias brasileiras: uma grande massa poltica economicamente

    estagnada de um lado e uma pequena minoria intelectual e socialmente privilegiada

    do outro. As bases da potica brasileira contempornea so, ento, marcadas por

    uma ideologia do desenvolvimento e uma postura que tentava registrar as angstias

    nacionais nascidas daquela situao poltica (CARVALHO, 2008: 31).

    Segundo Ana Pizarro (1995: 335), na passagem de uma dcada para outra se

    configurou uma situao curiosa para o desenvolvimento de novos movimentos de

    vanguarda no Brasil: o surto construtivista, que vindo dos anos 40 dominou a cena

    dos anos 50, ao mesmo tempo em que representava a retomada do esprito

    revolucionrio e combativo das vanguardas do incio do sculo, marcava a transio

    para o ciclo final das manifestaes vanguardistas no contexto da cultura brasileira.

    A desagregao progressiva do projeto construtivo e a proliferao de tendncias as

    mais variadas pop art, op art, arte ambiental, happenings, informalismo, novo

    realismo, nova objetividade, nova figurao etc, bem como a adaptao heterodoxa

    e contraditria dos projetos anteriores a estas tendncias novas, so sintomas

    evidentes da exausto dos princpios vanguardistas.

    O fenmeno que se agrupou sob a bandeira do Tropicalismo e que animou o

    final dos anos 60 retomou as questes da vanguarda em novo contexto, atravs da

    utilizao dos meios de comunicao e de veculos mais tradicionais como a msica

    popular. J no outra fase do processo de atualizao artstica, antes uma

    especificao das linguagens abstratas e altamente formalizadas das vanguardas

    contra o fundo real da modernizao brasileira. Em poucos anos, os rumos tomados

    pelo processo de transformao estariam distncia daqueles idealizados pela

    euforia desenvolvimentista dos anos 50 e pelo debate ideolgico das esquerdas no

    incio de 1960 ( Idem: 339).

    A poesia concreta inaugurou o segundo ciclo vanguardista no contexto da

    modernidade literria brasileira. Ao entrar em cena, oficialmente em 1956, ela

    expressa, sobretudo confiana na capacidade que a modernizao, o progresso

    tecnolgico e industrial tm de instaurar uma sociedade que desenvolver as ltimas

    conseqncias as experincias sensoriais que qualificam a arte moderna. Em seu

  • 33

    af de atualizao e de pesquisa formal, os poetas concretistas no s repuseram

    como exacerbaram seus procedimentos e tcnicas com uma ortodoxia programtica

    no encontrvel no quadro do movimento concretista internacional, nem em

    nenhuma outra manifestao brasileira anterior.

    Em dezembro de 1956 um evento realizado em So Paulo tomou de assalto

    as artes plsticas brasileiras: a I Exposio de Arte Concreta, no Museu de Arte

    Moderna (MAM), marcando o surgimento da poesia concreta. A exposio coletiva

    reuniu artistas plsticos como Hlio Oiticica, Alfredo Volpi, Lygia Pape, Waldemar

    Cordeiro e Lygia Clark; e poetas como Waldemir Dias-Pinto, os irmos Haroldo e

    Augusto de Campos, Dcio Pignatari e Ferreira Gullar. Como sabemos, exposio

    que em janeiro do ano seguinte foi apresentada no MAM do Rio de Janeiro

    conseguiu apontar algumas semelhanas entre a poesia e a pintura concretas. A

    criao das bienais de So Paulo representa, ento, o ponto culminante do processo

    de abertura e da tentativa de renovao das artes plsticas no Brasil

    Mesmo nesta primeira exposio aproximando poetas e pintores, o que

    parecia uma coisa inusitada, at ento, deve-se observar que, antes de a poesia

    concreta ser lanada oficialmente, j havia um dilogo entre os poetas Augusto de

    Campos, Haroldo de Campos, Dcio Pignatari e Ferreira Gullar com os principais

    grupos da arte concreta-Ruptura, de So Paulo, e Frente do Rio de Janeiro

    lanados quatro anos antes da exposio (idem: 34). Ainda em 1952, formou-se o

    grupo Noigandres, que reuniu Dcio Pignatari e os irmos Campos. Foi ento que

    Pignatari entra em contato com Waldemar Cordeiro, o maior expoente do grupo

    Ruptura. Gullar tambm d incio a uma amizade com o Pernambucano Mrio

    Pedrosa, crtico de arte e principal terico e divulgador da arte abstrata no Brasil.

    A Poesia Concreta sempre esteve prxima das artes plsticas e visuais e dialogou intensamente com os pintores concretos nos anos 50. O poema-coisa explorava as potencialidades grficas da palavra e mergulhava num nvel de significao que a poesia tradicional no considerava. Portanto, nada mais natural que, um dia, a viagem visual prosseguisse para o nvel no-verbal e a poesia concreta passasse a incorporar a fotografia, a colagem, o desenho e os grafismos, de toda ordem (SIMON e DANTAS, 1982:60).

    Helosa Buarque de Hollanda acredita que a poesia concreta pretendia levar o

    Brasil a falar a linguagem de um novo tempo, veiculando informaes dos grandes

  • 34

    centros, divulgando alguns de seus principais tericos, escritores, poetas e

    buscando, desta forma, atualizar a intelligentsia brasileira. No entanto, o desejo de

    realizar um objeto industrial de padro internacional: um produto nacional de

    exportao levou os participantes a cair na armadilha desenvolvimentista. Noutras

    palavras, os poetas concretos acreditavam que o Brasil estaria ultrapassando o

    desenvolvimento para adentrar numa nova era do pas desenvolvido (HOLLANDA,

    1981: 41).

    Radicalizar o mtodo construtivo dentro das linguagens geomtricas passa a

    ser uma das principais propostas da arte concreta. Com o intuito de superar o atraso

    da tecnologia brasileira e o irracionalismo uma decorrncia do nosso estado de

    subdesenvolvimento - o concretismo brasileiro procura, a todo custo eliminar o puro

    intuicionismo, a transcendncia e prope o artista informador, a partir da operao

    com uma racionalidade esttica (CARVALHO, 2008: 37) A Poesia Concreta, por

    exemplo, acentua muito a preocupao formalista da gerao de 45, mas

    acrescenta explorao dos elementos fnicos do texto o uso de tcnicas como a

    colagem, o grafismo, o desenho e a fotomontagem, amplamente empregadas pela

    literatura dita ps-moderna.

    O Neoconcretismo pronuncia-se contra o predomnio da tecnocracia, da

    mquina e ciberntica e procura resgatar dimenses metafsicas de momentos

    anteriores, dentre os quais o prprio Modernismo serve-se abundantemente da

    interdisciplinaridade, sobretudo no que concerne s artes plsticas, e realiza amplos

    experimentos com materiais alm do papel. A ruptura neoconcreta na arte brasileira

    data de maro de 1959, com a publicao do Manifesto Neoconcreto pelo grupo de

    mesmo nome, e deve ser compreendida a partir do movimento concreto no pas. O

    manifesto assinado por Amlcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weismann, Lygia

    Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis, denuncia j nas linhas

    iniciais que a tomada de posio neoconcreta se faz particularmente em face da

    arte concreta levada a uma perigosa exacerbao racionalista.

    Contra as ortodoxias construtivas e o dogmatismo geomtrico, os

    neoconcretos defendem a liberdade de experimentao, o retorno s intenes

    expressivas e o resgate da subjetividade. Uma tentativa de renovao da linguagem

    geomtrica pode ser observada nas esculturas de Amilcar de Castro. A arte interpela

    o mundo, a vida e tambm o corpo, atestam o Ballet Neoconcreto, 1958, de Lygia

  • 35

    Pape e os Penetrveis, Blides e Parangols criados por Oiticica nos anos 60. E a

    instaurao Prxis, se de um lado retoma a dimenso conteudstica e o tnus

    ideolgico que nunca faltaram ao Modernismo brasileiro, de outro lana mo de

    recursos, como a construo em processo, o espao intersemitico e o envolvimento

    do leitor, mais freqentes na poesia dos movimentos posteriores, como o Poema

    processo e a Arte Postal (COUTINHO, 2003, vl. 6: 241).

    Ao contrrio do PCC, Prxis no deseja apenas que a massa se politize, mas

    quer ela prpria encarnar um sujeito da histria que idealmente representasse a

    emancipao do povo brasileiro. A verdadeira revoluo se faz pela prxis diz

    Pizzarro e se conclui pela leitura desses poemas que so os verdadeiros agentes da

    transformao: a literatura prxis se estabelecer, em definitivo, como fazer

    histrico, quando intelectuais e povo forem leitores de uma mesma linguagem

    (PIZZARRO, 1995, vl.3: 351).

    Do Poema Processo comentamos a reao ao Estruturalismo literrio e

    filosfico, a tendncia ao ludismo e a explorao muitas vezes ousada do signo no

    lingstico, que aproxima a composio potica do desenho; do Tropicalismo, a

    preocupao com a dialtica entre o nacional e o cosmopolita e a atitude de

    carnavalizao, no sentido bakhtiniano do termo, expressa, sobretudo pelo humor e

    a pardia. O Tropicalismo, logo depois de sua exploso inicial, transformou-se num

    termo corrente da indstria cultural e da mdia. Em que pesem as polmicas geradas

    inicialmente (e no foram poucas), o Tropicalismo acabou consagrado como ponto

    de clivagem ou ruptura, em diversos nveis: comportamental, poltico-ideolgico e

    esttico.

    Apresentado como face brasileira da contracultura, ora apontado como ponto

    de convergncia das vanguardas artsticas mais radicais (como a Antropofagia

    modernista dos anos 20 e a Poesia Concreta dos anos 50, passando pelos

    procedimentos musicais da Bossa Nova), o Ps-Tropicalismo, seus heris e

    eventos fundadores passaram a ser amados ou odiados com a mesma

    intensidade.

    A Poesia Marginal aponta para a dessacralizao da obra potica e dos

    meios de produo expressa pelo carter artesanal dos livros e folhetos, escritos

    freqentemente em equipe e vendidos em entrepostos culturais variados, como

    cinemas, bares e lojas. Essa poesia foi uma prtica potica marcada por poetas que

  • 36

    queriam se expressar livremente em poca de ditadura, buscando caminhos

    alternativos para distribuir poesias e revelar novas vozes poticas. Foi um

    movimento fundado nos anos 70 cujos nomes mais marcantes foram: Ana Cristina

    Csar, Paulo Leminski, Ricardo Carvalho Duarte (Chacal) e Cacaso. As Poesias

    eram distribudas em livretos artesanais mimeografados, carregados de

    coloquialidade e objetividade.

    Em texto de 1972, publicado na coluna Gelia Geral, organizada por

    Torquato Neto para o jornal ltima hora, Waly Salomo enfatizava que a poesia de

    Chacal apreendia no apenas a poesia de Oswald de Andrade, mas tambm o

    esprito de 22. Segundo Waly: em ningum vi um entendimento to afetivo [...] do

    Caderno de Aluno de poesia de Oswald de Andrade quanto Chacal, Ricardo, autor

    desse maravilhoso Muito prazer (...). Questo de mtodo: em 72 vejo prevejo

    veremos a restaurao do pior esprito Semana Arte Moderna 22 comemorado em

    retrospectiva, Chacal o melhor esprito: aquele que sabe que a poesia a

    descoberta das coisas que ele no viu (SALOMO, 1981: 231).

    Vale ressaltar que a Poesia Marginal no foi um movimento potico de

    caractersticas padronizadas, foi um momento de liberao dos termos e expresso

    livre num momento de represso poltica nos fins da dcada de 60. A poesia foi

    levada s ruas, praas e bares como alternativa de publicao, alternativa que

    estivesse longe da censura. Tudo era considerado suporte para expresso e

    impresso de poesias, fosse um folheto, uma camiseta, xerox, apresentaes em

    caladas e etc. Foi uma poesia que se manifestou como um mltiplo desdobramento

    do Tropicalismo, como um repto Ditadura Militar que se instalaram no Brasil e que

    resultou de um determinado comportamento anti-sistema e que nasceu no clima

    tropicalista. Os primeiros registros dessa produo artesanal surgem no binio 71-

    72, o jornal Tribo, com poemas de Chacal e Charles e a estria de Waly

    Sailormoom.

    A Arte Postal, associa o artesanal com o prtico, a explorao de materiais os

    mais diversos e o seu cunho internacional, que a integra a movimentos semelhantes

    de todo o mundo ocidental, por meio de exposies, com a publicao de catlogos,

    e da correspondncia entre os poetas. Citem-se ainda em todos eles, a ampla

    liberdade de estilo, a fuso entre o erudito e o popular e o cunho interdisciplinar das

    composies. A liberdade esttica constitui o a priori de todas as vanguardas

  • 37

    literrias. O senso da liberade propicia, de um lado, a disposio de agir licitamente

    no momento de criar formas ou de combin-las, e, de outro, amplia o terrritrio

    subjetivo, tanto na conquista de um alto grau de conscincia crtica ( pedra de toque

    da modernidade), quanto na direo, s aparentemente contrria, de abrir a escrita

    s pulses afetivas que os padres dominantes costumam fazer

    ( SCHWARTZ, 1995:23).

    2.3- WALY SALOMO E AS VANGUARDAS CONTEMPORNEAS

    As nossas vanguardas so verdadeiros compostos de paradoxos; a busca de

    traos comuns esbarra cada passo ou posies e juzos contrastantes; elas

    reconheceram demasia de imitao e demasia de originalidade. As vanguardas

    propuseram algo de conscincia crtica: pensar livremente, exprimir livremente,

    formar livremente; esse era o legado verdadeiro do esprito novo.

    (SCHWARTZ, 1995: 23). Nos escritores mais vigorosos, a exemplo de Waly, os

    quais por sua complexidade interiror se liberam mais depressa das palavras de

    ordem, a busca de uma expresso ao mesmo tempo universal e pessoal que vai

    guiar as suas poticas e as suas conquistas estticas.

    Dentro da modulao moderna de vanguarda, os poetas de So Paulo

    estabeleceram programas, manifestos, que acabaram por atualizar produes de

    linguagem no mesmo sentido atualizador dos modernistas, essenciais

    modernidade potica do sculo XX no territrio brasileiro, quela altura, fins dos

    anos 50, tomados pela onda passadista da chamada Gerao 45. Os concretistas

    ocupavam um lugar fundamental de informao e de inveno e representam at

    hoje a linha hegemnica da poesia no Brasil. Uma linha que poetas mais novos

    como Paulo Leminski, Bonvicino, Alice Ruiz, Antonio Risrio e Waly Salomo

    acabariam por confirmar e que, a partir dos anos 80, constitui-se em uma ntida

    retomada, dentro de um contexto cultural que no mais lidaria, em tese, com os

    pressupostos caracterizadores da vanguarda.

    Para o entendimento com mais propriedade a continuidade dos

    procedimentos da vanguarda, no caso dos poetas mais novos j citados, faz-se

  • 38

    necessrio enfatizar alguns dados: a presena no totalmente descartada da arte

    moderna na produo contempornea, o que se d em todo um debate, conhecido

    entre moderno e ps-modermo, capaz de traar diferenas, rupturas, mas partindo

    sempre de um legado a que se ope, em um sentido no mais das vezes, de uma

    radicalizao antes de ser a instaurao de um novo tempo, de uma cultura

    inteiramente outra como ocorreu na passagem entre o sculo XIX e o sculo XX.

    Outro fator relevante no contexto desta hegemonia da vanguarda no Brasil foi

    o papel desempenhado pelos irmos Campos, porta-vozes da arte no apenas

    potica, e no apenas moderna, do pensamento crtico-terico existente sobre o

    critrio da inveno. Todavia, o novo privilegiado por estes tradutores, tericos e

    poetas apresentou-se formatado dentro de uma dico que obstrui, sob o signo da

    defesa do territrio conquistado na histria da poesia nacional. Dessa forma flui um

    encontro desarmado, multifacetado, entre a linguagem e o mundo contemporneo.

    No se pode esquecer o percurso da poesia brasileira, entre os fins dos anos

    50 e os anos 90, que vo chegando ao fim, capaz de iluminar, seja pelo contraste,

    seja pelo fator controverso de suas inovaes, o debate contemporneo. O dado

    traduzido com a chamada poesia marginal: o fato de oferecer a despeito de todo

    um tributo prestado vanguarda concretista (caso evidente de Torquato Neto, Waly

    Salomo, Cacaso e Chacal) elementos para uma dico prxima dos procedimentos

    ps-modernos. O que ganha espao nestes textos a incorporao sistemtica de

    formas lingsticas casuais e no poticas: cartas, dirios, conversas, anedotas e

    notcias de jornal. Uma poesia desprogramada, reveladora, em estado bruto, direto,

    com o ritmo e os ndices, muitas vezes, de uma anotao, de experincias do

    cotidiano, ilegitimado, da cultura, da maneira como Steven Connor detecta os traos

    ps-moderno na Literatura.

    A poesia que floresceu nos anos 70 e na qual se insere Waly Salomo foi

    uma poesia mutante, inquieta, anrquica. No se filia a nenhuma esttica literria

    em particular, embora se possam ver nela traos de algumas vanguardas que a

    precederam, tais como do concretismo dos anos 50 e 60 ou do poema processo. Os

    poetas jovens foram, principalmente, contra; contra as portas fechadas da ditadura,

    contra o discurso organizado, contra o discurso culto, contra a poesia tradicional. A

    poesia foi s ruas gritar liberdade. Uma poesia de tom tropicalista: eliminou

    fronteiras e teve a coragem de entrar em todas as estruturas.

  • 39

    Em qual sentido, contudo, devemos compreender ser um poeta marginal?

    No horizonte dos anos 60/70 a palavra adquiriu um sentido herico e rebelde,

    sintetizado no lema de Hlio Oiticica: Seja marginal, seja heri. O artista marginal

    se colocava como um fora da lei, ou um herdeiro de uma tradio do poeta-profeta

    - como nos poemas de Roberto Piva ou um ser sensvel e desajustado o mito de

    Torquato Neto. Em ambos os casos, marginal consagra um estilo de vida fora e/ou

    contra os padres vigentes. Da por que se diz que Waly Salomo era um poeta

    marginal. Embora o mesmo veja isso como rotulao. A imagem do desajuste j era

    corrente no gauche drummondiano.

    A figura do marginal, para Hlio Oiticica, encarnava um problema tico,

    porque ao simbolizar uma revolta individual social revelava-se um comportamento

    ambivalente, que aliava uma grande sensibilidade e uma busca desesperada de

    felicidade atravs do crime. Talvez, por esse sentido, que Waly no se

    considerava um poeta marginal. Enquanto categoria antropolgica-poltica,

    marginal funcionava como um smbolo de confronto social, busca de um padro de

    vida divergente ao proposto pelo status quo. Segundo Helosa Buarque de Hollanda

    a poesia dos anos 70 retomava a tradio mais rica do modernismo brasileiro: uma

    potica do cotidiano como fator de inovao e ruptura com o discurso nobre

    acadmico (HOLLANDA, 2007: 11).

    Ainda segundo Helosa os poetas marginais no seguiam os parmetros da

    impessoalidade como construo potica. A desumanizao do verso foi um dos

    leitmotiv da vanguarda concretista, ao recus-los, a gerao marginal negava um

    elemento de possvel influncia da teoria concreta. Por outro lado, em seu espao

    material e visual (logopia, para usarmos uma expresso poundiana), os poetas

    marginais absorveram a dupla face das lies da vanguarda. O lugar do concretismo

    no plano potico dos anos 70 um terreno movedio. Por um lado, representa em

    poesia o que os poetas repeliam na vida: a imagem de autoridade; por outro, os

    concretistas so os primeiros a promover os referenciais imediatos da poesia

    marginal, isto , o modernismo, o tropicalismo e a antropofagia.

    A maioria dos estudiosos da produo marginal dos anos 70 aponta os nomes

    de Waly Salomo e Torquato Neto como os que melhor representam as mltiplas

    tendncias do tempo: verdadeiros pais fundadores do que seria essa vanguarda por

  • 40

    reconhecerem nessas invenes de pensamento o trabalho de uma razo interna e

    a expresso de uma fome de verdade. Assim os define Armando Freitas Filho:

    Encontramos neles a representao do estilhaamento, dos mil caminhos e descaminhos da poesia brasileira; uma verdadeira salada, um melting pot, ou melhor, dizendo, um meeting das mais dspares tendncias.No h em suas produes nenhuma preocupao de coerncia estilstica (...) no existe a noo de continuidade organizada; o conceito cronolgico no importa nem preocupa; cada poema uma obra, no seu nico e sempre outro momento (FREITAS FILHO,1979: 96).

    Em busca de uma poesia pautada na imagem e no som, captada com

    antecipaes pelos modernos como integrante de uma rede intersemitica,

    multicultural e plurilingstica, que os irmos Campos, assim como os poetas por

    eles formados, como o caso de Arnaldo Antunes, (evidencia o som, a imagem e a

    tcnica de uma poesia como pea intersemitica) tm se colocado em movimentos,

    na tentativa de se afinarem com a contemporaneidade, que no comportaria mais a

    reedio de posturas e procedimentos da vanguarda histrica dos anos 50 e 60.

    nesse sentido que um poeta como Waly Salomo, formado pelo

    concretismo, pelo princpio construtivista em arte, mas tambm pelo cinema

    desconstrutor de Godard e pela obra brbara de Hlio Oiticica, mostra em

    Algaravias (1996) a contraluz da poesia programada pela brevidade, pela reiterao

    de um pseudo-rigor incapaz de lanar dados ao acaso. Com Waly se desenha a

    irrupo da poesia livre e do corpo presente no acontecer do mundo

    contemporneo; aquela que, cada vez mais culta, aponta o inacabamento e a

    urgncia de um tempo que vibra e pede uma soma de sentidos e escrita, de conceito

    e ritmo, que pede um corpo, uma linguagem na qual faa emergir o poeta em ato,

    em tempo, atravs de palavras-clares de significado, versos de risco/trovoadas. A

    voz em sua potncia plena, o dizer em todas as direes sgnicas e culturais. Waly

    esse poeta marcado pela gestualidade e pela dico, em contato discursivamente

    direto e demirgico com o mundo e a terra.

    A ruptura parece seguida pela noo de corte com o passado e com o

    domnio esttico de outros cortes: histrico, axiolgico, social, tcnico, ecolgico,

    etc. As Vanguardas impem arte uma permanente mudana nas concepes e

  • 41

    condutas artsticas; revolues tecnolgicas e instrumentais se conjugam com

    revoluo mental. So estas noes e efeitos de rupturas, cortes, inovaes e

    recriaes que permitem detectar os escritos vanguardistas de Waly Salomo

    baseados no apenas no desacato norma, mas na construo de uma proposta

    que mistura tudo e converge para o corpo. o sujeito atual, profundo conhecedor

    dos postulados de vanguardas, um sujeito que rompe o distintivo de seus mundos e

    modos de modos de representao s peculiaridades dos signos e suas estratgias

    textuais.

    Na cena cultural brasileira contempornea, a vitalidade da questo potica

    pode ser atestada no s pela j to repisada constatao da pluralidade de dices

    lricas que vm encontrando espao para publicao e circulao miditica e

    acadmica; mas ainda, e principalmente, pela diversidade polmica da recepo

    crtica que essas dices tm gerado. Sabemos que os anos 70/80/90 so marcados

    por transformaes culturais que, independente de qualquer mapeamento, ecoam

    movimentos de vanguardas e retaguardas. O perodo configura uma espcie de

    potica da hesitao que vai do aquele tempo que acabou (Torquato Neto) as mais

    intrigantes pulsaes dos imaginrios sociais. A livre transio de doaes e trocas

    contnuas, favorecendo o nvel de contaminao entre discursos rompe com

    hierarquias convencionais e impe novos desafios no campo da cultura e da arte.

    Waly Salomo o sujeito que se caracteriza por essa multiplicidade de

    dimenses, de direo, de formas, de focos, de escalas, de marco de referncia.

    Nele se uniam duas virtudes: a erudio que o faz consistente, e o humor, que o

    vacina contra a pompa, embora sempre reconhecido muito mais pelo ltimo. A

    poesia walyana surge no contexto das vanguardas como pungente meio de

    probabilidade, como arbitrria interseo de incidncias. uma poesia que na sua

    origem j vem imbuda de noes de colapso, mutao, revolta, dinamismo e azar;

    uma poesia pautada na descontinuidade, na relatividade e fragmentao. Vai buscar

    na anti-arte de Oiticica os efeitos dos parangols para praticar sua anti-poesia.

    Waly Salomo surge no cenrio da cultura brasileira como um sujeito

    contracultural que devora e reprocessa o que encontra. Reelabora tudo sob forma

    de uma escrita que recusa padres, formatos prvios e desarruma os olhares

    hegemnicos de imensa parte dos tradicionais posicionamentos discursivos no

    Brasil. Gilberto Gil, nosso entrevistado, chega a afirmar: todo gesto de Waly era

  • 42

    para apresentar a manifestao da vida como ebulio. Como erupo, exploso; o

    elemento fogo, o calor, essa era a matria bsica do seu fazer cultural; um lutador,

    incansvel , inquieto na manifestao do pensamento, no gesto e na euforia da

    palavra.

    A produo de Waly parece contm indcios de um universo mais largo para a

    linguagem potica em sua modulao na cena de agora, tomada aqui como espao

    de redefinies do fazer literrio e da construo de uma nova cultura. Nova por sua

    abertura ao campo maximal de foras, acontecimentos e linguagens que

    reconfiguram as redes do conhecimento e da arte em nossos dias. Em A fbrica do

    poema, por exemplo, uma espcie j de clssico moderno, poema j estudado em

    faculdades de Letras e bastante difundido pela verso musical de Adriana

    Calcanhoto, Waly como que escancara o sonho do poema construdo de

    arquitetura ideal - construtivista das vanguardas, por meio de uma

    desmaterializao de seus suportes conceituais mais rgidos, aqueles que

    estampam um objeto acabado, dado iconicamente, mas ainda modernamente

    concebido como obra fechada, compacto visual dotado de leis de construo e de

    leitura (e de precursores tomados como referendadores, no caso brasileiro da

    vanguarda).

    Na vertigem do sono/sonho e da construo, o poeta encontra suas leis mais

    secretas. Waly encontra o vrtice no qual o poema eclode e se mascara sob

    camadas e camadas de aparies, arquiteturas e esvaimentos, por meio da

    montagem aberta a quem o l abandono da torre de vigia, de autor fantasma de

    forma a incidir nos processos e enfrentamentos de risco da linguagem, em seus

    mltiplos dimensionamentos (a noite/o tempo/o esquecimento/o fim/o silncio, sob

    as mscaras da arte, sob as mscaras do corpo), como se pode depreender do

    poema: (SALOMO,1996: 35).

    Sonho o poema de arquitetura ideal cuja prpria nata de cimento encaixa palavra por palavra tornei-me perito em extrair fascas das britas e leite das pedras. Acordo. e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo acordo. O prdio, pedra, cal, esvoaa como um leve papel solto merc do vento e evola-se, cinza de um corpo esvado de qualquer sentido. Acordo, e o poema-miragem se desfaz

  • 43

    desconstrudo como se nunca houvera sido. Acordo! os olhos chumbados pelo mingau das almas E ouvidos moucos, assim que saio dos sucessivos sonos: vo-se os anis de fumo de pio e ficam-se os dedos estarrecidos. Sindoque, catacreses, metonmias, aliteraes, metforas, oxmoros sumidos no sorvedouro. No deve adiantar grande coisa permanecer espreita no topo fantasma da torre de vigia. Nem a simulao de se afundar no sono. Nem dormir deveras Pois a questo-chave : Sob que mscara retornar o recalcado? (mas eu figuro meu vulto at a escrivaninha). e abrindo o caderno de rascunho onde j se encontra escrito que a palavra recalcado uma expresso por demais definida, de sintomatologia cerrada assim numa operao e supresso mgica vou rasur-la daqui do poema). Pois a questo-chave : Sob que mscara retornar?

    Considerando que a partir dos anos 20 a arte manifesta uma crescente

    diversificao tanto teortica quanto operativa, exercendo uma mobilizao dos

    signos a fim de segurar um mundo onde todas as ordens temporal/espacial,

    objetiva/subjetiva, intrnseca/extrnseca, real/imaginria, causal/acidental,

    natural/artificial, conexa/desconexa, concreta/abstrata se inferem, se relacionam, se

    mesclam nos diferentes cdigos, Waly se insere no contexto dessas vanguardas e

    com elas estabelece relaes. Ele tem a convico de que vive uma vertiginosa e

    compulsiva atualidade sujeita a transformaes radicais e em rupturas

    revolucionrias com o passado que lhe permite expressar essa modernidade

    inovadora, marcada explcita e implicitamente por tantos filtros perplexos do

    cotidiano. A formao de uma conscincia em aberto para escolher e julgar os seus

    modos de agir.

    Segundo Alfredo Bosi, a liberdade permite que a sede de horizonte e de

    galope se sacie onde e como lhe parea melhor e, para tanto, necessrio que ela

    exera primeiro a ruptura com a m positividade das convenes ossificadas;

    depois, no curso da luta, o escritor vai enfrentar o seu assunto, que o levar de volta

    s suas experincias vitais e sociais significativas. A liberdade marcar ento novos

    termos e limites, exigindo o tom justo, a perspectiva certa. E o modernismo ceder a

  • 44

    vez quele moderno que sobrevive s modas (BOSI, 1995:24).

    No Brasil dos anos 1950 ocorreu a institucionalizao do modernismo e dos

    procedimentos experimentais das vanguardas: Bossa Nova, Jovem Guarda

    Concretismo, Tropicalismo, Construtivismo. Os impasses ideolgicos que surgiram

    com essa nova cultura brasileira emergiram e ganharam corpo entre os anos 1950 e

    1970. Esses so alguns dos domnios que serviram como fonte para o estudo da

    potica walyana. Waly pensou (e escreveu) essa vida cultural no pela lgica

    limitadamente a posteriori da representao escrita ou scio-histrica, mas pela

    trama vivenciada em suas obras e o mundo.

    O importante debate contemporneo sobre as margens e as fronteiras das

    convenes sociais e artsticas tambm o resultado de uma transgresso

    tipicamente ps-moderna em relao aos limites aceitos de antemo: os limites de

    determinadas arte, dos gneros, ou da arte em si. Uma das lutas de Waly era contra

    esses limites da arte e do homem. Da ser um poeta multimdia: indcios da frtil

    ampliao da fronteira entre as artes literrias e visuais. J em 1969, Theodore

    Ziolkowski notava que:

    As novas artes se relacionam com tal proximidade que no nos podemos esconder de maneira complacente por trs dos muros arbitrrios das disciplinas que autocontm: inevitavelmente, a potica d lugar esttica geral, consideraes referentes ao romance se transportam com facilidade para o cinema, enquanto a nova poesia costuma ter mais pontos em comum com a msica e a arte contempornea do que com a poesia do passado (1969:113).

    Esta uma das razes que nos embasam para afirmar que Waly Salomo

    descende diretamente das disputas, questes e rupturas que tiveram como cenrio

    os anos entre 1950 e 1970 no Brasil. Nos anos 1950, a Bahia contribuiu

    grandemente para o estabelecimento dessa nova ordem cultural do pas. Nomes

    como Gilberto Gil, Caetano Veloso, da arquiteta Lina Bo Bardi, do etno-fotogrfico,

    Pierre Verger, do artista plstico Caryb, entre outros, foram associando uma

    esttica de vanguarda a uma sensibilidade antropolgica, que nos dizeres de

    Antonio Risrio, so agentes transformadores da paisagem cultural baiana, posterior

    e intensamente firmada pela gerao tropicalista no final dos anos 1960

    (RISRIO:1995).

  • 45

    Waly, que por sua vez recusou o rtulo de poeta tropicalista, vai operar um

    tipo de sntese disjuntiva das opes disposio de quem pensava e produzia

    cultura at ento. Inclua a essa estirpe de interventores culturais, bem como seus

    continuadores tropicalistas, dialogando de modo intenso, notadamente com o amigo

    Hlio Oiticica e com Torquato Neto, com quem comandou uma revista potico-

    cultural de muito sucesso no incio dos anos 1970, A Navilouca, antes do suicdio do

    amigo em 1972.

    Na sua alquimia verbal, Waly extrapolou as limitaes scio-geracionais da

    poesia especificamente dos anos 70, presa s vezes demasiadamente, a

    esquematismos de marginalidade e rebeldia ou a convencionalismos beletristas. Ao

    contrrio de muitos contemporneo, como afirma Silviano Santiago (2000:197), Waly

    no assassinou Mallarm- a propsito da poesia brasileira dos anos 1970, quando a

    biblioteca deixa de ser o lugar por excelncia do poeta e o seu pas o mass

    media; se isso parece correto, tambm demasiadamente generalizante, pois no

    atenta para as particularidades possveis de tratamento a cada poeta. Como uma

    espcie de poeta ps-construtivista, Waly reelabora o construtivismo de biblioteca de

    certa poesia e o fricciona com a rua e os mass media, pelos quais transitou com

    desenvoltura.

    Segundo Sandro Ornellas (2008), Waly, como Sailormoon misto de

    codinome de clandestinidade, persona heteronmica e anagrama confessional, com

    o qual assinou seu primeiro livro-, atravessou o rido deserto da ditadura cata de

    pequenas minas de gua cristalina ou de gigantescas quedas dgua discursivas e

    com elas fez algumas das armas mais eficientes para as ento emergentes polticas

    de subjetividades: o desbunde, a desculpabilizao, o engajamento poltico-terico,

    o hibridismo carnavalizante, as drogas, como uma experincia que, parte seus

    usos particulares, marcou mais de uma gerao, se se incluir a o Tropicalismo.

    Assim, perspectivas poticas como o estilhaamento da unidade do texto e da

    prpria subjetividade, a exuberncia corporal, a coloquialidade estilizada e a

    reelaborao da experincia pessoal vo ganhar status de esttica geracional, e que

    tambm ter em Waly um dos seus principais agenciadores.

    O que faz a diferena na potica de Waly a profundidade intelectual de sua

    produo literria formada de textos imbudos de uma originalidade precisa centrada

    no compromisso com o agora apontando para o futuro numa inconclusiva oficina

  • 46

    potica. Waly no era um versejador era um revolucionrio na sua forma de ser, de

    escrever, de poeta e tambm ator. A poesia walyana tal qual as vanguardas no

    sugere outra coisa seno um mosaico de paradoxo. Embaralhar todas as cartas,

    alterar com todas as letras. Sua palavra de ordem alterar porque se abre ao outro,

    ao desconhecido e enigmtico desafio. Alterar o dado pr-definido, j visto,

    consumido, globalizado. Por isso o poeta tem fome. o desejo de uma nova

    experincia intelectual e expressiva que o aparta dos clichs, meio naturalistas, meio

    parnasianos, meio tudo, da belle poque, e o lana em cheio na busca do carter

    ou no carter brasileiro.

    O poeta Waly Salomo cultivou uma escrita em linha com o experimentalismo

    de vanguarda, e vai alm do trao estilstico, e tambm da pedagogia concretista,

    pois o que lhe interessa so os aspectos confrontativos da poesia. Nele se evidencia

    a referncia alta cultura e a cultura de massa, o uso de expresses tpicas do rock

    como baby, as citaes em ingls, o confrontamento com a esquerda. Em Waly

    lemos: no tenho a virtude mesquinha de acreditar nas torturas sofridas por um

    velho comunista de 70 anos que leva a srio um sonho frustrado de tomada de

    poder. No tenho a virtude mesquinha de acreditar nas torturas: gnios se castram

    por si. Velho comunista. Mentiroso. Nada de novo pode surgir da. E se por um

    texto bastante ambguo eu for chamado pra depor? (HOLLANDA, 2007: 185)

    O que importa, afinal