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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTE E COMUNICAO
PROGRAMA DE PS - GRADUAO EM LETRAS DOUTORADO EM TEORIA DA LITERATURA
JUDITE MARIA DE SANTANA SILVA
WALY SALOMO: ALGARAVIAS DO PS - TUDO
RECIFE 2010
2
JUDITE MARIA DE SANTANA SILVA
WALY SALOMO: ALGARAVIAS DO PS - TUDO
RECIFE
2009
RECIFE
2010
Tese de Doutorado apresentada Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Teoria Literria. Orientadora: Professora Doutora Maria do Carmo de Siqueira Nino.
3
4
5
In memoriam
Waly Salomo
Mltiplo
6
AGRADECIMENTOS
Ao meu Deus pelo dom da vida e a graa da inteligncia com que me contemplou
menina de engenho;
Aos meus filhos Israel Jnior, Isleyde Maria e Ismael Antonio que me
acompanharam durante anos da minha vida acadmica e que pacientemente
toleraram tantos momentos de minha ausncia;
Aos meus irmos e irms pelo reconhecimento e credibilidade com que sempre
apostaram na minha capacidade intelectual;
Ao amigo Ismael Lus de Frana, meu fiel condutor nessa trajetria de idas e vindas
em busca do conhecimento;
A Vnia Maria Pimentel, pela pacincia de tantas horas formatando e pesquisando
textos em toda minha caminhada acadmica;
A inesquecvel amiga Dr. Zuleide Duarte que pacientemente lia os meus escritos
fazendo correes e sugestes to necessrias;
A minha orientadora, Dr. Maria do Carmo Nino pelo acompanhamento paciente,
tolerante e pela grande contribuio para a construo dessa Tese.
Aos professores do Programa de Ps-graduao em Letras, minha gratido.
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Gemedeira das gemedeiras de Waly Salomo
Eu agora vou cantar
durante noites e dias
a histria de Waly,
de suas belas poesias.
Vou cantar rindo e chorando
ai-ai, ui-ui,
seus ecos e algaravias.
Sem aquelas nostalgias,
sem voltar vistas pra trs,
ele viu a herana herege
e todo mal que ela faz.
Viu que a sua poesia
ai-ai, ui-ui,
era muito mais capaz.
Sendo ele o capataz,
traficou pitanga em chama,
ti-sangue, camio,
(sujou o seu p na lama),
o sol todo em extino,
ai-ai, ui-ui,
horas turvas e suas tramas.
Ele era a sua mucama,
o algoz de suas fronteiras,
diamante em combusto,
engenheiro de suas beiras
foi tal qual Paul Valry,
8
ai-ai, ui-ui,
fez poema sem poeira.
Foi no canto da sereia
e cantou Yemanj
Escreveu cartas abertas
Pulava de l pra c
Espalmava a mo na cara,
ai-ai, ui-ui,
para teatraliz.
Eu agora vou falar
de todos os livros do moo:
Me segura queu vou dar
um troo e pulou no poo
Gigol de bibels
ai-ai, ui-ui
Isso aqui s um esboo.
Vou tentar roer o osso
e falar do Armarinho
de Miudezas do Waly
e do seu outro livrinho
que o Algaravias,
ai-ai, ui-ui
No vou sair de fininho.
Sailormoon por seu caminho
descobriu Mel do Melhor,
pagou Tarifa de Embarque,
recusou vu de fil
Gastou cuspe com sua Lbia,
ai-ai, ui-ui,
era fogo no gog.
E gemendo de dar d
Vou cantando at o fim
9
o Waly de Jequi
que exemplo para mim
por ter juntado no verso
ai-ai, ui-ui,
o Xang com querubim.
Licena peo por fim:
Foi to bom estar aqui.
grande a alegria,
Relembrar o Waly,
Encontrar estas pessoas
ai-ai, ui-ui,
Sinceras no aplaudi.
Esta gemedeira foi apresentada e entoada por Leo Gonalves num elegante
parangol o work in progress no Colquio Algaravias, na FALE/UFMG, em 2003,
durante homenagem ao poeta Waly Salomo, dirigida por Maurcio Vasconcelos.
10
RESUMO
Partindo do pressuposto de que os anos sessenta coincidiram com a emergncia da
condio histrica ps-moderna, propusemos estudar a obra de Waly Dias Salomo,
sob a tica barroca/neobarroca a partir das teorias de Severo Sarduy e Omar
Calabrese alm de outros estudiosos como Cludio Daniel e Afonso vila. Nossa
inteno foi de oportunizar uma releitura dos debates sobre as Vanguardas poticas
contemporneas que introduziram a ps-modernidade considerando-as como
programas estticos cujo foco era atenuar os limites entre as diversas formas de
arte. Iniciamos por abordar os procedimentos e mtodos utilizados pelo escritor e
poeta aglutinador de muitos caminhos, cujos mecanismos prprios nos permitiram
identificar em sua produo potica sugestivas ressonncias de um barroco
reciclado. Elementos como labirinto, ironia e paradoxo, procedimentos barroco por
excelncia, foram apontados nesta tese como sendo vetores da poesia walyana. De
fato, ao estabelecer um dilogo constante de suas obras com a tradio literria e
com a contemporaneidade Waly cria uma hibridizao cuja afinidade com a poesia
(neo) barroca evidente.
Palavras-chave: Waly Salomo, Vanguardas contemporneas, hibridizao, Poesia Barroca/Neobarroca.
11
ABSTRACT
Assuming that the sixties coincide with the emergence of postmodern
historical conditions, we propose to study the work of Dias Waly Salomo
from the Baroque /Neo-Baroque perspective, from the theories of Severo
Sarduy and Omar Calabrese and other scholars as Claudio Daniel and Alfonso Avila.
We intend to create opportunities for a new reading of debates on the contemporary
poetic vanguards wich introduced postmodernism, regarding them as an aesthetic
programs whose focus was to soften the boundaries between different art forms. We
begin by discussing the procedures and methods used by the poet and writer who
agglutinates many ways and whose own mechanisms allow us to identify echoes
suggestive of a recycled baroque in his poetry. Elements such as the labyrinth, irony
and paradox, Baroque procedures par excellence, were appointed in this thesis as
vectors of walyan poetry. In fact, establishing a constant dialogue with his works
from the literary tradition and contemporaneity, Waly create a hybrid whose affinity
with (neo) baroque poetry is evident.
Keywords: Waly, Vanguards contemporary, hybridization, Poetry Baroque / Neo-Baroque.
12
RSUM
En supposant que les annes soixante a concid avec l'mergence de la condition
historique postmoderne, nous avons propos d'tudier les travaux de Dias Waly
Salomo, dans la perspective baroque / no-baroque des thories de Severo Sarduy
et Omar Calabrese et d'autres spcialistes comme Claudio Daniel et Avila Alfonso.
Notre intention tait de crer des possibilits relecture des discussions sur l'avant-
garde potique contemporaine qui a introduit le postmodernisme les considrant
comme des programmes dont l'esthtique accent a t mis ramollir les frontires
entre les diffrentes formes d'art. Nous commenons par discuter des procdures et
mthodes utilises par l'crivain et pote fdrateur de nombreuses faons, dont les
mcanismes que nous possdons, permettent de dterminer dans son cho posie
suggestive d'un baroque recycls. Des lments tels que le labyrinthe, l'ironie et le
paradoxe, l'excellence des procdures par baroque, a t nomm dans cette thse
comme des vecteurs de walyana posie. En fait, d'tablir un dialogue constant avec
leurs uvres de la tradition littraire et de la contemporanit Waly crer un hybride
dont l'affinit avec la posie (no) baroque est vident.
Mots-cls: Waly, Vanguards hybridation contemporaine La posie baroque / no-baroque.
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LISTA DE ABREVIATURAS
AL: Algaravias: cmaras de ecos
AM: Armarinho de miudezas
BB: Babilaques
GB: Gigol de bibels
GG: Gilberto Gil
HO: Hlio Oiticica qual o parangol ?
JB: Judite Botafogo
JM: Jornard Muniz
LA: Lbia
MM: O Mel do melhor
MS: Me segura queu vou dar um troo
PV: Pescados Vivos
SS: Sinara Salomo
TE: Tarifa de Embarque
WS: Waly Salomo
14 SUMRIO
1 INTRODUO...................................... 15 2 VANGUARDAS POTICAS CONTEMPORNEAS.................................. 24 2.1 VANGUARDAS: CONCEITOS E APORIAS.... 24
2.2 AS VANGUARDAS POTICAS NO BRASIL........................................... 30
2.3 WALY SALOMO E AS VANGUARDAS CONTEMPORNEAS............ 36
3 WALY EM DIAS DE SALOMO............................................................ 46 3.1 ALGARAVIAS DO PS-TUDO................................................................ 46
3.2 BARROCO E MODERNIDADE............................................................... 56
3.3 O NEOBARROCO: UMA ARTE POTICA DA
CONTEMPORANEIDADE.............................................................................
62
3.3.1 O Omar Calabrese, Leitor e Critico do Neobarraco.............................. 67
4 TRAOS BARROCOS NA POESIA WALIANA........................................ 71 4.1 A IRONIA................................................................................................. 74
4.2 O LABIRINTO.......................................................................................... 77
4.3 O PARADOXO......................................................................................... 81
4.4 OUTRAS RIQUEZAS FIGURATIVAS...................................................... 83
5 DIALOGISMO E INTERTEXTUALIDADES............................................... 87 5.1 OS DILOGOS CULTURAIS WALYANOS............................................. 97
5.1.1 Waly e as Artes Plsticas: No Princpio No Era o Verbo.................. 97
5.1.2 Waly Salomo e a MPB........................................................................ 109
5.1.3 Waly Ator e Produtor Cultural.............................................................. 111
5.1.4 Waly e Arte Eletrnica.......................................................................... 112
5.2 O MEL DO MELHOR: AS INTERTEXTUALIDADES POTICAS........... 113
5.2.1 O Mel do Melhor de um Leitor Desvairado........................................... 113
5.2.2 Tarifa se Embarque: um Itinerrio Para Todo/Qualquer Lugar
Nenhum.........................................................................................................
118
5.2.3 O que Caa na Rede de Waly Era Peixe............................................. 122
5.3 ENTRE A ARTE E A VIDA, O CANTO.................................................... 131
15
5.4 OUTROS PROCEDIMENTOS INTERTEXTUAIS NA POESIA
WALYANA.....................................................................................................
138
5.4.1 A Pardia.............................................................................................. 138
5.4.2 A Parfrase........................................................................................... 142
5.4.3 A Citao............................................................................................. 145
6 CONSIDERAES FINAIS....................................................................... 148
REFERNCIASBIBLIOGRFICAS.............................................................. 155
APN DICE A ENTREVISTAS..... 164
ANEXO A LETRAS DE MSICAS............................................................. 177
16
1- INTRODUO
Os estudos sobre Modernismo / Ps-modernismo / Tropicalismo /
Ps-tropicalismo / Concretismo / Ps-concretismo e outros movimentos deles
decorrentes e a eles ligados, se por um lado avanaram na compreenso do que
foram essas estticas na evoluo da literatura brasileira contempornea, por outro,
obscureceram obras de autores de fundamental importncia para a iluminao do
caldeiro de tendncias estticas originadas dessas matrizes. Dentre os autores que
pontificaram na literatura brasileira a partir dos anos 60 destacamos o poeta Waly
Dias Salomo, baiano de Jequi, que correu o mundo potico pilotando a Navilouca
no cenrio do ps-tudo.
Trata-se de um poeta polivalente e radical, um escritor e artista multimdia,
uma pessoa voraz que se entregava por inteiro a tudo que fazia como algum que
tinha pressa em exercer toda a sua criatividade. Senhor de uma histria bastante
enviesada, com direito a prises, represso, milagres brasileiros e onda neoliberal.
A sua intrigante escrita e extraordinria capacidade de transitar nas mais diferentes
vertentes das artes, mesclando tradio e modernidade, erudito e popular, escrito e
oral em diferentes cdigos, foram fatores que nos despertaram o desejo de no
apenas ler esse poeta marcado por uma nsia devoradora da cultura, mas,
sobretudo, nos debruarmos mais refletidamente sobre a natureza reinventada do
seu fazer literrio.
Waly freqentemente definido com muitos adjetivos. A ele cabem os rtulos
de ensasta, poeta, msico, parodista, teatratrlogo, performer, aventureiro e
promotor cultural. Um homem da fico, da poesia e da arte em geral, da vivncia e
da inveno de diversas formas de arte, como vemos nas diferentes etapas de sua
obra desde os fragmentos do seu primeiro texto publicado (1972) Me segura queu
vou dar um troo que foi redigido no crcere, formado de delrios textuais
programticos (uma escrita tumulturia sintomtica do discurso da poca, onde
loucuras e viagens, parania e violncia so o pano de fundo de uma experincia
mltipla e contraditria) at Pescados Vivos (2004), obra pstuma, em que o poeta
no separa os fatos vividos dos fatos inventados. WS no se deixou apreender com
17
facilidade: provocou elogios e crticas, estimulou discusses e polmicas. Sua vida
foi um verdadeiro paradoxo.
H de se conhecer esse homem, uma figura no mnimo nica, que produziu
uma obra to significativa e provocadora, atenta s questes sociais de seu tempo,
ao papel da literatura, do escritor, do artista, evoluo da arte e sua funo social.
O poeta Waly Salomo foi um leitor voraz da cultura universal e nacional, como
tambm, um criador robusto de obras de fluxos intersemiticos os mais
surpreendentes, inusitados, polissmicos e heterogneos. Um escritor muito bem
antenado com o seu tempo. Sinal claro desses fluxos foi a sua grande
aproximao com as artes plsticas, com a arte eletrnica, com a msica, o teatro e
a literatura. Waly foi doubl de letrista, produtor musical e cultural, alm de
ambientalista, organizador de coletneas, agitador cultural, propagandista,
publicitrio, guerrilheiro. Enfim, mltiplo.
Waly tornou-se conhecido no Brasil pelas composies da MPB e pela sua
participao nos movimentos contraculturais ao lado de Gilberto Gil, Torquato Neto
entre outros e no pela poesia. preciso ler Waly para melhor compreender o
dilogo constante de suas obras com a tradio literria e com a
contemporaneidade. Por isso, inevitvel, comear falando dele prprio, do seu
jeito, suas formas, suas faces de 1.001 mscaras como afirma Antonio Risrio:
Waly um farsante declarado e colorido num ambiente cultural infestado por
beletristas seriosos e cinzentos.
Filho direto do Tropicalismo, Waly uma das caras - metades dos nossos
anos 70. Enquanto uma parte da nossa juventude fugia para o exterior tentando
salvar a prpria pele do terror da ditadura brasileira, outros aderiam ao desbunde
(forma que a contracultura assumiu nos anos, ento, tristes e brutais trpicos). Waly
foi um dos cones dessa contracultura tropical e, enquanto baiano, descendente
legtimo da verve cida de Gregrio de Mattos com o emaranhado retrico do Padre
Antonio Vieira.
Depois das aventurosas cenas dos anos 70, Waly ocultou sua voz, recolheu
suas armas por 11 anos, foi produzindo no silncio e s retornou em 1983 com a
obra Gigols de bibels. Nesse livro ele reedita o Me segura... e, junta a ele vrias
letras musicadas e textos mais experimentais e menos delirantes. Ainda nos anos
80, Waly prepara coletneas pstumas de amigos: Os ltimos dias de Paupria,
18
textos de Gelia Geral de Torquato Neto, e Aspiro ao grande labirinto, artigos e
escritos de Hlio Oiticica de quem lanou tambm uma biografia nos anos 90; dois
grandes companheiros de gerao prematuramente mortos e dos quais Waly tomou
para si a responsabiliade da guarda da memria artstica.
Waly exerceu o cargo de Secretrio Nacional do Livro e da Leitura no
Ministrio da Cultura em 2003. Seu maior sonho, nesse cargo, era transformar o livro
em carta de alforria. Para Waly, s a leitura liberta, induz o homem a pensar: pensar
livremente, formar livremente; esse era o legado verdadeiramente radical do esprito
novo. Waly era um sonhador, e dizia como Shakespeare: somos feitos do mesmo
material de que so feitos os sonhos, o sonho no pode acabar. Sua performance
literria iniciou-se por volta dos anos 60 e aportou nos dias atuais atravs de
diversas formas de arte. Foi um intelectual que soube beber nas duas fontes; foi
buscar na tradio acadmica letrada, os elementos, o material para o seu fazer
literrio, numa linguagem de maior acessibilidade, numa nova tica, hbrida e
instigante.
Vale esclarescer que este trabalho, como se expressa no ttulo, no se
resumiu apenas ao estudo da obra Algaravias de Waly Salomo, mas, destinou-se a
apontar como o poeta embaralhou todos os cdigos, jogou com todas as cartas,
dissolveu todas as fronteiras e somou todas as linguagens dentro de um mesmo
suporte: a literatura. Este estudo se situou na perspectiva dos estudos culturais (sem
avano no social) onde a literatura acolhida como prtica intersubjetiva,
construindo assim, uma ponte entre o literrio e o cultural sem postular o predomnio
de um sobre o outro. Nesta direo, vale relembrar Baudrillard (1991) para quem
desmultiplicao, proliferao e disperso aleatria constituem o esquema prprio
de nossa cultura.
Apesar da importncia de divulgar a poesia de Waly Salomo, considerando
que o mesmo alm de ser pouco conhecido, visto entre ns, como letrista da MPB
e no como poeta, nossa pesquisa teve como foco principal estudar a criao
potica desse baiano ousado, inquieto e irreverente, dado, agridoce, curioso e
levado, como afirma Risrio, apontando suas afinidades com a tradio barroca. A
partir de marcas textuais prprias do tratamento esttico aqui preconizado,
analisamos tambm as estratgias textuais utilizadas pelo autor nas quais as
caractersticas de uma cosmoviso barroca/neobarroca so fortemente percebidas.
19
Comeamos por discutir as Vanguardas, seus conceitos e aporia, sua
trajetria no contexto brasileiro com base em autores como Jorge Schwartz,
Edoardo Sanguinetti, Gonzalo Aguillar, Otlia Arantes, Maria Eugnia Boaventura,
Antonio Risrio, Eduardo Subirats, Philadelpho Meneses e Ferreira Gullar. Em
seguida, mostramos a insero do poeta WS no contexto das vanguardas, com o
objetivo de apontar para a atualidade de sua poetica relacionada a muitas das
propostas desses movimentos da poesia brasileira, que no se limitaram a um
determinado contexto histrico, mas relacionaram-se, inclusive, com experincias
realizadas nos dias de hoje, no campo da poesia eletrnica ou digital.
Os anos 60/70, perodo da polmica trajetria das vanguardas poticas
brasileiras representadas pela poesia Concreta, Neoconcreta, Prxis e Poema
processo com base na anlise de alguns procedimentos tcnicos, conceitos tericos
e princpios formais, bem como, nas prticas poticas desses movimentos
enfocaram as correntes literrias manifestadas nessa efervescncia cultural,
sobretudo, o Tropicalismo ao qual tambm Waly Salomo esteve ligado.
Waly, a partir desses movimentos, fez uma releitura criativa dessa herana
cultural, ao mesmo tempo em que dialogou com formas e procedimentos da
vanguarda internacional e nacional (e em particular com a Poesia Concreta,
Neoconcreta, Tropicalista), visando reinveno da escrita e mesclando recursos da
literatura, da msica, da pintura e outras formas de expresso. A escrita renovada
de WS demanda outro tipo de recepo por parte do leitor, que participa da
descoberta ou da construo de significados, numa reinveno da leitura.
Ao aprofundar a leitura de autores da cena cultural a partir dos anos 60,
enfatizando a srie literria, encontramos na potica de Waly Salomo, matria para
maior entendimento do que foi e o que hoje a produo potica das ditas
vanguardas e, mais importante ainda, de como frutificaram essas tendncias,
digeridas, relidas e recriadas por um autor que, ao lado do trabalho como produtor
cultural foi um poeta que refletiu sobre a literatura, produzindo textos de excelncia
potica inegvel. Um fazer potico permeado por ironias com um tipo de escrita
marginal, de perfil confessional e que alimentava as vozes histricas e depressivas
nos anos1970, em sua sanha de experincias de dor, sufoco e
neonaturalismo (SUSSEKIND, 1988: 42-43).
20
No segundo captulo abordamos sobre os conceitos da palavra algaravias e
sua relao com a potica walyana dentro de um contexto cultural hbrido e
contemporneo. Partindo da relao dicotmica Barroco x Modernidade apontamos
tambm para os conceitos de Ps-modernidade ou Ps-tudo sob o prisma de vrios
autores utilizados neste trabalho como sendo um conceito complexo que segundo
Severo Sarduy e Omar Calabrese pode ser considerado Neobarroco. Waly visita a
tradio barroca ao mesmo tempo em que explora as possibilidades da inveno
esttica de outros meios de expresso situando-se no territrio das vanguardas da
segunda metade do sc. XX. A estratgia criativa adotada pelo poeta incita a
participao inteligente do leitor para a descoberta de muitas vias interpretativas.
Focalizamos, na poesia de Waly Salomo, alguns aspectos caractersticos do
neobarroco que favorecem a transgresso das normas, a manuteno das
dualidades, a convivncia de elementos heterogneos, a profuso aparentemente
catica de elementos, a ambigidade, a fragmentao, o hibridismo, a constante
presena do conflito, entre outros. perceptvel ainda a presena da ironia, do
labirinto e do paradoxo como traos barroquizantes na potica walyana alm de
outras riquezas figurativas como as metforas, metonmias, antteses, hiprboles,
hiprbato, que lhe entranha toda tessitura potica.
No captulo que trata dos dialogismos e das intertextualidades focalizamos os
dilogos culturais entre literatura e outras artes com nfase para a aproximao
entre msica, literatura e artes plsticas. O adensamento dessa pesquisa bebe
tambm nas fontes de Bakhtin e Kristeva por tratarem os referidos tericos da
reverberao de vozes entre si, propiciando o dilogo: sem o intertextual no pode
haver o textual. Dedicamos tambm uma ateno especial ao sub-captulo que trata
da relao da poesia de Waly com as artes plsticas considerando os Balilaques
parte importantssima de sua produo. Dos procedimentos intertextuais percebidos
na poesia de Waly destacamos a pardia, a citao e a parfrase, estudo em que
buscamos suporte nas teorias de Linda Hutcheon e Afonso Romano de SantAnna.
Reconhecendo a intensa articulao nos discursos walyanos nos quais o
autor recorre sempre aos planos verbal e/ou no verbal bem como aos planos de
outras artes e outras reas, apontamos para o fato de se poder escutar a
plurivocidade no mbito da lgica multicultural. A poesia de Waly se fez e se
manteve muito ligada a vrias formas de arte: msica (autor de mais de 70 canes
21
da MPB), pintura, teatro, como tambm ao esprito libertrio das vanguardas
artsticas do sculo XX que contriburam para lev-lo a se expressar no apenas em
prosa ou versos. Sua esttica sem fronteiras aproximou a msica da literatura, das
artes plsticas, da vida no palco e da heterognea discursividade, um dos aspectos
fundamentais de sua produo literria.
Analisamos a produo de Waly Salomo com recorte para a poesia, sua
trajetria multicultural e crtica considerada no contexto do Modernismo / Ps-
modernismo que, com diferentes inflexes, predominou nesse perodo no panorama
internacional. Para chegar forma desejada deste trabalho foi preciso intensificar
leituras e leituras prospectivas de textos que se inserem nas correntes Moderno /
Ps-moderno / Neobarroco alm das obras do autor analisadas luz das
intertextualidades literrias. As obras relacionadas para esta anlise so: Algaravias,
Tarifa de Embarque, Lbia e Pescados Vivos, todas relidas na coletnea O Mel do
Melhor.
Por tantas vezes nos indagamos: por que estudar a poesia de Waly Salomo?
Ao ler seus textos perguntavmos pelo que Waly afinal , que estilo tem esse
poeta? Que fora estranha anima seus versos, seu corpo aparentemente to afeito
ao palco da vida, s produtividades disruptoras, s hibridizaes trgicas, s
impuras secrees, s adlteras misturas, faina onvora do mundo? No so
simplesmente perguntas retricas, pois so tais foras que balizam a sua produo
escrita naquilo que ela tem de mais imediatamente conectado vida cultural Essa
inquietao adveio do impacto que seus poemas nos causaram e, como ao l-los
ramos seduzidas a tantas outras leituras e outras linguagens e outros discursos:
lingsticos, literrios, histricos, filosficos, antropolgicos, artsticos e culturais,
sobretudo outra forma de pensar a cultura como sendo a soma das diferenas.
Ao adentrar nos textos walyanos percebe-se de imediato que, por mais que
se fale de suas obras, resta sempre, como no primeiro momento, linguagem, sujeito,
ausncia. Sua escrita no forma um segmento especfico nem tem limites definidos.
Ela se atropela constantemente pelos diferentes cdigos e vises que se aglutinam
a sua volta, gerando diferentes perspectivas e mltiplas leituras. Escrever sobre
Waly correr o risco de se dizer alguns dos vrios e inevitveis clichs que so
repetidos sobre ele, como ele prprio enfatiza no poema:
22
Quem fala que sou esquisito hermtico por que no dou sopa estou sempre eltrico Nada que se aproxima nada que estanho Fulano sicrano beltrano Seja pedra seja planta seja bicho seja humano Quando quero saber o que ocorre a minha volta Ligo a tomada abro a janela escancaro a porta Experimento invento tudo nunca jamais me iludo Quero crer no que vem por a beco escuro Me iludo passado presente futuro Urro arre i urro Viro balano reviro na palma da mo o dado Futuro presente passado Tudo sentir total chave de ouro do meu jogo fsforo que acende o fogo de minha mais alta razo E na seqncia de diferentes naipes Quem fala de mim tem paixo. (SALOMO, 1983, p. 11)
Esse tipo de sabedoria fornece a Waly as linhas, o norte para os gestos de
sua escrita. um sujeito despachado que escreve como um exerccio de vida. Suas
vozes vo se sucedendo, sobrepoem-se como camadas cada uma com sua
sedimentao prpria. So imagens que permitem ao leitor atento observar as
mltiplas faces nas brechas da escrita de um fazer ativo como criao da vida e da
vida como criao. Escrever, para Waly, e colocar-se em perdio diante de si,
diante dos outros, diante da vida. Sua voz seu gesto, seu corpo, seu ser feito
pssaro em pleno vo.
Segundo o professor Sandro Ornellas da Universidade Federal da Bahia em
seu ensaio Waly Salomo e o teatro do corpo (2008), Waly politizou seu discurso
na farsa do Me segura... , quando escreveu como presidirio, sambista militante
esquerdista, maconheiro, capoeirista, surfista ou retirante nordestino, grupos com
seus jarges compostos por tiques verbais, fluxos frasais, gaguejos, palavras-valise
como cdigo secreto, que impede qualquer tipo de captura e cooptao por parte
dos aparelhos de significao da Lei. O baiano soube driblar tantas situaes, tantas
linguagens e transpor tudo isso para a escrita apontando nos seus textos os sujeitos
minoritrios. Jos Miguel Wsnik chegou a afirmar que Waly era um agrupamento
verbal, uma enunciao grupal, um corpo que se escrevia por sujeitos-fluxos,
seriados e paralelos como linhas simultneas que se cruzam, se tocam e se
23
contradizem, no por um simples movimento linear: marginal e artstico, sambista e
escritor, retirante e cosmopolita, popular e erudito, guerrilheiro e militar, clandestino
e desbundado. (WISNIK, 1989: 173).
No podemos negar que o fascnio pelas obras de Waly nos veio pelas
canes, entre elas, Alteza, Mel, Olho dgua, Vapor Barato, etc. Este fato nos
provocaram inquietaes em querer saber mais sobre o autor dessas letras. A
fascinao um bom comeo numa pesquisa, mas muito perniciosa para
sustent-la. Ao comparar muitas de suas letras a outros poemas nos intrigava,
chocava at. Resolvemos intensificar um estudo sobre o contexto em que viveu
Waly Salomo e digo como o prprio Waly, quanto mais nos aproximvamos do
tema mais distante nos encontrvamos dele. Decidimos ento buscar maiores
informaes em pessoas que conviveram com Waly. Elencamos uma srie de
questionamentos e partimos para as entrevistas. Primeiro entrevistamos o ento
Ministro da Cultura Gilberto Gil, companheiro dos movimentos contraculturais ao
lado de Waly. Com Gil estivemos durante horas degustando os relatos das
experincias de vida entre os dois astros; em seguida, visitamos o professor, escritor
e cineasta Jomard Muniz de Brito com quem dialogamos sobre o fazer potico de
Waly. Eis sua resposta sobre o assunto:
Waly fazia a psicanlise dele no cotidiano. A poesia de Waly so as rasgaes de seda do cotidiano. So os rasgos do mel e do fel. Waly um poeta cido, diz coisas fortssimas sobre a Bahia, as queimaes todas, as desgraas todas; no s elogios; ele escreve coisas cidas, o humor corrosivo sobre a Bahia. Ele sempre foi uma pessoa arrebentadora, gritava para o mundo o que sentia, um crtico virulento. A postura de Waly era muita de assumir a terceira margem, a quarta margem, a margem da margem da margem; o avesso do avesso; desafinava o coro dos contentes e contrariava os cnones para dizer do seu estar no mundo. (Entrevista em 03 de agosto de 2007).
Neste contexto, apontamos outro fator relevante: a visita a Jequi no serto
baiano onde nasceu Waly. Foi uma experincia emocionante, pois ali pudemos
encontrar no s personagens histricas com as quais Waly conviveu, mas,
sobretudo, descobrimos a sua famlia. Em Jequi ainda residem 04 irmos:
Guilherme, Omar, Kandija e Sinara e foi estimulante conversar com eles. Sinara foi
a pessoa escolhida, por eles, para nossa entrevista, que emocionada nos disse:
24
custou a gente entender por que ele pensava diferente e no se contentava com a
mesmice; Waly nasceu pra o mundo, pensava alto, sonhava grande, ele sempre
quis mostrar que era possvel fazer diferente.
Waly produziu suas obras desde a fase transgressora da represso dos anos
60; bebeu na antropofagia oswaldiana e aportou na contemporaneidade como uma
voz dissonante na literatura brasileira. Com um p nos Clssicos e outro nos
Modernos tentou equilibrar-se entre msica, poesia e outras artes e assim construiu
suas algaravias, onde s os momentos trocados pelo olhar potico conseguem
contar. Nesse sentido, vale assinalar que, desde sua estria com o Me segura...
Waly metabolizou tendncias e dissipou fronteiras sempre aberto a novas de(s)
colagens, sem nunca se deixar vencer ou se render ao cansao gerado pela figura
engessada do cnone: no cultivei nem cultivo a palidez altiva (SALOMO,
2000:30). Inconformado, frequentemente rechaou toda forma de carapua e
congelamento que lhe fosse imposto.
Nas consideraes finais desta tese enfatizamos que trabalhar com a
produo literria de Waly Salomo um grande desafio dada a complexidade de
sua obra. No fcil classificar uma obra em que quase tudo indefinido. No
entanto, foi essa complexidade que nos atraiu como j tem atrado a tantos
estudiosos, poetas e pesquisadores como Antonio Risrio, Antonio Medina, Antonio
Ccero, Leyla Perrone-Moiss, Davi Arrigucci, Jos Miguel Wisniik, Walnice Nogueira
Galvo, Helosa Buarque de Hollanda, Evando Nascimento que referendaram suas
obras.
A importncia e pertinncia dessa pesquisa se justificam, considerando a
relevncia da obra Waly Salomo para a literatura brasileira. Procuramos tambm
demonstrar o quanto a poesia de Waly, alm de ser reconhecida no meio artstico
musical, merecedora de estudos crticos acadmicos, por apresentar
caractersticas de valor artstico-literrio de acordo com as teorias aplicadas poesia
em geral. Ao apresentar Waly como um poeta neobarroco, visamos contribuir com
mais um material de consulta e de estudos para os que porventura se enveredarem
tambm por esses descaminhos.
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2- VANGUARDAS POTICAS COMTEMPORNEAS
2.1- VANGUARDAS: CONCEITOS E APORIAS
O plural designativo do termo vanguarda assinala a convergncia, num
quadro histrico determinado, de movimentos estticos que, semelhana das
vanguardas militares, se propunham sobrepor-se s correntes at ento
hegemnicas. A palavra vanguarda designa parte de um exrcito que avana na
linha de frente de um combate para se antecipar ao corpo principal de soldados e
defend-los. por esse caminho que se discute a questo de uma vanguarda
poltica. Para o poeta e crtico alemo Hans Magnus Enzensberg, em Aporias de
Vanguarda (1971), a palavra passou da noo de estratgia militar para as artes por
volta de 1850, na Frana revolucionria. A partir desse momento, a palavra
vanguarda assumiu um sentido figurado que vai ocultar seu significado original.
J no seu nascedouro, o termo comporta uma srie de acepes antagnicas.
Poggioli ( 1986:82-83) relata que seu primeiro uso em arte remonta a 1845 quando
de sua entrada definitiva no cenrio literrio e artstico depois de ser usado por
Baudelaire. Podemos ento dizer que a vanguarda passa a fazer parte do iderio
da modernidade ainda que s venha a se instaurar como fenmeno esttico
significativo nas artes com o Futurismo italiano, meio sculo depois. o momento
em que os prprios artistas se auto-denominam vanguardistas e a palavra adquire
um teor mais explcito de projeto artstico-cultural.
Para o crtico Antonio Risrio expresses como vanguarda cientfica ou
vanguarda artstica se encontram, evidentemente, mais distantes da rea
semntica do militarismo. A vanguarda cientfica diz respeito questo das
inovaes criativas no terreno das cincias, como a biologia, a qumica ou a fsica. E
a vanguarda artstica designa um grupo autoconsciente, programaticamnete
empenhado na renovao sistemtica dos procedimentos estticos. Como quer que
seja, as acepes da palavra vanguarda extrapolam qualquer tentativa de absoluta
preciso terminolgica, dada a diversidade de cada cultura onde a radicalizao das
propostas estticas se produziu na tardia-modernidade. no incio do sculo XX que
26
o termo ganha o contorno preciso de vanguarda artstica, desvinculando-se daquele
designador de artistas ligados vanguarda eclusivamente poltica. Vanguarda
designa aquilo que pioneiro, que est frente, o fator revolucionrio, inovador, que
prope uma nova tica, um novo modo de expresso. ela que gera a
modernidade.
O surgimento dos movimentos de vanguarda no comeo do sculo XX
provocou uma transformao cultural a qual ainda hoje vigora. Nos anos cinqenta
e sessenta, as vanguardas resgataram o que j havia sido formulado pelas primeiras
vanguardas do incio do sculo - Vanguarda histrica, no que se refere idia de
vanguarda como grupo unido a uma doutrina e disposto a romper com a ordem
estabelecida. Uma vanguarda isolada, sem desdobramentos ou sem rivais uma
impossibilidade histrica. Como movimentos ou formaes, as vanguardas
participaram ativamente durante perodos relativamente curtos, mas os
procedimentos artsticos vanguardistas perduraram ao longo do sculo. Quando
uma delas cumpre o seu priplo, inicia-se uma nova, que igualmente se extingue ao
realizar o seu projeto, e assim sucessivamente (POGGIOLI, 1986:83)
De modo genrico, as vanguardas caracterizam-se pelo culto do niilismo,
agonismo, futurismo, decadncia, numa palavra, pela ruptura total e irrestrita com o
passado nas suas mil formas e nas suas mltiplas solues (POGGIOLI, 1986; 61-
77). No terreno da poesia, as vanguardas caracterizam-se em trs formas de
rebelio: 1- contra a beleza o desdm tradicional exigncia da beleza, tanto no
objeto como na sua representao artstica, em razo do apoio tcito numa
esttica heternoma, metafsica e racionalista; 2- contra a rima e os moldes
formais, tendo em vista a criao de um novo instrumento potico, paradoxalmente
arquimusical, que se denominava verso livre; 3- contra a linguagem a poesia
deve resolver os seus prprios problemas com os seus prprios meios, reduzir-se a
expressar-se sem mais pr-fabricao do que a palavra; chegar ao leitor e nele
permanecer sem o auxlio mnemotcnico da rima, de forma que se reduza a slaba
linguagem potica (MORENO 1988: 63-65).
Divisadas, todavia, a posteriori, parecem delimitadas no tempo: fenmeno
sem precedentes na tradio cultural do mundo ocidental (idem: 163), as
vanguardas nas artes plsticas, na msica e na literatura desenvolveram-se
primordialmente nas duas primeiras dcadas do sculo XX, mais propriamente,
27
entre 1907, com o Cubismo e 1924, com o Surrealismo. Obviamente, a etimologia
da palavra vanguarda no a define nem a caracteriza, mas assinala, quando
menos, o espao virtual que preenche em relao s foras estticas reinantes em
determinado momento. Demarc-las, descrev-las, constitui, at certo ponto,
pleonasmo: a definio implica-lhe as caractersticas, intrnsecas ou extrnsecas, e
estas supem uma definio, que no nica nem imutvel.
Como definir uma prtica to disseminada e controvrsia? Peter Brger, em
sua obra Teoria de Vanguarda (1980), define as vanguardas a partir de critrio
nico: a superao da instituio arte. A oposio entre prxis vital e instituio
arte o trao bsico das vanguardas histricas tal como ele as denomina e
essa tenso se expressa na superao da autonomia da obra. Muito embora
saibamos que um critrio nico corre o risco de se desconsiderar as relaes
contingentes sobre as quais se estrutura cada movimento de vanguarda.
Dialogando sobretudo com Adorno, Lukcs e Benjamin o professor alemo
visa, em seu ensaio, reavaliar as relaes entre arte e sociedade na primeira metade
do sculo passado, bem como, suas possveis conseqncias na outra metade, com
o advento das Neovanguardas. Se, por um lado, alguns aspectos do pensamento de
Brger parecem hoje um tanto enrijecidos, com uma noo de classe social tributria
da realidade vivenciada por Marx no sculo 19, noo a ser, portanto
redimensionada, por outro, suas conceituaes so de grande atualidade,
merecendo todas as discusses que as cercam, desde a divulgao inicial. Mesmo
quando se discorda, aprende-se muitssimo com o autor.
A tese fundamental do livro que a vanguarda prope uma autocrtica,
refletindo sobre os prprios recursos artsticos no momento em que a autonomia da
arte atinge o pice na sociedade burguesa. A expresso autonomia da arte
significa que uma parte da produo cultural se separou, ganhando foros de
independncia. Trata-se, portanto, de uma abordagem poltica da esttica, a qual
teria se desvinculado dos outros processos sociais ou do que Brger chama de
prxis vital. As vanguardas histricas ( sobretudo Dadasmo e Surrealismo) teriam se
incumbido de romper com esse esteticismo que segrega a arte do contexto social.
Em suma: os movimentos histricos de vanguarda negam determinaes que so
essenciais para a arte autnoma: a arte deslocada da prxis vital, a produo
individual e divorciada desta, a recepo individual.
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Na primeira parte de sua Teoria de Vanguarda, Peter Brger levanta uma
discusso acerca dos movimentos histricos de vanguarda com base em suas
tentativas de transgredir os limites da arte como instituio e romper com a idia da
arte como representao. Ele estabelece duas teses: na primeira, diz que a
vanguarda permite reconhecer determinadas categorias gerais da obra de arte na
sua generalidade, e que, portanto, a partir da vanguarda podem ser conceitualizados
os estgios precedentes no desenvolvimento do fenmeno arte nas sociedade
burguesa, mas no o inverso. Na segunda, afirma que o subsistema artstico atinge,
com os movimentos de vanguarda europia, o estado da autocrtica. Mais adiante, o
terico usa o Dadasmo como exemplo, afirmando que este foi o mais radical dos
movimentos da vanguarda europia, j que no critica as tendncias artsticas
precedentes, mas a instituio arte tal como se fosse sociedade burguesa.
O terico revela, no entanto, que as vanguardas das dcadas de 1950 e
1960, as chamadas neovanguardas, nem chegaram perto das vanguardas histricas
no que diz respeito ao valor de protesto e efeito de choque, embora possam ter sido
mais bem arquitetadas que as antecedentes. Para Peter Brger, elas so ineficazes,
pois repetem um gesto que era inicialmente uma provocao como resposta
autonomia esteticista da arte. Essa a grande aporia sinalizada pelo autor e que
reverberam tambm na produo contempornea: emergindo com o propsito de
gerar um choque, que por sua vez desestabilizaria a instituio arte para romper
com o esteticismo e propiciar uma experincia que fizesse convergir arte e
sociedade. A repetio do gesto vanguardista acaba por se institucionalizar e por
reforar a acomodao esteticista. Isso corresponde ao que Octavio Paz, em seu
tambm fundamental Os filhos do barro, chamou de tradio de ruptura, ou seja,
de tanto romper em nome do novo, a prtica vanguardista geraria o efeito oposto,
engendrando outra forma de tradio.
A partir desses dois grandes pensadores da Vanguarda, Brger e Paz, muito
se pode refletir atualmente sobre a questo. Para Brger a neovanguarda
institucionaliza a vanguarda como arte e nega assim as genunas intenes
vanguardistas. As neovanguardas contradizem as intenes da vanguarda histrica
no que diz respeito ao rompimento com a instituio arte, por isso elas podem ser
vistas como afirmao de uma regresso, um anacronismo. Ao institucionalizar a
29
vanguarda como arte, as neovanguardas cumprem o destino que lhes est
reservado: j nascem historicizadas (PIZZARRO, 1995: 3vl. 355-356).
Segundo Octvio Paz (1993) o que distingue a modernidade brasileira de
outras pocas, no a celebrao do novo simplesmente, ou do surpreendente,
mas, sobretudo, a questo de ser uma ruptura; crtica ao passado imediato e
interrupo da continuidade. Como esttica de ruptura o vanguardismo refrata a
imagem incidida e deslocada da sociedade da poca, a crise de valores, o colapso
espiritual, a vertiginosa mutao tecnolgica e a modernizao urbana; a
insurgncia de setores marginalizados e de ideologias sociais desfaz esquemas
tradicionais e exigem novos meios expressivos aptos a representarem a cambiante
multifacetada realidade.
O que se nota, das vanguardas histricas as neovanguardas, pode ser
definido, de um modo mais amplo, tomando-se o sintagma vanguarda esttica
como sinnimo de ao grupal empenhada na negao do passado esttico
imediato, mergulhada num processo de auto-questionamento permanente e em
busca programtica do novo no contexto cultura urbano-industrial, sob os signos da
presso das massas e da efetiva globalizao do planeta. A prpria poca em que
surgiram as vanguardas vista, por seus agentes sociais como radicalmente distinta
de tudo o que aconteceu antes.
O cerne de todos os movimentos de vanguarda formal se desnuda com a
ruptura ostensiva com o passado e a agresso s convenes ditas realistas ou de
cpias sensveis. O esprito moderno aproxima futuristas e ultrastas, criacionistas e
dadastas, desvairistas e estridentistas1. Quase todas as teorias de modernidade de
Jauss Jlia Kristeva esto baseadas na idia de que a arte moderna se caracteriza
pela ruptura com os cdigos dados ou pr-estabelecidos ( SCHWARTZ, 1995:22).
Os escritores vanguardistas superam a intransigncia lapidada de seus
primeiros pronunciamentos e se acentuam na fisionomia dos diversos movimentos
cujo objetivo era quebrar esquemas rgidos e adequar a literatura ao novo ritmo da
vida moderna e inventar meio de representao que apontem a espontaneidade, a
1 Estridentismo um movimento interdisciplinar artstico que comeou 31.12. 1921 de dezembro na
cidade de Mxico, depois do lanamento do manifesto Atual N1 para o poeta Manuel Bordos Bordo.
Este movimento no tem uma data de declnio preciso e em autores ainda est acontecendo nos
anos 80 e 90 do sculo de XX
30
dissonncia, o imprevisto e o fragmentrio ( Cf. HOLLANDA 1981). As vanguardas
estticas apresentaram-se como espcie de ponta de lana no processo do
modernismo brasileiro, no processo de autonomizao da arte. Elas encontraram
cho frtil, diz Ferreira Gullar (1989), na periferia onde o desejo ardente do novo era
mais forte que as condies objetivas da modernidade. Alguns vanguardistas mais
lcidos como Csar Vallejo, Maria Tede e Mrio de Andrade recusaram a mitologia
da mquina e os traos da retrica fascista que a obra de Marinetti trazia em seu
bojo.
A vanguarda apresentou variedade de caminhos nas diversas instncias do
fazer narrativo: nas representaes dos espaos, no sentimento do tempo, no grau
de oralidade dos dilogos, na autenticidade do tom e na formao do ponto de vista.
Embora seja comum enquadrar as Vanguardas Latino Americanas no perodo dos
anos 20, vemos que em 1909 Ruben Dario, modernista hispano-americano o
primeiro a publicar uma resenha sobre o inovador trabalho de Marinetti, o Manifesto
Futurista. E nesse mesmo ano aparece, no Brasil, a primeira meno ao Futurismo
feita por Amante Diniz em jornal da Bahia.
Vrios tericos situaram as vanguardas na Amrica Latina no perodo que vai do
final da 1 guerra 1919 at a crise econmica, poltica e cultural provocada pela
queda da Bolsa de Nova York em 1929. Jorge Lus Borges adota 1922 como data
inicial geradora da era das letras. O escritor mexicano Jos Emlio Pacheco um
dos primeiros crticos contemporneos hispano-americano a chamar a ateno para
a internacionalizao do fenmeno de 22. A semana de 22 o divisor de guas na
cultura e nas artes no Brasil. Angel Rama, crtico literrio uruguaio, considera o
histrico evento como ingresso oficial das Vanguardas Latino-americanas. Dado o
carter radical de suas reinvidicaes, dada a negatividade dos cdigos com que
opera a Vanguarda tanto artstica quanto literria se define pela ruptura. E afinal de
contas, as rupturas podem ser os pontos-chave do conhecimento porque so elas
que revelam as contradies da cultura e da vida.
31
2.2- AS VANGUARDAS POTICAS NO BRASIL
No final da dcada de 1950 e de 1960, no Brasil, no campo das artes
plsticas, a partir do Concretismo e do Neoconcretismo, os artistas de vanguarda,
baseados em consideraes e experimentaes sob alguns aspectos semelhantes,
mas, sob outros, diferentes das que haviam sido feitas na Europa pela vanguarda
histrica, sentiram a necessidade de quebrar as compartimentaes, as categorias e
os gneros artsticos.
Os movimentos de vanguardas surgidos no Brasil a partir dessas dcadas
recuperam as idias fundamentais do Modernismo em dois aspectos: primeiro como
os poetas da gerao de 1922, os textos desses vanguardistas demonstraram a
busca de mensagens ou de temticas que fizessem do poema um testemunho
crtico da realidade sociopoltica nacional; segundo, a procura de cdigos, os quais,
rejeitando a tradio do verbo, tornassem o poema um objeto de linguagem de fcil
percepo, integrado - ou integrvel - na estrutura dos meios de comunicao de
massa ( LONTRA, 2000: 14).
Carlos Andr Carvalho, em seu livro sobre o Tropicalismo (2008), afirma que
no ser difcil mostrar que a cada manifestao coletiva ou a cada ensaio
individual, h uma preocupao de expressar- seja em verso ou em prosa- a
essncia da nossa nacionalidade. A preocupao com a nacionalidade, a nsia em
retratar as circunstncias locais, o modo de vida, de pensar, de sentir do homem
brasileiro vem desde os nossos primeiros textos barrocos, como muito bem lembra
Hilda Lontra. O discurso nacionalista j vinha tentando caminhos prprios,
irregulares e rebeldes desde os momentos iniciais da Literatura Brasileira, quando a
situao de colnia praticamente forava os autores a assumirem uma atitude
pacfica e submissa diante da metrpole. Entre os romnticos, no entanto, essa
busca veiculada pela palavra no foi harmoniosa nem regular. Diz Hilda Lontra:
Com o advento do realismo literrio, o inconformismo cultural,
expresso pela crtica aos ideais de nacionalismo vigente e pela busca da liberdade formal que traduzisse, com ajuste, a urgncia da reviso de valores que norteavam a cultura da nao, favoreceu a unio de artistas que partilhavam do mesmo ideal renovador (LONTRA, 2000: 12).
32
Uma nova dimenso dada poesia a partir de 1945 por conta das presses
histricas internacionais, principalmente a recuperao dos danos causados pela
guerra, e as circunstncias brasileiras: uma grande massa poltica economicamente
estagnada de um lado e uma pequena minoria intelectual e socialmente privilegiada
do outro. As bases da potica brasileira contempornea so, ento, marcadas por
uma ideologia do desenvolvimento e uma postura que tentava registrar as angstias
nacionais nascidas daquela situao poltica (CARVALHO, 2008: 31).
Segundo Ana Pizarro (1995: 335), na passagem de uma dcada para outra se
configurou uma situao curiosa para o desenvolvimento de novos movimentos de
vanguarda no Brasil: o surto construtivista, que vindo dos anos 40 dominou a cena
dos anos 50, ao mesmo tempo em que representava a retomada do esprito
revolucionrio e combativo das vanguardas do incio do sculo, marcava a transio
para o ciclo final das manifestaes vanguardistas no contexto da cultura brasileira.
A desagregao progressiva do projeto construtivo e a proliferao de tendncias as
mais variadas pop art, op art, arte ambiental, happenings, informalismo, novo
realismo, nova objetividade, nova figurao etc, bem como a adaptao heterodoxa
e contraditria dos projetos anteriores a estas tendncias novas, so sintomas
evidentes da exausto dos princpios vanguardistas.
O fenmeno que se agrupou sob a bandeira do Tropicalismo e que animou o
final dos anos 60 retomou as questes da vanguarda em novo contexto, atravs da
utilizao dos meios de comunicao e de veculos mais tradicionais como a msica
popular. J no outra fase do processo de atualizao artstica, antes uma
especificao das linguagens abstratas e altamente formalizadas das vanguardas
contra o fundo real da modernizao brasileira. Em poucos anos, os rumos tomados
pelo processo de transformao estariam distncia daqueles idealizados pela
euforia desenvolvimentista dos anos 50 e pelo debate ideolgico das esquerdas no
incio de 1960 ( Idem: 339).
A poesia concreta inaugurou o segundo ciclo vanguardista no contexto da
modernidade literria brasileira. Ao entrar em cena, oficialmente em 1956, ela
expressa, sobretudo confiana na capacidade que a modernizao, o progresso
tecnolgico e industrial tm de instaurar uma sociedade que desenvolver as ltimas
conseqncias as experincias sensoriais que qualificam a arte moderna. Em seu
33
af de atualizao e de pesquisa formal, os poetas concretistas no s repuseram
como exacerbaram seus procedimentos e tcnicas com uma ortodoxia programtica
no encontrvel no quadro do movimento concretista internacional, nem em
nenhuma outra manifestao brasileira anterior.
Em dezembro de 1956 um evento realizado em So Paulo tomou de assalto
as artes plsticas brasileiras: a I Exposio de Arte Concreta, no Museu de Arte
Moderna (MAM), marcando o surgimento da poesia concreta. A exposio coletiva
reuniu artistas plsticos como Hlio Oiticica, Alfredo Volpi, Lygia Pape, Waldemar
Cordeiro e Lygia Clark; e poetas como Waldemir Dias-Pinto, os irmos Haroldo e
Augusto de Campos, Dcio Pignatari e Ferreira Gullar. Como sabemos, exposio
que em janeiro do ano seguinte foi apresentada no MAM do Rio de Janeiro
conseguiu apontar algumas semelhanas entre a poesia e a pintura concretas. A
criao das bienais de So Paulo representa, ento, o ponto culminante do processo
de abertura e da tentativa de renovao das artes plsticas no Brasil
Mesmo nesta primeira exposio aproximando poetas e pintores, o que
parecia uma coisa inusitada, at ento, deve-se observar que, antes de a poesia
concreta ser lanada oficialmente, j havia um dilogo entre os poetas Augusto de
Campos, Haroldo de Campos, Dcio Pignatari e Ferreira Gullar com os principais
grupos da arte concreta-Ruptura, de So Paulo, e Frente do Rio de Janeiro
lanados quatro anos antes da exposio (idem: 34). Ainda em 1952, formou-se o
grupo Noigandres, que reuniu Dcio Pignatari e os irmos Campos. Foi ento que
Pignatari entra em contato com Waldemar Cordeiro, o maior expoente do grupo
Ruptura. Gullar tambm d incio a uma amizade com o Pernambucano Mrio
Pedrosa, crtico de arte e principal terico e divulgador da arte abstrata no Brasil.
A Poesia Concreta sempre esteve prxima das artes plsticas e visuais e dialogou intensamente com os pintores concretos nos anos 50. O poema-coisa explorava as potencialidades grficas da palavra e mergulhava num nvel de significao que a poesia tradicional no considerava. Portanto, nada mais natural que, um dia, a viagem visual prosseguisse para o nvel no-verbal e a poesia concreta passasse a incorporar a fotografia, a colagem, o desenho e os grafismos, de toda ordem (SIMON e DANTAS, 1982:60).
Helosa Buarque de Hollanda acredita que a poesia concreta pretendia levar o
Brasil a falar a linguagem de um novo tempo, veiculando informaes dos grandes
34
centros, divulgando alguns de seus principais tericos, escritores, poetas e
buscando, desta forma, atualizar a intelligentsia brasileira. No entanto, o desejo de
realizar um objeto industrial de padro internacional: um produto nacional de
exportao levou os participantes a cair na armadilha desenvolvimentista. Noutras
palavras, os poetas concretos acreditavam que o Brasil estaria ultrapassando o
desenvolvimento para adentrar numa nova era do pas desenvolvido (HOLLANDA,
1981: 41).
Radicalizar o mtodo construtivo dentro das linguagens geomtricas passa a
ser uma das principais propostas da arte concreta. Com o intuito de superar o atraso
da tecnologia brasileira e o irracionalismo uma decorrncia do nosso estado de
subdesenvolvimento - o concretismo brasileiro procura, a todo custo eliminar o puro
intuicionismo, a transcendncia e prope o artista informador, a partir da operao
com uma racionalidade esttica (CARVALHO, 2008: 37) A Poesia Concreta, por
exemplo, acentua muito a preocupao formalista da gerao de 45, mas
acrescenta explorao dos elementos fnicos do texto o uso de tcnicas como a
colagem, o grafismo, o desenho e a fotomontagem, amplamente empregadas pela
literatura dita ps-moderna.
O Neoconcretismo pronuncia-se contra o predomnio da tecnocracia, da
mquina e ciberntica e procura resgatar dimenses metafsicas de momentos
anteriores, dentre os quais o prprio Modernismo serve-se abundantemente da
interdisciplinaridade, sobretudo no que concerne s artes plsticas, e realiza amplos
experimentos com materiais alm do papel. A ruptura neoconcreta na arte brasileira
data de maro de 1959, com a publicao do Manifesto Neoconcreto pelo grupo de
mesmo nome, e deve ser compreendida a partir do movimento concreto no pas. O
manifesto assinado por Amlcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weismann, Lygia
Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis, denuncia j nas linhas
iniciais que a tomada de posio neoconcreta se faz particularmente em face da
arte concreta levada a uma perigosa exacerbao racionalista.
Contra as ortodoxias construtivas e o dogmatismo geomtrico, os
neoconcretos defendem a liberdade de experimentao, o retorno s intenes
expressivas e o resgate da subjetividade. Uma tentativa de renovao da linguagem
geomtrica pode ser observada nas esculturas de Amilcar de Castro. A arte interpela
o mundo, a vida e tambm o corpo, atestam o Ballet Neoconcreto, 1958, de Lygia
35
Pape e os Penetrveis, Blides e Parangols criados por Oiticica nos anos 60. E a
instaurao Prxis, se de um lado retoma a dimenso conteudstica e o tnus
ideolgico que nunca faltaram ao Modernismo brasileiro, de outro lana mo de
recursos, como a construo em processo, o espao intersemitico e o envolvimento
do leitor, mais freqentes na poesia dos movimentos posteriores, como o Poema
processo e a Arte Postal (COUTINHO, 2003, vl. 6: 241).
Ao contrrio do PCC, Prxis no deseja apenas que a massa se politize, mas
quer ela prpria encarnar um sujeito da histria que idealmente representasse a
emancipao do povo brasileiro. A verdadeira revoluo se faz pela prxis diz
Pizzarro e se conclui pela leitura desses poemas que so os verdadeiros agentes da
transformao: a literatura prxis se estabelecer, em definitivo, como fazer
histrico, quando intelectuais e povo forem leitores de uma mesma linguagem
(PIZZARRO, 1995, vl.3: 351).
Do Poema Processo comentamos a reao ao Estruturalismo literrio e
filosfico, a tendncia ao ludismo e a explorao muitas vezes ousada do signo no
lingstico, que aproxima a composio potica do desenho; do Tropicalismo, a
preocupao com a dialtica entre o nacional e o cosmopolita e a atitude de
carnavalizao, no sentido bakhtiniano do termo, expressa, sobretudo pelo humor e
a pardia. O Tropicalismo, logo depois de sua exploso inicial, transformou-se num
termo corrente da indstria cultural e da mdia. Em que pesem as polmicas geradas
inicialmente (e no foram poucas), o Tropicalismo acabou consagrado como ponto
de clivagem ou ruptura, em diversos nveis: comportamental, poltico-ideolgico e
esttico.
Apresentado como face brasileira da contracultura, ora apontado como ponto
de convergncia das vanguardas artsticas mais radicais (como a Antropofagia
modernista dos anos 20 e a Poesia Concreta dos anos 50, passando pelos
procedimentos musicais da Bossa Nova), o Ps-Tropicalismo, seus heris e
eventos fundadores passaram a ser amados ou odiados com a mesma
intensidade.
A Poesia Marginal aponta para a dessacralizao da obra potica e dos
meios de produo expressa pelo carter artesanal dos livros e folhetos, escritos
freqentemente em equipe e vendidos em entrepostos culturais variados, como
cinemas, bares e lojas. Essa poesia foi uma prtica potica marcada por poetas que
36
queriam se expressar livremente em poca de ditadura, buscando caminhos
alternativos para distribuir poesias e revelar novas vozes poticas. Foi um
movimento fundado nos anos 70 cujos nomes mais marcantes foram: Ana Cristina
Csar, Paulo Leminski, Ricardo Carvalho Duarte (Chacal) e Cacaso. As Poesias
eram distribudas em livretos artesanais mimeografados, carregados de
coloquialidade e objetividade.
Em texto de 1972, publicado na coluna Gelia Geral, organizada por
Torquato Neto para o jornal ltima hora, Waly Salomo enfatizava que a poesia de
Chacal apreendia no apenas a poesia de Oswald de Andrade, mas tambm o
esprito de 22. Segundo Waly: em ningum vi um entendimento to afetivo [...] do
Caderno de Aluno de poesia de Oswald de Andrade quanto Chacal, Ricardo, autor
desse maravilhoso Muito prazer (...). Questo de mtodo: em 72 vejo prevejo
veremos a restaurao do pior esprito Semana Arte Moderna 22 comemorado em
retrospectiva, Chacal o melhor esprito: aquele que sabe que a poesia a
descoberta das coisas que ele no viu (SALOMO, 1981: 231).
Vale ressaltar que a Poesia Marginal no foi um movimento potico de
caractersticas padronizadas, foi um momento de liberao dos termos e expresso
livre num momento de represso poltica nos fins da dcada de 60. A poesia foi
levada s ruas, praas e bares como alternativa de publicao, alternativa que
estivesse longe da censura. Tudo era considerado suporte para expresso e
impresso de poesias, fosse um folheto, uma camiseta, xerox, apresentaes em
caladas e etc. Foi uma poesia que se manifestou como um mltiplo desdobramento
do Tropicalismo, como um repto Ditadura Militar que se instalaram no Brasil e que
resultou de um determinado comportamento anti-sistema e que nasceu no clima
tropicalista. Os primeiros registros dessa produo artesanal surgem no binio 71-
72, o jornal Tribo, com poemas de Chacal e Charles e a estria de Waly
Sailormoom.
A Arte Postal, associa o artesanal com o prtico, a explorao de materiais os
mais diversos e o seu cunho internacional, que a integra a movimentos semelhantes
de todo o mundo ocidental, por meio de exposies, com a publicao de catlogos,
e da correspondncia entre os poetas. Citem-se ainda em todos eles, a ampla
liberdade de estilo, a fuso entre o erudito e o popular e o cunho interdisciplinar das
composies. A liberdade esttica constitui o a priori de todas as vanguardas
37
literrias. O senso da liberade propicia, de um lado, a disposio de agir licitamente
no momento de criar formas ou de combin-las, e, de outro, amplia o terrritrio
subjetivo, tanto na conquista de um alto grau de conscincia crtica ( pedra de toque
da modernidade), quanto na direo, s aparentemente contrria, de abrir a escrita
s pulses afetivas que os padres dominantes costumam fazer
( SCHWARTZ, 1995:23).
2.3- WALY SALOMO E AS VANGUARDAS CONTEMPORNEAS
As nossas vanguardas so verdadeiros compostos de paradoxos; a busca de
traos comuns esbarra cada passo ou posies e juzos contrastantes; elas
reconheceram demasia de imitao e demasia de originalidade. As vanguardas
propuseram algo de conscincia crtica: pensar livremente, exprimir livremente,
formar livremente; esse era o legado verdadeiro do esprito novo.
(SCHWARTZ, 1995: 23). Nos escritores mais vigorosos, a exemplo de Waly, os
quais por sua complexidade interiror se liberam mais depressa das palavras de
ordem, a busca de uma expresso ao mesmo tempo universal e pessoal que vai
guiar as suas poticas e as suas conquistas estticas.
Dentro da modulao moderna de vanguarda, os poetas de So Paulo
estabeleceram programas, manifestos, que acabaram por atualizar produes de
linguagem no mesmo sentido atualizador dos modernistas, essenciais
modernidade potica do sculo XX no territrio brasileiro, quela altura, fins dos
anos 50, tomados pela onda passadista da chamada Gerao 45. Os concretistas
ocupavam um lugar fundamental de informao e de inveno e representam at
hoje a linha hegemnica da poesia no Brasil. Uma linha que poetas mais novos
como Paulo Leminski, Bonvicino, Alice Ruiz, Antonio Risrio e Waly Salomo
acabariam por confirmar e que, a partir dos anos 80, constitui-se em uma ntida
retomada, dentro de um contexto cultural que no mais lidaria, em tese, com os
pressupostos caracterizadores da vanguarda.
Para o entendimento com mais propriedade a continuidade dos
procedimentos da vanguarda, no caso dos poetas mais novos j citados, faz-se
38
necessrio enfatizar alguns dados: a presena no totalmente descartada da arte
moderna na produo contempornea, o que se d em todo um debate, conhecido
entre moderno e ps-modermo, capaz de traar diferenas, rupturas, mas partindo
sempre de um legado a que se ope, em um sentido no mais das vezes, de uma
radicalizao antes de ser a instaurao de um novo tempo, de uma cultura
inteiramente outra como ocorreu na passagem entre o sculo XIX e o sculo XX.
Outro fator relevante no contexto desta hegemonia da vanguarda no Brasil foi
o papel desempenhado pelos irmos Campos, porta-vozes da arte no apenas
potica, e no apenas moderna, do pensamento crtico-terico existente sobre o
critrio da inveno. Todavia, o novo privilegiado por estes tradutores, tericos e
poetas apresentou-se formatado dentro de uma dico que obstrui, sob o signo da
defesa do territrio conquistado na histria da poesia nacional. Dessa forma flui um
encontro desarmado, multifacetado, entre a linguagem e o mundo contemporneo.
No se pode esquecer o percurso da poesia brasileira, entre os fins dos anos
50 e os anos 90, que vo chegando ao fim, capaz de iluminar, seja pelo contraste,
seja pelo fator controverso de suas inovaes, o debate contemporneo. O dado
traduzido com a chamada poesia marginal: o fato de oferecer a despeito de todo
um tributo prestado vanguarda concretista (caso evidente de Torquato Neto, Waly
Salomo, Cacaso e Chacal) elementos para uma dico prxima dos procedimentos
ps-modernos. O que ganha espao nestes textos a incorporao sistemtica de
formas lingsticas casuais e no poticas: cartas, dirios, conversas, anedotas e
notcias de jornal. Uma poesia desprogramada, reveladora, em estado bruto, direto,
com o ritmo e os ndices, muitas vezes, de uma anotao, de experincias do
cotidiano, ilegitimado, da cultura, da maneira como Steven Connor detecta os traos
ps-moderno na Literatura.
A poesia que floresceu nos anos 70 e na qual se insere Waly Salomo foi
uma poesia mutante, inquieta, anrquica. No se filia a nenhuma esttica literria
em particular, embora se possam ver nela traos de algumas vanguardas que a
precederam, tais como do concretismo dos anos 50 e 60 ou do poema processo. Os
poetas jovens foram, principalmente, contra; contra as portas fechadas da ditadura,
contra o discurso organizado, contra o discurso culto, contra a poesia tradicional. A
poesia foi s ruas gritar liberdade. Uma poesia de tom tropicalista: eliminou
fronteiras e teve a coragem de entrar em todas as estruturas.
39
Em qual sentido, contudo, devemos compreender ser um poeta marginal?
No horizonte dos anos 60/70 a palavra adquiriu um sentido herico e rebelde,
sintetizado no lema de Hlio Oiticica: Seja marginal, seja heri. O artista marginal
se colocava como um fora da lei, ou um herdeiro de uma tradio do poeta-profeta
- como nos poemas de Roberto Piva ou um ser sensvel e desajustado o mito de
Torquato Neto. Em ambos os casos, marginal consagra um estilo de vida fora e/ou
contra os padres vigentes. Da por que se diz que Waly Salomo era um poeta
marginal. Embora o mesmo veja isso como rotulao. A imagem do desajuste j era
corrente no gauche drummondiano.
A figura do marginal, para Hlio Oiticica, encarnava um problema tico,
porque ao simbolizar uma revolta individual social revelava-se um comportamento
ambivalente, que aliava uma grande sensibilidade e uma busca desesperada de
felicidade atravs do crime. Talvez, por esse sentido, que Waly no se
considerava um poeta marginal. Enquanto categoria antropolgica-poltica,
marginal funcionava como um smbolo de confronto social, busca de um padro de
vida divergente ao proposto pelo status quo. Segundo Helosa Buarque de Hollanda
a poesia dos anos 70 retomava a tradio mais rica do modernismo brasileiro: uma
potica do cotidiano como fator de inovao e ruptura com o discurso nobre
acadmico (HOLLANDA, 2007: 11).
Ainda segundo Helosa os poetas marginais no seguiam os parmetros da
impessoalidade como construo potica. A desumanizao do verso foi um dos
leitmotiv da vanguarda concretista, ao recus-los, a gerao marginal negava um
elemento de possvel influncia da teoria concreta. Por outro lado, em seu espao
material e visual (logopia, para usarmos uma expresso poundiana), os poetas
marginais absorveram a dupla face das lies da vanguarda. O lugar do concretismo
no plano potico dos anos 70 um terreno movedio. Por um lado, representa em
poesia o que os poetas repeliam na vida: a imagem de autoridade; por outro, os
concretistas so os primeiros a promover os referenciais imediatos da poesia
marginal, isto , o modernismo, o tropicalismo e a antropofagia.
A maioria dos estudiosos da produo marginal dos anos 70 aponta os nomes
de Waly Salomo e Torquato Neto como os que melhor representam as mltiplas
tendncias do tempo: verdadeiros pais fundadores do que seria essa vanguarda por
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reconhecerem nessas invenes de pensamento o trabalho de uma razo interna e
a expresso de uma fome de verdade. Assim os define Armando Freitas Filho:
Encontramos neles a representao do estilhaamento, dos mil caminhos e descaminhos da poesia brasileira; uma verdadeira salada, um melting pot, ou melhor, dizendo, um meeting das mais dspares tendncias.No h em suas produes nenhuma preocupao de coerncia estilstica (...) no existe a noo de continuidade organizada; o conceito cronolgico no importa nem preocupa; cada poema uma obra, no seu nico e sempre outro momento (FREITAS FILHO,1979: 96).
Em busca de uma poesia pautada na imagem e no som, captada com
antecipaes pelos modernos como integrante de uma rede intersemitica,
multicultural e plurilingstica, que os irmos Campos, assim como os poetas por
eles formados, como o caso de Arnaldo Antunes, (evidencia o som, a imagem e a
tcnica de uma poesia como pea intersemitica) tm se colocado em movimentos,
na tentativa de se afinarem com a contemporaneidade, que no comportaria mais a
reedio de posturas e procedimentos da vanguarda histrica dos anos 50 e 60.
nesse sentido que um poeta como Waly Salomo, formado pelo
concretismo, pelo princpio construtivista em arte, mas tambm pelo cinema
desconstrutor de Godard e pela obra brbara de Hlio Oiticica, mostra em
Algaravias (1996) a contraluz da poesia programada pela brevidade, pela reiterao
de um pseudo-rigor incapaz de lanar dados ao acaso. Com Waly se desenha a
irrupo da poesia livre e do corpo presente no acontecer do mundo
contemporneo; aquela que, cada vez mais culta, aponta o inacabamento e a
urgncia de um tempo que vibra e pede uma soma de sentidos e escrita, de conceito
e ritmo, que pede um corpo, uma linguagem na qual faa emergir o poeta em ato,
em tempo, atravs de palavras-clares de significado, versos de risco/trovoadas. A
voz em sua potncia plena, o dizer em todas as direes sgnicas e culturais. Waly
esse poeta marcado pela gestualidade e pela dico, em contato discursivamente
direto e demirgico com o mundo e a terra.
A ruptura parece seguida pela noo de corte com o passado e com o
domnio esttico de outros cortes: histrico, axiolgico, social, tcnico, ecolgico,
etc. As Vanguardas impem arte uma permanente mudana nas concepes e
41
condutas artsticas; revolues tecnolgicas e instrumentais se conjugam com
revoluo mental. So estas noes e efeitos de rupturas, cortes, inovaes e
recriaes que permitem detectar os escritos vanguardistas de Waly Salomo
baseados no apenas no desacato norma, mas na construo de uma proposta
que mistura tudo e converge para o corpo. o sujeito atual, profundo conhecedor
dos postulados de vanguardas, um sujeito que rompe o distintivo de seus mundos e
modos de modos de representao s peculiaridades dos signos e suas estratgias
textuais.
Na cena cultural brasileira contempornea, a vitalidade da questo potica
pode ser atestada no s pela j to repisada constatao da pluralidade de dices
lricas que vm encontrando espao para publicao e circulao miditica e
acadmica; mas ainda, e principalmente, pela diversidade polmica da recepo
crtica que essas dices tm gerado. Sabemos que os anos 70/80/90 so marcados
por transformaes culturais que, independente de qualquer mapeamento, ecoam
movimentos de vanguardas e retaguardas. O perodo configura uma espcie de
potica da hesitao que vai do aquele tempo que acabou (Torquato Neto) as mais
intrigantes pulsaes dos imaginrios sociais. A livre transio de doaes e trocas
contnuas, favorecendo o nvel de contaminao entre discursos rompe com
hierarquias convencionais e impe novos desafios no campo da cultura e da arte.
Waly Salomo o sujeito que se caracteriza por essa multiplicidade de
dimenses, de direo, de formas, de focos, de escalas, de marco de referncia.
Nele se uniam duas virtudes: a erudio que o faz consistente, e o humor, que o
vacina contra a pompa, embora sempre reconhecido muito mais pelo ltimo. A
poesia walyana surge no contexto das vanguardas como pungente meio de
probabilidade, como arbitrria interseo de incidncias. uma poesia que na sua
origem j vem imbuda de noes de colapso, mutao, revolta, dinamismo e azar;
uma poesia pautada na descontinuidade, na relatividade e fragmentao. Vai buscar
na anti-arte de Oiticica os efeitos dos parangols para praticar sua anti-poesia.
Waly Salomo surge no cenrio da cultura brasileira como um sujeito
contracultural que devora e reprocessa o que encontra. Reelabora tudo sob forma
de uma escrita que recusa padres, formatos prvios e desarruma os olhares
hegemnicos de imensa parte dos tradicionais posicionamentos discursivos no
Brasil. Gilberto Gil, nosso entrevistado, chega a afirmar: todo gesto de Waly era
42
para apresentar a manifestao da vida como ebulio. Como erupo, exploso; o
elemento fogo, o calor, essa era a matria bsica do seu fazer cultural; um lutador,
incansvel , inquieto na manifestao do pensamento, no gesto e na euforia da
palavra.
A produo de Waly parece contm indcios de um universo mais largo para a
linguagem potica em sua modulao na cena de agora, tomada aqui como espao
de redefinies do fazer literrio e da construo de uma nova cultura. Nova por sua
abertura ao campo maximal de foras, acontecimentos e linguagens que
reconfiguram as redes do conhecimento e da arte em nossos dias. Em A fbrica do
poema, por exemplo, uma espcie j de clssico moderno, poema j estudado em
faculdades de Letras e bastante difundido pela verso musical de Adriana
Calcanhoto, Waly como que escancara o sonho do poema construdo de
arquitetura ideal - construtivista das vanguardas, por meio de uma
desmaterializao de seus suportes conceituais mais rgidos, aqueles que
estampam um objeto acabado, dado iconicamente, mas ainda modernamente
concebido como obra fechada, compacto visual dotado de leis de construo e de
leitura (e de precursores tomados como referendadores, no caso brasileiro da
vanguarda).
Na vertigem do sono/sonho e da construo, o poeta encontra suas leis mais
secretas. Waly encontra o vrtice no qual o poema eclode e se mascara sob
camadas e camadas de aparies, arquiteturas e esvaimentos, por meio da
montagem aberta a quem o l abandono da torre de vigia, de autor fantasma de
forma a incidir nos processos e enfrentamentos de risco da linguagem, em seus
mltiplos dimensionamentos (a noite/o tempo/o esquecimento/o fim/o silncio, sob
as mscaras da arte, sob as mscaras do corpo), como se pode depreender do
poema: (SALOMO,1996: 35).
Sonho o poema de arquitetura ideal cuja prpria nata de cimento encaixa palavra por palavra tornei-me perito em extrair fascas das britas e leite das pedras. Acordo. e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo acordo. O prdio, pedra, cal, esvoaa como um leve papel solto merc do vento e evola-se, cinza de um corpo esvado de qualquer sentido. Acordo, e o poema-miragem se desfaz
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desconstrudo como se nunca houvera sido. Acordo! os olhos chumbados pelo mingau das almas E ouvidos moucos, assim que saio dos sucessivos sonos: vo-se os anis de fumo de pio e ficam-se os dedos estarrecidos. Sindoque, catacreses, metonmias, aliteraes, metforas, oxmoros sumidos no sorvedouro. No deve adiantar grande coisa permanecer espreita no topo fantasma da torre de vigia. Nem a simulao de se afundar no sono. Nem dormir deveras Pois a questo-chave : Sob que mscara retornar o recalcado? (mas eu figuro meu vulto at a escrivaninha). e abrindo o caderno de rascunho onde j se encontra escrito que a palavra recalcado uma expresso por demais definida, de sintomatologia cerrada assim numa operao e supresso mgica vou rasur-la daqui do poema). Pois a questo-chave : Sob que mscara retornar?
Considerando que a partir dos anos 20 a arte manifesta uma crescente
diversificao tanto teortica quanto operativa, exercendo uma mobilizao dos
signos a fim de segurar um mundo onde todas as ordens temporal/espacial,
objetiva/subjetiva, intrnseca/extrnseca, real/imaginria, causal/acidental,
natural/artificial, conexa/desconexa, concreta/abstrata se inferem, se relacionam, se
mesclam nos diferentes cdigos, Waly se insere no contexto dessas vanguardas e
com elas estabelece relaes. Ele tem a convico de que vive uma vertiginosa e
compulsiva atualidade sujeita a transformaes radicais e em rupturas
revolucionrias com o passado que lhe permite expressar essa modernidade
inovadora, marcada explcita e implicitamente por tantos filtros perplexos do
cotidiano. A formao de uma conscincia em aberto para escolher e julgar os seus
modos de agir.
Segundo Alfredo Bosi, a liberdade permite que a sede de horizonte e de
galope se sacie onde e como lhe parea melhor e, para tanto, necessrio que ela
exera primeiro a ruptura com a m positividade das convenes ossificadas;
depois, no curso da luta, o escritor vai enfrentar o seu assunto, que o levar de volta
s suas experincias vitais e sociais significativas. A liberdade marcar ento novos
termos e limites, exigindo o tom justo, a perspectiva certa. E o modernismo ceder a
44
vez quele moderno que sobrevive s modas (BOSI, 1995:24).
No Brasil dos anos 1950 ocorreu a institucionalizao do modernismo e dos
procedimentos experimentais das vanguardas: Bossa Nova, Jovem Guarda
Concretismo, Tropicalismo, Construtivismo. Os impasses ideolgicos que surgiram
com essa nova cultura brasileira emergiram e ganharam corpo entre os anos 1950 e
1970. Esses so alguns dos domnios que serviram como fonte para o estudo da
potica walyana. Waly pensou (e escreveu) essa vida cultural no pela lgica
limitadamente a posteriori da representao escrita ou scio-histrica, mas pela
trama vivenciada em suas obras e o mundo.
O importante debate contemporneo sobre as margens e as fronteiras das
convenes sociais e artsticas tambm o resultado de uma transgresso
tipicamente ps-moderna em relao aos limites aceitos de antemo: os limites de
determinadas arte, dos gneros, ou da arte em si. Uma das lutas de Waly era contra
esses limites da arte e do homem. Da ser um poeta multimdia: indcios da frtil
ampliao da fronteira entre as artes literrias e visuais. J em 1969, Theodore
Ziolkowski notava que:
As novas artes se relacionam com tal proximidade que no nos podemos esconder de maneira complacente por trs dos muros arbitrrios das disciplinas que autocontm: inevitavelmente, a potica d lugar esttica geral, consideraes referentes ao romance se transportam com facilidade para o cinema, enquanto a nova poesia costuma ter mais pontos em comum com a msica e a arte contempornea do que com a poesia do passado (1969:113).
Esta uma das razes que nos embasam para afirmar que Waly Salomo
descende diretamente das disputas, questes e rupturas que tiveram como cenrio
os anos entre 1950 e 1970 no Brasil. Nos anos 1950, a Bahia contribuiu
grandemente para o estabelecimento dessa nova ordem cultural do pas. Nomes
como Gilberto Gil, Caetano Veloso, da arquiteta Lina Bo Bardi, do etno-fotogrfico,
Pierre Verger, do artista plstico Caryb, entre outros, foram associando uma
esttica de vanguarda a uma sensibilidade antropolgica, que nos dizeres de
Antonio Risrio, so agentes transformadores da paisagem cultural baiana, posterior
e intensamente firmada pela gerao tropicalista no final dos anos 1960
(RISRIO:1995).
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Waly, que por sua vez recusou o rtulo de poeta tropicalista, vai operar um
tipo de sntese disjuntiva das opes disposio de quem pensava e produzia
cultura at ento. Inclua a essa estirpe de interventores culturais, bem como seus
continuadores tropicalistas, dialogando de modo intenso, notadamente com o amigo
Hlio Oiticica e com Torquato Neto, com quem comandou uma revista potico-
cultural de muito sucesso no incio dos anos 1970, A Navilouca, antes do suicdio do
amigo em 1972.
Na sua alquimia verbal, Waly extrapolou as limitaes scio-geracionais da
poesia especificamente dos anos 70, presa s vezes demasiadamente, a
esquematismos de marginalidade e rebeldia ou a convencionalismos beletristas. Ao
contrrio de muitos contemporneo, como afirma Silviano Santiago (2000:197), Waly
no assassinou Mallarm- a propsito da poesia brasileira dos anos 1970, quando a
biblioteca deixa de ser o lugar por excelncia do poeta e o seu pas o mass
media; se isso parece correto, tambm demasiadamente generalizante, pois no
atenta para as particularidades possveis de tratamento a cada poeta. Como uma
espcie de poeta ps-construtivista, Waly reelabora o construtivismo de biblioteca de
certa poesia e o fricciona com a rua e os mass media, pelos quais transitou com
desenvoltura.
Segundo Sandro Ornellas (2008), Waly, como Sailormoon misto de
codinome de clandestinidade, persona heteronmica e anagrama confessional, com
o qual assinou seu primeiro livro-, atravessou o rido deserto da ditadura cata de
pequenas minas de gua cristalina ou de gigantescas quedas dgua discursivas e
com elas fez algumas das armas mais eficientes para as ento emergentes polticas
de subjetividades: o desbunde, a desculpabilizao, o engajamento poltico-terico,
o hibridismo carnavalizante, as drogas, como uma experincia que, parte seus
usos particulares, marcou mais de uma gerao, se se incluir a o Tropicalismo.
Assim, perspectivas poticas como o estilhaamento da unidade do texto e da
prpria subjetividade, a exuberncia corporal, a coloquialidade estilizada e a
reelaborao da experincia pessoal vo ganhar status de esttica geracional, e que
tambm ter em Waly um dos seus principais agenciadores.
O que faz a diferena na potica de Waly a profundidade intelectual de sua
produo literria formada de textos imbudos de uma originalidade precisa centrada
no compromisso com o agora apontando para o futuro numa inconclusiva oficina
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potica. Waly no era um versejador era um revolucionrio na sua forma de ser, de
escrever, de poeta e tambm ator. A poesia walyana tal qual as vanguardas no
sugere outra coisa seno um mosaico de paradoxo. Embaralhar todas as cartas,
alterar com todas as letras. Sua palavra de ordem alterar porque se abre ao outro,
ao desconhecido e enigmtico desafio. Alterar o dado pr-definido, j visto,
consumido, globalizado. Por isso o poeta tem fome. o desejo de uma nova
experincia intelectual e expressiva que o aparta dos clichs, meio naturalistas, meio
parnasianos, meio tudo, da belle poque, e o lana em cheio na busca do carter
ou no carter brasileiro.
O poeta Waly Salomo cultivou uma escrita em linha com o experimentalismo
de vanguarda, e vai alm do trao estilstico, e tambm da pedagogia concretista,
pois o que lhe interessa so os aspectos confrontativos da poesia. Nele se evidencia
a referncia alta cultura e a cultura de massa, o uso de expresses tpicas do rock
como baby, as citaes em ingls, o confrontamento com a esquerda. Em Waly
lemos: no tenho a virtude mesquinha de acreditar nas torturas sofridas por um
velho comunista de 70 anos que leva a srio um sonho frustrado de tomada de
poder. No tenho a virtude mesquinha de acreditar nas torturas: gnios se castram
por si. Velho comunista. Mentiroso. Nada de novo pode surgir da. E se por um
texto bastante ambguo eu for chamado pra depor? (HOLLANDA, 2007: 185)
O que importa, afinal