25
Síntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004 107 SÍNTESE - REV. DE F ILOSOFIA V. 31 N. 99 (2004): 107-131 A POLÊMICA EM TORNO AO PSICOLOGISMO DE BOLZANO A HEIDEGGER Mario Ariel González Porta PUC-SP “… pois, na filosofia, precisamente os problemas estão intimamente vinculados e um se desprende e se desencadeia do outro...” 1 Resumo: A crítica do psicologismo constitui o tema da A crítica do psicologismo constitui o tema da A crítica do psicologismo constitui o tema da A crítica do psicologismo constitui o tema da A crítica do psicologismo constitui o tema da Dissertatio Dissertatio Dissertatio Dissertatio Dissertatio heideggeriana, um heideggeriana, um heideggeriana, um heideggeriana, um heideggeriana, um texto citado regularmente, porém pouco estudado. A carência principal constatável texto citado regularmente, porém pouco estudado. A carência principal constatável texto citado regularmente, porém pouco estudado. A carência principal constatável texto citado regularmente, porém pouco estudado. A carência principal constatável texto citado regularmente, porém pouco estudado. A carência principal constatável é a deficiente atenção ao contexto no qual o mesmo foi escrito. Este contexto, não é a deficiente atenção ao contexto no qual o mesmo foi escrito. Este contexto, não é a deficiente atenção ao contexto no qual o mesmo foi escrito. Este contexto, não é a deficiente atenção ao contexto no qual o mesmo foi escrito. Este contexto, não é a deficiente atenção ao contexto no qual o mesmo foi escrito. Este contexto, não obstante, é elemento imprescindível para uma adequada valorização do escrito que obstante, é elemento imprescindível para uma adequada valorização do escrito que obstante, é elemento imprescindível para uma adequada valorização do escrito que obstante, é elemento imprescindível para uma adequada valorização do escrito que obstante, é elemento imprescindível para uma adequada valorização do escrito que explicite o que ele representa para a filosofia alemã do momento e para a fixação do explicite o que ele representa para a filosofia alemã do momento e para a fixação do explicite o que ele representa para a filosofia alemã do momento e para a fixação do explicite o que ele representa para a filosofia alemã do momento e para a fixação do explicite o que ele representa para a filosofia alemã do momento e para a fixação do caminho do pensar heideggeriano ao “Ser e tempo”. As linhas que se seguem esta- caminho do pensar heideggeriano ao “Ser e tempo”. As linhas que se seguem esta- caminho do pensar heideggeriano ao “Ser e tempo”. As linhas que se seguem esta- caminho do pensar heideggeriano ao “Ser e tempo”. As linhas que se seguem esta- caminho do pensar heideggeriano ao “Ser e tempo”. As linhas que se seguem esta- belecem as bases para o tratamento de ambas as questões, na medida em que recons- belecem as bases para o tratamento de ambas as questões, na medida em que recons- belecem as bases para o tratamento de ambas as questões, na medida em que recons- belecem as bases para o tratamento de ambas as questões, na medida em que recons- belecem as bases para o tratamento de ambas as questões, na medida em que recons- troem o mencionado contexto em uma ampla perspectiva histórico-evolutiva que, troem o mencionado contexto em uma ampla perspectiva histórico-evolutiva que, troem o mencionado contexto em uma ampla perspectiva histórico-evolutiva que, troem o mencionado contexto em uma ampla perspectiva histórico-evolutiva que, troem o mencionado contexto em uma ampla perspectiva histórico-evolutiva que, ainda que sintética, pontua as inflexões decisivas que a temática do psicologismo ainda que sintética, pontua as inflexões decisivas que a temática do psicologismo ainda que sintética, pontua as inflexões decisivas que a temática do psicologismo ainda que sintética, pontua as inflexões decisivas que a temática do psicologismo ainda que sintética, pontua as inflexões decisivas que a temática do psicologismo experimenta de Bolzano a Husserl. experimenta de Bolzano a Husserl. experimenta de Bolzano a Husserl. experimenta de Bolzano a Husserl. experimenta de Bolzano a Husserl. Palavras-chave: Heidegger, psicologismo, platonismo lógico, neokantismo, filosofia da Heidegger, psicologismo, platonismo lógico, neokantismo, filosofia da Heidegger, psicologismo, platonismo lógico, neokantismo, filosofia da Heidegger, psicologismo, platonismo lógico, neokantismo, filosofia da Heidegger, psicologismo, platonismo lógico, neokantismo, filosofia da vida ( vida ( vida ( vida ( vida ( Lebensphilosophie Lebensphilosophie Lebensphilosophie Lebensphilosophie Lebensphilosophie ). ). ). ). ). 1 Tr. do autor: “…da in der Philosophie gerade die Probleme innig verwachsen sind und eines das andere aus- und ablöst…” (Martin Heidegger: “Neuere Forschungen über Logik”. Em: “Gesamtausgabe. 1 Abteilung. Band I: Frühe Schriften” Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1972. pp . 17-45 (NFL,17)).

An Tips i Colo Gismo

Embed Size (px)

DESCRIPTION

a

Citation preview

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004 107

    SNTESE - REV. DE FILOSOFIA

    V. 31 N. 99 (2004): 107-131

    A POLMICA EM TORNO AO PSICOLOGISMODE BOLZANO A HEIDEGGER

    Mario Ariel Gonzlez PortaPUC-SP

    pois, na filosofia, precisamente os problemas esto intimamente vinculados

    e um se desprende e se desencadeia do outro...1

    Resumo: A crtica do psicologismo constitui o tema da A crtica do psicologismo constitui o tema da A crtica do psicologismo constitui o tema da A crtica do psicologismo constitui o tema da A crtica do psicologismo constitui o tema da DissertatioDissertatioDissertatioDissertatioDissertatio heideggeriana, um heideggeriana, um heideggeriana, um heideggeriana, um heideggeriana, umtexto citado regularmente, porm pouco estudado. A carncia principal constatveltexto citado regularmente, porm pouco estudado. A carncia principal constatveltexto citado regularmente, porm pouco estudado. A carncia principal constatveltexto citado regularmente, porm pouco estudado. A carncia principal constatveltexto citado regularmente, porm pouco estudado. A carncia principal constatvel a deficiente ateno ao contexto no qual o mesmo foi escrito. Este contexto, no a deficiente ateno ao contexto no qual o mesmo foi escrito. Este contexto, no a deficiente ateno ao contexto no qual o mesmo foi escrito. Este contexto, no a deficiente ateno ao contexto no qual o mesmo foi escrito. Este contexto, no a deficiente ateno ao contexto no qual o mesmo foi escrito. Este contexto, noobstante, elemento imprescindvel para uma adequada valorizao do escrito queobstante, elemento imprescindvel para uma adequada valorizao do escrito queobstante, elemento imprescindvel para uma adequada valorizao do escrito queobstante, elemento imprescindvel para uma adequada valorizao do escrito queobstante, elemento imprescindvel para uma adequada valorizao do escrito queexplicite o que ele representa para a filosofia alem do momento e para a fixao doexplicite o que ele representa para a filosofia alem do momento e para a fixao doexplicite o que ele representa para a filosofia alem do momento e para a fixao doexplicite o que ele representa para a filosofia alem do momento e para a fixao doexplicite o que ele representa para a filosofia alem do momento e para a fixao docaminho do pensar heideggeriano ao Ser e tempo. As linhas que se seguem esta-caminho do pensar heideggeriano ao Ser e tempo. As linhas que se seguem esta-caminho do pensar heideggeriano ao Ser e tempo. As linhas que se seguem esta-caminho do pensar heideggeriano ao Ser e tempo. As linhas que se seguem esta-caminho do pensar heideggeriano ao Ser e tempo. As linhas que se seguem esta-belecem as bases para o tratamento de ambas as questes, na medida em que recons-belecem as bases para o tratamento de ambas as questes, na medida em que recons-belecem as bases para o tratamento de ambas as questes, na medida em que recons-belecem as bases para o tratamento de ambas as questes, na medida em que recons-belecem as bases para o tratamento de ambas as questes, na medida em que recons-troem o mencionado contexto em uma ampla perspectiva histrico-evolutiva que,troem o mencionado contexto em uma ampla perspectiva histrico-evolutiva que,troem o mencionado contexto em uma ampla perspectiva histrico-evolutiva que,troem o mencionado contexto em uma ampla perspectiva histrico-evolutiva que,troem o mencionado contexto em uma ampla perspectiva histrico-evolutiva que,ainda que sinttica, pontua as inflexes decisivas que a temtica do psicologismoainda que sinttica, pontua as inflexes decisivas que a temtica do psicologismoainda que sinttica, pontua as inflexes decisivas que a temtica do psicologismoainda que sinttica, pontua as inflexes decisivas que a temtica do psicologismoainda que sinttica, pontua as inflexes decisivas que a temtica do psicologismoexperimenta de Bolzano a Husserl.experimenta de Bolzano a Husserl.experimenta de Bolzano a Husserl.experimenta de Bolzano a Husserl.experimenta de Bolzano a Husserl.

    Palavras-chave: Heidegger, psicologismo, platonismo lgico, neokantismo, filosofia da Heidegger, psicologismo, platonismo lgico, neokantismo, filosofia da Heidegger, psicologismo, platonismo lgico, neokantismo, filosofia da Heidegger, psicologismo, platonismo lgico, neokantismo, filosofia da Heidegger, psicologismo, platonismo lgico, neokantismo, filosofia davida (vida (vida (vida (vida (LebensphilosophieLebensphilosophieLebensphilosophieLebensphilosophieLebensphilosophie).).).).).

    1 Tr. do autor: da in der Philosophie gerade die Probleme innig verwachsen sind undeines das andere aus- und ablst (Martin Heidegger: Neuere Forschungen ber Logik.Em: Gesamtausgabe. 1 Abteilung. Band I: Frhe Schriften Frankfurt, VittorioKlostermann, 1972. pp . 17-45 (NFL,17)).

  • 108 Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004

    1. Introduo1. Introduo1. Introduo1. Introduo1. Introduo

    Aminha pesquisa no se concentra num autor, mas num tema, quepode ser resumido em cinco pontos2 :1. Parto da convico da unidade da filosofia contempornea na diver-sidade de suas tendncias fundamentais (ou seja, filosofia analtica ehermenutico-fenomenolgica)3.

    Abstract: The criticism of psychologism constitutes the theme of Heideggers Dissertatio, The criticism of psychologism constitutes the theme of Heideggers Dissertatio, The criticism of psychologism constitutes the theme of Heideggers Dissertatio, The criticism of psychologism constitutes the theme of Heideggers Dissertatio, The criticism of psychologism constitutes the theme of Heideggers Dissertatio,a text that is often quoted, but rarely studied. The main noticeable deficiency is thea text that is often quoted, but rarely studied. The main noticeable deficiency is thea text that is often quoted, but rarely studied. The main noticeable deficiency is thea text that is often quoted, but rarely studied. The main noticeable deficiency is thea text that is often quoted, but rarely studied. The main noticeable deficiency is theinsufficient attention given to the context in which it was written. This context is,insufficient attention given to the context in which it was written. This context is,insufficient attention given to the context in which it was written. This context is,insufficient attention given to the context in which it was written. This context is,insufficient attention given to the context in which it was written. This context is,nevertheless, an indispensable element to an adequate appraisal of the writing innevertheless, an indispensable element to an adequate appraisal of the writing innevertheless, an indispensable element to an adequate appraisal of the writing innevertheless, an indispensable element to an adequate appraisal of the writing innevertheless, an indispensable element to an adequate appraisal of the writing inorder to make explicit what it represents to German philosophy at that moment andorder to make explicit what it represents to German philosophy at that moment andorder to make explicit what it represents to German philosophy at that moment andorder to make explicit what it represents to German philosophy at that moment andorder to make explicit what it represents to German philosophy at that moment andto determine the path of Heideggers thought towards Being and Time. The linesto determine the path of Heideggers thought towards Being and Time. The linesto determine the path of Heideggers thought towards Being and Time. The linesto determine the path of Heideggers thought towards Being and Time. The linesto determine the path of Heideggers thought towards Being and Time. The linesbelow establish the basis for dealing with both questions, as the context mentionedbelow establish the basis for dealing with both questions, as the context mentionedbelow establish the basis for dealing with both questions, as the context mentionedbelow establish the basis for dealing with both questions, as the context mentionedbelow establish the basis for dealing with both questions, as the context mentionedabove is reconstructed in an ample historical-evolutive perspective that, in spite ofabove is reconstructed in an ample historical-evolutive perspective that, in spite ofabove is reconstructed in an ample historical-evolutive perspective that, in spite ofabove is reconstructed in an ample historical-evolutive perspective that, in spite ofabove is reconstructed in an ample historical-evolutive perspective that, in spite ofbeing synthetic, points out the decisive inflections that the theme of psychologismbeing synthetic, points out the decisive inflections that the theme of psychologismbeing synthetic, points out the decisive inflections that the theme of psychologismbeing synthetic, points out the decisive inflections that the theme of psychologismbeing synthetic, points out the decisive inflections that the theme of psychologismexperiences from Bolzano to Husserl.experiences from Bolzano to Husserl.experiences from Bolzano to Husserl.experiences from Bolzano to Husserl.experiences from Bolzano to Husserl.

    Key words: Heidegger, psychologism, logical platonism, neokantianism, life philosophyHeidegger, psychologism, logical platonism, neokantianism, life philosophyHeidegger, psychologism, logical platonism, neokantianism, life philosophyHeidegger, psychologism, logical platonism, neokantianism, life philosophyHeidegger, psychologism, logical platonism, neokantianism, life philosophy(Lebensphilosophie)(Lebensphilosophie)(Lebensphilosophie)(Lebensphilosophie)(Lebensphilosophie)

    2 Visando abreviar o texto eu suprimi todas as citaes e referncias naqueles casos emque as mesmas so indicadas e/ou analisadas em outros textos de minha autoria. Ascitaes e referncias a Heidegger ou a outros pensadores no indicadas e/ou analisadosnos trabalhos j publicados, sero introduzidas em notas correspondentes. A lista detrabalhos referidos a seguinte:

    a) Resea de Konstitution und Gegebenheit bei H. Rickert de Lothar Kuttig. Estudiosbibliogrficos de Filosofa, Sevilla, v.10, p. 236-238, 1989.b) Transzendentaler Objektivismus (Bruno Bauchs Verarbeitung des Themas derSubjektivitt und ihre Stellung innerhalb der Neukantischen Bewegung. Frankfurt:Peter Lang, 1990 (392 pp.).c) Los orgenes de la virada antipsicologista en Husserl (La resea a Schrder de1891 revisada). Thmata. Revista de Filosofa. Sevilla: v. 21, p. 85-116, 1999d) La cuestin notica en Frege, su concepto de intencionalidad y su influencia sobreHusserl. Thmata. Revista de Filosofa, Sevilla: v. 24, p. 83-114, 2000e) Cassirer e a filosofia das formas simblicas. Ethica, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p.128-152, 2001.f) Franz Brentano. Equivocidad del Ser y objeto intencional. Kriterion. Minas Gerais,v. XLIII, n. 105, p. 97-118, 2002.g) Platonismo e intencionalidade: a propsito de Bernhard Bolzano. Primeira Parte.Sntese. Nova Fase. Minas Gerais, v. 29, n. 94, p.251-275, 2002.h) Platonismo e intencionalidade: a propsito de Bernhard Bolzano. Segunda Parte.Sntese. Nova Fase. Minas Gerais, v. 29, n. 94, p.85-106, 2003.

    3 Que s filosofa contempornea? (La unidad de la filosofa contempornea desde elpunto de vista de la historia de la filosofa. Transformao (Revista de Filosofia). SoPaulo, v. 25, pp. 29-52, 2002.

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004 109

    2. Se a tese anterior prioritariamente sistemtica, ela possui, porm, umforte contedo histricofilosfico. nele que concentro a minha ateno.

    3. O que me proponho reconstruir as origens comuns s duas tradi-es mencionadas, assim como as interaes efetivas que as mesmasapresentam atravs do seu desenvolvimento.

    4. Em tal perspectiva, uma ateno especial merecem os temas que ocu-pam um lugar decisivo em ambas, no duplo sentido sistemtico e factual.

    5. Um desses temas a crtica ao psicologismo.

    Dela parte a reflexo heideggeriana4 e, eu me atreveria a dizer, ela tem umpapel decisivo no caminho a Sein und Zeit (SZ)5. Meu ponto de chegadaser o ponto de partida de Heidegger. No vou, ento, nem me concentrarna anlise do texto de 1913, nem considerar o mesmo na sua totalidade. Oque farei ser situ-lo no seu contexto, acompanhando a grandes traos aevoluo da luta antipsicologista de forma tal que evidencie o que o textoheideggeriano representou na mesma. Dado que o tema anunciado implicapassar por diversos autores e escolas, o perigo de superficialidade emera agregao iminente. Por tal motivo, limitarei minha anlise a foca-lizar o giro caracterstico que efetua cada um dos autores e escolas men-cionados neste longo percurso.

    Facilitar a exposio que segue, lembrar uma questo e definir dois con-ceitos:

    1. A questo aludida a referente realidade do mundo externo ou possibilidade de nosso acesso ao mesmo a partir da imanncia da cons-cincia, questo esta que, como sabido, ocupa lugar de destaque nafilosofia moderna.

    2. Entenderemos por realismo lgico uma teoria de extrema difusono sculo XIX segundo a qual se afirma a existncia em si (isto ,independente da subjetividade) de objetos e estruturas lgicas no menosque a nossa capacidade de conhec-las6.

    3. O termo psicologismo tem uma infinidade de sentidos e o chamadoproblema do psicologismo contm, em realidade, vrios problemas.Pode-se diferenciar trs tipos de psicologismo: o lgico, o semnticoe o epistemolgico. O psicologismo lgico uma teoria que se propeassimilar a lgica psicologia, concebendo a primeira como parte dasegunda e negando, desta forma, a existncia de entidades e estruturas

    4 A sua tese de doutorado leva por ttulo Die Lehre vom Urteil im Psychologismus5 As citaes a SZ se referem edio de Max Niemeyer (Tbingen, 1986) que umaverso inalterada da 15a edio.6 Aquilo que no sculo XIX chamamos realismo lgico , no fundo, um certo tipo deplatonismo.

  • 110 Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004

    propriamente lgicas. O psicologismo semntico consiste em reduzirsignificaes lingsticas a entidades psicolgicas. O psicologismoepistemolgico, finalmente, reduz o conhecimento (e/ou a validadeepistmica) a um processo psicolgico.

    Psicologismo e realismo lgico so opostos. Eles constituem os atores dodrama que vamos seguir e o problema da transcendncia, em nova varian-te, o palco no qual este drama vai se desenvolver.

    Clarificados os conceitos bsicos, vou a minha tese: o realismo lgico e acrtica ao psicologismo vinculada ao mesmo, longe de implicar um dester-ro da questo da subjetividade como tema filosfico, remetendo-a a psico-logia, a tornam necessria desde o ponto de vista sistemtico e no sesustentam sem ela. A tese sistemtica confirmada pela anlise histrica.Esta ser o prespressuposto da minha interpretao do trabalho juvenil deHeidegger j mencionado.

    2. Bolzano2. Bolzano2. Bolzano2. Bolzano2. Bolzano

    2.1. A Teoria da cincia (Die Wissenschaftslehre)2.1. A Teoria da cincia (Die Wissenschaftslehre)2.1. A Teoria da cincia (Die Wissenschaftslehre)2.1. A Teoria da cincia (Die Wissenschaftslehre)2.1. A Teoria da cincia (Die Wissenschaftslehre)

    Bolzano considerado tanto a origem da chamada virada semntica(semantic turn), quanto do realismo lgico, existindo entre ambos um forteelo. Ele pode ser considerado, tambm, o incio do antipsicologismo,ainda que com uma importante preciso. O oponente principal deBolzano o ceticismo e, por decorrncia, o relativismo em todas assuas formas; o psicologismo em particular, no constitui o tema cen-tral, nem objeto de crtica expressa. Ele , simplesmente, com a intro-duo de cada novo conceito e cada nova tese executado de modosumrio.

    A Wissenschaftslehre no sentido prprio trata do contedo objetivo dacincia e de suas inter-relaes, entre as quais ocupa um lugar de destaquea demonstrao. A ela se somam, como esferas igualmente objetivas, ateoria das verdades fundamentais e a dos elementos. Nestas trs discipli-nas nada nos dito sobre um sujeito cognoscente. Este ser tematizadopela teoria do conhecimento (Erkenntnislehre), entendida como a parteda teoria da cincia que trata das condies nas quais a verdade podeser conhecida por ns, sujeitos humanos. A distino bolzaniana entreteoria do conhecimento e da cincia marca de forma explcita um cortecom a tradio moderna e antecipa a Theory of science contempor-nea.

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004 111

    A tese central da Wissenschaftslehre reza: existem verdades em si(Wahrheiten an sich), isto : h verdades independentes do homem e in-clusive, de Deus; o sujeito pode capt-las, mas no produzi-las. Do concei-to de verdades em si, segue-se o de proposio em si (Satz an sich).Verdades em si supem proposies em si, pois elas no so outra coisaque proposies em si que so verdadeiras. Proposies em si so o sentidode enunciados pensados ou expressados, um sentido, porm, que no pres-supe atos psicolgicos ou lingsticos. Proposies em si so to objetivase independentes de qualquer sujeito quanto verdades em si. Alm das jmencionadas, elas possuem outras trs qualidades essenciais:

    1. Proposies em si no so simples, mas sempre articuladas; elas apre-sentam uma estrutura na qual possvel diferenciar elementos, as re-presentaes em si (Vorstellungen an sich).

    2. Proposies em si so as depositrias originais da verdade e falsidade(ou: essencialmente capazes de ser verdadeiras ou falsas).

    3. Proposies em si so bipolares, ou seja, elas no s so as essenciaisdepositrias de verdade ou falsidade, mas necessariamente ou um ououtro.

    Finalmente, o ser em sentido prprio o ser real (wirklich). Ser-realsignifica estar submetido a relaes de causao (wirken). O que existe,atua ou padece. Por esse motivo, Deus e os objetos espao-temporais soreais; verdades, proposies e representaes em si, pelo contrrio, no oso7.

    2.2. Descobrindo dificuldades2.2. Descobrindo dificuldades2.2. Descobrindo dificuldades2.2. Descobrindo dificuldades2.2. Descobrindo dificuldades

    O primeiro crtico do realismo bolzaniano foi seu amigo e interlocutorepistolar, Franz Exner. Exner no era um lgico, mas um psiclogo, e nadatem a dizer sobre as doutrinas estritamente lgicas de Bolzano. No obstante, essa diferena de perspectiva entre ambos o que faz a sua crtica parti-cularmente interessante. No centro da discusso entre Exner e Bolzano sesitua a resistncia do primeiro a aceitar verdades em si e todas as suasderivaes. Contedos pensados no possuem nenhum tipo de existnciafora do pensamento, mas s existem nele. Verdades e proposies em sino so mais que abstraes a partir de sujeitos psicolgicos reais. Mas, seExner concentra a sua anlise em negar a existncia de objetos lgicos, pormomentos adota um ponto de vista sistematicamente mais interessante, asaber, o de questionar de princpio nossa possibilidade de aceder aos

    7 Observe-se: no se trata de diferenciar dois tipos ou duas esferas de realidade (porexemplo, um ser ideal e um ser sensvel); o em si, simplesmente, no real.

  • 112 Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004

    mesmos. Bolzano insiste com um tal radicalismo na absolutaheterogeneidade entre o em si e o subjetivo, que obviamente termina co-locando o problema da sua relao. Se o sujeito, por um lado, real everdades em si, por outro, no, ento:

    1. Como um sujeito real pode apreender algo que no real, maisainda, que no real nele de forma alguma?

    2. Como possvel que algo que no existe seja apreendido por algoque existe?

    3. Que significa aqui (em sentido no metafrico) apreenso(Auffassung)?

    4. Como acedemos verdade objetiva?

    5. Que legitima fazer afirmaes sobre a mesma?

    Se, como observamos num comeo, se encontra em Bolzano o claro inciodo realismo lgico e antipsicologismo, no menos certo que est tambmpresente nele a necessidade de uma reformulao da teoria do sujeito, umanecessidade que, na sua obra, se apresenta como problema ainda no re-solvido de modo satisfatrio. Bolzano no dispe de uma teoria do sujeitocoerente com o seu realismo lgico e que conteste as objees de Exner. Oque se pode encontrar em seus textos uma perspectiva naturalista bsica(na qual a explicao causal tem o primado) e que convive, se contradizen-do, com alguns lampejos de uma concepo intencional que no passa deuma mera variante da tese da imanncia8.

    3. Frege3. Frege3. Frege3. Frege3. Frege

    3.1. As fases do antipsicologismo fregueano3.1. As fases do antipsicologismo fregueano3.1. As fases do antipsicologismo fregueano3.1. As fases do antipsicologismo fregueano3.1. As fases do antipsicologismo fregueano

    Ao contrrio de Bolzano, a crtica expressa do psicologismo tema centralpara o desenvolvimento do realismo lgico em Frege, ao passo que a ques-to do ceticismo permanece como derivada. Ora, pressupe-se que oantipsicologismo acompanha o desenvolvimento filosfico fregueano des-de um comeo e se mantm sem mudanas substanciais at o final dasua vida. No assim. Trs momentos podem ser diferenados a esserespeito, situados em torno aos anos 1879, 1884 e 1893, anos de publicaode Begriffschrift, Grundlagen der Arithmetik e Grundgesetze derMathematik respectivamente. Em 1879 Frege um antipsicologista lgico,

    8 Veja-se 3.2.2.

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004 113

    mas um psicologista semntico. Em 1884 a crtica ao psicologismo em to-das as suas variantes torna-se tema central e se mantm nessa posio ata sua morte. No obstante, existe uma significativa diferena noantipsicologismo de 1884 e de 1893. A partir desta data, Frege deixa entre-ver um interesse pelo problema de Exner e esboa uma tentativa desoluo.

    No improvvel que essa significativa mudana esteja vinculada a suapolmica com Kerry, a qual acontece cerca de 1890. A opinio que primaentre os estudiosos que Kerry era um lgico pouco expressivo, a quemFrege critica de modo contundente em Begriff und Gegenstand. Na re-alidade, isto to-s uma parte da histria. A relao conceito-objeto nofoi o nico tema discutido na polmica nem constituiu o ncleo da mesma.Kerry, que era um discpulo de Brentano, coloca Frege frente mesmadificuldade que j antes Exner havia colocado a Bolzano. Ante a acusaofregueana de psicologismo, Kerry responde que no se deve temer que,pelo fato de se buscar estabelecer as condies subjetivas dos objetos daaritmtica, esta se torne psicologia. Muito mais frutfero que um merohorror subjetivo (a ironia do prprio Kerry) ver como, a partir dosubjetivo, do qual de todas formas tem que tomar origem nosso conheci-mento, surge algo objetivamente vlido. A tarefa mostrar como, median-te trabalho psquico (psychische Arbeit), surgem estruturas (por exem-plo, o nmero) que pretendem ter validez objetiva. Muitas so as precisesque exigiria o texto de Kerry e muitas as distines que seriam necessriaspara chegar a uma claridade definitiva. Sem embargo, se os seus argumen-tos e a sua soluo distam de ser transparentes, o problema geral ao qual,porm, aponta (ou, pelo menos, o ncleo do mesmo) no deixa de serlegtimo.

    Em nenhum momento Frege responde explicitamente questo levantadapor Kerry; bem poderia se pensar ento, que ele no concedeu importncia mesma e que tudo no passa de uma curiosidade. No obstante, existemalgumas boas razes para pensar que no foi assim. Em 1893, no prlogodas Grundgesetze , o alvo da crtica antipsicologista ser Erdmann. Oporqu Frege elege a Erdmann se deve, em parte, a que a Logik desteacaba de ser publicada, obtendo uma calorosa recepo. Mas qui tam-bm se deva a que Erdmann continue a desenvolver o projeto de Kerry deuma teoria do trabalho psquico. Ainda mais decisivo que esse fato atender ao contedo da crtica fregueana. Se compararmos a refutao dopsicologismo de Grundgesetze com a de Grundlage , salta vistauma diferena: em Grundgesetze no s se insiste na distino entreo subjetivo e o objetivo, mas todo o argumento de Frege est literalmentebaseado na questo da passagem do subjetivo ao objetivo. Frege dispeagora de um caminho para, pelo menos, oferecer a Kerry um claro contra-argumento sob a forma de explicitar como a sua pergunta no deve colo-car-se e pela reviso de quais pressupostos ela pode responder-se.

  • 114 Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004

    Ora, para entender a resposta de Frege temos que, voltando sua segundaetapa, observar que sua crtica ao psicologismo tem dois aspectos: ummetdico, outro sistemtico.

    3.2. As duas crticas ao psicologismo3.2. As duas crticas ao psicologismo3.2. As duas crticas ao psicologismo3.2. As duas crticas ao psicologismo3.2. As duas crticas ao psicologismo

    3.2.1. A crtica metdica ao psicologismo3.2.1. A crtica metdica ao psicologismo3.2.1. A crtica metdica ao psicologismo3.2.1. A crtica metdica ao psicologismo3.2.1. A crtica metdica ao psicologismo

    A crtica fregueana ao psicologismo aponta a distinguir o mbito de traba-lho de duas disciplinas: lgica e psicologia, e possui, portanto, o carter deuma delimitao metdica. Sua justificao arranca da prpria possibilida-de da distino que ela estabelece. Que aqui seja possvel distinguir, prova suficiente de que estamos frente a duas coisas diversas. Segundouma idia usual no sculo XIX, a lgica se ocupa com as leis do pensamen-to. Agora bem, com o pensamento tambm se ocupa a psicologia. E ento?Obviamente, nos dois casos se trata de conceitos de pensamento diferen-tes. Poderamos evidenciar esta diferena falando em um caso do pensarcomo ato, no outro, do pensamento como contedo do ato ou, mais preci-samente (j que o contedo mesmo pode ainda ser visto como realidadepsicolgica) como o contedo objetivo do ato. Quando dizemos que algica se ocupa das leis do pensamento, devemos entender por pensa-mento no o ato de pensar (ou qualquer realidade psicolgica), mas opensamento em sentido objetivo. Pelo contrrio, a psicologia se ocupa como ato de pensar enquanto evento.

    Se partirmos da idia de que o antipsicologismo fregueano exclusiva-mente metdico, se sugere que o psicologismo uma mera confuso, doque se segue que a correo do erro psicologista tem um carter essenci-almente negativo. Sendo isto assim, dado que a lgica se ocupa com opensamento e suas relaes objetivas, absolutamente indiferente para amesma como esses pensamentos sejam captados. A captao do pensa-mento uma questo psicolgica; a relao entre lgica e psicologia,puramente negativa.

    3.2.2. A crtica terica ao psicologismo3.2.2. A crtica terica ao psicologismo3.2.2. A crtica terica ao psicologismo3.2.2. A crtica terica ao psicologismo3.2.2. A crtica terica ao psicologismo

    Porm, nem o antipsicologismo fregueano puramente metodolgico, nemo psicologismo que ele critica uma mera confuso. Em realidade, aindaque o psicologismo seja uma teoria falsa, ele uma teoria positiva que,como tal, tem que ser criticada e substituda por uma outra. Mas, o que o psicologismo? A assimilao da lgica como disciplina psicologia comodisciplina conseqncia no s (e no sempre) da confuso das leis lgi-cas com as psicolgicas, mas da reduo de umas s outras, reduo que,pela sua vez, no afeta s as leis, mas a toda entidade que possa ser con-

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004 115

    siderada especificamente lgica. A essncia do psicologismo, pois, oreducionismo: o psicologismo no necessariamente confunde, mas semprereduz.

    A disputa entre psicologismo e antipsicologismo se concentra no reconhe-cimento ou desconhecimento de uma esfera lgica especfica e autnomaou, dito de outra forma, no reconhecimento ou desconhecimento de umadiferena entre o objetivo e o subjetivo. O psicologismo reduz o lgico aopsicolgico porque reduz o objetivo ao subjetivo. A conseqncia disto oidealismo, o solipsismo e, em definitivo, o ceticismo. O motivo fundamen-tal da crtica fregueana ao psicologismo , pois, epistemolgico: opsicologismo conduz a uma negao da objetividade.

    O psicologismo no fruto de uma mera confuso; ele uma teoria falsa.Em que consiste esta teoria? Basicamente em trs teses:

    1. Tudo o que objetivo, real. Verdade supe realidade. A realidade o substrato da verdade do ser verdadeiro.

    2. Tudo o que , real, sendo que o real fsico ou psicolgico9. Ora,operadores lgicos, nmeros, significados de palavras, sentidos de enun-ciados etc., no so obviamente objetos fsicos, pois no esto dados noespao nem podem ser percebidos pelos sentidos. Em conseqncia, jque no tm realidade externa, tm que ter algum tipo de realidadeinterna. Eles so entidades psquicas (Vorstellungen).

    3. S temos acesso direto s nossas prprias representaes. Esta tese conhecida como princpio da imanncia e deve a sua formulao his-toricamente decisiva a Locke. Ela est em plena validez no sculo XIXsendo explicitamente aceita por quase a totalidade dos autores, deErdman a Sigwart, de Fischer a Lotze.

    Observe-se que, enquanto a primeira e a segunda tese so ontolgicas (ouseja, referem-se a o que h ou a que tipos de objetos existem), a terceira epistemolgica (ou notica), ou seja, se refere quilo que podemosconhecer ou captar (fassen, auffassen). A importncia desta distino setornar evidente nas linhas que seguem.

    O psicologismo , sem dvida, uma doutrina ontolgica na medida em quenega a existncia de um certo tipo de entidades ou as reduz a outras (dizer: assimila entidades lgicas (ideais) a entidades psicolgicas (reais)).Mas, ele tambm uma doutrina epistemolgica que nega a objetivida-de, tanto porque nega a existncia de certos objetos, quanto porque fazimpossvel o nosso acesso aos mesmos. Essa epistemologia, pela sua vez,

    9 O naturalismo uma tese usual na poca de Frege. Por isso, um real metafsico (porexemplo, Deus), no preocupa; de todas formas, o mesmo valeria para ele.

  • 116 Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004

    est imbricada numa teoria do sujeito, a qual se funda no princpio daimanncia.

    Como resulta bvio a partir da explicitao do contra-argumentopsicologista, extremamente importante para uma teoria no-psicologistapositiva diferenciar nele duas teses e compreender que estas pertencem adiferentes esferas, pois, deste modo, fica claro que o psicologismo no superado negando apenas a tese ontolgica.

    3.3. A superao do psicologismo3.3. A superao do psicologismo3.3. A superao do psicologismo3.3. A superao do psicologismo3.3. A superao do psicologismo

    A identificao dos dois pressupostos bsicos do psicologismo vai juntocom a afirmao de seus contrrios. Um deles j estava afirmado explici-tamente em Bolzano, o segundo no. Isto faz uma importante diferena.Recapitulemos: que todo o objetivo tem que ser real um pressupostogratuito refutado pela existncia da matemtica e pela prpria linguagem.Real e objetivo no so sinnimos. O reducionismo psicologista a conse-qncia de no poder aceitar a idia de algo objetivo que no real. Noobstante, evidente que:

    1. existe algo objetivo que, sem embargo, no real;

    2. somos capazes de conhecer esse objetivo no-real.

    Se afirmo que existe um reino de objetos transcendentes e no-reais que,no obstante, so captados por mim, reaparece o problema de Exner.Mas, agora se torna claro que o psicologismo no meramente consiste emnegar a existncia de certos objetos ideais sobre a base da consideraode que tudo objetivo e real . Ele diz, tambm, com isto e por isto, quetudo no sujeito real, que a conscincia s tem acesso quilo que realnela.

    Ainda que o psicologismo seja uma teoria falsa, esta internamente coe-rente e oferece respostas simples a problemas complexos. Para opsicologismo no h dificuldade alguma em explicar como o sujeito captao objeto, pois o objeto no outra coisa que uma Vorstellung e umaVorstellung, por definio, algo no sujeito. Esta vantagem dopsicologismo no foi vista meramente por Exner ou por Kerry em contex-tos polmicos e de modo circunstancial; em muitos autores psicologistas explorada como forte argumento a favor da prpria tese. Assim , porexemplo, em um dos psicologistas mais extremos: Theodor Lipps (que,como muitos outros, no recebia crticas passivamente, mas contra-argu-mentava baseando-se nas dificuldades da tese contrria).

    O psicologismo no s reduz o objetivo ao subjetivo, mas o faz porqueparte de uma falsa teoria da subjetividade. Se isto assim, ele nunca

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004 117

    totalmente superado quando o seu oponente se contenta em neg-lo semrevisar a fonte da qual ele se nutre. Justamente por isso, justamente porqueum mero antipsicologismo concede ao psicologismo sua idia de subje-tividade, este renasce das cinzas como verdadeira Fnix. Se a teoriapsicologista da subjetividade fosse certa (ainda que a sua teoria do objetofalsa e existisse um reino lgico ideal) no teramos acesso ao mesmo. Eleseria, para ns, algo assim como os deuses de Epicuro. Em suma, no sepode pretender negar o psicologismo e manter ao mesmo tempo a suaconcepo do sujeito. Um antipsicologismo conseqente tm que proporuma teoria alternativa.

    Se sob determinados pressupostos o problema insolvel e, por outraparte, no estamos dispostos a cortar todo vnculo ao objetivo (dado que,em ltima instncia, queremos sair do subjetivo), ento no nos restaoutro caminho seno negar estes pressupostos, ou seja, negar que o sujeitotem acesso unicamente s suas representaes, aceitar que ele pode captaralgo que no a sua representao.

    3.4. A teoria da subjetividade3.4. A teoria da subjetividade3.4. A teoria da subjetividade3.4. A teoria da subjetividade3.4. A teoria da subjetividade

    Representao a traduo do termo alemo Vorstellung e este, a tradu-o do termo ingls idea e do francs ide, sendo que o fato de que otermo idea perca o seu sentido platnico, para passar a indicar itenspsicolgicos, caracterstico da poca moderna. Pois bem, Vorstellungenso:

    itens mentais (no necessariamente re-presentativos como o sugerea palavra portuguesa ou espanhola correspondente),

    que devem ser pensados em sentido literal como Bilder ou quadri-nhos mentais,

    que no s tm contedo sensvel,

    mas que so, eles mesmos, entidades sensveis (ainda que internas)enquanto que esto submetidas ao tempo,

    e reais, pois uma Vorstellung produto de uma causa e submetida,de princpio, a interaes causais,

    que, justamente por isso, merecem ser chamadas de contedos deconscincia (Bewusstseinsinhalte), os quais,

    por no serem auto-subsistentes precisam de um portador (Trger),

    sendo sempre privadas: duas pessoas nunca podem ter a mesmaVorstellung.

    Uma vez esclarecido o termo Vorstellung, estamos em condies de expora teoria positiva da subjetividade que surge do texto fregueano. O que

  • 118 Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004

    Bolzano chamava Stze an sich basicamente o que Frege chama deGedanken. Trata-se de objetos lgicos, independentes de todo sujeito eque possuem uma estrutura ou articulao, sendo os depositrios originaisda verdade ou falsidade. Agora bem, uma tese fregueana de extremaimportncia para a crtica do psicologismo consiste em definir o pen-sar (Denken) como captar pensamentos (Gedanken). O pensar no, pois, de forma alguma, um fazer, mas um receber, um aceitar, umaabsoluta passividade. Ele , assim mesmo, algo heterogneo tanto doter representaes como do efetuar algum tipo de atividade sobre asmesmas, tais como afirm-las, neg-las ou sintetiz-las. Representare pensar so fenmenos essencialmente diferentes e irredutveis um aoutro.

    Ns temos esclarecido o conceito de representao. por oposio ao mesmoque podemos aprofundar a noo de pensamento (Gedanke). Ao contrriodas representaes, os pensamentos so inteligveis, intersubjetivamenteacessveis e no reais. Estas duas ltimas caractersticas tm uma ntimarelao, sendo que o tema da intersubjetividade central em Frege. Parao autor do Begriffschrift est fora de dvida que existe um nico nmerotrs e que s se captamos o mesmo, idntico, nmero trs, contradio deopinies possvel; seno, cada um poderia fazer afirmaes distintas sobreo seu nmero trs. Se isto assim, o nmero trs no pode de modoalgum ser real em mim (eu ter meu trs). Que pensar e captar pensamen-tos implica no s que nossa conscincia capaz de captar algo no-sen-svel, mas que capaz de captar algo que no real nela e, mais ainda(e isto no nada bvio) algo que no pelo fato de ser captado se torna realna conscincia, mas segue to transcendente, to exterior a esta, como seno fosse captado em absoluto.

    J que se denominou o princpio da imanncia como princpio de Locke,podemos chamar sua negao princpio de Frege. O eixo da posiofregueana diferenciar entre o contedo (Bewusstseinsinhalt) e o objeto(Objekt, Gegenstand) da conscincia. Se bem certo que os contedos deconscincia (Bewusstseinsinhalte) so sempre representaes (e, como tais,reais e imanentes), no certo, porm, que tambm o objeto da conscinciao seja. Dito de modo pregnante: no certo que a conscincia s capta osprprios contedos, ou que s pode ser objeto da conscincia o que contedo da mesma. Objetos lgicos como, por ex., Gedanken (mas tam-bm nmeros, classes etc.), so objetos da conscincia, mas no por issocontedos da mesma.

    A distino fregueana entre o objetivo e o real sempre considerada s nasua dimenso objetiva, no marco da teoria dos trs reinos, a qual por suavez pensada como teoria ontolgica. Porm, diferena entre o real e oobjetivo no objeto corresponde, em Frege, a diferena entre o real e oobjetivo no sujeito (ou seja, entre Inhalt e Gegenstand da conscincia). Isto

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004 119

    quer dizer: o mesmo princpio em base ao qual se refutou a reduopsicologista do reino ideal, tambm desempenha um papel decisivo pararefutar a teoria psicologista da subjetividade e, assim, para dar conta denosso acesso a tal reino.

    Contudo, ainda que o pensamento no seja real na conscincia, o realna conscincia capaz de apontar a ele (hinzielen), e aqui, nestafuno de apontar, onde reencontramos as representaes. Atravs dealgo dado na conscincia somos, pois, capazes de apontar a algo queno parte real dela. O pensamento s est e pode estar na consci-ncia como algo apontado. Em suma, se chamamos as coisas pelo seunome, o que Frege est propondo uma concepo intencional dosujeito.

    O decisivo do ponto de vista do julgamento da teoria de Frege como teoriaintencional no , porm, o hinzielen (o fato de que a conscincia spode captar o objeto a partir de algo real em si). No isso o que faz delauma teoria intencional interessante no contexto dos anos 90. O verdadei-ramente digno de nota so as particularidades da teoria intencional queFrege est defendendo. Ela coincide com o primeiro Brentano em sublinhara direcionalidade da conscincia, para diferir deste (coincidindo assim comos seus crticos e, principalmente, com Husserl) por negar, ao mesmo tem-po, a tese da imanncia.

    4. A Escola de Brentano4. A Escola de Brentano4. A Escola de Brentano4. A Escola de Brentano4. A Escola de Brentano

    Que a idia de psicologia descritiva fonte de inspirao da fenomenologiae que Husserl retoma o conceito de intencionalidade de Brentano, algoque pode ser lido em qualquer histria da filosofia. O que, em geral, seomite , primeiro, que se Husserl faz do conceito brentaniano deintencionalidade um dos fundamentos da sua fenomenologia, ao mesmotempo o submete a uma crtica decisiva e, segundo, que justamente estacrtica, e no aquela identidade, o que d a concepo intencional husserlianao seu perfil especfico.

    Porm, segundo uma interpretao amplamente difundida, inclusive entreos discpulos de Brentano (e com a qual no concordo), o conceito deintencionalidade brentaniano implica, na sua primeira formulao, que oobjeto intencional est na conscincia ou imanente mesma. , pelomenos em parte, como conseqncia desta interpretao, que os discpulosde Brentano se sentiram obrigados a submeter o mestre a dura crtica.Hffler e Twardowski introduziram a distino entre o objeto e o contedoda conscincia (ou seja, entre Gegenstand e Inhalt ou Bewusstseinsinhalt);

  • 120 Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004

    o primeiro transcendente, o segundo, imanente conscincia, existindonela de modo real; o primeiro para onde a conscincia se dirige, o segun-do, o como ou atravs de que o faz.

    5. Husserl5. Husserl5. Husserl5. Husserl5. Husserl

    5.1. Do psicologismo ao antipsicologismo5.1. Do psicologismo ao antipsicologismo5.1. Do psicologismo ao antipsicologismo5.1. Do psicologismo ao antipsicologismo5.1. Do psicologismo ao antipsicologismo

    Em 1894, na sua resenha do livro de Twardowsky Inhalt und Gegenstand,Husserl concordar com a necessidade das distines introduzidas, porm,efetuando por sua vez uma crtica que evidencia a necessidade de umanova diferenciao, desta vez, entre o contedo real e o ideal, entre o papelda matria do ato como presena efetiva na conscincia e o meio ideal peloqual nos referimos ao objeto.

    Em seu primeiro trabalho Philosophie der Arithmetik (1891), Husserl secoloca como tarefa desenvolver uma teoria do nmero de acordo com osprincpios metdicos da psicologia descritiva e em algumas passagens deixaclaramente entrever que concede validez irrestrita ao princpio da imanncia,considerando-o, implicitamente, no s compatvel, mas inclusive necess-rio, a partir do conceito brentaniano de intencionalidade. De uma possvelcrtica a Brentano, ainda no exista neste texto o menor indcio. Muitomenos a Kerry, cujo programa de reconstruo do trabalho psquico parececontinuar.

    Em 1884 Frege havia publicado Grundlagen der Arithmetik. O jovemHusserl lhe envia ento uma carta junto com seu trabalho. Frege respondeprometendo efetuar uma resenha do mesmo. A promessa ser cumprida,mas a resenha negativa (para no dizer absolutamente demolidora). Omotivo principal da crtica fregueana a acusao de psicologismo. Selevarmos em conta o que acabamos de dizer com respeito ao ensaio deHusserl, tal acusao (confundir o subjetivo e o objetivo) justa. O prprioHusserl no tem mais que reconhecer a legitimidade da mesma. apartir deste ano (1894), que ele comea a amadurecer seuantipsicologismo. A sua crtica a Twardowski assinala esta virada de-cisiva e inicia um caminho contnuo que o terminar levando asLogische Untersuchungen (LU)10.

    10 s citaes so referidas 4a. impresso de Max Nyemeyer (Tubingen, 1980), que uma verso sem modificaes da 2a. edio (1922).

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004 121

    Em 1900 aparece o primeiro volume das LU, Prolegomena zur reinenLogik; o segundo, um ano depois. Os Prolegomena esto dedicados crtica do psicologismo, a qual elaboram de um modo exaustivo e sistem-tico. O impacto do livro to grande que o antipsicologismo se converteno tema central de discusso e seus contemporneos atribuem a Husserl omrito de t-lo superado definitivamente11.

    Sendo consenso que a questo do psicologismo havia recebido o seu pontofinal, qual no seria a surpresa nos crculos filosficos quando, um anodepois, o segundo volume das LU, muda, aparentemente, o eixo e introduzuma nova perspectiva terico-temtica. Frente existncia do mundo lgi-co ideal, a questo agora a de nosso acesso ao mesmo. No era istovoltar ao psicologismo?

    5.2. O segundo volume das LU5.2. O segundo volume das LU5.2. O segundo volume das LU5.2. O segundo volume das LU5.2. O segundo volume das LU

    Na realidade, bastava ler com mnima ateno o prlogo de Husserl j aoprimeiro volume da primeira edio para entender que os Prolegomenazur reinen Logik, longe de solucionar problema algum, estavam dirigidosmeramente a explicitar as bases fundamentais do mesmo, o qual devia sersolucionado no volume II. A crtica do psicologismo no era, pois, o obje-tivo da obra, mas um pressuposto (e nem sequer o nico) com o qual asLU construam o seu problema especfico. Husserl escreve que, na medidaem que a fundamentao psicolgica da lgica e matemtica fracassa porno conseguir dar conta da objetividade, ele se viu obrigado em medidacrescente a reflexes crticas gerais sobre a essncia da lgica e, em primei-ro lugar, sobre a relao entre a subjetividade do conhecer e a objetividadedo contedo conhecido12. As investigaes sobre a lgica pura devero ser,ento, interrompidas para ganhar claridade a respeito das perguntas fun-damentais da teoria do conhecimento e da compreenso crtica da lgicacomo cincia (LU,I,VII).

    A teoria fenomenolgica do sujeito e a anlise da intencionalidade, s quaisse dedica o segundo volume, no eram, pois, um agregado externo que selhe fazia ao antipsicologismo do primeiro (nem muito menos uma espciede recada, produto de uma inconseqncia) mas, pelo contrrio, o com-plemento positivo necessrio da sua crtica, a qual de modo algum estavafinalizada simplesmente dizendo que h um mundo ideal e diferenciandoo mesmo de toda realidade psicolgica. Dado que uma anlise psicolgica

    11 Algo que ainda se l nas histrias da filosofia e que, obviamente, no certo.12 ... so sah ich mich in immer steigendem Masse zu allgemeinen kritischen Reflexionenber das Wesen der Logik und zumal ber das Verhltnis zwischen der Subjektivitt desErkennens und der Objektivitt des Erkenntnisinhaltes gedrngt. (LU,I,VII)

  • 122 Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004

    no pode fundar a objetividade da matemtica, temos que separar de modoradical a objetividade do contedo conhecido da subjetividade do conhe-cer. Mas, uma vez que compreendemos o carter necessrio desta diferen-ciao, se coloca o novo problema de explicar o vnculo entre ambos. Acrtica ao psicologismo e a reviso da teoria da subjetividade no se exclu-em, seno que se complementam e exigem reciprocamente.

    5.3. A influncia de Frege e Brentano sobre Husserl5.3. A influncia de Frege e Brentano sobre Husserl5.3. A influncia de Frege e Brentano sobre Husserl5.3. A influncia de Frege e Brentano sobre Husserl5.3. A influncia de Frege e Brentano sobre Husserl

    As LU podem ser entendidas como uma sntese entre as filosofias de Fregee Brentano.

    Frege historicamente decisivo:

    a) para o giro husserliano ao antipsicologismo;

    b) para a tomada de conscincia do novo problema ps antipsicologista; e

    c) para o prprio caminho de soluo que passa de modo essencial poruma forma especfica de desenvolver a concepo intencional da cons-cincia.

    No que diz respeito a Brentano, ainda que Husserl receba o conceito deintencionalidade do filsofo vienense, o impulso decisivo para colocar esseconceito em essencial relao temtica da apreenso da transcendncia(lgica) vem de Frege. Em tal sentido, a questo fenomenolgica no umaquesto pr-fregueana (um mastodonte que sobrevive poca glacial dacrtica lingstica), mas uma questo ps-fregueana, uma conseqncia dodesenvolvimento inerente ao realismo lgico. a identidade tanto nospressupostos bsicos do problema quanto na soluo, o que explica a longasrie de similitudes, equivalncias e paralelos entre Frege e Husserl quedurante muito tempo foram constatados como meras curiosidades.

    O dito, porm, no significa que de Frege a Husserl ns temos uma meraexplicitao. Trs diferenas so decisivas:

    1. Frege chega ao problema, Husserl parte dele.

    2. Justamente por isso, existe entre ambos uma heterogeneidade de acentocom respeito a esta nova questo, que de forma alguma deve ser subes-timada: o centro de interesse de Frege era a luta antipsicologista; o deHusserl, a elaborao de uma teoria da subjetividade ps-psicologista.

    3. No menos importante o fato de que nas LU o problema e a suapossvel soluo se apresentam com plena conscincia da dificuldademetdica contida neles, tornando-se essencial a preocupao com o es-tabelecimento do marco adequado para o seu tratamento. Este marcotem que legitimar coisas tais como a possibilidade de efetuar a priori

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004 123

    afirmaes sobre a relao sujeitoobjeto, algo que a psicologia empricanaturalista no deve e no pode: no pode, porque h aqui algo que no psicolgico; no deve, porque se ignoramos esse algo, camos numaposio empirista e relativista. Do que se trata de uma investigao deessncias, ou seja, de um conhecimento a priori de objetos, porm, deobjetos que tm justamente a ver com a relao sujeitoobjeto, deGedanken que tm a ver com a relao do sujeito e Gedanke. O mtodofenomenolgico (para o qual se reclamar, em certo momento, estritauniversalidade e, sobretudo, no qual se ver um caminho de ir scoisas mesmas, aos objetos - objetais) tem na sua origem um elointrnseco com a temtica da relao sujeitoobjeto.

    no aspecto programtico e metdico que a figura de Brentano surgecomo uma influncia decisiva sobre Husserl. A discusso sobre o pro-blema metdico do desenvolvimento de uma teoria a priori sobre aprpria relao sujeitoobjeto13 tratado com profundeza e com exaus-tiva ateno de alternativas por Brentano, que evoluiria do inicial pro-jeto de uma psicologia do ponto de vista emprico proposta de umapsicologia descritiva.

    6. O Neokantismo6. O Neokantismo6. O Neokantismo6. O Neokantismo6. O Neokantismo

    6.1. As escolas neokantianas6.1. As escolas neokantianas6.1. As escolas neokantianas6.1. As escolas neokantianas6.1. As escolas neokantianas

    No podemos passar sem mais de Husserl a Heidegger se ignoramos umoutro ator fundamental deste drama. Neste caso no se trata de um indi-vduo, mas de uma escola, uma escola que dominou o panorama filosficoalemo durante quase cinqenta anos: o neokantismo. Falar do neokantismoexige advertir contra dois equvocos:

    1. A denominao neokantismo produz a crena de que os integran-tes deste movimento eram sem mais kantianos. Na realidade, oneokantismo no pretende ser uma mera interpretao, fiel letra dotexto kantiano, mas um desenvolvimento sistemtico (certamente noarbitrrio) a partir de Kant. por isso que, s vezes, algumas das suasteses bsicas surpreendem, pois eles no se sentem de modo algumcomprometidos em preservar as doutrinas kantianas essenciais. Fora dediscusso est, unicamente, o mtodo transcendental.

    13 Sobre este ponto Frege no oferece respostas conclusivas.

  • 124 Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004

    2. Existem duas escolas neokantianas principais, as quais possuem pro-fundas diferenas entre si: a escola de Marburgo e a de Baden. Autoresimportantes da primeira so: Cohen, Natorp e Cassirer; da segunda,Windelband, Rickert e Lask. Como generalizao, se pode dizer queCohen e Windelband so os fundadores, Natorp e Rickert, o amadure-cimento.

    6.2. As escolas neokantianas e o realismo lgico6.2. As escolas neokantianas e o realismo lgico6.2. As escolas neokantianas e o realismo lgico6.2. As escolas neokantianas e o realismo lgico6.2. As escolas neokantianas e o realismo lgico

    Para nosso tema, a preciso anterior de vital importncia, pois leva asituar o neokantismo em duas relaes diferentes com o realismo lgico.Na origem da escola de Baden est a teoria de Lotze sobre a validez(Geltung) que, assim mesmo, no foi menos importante para Frege quepara o jovem Heidegger. por esta razo que ela est mais prxima dorealismo lgico. Seus integrantes aceitam a existncia de objetos ideais (osvalores), entre os quais esto entidades lgicas. A Escola de Marburgoafirma a existncia de conhecimento a priori, mas sublinha que o nicoconhecimento a priori possvel tem estrito carter transcendental, ou seja,no um conhecimento de objetos, mas das condies da possibilidadede objetos. O neokantismo marburgus no se ocupa com objetos (lgicos,ideais ou de qualquer tipo), mas com a objetividade, atendo-se firme-mente ao princpio de que as condies da objetividade do objeto nopodem ser pela sua vez objetos (lgicos ou no). Em tal sentido, os autoresdesta escola so contrrios ao platonismo de Bolzano, Frege e a Escolade Baden, no menos que de Husserl.

    No obstante esta diferena fundamental, existem no menos essenciaiscoincidncias entre as duas escolas neokantianas, as quais giram em tornoao seu comum rechao do psicologismo. Na realidade, no mesmo ano emque Frege publica Grundlage der Arithmetik (1884), Cohen publica DasProblem des Infinitesimalen und seiner Geschichte, uma obra de cartereminentemente programtico, cuja proposta que a filosofia deve tornar-se teoria da cincia. Seu tema o contedo objetivo da cincia e a suatarefa refletir e explicitar as suas condies (lgicas) de possibilidade.No precisa dizer que esse programa (sem o transfundo transcendental)possui pontos essenciais de similitude com Bolzano. O que difere a ter-minologia. Assim como Bolzano diferenciava entre Wissenschafts- eErkenntnislehre, Cohen haver de diferenciar entre Erkenntniskritik eErkenntnistheorie e, paralelamente distino Denken-Gedanke, entreErkennen e Erkenntnis14. Em suma, a Erkenntniskritik se ocupa com o

    14 Importante diferena que, no obstante, deve ser constatada a partir do fato de queo antipsicologismo neokantiano essencialmente epistemolgico e no semntico. A apa-rentemente elementar distino entre sentido e valor de verdade, no joga papel decisivo

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004 125

    contedo objetivo da cincia e no com a relao do mesmo a um sujeitopsicolgico. Como escrito fundacional da Escola de Baden pode ser consi-derado o artigo de Windelband ber genetische und transzendentaleMethode, o qual efetua uma proposta similar coheniana. Em suma, aluta contra o psicologismo foi to essencial para o neokantismo, quanto ofoi para Frege, uma luta que, por outra parte, eles desenvolvemcontemporaneamente. Se atendermos ao anterior, compreensvel o fatode que Natorp, frente publicao das LU, se veja compelido a escreverlembrando que o neokantismo nada tinha a aprender de Husserl nesseponto.

    Ora, o neokantismo no tem em comum com as tendncias mencionadass o antipsicologismo, mas tambm, correlativamente, o problema da rela-o entre o objetivo e subjetivo, ao qual se v conduzido pelo seu prpriodesenvolvimento sistemtico. O sujeito transcendental neokantiano, emespecial em sua verso marburguesa, no era originariamente um sujeito,mas apenas um conjunto de condies lgicas, no existindo para umadeduo transcendental lugar algum. Mas, na medida em que a interpre-tao neokantiana vai purificando Kant de elementos psicologizantes,amadurece a conscincia de um novo problema que, em realidade, ns jconhecemos em uma outra variante: como se vincula o sujeito psicolgico esfera de idealidades transcendentais? Depois de tudo, ainda aceitandoa necessidade de distinguir entre o conhecimento e o conhecer, uma fun-damentao da possibilidade do conhecimento que conduza a impossibi-lidade do conhecer, um sem sentido. Em termos gerais, podemos dizerque, em ambas escolas neokantianas, enquanto os fundadores tiveram comotarefa principal delimitar o problema transcendental do psicolgico, a segundagerao tem como tarefa o elaborar uma teoria da subjetividade real. Natorppublica seu esboo, Einleitung in die Psychologie nach kritischer Methode, em1888, e a verso definitiva, Allgemeine Psycologie, em 1912. Rickert, por suavez, publica o seu ensaio mais famoso sobre o tema, Zwei Wege derErkenntnistheorie, Transzendentalpsychologie und Transzendentallogik em1909. Em 1913, assim mesmo, aparece um artigo fundamental de RichardHnigswald: Prinzipien der Denkpsychologie. O problema dopsicologismo termina conduzindo busca de uma teoria da subjetividadee esta, por sua vez, a uma reflexo sobre a psicologia, isto , busca dealternativas aos modelos naturalistas dominantes identificados como baseltima do psicologismo.

    algum na reflexo marburguesa. Em tal sentido, o fato que Cohen diferencie Erkennen-Erkenntnis ali onde Frege diferencia Denken-Gedanke, no uma mera diferenaterminolgica, mas tem um valor simblico especial: nesse ponto se evidencia umaradical heterogeneidade de perspectivas.

  • 126 Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004

    7. Dilthey7. Dilthey7. Dilthey7. Dilthey7. Dilthey

    Se, a partir da sua luta comum antipsicologista, neokantismo e realismolgico enfrentam um problema similar, similitude no identidade. Adiferena se manifesta no fato de que, ao mesmo tempo em que oneokantismo ataca o psicologismo, contra-atacado no s por este mas,assim mesmo, por uma filosofia que o coloca frente a novas exigncias: afilosofia da vida (Lebensphilosophie)15.

    Tambm Dilthey foi objeto da crtica antipsicologista (principalmente porparte de Rickert), vendo-se impelido a vrias reformulaes da sua doutri-na inicial, a qual se manter neste ponto em permanente evoluo. Noentanto, o ataque ao psicologismo diltheano, que no faz seno repetirargumentos j bem estabelecidos a mais um caso particular, no agora oque interessa em primeiro lugar.

    O que interessa que o problema do psicologismo se apresenta num planoaprofundado sendo, por dizer assim, absorvido pelo da psicologia: j nose trata de relacionar conhecer e conhecimento, pensar e pensamento, jul-gar e julgamento e sim o conhecimento e o sujeito real. Em uma famosapassagem, que muito bem expressa esta nova situao, escreve Dilthey:Nas veias do sujeito cognoscente que Locke, Hume e Kant construram,no flui verdadeiro sangue, mas o suco diludo da razo como pura ativi-dade pensante. Porm, a ocupao histrica e psicolgica com o homem nasua totalidade me conduziu a colocar este ente que sente, experimenta erepresenta, na multiplicidade de suas capacidades, tambm na base doconhecimento16. A relao cognoscitiva deve ser integrada na totalidadedas relaes vitais e pensada a partir dela. Disto se segue, a negao-superao (Aufhebung) da idia do eu como sujeito pensante17. O purocogito, o sujeito transcendental, no so mais que meras abstraes a partirda complexa riqueza do verdadeiro eu. O vnculo primrio e total do eucom a realidade no de representao (vorstellen), como o expressa arelao sujeitoobjeto, mas sim de totalidade da vida18.

    15 A irrupo da Lebensphilosophie a partir da primeira guerra mundial , geralmente,aceita como fator decisivo do declnio histrico do neokantismo.16 In den Adern des erkennenden Subjekts, das Locke, Hume und Kant konstruierten,rinnt nicht wirkliches Blut, sondern der verdnnte Saft von Vernunft als blosserDenkttigkeit. Mich fhrte aber historische wie psychologische Beschftigung mit demganzen Menschen dahin, diesen in der Mannigfaltigkeit seiner Krfte, dies wollendefhlende vorstellende Wesen auch der Erklrung der Erkenntnis... zugrunde zu legen.Wilhelms Dilthey Gesammelte Schriften, Leipzig-Berlin, 1921 ss. (GS). (GS, I, XVIII). Tr.do autor.17 Aufhebung der Auffassung des Ich als Denksubjekt (GS,V,LVII)18 ...ist aber nicht ein solches des Vorstellens, wie die Relation von Subjekt zum Objektes ausdrckt, sondern ein solches des ganzen Lebens. (GS,VIII,141)

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004 127

    8. Heidegger8. Heidegger8. Heidegger8. Heidegger8. Heidegger

    8.1. A crtica do psicologismo8.1. A crtica do psicologismo8.1. A crtica do psicologismo8.1. A crtica do psicologismo8.1. A crtica do psicologismo

    Em 1912, Heidegger publica Neuere Forschungen ber Logik, onde mostraestar atento ao desenvolvimento acontecido na lgica do sc. XIX e possuiruma avaliao em extremo positiva do mesmo. Em tal contexto, existe umareferncia a Frege, cada no esquecimento19, porm, sem dvida de extre-ma importncia, tanto mais para quem se lembra que Heidegger estudoumatemtica e que esteve em dvida a respeito do seu tema de habilitao(que originariamente seria o nmero), o que abertamente deixa ver as suassimpatias com respeito a uma teoria logicista. Na verdade, o mencionadotema no despertou entusiasmo em Rickert, o qual, contra o que era atendncia majoritria no neokantismo, defendia uma teoria no-logicistado nmero. O escrito de 1912 documenta um interesse no superficial pelaevoluo da lgica, ainda que o grau de familiaridade de Heidegger coma mesma no seja dos melhores20.

    O artigo sobre a lgica contempornea serviu a Heidegger de base paraa sua dissertao: Die Lehre vom Urteil im Psychologismus. A idiafundamental deste escrito que, se o psicologismo morreu, ele pode revivera qualquer hora, ou seja, que ainda temos que colocar cadeados na tampado caixo para no levar um susto. O ponto central no qual ainda neces-srio insistir, dado que o trabalho efetuado at agora pode no ser sufici-ente, a teoria do juzo21. A Dissertao heideggeriana prope uma crtica concepo psicologista do juzo em alguns de seus representantes, assimcomo uma proposta positiva na qual possui um papel decisivo a retomadado conceito lotzeano de validez (Geltung).

    19 In diesem Zusammenhang mchte ich den Namen eines deutschen Mathematikersnicht unerwhnt lassen. G. Freges logisch mathematische Forschungen sind meinesErachtens in ihrer wahren Bedeutung auch noch nicht gewrdigt, geschweige dennausgeschpft. Was er in seinen Arbeiten ber Sinn und Bedeutung, ber Begriff undGegenstand nidergelegt hat, darf keine Philosophie der Mathematik bersehen. Es istaber auch im gleichem Masse wertvoll fr eine allgemeine Theorie des Begriffes. WennFrege dem Psychologismus im Prinzip wohl berwand, so hat doch Hussserl erst inseinen Prolegomena zur reinen Logik das Wesen, die relativistischen Konsequenzen undden theoretischen Unwert des Psychologismus systematisch und umfassendauseinandergelegt. (NFL, 20)20 A verdadeira fonte de muitas idias que Heidegger, falsamente, atribui ao logicismo,so os escritos propagandstico - didticos de Couturat, que na apresentao sucinta dalogstica comea com o clculo sentencial, o que sem dvida correto. isso, porm,o que leva a Heidegger a pensar que a nova lgica carece de uma reflexo sobre o juzo.21 Num prximo artigo me proponho a desenvolver este ponto por extenso.

  • 128 Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004

    O escrito juvenil do autor de Ser e tempo pode ser analisado de formaimanente, colocando o acento seja na sua perspectiva crtica, seja na suaproposta construtiva. Porm, tal ponto de vista exige pr-condies queainda no tm sido cumpridas como, em particular, um esclarecimentosuficiente da noo lotzeana de Geltung, a qual mencionada e descritaamide, mas no propriamente analisada. por isso que, como indicamosno comeo, assumiremos um mtodo comparativo, pois aqui sim, os pr-requisitos esto presentes.

    Ora, no que respeita a tarefa de contextualizar o trabalho heideggeriano (epressuposto o panorama que temos desenvolvido), deve se dizer que cha-mam a ateno duas significativas ausncias:

    1. Heidegger incorre, sem dvida, em erro quando afirma que a crticaao psicologismo carece de uma teoria adequada do juzo e, por talmotivo, exige ser completada em tal direo. bvio que a leitura deLask foi determinante para tal convico. Porm, Heidegger passa poralto o fato de que tanto Bolzano quanto Frege desenvolveram teorias aeste respeito totalmente elaboradas, que, pelo menos, deveriam ser dis-cutidas antes de qualquer novo intento.

    2. Heidegger, como tantos outros antipsicologistas epigonais, chega tarde festa e avalia incorretamente o status questiones22.

    7.2. Crtica ao psicologismo e subjetividade transcendental7.2. Crtica ao psicologismo e subjetividade transcendental7.2. Crtica ao psicologismo e subjetividade transcendental7.2. Crtica ao psicologismo e subjetividade transcendental7.2. Crtica ao psicologismo e subjetividade transcendental

    O texto heideggeriano se concentra na crtica ao psicologismo e diz poucoou nada sobre a questo que na elite neokantiana era tema central, a saber,a elaborao de uma teoria da subjetividade ps-psicologista. Esta situaose manifesta de vrias formas.

    Todo o escrito de Heidegger est centrado no problema do Urteil. Rickertacaba de escrever um artigo, Juzo e julgar (Urteil und Urteilen, 1912),estabelecendo (ou, mais propriamente, re-estabelecendo na perspectiva deBaden), uma diferena decisiva no juzo entre o contedo julgado e o atode julgar, qual ele acopla uma sistemtica de diferenciaes (Urteilssinn,Urteilsgehalt etc.). Heidegger menciona o artigo referido, mas no o ana-lisa, com a desculpa de que s vai tratar de autores psicologistas quenecessitam de correes e no daqueles que j esto livres da doena. Adesculpa no poderia ter sido mais retrica.

    22 O centro de interesse da Dissertatio heideggeriana o problema do juzo enquantoproblema lgico. Nada autoriza, neste texto, a entrever a questo de um aprofundamentoontolgico como necessria. Se nos ativermos s manifestaes expressas do prprio Heidegger, a partir do final da monografia sobre Duns Scoto e, em relao direta com dificuldades nateoria de negao, que surge essa inquietude. Veja-se: Martin Heidegger Heinrich Rickert.Briefe 1912-1933. Frankfurt, Vittorio Klostermann, 2002. pp. 25, 34, 48-49.

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004 129

    A crtica que Heidegger dirige teoria do juzo de Brentano mostrapouca familiaridade com o autor. Ela parece estar baseada s naquelestextos da Psicologia do ponto de vista emprico que anunciam de modoexpresso tratar desse tema. Heidegger no conhece outros textosbrentanianos pertinentes ao problema (e que evidenciam uma reflexo emextremo dinmica sobre o mesmo), nem as complexas variaes que sofrea teoria de Brentano (que passa inclusive por posies similares s que elemesmo est querendo defender). Alm disso, no h uma nica refernciaao conceito de intencionalidade.

    Muito pobre e injusta a anlise de Lipps, que proporciona a imagemdistorcida de um autor inexpressivo quando, na realidade, se trata de umafigura digna de ateno mais detida, pelo menos por dois motivos: primei-ro, porque explora de modo sistemtico os pontos fortes do psicologismoe parte para o ataque, nem sempre errando o alvo; segundo, porque eleevolui na sua posio passando do psicologismo ao antipsicologismo, e portal motivo, seus textos constituem um complexo mostrurio dos argumen-tos e contra-argumentos que eram empregados por uma e outra tendncia.

    A escola de Marburgo lembrada s no seu antipsicologismo, no ha-vendo referncia a Natorp e outros neokantianos de valia.

    Em geral, a referncia a Husserl s ao primeiro volume das LU, queparece ser o texto que Heidegger at ento estudou seriamente. Nenhumaoutra referncia a esta obra testemunha uma familiaridade maior, comuma importante exceo.

    Uma vez que, ao longo de todo o livro, se insiste em separar o plano lgicoe o psicolgico, inesperadamente, Heidegger parece lembrar que tambmh um problema que diz respeito ao vnculo entre ambos e sugere, semmaiores detalhes, que a resposta para esse problema deve-se buscar ape-lando a algum tipo de sujeito transcendental. Esse sujeito transcendental,com certeza, no o kantiano, mas tem fontes mais imediatas. Essa fonteno , porm, o neokantismo de Marburgo (para o qual o sujeitotranscendental foi mais um problema que uma soluo). Ela poderia serRickert, mas a explcita referncia a Husserl no deixa aqui subsistir dvi-da alguma. A importncia dessa referncia a Husserl pe-se em evidncia, coerente e se corrobora de modo recproco, com outro texto fundamental.

    7.3. A faticidade do 7.3. A faticidade do 7.3. A faticidade do 7.3. A faticidade do 7.3. A faticidade do DaseinDaseinDaseinDaseinDasein como verdadeira como verdadeira como verdadeira como verdadeira como verdadeiratranscendentalidadetranscendentalidadetranscendentalidadetranscendentalidadetranscendentalidade

    Aps a Dissertatio sobre o psicologismo e a habilitao sobre Duns Scoto,temos um vcuo nas publicaes de Heidegger. O que nos interessa agora (pelo menos) tornar plausvel o que esse vacuum representou do ponto

  • 130 Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004

    de vista do tema do psicologismo. Sabemos que nestes anos se processa osurgimento do SZ e que nesta obra a discusso com Husserl joga um papeldecisivo. Sabemos, assim mesmo, que SZ incompreensvel sem um novoconceito de transcendentalidade e de faticidade. Sabemos, ainda mais, queSZ no nem psicologia, nem antropologia e que a teoria do juzo tradi-cional experimenta nessa obra uma reformulao radical. Mas, e opsicologismo? E o antipsicologismo? a tarefa de uma teoria da subjetivi-dade ps-psicologista?

    Neste ponto, parece que estamos frente a um hiato, onde faltam todos ospassos intermedirios. Reconstruir os mesmos seria, sem dvida, umaimportante tarefa, caso eles efetivamente existissem23. Porm, no presentetrabalho me limitarei a apontar esta questo como puro limes da minhaanlise. O essencial est claramente exposto em algumas linhas queHeidegger escreveu no contexto de seus comentrios crticos ao artigo deHusserl sobre fenomenologia destinado Enciclopdia Britnica. Mas,para que esse texto seja compreensvel, lembremos uma distino chavepara Ser e Tempo, a saber, a distino entre faticidade (Faktizitt) efatualidade (Tatschlichkeit) (SZ,135). Existem dois que (dass). Um o dass daquilo que pertence ao subsistente (Vorhandenheit)24 e categorialmente determinado. Este acessvel em um constatar atravs deuma simples olhada (um hinsehendes feststellen). Agora, faticidade no a positividade do factum brutum de um algo simplesmente presente(vorhanden), seno um carter do Ser do Dasein, que compreendido na

    23 No improvvel que aqui estejamos frente a uma verdadeira Umkippung, na qualDilthey foi decisivo.24 Vorhandenheit j tm sido traduzido por subsistncia, ser aos olhos, presente-mente dado, simplesmente dado, ser disponvel, etc.. Qui a traduo por um nicotermo em todos os contextos, no seja recomendvel. No contexto atual, usei subsistn-cia, simplesmente presente e presente. No primeiro caso, fundei a minha opo napossibilidade de contrapor, tanto em alemo quanto em portugus, Subsistenz - Existenzou subsistncia existncia; no segundo, na possibilidade do vorhanden de ser intudo.Vinculo o vorhanden ao vorfindlich e obtenho assim a possibilidade de reproduzir osugerido na oposio vorfindlich - befindlich. Heidegger se vale da diferena entrefinden, vorfinden e sich befinden. Nos trs casos, trata-se de um encontrar, porm s noprimeiro caso isto acontece sem mais. Eu s posso encontrar (finden) algo que perdi,que busco ou que anteriormente no tinha percebido. No segundo, trata-se de um encon-trar algo que est diante de mim. O encontrar da Befindlichkeit sempre um encontrar-se (sich befinden). Ora, obvio que eu no posso me perder e, em conseqncia, meencontrar no primeiro sentido, mas tampouco eu posso me encontrar frente a mimmesmo, como algo diferente de mim. Na verdade, eu no me encontro no sentido deencontrar em nenhum dos dois primeiros casos, mas no sentido em que se encontrarsupe sempre em uma certa forma, ou seja, se trata do sentido de encontrar no qualeu, por ex. pergunto: como voc se encontra? e espero como resposta algo assim comobem, mal, triste, etc.. O Dasein se encontra sempre em um certo estado (de nimo)(Stimmung), e s nele que ele se encontra ou se d a si mesmo. O exposto nesta notano pretende esgotar o tema, e sim, to somente, dar uma idia preliminar dos sentidosdos termos alemes e dos usos que Heidegger faz deles que possibilite a compreensodo texto central.

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 99, 2004 131

    existncia (Existenz), ainda que primeiramente (de um modo) forado. Oqu dela no se encontra jamais no mero intuir (SZ, 135)25. O Dasein no simplesmente encontrvel (vorfindlich) na intuio (Anschauung), poisele no simplesmente presente (vorhanden), mas ele se encontra de umcerto modo ( befindlich). Tendo presente agora a diferena entreTatschlichkeit e Faktizitt, leiamos a decisiva passagem anunciada, com aqual concluo este escrito: claro, diz Heidegger, que o ente, no sentidodaquilo que eles chamam mundo, no pode ser aclarado em sua constitui-o transcendental atravs de um regresso a um ente que possua essemesmo tipo de ser Por isto, se deve referir a problemtica do ser de ummodo universal tanto ao constituinte como ao constitudo Trata-se demostrar que o modo de ser prprio da existncia humana totalmentediferente do de todo outro ente e que ele, enquanto aquele que ele ,contm justamente em si a possibilidade de constituio transcendental. Aconstituio transcendental uma possibilidade central da existncia do simesmo (Selbst) ftico. Este, o homem concreto enquanto tal, ou seja, en-quanto ente (als Seiendes), no jamais um fato real intramundano, poiso homem no meramente subsiste (vorhanden)26, seno que existe (existiert).E o maravilhoso que o modo de ser do Dasein possibilita a constituiotranscendental de todo o positivo 27.

    25 Tr. do autor: Faktizitt ist nicht die Tatschlichkeit des factum brutum einesVorhandenen, sondern ein in die Existenz aufgenommene, wenngleich zunchst abgedrangtSeinscharakter des Daseins. Das dass der Faktizitt wird in einem Anschauen nievorfindlich.26 Ou: o homem no simplesmente (ou meramente) presente27 Tr. do autor: ... dass das Seiende im Sinne dessen, was sie Welt nennen, in seinertranszendentalen Konstitution nicht aufgeklrt werden kann, durch einen Rckgang aufSeiendes von ebensolcher Seinsart... Universal ist daher das Problem des Seins aufKonstituierendes und Konstituiertes bezogen... Es gilt zu zeigen, dass die Seinsart desmenschlichen Daseins total verschieden ist von der alles anderen Seienden, und dass sieals diejenige, die sie ist, gerade in sich die Mglichkeit der transzendentalen Konstitutionbirgt. Die transzendentale Konstitution ist eine zentrale Mglichkeit der Existenz desfaktischen Selbst. Dieses, der konkrete Mensch, ist als solcher - als Seiendes - nie eineweltlich reale Tatsache, weil der Mensch nie nur vorhanden ist, sondern existiert. Unddas Wundersame liegt darin, dass die Existenzverfassung des Daseins, dietranszendentale Konstitution alles Positiven ermglicht. Biemel, W.: HusserlsEncyclopedia Britannica Artikel und Heideggers Anmerkungen dazu. Tijdschrift voorFilosofie, 12, 246-280, 1950.

    Endereo do Autor:Rua Anastcio de Souza Pinto 333, apt. 142 Freguesia dO02926-030 So Paulo SPE-Mail: [email protected]