Aristófanes - As Nuvens

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  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    AS NUVENS

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    Personagens

    Estrepsades, pai de Feidipides

    Feidipides, jovem irresponsvelXntias, escravoAlunos de Scrates

    ScratesCoro das Nuvens

    Corifaios ou Chefe do CoroAristfanes

    FilosofiaSofisma

    Psias, credor de EstrepsadesAmnias, credor de Estrepsades

    Cairefonte, discpulo de ScratesEscravos, Estudantes, Testemunhas, etc.

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    Cenrio: Uma rua de Atenas. esquerda, a casa de Estrepsades, velhoagricultor obrigado pela guerra a deixar o campo e passar a residir em Atenas; direita, um casebre diminuto, sujo, arruinado, que obriga o Pensamental deScrates. extrema esquerda, uma esttua de Poseidon. Em frente da casade Scrates, contrabalanando com herma, h um fogo cheio de panelas,

    com um comprido e fino cano de chamin e um letreiro que diz: MODELO DOUNIVERSO, SEGUNDO O PRINCPIO DA CONVECO.Diante da casa de Estrepsades h duas camas, uma ocupada pelo prprioEstrepsades, a outra por Feidipides. Perto, estendidos no cho, dormem eroncam fortemente vrios escravos.Est quase amanhecendo.

    Estrepsades(mexendo-se agitado, depois atirando para um lado as cobertase sentando-se na cama, e bocejando):Aaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu!Zeus, Todo-Poderoso, que infindvel

    E monstruosa noite! Quando o diaNascer finalmente? Eu jurariaH muito tempo ter ouvido o cantoDo galo. E o que se d com esses escravos?Roncando ainda assim. Que desaforo!Pelos deuses! As coisas por aquiEram bem diferentes, certamenteNos velhos tempos, antes dessa guerra!Maldita guerra! Arruinou Atenas.No se pode sequer, de agora em diante,Chibatear sem d nossos escravos,Pois, se o fizermos, os escravos fogemE vo se apresentar aos espartanos.

    (apontando para Feidipides)

    O caso ainda pior, embora incrvel,Com este meu filho, moo irresponsvel,Preguioso sem par e incorrigvel.Vede como ele dorme aconchegadoSob cinco cobertas. Muito bem!

    Se isto que queres, vou dormir tambm.No tem graa: dormindo, e eu acordado.

    (Enfia-se de novo debaixo das cobertas por um momento, depois as empurra esenta-se de novo na cama.)

    No consigo dormir. Malditas dvidas!No me deixam sequer piscar os olhos.

    (Voltando-se para Feidipides)

    Tudo por tua causa, filho ingrato.Teus malditos cavalos, tuas selas, Arreios, jaezes e chicotes,

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    E rabos de cavalo, ainda por cima!Estou falido, arruinado, pobre.O que vai ser de mim no fim do ms,Quando todas as dvidas vencerem?

    (Acorda Xntias, brutalmente, com pontaps.)

    Vai depressa uma lmpada acenderE o meu livro de contas trazer.

    (O escravo se levanta, acende uma lamparina de luz muito fraca e traz o livrode escriturao.)

    Vou ver aqui nas contas quanto devo.

    (Lendo em voz alta.)

    A Psias a importncia de trezentos...Isto tudo? Para o que ter sido?Ah! Agora me lembro! Estou lembrado:O cavalo capo que eu lhe comprei.Acho que era melhor me ter capado!

    Feidipides(sonhando alto):Filo! Ests me traindo sem-vergonha!Corre seguindo bem a tua pista!

    Estrepsades isto! Essa mania de cavalos o que est arrasando a minha vida.Pensa que est correndo at no sonho.

    Feidipides(sonhando alto):Quantas voltas ainda para o fim?

    Estrepsades:Teu pobre pai se encontra mesmo s voltas!

    (Voltando ao livro de escriturao):

    Agora vamos ver, depois de PsiasQual a seguinte dvida contrada.

    (Lendo em voz alta):

    A Amnias eu devo pela compraDe um carro com timo, rodas e tudo...

    Feidipides(sonhando alto):

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    Tira o cavalo agora da poeiraPalafreneiro, e leva-o para a cocheira.

    EstrepsadesDo Meu lar me tiraste, filho ingrato!

    Duas ou trs demandas, por tua culpa,J perdi. E essas dvidas agora!

    Feidipides(acordando, mal-humorado):Por que motivo, pai, a noite inteiraTe mexeste na cama sem dormiresNem deixares dormir?

    Estrepsades:A noite inteiraMe mordeu o maldito de um meirinho.

    Ficas sabendo agora.

    Feidipides:E agora queresPermitir-me dormir bem sossegado?

    Estrepsades:Dorme, dorme vontade, seu maroto!Dorme vontade, mas fica sabendo:As dvidas que hoje me atormentamA ti atormentar iro um dia.

    (A nica resposta de Feidipides um ronco)

    Morte sofrida e crua bem mereceO vil alcoviteiro que me fezUnir-me a tua me no casamento!Eu sempre quis viver na paz do campo,A terra cultivando, sempre s voltasCom colmeias, ovelhas e oliveiras.Mas, por azar, com quem fui casar-me?

    Com tua me, donzela da cidade,Ela prpria sobrinha de Megacles,Herdeiro e filho do Megacles Velho,Do fidalgo Megacles. Ela uma moaBonequinha de luxo. E nos casamos.E deitamos na cama. Eu fedendoA estrume, curral, borra de vinho,Ela cheirando a todos os perfumes:E trazendo consigo tanta coisa:Beijos na boca, luxo e preos altos,E pratos requintados e outras coisas...

    Era, porm, ativa diligente.Isso l ela era. O dia inteiro

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    Fiando a l em casa trabalhavaE de noite era ainda mais ativa:No mais tecia a l, mas tosquiava.O que pensas senhora, que sou?Costumava eu dizer-lhe. Homem ou bode?

    (De repente, a lamparina bruxuleia e se apaga.)

    Xntias:No tem mais leo a lmpada.

    Estrepsades:Ora essa! E por que a acendeste, desgraado? Chega aqui, que vais serchicoteado.

    Xntias

    Mas por qu? Mas por qu? O que fiz eu?

    Estrepsades:No sabes nem meter. Naturalmente.O pavio meteste erradamente.

    (Investe contra Xntias, que esquiva e corre para dentro da casa).O que eu ia dizer? Quando nasceuEste filho querido e dorminhoco,Tratamos logo, eu e sua me,De um nome lhe arranjar. Ela queriaUm nome bem fidalgo, bem na moda,Em hiposterminado. Por exemplo:Xantipos ou Caripos ou Calpedes.Mas eu queria que se nome fosseFeidonides, em honra a seu avHomem de bem, trabalhador e honrado.Discutimos, porm enfim chegamosA um compromisso assim: Feidipides,Um nome meio a meio construdo.Eu sei o que vai ser quando for grande

    Costumava dizer a minha esposa,Olhando a criancinha: Um grande homem,Como o Tio Megacles. Grande homem!Tenho a impresso at de v-lo agora vontade, na Acrpole, trajandoVeste de prpura. Mas eu contestava:Eu o estou vendo, destro, na montanha,Pastoreando as cabras e vestindo,Como seu pai, um srdido saiote.Intil dizer que o meu desejoNo foi cumprido. Fora os cavalos,

    Ocupao alguma tem meu filho.De qualquer modo, aps os meus miolos

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    Queimar a noite inteira, me pareceTer do problema a soluo achado.Mister, porm, primeiro encontrarUm meio de acord-lo. isso mesmo!

    (Com voz carinhosa, junto ao ouvido de Feidipides):

    Feidipides (acordando furioso):Ora essa, meu pai! O qu, agora?

    EstrepsadesUm beijo para teu pai. E a mo, meu filho.

    FeidipidesO que significa tudo isso?

    EstrepsadesDiz-me, filho: gostas de teu pai?

    FeidipidesGosto, sim. Por Poseidon juro mesmo.

    EstrepsadesIsto, no! Isto no, meu filho, noJures por esses deuses cavalares.Jurar por eles, por Poseidon, ento,Causa de toda esta situaoQue ora me aflige! Se porm, meu filho,Gostas mesmo de mim, peo-te, imploroFazer o que desejo. Me prometes?

    Feidipides(desconfiado)Depende. O que desejas, afinal?

    EstrepsadesEscuta o que te peo, sim, meu filho,Muda de todo o teu comportamento.

    Ouve o que digo, e faz de ti mesmoUm homem novo, um novo Feidipides.

    FeidipidesComo, porm?

    EstrepsadesPromete-me, primeiro.

    Feidipides(relutante)V l, prometo. E agora, Dionsio

    Que me ajude!

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    EstrepsadesMeu filho, estou contente.Agora vou dizer-te o que preciso.Vs aquele casebre, aqui pertinhoCom uma bonita porta?

    FeidipidesNo me digasQue para l me ests encaminhando!

    Estrepsades(reverente)Este o Pensamental, meu caro filho.Ali vivem homens sbios, professores,Que iro te ensinar, e mais: provar-teQue toda a atmosfera realmenteUm Forno Csmico, e ns apenas somos

    Uns fragmentos de carvo ardendo.Ainda h mais: mediante pagamento,Naturalmente, oferecem um cursoChamado: O Meio de Vencer Demandas. um meio honesto, enquanto for possvel.

    FeidipidesE quem so esses homens?

    EstrepsadesVou dizer-te.So grandes eruditos. Cientistas.

    FeidipidesMuito bem. Mas quem so?

    EstrepsadesQuem so? So... so...

    FeidipidesQuem, afinal de contas? Quem so eles?

    EstrepsadesEles quem so?

    FeidipidesNo venhas me dizerQue so esses pedantes, charlatesCairefonte e esse embusteiro Scrates.

    Estrepsades(escandalizado)O que isso, meu filho! Cala a boca.

    No me faas jamais ouvir palavrasTo pouco respeitosas como essas.

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    Podes crer: se no queres que teu paiMorra de fome, acabe miservel,Fars melhor com eles estudaresE deixares de vez os teus cavalos.

    FeidipidesPor Dionsio, isto no! Nunca na vida!Nem mesmo se, meu pai, me seduziresCom todos os cavalos de Leogoras!

    EstrepsadesImploro-te, meu filho! Por favorVai estudar nesse Pensamental!

    FeidipidesOuvi dizendo

    Que dois tipos de Lgica l se ensinam.Uma delas chamada FilosficaOu Lgica Mora, outra chamadaDe Lgica Sofstica ou Socrtica.Muito bem. Se, meu filho, conseguiresEsta Segunda lgica aprender,No terei de pagar uma moedaDe todas essas dvidas mofinasQue s por tua causa contra.

    Feidipides

    Mas no contes comigo. Os agiotas,Os vampiros cruis me depenaram.Como iria eu agora face a faceEncontrar-me e com eles discutir?

    EstrepsadesPor Demter, ento, juro e prometo:Nunca mais comers em minha mesa.Pode juntar teus trapos e ir embora.

    FeidipidesTio Megacles no vai me deixarSem montaria, no, por muito tempo.No preciso de ti. Vou procur-lo.(sai Feidipides)

    EstrepsadesPerdi, confesso, mas por pouco tempo.Primeiro, ergo uma prece para os deuses,E irei matricular-me, aps, eu mesmoNesse Pensamental... Mas, na verdade,

    A memria est fraca em minha idadeE o raciocnio no mais brilhante.

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    Terei pacincia e nimo bastantePra ingerir essa lgica abstrusa?Mas tenho que fazer. Por que entoFicar assim pensando o dia inteiro,Sem bater nesta porta?

    (caminha at a casa de Scrates e da um pontap na porta)Ei, porteiro!

    Estudante(de dentro)Que barulho!(abrindo a porta):Quem bate nesta porta?

    EstrepsadesEu mesmo, meu amigo, Estrepsades,Filho de Feidon, em Quinquina nascido.

    EstudantePela maneira com que aqui chegasteE deste coices nesta pobre porta,Merecias chamar-te Estupidez.No vs que provocaste o mau sucessoDe grande descoberta cientfica?

    Estrepsades(humildemente)Oh! Por favor, desculpa. Eu no sabia.Sou um homem do campo, sem traquejo.Que descoberta, diz-me, abortou?

    EstudanteIsto um segredo secretssimo,Apenas conhecido dos alunos.

    EstrepsadesNo podes me dizer, ento. certo.Por isso mesmo aqui me apresentoPara estudar neste Pensamental.

    EstudanteMuito bem, neste caso, ento, te digo.No te esqueas, porm, que o nosso estudoDo mais denso mistrio rodeado.(em voz baixa)Escuta aqui: agora mesmo ScratesArga o solerte Cairefonte,Para saber, perfeita e exatamente,O nmero de ps (de ps de pulga)Que uma pulga capaz de completar

    De um pulo to somente. Com efeitoUma pulga picara Cairefonte

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    Na sobrancelha, e, rpida, saltaraPara a calva socrtica imponente.

    EstrepsadesE como foi que ele mediu tal coisa?

    EstudanteFoi verdadeiramente genial.Primeiro derreteu alguma cera,Depois tratou de aprisionar a moscaE as patinhas meteu na cera mole,Que deixou esfriar. Um sapatinhoAssim formou ento. Logo em seguida,Descalou os sapatos, e a medidaFoi feita sem tropeos, num instantinho.

    EstrepsadesQue inteligncia, Zeus onipotente!

    EstudanteGenial realmente. Mas aindaOuviste nada. Queres outro exemplo?

    EstrepsadesCom muito gosto. Fala, por favor.

    Estudante

    Cairefonte a Scrates perguntaDas duas qual a certa teoria:O mosquito, ao zumbir, se utilizaDa boca ou justamente do contrrio?

    Estrepsades(vivamente interessado)Continue a explicar, por obsquio.

    EstudanteO trato intestinal do vil mosquito

    diminuto, explica o grande sbio.E o gs que vem do estmago, encontrandoTo pouco espao, passa sibilandoE o zumbido produz que ns ouvimos.

    EstrepsadesQuer dizer que o mosquito, quem diria!Tem, ento, um trompa no traseiro!Que grande homem! Que sabedoria!Quem entende a tal ponto do traseiroH de entender tambm do mundo inteiro!

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    EstudanteE sabe de uma coisa: inda outro diaPor causa de um lagarto, ele deixouDe fazer uma grande descoberta.

    EstrepsadesUm lagarto o impediu? Essa incrvel!

    EstudanteAconteceu noite, quando o sbioA rbita da Lua pesquisava.Olhava, boquiaberto para o cu,Quando eis que despencando do telhadoUm lagarto caiu em cima dele.

    Estrepsades

    Um vil lagarto, petulante, em cimaDo vosso grande Scrates! boa!

    EstudanteE ontem, durante a noite no haviaNada que se comesse nessa escola.

    EstrepsadesComo ele prepara a vossa ceia?

    Estudante

    Com muito amor. Uma combinaoDe cincia e prestidigitao.Ps na mesa, primeiro, uma camadaDe cinza feita de p, pulverizada.Depois muito vontade, muito ancho,Com uma haste de ferro fez um gancho.E traa um arco ao longo do permetro.Com esse movimento circularO extremo do gancho em seu caminhoEncontra o manto que est mais vizinho,

    E o manto manda ento ele empenhar.O que for apurado pra o jantar.

    EstrepsadesQue talento! Que gnio! O prprio TalesEra um amador com ele comparado!Abra-me a porta do Pensamental!Quero ver esse sbio frente a frente,Quero estudar com ele! Ser letrado!

    (o equiclema girado ento para mostrar o interior do Pensamental de

    Scrates. Bem alto, o guindaste sustenta Scrates dentro de um cesto, muitoagitado, observando o cu. Pendurados nas paredes do Pensamental h vrios

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    mapas, instrumento, etc. No centro do ptio, encontra-se um certo nmero dealunos, lvidos, magrrimos, profundamente empenhados em uma atentacontemplao do solo)Por Hrcules! O que isso? O que estou vendo?

    EstudanteO que h de estranho nisso? O que achas?

    EstrepsadesQue eles so prisioneiros espartanos.Vindos de Pilos. Assim me parece.Mas por que para o cho esto olhando?

    EstudanteImportante pesquisa esto fazendo,Pesquisa geolgica; estudando

    As camadas da terra, procurando...

    Estrepsades claro. J entendi. Procuram trufas.Eu conheo um terreno onde h farturaDe trufas.(apontando para outros alunos, que esto completamente curvados.)Mas aqueles l, curvadosQuase que at o cho, o que eles fazem?

    Estudante

    So alunos de escol. Pesquisam o Hades.

    EstrepsadesMas... e os traseiros para o cu voltados?

    EstudanteDa astronomia so principiantes.(para os alunos)Depressa, para dentro, antes que o MestreVos apanhe. Portanto, entrai, entrai!

    EstrepsadesNo, espera! Permite que eles fiquemPor um momento mais. Quero falar-lhes.

    Estudante de todo impossvel. O estatutoNo permite jamais que fiquem expostosAo ar livre. a regra, e regra regra.

    (os alunos desaparecem em uma porta no fundo. Enquanto isso, Estrepsades

    contempla os vrios mapas e instrumentos pendurados nas paredes).

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    Estrepsades(apontando para um mapa)Para o que serve isto?

    EstudanteAstronomia

    Estrepsades(mostrando outros instrumentos)Estes para o que servem?

    EstudanteGeometria

    EstrepsadesE para que serve, ento, a geometria?

    Estudante

    Para medir, naturalmente.

    EstrepsadesLotes?

    EstudanteO mundo inteiro.

    EstrepsadesQue grande instrumento!til e patritico, sem dvida.

    Estudante(apontando para um mapa)Aquele mapa abarca o mundo inteiro.Aqui est Atenas.

    EstrepsadesQue absurdo!Como pode isso ali ser mesmo Atenas?Se no vejo sequer um tribunal?

    EstudantePois pura verdade. Isso Atenas.

    EstrepsadesE onde esto meus vizinhos de Quiquina?

    EstudanteAqui esto. E aqui est Eubia.

    EstrepsadesEu conheo essa ilha. O nosso Pricles

    A espremeu at deix-la seca.Mas onde est Esparta, que no vejo?

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    EstudanteAqui est Esparta.

    Estrepsades

    Assim to perto?Na minha opinio, seria certoAfast-la bem mais.

    EstudanteNo possvel.

    Estrepsades uma pena, no ? Mas que fazer

    (Pela primeira vez, Estrepsades v Scrates dentro do cesto, l no alto.)

    O que est pendurado ali no cesto?

    EstudanteEle prprio em pessoa.

    EstrepsadesEle prprio?Quem esse Ele prprio?

    Estudante

    O prprio Scrates.

    EstrepsadesEle?! O sbio filsofo e erudito?Faze-o descer, ento! D logo um gritoO chamando para c! Eu quero v-lo!

    Estudante(afastando-se apreensivo, apressadamente)Podes cham-lo, ento. Chama tu mesmoQue eu tenho muita coisa que fazer.

    (sai Estudante)

    EstrepsadesEsts em ouvindo Scrates? Scrates!

    (nenhuma resposta vinda do cesto)

    Quero falar contigo, grande Scrates!

    Scrates(de uma grande altura filosfica)

    Homem vulgar, de mim o que desejas?

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    EstrepsadesO que ests fazendo a trepado?

    ScratesEu caminho no ar, e olho o Sol

    De cima para baixo. No ests vendo?

    EstrepsadesSuponho, realmente, que melhorTu zombares dos deuses l em cima,Trepado nesse cesto, do que estaresAqui embaixo, neste duro cho.

    ScratesEsta tambm minha opinio.Suspenso, como estou, no ar etreo,

    Com ele misturando facilmenteMeu douto pensamento, de NaturaPosso explorar o ntimo mistrio,Mais perto assim do fabuloso Empreo.Se a, no baixo solo, as pesquisasDa alta cincia eu prosseguir tentasse,Em vo seria, eu tentaria em vo:Do nosso pensamento a terra sugaA essncia sutil e deixa a grossa.(como que refletindo) o mesmo que acontece com o agrio.

    Estrepsades(extasiado de admirao)Que sbio raciocnio! Que talento!A essncia sutil... O agrio... Scrates divino, eu te imploro:Desce do cesto, vem aqui para baixoE me ensina o que a saber aspiro.

    (Scrates baixado at o cho, vagarosamente)

    ScratesO que queres saber?

    EstrepsadesEu quero, Mestre,Teu curso de oratria e de eloqnciaSeguir, pra discutir com meus credores.Em verdade os credores se tornaramAbsolutamente insuportveis.Importunam, perseguem. Uns miserveis!O pior que esto me ameaando

    De tomar os meus bens. E pouco faltaQue de fato o consigam.

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    ScratesComo foiQue chegaste a esse estado de insolvncia?

    EstrepsadesFui atacado pela peste eqina:Os cavalos comeram o que restava. por isso que estou aqui em buscaDe ensinamentos que de certo constamDa tua Lgica Socrtica ou Sofstica.Tu podes me ensinar: os argumentosQue a gente pode usar para livrar-seDe toda e qualquer dvida que temos,Mas sem termos, claro, de pag-la.Pela lio eu pago o que pedires.

    Pelos deuses te juro.

    ScratesPelos deuses?Esses deuses no passam, meu amigo,De uma falsa e vulgar superstio.

    EstrepsadesPelo que queres, pois, que eu jure ento?Barras de ferro, como os bizantinos?

    ScratesOuvem, meu velho, queres realmenteA verdade saber, toda, inteirinha,A respeito dos deuses?

    EstrepsadesQuero, sim.Por Zeus, quero saber toda a verdade.

    Scrates

    E queres ser tambm admitidoCom toda a regalia, no convvioDE Suas Serenssimas Altezas,As Nuvens, nossas deusas?

    EstrepsadesEu conviverCom deuses de verdade? Quero muito.

    ScratesPois muito bem, ento. Primeiramente

    Tens de sentar na mstica cadeira.

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    EstrepsadesEstou sentado.

    ScratesAgora, na cabea

    A guirlanda votiva coloquemos.

    EstrepsadesA guirlanda votiva? Oh, no! PiedadePor favor, por favor, no me assassinesComo o desventurado tamas, na peaDe Sfocles.

    ScratesMas tamas salvou-se.Confundiste, sem dvida, com Frixos.

    EstrepsadesQuer seja um ou outro, pouco importa.O que me importa no morrer to cedo.

    ScratesCoragem, velho. um processo normalExigido de todo o iniciado.

    EstrepsadesJ que no pra matar, concordo.

    Scrates(aspergindo Estrepsades da cabea aos ps com a farinha ritual)Renascers, senhor, como perfeitaFlor da oratria, como um consumadoTratante, palavroso e descarado.

    EstrepsadesQue brincadeira essa? Estou virandoUm saco de farinha! Ests brincando?

    ScratesPsiu! Silncio! Escuta a minha prece.(levanta os braos para o cu e reza) Senhor Deus, Imensurvel ter,Que o mundo envolves, Transparente Ozona!E vs, e vs, tempestuosas Nuvens,Nuvens Sagradas, Grandes Majestades,Revelai-vos aos olhos deslumbradosDeste humilde sofista, vosso servo.

    Estrepsades

    No, por enquanto, no, Senhoras Nuvens!Chuva em cima de mim, no, por enquanto.

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    Vou proteger o corpo com cuidado,Pois, do contrrio, vou ficar molhado.

    (Protege a cabea com a tnica)

    ScratesVinde, manifestai-vos, majestosasNuvens! Vinde mostrar-me as vossas formas.Sejam as fontes do Olimpo a vossa origem,Ou seja a gua do profundo Nilo,Ou do Lago Maiotis ou a neveDerretida do Monte Mimas, Nuvens,Descei, Nuvens, ouvi as nossas preces!

    (Ouve-se o canto das Nuvens, vindo de muito longe. medida que elas seaproximam de Atenas, o volume do canto vai aumentando, at que ele se torne

    muito alto.)

    CoroAlto voai, Nuvens eternas!Trazendo a chuvaE o arco-ris!Subi do oceanoAt os montes,Subi dos rios,Subi das fontes.Voai bem alto,Enquanto embaixoCobre-se a terraDe seus trigais,E ruge o mar.Voai bem altoO ter eternoFulgura em luz.Que desa a chuvaQue vs gerais,Nuvens benditas!

    (Ouve-se o forte ronco do trovo.)

    ScratesNuvens abenoadas, como claraA resposta que dais ao meu apelo.

    (A Estrepsades)

    Ouviste o ronco do trovo?

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    Estrepsades claro!Confesso que fiquei to assustadoQue vou ter de aderir trovoada.

    (Solta gases, ruidosamente.)

    Se um sacrilgio cometi, desculpa.Fiz muita fora, mas no resisti.

    ScratesSilncio, porco! Deixa esses recursosPara os nossos autores de comdias.

    (Ouve-se um ronco de trovo mais baixo.)

    Psiu! Silncio! O squito das deusasSua cantiga entoar agora.

    CoroVirgens da chuva, olhai, virgens da chuva,Como a terra de Palas resplandece,Essa terra de Ccrops, bendita,Que a sombra de oliveiras abenoa.Ptria de heris famosos, santurioDe mistrios famosos, cujos ritosIrrevelados santificam a alma.Terra que os deuses abenoam e amamE so festivamente cultuados.E sempre que comea a primavera,Dionsio lhe traz sua alegria,A alegria da msica e da dana,A alegria das Musas e das flautas.

    EstrepsadesPor Zeus, dize-me, Scrates, quem soEssas damas que entoam a melodia

    Desse hino solene? Elas seroAcaso deusas da mitologia?

    ScratesNo so, no. So as nuvens, que so deusasDos homens de valor filosofal.Elas nos asseguram o repertrioDo talento verbal e da eloqncia,Da graa, do arranzel, do casusmo,Da prova em profuso, do circunlquio...

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    Estrepsades(de sbito arrebatado por nevoenta inspirao)Deve ser ento que por isso me sintoComo que carregado para o alto,Flutuando no ar de to infladoCom todo o sopro da filosofia,

    Envolto numa espcie de lanugem,Verbal tatuagem que me faz sentirA sensao de uma inchao etrea.Como se eu fosse um saco de palavras,Repleto de argumentos e razes,Cada qual mais areo. Enfim, Mestre,O que posso dizer-te que eu queria,Queria muito, ver, pessoalmente,E sem muita demora essas senhoras.

    Scrates

    Olha, ento, para Parnes. Posso v-lasAli descendo, muito docemente.

    EstrepsadesOnde?

    ScratesNo vs? Ali naqueles valesSe espalham pelos campos, pelos bosques.

    Estrepsades(esfregando os olhos)O que est errado? Nada vejo.

    ScratesOlha fora do palco.

    EstrepsadesAgora vejo!

    ScratesTerias catarata se no visses.

    (Lenta e vagarosamente, o Coro das Nuvens marcha em fila e toma posio naorquestra.)

    EstrepsadesFidalgas damas! Todo o espao ocupam.

    ScratesE nunca te ocorreu, dize a verdade,Que so as Nuvens deusas celestiais?

    ScratesPor Zeus, que, para mim, novidade.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

    22/89

    Sempre pensei que fossem vapor dgua.

    ScratesIgnoras tamb, pois, certamente,Serem elas as boas protetoras

    De variadas classes de pessoas:Profetas, quiroprticos, mocinhosCabeludos, poetas ditirmbicos,Astrlogos, charlates e impostoresE muitos outros mais. E como todosSem exceo, caminham com a cabeaEntre as nuvens, e buscam inspiraoNa Musa nevoenta e tenebrosa,Deles as Nuvens cuidam, e os alimentam.

    Estrepsades

    Eis explicado, ento, porque escrevem:Gotculas que cas do cu molhado,Furaces que coroais de Tifo a testa,Humo esponjoso e hialino e maisNuvens altas do cu, aves do ventoVinde at ns, rodopiantes cmulos,Brancas condensaes, vinde at ns!E em troca, ento, que esses poetasPodem comer seu trigo?

    Scrates

    E por que no?

    EstrepsadesO que quer saber, porm, isto:Se essas damas so Nuvens realmente,Por que sua aparncia de mulheres?Pois as nuvens reais no so mulheres.

    ScratesQue te parecem ento?

    EstrepsadesNo sei bem certo.Tm algo diferente das mulheres.Ah! J sei o que : no tem narizes.

    ScratesPosso fazer-te uma pergunta ou duas?

    Estrepsades claro, claro! Estou s suas ordens.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    ScratesNunca viste uma nuvem semelhanteA um centauro, um touro, um leopardo?

    Estrepsades

    Realmente j vi. E o que tem isso?

    ScratesTemos de deduzir que as nuvens podemAssumir qualquer forma que desejem.Vamos supor, ento, que elas encontremUm homem bestial, lascivo, hirsuto,Por exemplo: Jernimo. De prontoElas assumem a forma de um centauro,Da luxria da tal caricatura.

    EstrepsadesMuito bem. E o que fazem se encontraremSimon, esse gatuno do TesouroDe Atenas?

    ScratesSem demora se transformamNa aparncia de um lobo rapinante.

    EstrepsadesEu compreendo. E ontem, com certeza,Elas tomaram a forma de um veadoPor Cleomino, o poltro, terem encontrado.

    ScratesPrecisamente. E, quando acontecerUm encontro com Cleistenes, se apressamA assumirem a forma de mulher.

    EstrepsadesBem-vindas, sede, pois, deusas do cu!

    Soberanas da altura, eu vos bendigo.Se a palavra a um mortal j dirigistes,Eu vos peo um favor: falai comigo!

    (Forte trovo. Estrepsades encolhe-se, apavorado.)

    CorifaioSalve, tu, superidoso homem,Co amestrado da cultura, salve!

    (A Scrates)

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    E salve tu, sumo sacerdoteDa conversa fiada. O que desejasDize, sem hesitares, pois bem sabes:De todos os polmates da terras tu o mais querido, o preferido,

    Juntamente com Prdicos. A estePreferimos por causa do saber,De sua erudio. A ti por causaDa arrogncia que mostras, orgulhoso,Quando andas descalo pelas ruas.

    EstrepsadesQue voz solene, santa e respeitvel!

    ScratesNo existem outros deuses, seno estes.

    Todos os mais so meras invenes.

    EstrepsadesQueres dizer que Zeus uma inveno?

    ScratesZeus? Que Zeus? No h Zeus. Que Zeus?

    EstrepsadesQue Zeus?Quem ento faz a chuva? Me responde.

    ScratesQuem faz a chuva? As nuvens, certamente.A prova, neste caso, conclusiva:Tu j viste jamais chover com cu sem nuvens?Se fosse Zeus, fazer chover podiaCom um cu todo claro. Ou no podia?

    EstrepsadesPodia, claro. Tens razo, portanto.

    Tens razo, tens razo, mas eu pensavaQue Zeus, com um regador, fazia a chuva.Mas ainda h uma coisa: e a trovoada?

    ScratesSo as nuvens tambm. Simples processoDe conveco. Isto coisa provada.

    EstrepsadesEu muito te admiro, mas confesso:No fcil seguir teu raciocnio.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    ScratesEscuta, pois. As nuvens o que so?Uma densa de gua soluo.A tumescncia move-se e provocaEm conseqncia a precipitao.

    E conseqentemente com algumEsforo ento as massas se distendem,E as massas distendidas fazem: Pum!

    EstrepsadesMas quem as faz mover para colidirem?No achas que Zeus?

    ScratesNo, idiota.Tudo isso explicado no princpio

    Da conveco.

    EstrepsadesConveco? Princpio?Espera um pouco. Tu no me dissesteAfinal quem faz a trovoada.

    ScratesOra, no te expliquei? No me entendeste;As Nuvens so de gua carregadaE explodem, quando entram em coliso.

    EstrepsadesE a prova disso, podes me mostrar?

    ScratesMuito fcil. Em ti mesmo tens a prova.Os cozidos de carne no conhecesQue so vendidos em Panatenaia?Como provocam dores de barrigaE fazem ribombar o baixo ventre?

    EstrepsadesPor Apolo, eu me lembro. Coisa Horrvel!Logo a gente se sente muito mal,Com a barriga crescida e aps, entoDor de barriga e, aps, sob presso,Vai comprimindo o vento intestinalE para fora sai como um trovo. um ronco a princpio: puuumDepois mais alto: puuuuumE afinal um trovo: PUUUUUUUUUUUUM!

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    ScratesPrecisamente. O diminuto pumDe tua entranha, mister, comparaCom o estrondoso pum que vem do cu,Isto , o trovo. Mas o princpio

    o mesmo, quer num caso, quer no outro.

    EstrepsadesMas, ento, de onde que o raio vem?E, quando o raio cai, por que que mataAlguns homens e outros so poupados? Zeus quem manda os raios. Evidente!Com o raio castiga os mentirosos.

    ScratesOuve, idiota, e me responde agora:

    Se Zeus que castiga os mentirosos,Como que Simon ainda est vivo,Vivos tambm Cleminos e Toros?No entanto, em lugar de fazer issoEle destri seus prprios santuriosCorta ao meio carvalhos centenrios.Tem razo para isso? Por acasoPode o carvalho cometer perjrio?

    EstreopsadesMas como explicas, afinal, o raio?

    ScratesEspera.

    (Ilustra as suas palavras com o fogo Modelo do Universo.)

    V agora. SuponhamosA corrente de ar, bem aquecidaSubindo rumo ao cu. Logo em seguidaAtinge as nuvens e estas se dilatam

    E se distendem, qual uma bexigaDe boi, bem limpa, que um menino sopraE se enche de ar. Eis que a pressoTremendamente forte se tornandoProvoca a ruptura do balo,Com um estrondo terrvel, o trovo.E liberando os ventos que disparamEm tal velocidade que o atritoAcaba provocando a combusto,E assim ocorre o raio. Tenho dito.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    EstrepsadesA mesma coisa que me aconteceuNo festival de Zeus! Uma salsichaEu estava fritando, e me esqueciDe abrir a casca, e ela arrebentou

    Me emporcalhando a cara com a tripa.

    CoroCom que avidez ele o saber procura!

    (A Estrepsades.)

    Se puderes passar na nossa prova,Hs de ser invejado em toda a Grcia.Antes, porm de comear a prova,As nossas condies ters de ouvir.

    Tua memria boa? s bem capazDe pesquisar a fundo o que preciso?Ao cansao, fadiga s resistente?A friagem do inverno no te assusta?Ficars sem comer um dia inteiro?Evitars os vinho e as mulheres?E enfim, tens de jurar, solenemente,Seguir, bem a rigor, o nosso cdigo.Lutar, brigar, pleitear e batalhar,Como um leal soldado da Palavra,Sempre como um filsofo perfeito.

    EstrepsadesSe o que quereis, senhoras, se resumeEm insnia, trabalho, resistnciaE uma barriga que digere tudo,Estou s vossas ordens.

    ScratesDesse modo,Promete agora, ento, que o meu caminho

    Hs de trilhar religiosamente,Sem teres outro deus, seno os meus,E respeutando sempre esta Trindade:NUVENS e CAOS e MISTIFICAO.

    EstrepsadesSe encontrar outro deus, eu o degolo.Juro que s aqui irei agoraSacrificar e orar por toda a vida.

    Corifaios

    Podes ento dizer-nos sem temorO que desejas. Hs de ter, certo,

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Desde que saibas venerar e honrarAs Santas Nuvens, e seguir riscaO caminho da Vida Filosfica.

    Estrepsades

    Eu vos direi, senhoras. modestaMinha ambio. Desejo simplesmenteQue toda a minha lngua seja a mais matreiraDe toda a Grcia.

    CorifaiosPretenso aceita.Nenhum legislador, de agora em diante,Te alcanar na produo de leis.

    Estrepsades

    Por lei no me interesso. Quero apenasDos credores livrar-me para sempre.

    CorifaiosModesto o teu desejo. Concedido.E agora, Candidato, confiantes nossas mos entrega-te. S forte.

    EstrepsadesEstou inteiramente convencido.Alis, no havia alternativa.Graas a meu filhinho e a minha esposa.Assim, entrego meu corpoPara o melhor e o pior,Podeis mat-lo de fome,Podeis sec-lo de sede.

    Podeis reduzi-lo a geloE at pic-lo em pedaos.Fazei o que bem quiserdes,Mas eis minhas condies:

    Quando, completada a ordlia,Tudo estiver terminado,Que surja um EstrepsadesInteiramente mudado.

    Um velhaco, mentiroso,Solerte e parlapato,Embusteiro, palavroso,Sem vergonha, charlato

    Macio, esperto, untuoso,Embrulhador consumado,

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Pulha, safado, maldoso,Salafrrio e descarado.

    Agora, damas, serenasPodeis me experimentar

    Heis de ver que vale a pena,No irei decepcionar.

    CorifaiosEis um audaz e corajoso esprito!Senhor, ao terminares o teu curso,A glria at o cu te erguer.

    EstrepsadesNo podes ser mais um pouquinho explcito?

    CorifaiosPassars todo o resto da existnciaNo ar, em meio a ns, com a cabeaEnterrada nas Nuvens. Tua vidaFar inveja a toda a humanidade.

    EstrepsadesE quando alcanarei tanta ventura?

    CorifaiosDentre em pouco, milhares de clientes tua porta iro bater, pedindo,Mendigando, implorando os teus serviosE os teus conselhos, para defend-losEm pleitos judiciais, que muitas vezesCorrespondem a quantias colossais.Agora, Scrates, verifica, presto,Seus poderes, concretos e mentais.

    ScratesMuito bem. Vamos l. Dize-me agora

    Alguma coisa sobre a tua vida. necessria certa informaoPara saber qual ser a estratgiaQue contra ti convm utilizar.

    EstrepsadesEstratgia? Me tomas, por acaso,Por um objetivo militar?

    ScratesNo, no isso. Apenas eu pretendo

    Fazer-te umas perguntas. Em primeiroLugar, responde: Tens boa memria?

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    EstrepsadesIsso depende. Se algum me deve,Eu no me esqueo, de maneira alguma.Se eu devo a algum, contudo, o caso outro:

    No consigo lembrar, por mais que queira.

    Scrates.Ters, para falar, algum talento?

    EstrepsadesPra falar, no; mas para lesar, no falta.

    ScratesMas ser que no podes aprender?

    EstrepsadesNo te preocupes, que eu darei um jeito.

    ScratesMas supes que eu te atire, como um doce,Um fragmento da sabedoriaSuperior. Sers capaz, acaso,De apanh-lo no ar?

    EstrepsadesEsts pensandoQue sou um co de caa, que pegarPode a sabedoria em pleno ar?

    ScratesCo no digo que sejas, todaviaBurro talvez tu sejas. Mas passemosA outro ponto do interrogatrio.Se te espancassem, dize: o que farias?

    Estrepsades

    Que havia de fazer? Agentaria,Mas logo aps, contra a agresso sofrida, justia comum recorreria.

    ScratesEst bem, est bem. Despe-te agora.

    EstrepsadesDespir-me? Para qu? Fiz algo errado?

    Scrates

    Ns exigimos dos iniciantesQue fiquem nus.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    EstrepsadesEu juro, Scrates,Que no sou um ladro. Se tu quiseresPodes me revistar.

    ScratesPor quem me tomas?Por um policial? Fica sabendoQue ests submetido filosficaSolene iniciao. Acho melhorParares de falar tanta toliceE te despires, da cabea aos ps.

    Estrepsades(comeando a despir-se com extrema relutncia)Est bem... No, primeiro me responda

    Se eu muito me estudar e me esforarCom qual de teus alunos eu ireiParecer?

    ScratesSendo assim, com Cairefonte.

    EstrepsadesCom Cairefonte? Um defunto ambulante!Vou estudar, ento, necrologia?

    (Febrilmente, torna a vestir o manto.)

    ScratesCala a boca, cretino e fica nu!

    (Arranca o manto de Estrepsades e o empurra rudemente para uma aberturaescura, parecendo uma gruta, atrs do Pensamental.)

    Avana, candidato!

    EstrepsadesNo, espera!Estou apavorado! Isso pareceUm covil de serpentes. D-me, Scrates,De um bolo de mel s um pedao,Que eu possa atirar para as serpentes,Pois, do contrrio, elas me comem vivo.

    ScratesPara a frente, cretino! A hesitaoNo mais permitida nesta fase

    Adiantada da iniciao!

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    (Scrates empurra Estrepsades diante de si na abertura atrs doPensamental, depois avana, tira o manto do outro, sorri, depois arrancatambm a tnica e desaparece no Pensamental.)

    Coro

    Adeus, homem valente! Que o futuroTe seja to brilhante quanto agora a tua coragem! Que a fortunaSorria a ti, que j na idade amarga,No sombrio crepsculo dos anos,Investes, forte, impvido, serenoRumo fronteira extrema, derradeiraDa mente humana. Intrpido pioneiro!

    (O Coro vira-se bruscamente e olha para os espectadores. Vindo dosbastidores, aparece o poeta, o calvo Aristfanes, que d alguns passos para a

    frente, e se dirige diretamente ao pblico.)

    AristfanesSenhores, venho em nome de Dionsio,A quem devo de todo a inspiraoComo poeta, e vos expor pretendo,Com franqueza e completa liberdade,As minhas queixas ntimas, pessoais,Permitidas, sem dvida, ao poeta.As minhas ambies so muito claras:Quero o Primeiro Prmio conquistarE conquistar tambm, em conseqncia,Fama de talentoso e de engraado.Assim, e firmemente convencidoQue somente por homens de bom gostoO respeitvel pblico formado,Esta comdia, As Nuvens, at hojeFoi a melhor de todas que escrevi.Apresentei uma verso primeira,De vossa aprovao esperanoso.Muito labor e esforo me custara.

    Fui obrigado, entanto, a retir-laVencido, como fui, por meus rivais,Rivais vulgares, fracos e mesquinhos.Nem preciso dizer que as minhas queixasSo destinadas aos pretensos crticosQue a esta revista me induziram.Aos homens de bom gosto, no entanto,Quero dizer, para ficar bem claro:Vosso amigo fiel sou, serei sempre.Jamais de vs pretendo me afastarOu de maneira alguma censurar-vos.

    E natural. Jamais esquecereiO glorioso dia em que os juzes,

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Homens notveis, de apurado gosto,O cobiado prmio concederam comdia Os Convivas, que escreviQuando era bem jovem. Nesse tempoA minha Musa ainda era mocinha,

    Terna donzela, que no poderiaUm filho dar luz, sem provocarUm grande falatrio. Fui foradoA expor o nosso filho, e um estranhoProntamente adotou o enjeitado.E fostes vs, senhores, o adotante,O vosso generoso acolhimentoAlimentou meu filho, e desde entoDe duvidar de vosso fino gosto, natural, jamais tive razo.E agora, como Electra na tragdia,

    Uma comdia irm se apresentaE espera ter a mesma aceitao.Deixai-a, em suma, vislumbrar somenteDos cabelos do irmo um simples cacho,E h de tambm se conhecer melhorE vossa aprovao posso esperar.No lhe falta beleza. ObservaiSua modstia natural, as vestesTo recatadas, e tambm notaiQue consigo no traz o instrumentoDe couro que provoca gargalhadas.Notai quanto ela e fina e requintada,E se abstm de apresentar graolasRepetidas, zombando dos carecas;Quanto recato h em suas danas.Notai a ausncia de pancadarias,De tombos, tropees e correrias.No heis de ver aqui um pobre velhoCom um basto espancando os oponentes,Numa v tentativa de esconderA indigncia dos versos da comdia.

    Esta minha comdia no vereisEncher o palco de inflamadas tochasOu de panos manchados de sangue.Ela a vs se apresenta to somenteConfiante em si mesma e na poesia. isso que ela . E quanto a mimSou seu pai amoroso. Posso serCareca, como os meus rivais no cansamDe dizer, porm no desenxabido.Jamais, de fato, me servi da arteDe vos servir comida requentada.

    As minhas fices so sempre novasE jamais se parecem uma com a outra.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Lembrar-vos posso ainda que fui euQue derrubei Cleon com um forte murro,Ferindo o seu orgulho. No entanto,No o pisei depois que ele caiu.Por outro lado, vede os meus rivais

    Com o infeliz Hiprbolo o que fizeram:No se cansaram de pis-lo e assimO cobriram de lama, e essa lamaSobrou at para sua me no fim.Foi Eubolis, sem d, que chefiouEsse ataque furioso contra Hiprbolo.Ele, a minha comdia Os CavaleirosEngoliu, e o aborto resultanteLanou ao palco: um plgio descarado,Um plgio que, muito naturalmente,O Pederasta foi intitulado.

    E para completar, dana indecenteFez questo de mostrar, para uma bruxaFeia e velha as cadeiras requebrar.E ela mesma, alis, foi imitadaDe uma comdia antiga de Firmicos,Que, por sinal, muito sensatamenteFez com que a bruxa fosse devoradaPor um monstro do mar. Chega de Eubolis.Hermipos, depois deles, contra HiprboloA dose repetiu. Logo em seguidaTodos os plagirios da cidadeInvestiram sanhudos contra HiprboloE imitaram descaradamenteMinha comparao com as enguias.Tenho certeza, e isso me faz contente,De que aqueles que gostam de tais coisasDetestam o que escrevo. Certamente,Por outro lado, os homens de bom gostoSabem me dar valor e o meu talentoApreciar. Entrego-me, portanto,Ao seu esclarecido julgamento.

    (Sai Aristfanes.)

    CoroTu, nosso rei, primeiro invocamosL de seu trono, onipotente deus,Baixa os teus olhos sobre a nossa danaE s conosco, Zeus.

    E tu, senhor do mar, grande Poseidon,Que vences com o tridente toda a luta

    Toda a fria das ondas, Poseidon,A nossa prece escuta.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    E tu, ter etreo, paternal,Que pelo ar te espalhas, e senhors para nos nutrir e sustentar,D-nos fora e vigor.

    E tu, cujos corsis o firmamentoAtravessam, levando-te, a brilhar. Luz Fecunda para o cu e a terra,Vem nos iluminar.

    CorifaiosSenhores Crticos e homens talentosos,Eu vos peo um momento de ateno.J que de nossa pea constam algumasVerdades e tambm reclamaes,

    Temos de ser bem rudes. No justoSermos, como ns somos, ignoradas.Nenhum deus, em verdade, j vos trouxeBenefcios iguais ao que trouxemos.Somente ns, certo, em tempo algumRecebemos sequer um sacrifcio.No entanto, nem h necessidadeDe vos lembrar a ternura, o cuidadoCom o que ns vos tratamos. Por exemplo:Sempre que arquitetais algum projetoCondenvel, ns logo trovejamosNossa reprovao. Nossa censuraVem em forma de chuva irresistvel.Um episdio relembrai recente:O negro dia em que um repelenteAteu, um curtidor que se chamavaPaflagon general quis ser eleito?Recordais qual foi nossa reao?Como que escurecemos, trovejamosE sem piedade o calcanhar do RaioOs corsis do Trovo acicatou?

    Como a Lua apagou a sua luzE o prprio Sol escureceu tambm,Sem querer mais iluminar o mundoSe Cleon fosse eleito? E vs, no entanto,Elegestes Cleon, alimentandoA curiosa crena que, em Atenas,Os mais gritantes erros dos polticos,Acabam lhe trazendo benefcios,Ou mais cedo, ou mais tarde. De que modo?Condenando Cleon por peculatoE passando-lhe o jugo no pescoo.

    No somente esta ao est de acordoCom a longa tradio do Disparate,

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Como tambm ao mesmo tempo servePara redimir o prprio disparate.

    Coro tu, senhor de Delos, que freqentas

    Os altos montes, os rochedos rudes,Onde o cume do Quintos se levanta,Febo, que nos ajude!

    E tu, dama de feso, tu senhora,Senhora e glria do sagrado altarQue as mulheres da Ldia tanto adoram,rtemis, vem danar!

    E tu, de Delfo alegre danarino,Que as Mnadas despertas sem demora

    Aos gritos de alegria, Dionsio,Conosco dana agora!

    CorifaiosNossa massa de Nuvens sobre AtenasIa se concentrando e, no caminhoEncontramos a Lua, que pediuEnto que transmitssemos a AtenasA seguinte mensagem: SaudaesEtc. Etc. a AtenasE aos seus aliados Ponto A minhaDivindade ofendida mortalmenteCom vossa escandalosa grosseriaApesar do que fiz pela cidadePonto No esqueais que sou mulherDe ao repito ao e no palavrasPonto Assinado A Lua. E, realmente,Muito deveis Lua, atenienses.Graas a seus esforos luminosos,Com a iluminao podeis pouparMais de um dracma por ms tranqilamente.

    Tenho mesmo a impresso de estar ouvindoAlgum de vs assim recomendandoQuando sair de casa, a seus escravos:No precisa de luz, hoje, o luarEst to claro! E o luar realmenteEst s vossas ordens. No entantoNegastes a fazer um calendrioLunar perfeitamente formulado.E o vosso ms, assim, tornou-se um caos,Obra-prima de pura confuso.E mais ainda: quando noite um deus

    Chega em casa faminto e no encontraNada para jantar, porque vs outros

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    A festa celebrais em dia errado, a coitada da inocente LuaQue pelo deus furioso censurada.E no isso s: naqueles diasEm que deveis cultuar os deuses,

    Vos ocupais em discutir demandasOu torturar as pobres testemunhas.E enquanto os deuses jejuando ficamVs, no entanto, a grandes comilanasVos entregais, e a grandes bebedeiras.Ficai, portanto, agora advertido.Ainda bem recentemente, os deusesDe seu lugar Heprbolo privaramNa Comisso dos Festivais, querendoEnsinar-lhe e ensinar a outros iguaisPorque se deve respeitar o tempo.

    (Enquanto o Coro retoma a sua posio habitual, a porta do Pensamental seabre e Scrates aparece.)

    ScratesEflvio Onipotente! Ozona e Caos!Em toda a minha vida jamais viTanta burrice, tanta estupidez!No tem inteligncia nem memria.Mal eu conseguia, a muito custo,Lhe impingir um bocado de cincia,E ele tinha um ataque de amnsia. doloroso. De qualquer maneira.A Verdade quem manda. Eu obedeo.

    (Entra na porta do Pensamental e se some no escuro.)

    Onde ests, onde ests, Estrepsades?Carrega o teu colcho e vem pra fora.

    Estrepsades

    No posso. Os percevejos no me deixam.ScratesDeixa de histria, toleiro. AgoraPresta ateno.

    EstrepsadesEstou prestando.

    ScratesPra resumir, ento, quero indagar;

    De toda a vasta srie de matrias tua ignorncia oferecidas,

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Qual especialmente tu desejasAprender? Por exemplo: elocuo,O ritmo ou a medida?

    Estrepsades

    A medida.Ainda outro dia, um reles vendedorDe farinha acabou por me lesarNa medida do artigo.

    ScratesNo se trataDe medir a farinha, ignorante!Eu me refiro mtrica, medidaQue preferes: trmetro ou tetrmetro?

    EstrepsadesPara medir prefiro a vara mesmo.

    ScratesNo tem jeito! Burrice irremovvel!

    EstrepsadesSou capaz de apostar que esse teu trmetroTem trs ps, e no mais. No verdade?

    Scrates

    Idiota perfeito. Mas quem sabeSe com o ritmo te dars melhor?

    EstrepsadesO ritmo serve para comprar comida?

    ScratesTodo aquele que ao ritmo sensvelTer da sociedade a porta aberta.Agrada alta roda o que distingue

    O anapesto do dctilo comumTambm chamado ritmo digital.

    EstrepsadesDigital, ou do dedo? Esse eu conheo.

    ScratesDefine-o, ento.

    Estrepsades(estendendo o dedo mdio, em um gesto obsceno) mexer com este dedo.

    Naturalmente, quando eu era jovem,

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    (Mostra o pnis.)

    Era com este que eu fazia o ritmo.

    Scrates

    Bobo alegre!

    EstrepsadesEsts vendo: essa matriaNo preciso aprender.

    ScratesEnto que queres?

    EstrepsadesQuero aprender, e to-somente, a Lgica!

    Quero aprender a Lgica Imoral!

    ScratesMas para isso, meu prezado amigo,Ters, claro, de saber ao menosPrimeiro os rudimentos da linguagem.Vejamos por exemplo: podersMe dizer uma lista dos quadrpedesDo sexo masculino?

    Estrepsades

    Muito fcil.O carneiro, o cavalo, o touro, o galo...

    ScratesNomeie, agora, as fmeas desses machos.

    EstrepsadesA ovelha e a gua e a vaca e a gala.

    Scrates

    Pode parar a. Tu cometesteUm grave solecismo. Galo, gala!

    EstrepsadesTens razo. Que burrice cometi!

    ScratesIndispensvel que tu aprendasA distinguir pela terminaoO que masculino e o feminino,De outro modo, vers que confuso.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    EstrepsadesTudo isso muito certo. Mas me dizeComo me valer para o que eu quero?

    Scrates

    Trata de refletir, raciocinar.Vai te deitar no teu colcho e trataDe lucubrar o caso.

    EstrepsadesEu no podiaEnto lubrificar mesmo no cho?

    ScratesPermisso recusada.

    EstrepsadesOh que destino!Esto me devorando os percevejos.

    (Estrepsades se mete sob as infestadas cobertas, enquanto Scrates cantapara encoraj-lo.)

    ScratesConcentra primeiro,Depois raciocina,Concentra de novo.

    Lucubra em seguida,Depois especula,Rumina afinal.

    Se sentes cansao,S forte, resisteE fica acordado.

    Em suma, reflete,

    Rumina, especula,Mas sempre deitado!

    Companheiro do Sono, vinde, vinde! Dor!

    EstrepsadesAi! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai!

    ScratesQue tens? O que afinal te est fincando?

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    EstrepsadesAh! Se fosse fincando!Esto me devorando!Malditos percevejos!Mordem meu corpo todo,

    Chupam meu sangue todo,Esto me assassinando!

    ScratesMeu velho, calma. No lamentes tanto.

    EstrepsadesQueres que eu no lamente?Quando estou sem dinheiroE j sem pele estou?Quando toro de dor

    E o meu sangue secou?

    (H um breve intervalo de silncio, durante o qual Estrepsades geme e secontorce sob as cobertas. Depois Scrates levanta uma das peles de carneiroque serve de coberta e olha embaixo.)

    ScratesDe lucubrar paraste, meu amigo?

    EstrepsadesDe modo algum!

    ScratesQue refletiste, ento, evidente. Sobre o que refletiste?

    EstrepsadesFiquei imaginando o tempo todoSe um meio de descobrir no poderiaDe me livrar dos percevejos.

    ScratesOra!O que isso, seu bobo? No te vexes.Pe de novo a coberta e te esforas agoraNo que buscas de fato. Aqui viestePara estudar um meio eficienteDe frustrar teus credores e esbulh-los.

    EstrepsadesQuem esbulhando quem? isso, Scrates,Que eu queria saber.

    (Segue-se outro breve silncio.)

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    ScratesHum! Que serQue ele agora aprontou? Ora, vejamos

    (Levanta a pele de carneiro e olha embaixo.)

    Dormindo est de novo no trabalho?

    EstrepsadesNo, por Apolo no estou dormindo.

    ScratesJ teve alguma idia?

    Estrepsades

    No, nenhuma.

    ScratesDeves ter encontrado alguma coisa.

    EstrepsadesApenas o que tenho em minha mo.

    ScratesBufo! Vamos, bufo! Pensa, cogita!

    EstrepsadesMas, caro Scrates, cogitar o qu?

    ScratesAcerca do que queres conhecer.Cogita logo e dize-me depois.

    EstrepsadesJ disse dez mil vezes o que quero:Livrar-me dos credores. Cancelar

    Todas as minhas dvidas. Ouviste?ScratesOuvi. Deita, portanto, novamente.

    (Com certa relutncia, Estrepsades se mete debaixo da coberta.)

    Instila, agora, em tua mente, instilaA mais etrea essncia, permitindoQue as essncias sutis do pensamentoPenetrem em cada poro do problema.

    Bastando depois disso Analisar,Corrigir, Resumir e Definir.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Estrepsades(freneticamente, procurando livrar-se dos percevejos)Uf! Que so demais estes bichinhos!

    Scrates

    Pra com isso! Em caso de dilema,Visa a concatenar todos os dados,Medi-los e pes-los, e em seguidaO resultado compulsar por fim.

    Estrepsades! Scrates!

    ScratesO qu?

    EstrepsadesEureka!Um meio achei de liquidar as dvidas!

    ScratesExplica por favor que meio esse.

    EstrepsadesVou explicar. Supe...

    Scrates

    Supe o qu?

    EstrepsadesSupe que os servios eu contrateDe uma das feiticeiras da Tesslia,E lhe ordene que ela encante a LuaL no alto do cu. E eu pego a LuaE depois de polida e bem polida,Eu a tranco afinal em uma caixa,Brilhando como um espelho.

    ScratesE o que tu lucras?

    Estrepsades muito claro: no havendo Lua,No haver mais ms, e, desse modo,No terei de pagar juros mensais.Os juros sempre vencem, no mesmo?No exato dia em que termina o ms,Antes da lua nova. Compreendes?

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Scratess, certamente, um perfeito tratante.Mas vou propor-te um caso mais penoso.Suponhamos que ests ameaadoPor uma ao judicial valendo

    Cinco talentos. O problema este:Como conseguir invalidarA deciso?

    EstrepsadesIsso no sei ainda,Tenho de meditar sobre a questo.

    ScratesPois medita bastante. Mas cuidado:No vs empanturrar a tua mente

    Com uma introspeco exagerada.Que, ao contrrio, tua intelignciaPossa sair em busca da verdade.

    Estrepsades(iluminado de sbito)Achei, achei! Um logro formidvel!No poders negar que formidvel!

    ScratesPorm primeiro, por favor, expeO que pretendes.

    EstrepsadesTu nunca reparastes nas boticasUma bonita pedra transparenteCom ajuda da qual a gente queimaQualquer coisa?

    ScratesEu sei. Vidro de aumento.

    EstrepsadesMuito bem. Isso mesmo. Suponhamos:Levo comigo uma daquelas pedras;Quando do tribunal o secretrioEstiver o meu caso registrando,Ento eu atrs dele me coloco,E o Sol, por sua vez, atrs de mim.Queimo, letra por letra, a acusao.

    ScratesUma boa trapaa, no h dvida.

    Mas vou te apresentar outro problema.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    EstrepsadesPode dizer.

    ScratesSupe que tu encontres

    Em tal situao, sem ter defesa,Sem contares com uma testemunhaPara enfrentar o pleito. O que farias?

    EstrepsadesAntes que meus credores recorressemAo tribunal, eu me suicidaria.

    Scratess mesmo bobo. Que tolice essa?

    EstrepsadesBobagem que no , de modo algum.Pois a verdade que no poderiamAcionar um defunto. No mesmo?

    ScratesIdiota! Cretino! Eu no pretendoPerder contigo o precioso tempo.Teu Mestre no sou mais. Vai, vai-te embora!

    Estrepsades

    Meu Mestre no s mais? Por qu?

    (Cai de joelhos, splice.)

    Te imploro!

    ScratesMais depressa esqueces do que aprendesO que tanto me esforo para ensinar-te.Por exemplo: me dize, qual o assunto

    Da primeira lio que te ensinei?EstrepsadesA primeira lio? Deixa-me ver.A primeira?... a primeira que tu queres?Ah! J sei! Foi a fmea do cavalo!

    ScratesIdiota! Senil! Incompetente!Some da minha vista! Vai-te embora!

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    EstrepsadesDeuses, deuses do cu! O que vai serDe mim agora? Pois estou perdido,Se da palavra o Dom me for negado.

    (Cai de joelhos diante do Coro.)

    Nuvens, cheias de graa, aconselhai-me.Dizei-me o que fazer.

    CorifaiosNosso conselho,Venerando senhor, o seguinte.No tens, acaso, um filho j crescido?Manda-o vir estudar em teu lugar.

    Estrepsades verdade, senhoras, tenho um filho.Mas um homem fino, e, como tal,Detesta todo estudo. Nesse caso,O que posso fazer?

    CorifaiosEle quem manda?

    Estrepsades um jovem convencido e malcriado.Ainda assim, porm, darei um jeito.Ou aceita as lies ou nunca maisEm minha casa pe os ps de novo!

    (Para Scrates)

    Espera. Voltarei agora mesmo.

    (Sai Estrepsades, entrando em sua casa.)

    CoroVede agora, podeis verAs muitas bnos e graasQue as nuvens trazem ao passar.

    Por exemplo: esse idiota,Imbecil, asno sem conta,Cretino, burro sem par.

    Mas deixai por nossa conta;Esse cretino, coitado,

    No perde por esperar.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    O peixe pegou a isca,Podemos limpar o peixe,Pra depois o peixe assar.

    (Sai Scrates. Entra Estrepsades, arrastando consigo Feidipides.)

    Fora daqui! Pela Condensao,No podes ficar, no. Vai sustentar-teCom o dinheiro do bom tio Megacles!

    FeidipidesO que tens, meu pai? Enlouqueceste?Onipotente Zeus, que disparate.

    EstrepsadesRepito eu. Um homem de tua idade

    Acreditando em Zeus! Muito engraado!

    FeidipidesCausa-me espcie, afeta a minha mente,Ver jovens como tu to iletradosQuem enchem a cabea de noes to falsas.Agora, ouve, que vou te dizerAlguns segredos que fazer-te podemAinda um homem culto e inteligente.No te esqueas, porm: uma palavraSequer podes falar do que ouvires.

    FeidipidesUma palavra?

    EstrepsadesNo juraste por Zeus?

    FeidipidesJurei, e ento?

    EstrepsadesFica sabendo agoraUm segredo to s: Zeus no existe.

    FeidipidesNo me digas, meu pai! Zeus no existe?

    EstrepsadesNo existe mais, no. Zeus foi banido.S o Princpio da ConvecoTem o poder agora.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    FeidipidesImpossvel!

    Estrepsades a pura verdade, Feidipides.

    FeidipidesE que te assegurou coisa to sria?

    EstrepsadesEm primeiro lugar, o grande ScratesE tambm o erudito Cairefonte,Grande conhecedor de ps de pulga.

    FeidipidesE levaste a tolice at o ponto

    De nesses charlates acreditar?

    EstrepsadesCala-te, Feidipides! Que vergonha!No quero, ouves bem? No admitoQue sem respeito assim tu te refirasA dois to eminentes cientistas.Eminentes pouco: geniais.E o que mais: homens extraordinrios,De tal maneira honestos e frugais,De conduta viril, to espartana,Que eles dispensam o corte de cabelos,Os banhos, o asseio corporal,Como perda de tempo e de dinheiro,Enquanto tu, meu filho, tantas vezesMe obrigas a lavar-me, tantas vezesQue acho at que estou ficando gasto.Ouve o que digo agora. Vem, meu filho,Para o bem de teu pai, vem aprender.

    Feidipides

    O que ensinam, enfim, que valha a pena?EstrepsadesO qu? Todo o saber da humanidadeAcumulado em sculos. Exemplo:A essncia do saber e do agrio.

    FeidipidesAgrio! Com efeito! E foi entoPara aprender tal coisa que buscasteA lio desses mortos ambulantes?

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    EstrepsadesNo. Me ensinaram muitas outras coisas,Interessantes, que porm (e pena)Por um ouvido entraram e pelo outroLogo saram.

    FeidipidesE que, sem dvida, explicamComo perdeste o manto.

    EstrepsadesNo perdi.Tirei-o.

    FeidipidesE as sandlias aonde foram?

    EstrepsadesQuando foi indagado certa vezAonde fora o dinheiro, o grande PriclesRespondeu: Despendido com a despesa.Nada h explicar. E agora, filho,Atende ao que te peo, depois podesO que tu muito bem quiseres.Compensa o que te fiz quando ainda erasUma criana, e as tuas pirraasTinha que obedecer. Ainda me lembro:No mesmo dia em que eu recebiPela primeira vez na minha vidaA remunerao como jurado,Gastei logo o dinheiro, para comprarUm carrinho que viste no mercado.

    FeidipidesEst bem. Est bem. Fao o que queres.Mas tu irs arrepender um dia.

    Estrepsadess um bom filho, obediente. Scrates,Salve! Podes sair. Trouxe meu filho.Tudo vai correr bem, graas a ele.

    (Scrates entra, saindo do Pensamental.)

    ScratesEle ainda um menino! De que modoUm rapazinho como esse teu filhoPode operar o Cesto Pendurado?

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    FeidipidesNo ser prefervel, eu pergunto,Pendurar-te tu mesmo, e no o cesto?

    Estrepsades

    Que desrespeito esse? O Mestre insultas?

    Scrates(arremedando Feidipides)E no o cesto? to engraadinhoEsse menino! E to adiantado!J sabe caminhar. J faz beicinho.Ora! Como esperar que um feto dessesV aprender as artes da Intriga,Do Falso Testemunho, da Trapaa,Do Subterfgio e da Difamao?Se bem que a confessar sou obrigado

    Que no falta ao caso um precedente.At o prprio Hiprbolos, certo,Pde aprender as manhas do negcio,Em troca de soberbos honorrios.

    EstrepsadesNo te preocupes, Scrates. O jovem um filsofo nato, podes crer.Desde muito pequeno ele mostravaInteligncia e muita habilidade,Fazendo coisas muito interessantes:Com pedaos de couro modelavaCasinhas de bonecas e barquinhos,E com cascas de fruta ele faziaUns sapos que eram mesmo uma gracinha. tambm, por sinal, muito instrudo.Pode ensinar-lhe, pois, as duas Lgicas:A Filosfica, que tradicional,E a Lgica Sofstica modernaTambm chamada Lgica Imoral,Que pode ser menos moral que a outra,

    Porm muito mais eficiente.De qualquer forma, se ele se mostrarIncapaz de aprender ambas as Lgicas,Fao questo, e sei que isso ele aprende:A maneira imoral de argumentar.

    ScratesPessoalmente ele ser instrudoPela Filosofia e tambmPelo Sofisma. Solicito, agora,Licena para sair.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    EstrepsadesLembra-te, Scrates:Quero-o capaz de rir-se da verdade.

    (Sai Scrates. Depois de sua sada, a Porta do Pensamental e a Filosofia e o

    Sofisma so trazidos dentro de gaiolas douradas dispostas sobre rodas. Dosombros para baixo, so ambos humanos. Dos ombros para cima, so galos debriga. A Filosofia (ou a Lgica Tradicional) um galo grande, musculoso,robusto, mas no pesado, expressando em seus movimentos a harmonia e agraa interiores e a dignidade que a Educao Antiga era capaz de produzir. OSofisma, ao contrrio, relativamente franzino, de ombros cados, de umapalidez doentia, com uma enorme lngua e um falo desproporcionalmentegrande. Seu corpo pouco elegante, mas dotado de movimentosextremamente rpidos; todos os seus movimentos revelam uma desafiadorabelicosidade, e a sua plumagem brilhante at o ponto de cintilar. O debateteve de ser travado a grande velocidade, com muitas bicadas e esporadas.

    Quando os Criados abrem as portas das gaiolas, os galos de briga saem ecomeam a rodear um ao outro, procurando tomar posio para o embate.)

    FilosofiaVamos, vamos, Penosa Impertinncia,E diante assim do respeitvel pblico,Faze uma respeitosa reverncia.Gostas de pimponar. Est na hora.

    SofismaEst mesmo na hora, Massa Informe,Quanto maior a multido, maiorO prazer de poder, diante dela,Te refutar.

    FilosofiaTem graa. Refutar-me!Quem pensas que tu s?

    SofismaSou uma Lgica.

    FilosofiaTu, uma Lgica, vil Loquacidade?Palavrrio vazio!

    SofismaNo me importoSer chamado de Sofisma. Eu te liquido.Vou refutar-te.

    Filosofia

    Com o que no convencional, e aindaCom o ultramodernismo, e assim tambm

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Com idias de todo heterodoxas.

    FilosofiaEssa moda que ora predominaDevemos a essa corja de imbecis...

    SofismaImbecis? Cavalheiros requintados.

    FilosofiaEu te invalidarei.

    SofismaInvalidar-me?Que ests pensando, seu defunto andante?

    FilosofiaMeus argumentos so, convm saber,A Verdade e a Justia.

    SofismaEu te desarmo.E te derroto, com Justia e tudo.No existe a Justia.

    FilosofiaNo existe?Tem graa!

    SofismaEnto, me mostra onde ela est.

    FilosofiaOnde est a Justia? Muito fcil:No regao dos deuses.

    Sofisma

    No regaoDos deuses? Ento podes me explicarComo Zeus escapou da punio,Depois de ter prendido o prprio pai?A incoerncia clara como a gua.

    FilosofiaTagarela asqueroso! Tu me enojas!

    SofismaDecrpito! Senil! Velho caduco!

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    FilosofiaPederasta precoce! Pervertido!

    SofismaPode atirar-me roas e mancheias.

    Filosofia cogumelo vil! vil latrina!

    SofismaCom uma coroa de viosos lriosA minha fronte cinge.

    FilosofiaParricida!

    SofismaUma chuva de ouro sobre mimFaze cair. No vs que eu me deleitoCom os teus insultos?

    FilosofiaTe deleitas, monstro?Em meu tempo, eu teria te cingidoDe vergonha.

    Sofisma

    Porm hs de convirQue hoje as coisas mudaram. O que era erradoNo teu tempo, o certo e a moda agora.

    FilosofiaFedelho repulsivo!

    SofismaVil pedante!

    FilosofiaPor tua culpa s e to-somenteAs escolas de Atenas esto vazias.E por isso, ociosa e pervertida,Toda uma gerao nas ruas vaga.Escuta o que te digo: no futuroSaber a cidade o que fizeste:Os seus filhos viris tu os tornasteTolos e efeminados.

    Sofisma

    Idiota!

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    FilosofiaEnquanto isso, por tua vez, virasteUm peralvilho muito presunoso,Mas me recordo bem de teu comeoHumilde e triste, em que representavas

    Bem igual a Telefos, embrulhadoNo trapo e no farrapo euripediano.

    SofismaQuanta sabedoria havia ali!

    FilosofiaE que prodgio de loucura aqui!Tua loucura, e, mais louca que tu,Esta cidade, pois s louca podePermitir que tu vivas, miservel,

    Corruptor de sua juventude!

    Sofisma(lanando uma asa em torno de Feidipides)Fica sabendo, seu Defunto Vivo,Que a este aluno jamais ensinars.

    Filosofia(puxando Feidipides para trs)Hei de ser o seu Mestre, a menos queSe dedique carreira da sandice.

    Sofisma

    V esperando. Vem comigo, jovem.

    FilosofiaPara desgraa caminhar?

    Corifaios(intervindo)Senhores!Chega de altercaes e de injrias.Que cada um, por sua vez, exponhaSeus argumentos. Tu, Escola Antiga,

    Descreve, com clareza e cortesia,Como ensinaste os homens do passado,E tu descreve a Nova Educao.

    FilosofiaApoio essa proposta.

    SofismaE eu tambm.

    Corifaios

    Muito bem. Qual dos dois fala primeiro?

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    SofismaQue ele comece. Ficarei ouvindo.Depois, porm, que ele tiver falado,Lanarei sobre ele esmagadoraConcentrao do Pensamento Novo

    E dos Pontos de Vista Derradeiros,Que vo deix-lo sem poder falar.

    CoroCom ateno ouamos. AfinalA Grande Discusso vai comear.Entre os dois decididos campeesQuem vai ganhar ningum pode saber.Ambos so hbeis, destros e sutis,Mestres no ataque e na defesa, mestresNo insulto soez e na agresso.

    Do pleito o prmio a Sabedoria.Da percia dos dois contendoresO destino depende inteiramenteDo idioma e da mentalidade,Da educao, enfim, de toda Atenas.

    CorifaiosTem a palavra a Filosofia.Fala, portanto, tu, que conferisteA virtude s antigas geraes.Fala com confiana, e nos explicaO que na realidade representas.

    FilosofiaQuero falar da Educao Antiga,E como floresceu nos velhos temposDirigida por mim. A HonestidadeSem atavios, a Linguagem ClaraE a Verdade eram honradas, praticadas.E em todas as escolas de AtenasSe seguia o regime dos trs DD:

    Disciplina, Decoro e Dever.O programa era a Msica e a Ginstica,Ensinadas de acordo com o ditado:As crianas so vistas, no ouvidas.Este era o princpio cardeal.Os alunos, em grupos divididos,Conforme a regio de onde vinham,Em esquadras marchavam para a escolaDisciplinados e silenciosos.E eram jovens bem fortes, resistentes.Mesmo em manhs de inverno, quando a neve

    Caa, a sua nica proteoContra o rigor do tempo era uma tnica

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Muito leve e bem fina. E nas salasDe aula eram os alunos colocadosEm filas e de p, e muitos atentosEscutavam as lies e as repetiamMuitas vezes, de cor, seguidamente.

    A prpria msica era tradicional:Entoavam-se, ento, hinos e cnticosBem conhecidos, como, por exemplo,O que comea: Uma voz vem de longeOu Salve, Palas ultriz e outros cantosDe uma simplicidade que encantava.Brincadeiras na aula eram severaE decididamente proibidas.Aqueles que quisessem improvisarOu usar os torneios e trinadosEnto em voga na degenerada

    E efeminada escola de Frinis,Eram severamente castigadosPor ultrajaram as Musas. No ginsio,Tambm todo o decoro era exigido.Nus em pelo os alunos reunidosPudicamente as pernas estendiamPara frente, dos olhos curiososEscondendo a nudez. To recatadosEram os jovens ento, que sempre tinhamO cuidado de bem limpo deixaremO lugar onde tinham se sentado,Para que acaso o trao sobre a areiaPor suas prprias ndegas deixadoChegar no fosse a provocar desejos.Era proibido ungir com leo o corpoPara cima do umbigo, e, em conseqncia,O rgo genital era mantidoCom toda a exuberncia juvenil.Para os amantes o comportamentoDe todos eles era bem viril.No eram vistos em pares aos cochichos,

    Nem soltando gritinhos nem olharesProvocantes lanarem, requebrando.Na mesa, a educao e a cortesiaEram cumpridas rigorosamente.Nenhum jovem jamais se atreveriaA salada sequer provar, sem antesTerem sido servidos os adultos.Comida temperada era proibida.Proibido tambm dar gargalhadasOu as pernas cruzar...

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    SofismaQuanta bobagem!

    FilosofiaBobagem? Esses preceitos produziram

    Os heris que venceram a Maratona.

    (ao Sofisma)

    E tu o que ensinas? A modstia?Apenas a vaidade e a frouxido.A beleza do corpo nu ocultaPor pesadas e feias vestimentas,Pouco viris tambm. Fico enojadoSe nas Panetenias vejo os jovensDanarem do seu corpo envergonhados.

    Esquecendo, de fato, o seu deverPara com os nossos deuses, quando atrsDos seus escudos a nudez escondem.

    (A Feidipides)

    Eu te convoco, jovem. Vira as costas atrao do vcio, s artimanhasDos tribunais e fcil, preguiosaCorrupo dos banhos. Ao contrrioEscolhe a Antiga Educao, baseadaNa s Filosofia. Jovem, segue-meE dos meus lbios, sem temor, aprendeAs virtudes do homem: a mente s,A decncia e a inocncia que no voPermitir que do mal te aproximes.Que te sintas furioso, indignado,Quando a tua honra sentes ultrajada.Para com os mais velhos, deferncia;Respeitar pai e me; manter intactaA imagem de modstia assaz viril

    Que servir de guia em tua vida.S puro, evita os srdidos bordis,O amor prostitudo, que corrompeTeu carter viril, e que rebaixaTua reputao. Para teu paiMostres sempre total obedincia.Respeita o fim da vida de quem antesTe criou, te tratou, quando mais moo.Jamais o chame de velho ou caduco...

    Sofisma

    Meu jovem, se seguires tais conselhos,Acabars ficando efeminado

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Como os filhos de Hipcrates. Cuidado!

    FilosofiaMuito ao contrrio disso, eu te prometo,No discusses estreis, no pendncias

    Judiciais repletas de chicana,E sim lutas atlticas, viris,Disputadas por jovens musculososRepletos de vigor e de sade.Parece-me ver-te agora, em um idlioCom outro jovem de tua mesma idade,To modesto e viril como tu mesmo,Caminhando talvez na Academia,Ou entre os olivais, ambos coroadosDe pmpano e respirando o ar sadioDa primavera, a sbita fragrncia

    Do incio da estao. Portanto, jovem,Segue os meus passos e conquistarsA perfeio do fsico, a saber

    (Demonstrando cada tributo individualmente)

    FORMA, Estupenda.CTIS, Magnfica.OMBROS, Gigantes.LNGUA, Bem Pequena.NDEGAS, Robustas.PNIS, Discreto.Se seguires, porm, a outra parte, esta a recompensa que ters:FORMA, Efeminada.CTIS, Macilenta.OMBROS, Cados.LNGUA, Enorme.NDEGAS, Molengas.PNIS, Desprezvel!Mas verdade que ters tambm

    Muitos e dedicados partidrios.E o que pior, irs acostumar-teA zombar da moral, no distinguindoO bem do mal e o mal do bem. Em sumaCoberto ficars de vilania,Indecncia, desonra e perverso.

    Coro- Bravo! Que brilho! Que vigor! Que belo!Que saber! Que modstia! Que decoro!Nem uma s palavra esperdiada!

    Felizes foram aqueles cujas vidasNas virtudes antigas se apoiaram!

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    (Para o Sofisma)

    A despeito de tua sutileza,De tua habilidade, tem cuidado.

    Teu rival conseguiu lavrar um tento.Muito vigor precisas para venc-lo.Podes falar agora. A vez tua.

    CorifaiosA no ser que prepares com cuidadoTua estratgia e, ferozmente, ataques,Ters perdido a causa, e sarasDaqui como motivo de chacota.

    Sofisma

    At que enfim! Se mais alguns minutosTivesse que esperar, eu morreriaAt, de impacincia, do desejoDe refutar e de arrasar o outro.Muito bem. Pra comeo de conversa,Tenho de admitir que, entre os letradosE os pedantes, costumo ser chamado- Pejorativamente algumas vezes -De Lgica Sofstica, Imoral.E por qu? Porque eu fui o primeiroA construir um Mtodo capazDe subverter as Crenas SociaisDe h muito respeitadas e seguidasE a Moral respeitada solapar.Alm de tudo, uso um certo truque,Invenozinha que a mim mesmo devo,Que o de utilizar um argumentoQue parece o pior dos argumentos,E acabar vencendo, no entanto.E essa minha inveno tem se mostradoExtremamente lucrativa como

    Fonte de rendimentos. Vede, agora,Como eu refuto a v Filosofia.

    (Para a Filosofia)

    Em teu programa escolar probesAbsolutamente os banhos quentes.Podes expor-me agora os argumentosEm que se funda tal proibio?

    Filosofia

    O que mais poderia eu aduzir?Os banhos quentes fazem muito mal,

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Tornam o homem frouxo, efeminado.

    SofismaNo me digas mais nada. Isso bastante.Ests em minhas mos, completamente.

    Responde-me de pronto: quem dos filhosDe Zeus foi mais valente, mais herico?Quem mais aos sofrimentos resistiu?Quem executou as mais duras tarefas?

    FilosofiaNa minha opinio, Hracles foiO maior dos heris que o mundo viu.

    SofismaQuando tu te referes aos famosos

    Banhos de Hracles, referindo estsA que espcie de banhos: frios, quentes? claro que so quentes. Assim sendo,Por tua prpria lgica era HraclesEfeminado e frouxo.

    FilosofiaIdiotice!A tua lgica dessas que se usamEntre esses jovens desfibrados, torpes,Que esvaziam os ginsios e enchem os banhos.

    SofismaMuito bem. Prossigamos. Se quiseresConsiderar a nacional paixoPela poltica e pelo debateUm mal, muito ao contrrio eu a aprovo.Se a poltica fosse razoavelmenteTo nefasta e to m como sustentas,Ento jamais o venerando Homero- Nosso guia e mentor quanto Moral -

    Jamais, jamais teria retratoNestor e outros velhos respeitveisComo polticos. No mesmo claro?Agora examinemos a questoDe estudarem os jovens a oratria,Coisa que eu defendo e tu condenas.Quanto ao Decoro e Moderao,Estas prprias noes so absurdas.Acho mesmo difcil conceberPreconceitos to tolos, ou melhorMais que tolos: prejudiciais.

    Poderias, por acaso, me citarO exemplo de um homem que lucrou

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Com a moderao? Um s exemplo.

    FilosofiaOs exemplos abundam. Eu citaria...Por exemplo, Peleu. Sua virtude

    Conquistou-lhe uma espada.

    SofismaOra, uma espada!Que grande prmio pra to grande tolo!Vejamos nosso Hiprbolos. Sem dvidaVirtude coisa que ele nunca teve.No entanto, viveu tripa forra,Teve dinheiro a rodo. No espadas.Espada no combina com Hiprbolos.

    FilosofiaAlm disso, porm, a castidadeDe Peleu conquistou o amor da deusaTtis, que se tornou a sua esposa.

    SofismaExatamente. Mas o que fez TtisDepois do casamento? Despediu-o,Por ser frio demais, com espada e tudo.

    (A Feidipides)

    Eu te aconselho, jovem, a encararesCom cuidado o caminho da Virtude,Pois se acaso o seguires, no te esqueas:Despedirs de todos os prazeresQue hoje te deleitam. Por exemplo:Sexo, glutoneria, jogatinaBadernas, bebedeiras etc.O que fars na vida, jovem e forte,Se deixares de lado tais deleites

    Essas pequenas alegrias? PensaEm tuas naturais necessidades.Supes que, sendo exemplo da virtude,Cometas, algum dia, um pecadilho,Uma seduozinha, um adultrio,E, por azar, tu sejas apanhadoCom a boca na botija. Que farias?Tu estarias desmoralizado,No poderias defender-te, claro,Sem ter nunca aprendido como agirEm tal situao imprevisvel.

    Segue, porm, os meus conselhos, jovem,E faz o que te dita a natureza.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Goza a vida, diverte-te e te riasDo mundo sem escrpulos. Se acasoEm flagrante tu fores apanhado,Afirma simplesmente ao pobre cornoQue no tens culpa, e invoca como exemplo

    O Zeus onipotente, que no podeVer mulher sem tratar de conquist-la.Se um to grande e poderoso deusNo pode resistir, como quererQue um pobre mortal tenha a arrognciaDe ministrar ensinos de moralAos deuses imortais? No possvel.

    FilosofiaMas supe que, aceitando o teu conselho,O teu discpulo seja condenado,

    Por adultrio, a ter um rabaneteEnterrado no reto? Por acasoPoderias salv-lo?

    SofismaUm rabanete!Achas mesmo, confessa, uma desgraaTo grande ter um rabaneteEnfiado no rabo?

    Filosofia

    Para mimNo pode haver nada mais degradanteDo que ter um rabanete em tal lugar.

    SofismaE o que dirias, se eu te derrotasseNeste campo tambm?

    FilosofiaNada diria.

    No abriria nunca mais a boca.SofismaO que achas que so nossos juristas?

    FilosofiaPederastas passivos.

    SofismaMuito bem.E os poetas trgicos?

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    FilosofiaO mesmo.

    SofismaPolticos?

    FilosofiaTambm a mesma coisa.

    Sofisma assim? Pois ento, agora olhaPara a nossa audincia. Ests olhando?

    FilosofiaEstou. Atentamente.

    SofismaE o que tu vs;

    FilosofiaMuitos homens eu vejo, e quase todosPederastas passivos.

    (Apontando para alguns indivduos no pblico)

    V aquelesDe cabelos compridos? Tm de ser.

    SofismaE agora dize, amigo, onde chegamos.

    FilosofiaFui derrotado pelos PederastasPassivos. Vou me retirar. S isso.

    (Atira seu manto para o pblico)

    Tomai meu manto e recebei-me, vs,Pederastas Passivos. Terminou.

    (Visivelmente furioso, Filosofia desaparece em sua gaiola, que empurradapara dentro do Pensamental, no mesmo momento em que Scrates sai de l.)

    ScratesQue decidiste, ento? Levar teu filhoOu deix-lo aqui para aprenderA Arte da Chicana?

    EstrepsadesPode ensin-lo,

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Castig-lo, tambm. Mas no te esqueas:Quero que a sua lngua fique, em suma,To afiada como uma navalha.Do lado esquerdo afia-a para as causasParticulares, porm, do direito

    Para os Negcios Pblicos e as grandesOcasies e Oportunidades.

    ScratesPodes ficar tranqilo. Eu te prometoQue ele ser, quando voltar pra casa,Um perfeito sofista.

    FeidipidesQue canalha!

    (Saem Scrates e Feidipides, entrando no Pensamental)

    CorifaiosMuito bem. Pode entrar.

    (A Estrepsades)

    Ainda irsMuito te arrepender do que fizeste.

    (Sai Estrepsades, entrando em sua prpria casa, enquanto o Coro se viraabruptamente e olha o pblico.)

    E agora, permiti, Nobres Juzes,Que umas poucas palavras ns digamosA respeito do Prmio e das vantagensQue podeis ter As Nuvens premiando.Em primeiro lugar, quando chegarA Primavera, ocasio de seremOs campos bem arados, prometemosFazer com que todos os vossos campos

    Tenham a prioridade asseguradaNas chuvas que carem. E alm disso,Aos vinhais e pomares garantimosUm tempo bom, sem seca nem excessoDe chuvas e umidade. Se , porm,Algum mortal da nossa divindadeSe atrever a zombar, ser punido.Sem chuva, em suas terras ressecadasNo h de germinar uma semente.Nos vinhais, nos pomares, uma frutaSequer h de chegar a ser madura.

    E quando o oleiro os seus tijolos queime,De gua cobriremos o seu forno

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    E a chuva apagar de todo o fogo.Se ele prprio, os parentes, os amigosTentarem celebrar um casamento,No vamos permitir com tanta chuva.Fique bem claro que melhor seria

    Para algum ser torrado ao sol do EgitoDo que votar errado neste dia!

    (Entra Estrepsades, saindo de casa, e contando na ponta dos dedos.)

    Cinco, quatro, trs dias, dois, depoisAquele dia que, de todos eles, o dia que mais temo em todo o ms:O da lua minguante e lua nova,Quando os credores todos da cidadeA cobrar o que evo esto dispostos,

    Levando-me, pra isso, aos tribunaisE me arruinando inteiramente.Quando lhes peo para serem humanos,Recebendo por conta alguma coisaE o principal para depois deixando,Me chamam de velhaco e de tratanteE querem tudo receber. No entanto,Se Feidipides tiver aprendidoA bem falar, eu no terei mais medoDos credores e suas ameaas.Basta bater na porta e terei logoA devida resposta.

    (Bate na porta de Scrates e grita)

    Ol, porteiro!

    (Scrates abre a porta.)

    ScratesAh! Estrepsades. Sade!

    EstrepsadesO mesmo para ti. Aqui estUm modesto sinal da minha estima.Pode cham-lo de honorrio. Os MestresCostumam receber os honorrios.

    (Encolhendo a mo que tem a bolsa de dinheiro.)

    Mas espere. J aprendeu Feidipides mesmoA Retrica que ainda h pouco tempo

    Foi para ns exposta?

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    Scrates(pegando a bolsa)Aprendeu bem.

    Estrepsades grande deusa da Trapaa!

    ScratesAgoraEle pode evitar qualquer aoJudicial que queiras.

    EstrepsadesRealmente?Mesmo quando se trata de dinheiroEmprestado diante de testemunhas?

    ScratesMesmo mil testemunhas. Quanto mais,Mais divertido h de ser no fim.

    Estrepsades (parodiando)Que muito alta, a minha vozEntoe cnticos joviais.Chorai, chorai, agiotas,Vs que emprestais, rangei os dentes,Vs que lucrais os altos juros.Eis que surgiu em minha casaUm filho bom, lngua afiadaComo navalha de dois gumes.Salve, heri da minha casa,Que libertaste o meu lar,Que escorraaste os inimigosE aliviaste a dor de um pai!Avante filho! Avante, filho!Sai triunfante do meu lar,Teu pai ajuda, por favor!

    (Feidipides, a prpria imagem da juventude moderna, sai do Pensamental,com ar de desdm.)

    ScratesEis o homem!

    EstrepsadesMeu filho, que alegria!

    ScratesPode lev-lo.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    EstrepsadesOh meu filho! Oh!Com que alegria olho teu rosto plido,Tua fisionomia que pareceRefletir negativas e chicanas!

    Como lembres a rplica forense,O grande distintivo nacional.Sendo, de certo, espertalho perfeito,E com cara de vtima, no entanto.E essa lividez em tuas faces!Realmente uma tez ateniense!Muito bem. Como tu me arruinaste,Agora te compete socorrer-me.

    FeidipidesO que afinal de contas te ameaa?

    EstrepsadesTuas malditas dvidas e a data.Hoje o dia que ltimo e primeiro.

    FeidipidesComo pode ser ltimo e primeiro?

    EstrepsadesSei l. Somente sei que hoje o diaEm que a lei determina que os credoresDepositem a fiana na justiaA fim de acionarem os devedores.

    FeidipidesPerdero a fiana, pois claroNo pode ser um dia ao mesmo tempoO primeiro e o ltimo.

    Estrepsades lei.

    FeidipidesEnto, eu acho que essa lei das dvidasTem sido interpretada muito mal.

    Estrepsades mal interpretada? Como assim?

    Feidipides(enigmaticamente)Amava muito o povo o velho Slon.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    EstrepsadesE o que tem isso a ver com o pagamento?

    Feidipides muito fcil responder: se o velho

    Slon amava o povo de verdadeQue gostava mais dos pobres,Que so a maioria, que dos ricos,E assim, o devedor, naturalmente,Mais do que do credor. Por conseguinteNo haveria de marcar dois diasA favor do credor, e sim dois diasO devedor favorecendo. AssimSendo impossvel ao credor moverUma ao contra o outro, pois no ltimoDia do ms, isto , da lua cheia,

    Teria de fazer a garantiaEm dinheiro, perante o tribunalPara mover a ao. Coisa impossvelPois s no outro dia, isto , o primeiro,Obrigada seria a outra parteA saldar sua dvida.

    EstrepsadesNo entanto,Os magistrados mandam o devedorPagar no ltimo, isto , primeiro dia,No no dia seguinte, mas na vspera.Por que que fazem isso?

    FeidipidesJustamentePor serem magistrados. Como taisSo to gananciosos que s pensamEm receber de pronto a percentagemQue lhes cabe nas custas processuais.Mas claro que o seu procedimento

    de todo ilegal.Estrepsades(perplexo) mesmo, filho?

    (Subitamente iluminado)

    Muito bem! Muito bem!

    (Voltando-se para o pblico)

    E vs, a?Sim, vs mesmos, cretinos! Vs carneiros

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Com cabeas de pombo! Presa fcilDo palavroso esperto e do sofista.Cambada de idiotas! Tenho dito.E agora cabe bem uma canoQue eu compus, como homenagem justa

    Ao meu querido filho e a mim mesmo,Com os mais calorosos parabnsPelo nosso sucesso. Todos prontos?

    (Cantando e danando)

    Estrepsades, Estrepsades,No h ningum igual a ti!Ele com Scrates estudou,Todos sofismas aprendeu. mais esperto do que Eurpedes,

    Tal meu filho!Melhor que eleApenas eu.

    (A Feidipides)

    Quando nos tribunais tu derrotaresOs meus credores, a cidade inteiraVai me invejar. Avante, pois, meu filho!

    (Saem Estrepsades e Feidipides, entrando na casa. Um momento mais tarde,entra Psias, com sua testemunha, trazendo um mandado contra Estrepsades.Homem esbanjador, beberro e comilo. Psias grotescamente gordo. Debom gnio, sabe que tem de enfrentar uma tarefa difcil e vem armado com umgarrafo de vinho, do qual de vez em quando toma um gole, para se fortalecer.)

    PsiasO que devo fazer? De mo beijadaEntregar o dinheiro que ganheiCom esforo, o suado dinheirinho?

    (Algo em suas prprias palavras o faz lembrar que est precisando de um gole,e de um bom gole.)

    Este meu grande corao! Sou bobo!Preciso ser mais duro! E hei de ser!

    (Fortalece-se com um gole.)

    Se eu tivesse negado a atend-loQuando me procurou, no estariaMetido at os ps nesta enrascada.

    (Para a testemunha)

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Trouxe-te at aqui para serviresDe testemunha, quase contra a tuaVontade, e o que pior, vou me tornarInimigo do velho Estrepsades

    Para o resto da vida. S bebendoMais outro gole.

    (Fortalece-se com outro gole.)

    Mas eu no desisto.Vou cobrar do velho. Eis que AtenasAssim espera, e no dirs que PsiasDesrespeitou a Honra Nacional.

    (Grita na porta da casa)

    Estou te acionando, Estrepsades!

    Estrepsades(aparecendo na porta)Est a algum que me procura?

    PsiasSou eu. Vim te cobrar.

    EstrepsadesCobrar o qu?

    PsiasOra! O dinheiro que eu te empresteiPara comprares um cavalo.

    EstrepsadesEu?!Eu detesto cavalos. Todo o mundoSabe disso. Tu podes perguntarA quem quiseres. Todo o mundo sabe.

    PsiasMas tu juraste que me pagarias!Juraste pelos deuses!

    EstrepsadesPois agora,Juro que no jurei. De qualquer modo,Tudo aquilo foi antes de meu filhoTer aprendido a Cincia do ArgumentoIrrespondvel.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Psias por isso entoQue no pagas?

    Estrepsades

    E onde encontrariasArgumento melhor? Tenho o direitoDe ser devidamente compensadoPelo que despendi para educ-lo.

    PsiasE ests mesmo disposto a perjurarQuando juraste pelos deuses?

    EstrepsadesDeuses?

    Que deuses?

    PsiasOra! Zeus, Poseidon, Hermes.

    EstrepsadesEnto, pior para eles, se jurei.Jurei e perjurei, amo o perjrio.

    PsiasTrapaceiro! Malandro! Mentiroso!

    Estrepsades(Cutucando a barriga de Psias)Que pana, sim senhor! Que respeitvel!

    PsiasPelos deuses, esta a ltima gota!

    EstrepsadesQue pana! uma barrica direitinho!

    Psias Zeus! deuses todos das alturas!No penses que tu vais, Estrepsades,Escapar desta vez como pretendes.No vais, no vais, por Zeus e os deuses todos!

    EstrepsadesBem me importo contigo e com os teus deuses!Zeus uma burla para quem raciocina.

    Psias

    Por Zeus, tu vais te arrepender, patife.E agora dize-me a ltima palavra.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    Vais me pagar ou no? D a resposta.E hei de me retirar logo que o faas.

    EstrepsadesEspera um pouco, ento. Voltarei logo

    E te direi a deciso final.

    (Estrepsades entre apressadamente em casa.)

    Psias(para a Testemunha)O que estar ele fazendo? AchasQue vai mesmo pagar o que me deve?

    Estrepsades(reaparecendo fora de casa, trazendo na mo um grande cesto)Que de meu credor? Ah! Ei-lo aqui.

    (Empunhando o cesto diante do rosto de Psias)

    Queres dizer-me o que isto?

    PsiasUm cesto.

    EstrepsadesUm cesto? Como, ignorante assim,Tu te atreves a vir aqui dizer-meQue te devo pagar? Que argumentosSers capaz de apresentar, a fimDe tua pretenso justificares?Jamais darei de meu dinheiro um nquelA um homem to letrado, que no sabeUma cesta de um cesto distinguir.Escuta aqui, bolota e toucinho,Por que, em vez de grunhir, no te derretes?

    (Ameaa bater em Psias com a cesta.)

    PsiasVou mesmo retirar-me. Mas eu juroPelos deuses, que vou agora mesmoMinha queixa levar ao magistrado,Ou no me chamo Psias!

    EstrepsadesPobre Psias!Alm de tantos outros prejuzos,Vais perder a fiana judicial.Para falar a verdade, eu nem queria

    Ver-te sofrendo tanto s porqueNo conheces um pingo de gramtica.

  • 8/6/2019 Aristfanes - As Nuvens

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    (Bate na cabea de Psias com a cesta.)

    Cesta! Cesta, e no cesto. No te esqueas!

    (Psias sai correndo, perseguido por Estrepsades. Um pouco depois, ouvem-se, vindos de fora do palco, gemidos e gritos horrveis, seguidos pela patticaentrada de Amnias, jogador e efeminado, que acaba de ter tido um acidentecom seu carro e entra em estado miservel: a cabea coberta de sangue, asroupas rasgadas, enquanto as suas palavras, delirante mistura de retricatrgica e acentuado ceceio, so quase ininteligveis.)AminiasAi! Ai! Ai! Pobre de mim! Ai! Ai! Ai!

    EstrepsadesDeuses do cu! Que gritaria essa?

    Quem s tu? Por que toda essa algazarra?Lamuriento assim e gemebundo,At paraces um daqueles deusesSofridos das tragdias de Carquinos.

    AminiasSaber queres qui quo alto eu seja?Sabei, pois, e o saber te inspire:Sou homem valoroso, mas infausto,Pela Adversidade perseguido.

    EstrepsadesDesinfeta o terreno, ento, seu coisa!

    Aminias dia negro! trgico destino!Como sofrer o que sofri, Palas! quo desventurada a minha sorte!

    EstrepsadesJ sei. s um ator e ests que