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M. Teixeira de Sousa 1 AS PROVIDÊNCIAS CAUTELARES E A INVERSÃO DO CONTENCIOSO Miguel Teixeira de Sousa 1 I. Aspetos gerais 1. Justificação Os procedimentos cautelares – que, no direito português, se encontram regulados nos art. 362.º a 409.º 2 – fundam-se numa justificação de ordem temporal: o proferimento de uma decisão final é algo que pode demorar bastante tempo (atendendo aos crónicos atrasos dos tribunais, esse proferimento tem mesmo tendência para demorar muito tempo). Esta demora na satisfação da pretensão do demandante origina o risco de um prejuízo para essa parte (art. 362.º, n.º 1, e 368.º, n.º 1): periculum in mora). É por isso que a lei permite que, através de uma summaria cognitio (art. 365.º, n.º 1 e 3) e depois de estar demonstrado, quanto ao direito ameaçado pelo atraso na tutela jurisdicional, o fumus boni iuris (cf. art. 368.º, n.º 1), o tribunal possa decretar uma tutela provisória, que se destina a acautelar o efeito útil da ação (art. 2.º, n.º 2 in fine), isto é, a evitar que a composição definitiva venha a ser inútil. Como referia CHIOVENDA (1872-1937), as providências cautelares baseiam-se no princípio de que “o processo deve dar, na medida do praticamente possível, a quem tem um direito tudo e precisamente aquilo a que ele tem direito” 3 . Os atuais procedimentos cautelares inserem-se no muito antigo regime do processo sumário 4 , cuja história é, aliás, bastante complexa 5 . Algumas das suas modalidades distinguiam- se do processo ordinário apenas pela sua formalidade; outras divergiam do processo ordinário por uma menor exigência no grau de prova e no âmbito do conhecimento do tribunal 6 . O chamado “processo sumário indeterminado” ou “regular” era um processo de cognição plena que podia ser utilizado para qualquer forma de tutela (daí o seu caráter indeterminado), pois era apenas uma simplificação formal do processo ordinário; a sua origem encontra-se na bula Saepe contingit ou ! #$%&’((%$ )*+’,$-+./% ,* 0*/12,*,’ ,’ 3.$’.+% ,’ 4.(5%*6 7’75$% ,* )%7.((8% 9*$* * :’&%$7* ,% #$%/’((% ).;.2< = >( 9$’/’.+%( /.+*,%( (’7 $’&’$?/.* * !1*2!1’$ ,.92%7* 2’"*2 9’$+’/’7 *% )#,."% ,’ #$%/’((% ).;.2$ * ;’$(8% *9$%;*,* 9’2* 4’. <% &!'=(!)$ ,’ =*'*< ) )+,>-./30$ :3)%7 1 2!1!!3,4$ !() 5 )+,>-./30$ 6*"". ,. ,.$.++% 9$%/’((1*2’ /.;.2’ , 2:%7* !1)(4$ !!(6 9*$* 17* *-2.(’ ,* /%/’978% /8.%;’,.** ,* +1+’2* /*1+’2*$$ /&< #:>9> #,60/,$ :3# &) 2!1::4$ !* ((< & )&< 30/;$<$1,(=+>’ ,’$ (177*$.(/8’ #$%>’((’ ) 2.,< <?//.:4 26+1++"*$+ !:(*4$ !@1 ((<6 4>AB>$9$*/+*,% #$*+./% )%79’,.-$.% ,’ 9%,*( *( 0/7C’( 6177*$.*($ (1* ,,%2’$ ’ /*+1$’>* ’7 <’$*2$ ’ ’7 .(9’/.*2 24.(5%* !:!*4$ =(: ((<6 (%5$’ *2"1( *(9’+%( 8.(+#$./%3,%"7-+./%( ,*( 9$%;.,?/.*( /*1+’2*$’($ /&< +.,/;.$ A<+30< ,,, 2DE/8’ =(((4$ F*1 ((< F )&<$ 9%$ ’G’792%$./3.D0//$ 3*( ,’1+(/8’ #$%>’!$’/8+ 2!:*:4$ !(=* ((<6 D./<.:$ 6H(+’7 ,’( %’(+’$$’./8.(/8’ ).;.29$%/’(($’/8+( , 2!:@*4$ =1 ((<6 I0)+$ +*,51/8 ,’( 3’1+(/8’ ).;.29$%>’(($’/8+( , 2!::F4$ &( ((<

As Providencias Cautelares e a Inversao Do Contencioso (12.2013)-Libre

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  • M. Teixeira de Sousa

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    AS PROVIDNCIAS CAUTELARES E A INVERSO DO CONTENCIOSO

    Miguel Teixeira de Sousa1

    I. Aspetos gerais 1. Justificao

    Os procedimentos cautelares que, no direito portugus, se encontram regulados nos art. 362. a 409. 2 fundam-se numa justificao de ordem temporal: o proferimento de uma deciso final algo que pode demorar bastante tempo (atendendo aos crnicos atrasos dos tribunais, esse proferimento tem mesmo tendncia para demorar muito tempo). Esta demora na satisfao da pretenso do demandante origina o risco de um prejuzo para essa parte (art. 362., n. 1, e 368., n. 1): periculum in mora). por isso que a lei permite que, atravs de uma summaria cognitio (art. 365., n. 1 e 3) e depois de estar demonstrado, quanto ao direito ameaado pelo atraso na tutela jurisdicional, o fumus boni iuris (cf. art. 368., n. 1), o tribunal possa decretar uma tutela provisria, que se destina a acautelar o efeito til da ao (art. 2., n. 2 in fine), isto , a evitar que a composio definitiva venha a ser intil. Como referia CHIOVENDA (1872-1937), as providncias cautelares baseiam-se no princpio de que o processo deve dar, na medida do praticamente possvel, a quem tem um direito tudo e precisamente aquilo a que ele tem direito3. Os atuais procedimentos cautelares inserem-se no muito antigo regime do processo sumrio4, cuja histria , alis, bastante complexa5. Algumas das suas modalidades distinguiam-se do processo ordinrio apenas pela sua formalidade; outras divergiam do processo ordinrio por uma menor exigncia no grau de prova e no mbito do conhecimento do tribunal6. O chamado processo sumrio indeterminado ou regular era um processo de cognio plena que podia ser utilizado para qualquer forma de tutela (da o seu carter indeterminado), pois era apenas uma simplificao formal do processo ordinrio; a sua origem encontra-se na bula Saepe contingit ou

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    Clementina Saepe (1312/1314), na qual se mandava que os processos fossem tramitados simpliciter et de plano, ac sine strepitu et figura iudicii (Clementina 5.11.2; quanto ao antigo direito portugus, cf. OA 3.24 pr.; OM 1.44.69; OF 1.65.7)7. O designado processo sumrio determinado ou irregular era um processo de cognio limitada e destinava-se a obter determinadas formas de tutela8; a relao entre a forma sumria, uma semiplena cognitio e uma semiplena probatio foi estabelecida por Azo (1150-1230)9, tendo-se a doutrina posterior dividido entre as orientaes que encontravam neste processo sumrio uma prima-facie-Cognition decorrente da limitao do objeto e dos meios de prova10 e as orientaes que baseavam a cognio sumria (summatim cognoscere) num juzo de probabilidade11. esta caracterstica a que se encontra consagrada no regime dos procedimentos cautelares12, que, salvo verificando-se a inverso do contencioso, so procedimentos de cognio sumria e restrita (cf. art. 365., n. 1 e 368., n. 1). Pode assim concluir-se que a consagrao da inverso contencioso isto , da possibilidade de a tutela cautelar se transformar em tutela definitiva (cf. art. 369., n. 1) significa uma rutura com uma longa tradio histrica.

    2. Enquadramento ='(('(".7"D.++'2*2+'$" ,-'-"2!1=:4$"1$"*&.$7*;*"!1'",'"92* %"(." .&./*"*9' *("(. '"(/$.9+1$*";'2"2.5'22%"2/&

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    situao que possa fazer perigar a utilidade da sentena que venha a ser proferida na ao principal13. Assim, para o decretamento da providncia solicitada, no basta a existncia de um direito suscetvel de tutela judiciria, antes necessrio que haja que assegurar, atravs da tutela cautelar e provisria, a utilidade da posterior tutela definitiva. Importa precisar que a leso que se pretende prevenir apenas aquela que resulta da demora na obteno da tutela definitiva, pois que as providncias cautelares s visam evitar que esta tutela seja intil ou no efetiva. Como referia CALAMANDREI (1889-1956), as providncias cautelares destinam-se a evitar o pericolo di infruttuosit e o pericolo di tardivit da tutela definitiva14. Dito de outro modo: as providncias cautelares no se destinam a atribuir uma tutela de urgncia a um direito que est na iminncia de ser lesado, nem a conceder tutela a um direito na previso da sua violao (funo que realizada pelas aes de condenao in futurum (art. 557., n. 2), mas antes a conceder uma tutela provisria destinada a assegurar a efetividade da tutela definitiva no momento em que ela venha a ser concedida15. A funo das providncias cautelares a de tutelar, de forma provisria, uma determinada situao jurdica que se encontra em perigo pela falta de uma tutela imediata. realmente a necessidade desta tutela que justifica o decretamento de uma providncia cautelar. A iminncia da violao da situao jurdica apenas um dos indcios possveis da necessidade da tutela cautelar, dado que nem todas as providncias cautelares pressupem a iminncia dessa violao: pense-se, por exemplo, nos alimentos provisrios (que so devidos antes do reconhecimento do direito a alimentos) ou no arbitramento de reparao provisria (que devida antes de ser reconhecido ao requerente qualquer direito de indemnizao). A justificao que se encontra no art. 362., n. 1, para as providncias cautelares o fundado receio de leso grave e dificilmente reparvel de um direito tem de ser entendida, no em funo de qualquer potencial violao, mas em funo da demora na tutela definitiva desse direito. por isso que, consideradas pela perspetiva da ao principal de que so dependncia, as providncias cautelares visam assegurar a utilidade dessa ao, pois que estas providncias salvaguardam a utilidade da deciso proferida nessa ao perante qualquer situao decorrente de factos ocorridos antes do seu proferimento16. Por exemplo: imagine-se que, atendendo

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    delapidao de bens pelo devedor, o credor est em risco de perder a sua garantia patrimonial; o arresto de bens do devedor (cf. art. 391., n. 1; art. 619., n. 1, CC) assegura que a ao condenatria proposta pelo credor contra o devedor ainda til, porque, em caso de necessidade, os prprios bens arrestados podem ser penhorados e vendidos. Portanto, o que se acautela nas providncias cautelares no a violao de um direito (coisa que, como evidente, nenhuma deciso pode evitar), mas a utilidade da deciso de tutela definitiva. tambm por este prisma que h que analisar a relao entre a providncia cautelar e a urgncia na tutela. Muito frequentemente a tutela definitiva seria demasiado tardia, porque s poderia ser obtida depois de a violao do direito se ter consumado ou mesmo depois de essa violao se ter tornado irreversvel. esta inutilidade da tutela definitiva que justifica, nesse caso, a tutela cautelar: esta tutela substitui, provisoriamente, a tutela definitiva.

    b) Em geral, as providncias cautelares visam combater o risco da irrealizao do direito que provocado pela demora da deciso definitiva. Nesta perspetiva, so dois os fatores que podem justificar uma providncia cautelar:

    A impossibilidade da realizao do direito num momento futuro (correspondente, na expresso de CALAMANDREI, ao pericolo di infruttuosit da tutela definitiva17); nesta hiptese, a providncia cautelar visa obstar a uma mudana que possa vir a impedir a realizao do direito aps a deciso proferida na ao principal18; por exemplo: se no se proceder ao arresto de bens do devedor (cf. art. 391., n. 1; art. 619., n. 1, CC), corre-se o risco de, no momento do reconhecimento do seu crdito na sentena final, o credor j no possuir nenhuma garantia patrimonial; se no se embargar a obra nova (cf. art. 397., n. 1), h o perigo de se criar uma situao dificilmente reversvel;

    A necessidade da realizao imediata de um direito (correspondente, na terminologia de CALAMANDREI, ao pericolo di tardivit19); nesta hiptese, a providncia cautelar visa obviar inutilidade prtica da realizao do direito aps a deciso proferida na ao principal; por exemplo: se no forem assegurados ao credor os alimentos provisrios (cf. art. 384.), ele no tem meios de subsistncia at concesso dos alimentos definitivos; se no for realizada ao credor uma determinada prestao numa certa data, ele perde o interesse no seu cumprimento.

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    o seu patrimnio, indispensvel impedir a continuao dessa conduta, porque, se assim no acontecer, o credor, mesmo que venha a obter uma sentena condenatria do devedor, perdeu entretanto a garantia patrimonial do seu crdito (cf. art. 601. CC);

    Uma finalidade de regulao provisria de uma situao (tambm correspondente providncia conservatria a que se refere o art. 362., n. 1); por exemplo: perante o esbulho da coisa, o esbulhado pode requerer a sua restituio at se encontrar definida a titularidade do direito sobre a coisa (cf. art. 1278., n. 1, CC);

    Uma finalidade de antecipao da tutela definitiva (correspondente providncia [] antecipatria a que alude o art. 362., n. 1); por exemplo: o credor de alimentos pode requerer que lhe sejam concedidos alimentos provisrios (cf. art. 2007., n. 1, CC).

    Em geral, o objeto do procedimento cautelar um minus e um aliud em relao ao objeto da ao principal: as providncias cautelares no visam obter o mesmo que se pretende alcanar atravs da ao principal20. A exceo a esta regra constituda pelas providncias com uma finalidade de antecipao21: estas providncias constituem um tantus e um similis em relao ao objeto da ao principal. Na verdade, a antecipao da tutela definitiva na tutela cautelar s se pode verificar quando ambas as tutelas tenham o mesmo objeto, ou seja, quando o que pode ser obtido na tutela cautelar o mesmo que pode ser conseguido na tutela definitiva. Pode assim afirmar-se que, quando a tutela cautelar antecipa a tutela definitiva, aquela tutela cumpre uma funo satisfativa. Algumas ordens jurdicas conhecem formas de antecipao da tutela autnomas das providncias cautelares, ou seja, formas de antecipao da prpria tutela definitiva. O que se antecipa no , portanto, uma tutela provisria com o objetivo de acautelar o efeito til da ao, mas a prpria tutela definitiva que, numa ao, requerida pelo autor. Admitem esta antecipao da tutela definitiva a ordem jurdica italiana (art. 186-bis a 186-quater CpcIT)22 e a brasileira (art. 273. CPCBR, preceito que permite a antecipao, total ou parcial, da tutela pretendida quando haja fundado receio de dano irreparvel ou de difcil reparao ou quando fique caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propsito protelatrio do ru, sendo interessante anotar que, certamente atendendo aos fundamentos da antecipao, a tutela antecipada pode ser revogada ou modificada a qualquer tempo). Na ordem jurdica portuguesa, no se encontra nenhuma disposio que admita, em termos gerais, a antecipao da tutela definitiva: apenas o art. 565. CC permite que, numa ao de responsabilidade civil, o tribunal condene o devedor no pagamento de uma indemnizao, dentro do quantitativo que considere j provado. Isto significa que, em termos gerais, a antecipao da tutela s admissvel no mbito das providncias cautelares, o que releva tanto quanto aos seus requisitos (como, por exemplo, a suficincia do bonus fumus

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    iuris), como quanto aos seus efeitos (designadamente, quanto ao carter provisrio da antecipao). b) So dois os critrios pelos quais se afere a adequao funcional da providncia para assegurar o efeito til da ao principal: a apropriao e a proporcionalidade. A providncia apropriada se ela for adequada para acautelar o efeito til da ao principal (cf. art. 2., n. 2), isto , se ela for concretamente adequada para assegurar a efetividade do direito ameaado (cf. art. 362., n. 1)23. A providncia pode coincidir com o que se pretende obter na ao principal como o caso tpico da providncia de alimentos provisrios (cf. art. 384.) , mas tambm pode consistir na constituio de uma situao jurdica provisria como acontece quando, perante a disputa do uso de uma parte comum do prdio, requerido que a sua utilizao seja partilhada por todos os condminos ou ainda na produo de um efeito, mesmo que definitivo, isto , mesmo que, uma vez produzido, no mais possa ser desfeito24 como acontece quando um lojista requer que um seu concorrente, por violar um acordo de exclusividade, seja intimado a no abrir o seu estabelecimento. A adequao da providncia tambm no depende da sua cobertura por qualquer regra substantiva. Embora algumas providncias cautelares tenham um apoio legal como o caso do arresto (cf. art. 619., n. 1, CC), da restituio provisria da posse (cf. art. 1279. CC) e dos alimentos provisrios (cf. art. 2007., n. 1, CC) , a sua admissibilidade no depende de qualquer previso substantiva25. As providncias cautelares no so tpicas, mas abertas. So admissveis aquelas que se enquadrarem na clusula geral constante do art. 362., n. 1, isto , aquelas que se mostrarem concretamente adequadas a assegurar a efetividade do direito ameaado pela demora na tutela definitiva. c) A providncia s pode ser decretada se no impuser ao requerido um sacrifcio desproporcionado relativamente aos interesses que o requerente deseja acautelar ou tutelar provisoriamente (art. 368., n. 2). Isto : a desvantagem imposta ao requerido com o decretamento da providncia no pode ser desproporcionada em relao vantagem que o requerente retira desse decretamento. Portanto, um interesse pouco relevante do requerente no pode ser acautelado atravs da afetao de um interesse muito relevante do requerido; mas um interesse muito relevante do requerente pode ser acautelado atravs da afetao de um interesse muito relevante do requerido. Quando os interesses forem equivalentes, h que procurar uma compatibilizao dos mesmos: por exemplo, se for vivel, ainda que com recurso a restries justificadas, a compatibilizao do direito sade e ao descanso dos requerentes com o direito a

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    desenvolver uma atividade comercial por parte da requerida, nenhum desses direitos pode ser integralmente sacrificado ao outro26. Esta regra de proporcionalidade exige uma ponderao dos interesses envolvidos e independente da probabilidade sria da existncia do direito a acautelar (e, portanto, da probabilidade do sucesso da ao principal): nem aquela proporcionalidade dispensa a probabilidade do direito a acautelar27, nem esta probabilidade isenta a verificao da proporcionalidade. Assegurada a proporcionalidade entre os interesses a acautelar e a afetar, a providncia s decretada se, alm disso, for provvel a existncia do direito a acautelar. Esta probabilidade pode ser aferida com maior ou menor intensidade consoante os interesses afetados do requerido forem mais ou menos relevantes. Portanto, a proporcionalidade um critrio invarivel; a probabilidade, pelo contrrio, um critrio flexvel.

    3. Distino Do que foi descrito pode retirar-se que, no ordenamento jurdico portugus, h que distinguir, no mbito mais geral de uma tutela urgente, entre uma tutela cautelar e uma tutela urgente stricto sensu. A distino resume-se no seguinte: a tutela cautelar uma tutela provisria ou uma tutela que s se consolida se, tendo havido inverso do contencioso, o requerido no propuser ao destinada a contrariar a providncia decretada; a tutela urgente stricto sensu uma tutela definitiva que obtida num procedimento simples e clere. Esta distino demonstra as duas perspetivas pelas quais a urgncia da tutela vista no ordenamento jurdico portugus: essa urgncia pode resultar da impossibilidade de esperar pela tutela definitiva (para, por exemplo, obter os alimentos de que o credor necessita para sobreviver); aquela urgncia tambm pode decorrer da necessidade de obter uma tutela imediata (para, por exemplo, impedir uma violao iminente de direitos de personalidade atravs dos meios de comunicao social). As relaes entre estas modalidades de urgncia (a urgncia-impossibilidade, induzida pela impossibilidade de esperar pela tutela definitiva, e a urgncia-necessidade, decorrente da necessidade de obter uma tutela imediata) no podem ser analisadas no presente contexto, nomeadamente quanto possibilidade de escolha pelo interessado entre a via da providncia cautelar e a via da tutela urgente stricto sensu (o que acrescente-se tem importncia, por exemplo, para delimitar o mbito de aplicao do processo especial de tutela da personalidade (cf. art. 878. a 880.), em relao ao qual se pode defender que ele exclui a possibilidade de recurso s providncias cautelares ou que ele um meio concorrente com estas providncias).

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    II. Inverso do contencioso 1. Generalidades

    As providncias cautelares tm como finalidade a preveno do periculum in mora, j que elas visam obviar a que a deciso proferida na ao principal se torne intil, isto , a que seja conseguida uma tutela definitiva que seja ineficaz no momento em que seja obtida. Desde h algum tempo vem-se discutindo se as providncias cautelares no podem tambm assumir uma outra funo: a de se substiturem prpria tutela definitiva, ou seja, a de consumirem a necessidade da propositura de uma ao principal destinada a confirmar a tutela provisria obtida atravs de uma dessas providncias. Convm esclarecer que o que se pergunta distinto da antecipao da tutela definitiva pela tutela cautelar. O que se pretende saber em que condies que a tutela cautelar pode dispensar a tutela definitiva por aquela tutela cautelar se convolar nesta tutela definitiva; problema diferente o da antecipao da tutela definitiva pela tutela cautelar, porque esta antecipao no dispensa a propositura de uma ao principal destinada a obter a tutela definitiva e a confirmar a tutela que foi antecipada no procedimento cautelar. Portanto, uma questo a de saber se a tutela cautelar pode antecipar uma tutela definitiva que no pode deixar de ser requerida depois da sua antecipao no procedimento cautelar, outra distinta a de determinar se a tutela cautelar pode ser autossuficiente e dispensar a tutela definitiva.

    2. Desenvolvimento

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    Cabe ao tribunal a iniciativa de substituir a tutela cautelar pela tutela definitiva, devendo, no entanto, ouvir as partes antes de proferir a deciso de tutela definitiva28.

    O regime institudo no art. 16. RPCE criticvel essencialmente pelos seguintes motivos. Coloca no juiz a iniciativa da substituio da tutela cautelar pela tutela definitiva, o que

    suscita problemas quanto sua articulao com o princpio dispositivo; omisso quanto s condies em que admissvel a convolao da tutela cautelar

    em tutela definitiva, dado que no se define nenhuma orientao quanto s providncias em relao s quais se pode verificar a referida convolao.

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    3. Concretizao ) O regime da inverso do contencioso assenta no disposto no art. 369., n. 1: mediante requerimento, o juiz, na deciso que decrete a providncia, pode dispensar o requerente do nus de propositura da ao principal se a matria adquirida no procedimento lhe permitir formar convico segura acerca da existncia do direito acautelado e se a natureza da providncia decretada for adequada a realizar a composio definitiva do litgio. Este regime apresenta as seguintes caractersticas:

    Pressupe o requerimento da parte interessada; o art. 369., n. 2, define o momento em que esse requerimento pode ser feito e em que o requerido a ele se pode opor: a dispensa [] pode ser requerida at ao encerramento da audincia final; tratando-se de procedimento sem contraditrio prvio, pode o requerido opor-se inverso do contencioso conjuntamente com a impugnao da providncia decretada;

    Define as condies em que a inverso do contencioso pode ser decretada pelo tribunal: este rgo tem de formar a convico segura sobre o direito acautelado e a natureza da providncia decretada tem de ser adequada a realizar a composio definitiva do litgio; isto significa que a deciso sobre a inverso do contencioso no uma deciso tomada no uso de um poder discricionrio: o tribunal no inverte o contencioso segundo um critrio de oportunidade e de convenincia, mas de acordo com os referidos critrios legais.

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    requerente da providncia poderia solicitar na ao principal se no tivesse sido decretada a inverso do contencioso.

    4. Objeto & A necessidade de que a providncia seja adequada a realizar a composio definitiva do litgio delimita as providncias cautelares em que se pode verificar a inverso do contencioso. Assim, esta inverso no vivel se, por a tutela cautelar ser distinta da correspondente tutela definitiva, ela no tiver a potencialidade de compor o litgio entre as partes. Pense-se, por exemplo, na providncia cautelar de arresto: no respetivo procedimento, o requerente solicita a apreenso judicial de certos bens (art. 391., n. 2) com fundamento no receio de perda da garantia patrimonial (art. 391., n. 1; art. 619., n. 1, CC); na ao principal, esse mesmo requerente, agora autor, solicita o reconhecimento e satisfao do seu direito de crdito. Pode assim concluir-se que, nos casos em que a tutela definitiva e a tutela cautelar cumprem uma funo totalmente distinta e prosseguem objetivos completamente diferentes, nunca se pode verificar a inverso do contencioso; ou, dito pela positiva: a inverso do contencioso s admissvel se a tutela cautelar puder substituir a tutela definitiva que, se no tivesse havido inverso do contencioso, o requerente teria o nus de requerer na subsequente ao principal. por isso que, por exemplo, no tem sentido admitir a inverso do contencioso quanto providncia cautelar de arresto, pois que a garantia da garantia patrimonial que o credor obtm atravs dessa providncia no resolve o litgio entre ele e o seu devedor (que respeita, no garantia do crdito, mas ao prprio crdito). O ponto mais discutvel nesta matria aquele que se prende com a possibilidade de requerer a inverso do contencioso numa providncia cautelar que constitui um incidente da causa principal. O que se pergunta se admissvel que, por exemplo, no procedimento de alimentos provisrios que corre como incidente da ao de alimentos definitivos se pode pedir a inverso do contencioso. Parece impor-se uma resposta negativa, dado que no tem sentido utilizar um mecanismo que conduz possvel dispensa de uma ao principal quando a mesma j se encontra pendente.

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    providncias previstas em lei avulsa que tenham carter antecipatrio dos efeitos da ao principal (como o caso da providncia cautelar de entrega judicial do bem aps findar o contrato de locao financeira que se encontra regulada no art. 21. DL 149/95, de 24/6). Isto demonstra que a inverso do contencioso s admissvel se a providncia cautelar requerida de carter nominado ou inominado tiver um sentido antecipatrio. Mais em concreto, essa inverso depende da circunstncia de a tutela que solicitada na providncia, em teoria, poder ser obtida como tutela definitiva numa ao declarativa. Para se confirmar que assim basta confrontar, a ttulo de exemplo, as providncias cautelares de arrolamento e de alimentos provisrios: o arrolamento que consiste numa descrio de bens que se encontram em risco de extravio, ocultao ou dissipao (cf. art. 403., n. 1) no antecipa nenhuma tutela definitiva e, por isso, nela no se pode verificar a inverso do contencioso; em contrapartida, a providncia de alimentos provisrios que consiste na realizao ao requerente de uma prestao alimentcia (cf. art. 384.) antecipa o que pode ser obtido numa ao de alimentos, pelo que nela admissvel a inverso do contencioso. Importa ainda acrescentar que a inverso do contencioso no pressupe a consumpo de qualquer outra tutela, ou seja, no pressupe que, aps a inverso, o requerente da providncia no possa solicitar mais nenhuma tutela. Considere-se, por exemplo, a providncia de restituio provisria da posse: no caso de esbulho violento, o possuidor pode pedir que seja restitudo provisoriamente sua posse (cf. art. 377.; art. 1279. CC); tendo-se verificado a inverso do contencioso nessa providncia, isso obsta naturalmente a que o requerente solicite, na ao principal, a restituio da posse, mas no impede que esse mesmo requerente solicite a reivindicao da coisa de que foi reconhecido ser o possuidor.

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    se prope uma ao de alimentos definitivos. Nesta hiptese, a exceo de litispendncia deve ser alegada na ao principal, dado que foi nesta que o demandado foi citado em segundo lugar (cf. art. 582., n. 1 e 2). Pode assim concluir-se que a formulao do pedido de inverso do contencioso bloqueia a propositura de uma ao principal pelo seu requerente, sempre que nesta ao no se possa obter algo de diferente do que resulta da converso da tutela provisria em tutela definitiva. Por analogia com o disposto no art. 564., al. c), h igualmente que entender que a formulao daquele pedido inibe o requerido no procedimento cautelar de propor uma ao destinada apreciao da mesma questo jurdica. Assim, se, por exemplo, no procedimento cautelar de suspenso da deliberao social, o requerente solicitar a inverso do contencioso, o requerido est inibido, at apreciao desse pedido, de propor uma ao visando reconhecer a validade da deliberao.

    5. Procedimento

    F A deciso que decrete a inverso do contencioso s recorrvel em conjunto com o recurso da deciso sobre a providncia requerida (art. 370., n. 1 1. parte), ou seja, essa deciso no passvel de recurso autnomo do prprio recurso que decreta a providncia requerida. Assim, o requerido s pode impugnar a deciso de inverso do contencioso se impugnar simultaneamente o decretamento da providncia, pelo que no admissvel impugnar apenas aquela deciso de inverso. Como a regra no mbito dos procedimentos cautelares, no cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justia da deciso que determine a inverso do contencioso, sem prejuzo dos casos em que esse recurso sempre admissvel (art. 370., n. 2).

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    Em contrapartida, a deciso que indefira a inverso do contencioso irrecorrvel (art. 370., n. 1 2. parte), mesmo que em conjunto com a deciso que tenha indeferido a providncia requerida. Portanto, o indeferimento do pedido de inverso do contencioso sempre definitivo, no podendo o requerente impugn-la em recurso. O regime tambm vale quando o requerente tenha interposto recurso do indeferimento da providncia requerida, o que tem como consequncia que a inverso do contencioso nunca pode ser decretada em recurso.

    6. Ao *

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    que suficiente para decretar a providncia, mas, mesmo este juzo, no vinculativo na ao de impugnao. O contedo mais comum da ao de impugnao da deciso de inverso do contencioso o de uma ao de apreciao negativa: o requerido solicita a declarao da inexistncia do direito acautelado, com base na inexistncia dos factos que levaram o juiz do procedimento cautelar a inverter o contencioso. Por exemplo: o juiz do procedimento cautelar inverteu o contencioso numa providncia de embargo de obra nova; o requerido pode requerer a apreciao da inexistncia do obstculo construo da obra. Impe-se, no entanto, uma importante observao: qualquer que seja o entendimento que se faa do disposto no art. 343., n. 1, CC quanto distribuio do nus da prova nas aes de simples apreciao negativa ou seja, independentemente de se entender que nessas aes cabe ao ru demonstrar o facto constitutivo do seu direito ou de se considerar que ao autor cabe a prova do facto extintivo, impeditivo ou modificativo que serve de causa petendi ao pedido de apreciao negativa30 e respeitando a ressalva feita no art. 371., n. 1, quanto distribuio do nus da prova, claro que, na ao de apreciao negativa que instaurada pelo requerido para evitar a consolidao da providncia cautelar em relao qual se verificou a inverso do contencioso, o nus da prova tem de pertencer ao autor da ao. De outro modo a inverso do contencioso em nada beneficiaria o requerente da providncia: se, depois dessa inverso, lhe incumbisse provar, na subsequente ao de apreciao negativa instaurada pelo requerido, o direito acautelado, esse requerente (e agora ru) encontrar-se-ia na mesma posio se no tivesse havido inverso do contencioso e se fosse sobre ele que recasse o nus de instaurar a ao principal. Portanto, h que entender que incumbe ao autor da ao de impugnao (e requerido no procedimento cautelar) o nus de provar quer os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito acautelado, quer a inexistncia dos factos constitutivos desse direito. Finalmente, a ao de impugnao tambm pode ter por objeto um direito incompatvel com o direito acautelado atravs da inverso do contencioso que foi decretada no procedimento cautelar. Por exemplo: o juiz concedeu a inverso do contencioso em relao a uma providncia de restituio provisria da posse; o requerido pode intentar uma ao em que solicita o reconhecimento de um direito incompatvel com a posse do requerente.

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    circunstncia de a deciso sobre a matria de facto no poder ter qualquer influncia no julgamento da ao principal (art. 364., n. 4): se assim , tambm no pode haver nenhuma precluso factual nesta ao.