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ISSN 1982-5994 ISSN 1982-5994 EDIÇÃO ESPECIAL BeLÉM 400 aNoS • UFPa • aNo XXX • JaNeiro, 2016 Visagens, migrantes e culinária contam as histórias de Belém nos seus 400 anos.

Beira Belém 400 anos

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Beira do Rio edição especial Belém 400 anos

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Page 1: Beira Belém 400 anos

ISSN

198

2-59

94IS

SN 1

982-

5994

EDIÇÃO ESPECIAL BeLÉM 400 aNoS • UFPa • aNo XXX • JaNeiro, 2016

Visagens, migrantes e culinária contam as histórias de Belém nos seus 400 anos.

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Belle Époque

Encantados assombram a cidade ADOLFO LEMOS

Não se imagina no resto do Brasil o que é a cidade

de Belém, com os seus edifícios desmesurados, as suas praças incomparáveis

e com a sua gente de hábitos

europeus, cavalheira e

generosa. Foi a maior surpresa de

toda a viagem.Euclides da

Cunha, escritor, 1904 (“Euclides

da Cunha e seus amigos”).

Quando iniciou as pesqui-sas para obtenção do título de mestre no Programa de

Pós-Graduação em História da Uni-versidade Estadual de Campinas, o historiador Aldrin Moura de Figuei-redo projetava investigar práticas de feitiçarias e magia nos jornais que circulavam em Belém do Pará, nos anos fi nais do século XIX, com o objetivo de “recuperar as formas

de religiosidade popular na capital da borracha”.

Nascido e criado na Amazô-nia, Aldrin, segundo narrou no livro A cidade dos encantados: pajelanças, feitiçarias e religiões afro-brasi-leiras na Amazônia – 1870-1950, esperava encontrar de tudo nos jornais,“bruxas voando em vas-souras, magia negra e, quem sabe, algum benandanti perdido na selva

Seres abomináveis apareciam nas ruasRaimundo de Belém era

natural do Ceará e apresentava-se como “o menino inspirado de Mua-ná”. Ele se tornara conhecido da polícia pela prática de atividades ilícitas nos arredores da Cruz das Almas (Arcipreste Manoel Teodo-ro), onde costumava enganar os incautos “usando um arco de ferro e um pequeno espanador de penas, que serve de flecha, e uma garrafa contendo água podre, misturada sabe lá com quê”, segundo a no-tícia transcrita pelo historiador.

A Cidade dos Encantados é um livro que revela ao leitor um lado pouco estudado da Belém da Belle Époque. A cidade que Aldrin Moura de Figueiredo reconstrói

não é das grandes avenidas aber-tas para o melhor deslocamento do capitalismo, mas é uma cidade de ruas de terra batida e grandes alagados, como “a Estrada da Conselheiro Furtado, no bairro de Árvore Grande”, onde residia, numa pequena cabana, Tia Josefa, conhecida no local pela habilidade de curar malefícios ou de “os pôr em qualquer pessoa que por des-graça se atravancar na sua frente”.

Ruas nas quais, em 1886, apareciam seres abomináveis, como escreveu o jornalista Pádua Carvalho informando sobre um porco encantado que assombrava os moradores da Rua Bailique, ao lado do elegante Largo da Pólvora,

onde se construiu o Theatro da Paz. Já os moradores da Travessa da Glória (Rui Barbosa) temiam não um porco, mas um outro animal encantado, um jacamim, enquanto os da Rua do Espírito Santo (Dr. Assis) eram incomodados pelo aparecimento noturno de um burro.

Todos aqueles seres encan-tados se juntavam no Largo da Sé, que se comunicava com a Praça Bagé (nas proximidades do Arse-nal), formando uma das regiões de maior incidência de feitiçarias, como Aldrin percebeu nas leituras dos jornais da época em que Belém aspirava ao modelo francês de civilização e modernidade.

amazônica”, mas o que o espantou foi ter encontrado pajés, que, para ele, eram coisas de índio que vivia no mato. “Não me parecia possível que existissem pajés na cidade de Belém dos áureos tempos da borra-cha”, escreveu.

Conquanto a cidade vivesse um momento de modernização, aspirando a tornar-se uma urbe aos moldes franceses, na qual transita-vam grandes nomes da arquitetura e pintura italiana, capitalistas de diferentes nacionalidades e consumiam-se produtos fi nos, im-portados da Europa e dos Estados Unidos, aqui chegados em modernos paquetes, os jornais traziam, nas mesmas edições que anunciavam esse glamoroso momento, notícias reveladoras de um lado sombrio, certamente pouco interessante para as autoridades.

Tratava-se de notícias sobre “pajés presos, invasões a casas de feiticeiras, denúncias de bruxarias, notícias sobre o aparecimento de meninas santas, curas mágicas, as-sassinatos por feitiçarias”, como a reportagem sobre a prisão do pajé Raimundo de Belém, publicada na edição do Jornal Diário de Notícias, de fevereiro de 1885.

O Largo da Sé era a região de

maior incidência de feitiçaria.

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Migrantes

Cearenses na capital da borracha

Mas a insalubridade não tinha limites. Uma onda de peste bubônica invadiu Belém em 1904. Os moradores das ruas centrais fi -caram alarmados com a quantidade de ratos pelas ruas, pelos becos, pelas valas e pelas galerias da cidade. O governador Augusto Montenegro tratou como uma epidemia. Em mensagem, ele falou que aconteceram casos de peste bubônica em “quase todas as ruas do bairro Comercial, nas ruas Dr. Malcher e Dr. Assis, na estrada de São Jerônimo, na estrada da Independência, na travessa do Jurunas com Mundurucus e em quase todas as casas do Largo da Independência”.

Enquanto lutavam pela sobrevi-vência, os cearenses de Belém assistiam à chegada de muitos conterrâneos vindos dos seringais, ávidos por diversão, bebedeira, comida e prostitutas. Segundo Franciane Lacerda, as atitudes desses seringueiros em relação à forma como gastavam o dinheiro longe da fl oresta “revelam que as histórias de muitos desses homens de forma alguma foram tão somente a de trabalhadores ex-plorados e resignados à solidão da fl oresta”.

Com dinheiro no bolso ou com uma ordem de pagamento que lhes dava direito a receber em fi rmas ligadas ao seringal, em Belém, os seringueiros chegavam e logo adquiriam produtos que lhes conferissem alguma distinção social, como paletós e relógios. Tornavam-se alvo de uma “rede de interesses, que ia desde trapaceiros aliados a donos de hotéis, de lojas, carregadores,

prostitutas e até ciganas criavam variados artifícios para enganar esses homens logo que desembarcavam dos vapores e aporta-vam na capital”.

Mesmo depois que a crise já havia abalado o negócio da borracha, o Jornal católico A Palavra, em março de 1918, continuava denunciando a malha de inte-resses e espoliação à qual os seringueiros se viam presos em Belém, mesmo tipo de denúncia que A Folha do Norte já fi zera há nove anos. Enquanto os jornais pediam providências das autoridades públicas contra os que queriam tomar dinheiro dos nordestinos deslumbrados, os próprios jor-nais colaboravam para consolidar a imagem de homens incautos, que desconheciam o valor do dinheiro.

“Além disso, expressões como “pas-palho, babaquara, caipira, matuto, pobre pato, bilontra serviam para designar esses trabalhadores e criar também uma imagem extremamente pejorativa deles”, escreveu Franciane. Nos jornais, eles aparecem “en-volvidos em confl itos quase sempre relacio-nados ao consumo exagerado de álcool, que ia do modesto paraty até o mais aristocrático champagne”, conforme o incentivo dos acha-cadores de plantão.

Essa face esbanjadora dos migrantes que trabalhavam nos seringais estava muito distante da face de sobrevivência dos que residiam em Belém, muitos deles, na indi-gência. Como se tratava de uma população

Por muitos anos, estudos sobre a mi-gração nordestina ao Pará, na virada do século XIX para o XX, seguiram

o colono em duas rotas distintas: os que se embrenharam nas matas atrás do látex e os que seguiram para a agricultura no Interior do Estado. Esses estudos quase não perceberam Belém, geralmente fl a-grada como um mero ponto de chegada e partida dos migrantes em direção ao interior da selva.

Mas a capital do Pará recebeu um grande número de nordestinos, princi-palmente cearenses, que, por diferentes motivos, resolveram não pegar o trem da

Bragantina nem se aventurar na fl oresta em busca do látex. Em Migrantes cea-renses no Pará: faces da sobrevivência (1889/1916), Franciane Gama Lacerda, professora do Programa de Pós-Gradu-ação em História Social da Amazônia (IFHC/UFPA), acompanha levas de cea-renses, com ou sem famílias, em busca da sobrevivência no campo e na cidade, principalmente em Belém, no tempo da Belle Époque.

Seu estudo revela outro lado da capital, o oposto da cidade que se queria cosmopolita e moderna, segundo o discur-so da remodelação posto em prática por

governantes e elites. Surge, então, uma cidade partida, com um lado provinciano e acanhado, formado por uma grande área insalubre de pântanos, altas matas, cami-nhos alagadiços, casebres de chão batido e cobertura de palha, onde residia uma população pobre, sujeita a epidemias.

Caminhando por essas zonas jun-tamente com a historiadora, vamos penetrando pelos caminhos do “Marco da Légua, da área do Souza à Bandeira Branca, do ramal do Utinga e da Travessa Lomas Valentina, dos bairros da Pedreira, Canudos e Jurunas, todos lugares conside-rados insalubres e focos de impaludismo”.

Quem chegava do seringal trazia dinheiro no bolso grande, a situação incomodava tanto as autoridades locais, que chegaram a obrigar o retorno de muitos deles para o Ceará.

Mas, sem dúvida, observa Franciane Lacerda, “migrantes cearenses e de outros estados nordestinos, imigrantes estrangei-ros, mendigos, embusteiros e outros grupos populares circulavam pelas ruas da cidade buscaram disputar e construir, de diferentes formas, o seu espaço na cidade”.

A cidade brotou diretamente do solo raso e plano, sem outro reforço geográfi co a não ser o da sua esplêndida moldura hídrico-botânica.

Eidorfe Moreira, escritor, 1966 (“Belém e sua expressão geográfi ca”)

ADOLFO LEMOS

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Entrevista

Amazônia: uma terra de encontros � Walter Pinto

A Amazônia constitui uma ‘terra de encontro’. Os imigrantes europeus e

asiáticos que aqui chegaram passaram a partilhar o espaço com grupos indígenas e com os africanos que chegaram como escravos. Todos deixaram suas marcas em nossa cultura. Na entrevista que se segue, a pro-fessora Marília Ferreira Emmi, socióloga, doutora em Ciências Socioambientais, professora as-sociada do Naea/UFPA e autora dos livros Oligarquia do Tocan-tins e domínio dos castanhais; Italianos na Amazônia (1870-1950): pioneirismo econômico e identidade e Um século de Imigrações Internacionais na Amazônia brasileira (1850-1950), fala sobre o processo imigratório na região.

Imigração na Amazônia

Imigração é um con-ceito histórico que deve ser analisado no contexto em que ocorre. Desse modo, o proces-so migratório conhecido como Grande Migração (da segunda metade do século XIX ao início do século XX), em que europeus e asiáticos, em grandes levas,

se dirigiram à América, apre-sentou características que o distinguem do processo atual. O significativo progresso técnico na indústria e na agricultura contribuiu para gerar um ex-cedente demográfico que a economia não tinha capacidade de absorver: o excedente foi canalizado para o continente americano. Essa onda migrató-ria atendia tanto os interesses dos países de origem, na trans-ferência de excedentes popula-cionais, como as demandas dos países de destino, entre eles, o Brasil, que via na absorção des-ses fluxos humanos um modo de resolver seus problemas de povoamento e carência de mão de obra, decorrentes da aboli-ção da escravatura. A Amazônia constituiu espaço de chegada para imigrantes que buscavam oportunidades de trabalho, no rastro das riquezas da econo-mia da borracha, objeto de intensa propaganda no exterior.

Portugueses

A presença portuguesa no solo brasileiro é peculiar. Nos primórdios da ocupação, chegam como colonizadores. Após a Independência, os que aqui estavam se tornam bra-

sileiros naturalizados. Já na segunda metade do século XIX, milhares de portugueses ingres-sam no Brasil, na condição de imigrantes. Essa mudança de estatuto vai interferir direta-mente nas formas de inserção na sociedade brasileira. No Período Colonial, participavam da elite burocrática, ocupando altas posições nos postos admi-nistrativos. Já na condição de imigrantes, passam a disputar, com outros grupos, funções subalternas nas cidades ou vão empregar-se como lavradores nas fazendas. A imigração por-tuguesa na Amazônia veio for-talecer o grupo de portugueses que aqui residia.

Europeus no meio rural

A primeira referência de que se tem notícia sobre europeus no meio rural amazô-nico é a de um grupo formado por franceses, italianos, es-panhóis, portugueses, belgas, alemães, ingleses e suíços, o qual foi introduzido em 1875, na colônia de Benevides. Bene-vides não foi uma experiência exitosa para fixar colonos euro-peus no interior do Pará: mui-tos abandonaram os seus lotes, que depois foram ocupados por

nordestinos. O insucesso dessa experiência não impediu que novas experiências tomassem curso no início do Período Republicano. Lauro Sodré criou um programa de colônias agrícolas destinadas a receber europeus. No auge da borra-cha, era necessário dinamizar o setor agrícola afetado pela expansão da economia gomí-fera, permitindo solucionar os problemas de abastecimento de gêneros alimentícios para Belém. Ao longo da estrada de ferro de Bragança, foram criadas as colônias Marapa-nim, Benjamin Constant e Jambu-Açu. No governo Paes de Carvalho, foram criados os núcleos José de Alencar, Santa Rosa, Ferreira Pena, Annita Garibaldi e Ianetama.

Espanhóis

O ingresso de imigrantes espanhóis no Pará teve seu início por contratos firmados entre o Estado do Pará e os agentes de imigração Francisco Cepeda e Emilio de Castro Mar-tins, que ,entre 1896 e 1900, introduziram no Pará cerca de 13 mil espanhóis. Esses imigran-tes foram distribuídos entre os núcleos Benjamim Constant,

Marília Ferreira eMMi

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Entrevista

Monte Alegre e Jambu-Açu. Mais tarde, espalharam-se por vários núcleos coloniais, onde passaram a partilhar a terra com outros europeus e com agricultores brasileiros, prin-cipalmente nordestinos. Mas os espanhóis que chegaram ao Pará não se dirigiram somente às colônias agrícolas. Uma parcela permaneceu na capital, na qual passou a exercer ati-vidades tipicamente urbanas: comerciantes, jornaleiros, sapateiros, alfaiates, estiva-dores, entre outras. A eman-cipação dos núcleos agrícolas, em 1902, agravou os problemas encontrados pelos colonos para permanecer nos lotes. Muitos abandonaram as terras e diri-giram-se a cidades da região bragantina, a Belém ou ainda seguiram trajetória em direção a outros Estados. Em Bragança, ainda podem ser encontrados descendentes desses imigrantes que povoaram o Núcleo Benja-min Constant.

Italianos

Desde os fi ns do século XVII , registrou-se, na Amazô-nia, uma “presença erudita” de pintores, arquitetos e en-genheiros responsáveis pela construção de obras públicas e particulares, de interesse da elite da borracha. Entretanto a

entrada de italianos na Amazô-nia, na situação de imigrantes, deu-se de forma mais sistemá-tica, a partir de 1899. Nesse ano, por meio de imigração subsidiada, chegaram famílias de agricultores para povoar as colônias agrícolas Ianetama e Annita Garibaldi. Na mesma época, estendendo-se até as primeiras décadas do século XX, outro segmento forma-do por artesãos e pequenos proprietários agrícolas do sul da Itália, numa imigração por conta própria, dirigiu-se para as capitais e cidades amazôni-cas. Muitos se fi rmaram como comerciantes, houve também segmentos que passaram a exercer atividades tipicamente urbanas, que exigiam me-nor qualifi cação profi ssional, como engraxates, sapateiros e ferreiros.

Sírios e libaneses

Embora seja registrada, na literatura, a presença de fi rmas comerciais de libaneses em Belém e Manaus, no fi nal do século XIX, os sírios e os libaneses começaram a chegar à Amazônia, em maior volu-me, no início do século XX. A imigração síria e libanesa não contou com nenhum tipo de apoio ofi cial, quer na região de origem, quer na região de

destino. Foi uma imigração de caráter espontâneo, que se dirigiu preferencialmente aos centros urbanos. Ao chegarem às cidades amazônicas, além de enfrentarem obstáculos comuns aos outros fl uxos mi-gratórios, havia as barreiras da língua e da cultura árabe, com diferenças marcantes em relação à cultura do mundo ocidental. A trajetória mais co-mum era de mascates, peque-nos comerciantes, empresários. Na Amazônia, adotaram a par-ticularidade da mascateação fl uvial – o regatão.

Japoneses

Quando a primeira leva de imigrantes japoneses apor-tou em Belém, em 1929, já encontrou uma área partilhada por componentes de outros fl uxos migratórios, sobretudo europeus. Essa imigração re-alizou-se baseada em acordos governamentais e teve suporte na concessão de extensas áreas de terras para investidores ja-poneses, para implantação de colônias agrícolas. Não houve sucesso na implantação desse projeto, parte dos imigrantes retornou ao Japão e outros migraram para São Paulo. Um grupo dirigiu-se para os arre-dores de Belém e um pequeno grupo permaneceu em Tomé-A-

çu. As concessões de extensas áreas feitas pelo governo do Pará, no fi nal da década de 1920, foram anuladas em 1942, quando, no contexto da Segun-da Guerra Mundial, se deu a ruptura das relações diplomá-ticas do Brasil com os países do Eixo e foram confi scados os bens dos italianos, alemães e japoneses residentes no Brasil. Na década de 1950, inaugura-se outro momento da imigra-ção japonesa na Amazônia. A imigração do pós-guerra tem outras características, passa a ser dirigida aos projetos de colonização.

Difi culdades na Guerra

Além da barreira da língua, os japoneses enfrenta-ram, no contexto da Segunda Guerra Mundial, junto com os alemães e os italianos que aqui se encontravam, situações de hostilidade por pertencerem a países inimigos dos aliados. Em 1942, como aconteceu em alguns Estados brasileiros, também aqui, no Pará, houve o movimento conhecido como “quebra-quebra”, que resultou na depredação do patrimônio desses três grupos de imigran-tes, na proibição de ensino da língua, nas prisões e até em situações de confi namento em Acará e em Tomé-Açu.

Ver-o-Peso tem na sua lama e nas velas que se levantam para o sol a história áspera e obscura dos barqueiros paraenses e o

misterioso poder de todo o inesperado encanto de Belém.Dalcídio Jurandir, escritor, 1941 (“Revista Novidade”,

número 21).

FOTOS ADOLFO LEMOS

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Alimentação

Mesa paraense ganha novos hábitosO período compreendido

entre as décadas de 1850 e 1900 assinala

um crescimento nunca visto na economia amazônica, graças à exportação de borracha para os Estados Unidos e a Europa, para uso nas modernas engre-nagens surgidas com a Revolu-ção Industrial. Como principal fornecedora daquela que foi uma das matérias-primas mais importantes da época, a Ama-zônia pôde experimentar uma transformação profunda não só na economia como também na arquitetura, na urbanização, na demografia e nos costumes

da sociedade, em especial na alimentação.

À medida que o capital foi se concentrando em mãos de uma elite regional, novos padrões de sensibilidades e gostos foram se formando, guiados pelo ideal de civili-zação, segundo um modelo, principalmente francês, de comportamento e modernida-de. Embora muitos produtos importados passassem a com-por as mesas mais sofisticadas dos detentores do capital, não se abriu mão de muitos produtos fabricados no interior do Estado, entre os quais, a fa-

rinha de mandioca, que, ainda hoje, reina absoluta.

Em Do que se come: uma história do abasteci-mento e da alimentação em Belém – 1850-1900, a histo-riadora Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo ajuda-nos a entender um pouco mais sobre a sociedade belenense da segunda metade do século XIX, por meio do que era le-vado à mesa. Realizado como pesquisa no Programa de Pós--Graduação em História Social da Amazônia, da UFPA, o estu-do foi publicado pela Editora Alameda, de São Paulo.

Uma das contribuições mais importantes do trabalho é questionar um antigo mito propalado pelos administra-dores da Província do Pará, e repetido por vários autores, segundo o qual, a extração da borracha teria sido res-ponsável pelo abandono das áreas agrícolas e da pecuária paraense no período assina-lado, em função da fuga de mão de obra para os seringais, causando a carestia e a crise de abastecimento nos merca-dos, nas feiras e nas vendas em Belém, afetando a mesa dos belenenses.

População enfrentava crise de abastecimento “Não creio poder dizer

que tais crises existiram tão somente pelo boom da borra-cha. Trabalho com a ideia de que, apesar da borracha ter sido o grande produto para o comércio e ter tido uma gran-de propagação de braços que foram trabalhar na economia da goma elástica, as crises tão propaladas tinham outros moti-vos que levavam aos momentos de carestia em que os produtos

agrícolas e alimentares ficavam a preços elevados ou ainda a uma procura maior que a oferta”, diz Sidiana de Macêdo.

Um fator que impactou na crise foi o crescimento demográfico havido no Pará. De 1862 a 1900, a população cresceu de 18 mil para 96 mil habitantes. “O fato mais significativo de se perceber é que a população crescia em índices elevados e que havia

provavelmente uma necessi-dade de maior quantidade de alimentos”.

Outro fator apontado para a crise foram as epi-demias. Elas causavam não somente mortes mas também fome. A cólera de 1855, por exemplo, segundo o então presidente da Província, Rego Barros, “affectou quase exclu-sivamente á população de cor”, espalhando-se rapidamente por toda a Província.

Segundo a pesquisa-dora, outro motivo eram os frequentes roubos de gado, como ocorriam nas fazendas do Marajó, a principal zona de abastecimento de carne para Belém. O gado roubado era exportado para Caiena a preços mais atraentes. Não por acaso, o presidente Couto de Magalhães dizia, em Relatório dos Negócios da Província de 1864, que “o furto de gado ali

tem sido elevado à categoria de indústria licita, de forma que os bons fazendeiros dão-se por muito felizes quando refe-rem que durante tal anno só perderão mil cabeças de gado”.

Por vezes, a crise de carestia e de abastecimento acontecia pela dificuldade de infraestrutura da região. Não havia como escoar parte da produção de alguns municípios prejudicados pela ausência de linhas regulares de navios e de estradas, pela inexistência de pontes sobre rios e pela impos-sibilidade de tráfego em deter-minados trechos fluviais. Soma-se a isso o problema causado por enchentes e alagamentos, que arrasavam a lavoura e o pasto. Em 1859, os pecuaristas de Monte Alegre, Santarém, Óbidos e Gurupá avaliavam, por exemplo, a perda de 50 mil cabeças na grande enchente do Amazonas.

Ninguém pode imaginar o que é um “casquinho de caranguejo” distraidamente pulverizado com farinha-d’água.

Mario de Andrade, escritor, 1943 (“Os filhos da Candinha”)

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AlimentaçãoO peixe e a farinha já tinham a preferência popular

Apoiada em relatórios, imagens, números, jornais e memórias, Sidiana de Macêdo construiu, com maestria, uma leitura da sociedade belenense dos Oitocentos em sua relação com a comida. No início do negócio da borracha, ainda na primeira metade do século XIX, os moradores de Belém alimen-tavam-se, principalmente, de produtos vindos do Interior, tra-zidos nos barcos que ancoravam nos portos da cidade.

Do Baixo Amazonas e das fazendas do Marajó, prin-cipalmente, vinham os bois para abate na capital, mas nem sempre em quantidade sufi cien-te para alimentar todos que se dirigiam aos açougues em busca do produto. A carne verde ou salgada era, então, substituída pelo pescado, fresco ou salgado, com destaque para o pirarucu, a gurijuba, o tambaqui e a tainha, entre outros.

Durante o período es-tudado, a autora constatou a preferência do paraense pela farinha de mandioca, desde sempre um produto muito consumido na Província. A cul-tura da mandioca garantia bons lucros na terra da farinha. É o que nos diz, em 1874, o então vice-presidente da Província, Pedro Vicente de Azevedo: “nem um cultivador e fabrican-te d’este gênero teve jamais de arrepender-se de dedicar-se a essa cultura”.

Mas a crise de carestia e abastecimento acontecia e os gestores da Província tinham de resolver o problema que afetava indistintamente os moradores. Uma das medidas foi incentivar a importação de produtos de ou-tras Províncias, principalmente Ceará e Rio de Janeiro.

Aos poucos, alguns cos-tumes à mesa foram se modifi -cando, com a oferta de produtos

industrializados, mas nunca totalmente extintos. Emblemá-tica desse tempo de mudança, a tradicional manteiga de tar-taruga, produzida no Interior e usada em frituras de diversos alimentos, foi substituída por manteiga importada, inglesa ou francesa.

Marketing da época – Manteiga inglesa, vinhos Bordeaux e do Porto, azeite português, baca-lhau, sardinhas, queijos eram alguns dos produtos importados e consumidos não somente pelos detentores do capital em Belém mas também por uma categoria ascendente, formada por profi s-sionais liberais e funcionários públicos. Além das chamadas “bebidas espirituosas” e dos alimentos fi nos, a Europa e os Estados Unidos forneciam tam-bém gêneros de primeira ne-cessidade, como o sal e o trigo.

Pegando carona na onda

civilizatória e refi nada da épo-ca, a incipiente indústria pa-raense usava de toda a criati-vidade para não fi car atrás na preferência dos consumidores. De acordo com Sidiana de Macê-do, a Fábrica Palmeira passava a ideia de refi namento de seus produtos por meio dos nomes dque lhes eram dados, como consta no catálogo de seus biscoitos: Albert, Almont Nut, Cream Cracker, Five o’Clock Tea, Ginger Nut, Jam Sponge, Limon Nut, Petit Beure, Sugar Waters, Sandwich e Table.

O livro Do que se come: uma história do abastecimento e da alimentação em Belém, 1850-1900 enfoca a questão da alimentação por diversos ângulos. Aqui selecionamos al-guns desses aspectos, mas sua leitura certamente enriquecerá os conhecimentos sobre o tema e deliciará os leitores. Bom apetite!

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8 - Beira do rio - Edição EspEcial - BElém 400 anos, 2016

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Freguesia

Tabernas e hotéis no século XIX Atualmente, com as gran-

des cadeias de supermer-cado dominando o varejo,

existem poucas tabernas, princi-palmente nos bairros mais cen-trais de Belém. A Santa Quitéria, na esquina da 14 de Março com a Boaventura da Silva, é uma remanescente dos tempos em que o Umarizal ainda não era um bairro de grandes edifícios, em que reside uma população de classe média alta.

Em suas prateleiras bem fornidas, a clientela, formada basicamente por vizinhos, pode comprar produtos de limpeza e alguns gêneros alimentícios, que, porventura, tenham acaba-do na dispensa. Outros clientes, mais habituais, vão quase todos os dias tomar uma cerveja e jogar conversa fora. Mas, não há dúvida, os clientes dessas vendas de esquina são cada vez mais raros.

No século XIX, as ta-bernas eram muitas, como nos conta Sidiana Macêdo, no último capítulo do livro Do que se Come. Elas eram “espaços próprios da venda de artigos onde se podia encontrar desde café até mesmo pirarucu ou bacalhau; eram assim detentores de certa variedade que atendiam dos mais simples aos mais exigentes fregueses”.

As antigas tabernas ge-ralmente ocupavam a parte da frente das residências de seus proprietários ou o pavimento inferior de um sobrado. Eram, portanto, estabelecimentos fi -xos, pelos quais os proprietários pagavam impostos. Esta obriga-

ção colocava, muitas vezes, em confronto os taberneiros com as quitandeiras, que lhes faziam concorrência e não pagavam impostos.

A autora encontrou no jornal O Monarchista Paraense, de março de 1852, o anúncio de uma taberna que se identifi cava como barateira, na qual os clien-tes podiam adquirir “chá hycson, vinho tinto de Lisboa, massas fi nas, doces de goiaba, açúcar refinado, manteiga inglesa e francesa, cominho, erva-doce, cerveja, azeitonas, chouriços, presuntos e outras miudezas e pertencentes a uma taberna”.

Mas havia também ou-tras tabernas menos sofisti-

cadas, “lugares em que havia brigas, bebidas e cuja população vizinha estava sempre pedindo providências à patrulha, até porque eram também luga-res comuns para os escravos encontrarem-se para as suas arruaças”. A autora cita uma dessas tabernas, localizada na rua Nova, canto da São Mateus (Boulevard Castilho França com Padre Eutíquio). Chamava-se “Canto d’Alegria” e fazia o papel de bodega e rendes-vouz noturno, local “onde quase sem-pre há reunião de pretos”, como se referiu o Jornal Diário do Gram-Pará, de junho de 1869.

O livro fl agra um momen-to especial na vida da cidade: o

surgimento dos primeiros hotéis com algum conforto para hós-pedes, muito diferente do Hotel Pará, que, em 1859, indicaram ao viajante Avé-Lallemant, des-crito por ele, com horror, como semelhante aos “albergues por-tugueses, os cortiços do Rio”. A sujeira e o mau cheiro causaram náusea no viajante, que optou por se hospedar na casa de compatriotas.

Segundo Sidiana Macêdo, ao que tudo indica, hotéis me-lhor estruturados, dispondo de restaurante, inclusive aberto ao público externo, só apareceram na década de 1860, conforme pôde constatar a autora na lei-tura dos jornais.

Tabernas e hotéis no século XIX