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Biopoder, Trabalho e Valor - Simone Sobral Sampaio

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Biopoder, Trabalho e Valor - Simone Sobral Sampaio

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  • LUGAR COMUM N31, pp. 23-

    Biopoder, Trabalho e Valor

    Simone Sobral Sampaio

    O pensamento revolucionrio nada tem em comum com a idolatria. Os programas e os prognsticos verifi cam-se e corrigem-se luz da experincia, que para o pensamento humano a suprema instncia.

    (...)A teoria nada mais do que a realidade generalizada. Em uma atitude honesta com respeito teoria revolucionria exprime-se a apaixonada

    vontade de refundir a realidade social.

    Leon Trotsky, Noventa anos do Manifesto Comunista

    O capitalismo uma relao social, como modo de produo produz tudo, inclusive formas de vida. Sua confi gurao espraiada de reproduo social assujeita a sociedade inteira. Ele se impe como fora coletiva para diminuir a precariedade de seu funcionamento particular. O capitalismo precisa de tudo para sobreviver, cada brecha que seja serve-lhe de pontos de apoio para garantir sua sobrevivncia.

    Nessa economia do biopoder, de produo de formas de vida, o capitalis-mo reconduz processos criativos e inventivos para reduzi-los, pois a enormidade desses processos de difcil digesto, por isso esse modo de produo e sua socia-bilidade mercantil sobrevivem custa de tudo coisifi car. Produzir a vida reifi cada, eis o elixir capitalista.

    O termo Biopoder foi elaborado por Foucault para descrever os novos dispositivos e agenciamentos das relaes de poder do fi m do sculo XVIII e incio do XIX, centrados na ideia de populao e na gesto da vida. Quanto a essa tecnologia do poder, afi rma Foucault (1979),

    uma das grandes novidades nas tcnicas do poder, no sc.XVIII, foi o surgimento da populao, como problema econmico e poltico: populao-riqueza, po-pulao mo-de-obra ou capacidade de trabalho, populao em equilbrio entre seu crescimento prprio e as fontes de que dispe. Os governos percebem que no tem que lidar simplesmente com sujeitos, nem mesmo com um povo, porm com uma populao, com seus fenmenos especfi cos e suas variveis pr-prias: natalidade, morbidade, esperana de vida, fecundidade, estado de sade, incidncia das doenas, forma de alimentao e de habitat (p. 28).

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    A populao torna-se problema econmico e poltico, possuindo fen-menos e variveis especfi cos. Assiste-se a formao de uma tecnologia excessiva de poder que age duplamente: pela administrao dos corpos e pela gesto cal-culista da vida, com vistas sujeio dos corpos e o controle das populaes (1979:131). o que Foucault denomina como a era do Biopoder. Uma tecnolo-gia de poder previdente e preventiva sobre a populao para fazer viver, para proteger essa massa de indivduos e controlar a mortalidade, ou melhor, oferecer segurana quanto aos seus riscos internos.

    Controlar os processos da vida atravs de mecanismos contnuos, ainda mais nesses tempos em que predomina a desdiferenciao entre todas as esfe-ras (poltica, social, econmica, biolgica, cultural, cientfi ca). Uma sociedade normalizadora o efeito histrico de uma tecnologia de poder centrada na vida (FOUCAULT, 1979, p.135).

    Porm, o exerccio desse mecanismo do poder no se reduz a si mesmo, mas possui uma intencionalidade (miras e objetivos) imanente s demais relaes sociais, ou seja,

    esse bio-poder, sem a menor dvida, foi elemento indispensvel ao desenvolvi-mento do capitalismo, que s pde ser garantido custa da insero controlada dos corpos no aparelho de produo e por meio de um ajustamento dos fenme-nos de populao aos processos econmicos (FOUCAULT, 1979, p. 132).

    O desenvolvimento do capitalismo torna imprescindvel essa alterao na tecnologia do poder, mas ao mesmo tempo, essa modifi cao que torna pos-svel tal desenvolvimento: h uma constante implicao entre o crescimento do capitalismo e a biopoder. Se a garantia da manuteno desse modo de produo passa pelos aparelhos de Estado, o biopoder age internamente no processo econ-mico de gesto do capital, sendo-lhe funcional e operatria,

    garantindo relaes de dominao e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulao dos homens do capital, a articulao do crescimento dos grupos humanos expanso das foras produtivas e a repartio diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possveis pelo exerccio do biopoder com suas formas e procedimentos mltiplos (ibidem, p. 133).

    Parece que Foucault leu Marx, quando este diz a populao uma abs-trao se deixo de lado as classes que a compem (Psfacio. In: Contribuio Crtica da Economia Poltica).

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    Nos Grundrisses, na passagem Maquinaria e mais-trabalho. Recapitula-o da Teoria da Mais-valia em geral, Marx descreve a violenta transformao da maior parte da populao em assalariados e a disciplina, que converte sua existncia em meros trabalhadores, o uso de medidas coercitivas inclusive para transformar trabalhadores em mera capacidade de trabalho. Para isso, toda uma populao precisou ser acostumada ainda que pela fora ao trabalho assala-riado.

    O que estou querendo dizer com essas duas passagens acima que o ter-mo populao e fora de trabalho aproximam-se. Preparar e cuidar da populao necessria ao desenvolvimento do capitalismo formar a fora de trabalho ne-cessria ao seu desenvolvimento19. Mesmo porque o capitalismo precisa conviver com todas as contradies de sua processualidade.

    A classe trabalhadora a primeira populao. A gesto dessa vida sempre foi cuidada pelo capital, pois que a classe possuidora da fora de trabalho, isto , da soma de todas as aptides fsicas e intelectuais existentes na corporeidade. Nessa defi nio de Marx no est determinada nenhuma capacidade particular, nem mesmo um determinado tipo de trabalho. Mas, potncia de produzir, algo primordial ao capital.

    No corpo do trabalhador est a capacidade genrica de produzir. O capi-talista compra essa fora de trabalho, faz com que essa capacidade transforme-se em ato, em trabalho, todavia essa mercadoria comprada pelo capitalista no se desprega do seu possuidor. A fora de trabalho reside na vida do trabalhador, s por isso ao capitalismo interessa essa vida. O governo da vida, o governo de algo intangvel, que s se apresenta como simples capacidade genrica.

    No capitalismo, a classe trabalhadora defi ne-se como composta por aque-les que s possuem sua fora de trabalho nessa relao. Ao invs, do centramento na solido, na carncia, a formulao de uma anlise produtiva para pensar a luta contra o capitalismo, ocupa-se do entendimento do que essa capacidade. No presente, como central produo, estaria o trabalho caracterizado pelo conheci-mento, pelo saber, pelo intelecto geral nas palavras de Marx.

    Deslocar-se da analtica centrada na solido parece difcil, pois que a tendncia de autonomizao do trabalho de difcil verifi cao devido s deter-minaes sociais nas quais ele est emaranhado.

    No infl uxo do capitalismo, a prpria tendncia na qualidade do trabalho, sob a gide do trabalho imaterial, apresenta-se como dilemas a serem enfrentados por toda a classe trabalhadora. Quer dizer, o que fazer quando o relgio se diluiu,

    19 Sobre a relao biopoder e fora de trabalho ver Virno, Gramtica da Multido, 2003.

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    quando seus ponteiros saram do seu interior estreito, saram de uma defi nio rgida que demarcava o horrio de trabalhar? O que fazer com a precarizao dos contratos, com a polivalncia que desqualifi ca a formao de uma apropriao das funes, e com a mudana de papis e de lugares que faz com que tudo fi que raso na apreenso da experincia?

    Sem dvida a hegemonia do trabalho imaterial impregna outros tipos de trabalho, e toda a sociedade. Igualmente, quando a tnica do trabalho concentra-se nas ideias e nos afetos, os processos de produo de alienao so ainda mais penosos, pois quanto maior a potncia do trabalho, mais intensos so os meca-nismos para garantir seu controle no cerco da propriedade privada do capital. As qualidades do trabalho imaterial so as mesmas causas dos efeitos deletrios que sentimos, medida que cada qualidade que possui impulsiona uma ameaa direta ao capitalismo, o que o faz responder de forma violenta.

    Nesse quadro, o proletariado hoje pode ser entendido como uma vasta categoria que inclui todo trabalhador cujo trabalho direta ou indiretamente ex-plorado por normas capitalistas de produo e reproduo, e a elas subjugado (HARDT, NEGRI, 2001, p.71). Essa categoria assim reelaborada diminui a fron-teira entre a esfera econmica e cultural, e, principalmente, aproxima-se de Marx quando este analisa o proletariado como categoria estritamente econmica, na submisso do trabalho ao capital, mas tambm como categoria poltica na produ-o de si. Talvez, essa proximidade seja maior ainda quando analisada a partir do conceito marxista de trabalho produtivo. Explica Marx em O Capital,

    o conceito de trabalho produtivo, portanto, no encerra de modo algum apenas uma relao entre atividade e efeito til, entre trabalhador e produto do tra-balho, mas tambm uma relao de produo especifi camente social, formada historicamente, a qual marca o trabalhador como meio direto de valorizao do capital (1985, p.106).

    o trabalho que a fonte do capital, da mercadoria e de toda riqueza pro-duzida. Da mesma forma a resistncia o elemento determinante do movimento dessa histria, capaz de criar uma realidade ativa, diferentemente do processo capitalista que funciona reagindo recomposio tcnica e poltica da classe tra-balhadora.

    Se o capital uma relao social, o trabalho imaterial organiza outra relao social20, pois que no produz somente bens restritos esfera econmica,

    20 Hardt e Negri defi nem essa produo de subjetividades como biopoltica. Para esses au-tores, o biopoder situa-se acima da sociedade, transcendente, como uma autoridade soberana,

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    mas conhecimentos, afetos, ideias no mbito da produo e da reproduo social. O que produzido de difcil aferio, defi nido por sua incomensurabilidade. Quer dizer, como medir a produo de subjetividade, a formao poltica e cul-tural de identidades que se realizam no de forma atomizada, mas em processos cooperativos, nos quais a comunicao e o afeto so constituintes de novas redes? (cf. HARDT E NEGRI, 2005, p.101).

    No se trata de instrumentalizar o afeto, a comunicao, a cooperao, a colaborao como se v na farsa capitalista, como moeda de troca do discurso em-presarial. A criao da vida nos processos do trabalho imaterial constitui-se no como tcnica, mas como prxis, em que o agente, a ao e a fi nalidade do agir so inseparveis. Qualitativamente, no se estaria produzindo apenas mais um arranjo tecnolgico, mas subjetividades e potencialidades criativas.

    Nesse processo de produo de outra subjetividade no h separabilidade na organizao estratgica da luta do que caberia ordem poltica, econmica, social e cultural, no apenas porque elas esto juntas na realidade social, mas por-que em cada um destes elementos repousam ativamente os demais, de modo a no mais se distinguirem. Nesse processo, ainda, a luta, os processos de resistncia que constituem a identidade dos sujeitos, nele, a classe determinada pela luta de classes, e no pela carteira de identidade fornecida pelo poder (idem).

    Esses sujeitos no so apenas trabalhadores assalariados, mas so todos aqueles que trabalham sob o domnio do capital (ibidem, p.148). Nesses termos, se o trabalho abstrato a fonte do valor em geral, a medida que servia como equi-valncia entre a quantidade de tempo de trabalho abstrato e quantidade de valor se desmanchou na existncia. Tudo que slido se desmancha no ar21, o concreto relgio de ponto se evaporou na intimidade entre vida e trabalho.

    A resistncia a esse tipo de poder sustenta-se exatamente em seu alvo e objeto, ou seja,

    na vida e no homem enquanto ser vivo. Temos a um processo bem real de luta; a vida como objeto poltico foi de algum modo tomada ao p da letra e voltada contra o sistema que tentava control-la. Foi a vida, muito mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas polticas, ainda que estas se formulem atravs de afi rmaes de direito. O direito vida, ao corpo, sade, felicidade,

    e impe a sua ordem. A produo biopoltica, em contraste, imanente sociedade, criando relaes e formas sociais atravs de formas colaborativas de trabalho (2005, p.135).

    21 Tudo o que era slido e estvel se desmancha no ar, tudo o que era sagrado profanado e os homens so obrigados fi nalmente a encarar sem iluses a sua posio social e as suas relaes com os outros homens (texto do Manifesto Comunista).

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    satisfao das necessidades, o direito, acima de todas as opresses ou alie-naes, de encontrar o que se e tudo o que se pode ser, esse direito to incompreensvel para o sistema jurdico clssico, foi a rplica poltica a todos esses novos procedimentos de poder que, por sua vez, tambm no fazem parte do direito tradicional da soberania (FOUCAULT, 1979, p. 136).

    Na soberania o poder de causar a morte ou de deixar viver, a apreenso das coisas, do tempo, dos corpos e, fi nalmente, da vida; culminava com o privil-gio de se apoderar da vida para suprimi-la (ibidem, p.128).

    Esse tipo de poder talvez explique o estranho fato de que, ainda em 1955, a fundao da primeira Liga Camponesa do Nordeste brasileiro no tivesse como objetivo principal a melhoria das condies de vida dos camponeses da regio aucareira. Josu de Castro nos conta que o objetivo inicial das Ligas fora o de defender os interesses e os direitos dos mortos, no os dos vivos (cf. o texto A reivindicao dos mortos, in: Fernandes e Gonalves, 2007, p.125). Ter sepultura e caixo. As Ligas Camponesas de incio, tinham assim muito mais a ver com a morte do que com a vida, mesmo porque com a vida no havia muito que fazer. Reivindicar direitos na morte diante da total ausncia deles na vida. Tudo isso s tem sentido quando a gente compreende que, para os camponeses do nordeste, a morte que conta; no a vida, desde que, praticamente, a vida no lhes pertence (ibidem, p.126). A vida no pertencia, desde que de escravos de um dono passa-ram a serem escravos do sistema do latifndio aucareiro.

    Ento, caberia perguntar como a vida tem sido objeto da luta poltica atualmente, quais seriam hoje os registros da vida na luta da classe trabalhadora, quando e por que a vida aparece como objeto das lutas polticas? Na defesa da diversidade biolgica, na luta pelo software e hardware livres; luta em torno do acesso ao conhecimento e cultura; pelo acesso gua ou contra as mudanas climticas. Lutas na construo do que se tem em comum, para alm da insero de cada um no mercado de trabalho. As lutas da classe trabalhadora no so de-terminadas particularmente pelo local que esses indivduos ocupam no processo produtivo, mas de acordo com sua vinculao genrica e singular com o mundo. Sobre essa questo muito esclarecedor o que nos diz Deleuze (1998): O sujei-to de direito, enquanto se forja, a vida enquanto portadora de singularidades, enquanto plenitude do possvel, e no o homem enquanto forma de eternidade (p. 123). Atualmente, a luta primordial contra o capitalismo, contra a explorao, no dada fundamentalmente pela diminuio da jornada de trabalho, mas pela ascenso do comum, pela assuno da vida.

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    Se no capitalismo a vida uma mercadoria com uma conta de frete pre-sa a ela (como diria Henry Miller, no Trpico de Capricrnio). O que essas lutas esto demonstrando que a privatizao da vida insuportvel, sendo j possvel e necessrio reconhec-la ao comum.

    Referncias

    DELEUZE, G. Foucault. Lisboa: Vega, 2 ed., 1998.FERNANDES, B.M.; GONALVES, C.W.P. Josu de Castro vida e obra. So Pau-lo: Ed. Expresso Popular, 2007.FOUCAULT, M. Histria da Sexualidade I. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Gra-al, 2 ed., 1979.HARDT, M.; NEGRI, A. Multido. Rio de Janeiro: Record, 2005.LAZZARATO, M.; NEGRI, A. Trabalho imaterial: formas de vida e produo de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A,2001.MARX, K. O Capital: crtica da economia poltica. So Paulo: Nova Cultural, Cole-o Os Economistas, 2 ed., 1985.MARX, K. Elementos Fundamentales para la Crtica de la Economia Poltica. Borra-dor 1857-1858. Vl.2. Buenos Aires, Argentina: Siglo Veintiuno editores, 2005.VIRNO, P. A Gramtica da Multido. Trafi cantes de Sueos editorial, 2003. Dispon-vel em : http://www.nodo50.org/ts/editorial/gramatica.htmhttp://www.nodo50.org/ts/editorial/gramatica.htm

    Simone Sobral Sampaio Assistente Social e professora no Departamento de Servi-o Social da Universidade Federal de Santa Catarina

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