Celestin Freinet Pedagogia Do Bom Senso

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  • 2Clestin Freinet

    PEDAGOGIADO BOM SENSO

    Traduo: J BAPTISTA

    Martins Fontes

    So Paulo 2004

  • 3Ttulo original.. LES DITS DE MATHIEU.Copyright Delachaux et Niestl, S.A. Neuchtel; /967; 1973.Copyright 1985, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,So Paulo, para a presente edio.

    1 edio: fevereiro de 1985

    7 edio: novembro de 2004

    Traduo: J. BAPTISTA

    Reviso e texto final: Monica Stahel

    Produo grfica: Geraldo Alves

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Freinet, Clestin, 1896-1966.

    Pedagogia do bom senso / Clestin Freinet ; traduo J. Baptista.7. ed. So Paulo : Martins Fontes, 2004. (Psicologia e pedagogia.)

    Ttulo original: Les dits de Mathieu. ISBN 85-336-2014-4

    1. Crianas Desenvolvimento2. Educao Mtodos experimentais3. Educao Filosofia I. Ttulo. II. Srie.

    04-4243 CDD-370. 1

    ndices para catlogo sistemtico:

    I. Educao : Filosofia 370.1

    Todos os direitos desta edio para o Brasil reservados Livraria Martins Fontes Editora Ltda.Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 So Paulo SP BrasilTel. (II ) 3241.3677 Fax (11) 3105 .6867

    e-mail: [email protected]

    http://www.martin.sfontes.com.hr

  • 4Sumrio

    Prlogo .......................................................................................................................................... 9

    1. Uma pedagogia de bom senso ................................................................................................ 11

    Uma pedagogia de bom senso ................................................................................................ 11

    Os caminhos da verdade ......................................................................................................... 11

    O perigo dos fazedores de ns................................................................................................ 12

    O bom agricultor, ou o ciclo da educao............................................................................... 13

    O mestre e o aprendiz ............................................................................................................. 14

    As guias no sobem pela escada ........................................................................................... 14

    2. Fazer brilhar o sol .................................................................................................................... 16

    Os aventureiros do Kon-Tiki .................................................................................................... 16

    A histria do cavalo que no est com sede........................................................................... 17

    O cavalo no est com sede: ento troquem a gua do tanque! ........................................... 18

    Fazer a criana sentir sede ...................................................................................................... 19

    Em primeiro lugar fazer jorrar a fonte .................................................................................... 19

    Voltar ao seu ritmo.................................................................................................................. 21

    Um nada que tudo................................................................................................................ 21

    Esqueceram a ma................................................................................................................. 22

    A vida prepara-se pela vida..................................................................................................... 23

    Nosso laboratrio a criana.................................................................................................. 23

    Sejam humanos....................................................................................................................... 24

    3. O trabalho que ilumina............................................................................................................ 26

    A bandeira azul, branca e vermelha........................................................................................ 26

    Antes depois ....................................................................................................................... 26

    Quero colh-las!...................................................................................................................... 27

    O trabalho que ilumina ........................................................................................................... 28

    Por que trabalhar? .................................................................................................................. 28

    O trabalho em srie................................................................................................................. 29

  • 5O trabalho em migalhas .......................................................................................................... 29

    No faa trabalho intil de soldado ........................................................................................ 30

    No corao do homem............................................................................................................ 32

    O tempo das farndolas .......................................................................................................... 32

    Engrenar na vida...................................................................................................................... 33

    V ao encontro da vida ........................................................................................................... 34

    O nosso trabalho nos unir ..................................................................................................... 34

    4. A pedagogia de casaca ............................................................................................................ 36

    A pedagogia de casaca ............................................................................................................ 36

    Aqueles que no podem ser domesticados ............................................................................ 36

    Jogaram pedras nos lagos ....................................................................................................... 37

    O peso da servido.................................................................................................................. 38

    Tratadores e educadores ........................................................................................................ 39

    Criao moderna ou campo de concentrao ........................................................................ 39

    A escola do pioupiou............................................................................................................... 40

    Crceres de juventude cativa .................................................................................................. 40

    Cuidado com o laminador!...................................................................................................... 42

    Os falsos moedeiros do esprito.............................................................................................. 43

    Madeira macia ou aglomerado ............................................................................................. 43

    Cuidado com o canto haxixe! .................................................................................................. 44

    No desfiladeiro estril ............................................................................................................. 44

    "Finja-se de morto!"................................................................................................................ 45

    Liberados do rito! .................................................................................................................... 45

    Todos ns somos delinqentes............................................................................................... 46

    5. Nunca largue as mos ............................................................................................................. 48

    Nunca largue as mos... antes de apoiar os ps!.................................................................... 48

    Veja o Adriano......................................................................................................................... 48

    Tomar a frente do peloto ...................................................................................................... 49

    Abra pistas............................................................................................................................... 50

    O olho mgico ......................................................................................................................... 50

  • 6Se o conhecimento.................................................................................................................. 51

    Fulgurantes!... ......................................................................................................................... 52

    Escrito em pergaminho ........................................................................................................... 52

    A interrogao......................................................................................................................... 53

    Uma direo sensvel .............................................................................................................. 54

    Educar ou domesticar ............................................................................................................. 54

    Que droga de ancinho!............................................................................................................ 55

    A caneta escolar ...................................................................................................................... 56

    Os "tagarelas".......................................................................................................................... 56

    Em forma!... com a vida e o trabalho...................................................................................... 57

    A observao por iluminao.................................................................................................. 58

    O 3 no vem necessariamente depois do 2 ............................................................................ 59

    Proibido para pedagogos. ....................................................................................................... 59

    2 mais 2 nem sempre so 4..................................................................................................... 60

    Destrua as calhas! ................................................................................................................... 60

    A noo de velocidade ............................................................................................................ 61

    6. Os que andam sobre as mos ................................................................................................. 62

    Os que andam sobre as mos ................................................................................................. 62

    Devo permanecer apoiado nas mos ou nos ps?.................................................................. 62

    Inquietos e vacilantes.............................................................................................................. 63

    De p e de quatro.................................................................................................................... 63

    Jogadores de pedrinhas .......................................................................................................... 64

    Deixai aqui toda a esperana .................................................................................................. 65

    Ser a escola templo ou canteiro de obras? ........................................................................... 65

    Ser a escola canteiro de obras?............................................................................................. 66

    Ser a escola caserna ou canteiro de obras? .......................................................................... 67

    Estufa quente ou ar livre? ....................................................................................................... 67

    Jardineiros e criadores ............................................................................................................ 68

    forjando que nos tornamos ferreiros ................................................................................... 69

    Contar gro-de-bico ................................................................................................................ 70

  • 7Desconfie da saliva!................................................................................................................. 71

    Elimine a ctedra e arregace as mangas!................................................................................ 71

    O "escolastismo" ..................................................................................................................... 72

    Tire o chapu para o passado, tire o casaco para o futuro!.................................................... 73

    Cachorro vira-lata e ces de raa ............................................................................................ 74

    H nascimentos que so ecloses........................................................................................... 75

    Calado novo e sapatos usados............................................................................................... 75

    As minhas idias atropelam-se na entrada............................................................................. 76

    Aqueles que ainda fazem experincias ................................................................................... 76

    Uma mentalidade de construtores ......................................................................................... 77

    7. Uma profisso que frmula de vida ..................................................................................... 79

    Uma profisso que frmula de vida ..................................................................................... 79

    Semeamos o gro das colheitas abundantes.......................................................................... 79

    A embriaguez dos triunfos ...................................................................................................... 80

    Po e rosas .............................................................................................................................. 81

    Ir s profundezas ..................................................................................................................... 81

    O trabalhador homem............................................................................................................. 82

    As preocupaes do sargento ................................................................................................. 82

    A volta das orelhas de burro ................................................................................................... 83

    Evite a prova de fora.............................................................................................................. 84

    H vrias moradas................................................................................................................... 85

    Autocracia ou liberdade .......................................................................................................... 85

    Somos aprendizes ................................................................................................................... 86

    A profisso nos marca ............................................................................................................. 86

    8. E a luz se fez ............................................................................................................................ 88

    No ano de 1959 ....................................................................................................................... 88

    O carreteiro atrasado .............................................................................................................. 89

    Uma pedagogia que j no ousa dizer seu nome ................................................................... 89

    A verdadeira cincia psicolgica ............................................................................................. 90

    O frmito da paz...................................................................................................................... 91

  • 8Se eles mandam! ..................................................................................................................... 92

    E a luz se fez!... ........................................................................................................................ 92

    A noite vir sempre cedo demais............................................................................................ 93

    Colocamos a nossa pedra........................................................................................................ 94

    A vingana dos "realistas" ....................................................................................................... 94

  • 9Prlogo

    Durante cinco anos, publiquei na revista L'ducateur, rgo pedaggico do nosso InstitutoCooperativo da Escola Moderna, uma pgina-guia que intitulei "Dits de Mathieu", em lembrana ricapersonalidade do campons-poeta-filsofo, heri do meu livro L'ducation du travail.

    A inspirao desses Dits encontra-se aqui resumida, no ttulo do captulo 1: "Uma pedagogia de bomsenso".

    Minha longa experincia dos homens simples, das crianas e dos animais persuadiu-me de que as leisda vida so gerais, naturais e vlidas para todos os seres. Foi a escolstica que complicou perigosamente oconhecimento dessas leis, fazendo-nos crer que o comportamento dos indivduos no obedece seno adados misteriosos, cuja paternidade reivindicada por uma cincia pretensiosa, numa espcie de reduto aque a gente do povo, inclusive os professores primrios, no tem acesso.

    Para confirmar a nossa experincia, temos o exultante exemplo das pessoas sensatas de todos ostempos e de todas as raas que vo sempre muito mais longe na compreenso dinmica dos homens doque os mais sbios autores de sistemas e de manuais contemporneos. Sentimos que caminham comsegurana por onde a falsa cincia s nos mostra ddalos e atalhos. Dir-se-ia que so guiadas por uma luzideal, a qual ilumina em profundidade os aspectos mveis da vida. Descobrem e mobilizam foras que oengenho dos homens deveria explorar; e por isso que a convivncia com elas, atravs dos sculos, sempre um enriquecimento apaziguador para os investigadores da verdade.

    Foram alguns desses caminhos e dessas foras, foram algumas dessas evidncias essenciais, quetentei detectar. Na complexidade dos temperamentos, no imbrglio de um meio em que se cruzam e sesobrepem as pistas mais caprichosas, tentei reencontrar algumas das regras simples e eternas da vida.

    Ao faz-lo, e sem menosprezar a contribuio possvel e desejvel de uma verdadeira cincia daeducao, procurei menos explicar do que orientar e me orientar. Coloquei, tateando, os meus sinaisvermelhos e verdes. Experimentei-os para ter a certeza de que funcionavam bem. Verifiquei-lhes asvirtudes enveredando prudente e experimentalmente pelas pistas recm-sinalizadas.

    Alguns dos nossos letreiros j se tornaram familiares aos educadores: no se obriga a beber umcavalo que no est com sede na forja que nos tornamos ferreiros fazer brilhar o sol assumir achefia do peloto estabelecer tiragem deixar de fazer trabalho de soldado no largar as mos antesde firmar os ps, e tantos outros que voc ir encontrar como ttulos, ao longo das pginas desta modestaantologia.

    Ao excesso de palavras de uma cincia que nos ultrapassa ou que ns ultrapassamos s frmulasque, para ns, eram apenas cabealhos obcecantes a serem memorizados , substitumos a simplicidadeelementar de uma trajetria que, por ser a vida, tende sempre a ultrapassar a si prpria at um infinito,sendo a conscincia que temos desse infinito ao mesmo tempo o nosso drama e a nossa grandeza.Voltamos a dar pedagogia aquele aspecto familiar, misto de hesitaes e de audcias, de receios erelmpagos, de arco-ris, de risos e de lgrimas tambm. Voltamos a colocar a educao no prprio seio dodevenir do homem.

    O nosso mrito, alis, no tanto ter repetido, depois de tantos outros, estas verdades de sempre,como ter impregnado e vivificado com elas a prtica das nossas aulas. Desejamos que, ao l-las, nasa emvoc a dvida, que voc hesite como ns nas encruzilhadas e que, junto com milhares de pais e de

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    educadores que j transpuseram os sinais verdes, voc se empenhe intrepidamente na reconsideraoprogressiva dos prprios fundamentos da nossa educao.

    C. FREINET

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    1. Uma pedagogia de bom senso

    Uma pedagogia de bom senso

    Voc vai procurar bem longe os elementos de base da sua pedagogia. Para isso so necessriasconsideraes intelectuais e vocbulos hermticos, cujo segredo s os universitrios possuem. E tradioreferir-se a Rabelais, Montaigne e J. J. Rousseau, para s falar dos pensadores cuja reputao , h muito,inatacvel.

    Mas voc tem certeza de que a maior parte dessas idias que os intelectuais julgam ter descobertono correm desde sempre entre o povo, e de que no foi o erro escolstico que lhes minimizou e deformoua essncia, para monopoliz-la e subjug-la?

    Veja ento como, entre o povo, so tratados e educados os pequenos animais: voc encontrar a aorigem dos grandes princpios educativos aos quais estamos voltando lentamente, quase que de mvontade...

    Nada de aprendizagem prematura, dir o caador. O co novo demais se cansa e se desencoraja. Assuas reaes e o seu faro correm o risco de ficar perturbados para sempre.

    Est certo que o co tem que caar para se formar, mas no demais ao sabor do seu capricho. A caa uma coisa sria, para a qual o co novo ser treinado em companhia de ces excelentes, tendo apenasque seguir o exemplo deles.

    Apetite e motivao: se voc enche o seu co de petiscos que no lhe so especficos, se fica gordo ecevado, por que voc quer que ele cace?

    E quando a lebre for apanhada no bastar p-la logo na bolsa de caa. H toda uma arte do caadorpara satisfazer o co, deixando-o mordiscar o animal morto, mas limitando sua satisfao para faz-locompreender que no deve ser o nico a aproveitar da pechincha.

    Nunca se deve bater nos animais novos. Deixe-os ou faa com que sejam castigados por outrapessoa, se necessrio; mas nunca ser pelo medo que voc alcanar seus fins.

    E os apicultores lhe diro: nada de gestos bruscos que despertam as reaes de defesa dos animaiscom que voc lida confiana, bondade, ajuda e deciso.

    E eu lhe digo que, se fssemos procurar assim, na tradio popular, as prticas milenares docomportamento dos homens na educao dos animais, estaramos em condies de escrever o maissimples e o mais seguro de todos os tratados de pedagogia.

    Os caminhos da verdade

    Como eram deliciosos os fins de maro da nossa infncia, quando os amentilhos floriam nos ramosvermelhos dos vimeiros e as primaveras e violetas nasciam na terra mida que a neve mal haviaabandonado!

    E o barulho que fazamos, ns, as nossas ovelhas e os nossos cachorros, quando levvamos, para

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    saltar pelos prados novos, nossos animais embriagados de sol e de liberdade!

    Um bom pastor, pensvamos ns, avalia-se pela nitidez dos seus gritos, pelos latidos dos ces e peladeciso com que impe uma ordem e uma disciplina de que ele o grande ordenador. verdade quesentamos um prazer malicioso em fazer sentir essa autoridade, era uma espcie de inveja inconsciente quenos levava a contrariar o apetite natural dos nossos cordeiros... Ah! ento voc queria comer brotosmacios... toma uma chibatada, para voc aprender a se emancipar!

    No entanto, eu fazia uma exceo para a minha querida Negrinha, com os seus dois cabritinhos debrincos, de que eu gostava tanto e que me pagavam na mesma moeda. A eles, eu no tinha de comandar;seguiam-me ou danavam a sua alegria de viver, numa farndola deliciosa. E, se o cachorro tocasse neles,com que emoo eu os defenderia! Com que ateno baixava para eles os talos frgeis que elesmordiscavam, e colhia, nas moitas, os brotos macios que eles vinham comer da minha mo!

    Ficava orgulhoso quando eles se saciavam e me gabava de nunca ter levantado a voz, pois ficavamsempre atentos aos meus gestos e aos meus cuidados.

    Duas atitudes! Duas pedagogias!

    Mas a Escola ri-se da humilde experincia dos pastores! Ela tem os seus imponentes e secularescaminhos, que escritores, sbios, administradores eminentes disseram ser caminhos da verdade: Nada defraqueza afetiva! Manter a lei! Habituar os alunos a obedecer, mesmo, e sobretudo, quando a ordem dadacontrariar suas tendncias e desejos. assim que se formam se for preciso com as chibatadas e os ces as personalidades fortes e as almas bem temperadas.

    E se fossem caminhos de iluso e de erro? Se qualquer velho pastor nos provasse, com a suaexperincia decisiva, que nos estamos esgotando em vo numa luta desigual contra a natureza e a vida; senos persuadssemos, algum dia, da vaidade orgulhosa desta autoridade formal material, intelectual emoral , que o manejo hbil e impiedoso do chicote nos d! Se reaprendssemos a acariciar, amar e serviras crianas de caracis loiros, a segur-las pela mo nas passagens difceis, a baixar para elas os galhos queno conseguem alcanar; a nos alegrar ao v-las satisfeitas, ao fim do dia, com um alimento livrementecolhido nas fontes generosas que teramos feito brotar; se soubssemos responder aos inquietos apelosdos alunos em dificuldade e nos acalmar com o espetculo dos saltos de satisfao de seres que sobem atos cumes da cultura, por caminhos que no so forosamente calvrios, mas que so sempre caminhos devida!

    Se soubssemos ajudar as nossas crianas a tornar-se homens!

    O perigo dos fazedores de ns

    O senhor est me perguntando disse o velho pastor se um trabalho difcil conduzir o rebanho,de Saint-Jean at Saint-Michel, sem perdas nem danos, e garantir gordura boa e plo bonito aos animais?

    No mais difcil do que manobrar a foice num campo de capim fino, ou carregar sacos de alfazemana albarda dos burros mansos. S que os velhos pastores guardam os verdadeiros segredos dos seus xitose das suas conquistas, e nos orientam para caminhos acessrios, persuadindo-nos de que necessrioconhecer oraes e magias, quando apenas o bom senso lhes bastou. Quanto aos carregadores de burros,acrescentam maliciosamente ns suprfluos s cordas da albarda, para nos fazerem crer que h umacincia dos ns de que so eles os grandes mestres.

    certo que em qualquer oficio h uma tcnica a ser dominada. E dominada no com truques ousortilgios, mas segundo leis simples e de bom senso, pois nunca h contradio entre cincia e tcnica,por um lado, e bom senso e simplicidade, por outro. O investigador de gnio sempre aquele que caminha

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    na direo da simplicidade e da vida.

    E essas leis, todo o mundo as compreenderia se, apesar dos traadores de pistas falsas e dosfazedores de ns, conseguisse redescobri-las e coloc-las, como sinais luminosos, nos cruzamentos dosgrandes caminhos do conhecimento.

    O que nos atrapalha e nos atrasa nesta investigao cientfica da verdade no a dificuldade dosproblemas a serem tratados, mas sim a obstinao diablica com que, desde tenra idade, somos desviadosdo bom senso, alimentados de Ersatz1, com que nos estragam o esprito com definies ou invocaes, nosdeformam o entendimento e a inteligncia, levando-nos por falsos caminhos e ensinando-nos a fazer ou adesfazer ns!...

    A verdade que os nossos mestres e os seus servidores nunca tm interesse em que nsdescubramos as leis claras da vida.

    Vivem da obscuridade e do erro... e sempre apesar deles e contra eles que realizamos a nossacultura.

    No cabe a mim dizer-lhe como voc poder descobrir e ensinar essas leis naturais e universais quelhe abriro depressa, e definitivamente, as leis do Conhecimento e da Humanidade. O que eu sei que elasexistem e que aqueles que as possuem tm todos o mesmo ar de sabedoria e de segurana, de calma e desimplicidade, e de generosidade tambm, que lemos no rosto dos velhos pastores, nas mos intuitivas doscurandeiros, nos olhos profundos do sbio, nas decises e na ao dos militantes devotados, nas palavrasdos sensatos... e na espantosa confiana das crianas na aurora da vida.

    O bom agricultor, ou o ciclo da educao

    A educao no uma frmula de escola, mas sim uma obra de vida.

    H agricultores ditos modernos ou cientficos que se gabam de obter uma boa colheita, quaisquerque sejam as condies do solo, do clima, da luz ou do esterco. Mas que abundncia de enxofre earseniatos, de inseticidas e caldas! Se isso no suficiente, escondem-se os cachos de uvas em saquinhosprotetores e colhe-se a pra ainda verde, para guard-la sobre uma camada de algodo onde amadurecer vontade.

    O fruto est salvo, e tem bom valor de mercado. Mas est to impregnado de txicos, que se tornaveneno para quem o consome. E a rvore que o deu, esgotada e ferida antes do tempo, seca antes mesmode ter ousado lanar para o cu os seus braos audaciosos.

    j na semente, ou no broto, que o jardineiro prudente cuida e prepara o fruto que vir. Se essefruto doente, porque a prpria rvore que o gerou estava enferma e degenerada. No do fruto que sedeve tratar, mas da vida que o produziu. O fruto ser o que fizerem dele o solo, a raiz, o ar e a folha. Deles que deveremos cuidar, se quisermos enriquecer e garantir a colheita.

    Se um dia os homens souberem raciocinar sobre a formao dos seus filhos como o bom agricultorraciocina sobre a riqueza do seu pomar, deixaro de seguir os eruditos que, nos seus antros, produzemfrutos envenenados que matam ao mesmo tempo quem os produziu e quem os come. Restabelecerovalorosamente o verdadeiro ciclo da educao: escolha da semente, cuidado especial do meio em que oindivduo mergulhar para sempre as suas razes poderosas, assimilao, pelo arbusto, da riqueza dessemeio.

    A cultura humana ser, ento, a flor esplndida, promessa segura do fruto generoso que

    1 Palavra alem que significa sucedneo de qualidade inferior. (N. do T.)

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    amadurecer amanh.

    O mestre e o aprendiz

    Durante todo o vero, o rebanho de ovelhas ficara na montanha, confiado guarda do pastor, quede modo algum parecia sobrecarregado com a responsabilidade dos seus mil animais.Por Saint-Michel, voltavam para a aldeia. Cada um de ns "apartava" o seu pequeno rebanho, e trintajovens pastores partiam, em seguida, atravs dos campos de restolho, ainda ricos em erva verdejante, parapassarem pela aprendizagem de condutores de carneiros.

    Tinham-nos ensinado as leis e as regras que aplicvamos ao p da letra, como o guarda executa asordens na estrada.

    Cuidado para as ovelhas no escaparem e estragarem os feijes!

    No deixem os cordeiros afastarem-se do rebanho, seno vocs podero perd-los!

    Cuidado com as moitas cheias de cobras e com a luzerna que incha os animais!

    No levem os animais para o lado das rochas, pois eles poderiam ficar entalados!

    Outras tantas preocupaes obsessivas que no nos deixavam em paz, e nem aos nossos animais:por aqui!... por ali!... Um pouco mais e teramos cercado ovelhas e carneiros para no os perder de vista,preferindo trazer-lhes capim e galhos... se eles aceitassem.

    Trabalho de aprendiz que ainda no compreendeu nada do carter e do comportamento dos seusanimais.

    Quanto ao pastor, partia calmamente atrs do seu rebanho. Uma palavra, um grito, lanadosoportunamente, e os animais seguiam na direo que o pastor sabia de antemo aonde ia dar. Vo passarl embaixo!... Daqui a pouco vamos encontr-los acima das barreiras. Esta noite descero pelas encostas!...

    O pastor dormia, o co dormia; os animais comiam at se fartar, livremente. Trabalho de mestre queconduz o seu rebanho com uma cincia e uma filosofia cujas linhas eficientes deveramos procurar, paradarmos nossa pedagogia a quietude e a humanidade prprias das obras conscientes.

    As guias no sobem pela escada

    O pedagogo preparara minuciosamente os seus mtodos e, segundo dizia, estabeleceracientificamente a escada que permite o acesso aos diversos andares do conhecimento; mediraexperimentalmente a altura dos degraus, para adapt-la s possibilidades normais das pernas das crianas;arranjara, aqui e ali, um patamar cmodo para se retomar o flego, e um corrimo benvolo amparava osprincipiantes.

    E o pedagogo zangava-se, no com a escada, que, evidentemente, fora concebida e construda comcincia, mas com as crianas que pareciam insensveis solicitude dele.

    Zangava-se porque tudo acontecia normalmente quando ele estava presente, vigiando a subidametdica da escada, degrau por degrau, tomando flego nos patamares e segurando no corrimo. Mas, seele se ausentava uns momentos, que desastre e que desordem! Apenas continuavam a subirmetodicamente, degrau por degrau, segurando no corrimo e tomando flego nos patamares, osindivduos que a escola marcara suficientemente com a sua autoridade, como os ces de pastor que a vida

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    treinou para seguir passivamente o dono e que se resignaram a no mais obedecer ao seu ritmo de cestranspondo matas e atalhos.

    O bando de crianas retomava os seus instintos e as suas necessidades: uma subia a escada dequatro, engenhosamente; outra tomava impulso e subia os degraus de dois em dois, saltando ospatamares; havia mesmo as que tentavam subir de costas, adquirindo at algum desembarao. Massobretudo incrvel paradoxo havia aquelas, e eram maioria, para quem a escada se mostravadesprovida de atrao e aventuras, e que, contornando a casa, segurando-se nas calhas, saltando asbalaustradas, chegavam em cima num tempo mnimo, muito melhor e mais depressa do que pela escadapseudometdica; uma vez l em cima, escorregavam pelo corrimo... para recomearem a ascensoapaixonante.

    O pedagogo persegue os indivduos obstinados em no subir pelos caminhos que considera normais.Mas ter ele perguntado a si mesmo, por acaso, se essa cincia da escada no seria uma falsa cincia e seno haveria caminhos mais rpidos e mais salutares, em que se avanasse por saltos e largas passadas? Seno haveria, segundo a imagem de Victor Hugo, uma pedagogia das guias que no sobem pela escada?

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    2. Fazer brilhar o sol

    Os aventureiros do Kon-Tiki

    O tempo passa; a vida d a voc os seus ensinamentos e voc fica imvel e paralisado, como se a suasorte estivesse fora dos destinos que voc pretende preparar.

    Voc parece, hoje, o campons que teima em reconstruir o muro dos seus olivais abandonados, sobpretexto de que antigamente o alinhamento das pedras era sinal de opulncia; ou o outro que continua acarregar o burro, todas as manhs, para ir fazenda distante que h muito tempo est improdutiva. como as almas penadas desamparadas, que vagueiam em redor dos domnios familiares cheias de nostalgiapor um passado que no voltar mais.

    Voc continua com suas aulas, ensina as suas mecnicas, contemporneas do arado e do carro demo, e so o scooter, o rdio, o telgrafo e o telefone que seu aluno ter de usar, porque ele sabe, porexperincia, onde o chama a vida.

    Os seus alunos decoram a tabuada num mundo que ser, amanh, o da mquina de calcular. Eles seenervam com as aulas de caligrafia e amanh a mquina de escrever proporcionar, at ao maisdesajeitado, um xito exemplar.

    Voc lhes diz sabiamente: "Aprendam as lies e faam os deveres; assim se tornaro homens."

    Porm, eles tm o exemplo obsessivo do pugilista que ganha 5 milhes numa noite triunfal, davedete contratada por 15 milhes por semana, e do cantor da moda cujos ganhos sobem a 500 milhes. Eno foi a escola que os formou, e nem foi ela que preparou o xito do comerciante que no aprendeu aslies e ele se gaba disso , mas que triunfou devido a outras virtudes que a escola no soube descobrirnem cultivar. Talvez seja desajeitado para escrever e redigir, mas pode pagar um secretrio; no conheceos segredos da contabilidade, mas tem ao seu servio mquinas e contadores.

    Ento!

    No se contente em desculpar a escola, argumentando que esses fatos, reais, so apenas um aspectode um desequilbrio social que no particular nossa poca. Nem por isso deixa de ser verdade que vocno soube reconhecer nem explorar as aptides e os talentos do homem de negcios, do pugilista, dociclista e do cantor. Voc at correu o risco de os "desencaminhar", o que grave. E isso, sem dvida,porque, ligado com fidelidade excessiva tradio, voc tambm perdeu muito tempo reerguendo murosque se tornaram inteis, pois voc se obstina em seguir por caminhos que a nada conduzem e no sabeexaltar as novas foras que, para alm das mquinas e das mecnicas, do uma medida suprema dohomem.

    Essa ter sido, talvez, uma das conquistas reconfortantes da nossa poca, o ter sabido revalorizar oselementos sensveis e os dons que uma falsa cincia desejaria que julgssemos ultrapassados: o sentidoprofundo do trabalho, a espontaneidade e a arte, a tenacidade, a coragem, a audcia por vezes temerria,reflorescem e se impem.

    Os aventureiros do Kon-Tiki, que, na era dos pesados barcos mecnicos, com suas prprias mos deoperrios, aparelharam a sua caravela e se lanaram sozinhos no Pacfico misterioso, para refazer umaexperincia, verificar uma hiptese e provar ao mundo que o homem no degenerou, so como que um

  • 17

    smbolo dessa converso.

    A Escola tambm tem os seus aventureiros do Kon-Tiki.

    A vida sempre sobe!

    Comeava o dia; as ovelhas haviam deixado o campo onde passaram a noite, e eu saa, com o alforjeao ombro, atrs do pastor plcido e sereno.

    Caminhava por trilhas cujo segredo s ele conhecia. Nenhum animal nossa volta apenas umlongnquo sussurro e o tilintar dos chocalhos localizando o rebanho em movimento, entre as estradas e ospinheiros.

    Estava inquieto por no ver os meus animais: iramos encontr-los antes de transpormos asbarreiras, ou teramos de voltar atrs, para procur-los durante todo um dia?

    Foi o velho pastor que me explicou a razo da sua serenidade:

    Garoto, de manh, os animais sempre sobem. Vo para os cumes. No que o pasto l seja sempremais abundante ou mais fcil; mas um instinto do ser lanar os braos para o azul do cu e partir aoassalto dos cumes. O capim, conquistado fora de msculos e tenacidade, tem um valor exaltante, talvezs por ter sido muito desejado...

    Pode ficar tranqilo: vamos encontr-los todos l em cima!

    E acrescentou: S me preocupa o pequeno bando de Lon, domesticado demais, habituadodemais a comer nos pastos e na manjedoura, e que tem como que a nostalgia das barreiras e do estbulo.Parece que j no tm fora para subir; o ideal deles j no l em cima, mas embaixo... Preferem a rdeaao azul do cu... J no so ovelhas dignas e orgulhosas: so ces!

    Oua os chocalhos, l em cima, diante de ns! S noitinha, quando o sol se extinguir por trs doRocheroux, os nossos animais tambm vo descer para a calma e a segurana do vale, para amanhvoltarem a subir mais alto ainda.

    E as crianas diria o pastor so como as ovelhas: querem subir sempre. Voc s ter paz ecerteza se souber ajud-las, s vezes preced-las na subida aos cumes, ou segui-las... Infelizes dos seresdomesticados cedo demais, que perderam o sentido da subida e que, como velhos em fim de corrida,preferem, ao ar do espao e ao azul do cu, a coleira da sujeio e a rao da renncia!

    So bons todos os caminhos que levam para as alturas.

    A histria do cavalo que no est com sede

    O jovem da cidade queria prestar um servio fazenda onde o hospedavam, e ento pensou:

    Antes de levar o cavalo para o campo, vou dar-lhe de beber. Ganho tempo e ficaremos sossegados odia todo.

    Mas o que isso? Agora o cavalo quem manda? Recusa-se a ir para o bebedouro e s tem olhos edesejos para o campo de luzerna! Desde quando so os animais que mandam?

    Venha beber, estou dizendo!...

    E o campons novato puxa a rdea e depois vai por trs e bate no cavalo com fora. Finalmente!... Oanimal avana... Est beira do bebedouro...

  • 18

    Talvez esteja com medo... E se eu o acariciasse?... Olhe, a gua limpa! Olha! Molhe as ventas...Como! No?... Veja s!...

    E o homem mergulha bruscamente as ventas do cavalo na gua do bebedouro.

    Agora voc vai beber!

    O animal funga e sopra, mas no bebe.

    O campons aparece, irnico:

    Ah! Voc acha que assim que se lida com um cavalo? Ele menos estpido que os homens, sabe?Ele no est com sede...

    Pode mat-lo, mas ele no beber. Talvez ele finja que est bebendo, mas vai cuspir em voc agua que est sorvendo... Trabalho perdido, meu velho!...

    Ento, como se faz?

    Bem se v que voc no campons! Voc no compreende que a esta hora da manh o cavalono tem sede; ele precisa de uma luzerna fresca. Deixe-o comer at ele se fartar. Depois ele vai ter sede evoc vai v-lo galopar para o bebedouro. Nem vai esperar voc dar licena. Aconselho mesmo que voc nose intrometa... E quando ele beber voc poder puxar a rdea!

    assim que sempre nos enganamos, quando pretendemos mudar a ordem das coisas e obrigar abeber quem no tem sede...

    Educadores, vocs esto numa encruzilhada. No teimem numa "pedagogia do cavalo que no temsede". Caminhem com empenho e sabedoria para a "pedagogia do cavalo que galopa para a luzerna e parao bebedouro".

    O cavalo no est com sede: ento troquem a gua do tanque!

    Ns nos esquecemos de um captulo na histria do cavalo que no est com sede.

    No momento preciso em que o rapaz mergulhava na gua do tanque o focinho do cavalo-que-no-est-com-sede, e que, puf!, o sopro obstinado do animal espirrava a gua em cascata em volta da fonte,surgiu um homem que declarou sentenciosamente:

    Mas... ento, troquem a gua do tanque!

    Isso feito imediatamente, pois ordem das autoridades era preciso obrigar aquele cavalo-que-no-est-com-sede a beber.

    Trabalho perdido. O cavalo no estava com sede nem de gua turva, nem de gua limpa. Ele.. noestava... com... sede! E deixou isso bem claro quando arrancou a rdea das mos do jovem tratador epartiu trotando para o campo de luzerna.

    E, assim, o problema essencial da nossa educao no de modo algum como pretendem hojenos fazer crer o "contedo" do ensino, mas a preocupao essencial que devemos ter de fazer a crianasentir sede.

    Ento a qualidade do contedo seria indiferente? S indiferente para os alunos que, na escolaantiga, foram treinados a beber, sem sede, qualquer bebida. Habituamos os nossos a considerar primeirotoda bebida como suspeita, a experiment-la e a verific-la, a elaborar eles mesmos o seu prprio juzo e a

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    exigir, em todo lugar, uma verdade que no est nas palavras, mas na conscincia de relaes justas entreos fatos, os indivduos e os elementos.

    No preparamos homens que aceitaro passivamente um contedo ortodoxo ou no , mascidados que, amanh, sabero enfrentar a vida com eficincia e herosmo e podero exigir que corra paradentro do tanque a gua clara e pura da verdade.

    Fazer a criana sentir sede

    Vocs j viram mes-galinhas obrigarem o filho a comer? Elas esperam, de colher na mo, que opaciente entreabra a boca ainda cheia, para lhe enfiarem a rao de sopa... Mais uma para o papai!... Eoutra para o gatinho!...

    Por fim, aquilo transborda. A criana cospe a papa, ou acaba tendo uma indigesto.

    Coloquem essa criana num meio vivo, se possvel comunitrio, com possibilidade de se entregar satividades que fazem parte da sua natureza. Ento, s refeies ou antes delas, estar esfomeada. Oproblema da alimentao mudar de sentido e de esprito. J no ser preciso voc empurrar fora umasopa recusada de antemo, mas sim fornecer somente os materiais suficientes e vlidos. Os processos dedeglutio e de digesto j no so problema seu.

    No se obriga o cavalo que no est com sede a beber!

    Mas, quando ele tiver comido at se fartar, ou puxado penosamente o arado, voltar por si mesmoao bebedouro conhecido e, ento, no adiantar puxar a rdea, gritar ou bater... O cavalo vai beber atacabar a sede e depois partir mais calmo.

    Pode acontecer que a obrigao que voc lhe imps de beber naquela fonte e as suas pancadastenham criado uma espcie de averso fisiolgica pela fonte, e o cavalo se recuse a beber a sua gua eprefira procurar em outro lugar, livremente, o charco que lhe matar a sede.

    Se o aluno no tem sede de conhecimentos, nem qualquer apetite pelo trabalho que voc lheapresenta, tambm ser trabalho perdido "enfiar-lhe" nos ouvidos as demonstraes mais eloqentes.Seria como falar com um surdo. Voc pode elogiar, acariciar, prometer ou bater... o cavalo no est comsede! E cuidado: com essa insistncia ou essa autoridade bruta, voc corre o risco de suscitar nos alunosuma espcie de averso fisiolgica pelo alimento intelectual, e de bloquear, talvez para sempre, oscaminhos reais que levam s profundidades fecundas do ser.

    Provocar a sede, mesmo que por meios indiretos. Restabelecer os circuitos. Suscitar um apelointerior para o alimento desejado. Ento, os olhos se animam, as bocas se abrem, os msculos se agitam.H aspirao e no atonia ou repulso. As aquisies fazem-se agora sem interveno anormal da suaparte, num ritmo incomparvel s normas clssicas da Escola.

    lamentvel qualquer mtodo que pretenda fazer beber o cavalo que no est com sede. bomqualquer mtodo que abra o apetite de saber e estimule a poderosa necessidade de trabalho.

    Em primeiro lugar fazer jorrar a fonte

    Os pedagogos so como aquelas crianas que se divertem construindo um poo no lugar que lhesparece mais fcil, por no haver rochas nem razes emaranhadas e tenazes, podendo assim, mesmo comutenslios primitivos, cavar e remover a terra cmplice.

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    S depois, quando o poo j est construdo, que pensam em ench-lo. Talvez encontrem topouca gua, que ela chegar com muita dificuldade, com uma queda to fraca e filetes to lentos, que omenor capinzinho os desviar do caminho incerto.

    Entretanto, o poo, lento para encher, seca, fende, perde a gua que to parcamente lhe trouxeram.Por mais que se tape e calafete, nunca encher, a no ser com uma gua estagnada e suja impossvel deutilizar.

    Voc ter ento de abri-lo e decantar os depsitos, a no ser que, com gua trazida da fonteprxima, encha-o artificialmente... o que ser apenas iluso momentnea, pois a gua se manter pura eclara somente enquanto voc a estiver trazendo nos baldes.

    Os camponeses das nossas montanhas sabem comear pelo princpio. Localizam a nascente. Nosomente o veio de gua que ressuma no fundo do desfiladeiro, mas a prpria origem onde, emprofundidade, a gua sai aos borbotes, fresca e clara entre as pedras.

    Depois de encontrada a nascente, quando a gua brota intrpida e poderosa, fcil acompanh-laat a concha rstica que transbordar, lanando as impurezas agitadas e rejeitadas pela corrente.

    Deixemos, portanto, de nos hipnotizar por esses poos caprichosos da observao, da memria, dasteorias formais, estabelecidos no pntano desolado da velha escolstica. Tambm no nos cansemosvedando-lhes os buracos suspeitos, carregando baldes de gua, agitando essa massa informe, morta,estagnada. Localizemos as nossas correntes, procuremos profundamente a corrente que brota entre aspedras, acompanhando-a e deixando que corra generosamente sobre as conchas rsticas.

    Construiremos ento os nossos poos metdicos, para tornar sensatas e domesticar as riquezas comque a vida nos tiver generosamente fertilizado.

    preciso dar tiragem

    Mathieu esperava-me na estao. L estava o lampio, apagado.

    s um instante para comear a funcionar!

    Pegou um pedao de jornal, acendeu-o com o isqueiro e aproximou-o de um orifcio minsculo.

    Essa coisa deve ser muito difcil de acender!

    tudo uma questo de tiragem. Se ela for forte, uma chama bem pequena j ser suficiente. Ecom qualquer material.

    como numa chamin. O melhor papel, at a melhor madeira, apagam-se quando a tiragem nolana sobre eles a corrente vivificante.

    Pergunte a uma velha dona de casa. Ela dir:

    Se seu fogo no tem uma boa tiragem, intil insistir. Voc se encher de fumaa, ficar sem flegoe no conseguir que a panela ferva... Limpe a chamin, desentupa a grelha, abra os tirantes e voc ver...

    O mesmo acontece com as crianas.

    Pouco importa a excelncia dos materiais colocados no limiar do seu entendimento, sua sbiahabilidade para dispor gravetos e carves, a obstinao em sacudir a apatia de uma alma inerte, os esforospara fazer progredir uma chama que teima em se extinguir.

    D tiragem! Descubra e utilize o apelo soberano das necessidades vitais, individuais e sociais...

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    Ento bastar apresentar uma chama muito pequena, que a vida alimentar e ampliar, at inflamaro indivduo inteiro. E essa chama devorar todos os materiais que se apresentarem, seja qual for a suatextura ou a ordem da sua apario.

    preciso dar tiragem!

    Voltar ao seu ritmo

    Os pedagogos manejam a noo e a palavra "esforo" como os burriqueiros manejam o chicote paraconduzir os animais para onde eles no querem ir, e para barrar a entrada dos caminhos que levam luzerna reconfortante.

    Em toda vida normal e ativa h, certamente, o jogo gil dos msculos, que como o batimentoregular do motor de volta ao seu ritmo; a concentrao de esprito, que como o jato sutil de combustvelpassando pelos injetores; e sobretudo esse impulso de vida, essa necessidade de crescer e de subir, que socomo a centelha sem a qual o combustvel mais rico e o pisto mais macio deixariam de ter vida.

    Se voc matar a centelha, se cortar a corrente, o nico recurso que lhe restar ser encostar o carrona descida, por onde ele deslizar pelo prprio peso mas ser que voc poder det-lo? , ou entoempurr-lo penosamente num lugar plano, e logo voc ficar extenuado por esse esforo contra a naturezae, alis, sem esperana.

    Fazer esforo!

    Com toda a sua cincia separada da vida, voc parece o aprendiz que entra no automvel, olha o fima ser atingido o alto da subida , pisa no acelerador agarrando-se ao volante, como que para ajudar amquina a subir melhor a ladeira. Mas ele no escuta o motor que perde o ritmo e se estafa como ocorredor esbaforido que tem de deter-se por alguns instantes para tomar ar... O motor aquece... O pistoemperra... Uma biela vai entortar... Mais um esforo, mquina minha!

    Desgraado!, grita o mecnico. Assim voc no vai longe. Mude de velocidade, deixe o motorretomar o ritmo, aproveite esse pequeno plano para que ele recupere leveza e potncia, e depois ataque asltimas dificuldades.

    Com um bom motor, que trabalhe bem e seja conduzido sensatamente, voc poderia ir, sem esforo,at o fim do mundo... Quantas pobres crianas, quantos adolescentes tm sido maltratados por uma falsapedagogia do esforo que lhes fez perder o regime, que aqueceu e desconcertou os mecanismos, engripouos pistes e torceu as bielas, e andam a reboque, incapazes de subir a ladeira por si mesmos, porque j nobrota a centelha salvadora!

    As avarias na corrente, diz o mecnico, so sempre as mais delicadas de reparar.

    Um nada que tudo

    Descascar batatas , no regimento, o prottipo e o smbolo do trabalho do soldado.

    Eles so uma dzia, agrupados em torno do saco entreaberto no cho da cozinha, como combatentesdesiludidos vigiando o inimigo derrotado.

    Comeam ao sinal, quando todo o mundo est pronto. E, segundo a tcnica do trabalho de soldado,batata nas mos, vigiam o sargento. Quando ele olha, surge uma fatia de cascas. Depois descansam, at oolhar seguinte.

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    Fala-se de rendimento no trabalho. Aqui como um contra-rendimento. Quem produz demais, edepressa demais, compromete a sorte do grupo condenado a uma nova corvia. a lei do meio, de ummeio que no feito para o trabalho.

    Mas o jovem militar que, durante toda uma manh, descascou assim uma poro de batatas, aoritmo dos soldados, tarde, em casa, ouve a mulher dizer gentilmente: "Tenho que fazer a sopa..."

    Deixe... batatas comigo.

    Nem espera o sinal. E as batatas danam e giram nas mos diligentes, e a ponta da faca extraidelicadamente os olhos negros. E em que ritmo!

    J no trabalho de soldado. simplesmente trabalho, uma atividade a que nos dedicamos comentusiasmo, por ser a condio da nossa vida, e qual, como a toda obra de vida, damo-noscompletamente.

    Foi preciso muito pouco para transformar em trabalho eficiente a estril corvia do soldado: umsorriso amvel, uma palavra insinuante, um pouco de calor no corao, uma perspectiva humana, e aliberdade, ou antes o direito, que o indivduo tem de escolher ele mesmo o caminho por onde seguir, semtrela, nem corrente, nem barreira.

    Foi preciso to pouco, mas esse pouco tudo.

    Se voc conseguir transformar assim o clima da sua aula, se voc deixar desabrochar a atividadelivre, se souber dar um pouco de calor no corao, como um raio de sol que desperta a confiana e aesperana, voc ultrapassar a corvia de soldado e o seu trabalho render cem por cento.

    Esse raio de sol todo o segredo da Escola moderna.

    Esqueceram a ma

    Eram cinco crianas que subiam para o "Albergue", com uma bela ma na mo para terminar olanche. E voc bem sabe como as crianas gostam da merenda e de mas.

    Mas eis que, na beira do caminho, um lindo musgo, brilhando como verniz prateado, atapetava apedra mida. As crianas ajoelham-se como diante do prespio de Natal e, delicadamente, cada umaarranca um pedao daquele tesouro, que carregam nas mos frgeis.

    Vamos guard-lo no leno...

    Vou coloc-lo na janela, perto da minha boneca, com borboletas em cima...

    Eu vou coloc-lo na minha mesa de cabeceira e depois vo nascer flores...

    E elas esqueceram a ma. Sobem pelo caminho pedregoso, extasiadas, arrebatadas, transportadaspela beleza, acima das vs preocupaes do dia, felizes como deuses, porque levam um tesouro: o reflexodelicado e frgil do musgo prateado, como um pssaro azul que tivessem agarrado por um instante...

    Voc j notou o lugar importante que ocupam as cores, os sons e os sonhos na linguagem e nosescritos das crianas? Tudo luminoso, areo, livre e fresco como a gua que corre. E quanto a nsapressamo-nos a erguer uma barreira, a apagar a luz, a ofuscar o esplendor das paisagens, a baixarobstinadamente para as pedras e a lama os olhos que teimavam em contemplar o espao e o azul. E paraa matria, para o objeto a ser examinado ou manejado, para o papel a ser preenchido, o lpis a serempunhado, a construo a ser montada, para o prosaico prtico talvez que orientamos as nossas

  • 23

    crianas, ocultando-lhes para sempre o ideal e a beleza.

    provvel que nos digam que no temos de formar sonhadores, mas homens prticos, capazesdesde cedo de cavar a terra ou fixar uma cavilha; mas sabemos tambm que temos mais necessidade aindade homens que saibam esquecer, beira do caminho da vida, a ma que tinham na mo, para partiremcomo pesquisadores desinteressados em busca do ideal.

    Tenha cuidado para no desperdiar, na criana, os bens inestimveis cujo esplendor nunca maisconhecer.

    A vida prepara-se pela vida

    O velho pastor fazia um sermo: Voc no deve manter tanto tempo no estbulo os seus doiscabritos, habituados somente a dormir no calor do cercado, comer na manjedoura e a seguir a me,balindo quando se sentem perdidos no meio de uma moita...

    Quando voc os juntar ao rebanho, ver que nem sequer sero capazes de acompanhar os outros:sero mordidos pelos ces, quebraro a pata num monte de pedras ou se perdero nas barreiras...

    A vida prepara-se pela vida.

    Se voc tem medo que seu filho quebre a cabea, rasgue a roupa, suje as mos, corra o risco de cairou de se afogar, tranque-o na sua confortvel sala de jantar ou leve-o pela coleira quando voc sair, paraque ele no se junte aos bandos de crianas que na rua, nos jardins, nos pomares e no mato buscamintrepidamente as suas experincias elementares. Cerque sua atividade particular com uma srie debarreiras que, como o cercado do estbulo, impediro o seu homenzinho de desenvolver os msculos e ossentidos. Escolha atentamente os discursos que lhe fizer e os livros que lhe daro a imagem sempre falsa,pois s imagem, da vida que o chama imperiosamente. E permanea insensvel aos olhares de desejo queele lana para as atividades proibidas, como os cabritos que, com a cabea entre as barras do cercado,lanam o olhar e os sentidos para a natureza que os atrai.

    Escolha para ele uma escola bem conformista, onde no manejar martelos nem provetas, onde nocompor caracteres tipogrficos, onde no se sujar com o rolo de tinta, onde no se machucar com agoiva que escorrega desastradamente do linleo, onde no sujar os sapatos na lama dos caminhos ou naterra do jardim. Lies e deveres... Deveres e lies... o esprito que se encher de crostas de lodo...

    E depois voc se espantar se o seu filho for manualmente desajeitado, hesitante nas brincadeiras ounos trabalhos, inquieto e tmido diante das exigncias do esforo, desequilibrado num mundo onde j nobasta saber ler e escrever, mas em que preciso apreender com deciso e herosmo.

    A vida prepara-se pela vida.

    Nosso laboratrio a criana

    Ser que Mathieu ainda ousar falar do velho pastor filosofando ao longo dos dias, nas montanhastranqilas, ou do lavrador que se detm no fim do sulco para deixar o animal respirar?Dizem-me que escolho muito mal os meus modelos, que o lavrador j no tem disposio para assobiarporque o motor do arado mecnico ronca, e que o bom senso e a filosofia deixaram de animar o camponsvido de ganhos e reticente diante das exigncias do progresso.

    Segundo me escrevem, a insistncia dos meus exemplos da vida simples da fazenda ou da aldeiaparece uma fuga diante da realidade dos grandes acontecimentos contemporneos.

  • 24

    Essa amplido assustadora das nossas sociedades mecanizadas, s quais se encontra sempremisturada a nossa vida de lutas e de reivindicaes, ns no a depreciamos mais do que o faz o homem decincia no laboratrio onde sonda os elementos em sua origem, aparentemente afastado de todas aspreocupaes sociais.

    E o nosso laboratrio a criana.

    Sou campons e pastor. Quando me perscruto profundamente e raspo a crosta com que a civilizaose esforou por me cobrir, sempre a gua que corre na selha do velho moinho, o riacho que se estiralentamente entre os vimes, o cheiro dos bois levados ao trabalho e o balir nostlgico e sonoro das ovelhasna montanha, que encontro e me comovem, pois so a trama inicial de uma vida que no mais encontrou apura simplicidade da aldeia da minha infncia.

    E o meu nico talento de pedagogo talvez ter conservado uma impresso to total da juventude,que sinto e compreendo, como criana, as crianas que educo. Os problemas que estas colocam e que soenigma to grave para os adultos, coloco-os ainda a mim mesmo com as ntidas recordaes dos meus oitoanos, e como adulto-criana que descubro, atravs dos sistemas e mtodos que tanto me fizeram sofrer,os erros de uma cincia que esqueceu e desconhece as suas origens.

    Porque os verdadeiros problemas da infncia so e permanecem os mesmos: o capim que se agita, oinseto que zumbe, a cobra cujo silvo gela o sangue, o trovo assustador, a sineta que toca as horas mortasda escola, os mapas mudos e os quadros fantsticos. E a vida, atravs das exigncias do meio, que seagita sempre, intrpida e inextinguvel, essa vida que basta encontrar e ajudar para que desabroche, apesardos nossos destinos acorrentados, a comovedora histria da infncia audaz.

    Sejam humanos

    Vocs, educadores, agem todos um pouco como alguns pais que, quanto mais terrveis foramquando crianas, mais ferozmente severos so com os filhos; ou como o adulto que caminha apressado,sem reparar na criana a seu lado que tem de dar trs passos enquanto ele d um.

    Vocs reagem com a sua natureza de homens, as suas possibilidades e conhecimentos de adultos,como se as crianas que lhes foram confiadas tambm fossem adultas com iguais possibilidades.

    Ponha-se no lugar dessa criana que voc acaba de humilhar com uma nota baixa ou uma mclassificao. Lembre-se do seu prprio orgulho quando voc era dos primeiros, e de todos os maussentimentos que o agitavam quando outros passavam na frente... Ento voc compreender e aclassificao ser suprimida.

    Uma criana roubou cerejas ao vir para a escola, ou quebrou um tinteiro na aula, ou mentiu paratentar salvar uma situao delicada. Voc nunca roubou cerejas quando era novo? Voc no era o primeiroa sentir pena, quando quebrava um tinteiro? Voc no se lembra do drama que era para voc mentir pornecessidade, quando, entre os caminhos que se ofereciam para sair da situao delicada, a mentira, tmida,desajeitada, no incio lhe parecia a nica tbua de salvao?

    "Se voc no voltar a ser como uma criana..." no entrar no reino encantado da pedagogia... Emvez de procurar esquecer a infncia, acostume-se a reviv-la; reviva-a com os alunos, procurandocompreender as possveis diferenas originadas pela diversidade de meios e pelo trgico dosacontecimentos que influenciam to cruelmente a infncia contempornea. Compreenda que essascrianas so mais ou menos o que voc era h uma gerao. Voc no era melhor do que elas, e elas noso piores do que voc; portanto, se o meio escolar e social lhes fosse mais favorvel, poderiam fazermelhor do que voc, o que seria um xito pedaggico e uma garantia de progresso.

  • 25

    Para isso, nenhuma tcnica conseguir prepar-lo melhor do que aquela que incita as crianas a seexprimirem pela palavra, pela escrita, pelo desenho e pela gravura. O jornal escolar contribuir para aharmonizao do meio, que permanece um fator decisivo da educao. O trabalho desejado, a que nosentregamos totalmente e que proporciona as alegrias mais exaltantes, far o resto.

    E o sol brilhar...

  • 26

    3. O trabalho que ilumina

    A bandeira azul, branca e vermelha

    A vida caminha e ns nos estafamos para segui-la, em vez de brandirmos corajosamente as bandeirasque a orientam e sublimam.

    Somos uma gerao de copistas-copiadores, de repetidores condenados a registrar e a explicar o quedizem ou fazem homens que nos afirmam ser superiores e que, muitas vezes, s tm sobre ns o privilgioda antiguidade nessa arte de copiadores e de repetidores.

    Somos uma gerao para a qual a obra criadora, esse primeiro escalo da obra de arte, foi reduzida clandestinidade. Estude! Copie! Repita!...Voc nunca tirar nada de esplndido das suas mos desajeitadase do seu crebro ftil.

    Quando guardvamos as cabras, s vezes desenhvamos, na lama dos caminhos, sinais cabalsticosque a chuva apagava, travamos nas pedras lisas inscries rudimentares que em nada mudavam odestino da pedra rochosa, gravvamos na casca das rvores, com as nossas facas, figurinhas de que nosorgulhvamos, mas que no sobreviviam nossa fantasia de um dia.

    Os adultos combatiam essas tentativas, para as quais no tnhamos, como hoje, o exemplo exaltantedas imagens que cobrem as paredes da classe, animam as pginas dos livros e dos jornais, danammagicamente nas telas dos cinemas.

    No tnhamos lpis nem papel. A arte, para ns, era o Cristo na cruz da igreja ou os figurinos demoda nos catlogos da Samaritaine2. Senti minha primeira emoo de arte no dia em que, depois decomprar por dois tostes, de um vendedor ambulante, um maravilhoso lpis vermelho e azul, desenhei nacapa do meu caderno, nas venezianas e nas paredes, a bandeira azul, branca e vermelha da Frana.

    A vida caminha...

    Num sculo em que a imagem rainha, em que papel, guaches e aquarelas guarnecem as prateleirasdos bazares, ajude seus alunos a ultrapassarem o estgio da bandeira azul, branca e vermelha; abra-lhes asportas encantadas de um mundo que nos foi proibido e que eles vem com os seus olhos inocentes depoetas, de artistas, de construtores, a caminho do seu destino de homens.

    Antes depois

    No dia 25 de novembro, Joozinho desenhou o vaso de flores que sev ao lado.

    Este vaso , com o moinho de caf e a caixa de fsforos, o smbolo deuma forma de ensino que j no deveramos ter de condenar: vasobarrigudo, hipertrofiado para receber a falsa cincia, inchado e disforme,cujo nico resultado so esses seis raminhos esquelticos, como flores

    2 Grande loja de Paris. (N. do T.)

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    abortadas que no puderam desabrochar e que murcham por falta de seiva e tambm por falta de sol e deazul...

    Foi o que explicamos ao Joozinho, que tem apenas dez anos e que, comparando o seu vaso de floresesclerosado com os desenhos audaciosos e livres dos companheiros, sentiu a pobreza da prpria obra.

    No dia 12 de dezembro, num arranque, Joozinhofez o desenho apresentado abaixo, que o smbolo dapartida para o trabalho, para a aventura e para a vida.

    A publicidade contempornea ressuscitou edesenvolveu os anncios que os artfices penduravam porta das lojas e que falavam uma linguagemcompreensvel para todos.

    Seguindo-lhes o exemplo, poderamos colocar, nafachada das nossas escolas modernizadas, estes doissmbolos e, como nas feiras, escrever somente:

    Antes Depois

    Quero colh-las!

    Maria est debaixo da cerejeira. Tem, diante dela, o cesto transbordante de cerejas brilhantes evermelhas. Bastaria mergulhar nele a mozinha para comer at se fartar; mas no est satisfeita!

    Quero colh-las!

    Teima em chegar aos poucos ramos simpticos que parecem ter crescido de propsito ao alcance dacobia da criana. E esta no exigente! O menor fruto verde para ela uma delcia. Foi ela quem ocolheu!

    Eu lhe digo, com pena:

    Olha, Maria, aqui tem uma bonita!

    Ela protesta mais uma vez, com paradoxal herosmo, estendendo os braos para a folhagem:

    Quero colh-las!

    Duplo erro dos pedagogos:

    Instalamos nossos alunos mais ou menos confortavelmente, sombra da rvore, e pomos ao seualcance os frutos que escolhemos e colhemos, bem classificados em livros que so obras-primas de cinciae de tcnica. E admiramo-nos quando nossas Marias se afastam desses cestos apetitosos para estender asmos e levantar os olhos para a rvore onde querem colher, vivos mesmo, os frutos preciosos de umconhecimento que s ser alimento sutil enquanto no for prvia e arbitrariamente separado da rvore.

    E, como no compreendemos aquela insistncia da criana em complicar as coisas que ns mesmoshavamos preparado e facilitado, escondemos a rvore, para que a criana veja apenas os frutos do cesto ese satisfaa com eles. Efetivamente, falta de melhor, a criana come ento os frutos do cesto, mas tovorazmente, que no consegue digeri-los; fica to enjoada, que j no se sabe quem acusar, se a criana jsem fome nem sede, ou o mtodo que, por si s, no pde renovar o milagre da rvore cobiada.

    Infelizes as crianas que sempre s comeram cerejas dos cestos e no conheceram a alegria

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    vivificante de quem se agarra aos ramos e colhe conforme sua necessidade!

    Infeliz a criana, infeliz o homem farto de conhecimentos, longe da rvore da vida, e que j nem temenergia para protestar: Quero colh-las!

    O trabalho que ilumina

    Claro! Certamente existem enxadas, arados e instrumentos mecnicos to aperfeioados, que cavamo solo e semeiam o gro sem que voc tenha que enfrentar a aridez da terra. Mas, quanto a mim, aopreparar uma sementeira, gosto de peneirar a terra com as mos e apertar as pedras amorosamente, comose alisa o bero macio de um beb.

    isso; um mesmo trabalho pode ser obrigao ou liberao. No uma questo de novidade, masde iluminao e de fecundidade.

    Voc conhece a histria de "descascar batatas", no regimento? H uma arte de que a Escola fezuma tradio para funcionar o mais lentamente possvel, sem no entanto se deixar de trabalhar. stakanovismo ao contrrio. E, quando se trata de pegar a vassoura para varrer as cascas das batatas, piorainda: todos os homens so manetas. s vezes o prprio cabo que tem de se encarregar da tarefa.

    O soldado sai de licena e vai ver a mulher. Fazer a sopa, descascar as batatas, at varrer, tudo issose transforma em prazer de que ele reclama o privilgio.

    A tarefa da manh transformou-se numa recompensa!

    Acontece o mesmo na escola, onde certos trabalhos gastos pela tradio sero, amanh, procuradoscomo atividades novas que voc julgar exclusivas. No procure a novidade; a prpria mecnica maisaperfeioada chega a cansar, se no atender s necessidades profundas do indivduo. No nmero cada vezmaior de atividades que lhe so oferecidas, escolha primeiro as que iluminam sua vida, as que do sede dedesenvolvimento e de conhecimentos, as que fazem brilhar o sol. Edite um jornal para praticar acorrespondncia, recolha e classifique documentos, organize a experincia tateante que ser a primeirafase da cultura cientfica. Deixe desabrochar os botes de flores, mesmo que s vezes o orvalho os molhe.

    Tudo o mais lhe ser dado por acrscimo.

    Por que trabalhar?

    Por que trabalhar? poderia dizer candidamente a criana de hoje...

    Abro um jornal ou o meu Mickey: por toda parte, aventuras, esporte, competies, discusses ditasfilosficas; mas, ento, quem trabalha neste mundo, a no ser os desgraados condenados a isso?

    Vou cidade: por toda parte, as vitrines falam de luxo, de frivolidades e de brinquedos. Osinstrumentos de trabalho escondem-se pudicamente nas ruas excntricas, como se quisessem serperdoados pela sua presena de pobres, numa sociedade de novos-ricos que se envergonham da suaorigem.

    E a escola s conhece deveres e lies que, para ns, so o que a mquina para os nossos pais: umasujeio de que nos libertamos assim que temos possibilidade. Apenas os jogos nos entusiasmam e nosfazem esquecer as exigncias desumanas do trabalho.

    O essencial do que o mundo nos oferece ou nos impe so a bola, os soldados de chumbo, as

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    colees de figurinhas e nossas revistinhas... sem contar o cinema, sempre que podemos entrar. Trabalhar!Se algum dia pego clandestinamente a p do pedreiro, a enxada ou o carrinho do jardineiro, o martelo ou oalicate do meu pai, sou perseguido como se tivesse cometido um crime. Escavar grutas, construir castelos,preparar uma sementeira, levantar barragens, esquadrinhar os riachos, montar e desmontar mquinasseriam para mim as mais apaixonantes ocupaes, a tal ponto que esqueceria o Mickey ou o cinema; mas,infelizmente, so fruto proibido: parece que sujamos a roupa, esfolamos dedos e pernas; perdemos aferramenta... E ento mandam-nos para aquilo que depois chamam de futilidades.

    O trabalho, para ns, concluiria esta criana, a maldio, a ferramenta que suja as mos, a fbricaque estraga nossa vida, a escravido que nos desonra.

    S o divertimento nos faz desabrochar e nos libera. Veja as suas vedetes.

    E, com efeito, poderamos fazer o nosso mea culpa reconhecendo que h erros nos princpios danossa educao e que , em primeiro lugar, pelo trabalho que se prepara para o trabalho, numa escola enuma sociedade do trabalho.

    O trabalho em srie

    O trabalho em srie, eu o conheo bem. No foram, como se poderia acreditar, os fabricantes deautomveis que o inventaram, mas vocs, pedagogos, e ns, pastores.

    Eu sou tambm um grande empreendedor de sries. Os pequenos cordeiros que nasceram no Natale que so to originais e to caprichosos, cada um com o seu carter e a sua personalidade, eu os agarro naPscoa e os enfio no molde da srie que o rebanho. Observe-os quando esto pastando: j no tmfantasias, j no tm necessidades, a no ser as do rebanho. Engordam normalmente e, quanto a mim,tenho menos trabalho. Acho que melhor assim, pois esto destinados ao matadouro onde os queremgrandes e gordos.

    Se quisssemos torn-los animais inteligentes como os que nos espantam nos circos, teramosnaturalmente de proceder de outra forma.

    Voc tambm recebe as crianas curiosas e saltitantes, cndidas e audaciosas diante do mundo; vocas enfia nos moldes das suas sries, encerra-as em cercados, racionaliza seus gestos e atitudes e, s vezes,parece surpreendido por elas sarem desses moldes como peas intercambiveis, mecanismos bemregulados para entrarem, amanh, na corrente, cabea baixa atrs do nmero que as precede, prontas aobedecerem ao pastor que se imps pelo chicote e pelos ces.

    Se voc quiser crianas inteligentes, capazes de erguer a cabea e escolher os trilhos, tambm vocter que proceder de outra forma, saber conservar nos seus cabritos aquele soberano apetite de brotostenros, aquele delicado instinto que os faz mordiscar prudentemente as ervas suspeitas e aquelaexuberncia de vida que parece alimentar-se de primavera e de beleza.

    S que voc no mais ter esse tranqilo pisar do rebanho que desfila sempre pelos mesmoscaminhos. Ter personalidades que se formam e se defrontam, cabeas que se detm a olhar para o cu,vozes que se chamam atravs da montanha. Mas voc sentir tambm o invencvel frmito da vida.

    O trabalho em migalhas

    "O trabalho em migalhas", diz um autor...

    S h migalhas na nossa vida de educadores. Nem sequer conseguimos reuni-las, o que alis seria

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    intil, pois migalhas de po espremidas e enroladas nunca do mais do que bolinhas, boas apenas paraservir de projteis nos refeitrios.

    Migalhas de leitura, cadas de uma obra que ignoramos e que tm gosto de po que ficou ressecandonas gavetas e nos sacos.

    Migalhas de histria, umas bolorentas, outras mal cozidas, e cuja amlgama um problemainsolvel.

    Migalhas de matemtica e migalhas de cincias, como peas de mquinas, sinais e nmeros que umaexploso tivesse dispersado e que nos esforamos por montar, como um quebra-cabea.

    Migalhas de moral, como gavetas que mudamos de lugar, no complexo de uma vida de infinitascombinaes.

    Migalhas de arte...

    Migalhas de aula, migalhas de horas de trabalho, migalhas de ptio de recreio...

    Migalhas de homens!

    Perigos de uma Escola que alinha, compara, agrupa e reagrupa, ausculta e avalia essas migalhas.

    Urgncia de uma educao que evita a exploso irreparvel e faz circular um sangue novo na funoviva e construtiva da pedagogia do trabalho.

    No faa trabalho intil de soldado

    Voc conhece a histria, que no piada, da tarefa de cinco homens e um cabo, que tinham pormisso transportar, para a outra extremidade do ptio, um monte de cascalho incmodo.

    Certamente, preciso entrar em ao, e nunca depressa demais, pois a tarefa no urgente. Umquarto de hora depois, a equipe estava pronta para a obra, se que no caso se pode falar de equipe e deobra: um soldado empunha os varais do carrinho de mo onde se sentar quando estiver cansado; outrocuida da roda e se sentar em cima dela para manter o equilbrio. E os homens munidos de p? Vigiam osargento e, quando ele olha, opa! uma pazada de cascalho...

    "Saiam da", atreve-se a dizer um recruta espertinho. "Eu sozinho fao mais que cinco equipesjuntas..."

    "Nada disso" respondem os homens experientes. "No estamos na vida civil e voc no pago porpea. Vai incomodar todo o mundo: os colegas que no esto com vontade de trabalhar, o cabo que tem denos vigiar aqui at a sopa, e o sargento que dir, muito srio, quando voc acabar: 'Faa de novo... Ponhade volta o monte de cascalho onde ele estava!' Quando voc estiver em casa, poder trabalhar o dobro;aqui trabalho de soldado. No tem finalidade nem razo de ser. feito para aborrecer os militares e fazeracreditar aos contribuintes que na caserna necessria uma mo-de-obra abundante e especializada."

    Por que preciso, que lstima!, que a tcnica escolar se parea tantas vezes com esse trabalho desoldado? Teremos deslocado inutilmente aqueles montes de cascalho de que os manuais esto cheios?Teremos feito aqueles exerccios que no tm outra funo alm de escurecer cadernos e preencher, comdisciplina, as horas desesperantes que nada anima nem alimenta? Ouvimos a frmula fatdica: Faa denovo!

    Os soldados e os cancioneiros riem para valer do transporte do cascalho, do descascar batatas, do n

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    da gravata ou da posio do bon. verdade que os chefes pensam, talvez seriamente, que se trata deelementos determinantes da preparao do soldado para a sua funo de combatente.

    Ainda no se teve a idia de fazer canes satricas a respeito dos exerccios desesperantes da escola,dos traos vermelhos nos cadernos e daquele ritmo uniforme e lento que faz a classe marchar a passo fsica e intelectualmente com ordem e disciplina. Para manter essa ordem e essa disciplina, a escola develutar contra as crianas rpidas demais ou conscienciosas demais, contra aquelas que acabam to depressaos deveres que, decentemente, no se pode obrig-las a repeti-los. H uma lei do meio escolar. Quemtenta viol-la, faz desmoronar todo o edifcio.

    Voc deve correr esse risco. Examine lealmente cada uma das atividades que voc prev para a suaclasse. Impea os trabalhos de soldado e, se for obrigado a eles provisoriamente, tenha presente que soapenas trabalhos de soldado, sem finalidade nem resultado.

    Galope, galope! Entusiasme seus alunos para irem cada vez mais depressa e cada vez mais longe.Basta voc prever atividades suficientes felizmente, h muitas , para alimentar a necessidade de criare de realizar.

    Trabalho de soldado, eis o inimigo! Valorizar

    Trabalhar "seriamente"... "Fazer coisas bonitas"... "Para servir"... So estas as grandes preocupaesda criana em contato com a vida.

    Termina o seu castelo de areia coroando-o com um ramo de flores. Nos seus dedos de mgico, agitaao sol um prisma que d ao mundo as cores maravilhosas do arco-ris.

    A prpria folha de papel que a criana acaba de animar com seus desenhos, aguarda a paletacaprichosa do pintor para adquirir vida e esplendor, como se a criana precisasse sempre revestir a suaobra com o toque decisivo que faz as coisas mais belas do que so.

    Mas voc se contenta em bater o compasso para nada, mandar copiar textos que voc marca semescrpulos e que voc risca autoritariamente de vermelho cor de raiva. E voc acha absolutamente naturala hecatombe final, para recuperar a argila plstica das obras-primas modeladas com tanta seriedade etanto amor.

    Ser que o pedreiro trabalharia com ardor e com gosto se lhe destrussemos sistematicamente a casaque acabou de fazer e sobre a qual colocou, com legtimo orgulho de construtor, a bandeira simblica? Serque o campons retomaria o arado, se lhe ceifassem o trigo ainda verde, no acidental masmetodicamente, e se abatessem as rvores que plantou?

    Neste comeo de ano, tente esquecer os ensinamentos desumanos da escolstica, escute asexigncias normais da vida, valorize a obra mais humilde do mais humilde dos seus alunos! Que cadatrabalhador e a criana tem as preocupaes e a dignidade do trabalhador tenha conscincia, a cadamomento, de ter posto uma pedra no seu edifcio e ter acrescentado ao seu patrimnio um pouco deeficincia e um pouco de beleza. Valorize o texto informe, dando-lhe a perenidade do majestoso impresso;valorize, pelas cores e pela apresentao, os desenhos que forem dignos de uma coleo ou de umaexposio; esmalte e coza as louas que, na sua forma definitiva, podero desafiar os sculos.

    Ento voc sentir o orgulho da obra bem-feita animar e apaixonar os seus jovens operrios, e farnascer e se impor essa grande dignidade do TRABALHO, que ns tambm desejaramos escrever, em letrasdefinitivas, na fachada das nossas modernas escolas do povo.

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    No corao do homem

    O trabalho como o corao social do homem.

    No dia em que se cansar, produzindo uma dor fsica ou moral que se vai aprofundando pouco apouco, porque um erro ou um acidente atrapalharam a funo normal do mecanismo.

    Acontece, claro, que para compensar os desgastes do esforo fsico ou reagir a um perigo sbito ocorao bate mais forte, como um motor acelerado em comeo de subida; mas logo retoma o seu ritmonuma espcie de bem-estar na calma readquirida.

    O trabalho tambm precisa, muitas vezes, de uma poderosa tenso para superar o obstculo a servencido e atingir o objetivo. Depois vm o repouso e o sono, como fase benfica da ao.

    Se aps o esforo o corao no retoma o seu ritmo, se o sangue como gua lamacenta se demoranos vasos, o mdico dir: sobrecarga... Temos de reduzir o esforo que lhe pedimos, repousar, ou attentar uma sangria solues provisrias que no poderiam corrigir a evidente perturbao domecanismo.

    Se lhe afirmam hoje: "A criana est sobrecarregada... preciso reduzir os programas", no porquevoc exigiu trabalho demais, mas porque voc perturbou uma funo natural, porque voc apresentoucomo trabalho exigncias que se incorporaram mal s nossas necessidades vitais, porque voc fez o motorgirar em vo, com risco de entupi-lo, ou porque voc o alimentou com um combustvel impuro e oxidante.

    Ento, deixa de haver repouso porque j no h cansao mas ferida, pois surgem rachaduras quevoc j no pode vedar e que podem tornar penosos e obsessivos qualquer ao e qualquer esforo.

    preciso um verdadeiro acmulo de falsas manobras para cansar um corao que trabalha tosuavemente que quase nem o sentimos bater. necessrio tambm um perigoso acmulo de erros, parasuscitar na criana o receio e depois a averso por uma funo to natural e nobre como o trabalho.

    Reponha esse trabalho no circuito da vida. D-lhe uma finalidade e um sentido. Que ele alimente eimpulsione o comportamento natural, que se situe no ncleo do seu destino individual e social.

    Ser preciso, talvez, ordenar os programas na nova empresa, equipada de espao, de instrumentos,de arte e de luz, sem contar a alma e o ideal que so o sol de tudo isso.

    Mas precisamos mais do que discursos para devolver ao trabalho a sua permanncia e a suadignidade.

    O tempo das farndolas

    Quando ser, ento, que os adultos deixaro as crianas caminharem a passo de criana? Quandoser que vero com olhos de crianas as crianas viverem?

    Ns somos os rios domados na plancie; as crianas so as torrentes ainda impetuosas que nocorrem nem segundo os mesmos ritmos, nem com o mesmo impulso. Ns somos os animais cansados paraquem o prximo instante j est inscrito no presente e que, no seu passo uniforme e ordenado,encaminham-se para o curral ou para o bebedouro; as crianas so os cabritos cabriolando pelos caminhos,e os potros impacientes por avaliar a agilidade das pernas delicadas, e para os quais a sabedoria saltitar,cabriolar e pular.

    Ns ficamos, por um tempo longo demais, em conversas interminveis, remoendo os problemas do

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    passado, que nem sempre so os do dia seguinte; as crianas vo com a vida que caminha, e ns somostentados a ret-las, incessantemente, pois a corrida delas nos exaure e o seu dinamismo nos atordoa ecansa.

    Aquelas que nos escapam para empunhar a vida avidamente e domin-la so as mesmas que,ultrapassando as nossas esperanas e os nossos ensinamentos, se obstinam em farandolar, em vez deseguir comportadamente os patamares metdicos que pretensiosamente arranjamos na grande aventurada vida. So os jovens ases do pedal, do ringue ou do estdio que, num momento, atingem umacelebridade que nos irrita por ser fruto daquela ultrapassagem; so os artistas e os poetas, aqueles potrosescapados da cocheira que, apesar dos nossos apelos, partem, cabelos ao vento, conquista de horizontesdesconhecidos.

    So eles que a juventude admira, deifica e segue, e no esses cabritos e esses potros desafortunadosque, em nossas escolas, transformamos em animais domsticos, prematuramente dceis e sensatos e quefazem jus ao pastor.

    Voc dir que preciso dom-los. A vida encarrega-se disso. Pelo contrrio, aproveite o tempo dasfarndolas para fazer com eles algumas caminhadas e, nesse contato, armazenar entusiasmo e animao.

    Engrenar na vida

    claro que a sua mquina escolar gira bem, melhor mesmo do que a nossa, pois voc previu tudo, jno digo alguns dias antes, mas vrios meses ou vrios anos.

    A distribuio mensal das disciplinas de acordo com os programas afixada, segundo o regulamento, direita do quadro; esquerda, a utilizao do tempo, qual voc obedecer rigorosamente.

    A nica coisa que voc tem a fazer instalar a mecnica e virar as pginas. De passagem, o inspetorpoder pedir-lhe o dirio de classe, minuta exterior dessa mecnica; ento, ele ficar tranqilo, pois tudoestar acontecendo, de fato, segundo as normas.

    Essa mecnica, porm, tem um inconveniente: o professor, o inspetor e o Estado digamos antes: oEstado, o inspetor e o professor , com efeito, previram tudo, exceto que essa mecnica no engrena nacomplexa mecnica humana. O motor gira bem. D o seu rendimento mximo de tantas voltas por minuto no caso, de tantas lies por manh , mas s muito por acaso se consegue engrenar. Ento a mquinagira em vo. Ronca ou ronrona segundo o ritmo, ou se acelera e aquece. Mas a mecnica humana notreinada s raramente se atm minuciosa organizao escolar. A maioria das vezes mantm-se imvel eaguarda... a sada. s vezes e mesmo freqentemente gira em sentido contrrio, sob o impulso davida; o mesmo efeito se produz quando, depois que o carro adquire uma certa velocidade,desastradamente engatamos marcha r, em vez de engatarmos a terceira, que serviria para suavizar eharmonizar o rolamento: rangidos, grimpamentos, gritos, dentes quebrados e avarias.

    Voc ter de levar em conta, certamente, imperativos que por tradio, por exigncias deorganizao e, s vezes, tambm por burocratismo animam uma mecnica que, de fora, nos impe normase um ritmo; mas voc nada far de vlido, nunca ultrapassar os emperramentos e os erros da escolstica,se no conseguir a engrenagem indispensvel com o elemento humano que voc tem de formar, se noatingir uma harmonia de combinaes, uma tcnica de trabalho e de vida que lhe permita preparar nomonstros, mas homens.

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    V ao encontro da vida

    Nunca procure instalar-se no passado. V ao encontro da vida.

    No h maior alegria do que construir a prpria casa, arranj-la, enriquec-la, embelez-la, para faz-la sua. Todos ns guardamos a nostalgia das cabanas de pedra ou de galhos que construamos quandovigivamos os nossos animais na orla dos bosques, dos castelos de areia na margem do rio, ou dos mundoscriados outrora com a argila dos barrancos. E no tenhamos iluses: por sentirem essa mesma nostalgiaque os adultos se orgulham de armar barracas em seus passeios, mesmo e sobretudo se o colcho for duro,se ameaar chover, se o saco for pesado.

    O que voc precisa, neste incio de outubro, no de classes burguesamente instaladas, como essesapartamentos annimos que nos impem a banalidade dos seus arranjos padronizados, mas de amploshorizontes tcnicos, sociais e pedaggicos, acessveis ao trabalho, ao sonho e vida.

    Uma prefeitura generosa talvez tenha julgado que estava procedendo bem preparando para vocuma classe onde tudo foi previsto: as carteiras enceradas e alinhadas, no podendo ser mudadas de lugar,quadros nas paredes ou talvez, o cmulo da riqueza, frisos pintados por algum grande artista. Os tinteirosestaro cheios de tinta e os livros novos, cheirando ainda impresso, estaro empilhados na sua mesa.

    Tudo est no lugar, pronto para a partida; mas falta o convite para a viagem.

    Pea, antes, que deixem com voc a responsabilidade pelas bagagens, que lhe forneam o material eos recursos para voc arranjar a classe, no decorrer do ano, para que ela seja bem sua, como a casa quevoc construiu pedra por pedra, e onde cada recanto tem a sua histria. Esvazie impiedosamente gavetas eestantes de tudo o que no for instrumento de trabalho; reserve as paredes para ornament-las, durante oano, segundo a prpria inspirao: pastas, desenhos, cadernos so apenas uma promessa, o cesto esperade uma colheita, essa colheita que lhe ser possibilitada pelos impressos, pelas trocas interescolares, pelaprpria vida, essa respiga que as mozinhas lhe traro todos os dias ao estenderem os seus feixes paravoc.

    O que nos encanta e nos entusiasma nunca o passado, por mais rico que seja, mas o futuro queencerra em si mesmo a criao, a aventura e a vida.

    A escola nunca uma parada. a estrada aberta para os horizontes que se devem conquistar.

    V ao encontro da manh.

    O nosso trabalho nos unir

    O que eu acho dessa diviso que mais uma vez vai esgotar nossas foras, aguando os mal-entendidos e desencorajando as veleidades de ao dos fracos e dos indecisos?

    Quando os rios avanam, serpenteando penosamente atravs da plancie, demoram para se juntarporque, para eles, o menor brao de terra obstculo intransponvel; quando, porm, correm impetuososda montanha, arrastando, nos seus remoinhos espumosos, troncos de rvores ou pedras que se chocamviolentamente, ento nada os detm na corrida para outros rios. Ao se juntarem, aumentam a prpriafora. Se t