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Clarissa Bazzanelli Barradas A DESORDEM CRIADORA: AS AMBIGÜIDADES DA ALEMANHA DE WEIMAR EM O GABINETE DO DOUTOR CALIGARI MESTRADO EM HISTÓRIA PUC - São Paulo 2006

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Clarissa Bazzanelli Barradas

A DESORDEM CRIADORA: AS AMBIGÜIDADES DA ALEMANHA DE WEIMAR EM O GABINETE DO DOUTOR CALIGARI

MESTRADO EM HISTÓRIA

PUC - São Paulo 2006

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Clarissa Bazzanelli Barradas

A DESORDEM CRIADORA: AS AMBIGÜIDADES DA ALEMANHA DE WEIMAR EM O GABINETE DO DOUTOR CALIGARI

MESTRADO EM HISTÓRIA

São Paulo 2006

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Clarissa Bazzanelli Barradas

A DESORDEM CRIADORA: AS AMBIGÜIDADES DA ALEMANHA DE WEIMAR EM O GABINETE DO DOUTOR CALIGARI

Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História sob orientação do Prof. Dr. Antonio Pedro Tota.

PUC - São Paulo 2006

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Banca Examinadora

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RESUMO

O objetivo desta dissertação é lançar mais um olhar sobre o filme de Robert

Wiene, O Gabinete do Dr. Caligari (1919), evidenciando, nas manifestações artísticas

da cinematografia expressionista alemã, a idéia de uma fragmentação cultural que se

estabelecia na República de Weimar (1919-1933). Especificamente, a dissertação

procura apresentar quais as formas em que se revelam, no filme, os conflitos, as

ambigüidades de uma Alemanha que, ora dialogava com uma noção de Kultur, ligada a

uma idéia de comunidade, de unidade cultural que parecia ausente, ora com uma noção

de Zivilisation que foi se tornando dominante naquela temporalidade. Por meio do filme

procurou-se estabelecer ligações possíveis entre o cinema e os conflitos vividos pela

sociedade alemã do período, considerando que o mundo afeta a arte, assim como é

afetado por ela, já que o filme não é apenas uma “imagem” concernente a Weimar, mas

uma coadunação permanente entre o universo sócio-cultural e a arte cinematográfica.

Foi nesta Alemanha em que O Gabinete do Dr. Caligari foi construído, que se

evidenciam os influxos desta sociedade sobre o filme, embora não se pretenda assumir

uma visão “sociologizante” do cinema, pois o foco desta pesquisa não é a sociedade em

si, mas a representação desta através da obra. A arte é reflexo e reflexão num

permanente jogo de mão dupla.

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ABSTRACT

The goal of the present dissertation is to advance a viewpoint on Robert Wiene’s

film The Cabinet of Dr. Caligari (1919), showing through the artistic manifestation of

the German expressionist cinema the a idea of cultural fragmentation in the Weimar

Republic (1919-1933). Specifically, the dissertation aims at introducing the forms

through which the conflicts and the ambiguities of a Germany that, at times, would

dialogue with idea of Kultur - linked to the notions of community and of cultural unity,

which seemed to be absent - and at times with the idea of Zivilisation that was

dominant in the period. Throughout the film, the dissertation aims at establishing

possible connections between the cinema and the conflicts the German society was

going through at that time; because the environment affects the expressions of art and

art affects the environment. Thus, the film is not only an “image” concerned with

Weimar, but it is a permanent junction of the socio-cultural universe and the

cinematografic art. It is in this Germany that The Cabinet of Dr. Caligari was created

and it shows how the society influenced the film, however this dissertation does not

intend to assume a sociological point of view about the film, since the main goal of this

research is not society in it self, but rather, a perception of it throughout the work. Art is

a reflection about life and it reflects life through a mutual game of influences.

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Aos meus pais,

Antonio Martins Barradas e Teresinha Bazzanelli

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente aos meus pais, Antonio Martins Barradas e Teresinha

Bazzanelli, professores que dedicam suas vidas à educação, e que muito me ensinaram

sobre o valor e a importância do conhecimento.

Agradeço ao meu querido orientador, o Prof. Dr. Antonio Pedro Tota, pela

generosidade e competência e por ter aceitado o risco, apesar de todas as dificuldades,

acerca de um tema tão controverso.

À direção e ao corpo técnico da CAPES, pela bolsa de pesquisa, sem a qual eu

não poderia ter realizado este trabalho.

Aos professores doutores, Maria Bethânia Amoroso e Milton Lahuerta, pela

disponibilidade, pela leitura atenta e refinada em minha qualificação.

À Profa. Dra. Estefânia K. C. Fraga, pela leitura rigorosa e por suas valiosas

contribuições em Pesquisa Histórica.

Aos professores do programa de estudos pós-graduados em História,

especificamente, à Profa. Dra. Denise Bernuzzi Sant’Anna, pelas contribuições em seus

cursos, sempre enriquecedores. Às professoras que fizeram parte de minha formação, e

que ao longo de meu percurso tornaram-se exemplos, Helenice Ciampi e Yone de

Carvalho.

Ao amigo Alexandre Pianelli Godoy, que esteve ao meu lado, sempre, me

alicerçando nestes difíceis anos. Agradeço suas leituras, seus textos, suas “cobranças”,

enfim, o grande apoio.

À amiga Daniela Domingues Leão Rêgo, que dividiu comigo o mesmo “teto”, as

mesmas angústias, nestes dois anos de estudos e escrita, para ambas. Boa sorte em sua

jornada!

À minha querida amiga Izabel de Azevedo Marques Birolli, pela presença nesses

últimos anos. Agradeço sua companhia, sua experiência, aprendi muito contigo! Boa

sorte em seu doutorado.

A Juliana de Castro Pedro, amiga incondicional, que esteve ao meu lado

durante todos esses anos de formação, e porque não, de amadurecimento, desde a

graduação. Sou muito grata a você!

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A amiga, querida, Tereza Freire, que também partilhou comigo os mesmos

caminhos, desde a graduação. Sua generosidade é irrestrita, agradeço por ser o que é, e

estar sempre por perto!

Aos amigos do programa de pós-graduação, Adriano Marangoni e Marcos

Guterman, com os quais partilhei momentos de grande enriquecimento intelectual.

E por fim, agradeço de modo especial, Alberto Luiz Schneider, pelos anos

compartilhados, por suas leituras, pelo incentivo incondicional e por estar sempre ao

meu lado, mesmo longe...

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .........................................................................................................11

CAPÍTULO I: A oscilação entre os extremos................................................................17

1.1. Em tempos expressionistas.......................................................................................18

1.2. Os novos vôos do expressionismo: as influências teatrais no cinema....................33

1.3. A imagem expressionista em movimento: Caligari e a "arte" no cinema .............39

CAPÍTULO II: As duas histórias do Dr. Caligari.........................................................45

2.1. A história de uma história famosa e sua moldura...................................................46

2.2. Siegfried Kracauer: alguns apontamentos..............................................................66

2.3. Do revolucionário ao conformista............................................................................71

CAPÍTULO III: A singularidade alemã: um tempo de paradoxos e incertezas..........83

3.1.Fragmentação e unificação: os mundos de Caligari................................................84

3.2. A natureza e as cidades expressionistas...................................................................95

3.3. Os médicos taumaturgos.........................................................................................104

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................122

BIBLIOGRAFIA ..........................................................................................................135

APÊNDICE: Intertítulos de O Gabinete do Dr. Caligari............................................134

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APRESENTAÇÃO

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Um filme, como uma película do tempo, tanto adere às representações mais

conservadoras como se desloca ao ser colocado em movimento pela seqüência dos

fotogramas e pela temporalidade do espectador, portanto, do historiador que o interpreta

numa nova temporalidade. Cabe a este mostrar, principalmente através da linguagem

cinematográfica, o que muda permanecendo e o que permanece mudando. O Gabinete

do Dr. Caligari, sendo uma produção de seu tempo, revela-se uma inestimável fonte de

interpretação da sociedade alemã do período entre guerras. Ao se trabalhar com uma

película de 1919, com indiscutível valor estético e histórico, expressamente com uma

intenção crítica, faz-se necessário exceder a simples história narrada para que haja uma

resignificação do ambiente histórico, cultural e político da Alemanha de Weimar.

A interpretação da historicidade do filme, O Gabinete do Dr. Caligari, talvez seja

uma boa resposta para fugir de posturas particularizadas. Quanto mais as ambigüidades

aparecerem na interpretação do filme, mais perto estará de sua historicidade. Para tanto,

a pergunta que se evidencia é: de que forma aparece no filme a tensão, a ambigüidade

ou o conflito entre uma noção de Kultur que se perdia ou estava ausente – noção essa

ligada à cultura pensada em termos de sua relação com a natureza e o natural – e uma

noção de Zivilisation que se tornou predominante, mas artificial, tecnicista e burguesa e,

por isso, altamente destrutiva?

Um fenômeno peculiar: palavras como civilização em

francês ou inglês, ou o alemão Kultur, são inteiramente claras no

emprego interno da sociedade a que pertencem. Mas a forma pela

qual uma parte do mundo está ligada a elas, a maneira pela qual

incluem certas áreas e excluem outras, como coisa mais natural, as

avaliações ocultas que implicitamente fazem com elas, tudo isto

torna difícil defini-las para um estranho. (...) O conceito francês e

inglês de civilização pode se referir a fatos políticos, ou

econômicos, religiosos ou técnicos, morais ou sociais. O conceito

alemão de Kultur alude basicamente a fatos intelectuais, artísticos

e religiosos e apresenta a tendência de traçar uma nítida linha

divisória entre fatos deste tipo, por um lado, e fatos políticos,

econômicos e sociais, por outro. O conceito francês e inglês de

civilização pode se referir a realizações, mas também a atitudes ou

‘comportamento’ de pessoas, pouco importando se realizaram

alguma coisa. No conceito alemão de Kultur, em contraste, a

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referência a ‘comportamento’, o valor que a pessoa tem em virtude

de uma mera existência e conduta, sem absolutamente qualquer

realização, é muito secundário. O sentido especificamente alemão

do conceito de Kultur encontra sua experiência mais clara em seu

derivado, o adjetivo kulturell, que descreve o caráter e o valor de

determinados produtos humanos, e não o valor intrínseco da

pessoa. Esta palavra, o conceito inerente a kulturrell, porém, não

pode ser traduzido exatamente para o francês e o inglês. (...) a

palavra Kultiviert (cultivado) aproxima-se muito do conceito

ocidental de civilização. Até certo ponto, representa a forma mais

alta de ser civilizado. Até mesmo pessoas e famílias que nada

realizaram de kulturell podem ser kultiviert que se refere

primariamente à forma da conduta ou comportamento da pessoa.

Descreve a qualidade social das pessoas, suas habitações, suas

maneiras, sua fala, suas roupas, ao contrário de kulturrell, que não

alude diretamente as próprias pessoas, mas exclusivamente a

realizações humanas peculiares (...). Há outra diferença entre os

dois conceitos estreitamente vinculada a isto. Civilização descreve

um processo ou, pelo menos, seu resultado. Diz respeito a algo que

está em movimento constante, movendo-se incessantemente para a

frente. O conceito alemão de Kultur, no emprego corrente, implica

uma relação diferente, com movimento. Reporta-se a produtos

humanos que são semelhantes a flores do campo, a obras de arte,

livros, sistemas religiosos ou filósofos, nos quais se expressa a

individualidade de um povo. O conceito de Kultur delimita.” 1

É óbvio que toda questão-problema já indica uma resposta de antemão. Porém,

parece que o próprio filme sugere esse princípio, ou ponto de partida interpretativo para

buscar entender as relações do filme, suas ambigüidades, as permanências e mudanças,

nesse conturbado ambiente histórico no qual está inserido o movimento expressionista e

o filme de Robert Wiene.

Tendo este trabalho o tema e sua fonte central um filme de 1919, produzido

durante o processo de reestruturação da Alemanha, no pós-guerra, O Gabinete do Dr.

Caligari, apresentar-se-á como um “testemunho” da sociedade que o produziu, uma

1 ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994, volume I, pp.24-25.

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fonte documental importantíssima para a apreensão das especificidades históricas do

período, já que, nenhuma produção cinematográfica está livre das conformações sociais

de sua época. O valor documental de cada filme está relacionado diretamente com o

olhar, com a perspectiva que é dada pelo historiador, e infinitas são as possibilidades de

leitura de cada filme.

No primeiro capítulo da dissertação, intitulado A oscilação entre os extremos,2

pretende-se interpretar o jogo entre duas grandes temporalidades que se chocam, se

conflituam e se indeterminam mutuamente, provocando um silêncio agônico diante de

uma situação nova. Para tanto, é fundamental historicizar o movimento expressionista

para a apreensão de suas temáticas e inserções, nas diversas linguagens artísticas que

abrange, das artes pictóricas ao cinema, sempre tendo em vista, o quanto suas

especificidades revelavam seu tempo, servindo como fonte interpretativa para

compreender a Alemanha de Weimar.

O expressionismo, como o título de Willet sugere, oscilava entre idéias

antagônicas, ora voltadas ao arrebatamento do nacional, que pressupunha a crítica à

idéia de uma “civilização” racionalista e estrangeira, celebrando a preservação do que

era “autenticamente alemão”, ora dialogava com uma chamada “linguagem universal”

das vanguardas européias, mais cosmopolitas e “civilizadas”. Essas contradições vistas

nas obras expressionistas estão em conformação com a heterogeneidade presente no

seio do movimento, da mesma maneira que refletem as contradições vividas pela nação

alemã, durante o final da Primeira Grande Guerra, e todas as conseqüências

subseqüentes a ela, como o declínio do Império de Guilherme II, as questões vinculadas

ao Tratado de Versalhes, assim como o difícil estabelecimento do regime republicano

em 1919.

Outro ponto explorado neste primeiro capítulo, e que vai caminhar de encontro ao

filme, está nas análises sobre as influências do teatro alemão na difusão de novas formas

de representação, mais tarde vistas no cinema expressionista. O teatro expressionista

que se reestruturou nos primórdios do século XX, angariou para o cinema, além de

grandes nomes da dramaturgia, novas experimentações estéticas, temáticas, que até 2 A oscilação entre os extremos título simbolicamente tirado de John Willet que analisa o movimento expressionista, por meio da metáfora de uma corrente marítima com os fluxos e contrafluxos de difícil conformação, ou seja, para o autor a única constante é a oscilação entre os extremos. A terra firme e o alto mar, a fraternidade otimista e o indivíduo desesperado são manifestações opostas do mesmo conflito, gestado na Primeira Grande Guerra Mundial. WILLETT, John. Expressionism. Londres: Weidenfeld and Nicholson – Word University Library, 1970. IN: GUINSBURG, J. (org.) O Expressionismo. São Paulo, Editora Perspectiva, 2002.

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então estavam apenas na esfera das artes plásticas e da literatura. Outra questão

levantada no capítulo é concernente às produções cinematográficas, além da

importância e influência de O Gabinete do Dr. Caligari para o cinema alemão. As

produções cinematográficas alemãs a partir do final da guerra, passam a ter um caráter

mais industrial, tentando despertar um interesse não só no público já acostumado a essa

linguagem, mas vislumbrando uma expansão desse novo mercado. Assim sendo, há um

investimento maciço nas produções ditas “artísticas”, e o expressionismo foi levado ao

cinema com esse intuito, tornando a “arte” um elemento “calculado” para essas

produções.

No segundo capítulo, As duas histórias do Dr. Caligari, já enfocando

especificamente o filme de Robert Wiene, as investigações procuram mostrar as

distintas possibilidades de interpretação do filme, já que este foi modificado durante seu

processo de produção. O filme, escrito por Hans Janowitz e Carl Mayer, pretendia ser

um protesto contra as ações autoritárias do Estado alemão durante a guerra, mas Robert

Wiene, ao assumir a sua direção, altera o filme acrescentando um novo prólogo e

epílogo, o que gerou uma série de polêmicas acerca do filme e dessas modificações.

Para analisar, o que ficou posteriormente conhecido como narrativa moldura (prólogo e

epílogo acrescidos na história original), foi utilizado o que David Robinson 3 chama de

resumo do roteiro original, distinguindo as duas histórias.

Nos tópicos subseqüentes, há um diálogo com Siegfried Kracauer, autor que

possui estudos muito relevantes a propósito do cinema e da cultura de massas, e o que é

mais significativo para esta pesquisa, sua obra sobre a cinematografia alemã em De

Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão.

Para o autor, o filme modificado sofre uma resignificação, quando perde seu

sentido revolucionário, de crítica à autoridade. E seus questionamentos são

profundamente pertinentes, dadas que suas críticas vão de encontro com seu tempo, com

suas experiências vividas durante o nazismo. Cabe ao historiador olhar com os olhos de

seu tempo, portanto é necessário historicizar a própria obra de Kracauer, pois as

modificações do filme, resignificadas, também podem possibilitar uma interpretação

que revele as contradições e ambigüidades pelas quais passava a sociedade alemã no

período. Não necessariamente a crítica empreendida pelos roteiristas se dissipa na

3 ROBINSON, David. O Gabinete do Dr. Caligari. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

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chamada narrativa moldura, ela pode permanecer no enredo, que apenas se torna mais

ambíguo assim como a época em que foi produzido.

No terceiro capítulo, A singularidade alemã: um tempo de paradoxos e

incertezas, a questão principal gira em torno de uma particularidade alemã, que são

evidenciadas por meio da interpretação do filme, em suas crises de fragmentação e

unificação culturais. A Alemanha vivia uma situação ambígua, paradoxal, um choque de

temporalidades, como já foi afirmado, que revelava uma crise entre a idéia de

pertencimento dos grupos, das comunidades, do que realmente simbolizava um valor

intrínseco a elas, diante de um mundo distinto que se estabelecia rapidamente deixando

ausentes estes laços, numa sociedade dita “civilizada” e racional - idéia que dialoga com

os conceitos de Norbert Elias acerca da Kultur e da Zivillisation.

É importante destacar como essa idéia aparece na construção visual do filme, os

elementos acentuados do expressionismo, vão justamente mostrar de maneira oblíqua, a

partir das figuras do filme de Robert Wiene, e de maneira geral, no movimento

expressionista, a criação, ou recriação de um mundo distinto. Um mundo olhado através

de imagens inventadas, que ressaltam as fantasias estabelecidas pelos seus personagens.

Por isso suas características psíquicas e físicas são deformadas, revelam o grotesco, o

amoral, estando intimamente em conformação com realidades imaginadas de acordo

com suas perspectivas, como é o caso do diretor do asilo que inventa ser Caligari ou do

personagem de Francis quando imagina que seu médico psiquiatra seria o Dr. Caligari

de sua narrativa.

Outro ponto importante é o dialogo estabelecido com Foucault para

interpretação em O Gabinete do Dr. Caligari dos “médicos” que simbolizam o alcance

do poder psiquiátrico diante da criação das doenças e de suas verdades, muitas vezes

fabricadas. Caligari ou o diretor do asilo, ora simboliza a figura do homem da ciência,

portanto da Zivillisation, ora retoma antigos mitos quando se torna Caligari e submete o

paciente com sonambulismo a cometer assassinatos, criando uma moralidade a parte.

No filme, as relações de poder indicadas por meio dos médicos, revelam como a

psiquiatria buscava criar verdades, além de novas formas de pensar e agir numa

sociedade “civilizada” que perdia, em função de uma racionalização extremada, suas

identidades nacionais e a consciência de si mesma num sentido cultural.

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CAPÍTULO I

A oscilação entre os extremos

O dualismo, a antítese é o princípio motor, o princípio

passional, dialético e espirituoso. (Naphta a Settembrini).

Thomas Mann, A Montanha Mágica.

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1.1. Em tempos expressionistas

Um desenho de George Grosz que indica “em primeiro plano, um oficial com

capacete erguendo um copo na mão esquerda, enquanto a direita brande um sabre que

trespassa um bebê, tudo isso sobre um monte de cadáveres e de poças de sangue: à tua

saúde Noske! O proletariado foi desarmado, proclama a legenda”, 4 sugere o quanto a

nova geração de artistas, principalmente aqueles que reagiam contra as correntes

artísticas anteriores, estavam imbuídos de uma notória oposição à política Imperial e

simpatia pelos revolucionários de novembro de 1918.

Com o “novo estilo” do movimento artístico, as vanguardas do início do século

XX, críticas às tradições, abriam um novo prospecto para sobrepor o abismo criado nas

artes em suas formas tradicionais de representação:

Como reação violenta e idealista à agonizante cultura

Guilhermina, o Expressionismo alemão não constitui, como o

Futurismo italiano e o Surrealismo francês, um agrupamento

consciente orientado por programa comum. É principalmente

um esforço artístico semeado em campo múltiplo – plástico,

musical, literário, teatral – fertilizado por um espírito coletivo

de rebeldia individual. Essa rebeldia, entretanto, não define

contornos ideológicos e artísticos claros. Dos anos iniciais do

século XX à Primeira Guerra Mundial e, especialmente, no

breve período da chamada Revolução de Novembro, entre

1918 e 1919, surge na Alemanha uma série de estratégias que

respondem à situação histórica e cultural. Não há, portanto,

apenas um expressionismo, mas uma série de

expressionismos, que vão do emocionalismo primitivista ao

geometrismo abstrato. Essa diversidade formal mostra que o

Expressionismo é mais que um estilo. É, antes de tudo, uma

atitude em relação ao mundo e à arte, uma consciência social

particular, uma filosofia estética que tenta revolucionar a

sociedade alemã da época. 5

4 RICHARD, Lionel. A República de Weimar (1919-1933). São Paulo: Companhia das Letras/Círculo do Livro, 1990, p.45. 5 FERNANDES, Sílvia. A encenação teatral no Expressionismo. IN: GUINSBURG, J. (org.) O Expressionismo. São Paulo, Editora Perspectiva, 2002, p.225.

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O expressionismo6 apresentou uma tentativa de se desvincular da arte

academicista7, fazendo oposição aos seus ideários, ainda que fosse sua extensão, isto é,

não era a representação em si, mas a emoção do artista, a sua subjetividade. Por isso o

movimento acabou por se destacar como corrente artística hegemônica no período,

transformando a experiência concreta para transmitir “mensagens e sensações”. Os

expressionistas se inspiravam no “progresso” e numa “visão de futuro”, rejeitando o

materialismo do século XIX, para alcançar “uma nova espiritualidade da alma”. Alguns

historiadores da arte viram o fim do movimento expressionista a partir da eclosão da

guerra que, posteriormente foi considerado como o momento da divisão do movimento

em duas gerações distintas, a primeira imbuída de ideais espirituais e:

A segunda geração que sofria da desilusão induzida pela

guerra e estava insatisfeita com a sociedade alemã do

pós-guerra, tomou parte na pregação de uma nova

sociedade sem classes. Via a guerra como força

6 O Expressionismo, que surgiu na virada do século XIX, para o século XX, tem suas raízes, basicamente, na Escandinávia, na Alemanha e na França – e não pode ser classificado como um estilo uniforme, – trata-se de uma reação artística à situação instável do clima social, em todas as regiões européias. Culturalmente essa época oscilava entre presságios apocalípticos e uma nova consciência do indivíduo, politicamente entre as estruturas desgastadas da tradição monárquica, na Alemanha, e das idéias radicais de uma sociedade revoltada, que pretendia apoderar-se do poder. Não é de admirar que na luta entre essas energias espirituais antagônicas tenha surgido um imenso campo de tensão, contendo, ao mesmo tempo, a representação apavorante da grande cidade que gera depravação, do poder de destruição da guerra e do sonho eufórico de um homem novo com uma visão paradisíaca de reaproximação entre o homem e a natureza. Sempre quando encontramos o Zeitgeist (espírito do tempo) perambulando sem rumo, na arte, entre inseguranças e nova transcendência após a virada do século, fala-se em arte expressionista, tendência fortemente marcada por uma postura apaixonadamente afirmativa, mais do que pela invenção de novos princípios formais. Entretanto, o páthos, revolucionário que, apesar disso, marca o Expressionismo como arte moderna de vanguarda, não resulta de um conceito estilístico, mas da coragem de colocar o indivíduo, e sua vivência emocional, no centro da expressão artística. A realidade percebida pelos sentidos é para o Expressionismo o impulso que gera a experiência íntima, ou o símbolo de um estado d’alma específico. Assim, as obras expressionistas tornam-se um grito sublime do indivíduo que, embora impotente, luta pela sua libertação. Possuem uma expressividade pictórica simples e direta, cujo vocabulário é formado de cores puras e fortes, superfícies grandes, pinceladas expressivas de forte tensão, e de uma deformação formal extremamente expressiva que, às vezes, chega perto da caricatura. Como os cubistas, os expressionistas recusam a arte sensual do Impressionismo, mas dele aproveitam os efeitos sensuais da luz e da cor, que permitem um conteúdo de forte expressividade e emotividade das cores. THOMAS. Karin. Bis heute: Stilgeschichte der Bildenden Kunst im 20 Jahrhundert. Köln, Du Mont Buchverlag, 1944. IN: GUINSBURG, J. (org.) O Expressionismo, op. cit., p.401. 7 O conjunto das obras pictóricas, especialmente dos fovistas Derain, Dufy, Braque, Marchet é oriundo de uma oposição ao movimento Impressionista. O Expressionismo foi difundido como um “estilo” pelos críticos e historiadores da Arte, a partir de 1911, principalmente Wilhelm Worringer e Herwarth Walden resultando em idéias, nas quais, a subjetividade é a base da arte, e a intuição, o elemento fundamental da criação.

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liberadora que havia depurado a velha e montado o palco

para uma nova era em que os artistas seriam profetas. 8

No seu sentido mais abrangente, o expressionismo utiliza-se da arte não mais

para descrever situações, mas para expressar emoções. O termo Expressionismus foi

inicialmente escolhido em deliberada oposição a Impressionismus. Em 1909, o

manifesto da Neue Kunstlervereinigung, cujo presidente era Wassily Kandinky,

declarou:

Partimos da idéia de que o artista, além das impressões

que recebe do mundo exterior, da natureza,

continuamente acumula experiências em seu mundo

interior, e é em busca de formas artísticas que deve se

libertar de todos os elementos irrelevantes, de modo a

expressar só o necessário. 9

Essa oposição às formas tradicionais não se criou aleatoriamente, ao contrário,

ela se deu após muitas contradições e transformações dentro do próprio movimento

artístico e da atmosfera político-cultural da Alemanha. Muitos “olhares” crentes ou

descrentes passaram por essas gerações de expressionistas, revelando as ambigüidades e

as nuances da Alemanha, desde seu período ainda sob a tutela monárquica, nos anos de

guerra e posteriormente com o advento da República.

O Expressionismo passou por inúmeras rupturas, mas igualmente passou por

continuidades à medida que compartilhava os mesmos anseios da geração de fin de

siècle que a precedeu. Desde seus primórdios em 1905, o expressionismo se ateve

principalmente às artes pictóricas, expandindo-se a outras áreas, como afirma Cláudia

Valladão de Mattos:

Desse ponto de vista, poderíamos afirmar que o Expressionismo

nasce, enquanto movimento, nas artes plásticas e se resume a

manifestações pictóricas e literárias durante todo o período que

antecede a Primeira Guerra. Será somente no pós-guerra que

veremos o desenvolvimento de uma estética expressionista em

8 Sobre ver: BARRON, Stephanie. German Expressionism 1915 – 1925: the second generation. Los Angeles: Los Angeles Country Museum of Art, 1998. 9 ROBINSON, David. O Gabinete do Dr. Caligari. op. cit., p.42.

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outros gêneros artísticos, tais como a música, teatro, cinema, moda,

entre outros. 10

Durante um período de aproximadamente vinte anos, o expressionismo passou

por fases distintas, uma anterior e outra posterior à Primeira Grande Guerra. Em um

primeiro momento dois grupos se destacaram em igual importância nas artes plásticas, o

Die Brücke (Dresden), em 1905, e mais tarde em 1911, o Der Blaue Reiter. A literatura,

de maneira mais lenta, também contribuiu para a difusão do expressionismo, Herwarth

Walden angariava alguns poetas na publicação da revista Der Sturm, assim como Franz

Pfemfert, que apesar de ideários absolutamente distintos, produzia a revista Die Aktion:

De um ponto de vista político, no entanto, esses dois principais

foros expressionistas do pré-guerra, a saber, o de Walden e o de

Pfemfert, alimentavam utopias bastante diferentes. Enquanto

Walden acreditava no papel profético do artista, fazendo dele,

romanticamente, a vanguarda espiritual da humanidade, Pfemfert

defendia posições radicais de esquerda, exigindo o engajamento

político-social afetivo de seus artistas. As páginas da Die Aktion,

portanto, traziam uma arte politizada e comprometida com idéias

revolucionárias de esquerda, especialmente durante os anos de

guerra, ao passo que a Der Sturm popularizava os ideais de

Kandínski e seus colegas do Der Blaue Reiter. 11

Dresden, cidade que se industrializava aceleradamente, possuía uma burguesia

emergente e uma grande massa de trabalhadores. O grupo Die Brücke, criado pelos

artistas Ernest Ludwig Kirchner, Carl Schmidt-Rottluff, Fritz Bleyl e Erich Heckel,

pretendia fundir arte à vida cotidiana, buscando restaurar os elos perdidos entre o

homem e a natureza, ou seja, a rápida industrialização significava para essa geração de

artistas um processo de artificialização do homem, uma descontinuidade que se

estabelece em diversos âmbitos, do social ao cultural - desde as revoluções burguesas do

século XVIII - e muito de seus ideários partiram dos chamados movimentos de

juventude (Jugendbewegungen) muito comuns na Alemanha do início do século XX:

10 MATTOS, Cláudia Valladão de. Histórico do Expressionismo. IN: GINSBURG, J. O Expressionismo, op. cit., p.45. 11 Idem, op.cit., p.45.

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De fato, o desejo de libertar a arte da esfera do estético, para a qual

ela se refugiara desde o século XVIII, pode ser considerado o

motor fundamental das idéias e práticas do grupo, em seus anos em

Dresden. Desse ideal nasce, por exemplo, o interesse profundo do

grupo pela arte assim chamada “primitiva”, tanto não-européia,

quanto gótica, consideradas manifestações autênticas de um fazer

artístico inteiramente integrado às demais esferas da vida social.

Também as atividades comunitárias do grupo podem ser

compreendidas como uma tentativa de colocar em prática tais

utopias. “Permitir que a vida e arte voltassem a constituir-se num

todo harmônico através de um fazer puro e naif”, assim definiu

Kirchner, certa vez, os objetivos da Die Brücke.12

Vassíli Kandínski, em 1911, publica Über das Geistige in der Kunst (Do

Espiritual na Arte), influenciando teoricamente o grupo Der Blaue Reiter; suas idéias de

geração de uma arte espiritual, significava romper com o século XIX, representado pela

arte academicista de seu tempo. Para Kandínski, “o espírito das academias de sua época,

era considerado, desse ponto de vista, essencialmente materialista, representando o

inimigo contra o qual uma nova geração de artistas espiritualizados deveria lutar”. 13 O

livro de Kandínski se baseava na tese de doutoramento de Wilhelm Worringer, em que a

intuição do artista seria o principal elemento do processo criativo.

Essa geração pré-guerra dialogou com uma espécie de “linguagem universal”

das vanguardas européias, houve um cosmopolitismo cultural por parte desses artistas,

mas essa postura se transformaria à medida que essa “arte espiritual” sofre um

estreitamento às concepções nacionalistas, como aponta Magdalena Bushart:

Cosmopolistismo e internacionalismo eram considerados, mesmo

por alguns de seus amigos defensores, como superados: agora

pensava-se em termos nacionais, quando não em termos de povo e

concentrava-se nas virtudes alemãs, em seus poetas, seus

12 MATTOS, Cláudia Valladão de. Histórico do Expressionismo. IN: GINSBURG, J. O Expressionismo, op. cit., p.47. 13 Idem, op. cit., p.50.

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pensadores e seus monumentos como testemunhos de um passado

cheio de fama.14

Retomando a malograda revolução liberal de 1848, passando pela unificação da

Alemanha pela via prussiana, o regime político alemão permanecia tradicionalista e

fundado sobre os princípios da autoridade (Obrigkeit), carregando um ranço político, e

porque não dizer cultural, bastante fragmentado, o que Lionel Richard denominou de “a

artificial nação-alemã por sujeitar-se a autoridade suprema”. 15 Isso não significa que,

instituída a República de Weimar, a situação tenha sido completamente modificada, ao

contrário, alguns aspectos vão permanecer inalterados, mesmo tendo como modelo uma

democracia parlamentarista firmada pela Constituição de agosto de 1919.

Como afirma Norbert Elias, a democracia alemã sofreu impedimentos em função

de uma oposição em seus valores e códigos de conduta incompatíveis. A República de

Weimar não modificou a estrutura da personalidade, ao contrário, agregou o caráter

guerreiro da aristocracia a partir do século XVIII, gerando um modelo que atingiu os

diferentes estratos sociais, o que o autor chama de digressão para o nacional. 16

Naturalmente, muitas instituições políticas, movimentos

ideológicos e grupos - inclusive o nacionalismo - sem antecessores

tornaram necessária a invenção de uma continuidade histórica, por

exemplo, através da criação de um passado antigo que extrapole a

continuidade histórica real seja pela lenda, ou pela invenção. 17

Essa particularidade alemã, durante a administração imperial, gerou a falta de

autonomia dos Estados regionais, das províncias e suas dinastias em prol de uma

autoridade central: “Depois da fundação do famoso Reich bismarckiano, a provação da

guerra é a primeira manifestação de um destino comum ao qual todos os alemães estão

expostos” 18, ou seja, a idéia de uma fragmentação, tanto cultural como política não é,

14 BUCHART, Magdalena. Der Geist der Gotik und die expressionistische Kunst. München, Schreiber, 1990. MATTOS, Cláudia Valladão de. IN: Histórico do Expressionismo. IN: GUINSBURG, J. (org.) O Expressionismo, op. cit., p.43. 15 Sobre ver: RICHARD, Lionel (org.). Berlim 1919-1933: a encarnação extrema da modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1933. 16 Ver: ELIAS, Norbert. Os Alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. 17 HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence. (orgs.) A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p.15. 18 HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence. (orgs.) A invenção das tradições, op. cit., p.16.

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em absoluto, recente e a guerra reiterou a idéia de nacionalidade, do que era

autenticamente alemão, fazendo com que os alemães passassem a preocupar-se com a

imagem que possuíam de si mesmos.

Um fervor patriótico, gerado pelas afirmações das nacionalidades, que acometeu

os alemães em 1914, e na mesma medida grande parte da Europa, fez com que houvesse

um encorajamento em relação à Primeira Grande Guerra e à política guilhermina. Se

Guilherme II, em 31 de julho de 1914, afirma que a espada está sendo posta em mãos

alemãs, naquele momento angariou forças a favor da guerra, isso muito se deu em

função de defender-se de uma agressão externa, como afirma Lionel Richard:

Todos os partidos, sem exceção, tinham dado razão a Guilherme II.

Naturalmente, ele havia obtido a adesão dos conservadores e dos

nacional-liberais, que representavam as categorias sociais que

sustentavam o Estado, os industriais, fidalgos, os oficiais

superiores. O Partido Social-Democrata, seguido em geral pelas

massas trabalhadoras, também o havia aprovado. Da mesma forma

que os progressistas, que reuniam uma parte da burguesia liberal e

intelectual. Finalmente, o influente partido católico o Zentrum: sua

ala esquerda, apoiada pelos operários dos sindicatos cristãos,

estava próxima dos social-democratas, mas sua direção estava nas

mãos da outra ala, formada por funcionários e membros do alto

clero, que defendiam as posições chauvinistas dos conservadores e

dos nacional-liberais. A guerra havia sido encorajada também por

uma organização poderosa que, sem ter representação parlamentar,

exercia uma sedução sobre as elites: a Liga Pangermanista.

Fundada em 1894, era contra judeus, os eslavos e os socialistas de

todas as categorias. Conclamava os povos germânicos à união e

preconizava, para proteger a Alemanha, a anexação dos Estados

limítrofes. Para ela, a guerra não era destrutiva, mas salvadora,

geradora de progresso para a humanidade. 19

A exaltação do nacional fez com que também os intelectuais aderissem à idéia

de preservação da “cultura” alemã contra a “civilização” estrangeira, exemplos como

Thomas Mann, Max Scheler, Friedrich Meinecke saudavam a reunião da nação alemã.

19 RICHARD, Lionel. A República de Weimar: 1919-1933, op. cit., pp.18-19.

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Essa geração, preocupada com as identidades nacionais, com o que é autenticamente

alemão (urdeutsch), aliava a tradição romântica à modernidade, obviamente que essas

características, dentro do movimento artístico, não eram em absoluto homogêneas, mas

os anos de pré-guerra salientaram - em função de todas as complexidades da ambiência

histórica, marcada pela instabilidade de uma Alemanha isolada política e culturalmente

- essa especificidade de busca das identidades nacionais também nos movimentos

artísticos. 20

Jefrey Herf indica caminhos para compreensão do impulso anti-modernista que

contemplava os dirigentes da nação, assim como a intelligentsia alemã, que pretendia

associar “modernidade técnica” e arcaísmo sócio-político. 21 Essa coexistência de

valores díspares não surpreende ao tratar-se da Alemanha, e nem mesmo foi iniciada na

República de Weimar. Esse antagonismo entre modernidade técnica e tradição nacional

fica apenas mais evidente em Weimar.

A batalha acerca de Technik und Kultur acontecia diante do pano

de fundo da derrota militar, de revoluções fracassadas, da contra-

revolução bem sucedida, de uma esquerda dividida, de uma direita

amargurada e ressentida e do famoso liberalismo alemão (...) A

cultura de Weimar foi o cadinho no qual a síntese cultural a que

chamo de modernismo reacionário tanto se forjava quanto ganhava

novo e mais afiado gume (...). 22

Os nacionalistas acreditavam que as qualidades do Volk alemão eram superiores

às capitalistas e liberais, assim como o socialismo marxista, “defendiam o völkisch

Kultur contra a Zivillisation cosmopolita”, 23 as raízes do povo simbolizavam um valor

superior, baseado na comunidade, na raça, na tradição cultural. Já a idéia de civilização,

ameaçava esse lastro tradicional de comunidade e pertencimento, com o

Amerikanismus, o liberalismo, o materialismo, portanto tudo o que a República de

Weimar representava.

20 MATTOS, Cláudia Valladão de. Histórico do Expressionismo. IN: GUINSBURG, J. (org.) O Expressionismo, op.cit., p.43. 21 DUPEUX, Louis. História Cultural da Alemanha: 1919 – 1960. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1989, p.18. 22 HERF, Jefrey. O Modernismo reacionário: tecnologia, cultura e política em Weimar e no terceiro Reich. São Paulo: Editora Ensaio, 1993, p. 32. 23 Idem, p.32.

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O nacionalismo servia como uma religião secular que prometia

uma alternativa a um mundo que sofria de excesso de

racionalização capitalista e comunista. Os alemães elevavam a

situação geográfica entre Leste e Oeste a uma identidade cultural-

política também. A Kulturnation iria escapar aos dilemas de uma

modernidade cada vez mais sem alma.24

A questão da modernidade trouxe uma antinomia para o pensamento

nacionalista alemão em tempos de avanços tecnológicos. Se a tecnologia pertencia a

esfera da Zivillisation, dificilmente adequar-se-ia às idéias nacionalistas, o que ocorria

em muitas vertentes do nacionalismo como em obras de Ernst Jünger, Klages, van der

Bruck, mas com a inversão dos valores virtuosos da técnica, de sua necessidade, a

tecnologia passa a compor o universo da Kultur, sem comprometer-se com uma visão

de mundo racional, tanto política como culturalmente, é o que Jefrey Herf denomina de

modernos reacionários25. E o expressionismo não escapou dessa vertente:

Entre as correntes culturais de Weimar, o modernismo reacionário

foi único, por aglutinar o irracionalismo com o entusiasmo pela

tecnologia. Os expressionistas geralmente atacavam a tecnologia e

o filisteísmo burguês de esquerda. Dramaturgos como Ernst Toller,

Gerg Kaiser viam a tecnologia como fonte de desumanização.

Embora também reclamassem uma revolução cultural, bem como

política, a síntese da irrazão com a tecnologia moderna estava além

deles. 26

Essas inclinações alemãs estão intimamente relacionadas com a fraqueza da

democracia e das políticas liberais numa sociedade que se industrializava

aceleradamente. O choque entre duas temporalidades, de um lado a modernidade

tecnológica, e por outro uma recuperação de idéias românticas, revelam a

particularidade de um país constituído por meio de uma ausência das chamadas

revoluções burguesas, diferentemente de outros países europeus, e que também refutava

24 HERF, Jefrey. O Modernismo reacionário: tecnologia, cultura e política em Weimar e no terceiro Reich, op. cit., p. 49. 25 Idem, op. cit., p.54. 26 Idem. Ibidem.

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o Iluminismo ao formar suas identidades nacionais a partir do século XIX, se

estendendo até a República de Weimar.

(...) a guerra foi um momento decisivo para o anticapitalismo

romântico. Foi após a guerra que os revolucionários conservadores

associaram o irracionalismo, o protesto contra o Iluminismo e um

culto romântico da violência com o culto da técnica.

Particularmente no seio da intelectualidade não-técnica, a guerra

estimulou o desenvolvimento de idéias modernistas reacionárias. 27

A guerra foi um divisor de águas também para o expressionismo, pois se figuras

como o russo Kandínski terminaram indignadas e expulsas do país, outros artistas viram

a guerra como um “fator positivo”. A civilização decadente seria extirpada, e

novamente haveria tempos em que a “espiritualidade” predominaria. Essa tendência,

que já vinha ganhando espaço desde 1911, mesmo dentro de movimentos que

dialogavam com um cosmopolitismo cultural, com a idéia de uma Europa irmanada,

como foi dito acima, passa a se voltar cada vez mais à cultura nacional, à identidade

germânica durante a guerra - ao Urgeist.

É nesse momento que as teorias expostas por Wilhelm Worringer,

em seu Die Formproblem der Gotik (1911), sobre a tendência do

povo alemão à “abstração”, em oposição ao espírito “materialista”

dos franceses, tornar-se-ão definitivamente populares e se

observará um retorno apaixonado ao Medievo, lugar suposto de

origem “autêntica” arte alemã. [Os grifos são da autora] 28

Essa disposição em prol da guerra começa a se dissipar na medida em que são

sentidos os efeitos reais do conflito, as críticas tornam-se cada vez mais correntes, não

só por meio da classe artística, como também pela população, o estilo ganha um tom

cada vez mais ativista e panfletário, como aponta Claudia Valladão de Mattos ao referir-

se ao depoimento de Conrad Felixmüller quando este recorda sua atuação no período:

27 HERF, Jefrey. O Modernismo reacionário: tecnologia, cultura e política em Weimar e no terceiro Reich, op. cit., p.36. 28 Idem, op. cit.,p.45.

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Fortes discussões em torno do Futurismo, do Expressionismo, do

Cubismo e da abstração animavam, então, o mundo das artes, na

cena artística alternativa era a revolução social que se exprimia no

mundo intelectual, na linguagem e na forma dos poetas de então,

através de revistas, especialmente a Die Aktion, de Pfemfert. As

formas tradicionais já haviam sido bombardeadas. Nesse processo,

o Expressionismo, da forma como os pintores do grupo “Der Blaue

Reite”, de Munique, ou da “Die Brücke” o entendiam, foi rejeitado

como uma nova forma de brincadeira estética ou como um

“negroidismo primitivo”. A situação humana e política exigia mais

do que um estilo estético, arte deveria ser confissão, discurso,

conteúdo.29

Essa postura faz com que artistas consagrados passem a cumprir um novo papel,

seus quadros, poemas tornam-se cada vez mais correntes, há uma grande divulgação

dessas obras, gerando uma nova fase de grande prestígio ao movimento, além de um

desdobramento para outras áreas, a linguagem expressionista passa a abranger também

o cinema, o teatro, a dança, música e arquitetura.

Com o retorno do front numa guerra perdida e profundamente destrutiva, o

movimento mudaria sua postura. A Revolução de Novembro, o fim da era Guilhermina,

e conseqüentemente a instauração da República de Weimar provocaram nesse ambiente

cultural um engajamento político por parte dos artistas expressionistas, muitos deles

eufóricos com a Revolução Russa e seus princípios, ou seja, a situação de euforia

belicista dura pouco. À medida que era refutada a idéia de uma vitória breve, que a

situação de racionamento e insatisfação social crescia diante da população, os

movimentos de oposição à guerra ganhavam força.

Nos últimos anos da guerra, a Alemanha ansiava pela democracia. Desde a

Constituição de 1871 nada havia sido modificado30, o sistema político do país estava

29 HERF, Jefrey. O Modernismo reacionário: tecnologia, cultura e política em Weimar e no terceiro Reich, op. cit., p.56. 30 Em novembro de 1918, Ebert e Scheidemann, empenhavam-se em formar uma nova assembléia nacional e munir a Alemanha de uma Constituição republicana. Houve eleições em janeiro de 1919, e seu resultado deu fim a revolução, como afirma Richard: A verdadeira vitória era do parlamentarismo. Os alemães haviam concedido a maioria dos seus sufrágios aos partidos que, especialmente em 1917, pediam o Parlamento uma democratização das instituições. Os majoritários, o Zentrum e os democratas - que provinham de uma fusão entre os progressistas e os nacional-liberais - recolheram juntos 75% dos votos. Era sobre essa aliança que a nova República alemã podia ser construída. Formado a 13 de fevereiro de 1919, o gabinete de Scheidemann repousou sobre essa aliança, bem como quatro dos cinco outros governos que se sucederam até o final de 1922. p. 51. Também Louis Dupex aponta para a questão

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todo alicerçado em fundamentos antidemocráticos herdados da velha Prússia, inclusive

sua direção, feita pelo imperador, que nomeava os chanceleres. Com a derrota alemã,

Guilherme II nomeia Max von Baden como chanceler, cabendo a ele todas as

negociações de armistício, e seu indicado para atenuar situação alemã perante os países

inimigos é Mathias Erzberger (Zentrum).31

Exaurida pela desventura de uma guerra que já perdurava por mais de quatro

anos, a administração Imperial, em declínio e consciente de que jamais sobreviveria sem

mudanças, ansiava pela paz, principalmente após a ofensiva dos Aliados em 1918.

Assim sendo, o príncipe Max von Baden, apelou ao Presidente Woodrow Wilson por

um armistício nas bases dos Quatorze Pontos, instaurando uma Monarquia Parlamentar

sob um regime “democrático”. A partir daí, diversos movimentos tornaram inevitáveis

as transformações políticas.

Em novembro do mesmo ano, Kurt Eisner proclamou uma República na

Bavária, agregando também outras cidades sob sua liderança. Max von Baden então

exige a abdicação do Imperador, apoiado pelos Generais Hindenburg e Gröener. Mesmo

assim, Guilherme II insiste em ter ao menos o trono da Prússia, mas o pedido foi em

vão. Max von Baden fez seu sucessor o líder social-democrata Friedrich Ebert

anunciando a abdicação do Imperador. Assim sendo, Philipp Scheidemann anuncia a

instauração da República e a formação de um governo socialista sob a chefia de Ebert.32

Também os independentes tiveram um importante papel na oposição à guerra,

principalmente o movimento espartaquista. Influenciados pela Revolução Russa,

lideraram greves e as classes trabalhadoras a fim de liquidar o regime Imperial e com a

guerra.

Em 1918, a situação acima descrita, de desmoronamento militar e político

caracterizam o fim da Alemanha Imperial33. Em novembro de 1918, como afirma Lionel

da Constituição weimariana: lastreado numa Constituição que comportava uma declaração dos direitos (e dos deveres) do tipo anglo-francês, generalizando o autêntico sufrágio universal (incluindo o voto feminino), instaurando a separação dos poderes e a responsabilidade ministerial e estendendo a forma republicana de governo a todo Reich: em seu conjunto, um regime à moda ocidental, para a qual a maioria do povo alemão não estava evidentemente preparada e que levaria seus inimigos de direita e extrema direita a falarem de um regime estrangeiro, enquanto a extrema esquerda denunciava seu caráter burguês. Esta é em linhas gerais, a explicação da fragilidade do regime de Weimar e, juntamente com a amplitude dos traumatismos provocados pela paz de Versailles e as crises econômicas (...). DUPEUX, Louis. História Cultural da Alemanha: 1919 – 1960, op. cit., pp. 18-19. 31 Ver: RICHARD, Lionel. República de Weimar 1919-1933, op. cit. 32 Sobre o tema ver: GAY, Peter. A Cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 33 Entre os grandes países europeus, a Alemanha e a Itália foram os últimos a se constituírem enquanto Estados-nacionais. Após longo e tortuoso processo, apenas em 1871, a moderna nação alemã nascia, não sem uma sofisticada engenharia política e uma agressiva belicosidade militar. O surgimento da Alemanha

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Richard, o país estava diante de uma Revolução e de duas Repúblicas. Uma liderada por

Ernest Meyer e Karl Liebknecht, apoiados pelo operariado, e outra, liderada pelos

Social-Democratas, que se antecipam contra o levante espartaquista:

Enquanto a multidão de grevistas desfilava, os deputados social-

democratas tinham decidido reunir-se no parlamento. Duas

imagens ricas de sentido. Os berlinenses que puderam, com duas

horas de intervalo, ir a dois lugares, foram testemunhas da

concorrência entre esses dois poderes. Era um pouco mais de duas

horas da tarde quando, do parlamento, Scheidemann proclamava a

República alemã. Sabendo das intenções de Liebknecht, ele se

adiantara, sem qualquer discussão anterior com seus colegas

social-democratas, pondo Ebert em má situação. Quando, duas

horas mais tarde, Liebknecht pede diante do Castelo Real a criação

de uma República [Camaradas, proclamo a República socialista

livre da Alemanha, uma República em que todas as categorias

sociais se encontrarão reunidas, onde todo o operário,

impactou a Europa da segunda metade do século XIX, tanto econômica como politicamente. A Primeira e a Segunda Grande Guerra, as quais tiveram a Alemanha como um palco fundamental, guardam uma notável relação com o advento de 1871, onde a Prússia da “Real Politik” de Bismarck pariu a Alemanha moderna, um país que já nasceu como uma potência, e sob a supremacia da velha Prússia! A “Real Politik” foi uma prática política liderada por Bismarck e dirigida por um sentido prático, a concretização da unidade dos Estados alemães. A idéia de unidade claramente se sobrepunha à da liberdade. Quando fosse conveniente, a Prússia se opunha aos “aliados”, ou ainda, deles se utilizava contra o particularismo prussiano. A concretização tardia da Alemanha, segundo o paradigma romântico de nação, ou seja, um “povo”, uma língua, um Estado, gerou nas forças políticas lideradas por Bismarck e pela casa real prussiana - que tomaram para si a tarefa política (e militar) de unir os Estados alemães – um pragmatismo sem precedente, onde os “fins justificariam os meios”, em que as conveniências teriam primazia sobre os princípios. A conquista da unidade nacional seria revestida de tal urgência, que qualquer coisa para atingi-la parecia legítima. A associação entre a “força” e “êxito” gerariam os fins desejados, formando na Alemanha uma crença singular numa “racionalidade meio mística”. Mais do que a espontânea união dos Estados alemães, a unidade nacional alemã deu-se sob a batuta militarista da Prússia. Guilherme I tornou-se, além de soberano da Prússia, Imperador da Alemanha unificada. Segundo a Constituição, proclamada em 16 de abril de 1871, no Artigo 2: “O Império exerce o poder legislativo na extensão do território federal, nos limites indicados da presente Constituição. Dentro desses limites as leis do Império prevalecem sobre as leis de cada Estado...” (Anuário da Legislação Estrangeira, 1872). Como se pode ver, o poder central se sobrepõe ao local. Apesar das funções do parlamento (Reichtag), em última instância o poder está sob a tutela do Imperador (Kaisereich), que detinha, segundo a referida Constituição, o poder de dissolver o próprio parlamento, como atesta o Artigo 12: “O Imperador convoca, abre, prorroga e dissolve o conselho federal e o Reichtag...”. Além do parlamento, também as forças militares se encontram submetidas constitucionalmente ao Imperador: Diz o Artigo 63: “O conjunto das forças terrestres do Império constitui uma única força armada, colocada, em tempo de guerra e de paz, sob as ordens do Imperador...”. A arquitetura política desenhada por Bismarck, o que outros chamaram de “Real Politik”, levou a Prússia a liderar, impor a unidade política aos Estados alemães, de maneira que o monarca prussiano personificasse a recém surgida Alemanha, que passaria a exercer uma forte influência no destino da Europa a partir de 18 de janeiro de 1871.

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reencontrando sua dignidade, obterá por seu trabalho um salário

digno...], sua proposta não parece mais que um mero desafio.34

O governo Ebert, de novembro de 1918 até início de 1919, luta para esmagar a

ala dos independentes, e conseqüentemente, Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo35.

Gustav Noske foi o escolhido e estigmatizado como o “cão sanguinário” para sufocar

essa oposição por meio dos chamados Freikorps. 36

A instabilidade política se acerbava diante de uma situação profundamente

precária. As dificuldades econômicas do pós-guerra e as rigorosas condições impostas

pelo Tratado de Versalhes37, assinado em 1919, alimentaram um profundo ceticismo em

relação à república.

Houve no país, concomitantemente à instauração da República pelos social-

democratas, revoltas populares e uma tentativa de tomada de poder por parte desses

revolucionários. O Novembergruppe, o Arbeitsrat für Kunst, e muitos outros, surgem

então, apoiados por intelectuais, além dos artistas, para reagir e buscar saídas para a

crise, questionando a função dessa elite intelectual na sociedade. 38

Esses grupos como o Novembergruppe, ou mesmo o Arbeitsrat für Kunst,

diferentemente dos grupos do pré-guerra, muitas vezes reduzidos em pequenos núcleos

34 RICHARD, Lionel. República de Weimar 1919-1933, op. cit, p.35 - 38. 35 Os revolucionários pretendiam derrubar o governo de Ebert, e Noske acompanhado dos Freikorps, responsáveis pelo esmagamento dessa movimentação, não pouparam esforços para tal: Durante vários dias, as metralhadoras crepitam em Berlim. As tropas governamentais distribuem até armas aos civis que se apresentaram como voluntários para liquidar os spartakistas. ‘Abaixo Liebknecht! Viva o governo!’, gritavam grupos de oficiais na Wilhelmstrasse, o bairro dos ministérios, pedindo aos basbaques que peguem fuzis e os sigam. Certas ruas são fechadas aos transeuntes. Foram cercadas porque os spartakistas ergueram barricadas e ali se escondem. Travam-se verdadeiras batalhas, a cidade é esquadrinhada pelas patrulhas, multidões de curiosos acorrem ao espetáculo e são tomadas de pânico quando as balas silvam ao seu redor! RICHARD, Lionel. República de Weimar 1919-1933, pp.42-43. 36 Os Freikorps eram organizações paramilitares, formadas por ex-oficiais que, após a guerra encontravam-se desempregados, já que a República Alemã não possuía um exército popular. Formavam uma vanguarda especializada em atos de violência e perseguiam dois objetivos: o fim do sistema multipartidário e a restauração de relações claras, hierárquicas e formalizadas de domínio e subordinação. 37 O tratado de Versalhes foi completado muito às pressas, em fins de abril, e entregue aos representantes alemães em Versalhes, a 7 de maio. Das suas 440 cláusulas, poucas deixaram de ser alvo de intensa barganha e de graves desentendimentos e , embora a intenção original fosse convidar os delegados inimigos a participarem da conferência assim que um acordo preliminar de paz houvesse sido esboçado, isto se tornou impossível devido às dificuldades para se chegar a um acordo. (...) Essas objeções vieram fortalecer a crescente sensação, principalmente entre os representantes britânicos, de que, globalmente o tratado estava duro demais (...) Em conseqüência, o tratado que os alemães finalmente assinaram a 28 de junho de 1919 - no mesmo Salão de Espelhos de Versalhes em que a França fora obrigada a reconhecer sua submissão após a guerra franco-prussiana de 1871 - era apenas uma versão ligeiramente alterada da original. Ver: HENIG, Ruth. O Tratado de Versalhes. São Paulo: Ed. Ática, 1991, pp. 46-47. 38 BRILL, Alice. O Expressionismo na pintura. IN: GINSBURG, J. O Expressionismo, op. cit., p.419.

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de artistas, efetivam a idéia de uma política de ação conjunta, de socialização da arte

para melhoria do bem comum por meio de um Gesamtkunstwerk (obra de arte total). 39

É importante ressaltar o quanto esse movimento artístico se transforma

radicalmente após a República de Weimar. Antes, ocupando espaços restritos, nas

academias e pequenas galerias de arte, passa a fazer parte de um uma organização do

próprio Estado nas atividades públicas de ensino.

Apesar do movimento não mostrar mais uma “originalidade” como em seus

primórdios, sua durabilidade e resistência parte para outros domínios ainda marginais,

tanto o cinema como o teatro se beneficiaram dessa estética para impulsionar-se. Com o

avanço do tempo, dos muitos governos weimarianos que desapontavam

incessantemente, também diante da situação econômica inflacionária, dos conflitos

sociais internos pós-1918, extingue-se definitivamente o movimento expressionista. Em

1925, a Neue Sachlichkeit, vem para “substituir” o expressionismo, fazendo com que a

arte ganhasse contornos mais críticos e realistas nas formas de representação. 40

39 MATTOS, Cláudia Valladão de. IN: Histórico do Expressionismo. IN: GUINSBURG, J. (org.) O Expressionismo, op. cit., p.57. 40 Idem, p.58.

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1.2. Os novos vôos do expressionismo: as influências teatrais no cinema

Após os desvios sofridos pelas diversas fases e chegando a um limite, em função

de seu desgaste nas artes plásticas e literatura, o expressionismo persiste por mais

alguns anos - anos de excelência - quando é alçado às “novas” esferas da cultura, como

é o caso do teatro e do cinema. As duas formas de representação estariam intimamente

relacionadas, não apenas pelas temáticas, experimentações estéticas em comum, mas

trocaram entre si figuras importantes dentro de sua ambiência histórica.

As artes vanguardistas, de alguma maneira, se beneficiaram com a República.

Segundo Cláudia Valladão de Mattos, a queda do Império proporcionou um aumento

das salas de teatro no país, os teatros da corte (Hof-residenztheater) transformaram-se

em salas públicas, a censura abolida deu oportunidades ao surgimento das novas

propostas estéticas dentro do teatro e mais tarde também no cinema. 41

As peças teatrais expressionistas se tornaram, e isso se deu em função de suas

encenações que revolucionaram as montagens no período, de alguma maneira, um

alicerce para o cinema. Mesmo sendo suas produções anteriores à guerra - várias das

peças ditas expressionistas já haviam sido publicadas e lidas - a maior parte delas só

foram encenadas a partir de 1917, coincidindo com o período em que o expressionismo

valorizava os “arquétipos, mais do que um indivíduo, através do qual esboçam-se idéias

universalmente válidas para a humanidade”. 42

Quando o expressionismo, ao refletir sobre seu tempo, inclina-se sobre os

problemas que o cercavam, trazendo para arte, novas temáticas, conteúdos a serem

discutidos, muda-se a maneira de olhar o mundo. Essa linhagem do expressionismo

valorizava as ações psicológicas dos personagens como forma de expressão, autores

como Franz Wedekind, Reinhard Sorge e Georg Kaiser dentre muitos, em suas peças

apontavam para uma nova concepção de dramaturgia:

Abrindo mão das noções tradicionais de estruturação da cena

segundo os princípios de unidade espaço-temporal, os

expressionistas fizeram do mundo interno da personagem principal

o único elo entre os diversos elementos da trama. Encenava-se no

41 MATTOS, Cláudia Valladão de. IN: Histórico do Expressionismo. IN: GUINSBURG, J. (org.) O Expressionismo, op. cit., p.59. 42 Idem, p.53.

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próprio palco o desenvolvimento psicológico dos personagens,

seus conflitos, sua visão de mundo.43

Na história do teatro alemão, como foi dito anteriormente, o expressionismo já

produzia sua dramaturgia antes mesmo do fim da guerra, aproximadamente nos anos de

1911-1912, mas foi a partir de suas encenações que houve uma reestruturação nas

formas de representação teatral. Silvia Fernandes distingue as diversas fases do

expressionismo no teatro:

Diebold subdividiu a representação em três categorias gerais,

baseadas na relação expressiva da cena com o público. A

representação Geist, espiritual e abstrata, reflete o desejo de

expressão pura e luta por uma espécie de comunicação absoluta e

conceptual entre dramaturgo, encenador e espectador. A

representação Schrei, expressão do grito extático, geralmente se

manifesta no palco pela deformação bizarra de movimentos,

formas, linguagens, motivações e lógica interna das personagens.

As representações do ich, expressão absoluta do eu, assemelha-se

ao tipo anterior em certos aspectos, mas está centrada numa figura

central que se destaca das demais. O chamado ‘Expressionismo

tardio’ é associado a essa última categoria, talvez por resultar da

mescla dos traços mencionados, funcionando como uma espécie de

síntese dos modelos que o precederam. 44

Os traços mais marcantes do teatro expressionista, e traços que marcariam

também o cinema, estão no que se denominou representações do “ich” , notadamente

exprimido pelas encenações de figuras importantes como Frank Wedekind, Max

Reinhardt e Leopold Jassner.

A tendência do teatro - irradiada também para o cinema, conseqüentemente para

O Gabinete do Dr. Caligari - estava de acordo com as aspirações críticas à autoridade.

Os tabus sociais eram explicitados na condenação dos valores aristocráticos, rígidos, de

subordinação, temas comuns no período entre guerra, que muitas vezes se mostravam

43 MATTOS, Cláudia Valladão de. IN: Histórico do Expressionismo. IN: GUINSBURG, J. (org.) O Expressionismo, op. cit., p.59. 44 FERNANDES, Silvia. A encenação teatral no expressionismo. IN: GINSBURG, J. O Expressionismo, op. cit., p.224.

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representados em figuras paternas. O conflito entre pai e filho é uma constante. Peter

Gay sustenta que esse é o momento em que a arte comenta a vida, associando esses

conflitos à revolução de novembro, como sendo “uma rebelião contra a autoridade

paterna”. 45 Luiz Nazário, em As sombras móveis: atualidade do cinema mudo, na

mesma linha de interpretação de Gay, qualifica como um dos primeiros dramas

expressionistas, a peça de Walter Hasenclever, Der Sohn (1914) e afirma que “os

artistas logo se voltaram contra a família, os mestres, o exército, o imperador, todas as

autoridades estabelecidas, prestando solidariedade aos jovens, marginais, oprimidos,

pobres e loucos”. Para Martin Esslin “o teatro expressionista alemão gira basicamente

em torno do conflito pai e filho.” 8 Confirmando a mesma idéia Richard Sheppard

comenta mais amplamente que:

De uma forma ou de outra, a maior capacidade de controle sobre

o mundo exterior fora adquirida às custas da vida interior. Assim,

argumentava-se que o preço da ordem social dominante fora a

‘mecanização do Espírito’ e a transformação dos seres humanos

em ‘relações e funções’ desessencializadas. Uma dimensão

fundamental (o Geist) comum ao mundo interior e exterior

parecia ter sido banida, perdendo-se a unidade essencial entre

esses dois mundos: ‘É claro que, gradualmente, a capacidade de

usar nosso Espírito (Geist) desapareceu. A linguagem ainda

oferecia conceitos adequados para tratar exclusivamente de

fenômenos econômicos; e, atingindo este estágio, era apenas em

questões econômicas que ainda se podia encontrar alguma

vitalidade na Alemanha’. O Geist humano, afirmava Kurt Hiller,

tornava-se cada vez mais incapaz de se expressar nas questões da

vida cotidiana, confinando-se num âmbito da interioridade cujas

dimensões se reduziam constantemente, à medida que as

instituições do materialismo e do utilitarismo reforçavam seu

domínio sobre as personalidades individuais. Tais convicções

estavam diretamente relacionadas com o conflito pai-filho das

peças expressionistas: o pai simbolizava todas as forças da

autoridade insensível e repressora, a qual devia ser esmagada

45 GAY, Peter. A cultura de Weimar, op. cit., p.133. 8 ESSLIN, Martin. O teatro modernista: de Wedekind a Brecht. IN: BRADBURY, Malcolm e McFARLANE (orgs.) Modernismo: guia geral –1890-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 443.

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para que o filho pudesse se realizar. Numa anotação em seu

diário, de 3 de novembro de 1911, Georg Heym sintetizou esse

sentimento ao escrever: ‘Eu teria sido um dos maiores poetas se

não tivesse tido como pai um tal porco.9

A necessidade de revoltar-se contra alguns valores como a autoridade paterna, as

formas políticas que se estabeleciam, mostra o quanto a geração de expressionistas tinha

uma postura antitética, que poderia ser lida como afirma Silvia Fernandes, como um

argumento negativo, um argumento de depreciação, mas ao contrário foi o traço mais

marcante do movimento. “O artista expressionista procura transcender o caos por meio

de visões de um mundo ideal, vendo a história contemporânea como alegoria criada

pelo embate de forças arquetípicas que aprisionam o homem e parecem insuportáveis

para sua fragilidade”. 46

As influências do teatro, que passaram como foi dito, por toda uma

reestruturação da dramaturgia, nos primórdios do século XX, foram difundidas para o

cinema. O austríaco Max Reinhardt, um dos grandes encenadores na Alemanha, figura

que a crítica Lotte Eisner analisa como grande inspirador do cinema alemão, mesmo

defendendo a idéia de que Reinhardt, por ser um artista bastante eclético, não abraçou o

expressionismo por inteiro,47 possibilitou com sua inventividade, novos recursos

cênicos, que ultrapassavam as questões e temáticas empregadas pela dramaturgia. Em

9 No mesmo texto Sheppard esclarece que (...) ao ser criado, o termo expressionista não tinha conotações literárias. Originalmente utilizado em francês, em 1901, para designar os oito quadros expostos pelo pintor diletante Julien Auguste Hervé no Salon des Indépendants, em Paris, parece ter surgido pela primeira vez em alemão em abril de 1911, no prefácio ao catálogo da 22 ª exposição da Berliner Sezession, para caracterizar um grupo de jovens pintores franceses, que incluía Picasso, Braque e Dufy. (...) O primeiro a aplicar o termo à literatura alemã foi, aparentemente, Kurt Hiller, no suplemento de julho de 1911 do Heidelberger Zeitung: ‘[...] Pelo menos aqueles estetas que só sabem reagir, que não passam de placas de cera para impressões, ou de gravadores delicadamente precisos, realmente nos parecem seres inferiores. Nós somos expressionistas’ . SHEPPARD, Richard. O expressionismo alemão. op. cit., p. 223-225. 46 FERNANDES, Silvia. A encenação teatral no expressionismo IN: GUINSBURG, J. (org.) O Expressionismo, op. cit., p.225. 47 É preciso acabar com essa confusão. Breno Fleischmann escreve com muita justeza em seu Max Reinhardt, editado em Viena, em 1948: ‘Reinhardt guardava prudente reserva e manifestava pouca compreensão diante dos jovens escritores expressionistas. Eles estavam muito distantes tanto de seu temperamento, quanto de seu estilo. Se lhes abriu as portas de seu teatro, foi em ciclos marginais, como Das junge Deutschland em Berlin, e Das Theater des Neuen em Viena. Ele próprio quase não participava deles. O grande, o incansável experimentador se mantinha afastado dessas experiências’. Mas deixando de lado a discussão sobre Reinhardt produzir ou não encenações expressionistas, o fato de que essa figura se caracterizou como um diretor que influenciou a geração de cineastas, e mesmo de encenadores em seu tempo, é incontestável. Sobre ver: EISNER, Lotte. A tela demoníaca: as influências de Max Reinhardt e o Expressionismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p.45.

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1905, assume a direção do Deutsches Theater de Berlim, modernizando o teatro e

criando novas formas de representação.

Os vínculos entre cinema e teatro de Reinhardt, como argumenta Eisner, são

bastante evidentes. Além da maioria dos atores de Reinhardt estarem nos chamados

filmes expressionistas, os jogos de luz, as organizações cênicas, utilizadas pelo

encenador foram fundamentais para a concepção estética do cinema48.

O impacto dessas montagens não deve ser subestimado nas futuras

produções expressionistas. A atmosfera de sonho, a dicção lírica, a

projeção cênica do drama de estações e a caracterização abstrata

das personagens encheram os palcos alemães de imagens

simbólicas, que conseguiam capturar a angústia e a alienação

social da jovem geração expressionista.49

As encenações de Max Reinhardt e futuramente as produções cinematográficas,

serviam-se dos jogos de luz e sombras, permitindo a esse jogo, ângulos diversos de luz,

recriando o leitmotiv do drama a cada cena produzida, como também se afastavam das

interpretações naturalistas do ator, reduzindo seus movimentos em gestos essenciais.

Essas características se intensificaram ainda mais no pós-guerra. Com a escassez de

matéria-prima, as montagens de Reinhardt abandonaram a suntuosidade arquitetônica e:

Passou a situar num cenário fixo, de preferência entre duas colunas

imensas, todas as cenas de uma mesma peça, mesmo que se

desenvolvessem em lugares diversos. A luz e a escuridão

adquiriram então um novo sentido, substituindo as variações

arquitetônicas, ou animando e transformando um mesmo cenário.50

48 Eisner amortiza a idéia de que o cinema sofreria unicamente a influência das encenações de Reinhardt quando afirma: Porém, o célebre claro e escuro do cinema alemão não tem como origem única o teatro de Max Reinhardt. Não podemos negligenciar a contribuição dos cineastas nórdicos, sobretudo os dinamarqueses, que invadiram os estúdios alemães, como Stellan Rye, Holger Madsen ou Dinesen. Eles trouxeram, antes mesmo que o estilo expressionista se definisse, o amor pela natureza e o senso do claro-escuro. EISNER, Lotte. A tela demoníaca: as influências de Max Reinhardt e o Expressionismo, op. cit., p.45. 49 FERNANDES, Sílvia. A encenação teatral no expressionismo. IN: GUINSBURG, J. (org.) O Expressionismo, op. cit., p. 232. 50 EISNER, Lotte. A tela demoníaca: as influências de Max Reinhardt e o Expressionismo, op. cit., p.46.

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O filme de Robert Wiene, O Gabinete do Dr. Caligari, evidentemente,

encontrou mais inspiração nos precedentes da mise en scène teatral de Geog Kaiser,

Ernest Toller, Max Reinhardt, entre muitos outros, do que na filosofia expressionista

das artes plásticas. Os cenógrafos de O Gabinete do Dr. Caligari, Hermann Warm,

Walter Reimann e Walter Röhrig, haviam estudado minuciosamente essas produções

teatrais para alcançar o estilo do filme. Mas, mais que as ascendências sofridas pelo

cinema, seja do teatro, ou minimamente da concepção filosófica do expressionismo,

deve-se levar em conta uma série de condições historicamente propícias para o

florescimento dessa linguagem estética.

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1.3. A imagem expressionista em movimento: Caligari e a “arte” no cinema

A autora Lotte Eisner alude ao fato do termo “expressionismo” ser usado

arbitrariamente em todos os filmes alemães denominados como “clássicos”, e questiona

a idéia de o filme de Robert Wiene ser, para muitos, o único filme com relevância

rodado na Alemanha.51 Em oposição a essa idéia, Peter Gay se refere ao Gabinete do

Dr. Caligari, em sua obra A cultura de Weimar, como o artefato mais celebrado da

República de Weimar, destacando seus méritos na geração de novas experiências que

claramente desembocaram em outras, além de apontar a conveniência do filme para se

interpretar Weimar. Segundo o autor: “Havia mais em jogo aqui do que um estranho

script ou novidades na iluminação”. 52 Havia também algo reincidente na história alemã,

que se modificava a cada representação imagética.

Obviamente, que a escolha de O Gabinete do Dr. Caligari, está intimamente

vinculada a idéia de relacionar as representações imagéticas e a seqüência narrativa ao

seu tempo. Se o filme não se justifica isoladamente para se pensar a Alemanha entre

guerras, com uma produção cultural riquíssima, num tempo profundamente conturbado

política e socialmente, pode trazer importantes elementos para a interpretação de sua

historicidade, assim como tantos outros produzidos no mesmo período.

Se o filme de Robert Wiene, desde sua estréia, suscitou polêmicas a ponto de ser

chamado de “comida estragada” ou “a primeira tentativa significativa de expressão

criativa” 53, alguma razão há para ser considerada a obra mais importante do cinema

expressionista, além de ter se tornado referência estética aos filmes posteriores.

O Gabinete do Dr. Caligari,54 produzido em 1919 pela Decla-Bischop,

justifica-se como uma obra de referência por inúmeras razões. Caminhou no sentido de

novas ambições estéticas ao cinema mundial, além de buscar uma perspectiva diversa

em todo o seu processo de produção, que incluía as relações entre narrativa e imagem,

as inovações nas artes gráficas e representação dos atores55. Proporcionou ao cinema

51 Sobre ver: EISNER, Lotte. A tela demoníaca: as influências de Max Reinhardt e o Expressionismo. 52 GAY, Peter. A Cultura de Weimar, op. cit., p.119. 53 KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 14. 54 Das Cabinet des Dr. Caligari. Filmschauspiel in sechs akten/Alemanha: 1919/1920. Companhia produtora: Decla-film Gesellschaft/ Holz & Co. Produção: Erich Pommer, Rudolpf Meinert. Diretor: Robert Wiene. Scenario (Roteiro): Carl Mayer, Hans Janowitz. Fotografia: Willy Haneister. Cenógrafos: Hermann Warm, Walter Reimann, Walter Röhrig. Partitura musical para estréia em Berlim: Giuseppe Becce. Diretor musical para estréia em Berlim: Leo Zelinsky. 55CÁNEPA, Laura Loguercio. Houve de fato um cinema expressionista alemão? Artigo apresentado no programa de Pós-graduação em Estética do Áudio-visual – ECA/USP, s/d, p.07.

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alemão, fechado ao mercado internacional até 1920 em função da guerra, um prestígio

jamais alcançado até então.

David Robinson confirma o prestígio e relevância de O Gabinete do Dr.

Caligari em função das necessidades da indústria cinematográfica de seu tempo.

Segundo o autor, nos anos de pré-guerra, o cinema alemão estava em defasagem em

relação ao resto da Europa, pois a maioria dos filmes era importada da França, Itália e

Estados Unidos. 56 O período de desenvolvimento da indústria cinematográfica alemã

coincidiu com a integração e emancipação de empresários judeus na Europa. Essa

indústria cinematográfica, a princípio, era vista com certo preconceito, os artistas ditos

“sérios” consideravam o cinema ainda uma arte menor, até o empreendimento de

grandes redes de exibição no país.

O primeiro empresário a preocupar-se com o mercado cinematográfico foi Paul

Davidson, que ao importar da Dinamarca o aparato técnico necessário para tanto, rompe

a divisão hierarquizada entre cinema e teatro. Com esse investimento, cria-se um

contrato com o sindicato dos dramaturgos, gerando o chamado “cinema de autor”

(Autorenfilm), que atraía para si grandes nomes do teatro, portanto salvaguardando para

o cinema o seu prestígio e sucesso - além de espectadores, muitos, ainda acostumados

com o teatro a essas produções.

Exemplos dessa cinematografia do início do século na Alemanha estão obras

como Der Andere (O Outro), filme de 1913 dirigido por Max Mack, Der Stundent von

Prag (O estudante de Praga), de Stellan Rye e Paul Wegener que já apresentavam de

alguma maneira traços expressionistas. O relativo sucesso dessas produções

proporcionou ao cinema novos vôos temáticos e experimentações estéticas que

nasceram no teatro, nomes importantes do cenário artístico passam a vincular-se ao

cinema, desde seus dramaturgos, como também atores que prefiguraram em filmes

importantes do início do século XX.

56 Ver ROBINSON, David. O Gabinete do Dr. Caligari. Ver também: CÁNEPA, Laura Loguercio. Houve de fato um cinema expressionista alemão?, op. cit., p.05 (...) o cinema foi-se tornando cada vez mais importante para a indústria do entretenimento. Primeiramente, formou-se um circuito de exibição em locais fixos, criados com objetivos comerciais, com uma programação voltada a filmes curtos, exibidos em seqüência. A partir de 1905-1907, teve início um processo de sofisticação das salas, de introdução de longas-metragens e de reestruturação do espaço social vinculado ao cinema. Nesse sentido, o cinema na Alemanha se organizou de maneira semelhante ao do resto do mundo desenvolvido no começo do século XX. No entanto, em seus primeiros 20 anos de existência, o cinema alemão teve um desenvolvimento industrial mais lento que o de seus vizinhos. Até 1910/11, por exemplo, o país produzia apenas 10% dos filmes exibidos nos seus cinemas, importando a maior parte da programação da França, da Itália, da Dinamarca e dos EUA.

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Durante a guerra, as produções ao estilo de “dramas ingênuos” 57, continuam

bastante populares na Alemanha, mas com restrições em função da influência do cinema

norte-americano no mercado europeu. Essas importações foram oficialmente proibidas

no início de 1916, fazendo com que as produções alemãs ganhassem uma nova postura

e um caráter industrial, razão que levou à criação da Universum Film Aktien

Gesellschaft. 58 A partir de 1920, com a Lei do Reich Film59, foi possível restabelecer as

relações comerciais com o resto do mundo, proporcionando à indústria cinematográfica

alemã livrar-se de ressentimentos punitivos do pós-guerra e conquistar uma “nova

imagem”, e o filme de Robert Wiene, foi um dos beneficiados nesse aspecto.

A “nova imagem” do cinema alemão possibilitou a conjugação entre “arte” e

“indústria cultural”. O expressionismo, já consolidado nas artes plásticas, literatura e

teatro, coloca sua imagem em movimento, como síntese das suas diversas

manifestações:

Precisando diferenciar-se do cinema americano para com ele

competir, o cinema alemão passou a investir em filmes mais

“artísticos”. Em Berlim, trabalhava-se dia e noite nos estúdios, e a

técnica avançava, permitindo narrativas mais complexas, de modo

que já se exigiam semanas ou meses para rodar um filme. Os

artistas plásticos e gráficos passaram a assumir um papel relevante

na indústria cinematográfica, criando e pintando os cenários, os

57 Os dramas ingênuos são caracterizados, segundo Luiz Nazário, como filmes melodramáticos, que continuavam populares na Alemanha durante a guerra. Como exemplo temático: Em A Luz se apagou (Und das Licht erlosch, 1914), de Fritz Berhnardt, tio e sobrinho amam a mesma mulher, mas aquele [o tio] envia este [sobrinho] para uma longa viagem, casa com a noiva dele e faz naufragar o navio que o transportava apagando as luzes do farol; o rapaz sobrevive e retorna, obrigando o tio a reconhecer a inutilidade de suas tramas. Sobre o tema ver: NAZÁRIO, Luiz. O expressionismo e o cinema. IN: GUINSBURG, J. (org.) O Expressionismo, op. cit., p.507. 58 Em 1917, as autoridades, preocupadas com os filmes antialemães no exterior e a fim de promover a propaganda, além de abastecer o mercado interno, estimularam a organização de uma indústria cinematográfica – a UFA (Universum Film Aktien. Gesellschaft.), que uniu as principais companhias cinematográficas do país. Com o fim da guerra e a derrota alemã, em novembro de 1918, a UFA passou a ser administrada pelo Deutsches Bank. 59 Os principais mercados estrangeiros ainda estavam fechados; depois da Grande Guerra, os exibidores britânicos proibiram a importação de filmes alemães por cinco anos e os exibidores franceses por quinze. Mas, em 1920, a Lei do filme do Reich permitiu a importação de 15% de filmes estrangeiros sobre o número de películas alemãs exibidas, e o embargo estrangeiro foi levantado. Em 1921, a produção alemã só ficou atrás da de Hollywood: 246 filmes de longa-metragem contra 74 da França e 44 da Grã-Bretanha. Ver: NAZÁRIO, Luiz. O expressionismo e o cinema. IN: GUINSBURG, J. (org.) O Expressionismo, op. cit., p.509.

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fundos, as perspectivas, os grafismos nas paredes, nos intertítulos,

nos cartazes de publicidade e nos placares afixados nas salas. 60

David Robinson, também alude ao fato de filmes expressionistas, assim como O

Gabinete do Dr. Caligari, juntamente com os filmes em estilo Kolossal61 de Lubitsch,

terem inaugurado um novo conceito na “indústria” cinematográfica, nascia uma nova

exportação de filme comercial: Arte – nova, estimulante e acima de tudo visível e

chique62. Essa especificidade que introduziu no cinema a sua relação com as artes

pictóricas, modificou profundamente o caráter dos filmes do período, diferenciando-os

de outros também produzidos em escala industrial.

Para vermos Caligari numa perspectiva histórica adequada temos

que reconhecer que ele foi feito, consciente e estrategicamente, na

linha principal da produção comercial de seu tempo, com o

elemento arte calculado como uma atração extra e positiva, ainda

que incerta, para a bilheteria. 63

O intuito dos realizadores, ao diferenciarem os filmes num esforço determinado

para introduzir o elemento “arte” no cinema, vinha do interesse de diversificar seu

público, principalmente atraindo espectadores ainda resistentes à arte cinematográfica64,

e sendo assim, nada melhor do que oferecer a este público um atrativo diferenciado. Na

década de vinte, não havia uma separação entre “cinema de arte” e os filmes ditos

“comuns”, sua conjugação serviria para ampliar a recepção no cinema:

Esforços de introduzir o elemento “arte” no cinema, como os

“Films d’Art” na França de antes da Grande Guerra, os “Famous

Players in Famous Plays” nos Estados Unidos e os “Autorenfilm”

na Alemanha não foram o resultado de nenhuma missão altruística

60 Idem, ibidem. 61 O estilo foi diretamente influenciado pelas montagens teatrais de Max Reinhardt, com uma nova perspectiva em lidar com multidões e iluminação em cena. Os filmes também se beneficiavam do desemprego, advindo da precária situação econômica da Alemanha no pós-guerra, que barateava o recurso de grandes multidões de figurantes. Ver: EISNER, Lotte H. A tela demoníaca: as influências de Max Reinhardt e do Expressionismo, op. cit., p.105. 62 ROBINSON, David. O Gabinete do Dr. Caligari, op. cit., p.53. 63 Idem, p.54. 64 Até o começo da década de vinte, o cinema era uma diversão “popular”, e para alcançar um novo tipo de público, mais acostumado a freqüentar os grandes espetáculos teatrais, era necessária a construção de novas salas de cinema que se comparassem em tamanho e esplendor aos maiores teatros da época.

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visando elevar o meio de comunicação e educar os espectadores

(...) o conteúdo Arte tinha de ser apresentado e comercializado de

um modo que continuasse a ser atraente para a massa dos

freqüentadores e ao mesmo tempo aliciasse o espectador mais

seletivo.65

No caso de O Gabinete do Dr. Caligari, o estilo inusitado funcionaria como um

chamariz positivo, já que o expressionismo era a corrente artística em voga, além de

uma grande campanha publicitária: “O filme foi lançado no Marmohaus de Berlim a 26

de fevereiro de 1920, precedido de uma campanha publicitária inventiva, concentrada

no enigmático slogan: Du musst Caligari werden!. 66 E sua recepção foi permeada de

críticas positivas, segundo o depoimento de Hans Janowitz:

Em 1920, o gesto ousado do estilo no cinema já havia se tornado rotina, tanto que

“a fascinação popular pelos estilos da arte moderna, então na moda, gerou a redecoração

do Luna Park de Berlim à maneira expressionista, que deu ao popular parque de

diversões uma notável semelhança com (o parque) Holstenwall de O Gabinete do Dr.

Caligari”. 67 As características expressionistas no filme revelam-se sendo, mais do que

uma proposta “assustadora” ao público, uma atração positiva a ponto de inspirar artistas

plásticos como Warm, Reimann e Röhrig 68, a criar a cenografia de O Gabinete do Dr.

Caligari. E muitos foram os filmes que se valeram do estilizado projeto para

impulsionar-se.

Se nenhum filme posterior (ao Gabinete do Dr. Caligari) se

comprometia tão cabalmente com o caráter formal do estilo, com a

essência do expressionismo em contraposição ao Expressionismo69

- o uso de ambiente, cenografia, iluminação e claro-escuro para

65 ROBINSON, David. O Gabinete do Dr. Caligari, op. cit., pp.55-56. 66 Você precisa se tornar Caligari! Ver: NAZÁRIO, Luiz. O expressionismo e o cinema. IN: GUINSBURG, J. (org.) O Expressionismo, op. cit., p.514. 67 ROBINSON, David. O Gabinete do Dr. Caligari, op. cit., p.46. 68 Os cenários criados pelos pintores expressionistas Walter Reimann e Walter Röhrig e pelo cenógrafo Hermann Warm fazem hoje parte do acervo do Museu do Cinema Henri Langlois, em Paris. 69 O termo expressionismo devido a sua abrangência de significações foi diferenciado como: Expressionismo (E maiúsculo): característica da arte, da literatura, da música e do teatro modernos da Alemanha; expressionismo (e minúsculo): movimento teatral e cinematográfico alemão que existiu no começo da década de 1920; expressionismo (e minúsculo): um tipo de ênfase e distorção expressiva que pode ser encontrado em obras de arte de qualquer povo ou período. Sobre o tema ver: WILLETT, John. Expressionism.

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refletir e expressar a psicologia dos personagens - persistiria no

cinema alemão da década de 1920. 70

Se o filme foi dissociado das outras produções do período, sejam pelas

inovações técnicas, artísticas ou mesmo, industriais - e não se pode desconsiderar que a

obra realmente influenciou os caminhos da “nova” cinematografia alemã, pois as

produções expressionistas posteriores a Caligari realmente apoiaram-se em seu estilo (o

que ficou denominado como caligarismo), - seja pelo status de obra de arte que

angariou, o filme proporcionou ao cinema alemão um salto em suas produções em

diversos sentidos. Desde a criação de uma indústria cinematográfica até um novo tipo

de recepção, de formas de produzir, tornando-se sim uma referência em seu tempo. E as

análises, interpretações acerca desta obra podem emergir como um fruto apurado da

sociedade que a produziu, criando uma imagem singular da Alemanha de Weimar.

70 CÁNEPA, Laura Loguercio. Houve de fato um cinema expressionista alemão? Op. cit., p. 18.

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CAPÍTULO II

As duas histórias do Doutor Caligari

Para o expressionismo o mundo não mais existia

senão como a visão de uma estranha ruína

a criação monstruosa de almas angustiadas.

Bertold Brecht.

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2. 1. A história de uma história famosa e sua moldura

O roteiro original do filme Caligari: a história de uma história famosa, escrito

por Hans Janowitz e Carl Mayer difere muito do que se concretizou nas telas como o

filme O Gabinete do Dr. Caligari. A análise dessas modificações, sofridas durante o seu

processo de produção, - denominada posteriormente por críticos e historiadores do

cinema de narrativa moldura71 - torna-se imprescindível para entender as relações entre

a indústria cinematográfica alemã, assim como a inserção da arte expressionista nessas

produções, e as ambigüidades de uma Alemanha que saía de uma guerra, instaurava

uma república de maneira conturbada e sofria uma crise entre unificação e fragmentação

cultural, ou seja, as alterações profundamente condenadas pela historiografia a propósito

do filme, podem revelar as contradições vividas pela sociedade alemã no período.

No trabalho de David Robinson, descrito como o resumo do roteiro original,

notam-se todas as modificações realizadas no filme como se seguem abaixo 72:

PRIMEIRO ATO

Scenario

O roteiro começa com um prólogo, passado no terraço de uma casa de campo, onde Francis e

sua mulher Jane estão recebendo três cavalheiros e quatro damas. Um cortejo de carroças

ciganas passa à distância, fora do parque, e esta ocorrência produz uma reação emocional em

Francis e Jane. A pedido de seus amigos, Francis começa a relatar as circunstâncias de “uma

história horrível” em que o casal esteve envolvido, mais de vinte anos antes, quando Francis

trabalhava como professor particular em Holstenwall, “uma idílica cidadezinha antiga”.

A velha cidade é vista no pôr-do-sol. Um cortejo de carroças ciganas é mostrado em silhueta à

frente da “vasta paisagem”. Um letreiro explica que fazia parte do cortejo “jener geheimnisvolle

Mann” (aquele misterioso homem): Calligaris aparece, com sua capa flutuante e sua cartola,

seguindo o cortejo e parando aqui e ali para folhear um livro grosso.

Nas ruas estreitas da velha cidade, realizam-se animados preparativos para a feira. Allan, um

jovem estudante, vê da janela de seu quarto a agitação, sai para a rua e vai à casa de seu amigo

Francis para convidá-lo a vir para a feira.

71Será usado roteiro original e narrativa moldura, como um parâmetro de distinção entre os roteiros: o pensado pelos roteiristas e o que realmente se efetivou nas telas. 72 Roteiro extraído de ROBINSON, David. O Gabinete do Dr. Caligari, op. cit., pp.74-96, respectivamente.

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Enquanto isso, numa campina fora das muralhas da cidade, está sendo montado o recinto da

feira. Calligaris entra em cena, escolhe um pedaço de terra, tira as medidas, delimita-o com

estacas e pergunta aonde deve ir para obter permissão para seu espetáculo. Alguns circunstantes

conduzem-no a um escritório, onde ele é obrigado a subornar um amanuense que o leva à

presença de um secretário da câmara municipal, Dr. Lüders. Dr. Lüders está aborrecido e

impaciente, já que se preparava para deixar a repartição.

Cena em que Caligari chama os espectadores para seu show na quermesse.

Um letreiro anuncia “dia seguinte”. A feira está a pleno vapor. Calligaris dá os últimos retoques

em sua tenda, e a multidão olha embasbacada para a tabuleta que anuncia “Der Mensch” (o

sonâmbulo). Calligaris inspeciona a obra, consulta o relógio e sai andando pelas ruas.

Chegando a uma carroça que exibe a tabuleta do “Dr. Calligaris Cabinett”, acondiciona “uma

grande caixa preta parecida com um ataúde e provida de óbvias fechaduras” num carrinho de

mão. Com este, volta para a tenda. A multidão olha com interesse quando alguns trabalhadores

o ajudam a descarregar a caixa e colocá-la em pé no pódio, “como um armário”.

Calligaris abre a caixa, ergue a tampa e “a multidão assombrada vê a figura imóvel de pé,

vestida com uma antiquada roupa de malha preta e justa no corpo, a cara com os olhos

arregalados fitando sem expressão o vazio. Calligaris sorri misteriosamente, depois dança em

torno da figura e aplica-lhe umas palmadinhas nas faces”.

FADE-OUT / Fim do primeiro ato.

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Na narrativa moldura, o cortejo de carroças ciganas não mais existe. Está

sentado em um banco, numa locação sombria, que se assemelha a um parque, um

bosque, mas que não se explicita como um asilo de loucos73, um jovem acompanhado

de um senhor idoso. Após algumas linhas finais do intertítulo que se encerra, Francis –

o jovem rapaz – sugere que sua história é tão ou mais “macabra” e “assustadora” do que

a que o senhor idoso haveria de ter contado. Antes do prosseguimento da narrativa, no

mesmo parque, passa pelos personagens, vestida de branco e com um olhar lânguido,

uma moça que Francis afirma ser sua noiva.

Cena de Francis narrando sua história

Holstenwall – a cidadezinha onde nasci – começa Francis. Er...[Ele...] e nos é

apresentado Caligari, com seu semblante atemorizante. Allan – mein freund [meu

amigo] e a cena se segue como na seqüência dada pelo roteiro original. Allan em seu

escritório, folheando livros, até que o barulho citadino chama-lhe a atenção. Ao

descobrir a quermesse na cidade, sai à procura do amigo Francis para que juntos

pudessem desfrutar das atrações que a feira lhes oferecia. Ao encontrarem-se, os amigos

são seguidos pela figura de Caligari. Este por sua vez, está às voltas do alvará da

73 Em muitos trabalhos sobre O Gabinete do Dr. Caligari, alguns autores num esforço interpretativo do filme, sugerem que esses personagens estão efetivamente num asilo de loucos, mas isso só é identificado no final da narrativa. Durante os primeiros minutos do filme, enxergamos apenas um bosque com os narradores da história - Francis e um senhor idoso.

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prefeitura para apresentar seu espetáculo na feira. Esta seqüência foi bastante

modificada no sentido imagético, apesar das permanências na narrativa, como o suborno

do amanuense, ou mesmo o desdém do secretário para com Caligari quando lhe diz

com um tamborete: Warten! [Espere], deixando-o enfurecido. David Robinson

descreve a clássica cena do “carrossel expressionista”, recurso imagético inovador para

o período:

Partindo de um detalhe que dá a impressão de ser um carrossel

girando no canto superior direito da tela, a imagem some pouco a

pouco e se converte numa vista de Holstenwall. O carrossel – na

verdade um pequeno elemento cênico abstrato semelhante a um

guarda-chuva – foi simplesmente adicionado ao já visto pano de

fundo pintado; um segundo e menor carrossel – guarda-chuva roda

no canto inferior esquerdo da cena. Uma multidão vestida no estilo

Biedermeier enche o espaço. Caligari entra, fitando curioso os

transeuntes, entre os quais se vê um anão de chapéu alto e cônico.74

As próximas seqüências deste primeiro ato permanecem semelhantes às do

roteiro original.

SEGUNDO ATO

Scenario

Um intertítulo característico dos letreiros explicativos longos e quase sempre redundantes do

roteiro (supostamente transmitindo as palavras da narrativa-moldura de Francis) nos diz:

No dia seguinte, quando íamos para a feira, não suspeitávamos que nesse meio tempo um crime

horrendo foi cometido. Um comissário de polícia e dois funcionários examinam um quarto cuja

desordem, inclusive uma janela quebrada, indica ter ocorrido alguma violência. O comissário

explica (num letreiro) que o secretário da câmara municipal, Dr. Lüders, foi morto atingido por

um instrumento pontiagudo. Outro letreiro mostra um impresso:

Assassinato em Holstenwall! 1.000 marcos de recompensa

Ontem à noite em sua casa Dr. Lüders

Francis e Allan caminham despreocupados pela cidade, passando por um funcionário que entra

na tipografia.

74 ROBINSON, David. O Gabinete do Dr. Caligari, op. cit., p.78.

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A feira está em plena atividade, com carrosséis, realejo, anunciantes de espetáculos, acrobatas,

lutadores, animais enjaulados. Francis e Allan apressam o passo na direção da tenda de

Calligaris, onde ele apregoa as maravilhas de seu espetáculo. Caesare de pé fora da tenda fita o

vazio. Calligaris faz mesuras e esgares, e o público se acotovela para entrar na tenda. Francis e

Allan compram seus ingressos e se encaminham para a entrada.

Um letreiro anuncia “Das Cabinet des Dr. Calligaris”. No interior da tenda – “uma tenda

primitiva, pobre, iluminada por algumas fracas lâmpadas (...) uma pequena cortina pende sobre

um palco improvisado” – Calligaris toca uma sineta para atrair a platéia.

Fora da tenda, um grupo de indecisos se dirige para outras atrações. No meio deles caminha

Jacob Straat, que não é descrito no roteiro, embora no elenco seja “ein Gauner” [um vigarista].

Lê o cartaz e depois, com indiferença, entra na tenda.

Dentro, Caesare está de pé no palco, iluminado por um feixe de luz. Calligaris ordena-lhe que

desperte.

CLOSE-UP CAESARE

Cesare na tenda.

Caesare continua imóvel por alguns segundos. Sob o olhar penetrante de Calligaris, que está a

seu lado, torna-se agora inteiramente sensível, e algo parecido com uma expressão aflora em seu

rosto! Os olhos piscam, calmos e distantes. Depois em silêncio e com grande esforço físico

começa outra vez a ofegar. Com a boca ligeiramente aberta, luta contra a falta de ar. A rigidez

pétrea do corpo dá lugar a uma súbita e violenta agitação dos braços e das pernas. Os braços

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bamboleantes se erguem, como que automaticamente, num movimento forçado, projetando-se

para a frente como que para abraçar alguma coisa. Com seu despertar gradual, cujo clímax é

evidentemente um intenso processo físico, parece tornar-se de repente inerme e começa a

tombar para a frente. Neste momento o sorridente Calligaris ampara-o e o põe de novo de pé em

seu lugar como um boneco. O rosto e o corpo de Caesare denunciam o esforço para tomar ar.

Caligari e Cesare no espetáculo.

Calligaris anuncia que Caesare responderá agora a qualquer pergunta e revelará os mais

profundos segredos. Allan, claramente intrigado com o sonâmbulo, avança para o palco, apesar

dos esforços de Francis para impedi-lo. Pergunta: Até quando viverei? Caesare encara-o,

depois lhe diz: Até o amanhecer. Chocado, Allan encara por sua vez o sonâmbulo e em seguida

cai na gargalhada, como o faz também Francis, que arrasta o amigo para fora da tenda.

Na praça, diante da velha câmara municipal, Francis e Allan lêem o aviso anunciando a morte

do Dr. Lüders. Allan fica estranhamente fascinado, mas são interrompidos pela chegada de Jane

numa carruagem. Eles a levam em casa, “uma casa de campo num parque à beira de um rio”.

De volta à cidade, Francis e Allan se despedem desejando boa noite.

Enquanto isso, “na escuríssima Holstenwall”, Jakob Straat sai das sombras de “uma viela

arruinada” e depois desaparece tão misteriosamente como veio.

Allan entra em seu quarto, acende a lâmpada, abre a janela e espreguiça-se no ar; depois vai

para a cama. Lê, cochila sobre o livro e então apaga a luz.

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O restante da cena, uma das seções mais desnorteantes do roteiro, é um adendo manuscrito,

em duas caligrafias diferentes. 75

FILME: (Tela escura, a partir da qual, nos próximos momentos, se produzem os seguintes

efeitos de luz).

a) um raio de luz verde (lua)

b) uma cortina na transparência do luar, que se torna mais brilhante.

c) Uma caçada na sombra por trás da cortina:

d) Corrida de luz e sombra em confusão. No tumulto, um braço palidamente iluminado

com um punhal cintilante se precipita para baixo enquanto um vulto se ergue para

resistir. Luta!

e) Lento retorno a uma tela escura.

Foram feitas, neste segundo ato do filme, algumas reduções. Allan e Francis

aparecem diretamente na feira; Jacob Straat, um personagem com alguma importância

dentro do roteiro original, torna-se secundário e aparecerá no terceiro ato da narrativa

moldura. O recurso de Cesare fora da tenda “fitando o vazio” é alterado, vemos apenas

uma imensa faixa em estilo expressionista com sua imagem. O despertar do sonâmbulo

por Caligari, embora permaneça bastante fiel ao roteiro original, ganha efeitos em

primeiro plano76 dando ênfase à interpretação do ator Conrad Veidt, como descreve

Robinson:

Quando a caixa é aberta, os olhos de Cesare estão bem fechados.

Seu esforço físico concentra-se agora não na luta contra a falta de

ar, mas no esforço por abrir os olhos, culminando no momento

obsedante em que os imensos olhos arregalados e aflitos se

revelam em toda a sua grandeza fenomenal. 77

O discorrer da cena, quando Allan pergunta acerca de seu futuro, permanece

inalterada. A narrativa subseqüente do encontro dos rapazes com Jane sofre

modificações. Jane chega diretamente na carruagem e a cena da “casa de campo num

parque à beira de um rio” transforma-se numa fusão para justificar a passagem

75 Nota do autor: ROBINSON, David. O Gabinete do Dr. Caligari. 76 Primeiro plano, grande plano ou close-up: A câmera, próxima ou distante do assunto destaca apenas uma parte dele. No caso da figura humana, por exemplo, enquadra apenas o rosto do personagem, ou somente suas mãos. 77 ROBINSON, David. O Gabinete do Dr. Caligari, op. cit., p.82.

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temporal. Talvez, Robert Wiene tenha privilegiado as cenas que se passam nas ruas para

explorar o rico cenário expressionista da cidadela.

Anteriormente à despedida dos estudantes, nas ruas tortuosas e escuras de

Holstenwall, vemos o letreiro: Heimweg [O regresso]. Allan e Francis têm uma

conversa acerca do interesse de ambos pela moça:

Francis: Allan, nós dois a amamos. Deixemos que ela escolha. Mas

continuaremos amigos, seja qual for a escolha que ela faça!

Assim, os rapazes despedem-se e, na mesma noite, Allan é assassinado em seu

quarto. Robert Wiene assinala nesse momento, não mais as cenas no “roteiro original”

como foi descrito – um raio de luz verde (lua), uma cortina na transparência do luar,

que se torna mais brilhante; uma caçada na sombra por trás da cortina, corrida de luz

e sombra em confusão. No tumulto, um braço palidamente iluminado com um punhal

cintilante se precipita para baixo enquanto um vulto se ergue para resistir: Luta! Lento

retorno a uma tela escura – há apenas a sombra de Cesare com um afiado punhal e os

braços de Allan tentando em vão defender-se.

TERCEIRO ATO

Scenario

LETREIRO: NA MANHÃ SEGUINTE.

Uma velha descarnada – a senhoria de Allan – corre freneticamente pelas ruas, fazendo de vez

em quando o sinal da cruz. Chega à casa de Francis, bate agitadamente na porta, toca a

campainha e sobe para o quarto de Francis para lhe dizer “Herr Francis! Herr Francis! O moço

Herr Allan está...morto!”.

Francis a acompanha até a casa dela. No quarto de Allan ele procura pistas.

Vai ao posto policial relatar a ocorrência.

Do posto vai à casa do Conselheiro Médico Olfens, pai de Jane. Cambaleando e em prantos, dá

a notícia a Jane, que fica em estado de choque. Francis então se dirige ao consultório do pai

dela.

Carroça de Calligaris. Calligaris espia pela janela.

Dentro, prepara comida num fogareiro para o sonolento Caesare, a quem dá de comer com uma

colher.

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Cena de Caligari alimentando seu sonâmbulo

Calligaris está surpreso e aborrecido com a chegada de Francis e Olfens, e é com relutância e

irritação que os deixa entrar. Um letreiro narrativo informa-nos zelosamente que:

Dr. Olfens enfrentou Calligaris e energicamente exigiu que ele despertasse o sonâmbulo.

Enquanto batalhávamos com Calligaris dessa maneira, um acontecimento sensacional, sucedido

em outra parte de Holstenwall, podia projetar alguma luz nas sombrias ocorrências.

Numa rua dos arredores de Holstenwall existe uma “casa encurvada e torta” em frente a uma

casa comum. Subitamente abre-se uma janela do primeiro andar e uma velha se debruça no

peitoril gritando “Assassinato! Assassinato!”. Abrem-se as janelas da vizinhança e as pessoas se

põem a olhar para fora. Jakob Straat salta de uma janela com um punhal na mão. É caçado por

um grupo. Straat é apanhado e tomam-lhe o punhal. Alguns querem linchá-lo, mas ele é

arrastado para o posto policial e apresentado para o comissário.

Enquanto isso, na carroça, Calligaris olha com raiva para Olfens e tenta em vão despertar

Caesare.

Por favor acorde o sonâmbulo; isso é necessário para a investigação.

Lamento que Caesare não acorde agora.

Neste momento Francis ouve, pela janela da carroça, a notícia da prisão de Straat. Francis e

Olfens saem da carroça, lêem apressadamente o jornal e deixam Calligaris, que sorri e com ar

de troça faz profundas reverências atrás deles antes de voltar a entrar na carroça.

Esta seqüência possui poucas alterações, existem menos intertítulos e as cenas

são bastante visuais, que enfatizam os cenários expressionistas, a indumentária e

interpretação dos atores.

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Este ato vai suprimir o tempo da procura de Olfens e Francis ao assassino, até a

tentativa de “acordar” o sonâmbulo que, na verdade, é apenas um boneco de cera. As

cenas são mediadas pela alimentação de Cesare, ou mesmo a ida de Olfens e Francis ao

gabinete de Caligari e também a prisão nas ruas e chegada na polícia do personagem de

Jacob Straat, ou simplesmente o vigarista.

QUARTO ATO

Scenario

Um letreiro explica:

Enquanto fomos ao posto policial para assistir à inquirição de Jakon Straat, Jane, preocupada

com nossa ausência prolongada, foi nos procurar na feira.

Jane sai de casa e vai à praça do mercado onde vê as manchetes do jornal anunciando a prisão

de Jakob Straat. Um outro letreiro redundante nos diz:

Jane desejava nos dar a importante notícia rapidamente e nos procurou no Gabinete de

Calligaris, enquanto nos envolvíamos no interrogatório de Jakob Straat.

No posto policial, Straat nega com veemência qualquer ligação com os dois crimes de morte. O

comissário não acredita nele. Mas Francis declara energicamente sua crença na história de

Straat, e Olfens começa a chegar a mesma conclusão.

Enquanto isso, na feira, Jane procura a tenda de Calligaris. Quando pergunta a Calligaris se o

pai dela esteve lá, o Doutor se mostra muito amigo – e é até paternal. Mostra a ela cartazes de

Caesare e leva-a para o interior da tenda. Lá abre a caixa de Caesare e desperta o sonâmbulo.

Caesare fita Jane, revelando “algo como uma nova emoção”. Jane não pode tirar os olhos de

cima dele, mas depois encolhe-se, assusta-se e sai correndo do quarto, para o visível

divertimento de Calligaris.

Um letreiro explica que Jane e Francis se reencontram ao meio-dia, quando “juntos fomos

acompanhar nosso pobre amigo em sua última viagem”. Na velha capela de um cemitério das

cercanias de Holstenwall, realiza-se o funeral de Allan. Depois Francis e Jane deixam-se ficar

tristes e em contemplativo silêncio. Vinda do fim da alameda do cemitério, “uma sombra

brilhante, indistinta”, se aproxima lentamente. É o espectro de Allan, vestido com as roupas que

usou pela última vez na vida. O espírito pára ao lado do casal e olha afetuosamente para os dois.

Em silêncio e com um gesto protetor, Francis conduz Jane para o “entardecer outonal”.

Carroça de Calligaris. O Doutor na porta olha para fora, depois torna a entrar, retira Caesare de

sua caixa e começa a despertá-lo.

FUSÃO

Furtivamente Francis sai das sombras e espia pela janela da carroça de Calligaris. Lá dentro vê

Caesare em sua caixa e Calligaris dormindo profundamente.

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FUSÃO

Na noite, um vulto indistinto caminha rente à grade de um jardim e ao muro da casa de Olfens.

Em seu quarto Jane dorme, o luar infiltrando-se por sua janela. Na carroça de Calligaris, o

Doutor e o sonâmbulo ainda parecem dormir. Satisfeito por ver que tudo está bem, Francis

afasta-se da janela e ruma para casa.

20. CENA: QUARTO DE DORMIR DE JANE

Uma sombra aparece atrás da janela (que é guarnecida com uma cortina de musselina branca), e

devagar abre a janela por fora. A sombra transpõe o peitoril e aproxima-se da cama de Jane com

movimentos mecânicos, graciosos, ritmados.

21. CENA: CLOSE-UP.

Caesare está de pé ao lado da cama de Jane, enquanto ela respira suavemente em seu sono. De

repente, como se recebesse uma ordem, Caesare levanta o braço, em que reluz um punhal,

enquanto sua outra mão vai para a garganta de Jane. Jane sobressalta-se, dando gritos alucinados

de pavor. Com os braços erguidos sob a pressão de Caesare, consegue ficar de joelhos e levanta

as mãos numa súplica.

Caesare detém a mão no alto, pronta para matar, enquanto uma luta torturante se desenrola em

seu rosto, no qual o olhar impiedoso de bestial estupidez dá lugar a um sorriso lúbrico. A mão

dele solta a garganta e apodera-se da cabeleira de Jane, saboreando-lhe o perfume, depois com a

mão sôfrega acaricia o corpo de Jane, que treme profundamente. A luta íntima de Caesare dura

alguns segundos, depois subitamente dominado por selvagem determinação, toma-a nos braços,

joga-a sobre o ombro e carrega-a para a janela, enquanto Jane continua a gritar e chorar.

FUSÃO

22. CENA: QUARTO DOS CRIADOS.

Dois criados dormem nas suas camas; de repente o mais velho, de cabelos brancos, desperta,

salta da cama, acorda o outro, vestem-se e vão para a porta.

23. CENA: QUARTO DE JANE.

A cortina da janela está rasgada. Os criados entram correndo juntos, encontram a cama de Jane

vazia; os gritos da moça vêm da parte de fora. Criados e camareira precipitam-se para a janela e

apontam com mãos transidas de horror para os jardins circundantes, enquanto o médico,

entrando na carreira, sucumbe por um instante na cama de Jane, mas logo se refaz com renovada

energia e rapidamente assume o comando, enquanto os criados com archotes saem pulando o

peitoril da janela.

24. CENA: PÁTIO ATRÁS DA CASA.

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A tomada mostra o lado de fora da janela, com os criados de pé junto à balaustrada, e a alguns

metros dali, no abrigo de uma dependência retangular da casa, Caesare, com Jane ainda no

ombro. Após breve pausa, Caesare transpõe a balaustrada do fundo, junto com seu fardo.

No mesmo instante os perseguidores saem no seu encalço ao longo do edifício e transpõem

também a balaustrada. Da janela Olfens orienta os perseguidores.

25. CENA: TRILHA ESCURA ATRAVÉS DOS CAMPOS.

Caesare, com Jane ainda nos braços, avança pela trilha seguido por três criados brandindo

archotes.

26. CENA: TRILHA TORTUOSA NOS CAMPOS.

Touceiras. As forças de Caesare estão se esgotando. Ele se arrasta com tremendo esforço físico,

mas apesar disso prossegue. Os perseguidores se aproximam; ele já não consegue carregar Jane.

Ela escorrega de seus braços debilitados e cai inerme, enquanto ele avança como pode.

27. CENA: TRILHA NO CAMPO ENTRE MOITAS.

Caesare se vale de suas últimas energias para entrar no matagal, onde finalmente cai

desfalecido.

28. CENA: IGUAL A 26.

Os perseguidores alcançam Jane, levantam-na e levam-na de volta, enquanto dois criados

continuam no encalço de Caesare.

29. CENA: IGUAL A 27.

Caesare acha-se em suas derradeiras convulsões, respirando com dificuldade. De repente

espicha-se pela última vez e fica rígido no chão. Os criados passam correndo sem vê-lo em seu

esconderijo, oculto pela escuridão.

Jane é levada para casa, onde Francis está esperando. Quando recobra a consciência murmura:

“Era Caesare!” Francis sai com um criado para avisar a polícia.

A narrativa moldura simplifica muitas cenas deste ato. Jane é mostrada com

profunda preocupação pela demora do pai, assim sendo, visita a tenda de Caligari em

busca de notícias. A cena em que Jane foge do local, atemorizada pelo que assistiu,

permanece inalterada até a cena de seu seqüestro. A “última viagem do amigo” e as

tomadas do funeral na capela, ou a aparição de Allan se reduzem em um intertítulo:

Depois do enterro.

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Na feira, Jane procura por seu pai e Francis. Ali encontra Caligari.

As tomadas do seqüestro de Jane são menos detalhistas que as descritas pelo

roteiro original. A cena 20: Quarto de dormir de Jane é praticamente eliminada,

passando diretamente para o close-up de Cesare da cena 21. A direção de Wiene,

principalmente no que tange às interpretações dos atores, pode ter sido um fator

determinante nesse caso específico. Cesare, que teria um “olhar impiedoso e bestial”,

passa a ter o olhar sereno num estado de adoração causado pela moça. O “apoderar-se

da cabeleira de Jane” é substituído, lenta e delicadamente, por um tocar os cabelos.

Fotogramas seqüenciais em que Jane visita a tenda do Dr. Caligari

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Cena que antecede o seqüestro de Jane.

A partir da cena em que Jane acorda, as ações do sonâmbulo tornam-se brutais

para subjugá-la levando-a em seus braços, mas isso se dá menos em função do

personagem significar um enfurecido assassino, e mais pela repentina consciência que

até então não tinha. Há nesta cena um sentimento de “perder-se” das ordens de seu

mestre.

Cena da fuga de Cesare com Jane em seus braços

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A belíssima cena da fuga de Cesare com Jane em seus braços, percorrendo os

cenários tortuosos do filme, mostrando uma natureza “artificializada”, pois os

personagens afastam-se da cidade de Hostenwall, segundo David Robinson, está em

total desacordo com a topografia do roteiro original, para o autor: é “evidentemente

utilizadas (as formas expressionistas) apenas porque é visualmente eficaz”. 78 Mais um

ponto de dissonância do roteiro original, porém plenamente justificável por ser um

filme que utiliza a arte moderna como um diferencial na produção fílmica do período.

Após o seqüestro e vigília ao gabinete, Francis se surpreende ao descobrir que

Cesare foi responsável pelo rapto de Jane, afirmando que passou horas observando o

local e seria impossível o sonâmbulo ter saído de lá. Mas acredita na versão da moça, e

assim termina mais um ato.

QUINTO ATO

Scenario

No posto policial, Francis é levado a visitar uma cela no porão, para se certificar de que Jakob

Straat ainda está detido. Straat senta-se desconsolado em sua cama de tábuas.

O comissário e vários policiais acompanham Francis à carroça de Calligaris. As luzes estão

apagadas e Francis e o comissário batem. Quando Calligaris abre a porta, é agarrado e detido

pelos policiais. Zangado mas desafiador, diz que Caesare está bem guardado em sua caixa.

Francis convence a polícia a levar a caixa para fora e abri-la. Ele apanha o corpo na caixa; é

apenas um boneco de pano.

Na confusão que se segue Calligaris foge. Francis vai atrás dele e passa pelos arredores de

Holstenwall e por uma paisagem com árvores. Calligaris pula para dentro de um carro de

aluguel e Francis persegue-o em outro. Chegando a um grande edifício, Calligaris salta do carro

e desaparece lá dentro. Francis descobre que o edifício é um hospital de doentes mentais.

Francis entra no hospital em busca do desaparecido Calligaris. Conta sua história a alguns

médicos, que o levam à presença do diretor do asilo, o qual, dizem eles, acabou de chegar. Ao

entrar na sala do diretor, Francis vê atrás da escrivaninha...o próprio Calligaris.

Saindo da sala, Francis envia um telegrama a Olfens, contando-lhe que está na pista de

Calligaris, e relata as experiências da última semana aos médicos atônitos.

78 ROBINSON, David. O Gabinete do Dr. Caligari, op. cit., p.90.

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Este ato mostra Francis e o policial desmascarando o truque de Caligari, que

usava um boneco de cera para substituir Cesare enquanto este cometia os crimes. É

também o momento da fuga de Caligari para o suposto asilo. Novamente algumas cenas

foram cortadas ou simplificadas. Não há, como no roteiro original, os carros de aluguel,

apenas Caligari fugindo a pé, perseguido por Francis que não se deixa notar, em meio

às árvores e ladeiras cenográficas até a chegada ao edifício, que mais tarde será

identificado como o asilo de loucos.

David Robinson vê o quinto e sexto atos como um “equilíbrio” entre o roteiro

original e a narrativa moldura:

Aqui o filme adota uma divisão dos atos que é diferente da do

roteiro. O 5º ato se prolonga e passa a incluir uma parte substancial

do 6º ato previsto pelos roteiristas. Isto resulta num melhor

equilíbrio entre o abreviado 5º ato e o (segundo o roteiro)

demasiado longo 6º ato (...). 79

Isso fará com que o clímax da narrativa moldura seja mais evidenciado no

epílogo.

SEXTO ATO

Scenario

Do lado de fora da casa do Diretor do hospital, Francis e três médicos esperam por um sinal, a

ser dado com a luz que lhes dirá quando o Diretor estará dormindo.

No hospital, eles entram na sala de trabalho do Diretor, fecham as persianas e acendem as luzes

elétricas. Francis vasculha a escrivaninha e um jovem médico esvazia o armário, mas não

encontram nada. Depois um dos médicos descobre um cofre escondido, cheio de livros e

documentos.

[O roteiro especifica um close-up das cabeças do grupo num semicírculo enquanto examinam os

livros – “Die Köpf in Halbkreis”]80,

79 Idem, p.92. 80 Nota do autor: ROBINSON, David. O Gabinete do Dr. Caligari.

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Um destes é uma obra do século XVIII sobre sonambulismo, e os médicos confirmam que este

assunto tem sido objeto de estudo do diretor em toda sua vida. Lendo o livro, encontram uma

passagem que descreve as atividades de um místico chamado Dr. Calligaris, que viajou pelas

feiras do Norte da Itália em 1723 com um sonâmbulo chamado Caesare, a quem obrigava a

cometer crimes sob influência hipnótica. Ele também criou uma figura de cera para servir de

álibi quando Caesare estava ausente em suas tenebrosas missões.

Francis e os médicos deparam com outro documento, o próprio diário do Diretor. Aqui

encontram uma anotação dizendo que enquanto ainda lutava com o estudo de “meu velho

problema” foi informado de que um sonâmbulo tinha sido admitido no hospital.

O texto manuscrito do diário funde-se com uma cena em fash-back passada na sala de trabalho

do Diretor. O Diretor está trabalhando atrás de sua escrivaninha quando Caesare é trazido para

dentro da sala numa cadeira de rodas. O Diretor dispensa os enfermeiros e examina o novo

paciente com crescente excitação.

Uma outra nota do diário (“4 de março...4 horas da manhã”) exulta com a constatação de ter o

Diretor realizado o desejo de sua vida, isto é, descobrir o “segredo psiquiátrico” da história de

Calligaris: “como um sonâmbulo pode se tornar apenas uma mecânica máquina da morte para

seu cliente”.

LETREIRO: “Zwangsvorstellungen! [Alucinação! Ou obsessão!”].

O Diretor é visto em close-up lendo atentamente seu livro. Seu olhar se torna cada vez mais

arrebatado; e as escuras páginas do texto são recobertas por letras luminosas que formam a

frase:

Você precisa se tornar Calligaris e mandar o sonâmbulo matar.

Só assim você pode servir à ciência.

O Diretor tenta se livrar dessa visão assustadora, mas na luz da noite a mensagem reaparece

sobre as cortinas escuras. Ele vai para o parque e vê as mensagens nas árvores: “Du musst

Calligaris werden!”. [Você precisa se tornar Calligaris].

Foge para uma construção na orla do parque e encosta-se na parede branca, as mãos levantadas.

A mensagem continua lá.

Uma transformação se opera no Diretor. De repente ele começa a rir e a correr atrás das letras

da mensagem como um menino brincando. Apanha as letras uma a uma, faz malabarismos com

elas e bota todas no bolso, pondo-se a alisá-lo satisfeito. Um letreiro resume tudo o que

aconteceu:

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O infeliz pesquisador foi assim possuído por sua obsessão e em seguida reconstituiu com

pedantismo típico dos cientistas aquela historinha italiana...Preparou uma figura de cera do

sonâmbulo, planejou uma viagem e se pôs a caminho.

Na sala de trabalho do Diretor, Francis e os médicos ainda estão examinando os livros quando a

luz do amanhecer entra pela janela. Francis é chamado ao telefone: é Dr. Olfens, com notícias

do destino de Caesare.

No campo onde morreu, o cadáver de Caesare é descoberto por Dr. Olfens e pelos policiais.

No parque do hospício Francis cumprimenta Olfens e o comissário de polícia, que chegam com

uma padiola coberta.

No corredor do lado de fora da sala do Diretor, Francis, Olfens, o comissário e os médicos,

acompanhados pela padiola, chegam à porta da sala de trabalho do Diretor. Batem.

LETREIRO: “Bom dia, Herr Dr. Calligaris...Caesare morreu perto de sua última tentativa de

assassinato”.

O Diretor – agora definitivamente identificado como Calligaris – levanta-se da escrivaninha.

Francis arranca a coberta da padiola para exibir o cadáver de Caesare. Calligaris é subitamente

abatido pelo choque e o pesar.

A expressão apaixonada de outro tempo desaparece; os homens conduzem para fora da sala um

idiota infantil e apatetado, um velho caduco de sorriso alvar.

Cena de Caligari após a morte Cesare.

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FUSÃO

Numa cela de hospital o agora apatetado Calligaris é posto numa cama com grades.

LENTO FADE-OUT E IN

No lugar onde ficava a tenda de Calligaris, uma placa colocada num poste de Madeira. Nela se

lê:

Aqui ficava o Gabinete do Dr. Calligaris.

Paz para suas vítimas. Paz para ele!

A Cidade de Holstenwall.

Francis e Jane estão diante da placa, imersos em pensamentos.

O sexto ato é iniciado com o regresso de Francis ao asilo após a descoberta da

documentação que comprova as ligações de Caligari com o sonambulismo, além das

cenas em flash-back de Caligari estudando a doença e as maneiras de controlar seu

paciente por hipnose. Não há o telefonema de Olfens, apenas um mensageiro que avisa a

Francis e os médicos da morte de Cesare. Dessa maneira, Francis passa a acusar o

doutor de ter se tornado Caligari. As cenas seguintes mostram o diretor desesperado

com a morte de seu sonâmbulo, até que em medium shot (MS)81 vê-se o personagem ser

aprisionado em uma camisa-de-força.

Tanto o prólogo como o epílogo, não se compõem como parte do roteiro

original. A tomada em fade-out sobre o rosto de Francis, retorna no mesmo

enquadramento do prólogo do filme em fade-in82 – no personagem de Francis, ao lado

do senhor idoso no parque. Assim sendo, o prólogo e epílogo, criados durante as

filmagens, por sugestão dos produtores, é o que se constituirá como a narrativa

moldura83 e o que, de certa maneira, denota o caráter ambíguo do filme ao expor visões

antagônicas que se estabelecem nesse “choque de temporalidades” durante os primeiros

anos da República Weimar.

81 Medium shot ou Plano médio: Focaliza essencialmente os personagens de corpo inteiro. 82 Fade-out: desaparecimento gradual da imagem, por escurecimento. Fade-in: aparecimento gradual da imagem. Diz-se também clareamento. 83 Janowitz culpou Wiene pela nova moldura, embora Fritz Lang afirmasse muito mais tarde que propôs o prólogo. Lang protestou, porém quando Siegfried Kracauer escreveu que a alteração geral do filme efetuada pelo artifício da moldura estava em perfeita harmonia com o que Lang havia planejado, e alegou, em contrário, que tinha apenas sugerido a atual cena inicial, com Francis sentado num banco relatando sua história a um homem mais velho. Sua intenção, disse ele, era preparar a platéia para os cenários expressionistas, que sem isso podiam parecer demasiado surpreendentes. Mas Lang não é uma testemunha confiável (...) Já que Wiene só assumiu a direção do filme depois que Lang foi reconduzido à direção de Die Spinnen, teria sido impossível que Lang tivesse visto os croquis cubistas que ele disse terem suscitado sua proposta. Além disso, toda história só se passou num asilo de loucos depois do acréscimo da narrativa moldura. ROBINSON, David. O Gabinete do Dr. Caligari, op. cit., p.37.

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Francis, não mais é um rapaz casado, ou o estudante que se vê no filme pronto,

mas sim um interno num asilo de loucos. Este é o clímax da trama. Descobrem-se todos

os personagens agindo perturbadamente num hospício, com exceção do Diretor. Este

por sua vez, aparecerá no pátio da instituição, compondo uma figura bastante ilustre,

com um “ar burguês”, sóbrio, mais “realista”, diferentemente de seu personagem

anterior – Caligari.

Francis, desvairadamente, ataca o diretor da instituição: Vocês todos acreditam

que estou louco! Isto não é verdade...O Diretor é louco! Ele é Caligari, Caligari. Deste

modo, Francis termina, da mesma maneira que Caligari do roteiro original, preso em

uma camisa-de-força.

Ao examinar seu paciente, o Doutor, não mais Caligari, declara num tom

vibrante: Afinal entendo sua ilusão. Ele me toma por aquele místico Caligari. E agora

também sei o que fazer para curá-lo.

Francis sendo preso no asilo

O médico diagnosticando Francis

Evidenciadas as mudanças feitas em O Gabinete do Dr. Caligari, é importante

observar sua recepção, tanto nas interpretações dos autores (Mayer e Janowitz) e de seus

produtores (Wiene e Pommer), como nas críticas da historiografia a respeito do cinema

expressionista alemão. A criação dessa moldura gerou uma série de polêmicas, que mais

tarde seriam evidenciadas pelos estudos sobre o filme, principalmente, na obra de

Siegfried Kracauer, De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão.

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2.2.Siegfried Kracauer: alguns apontamentos

Analisar as interpretações de Siegfried Kracauer sobre seu tempo e

especificamente sobre o cinema expressionista alemão tornou-se tarefa árdua. Autor

ligado à Escola de Frankfurt, Kracauer tem um dos estudos mais pormenorizados sobre

o tema, dialogando com a idéia de modernidade e americanismo84 que se apresentavam

como paradigmas do moderno - questões que nasciam concomitantemente às suas

investigações. Para que se possa dialogar com sua obra, pois sua interpretação

permanece como sendo uma das mais importantes sobre O Gabinete do Dr. Caligari, se

faz necessário trazer à tona algumas considerações sobre o autor e suas inquietações.

A autora Miriam Bratu Hansen, ao analisar as especificidades do cinema e da

vida moderna, observa características da obra do autor desde a década de vinte,

chamando-a, primeiramente, de “culturalmente pessimista”, mostrando que Kracauer

enxerga a modernidade como uma desintegração de um processo histórico.

Kracauer vê este processo como algo vinculado ao desenvolvimento

de uma ratio (razão) progressivamente instrumentalizada, uma razão

abstrata, formal, dissociada da contingência humana, e encarnada na

economia capitalista e no respectivo ideal de “uma sociedade

civilizada completamente racionalizada” (uma Gesellschaft, por

oposição a Gemeinschaft). 85

Essa discussão aproxima Kracauer a propósito das contradições de seu próprio

tempo e suas crises de valores diante de uma fragmentação cultural durante a República

de Weimar, ou seja, a idéia da falta de unificação, de coesão seja cultural ou política,

84Segundo a autora Miriam Bratu Hansen, tanto nas análises retrospectivas da cultura de Weimar, quanto nas da própria época, a condição do cinema como objeto privilegiado da vida moderna é muitas vezes associada ao discurso do americanismo, à invocação da ‘Amerika’ como metáfora e modelo de uma modernidade desencantada. O americanismo compreendia praticamente tudo, desde os princípios fordistas-tayloristas de produção - mecanização, padronização, racionalização, eficiência, linha de montagem - e os padrões do consumo de massas daí decorrentes, até novas formas de organização social, libertação em face da tradição, mobilidade social, democracia de massas (...) Qualquer que fosse sua articulação específica (sem mencionar sua relação real com os Estados Unidos), o discurso do americanismo transformou-se em um catalisador do debate sobre modernidade e modernização, polarizado em torno dos ataques ou lamentações culturais de natureza conservadora, de uma lado, e elegias eufóricas ao progresso tecnológico ou sua aceitação resignada, de outro. HANSEN, Miriam Bratu. Estados Unidos, Paris, Alpes: Kracauer (e Benjamin) sobre o cinema e a modernidade. IN: CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa, (org.) O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, pp.504-505. 85 HANSEN, Miriam Bratu. Estados Unidos, Paris, Alpes: Kracauer (e Benjamin) sobre o cinema e a modernidade, op. cit., p. 506.

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aparece em seus textos sobre cultura de massa e vida cotidiana, principalmente, quando

analisa as questões vinculadas ao cinema e à modernidade, que já revelava a “República

de Weimar como um topos da modernidade clássica em crise, e como crise, representava

um período que viveu as contradições da modernização em sua forma, ao mesmo tempo,

tardia e acelerada”. 86 Ou seja, sua obra é uma reflexão sobre a modernidade, e suas

crises paradigmáticas. O cinema observado por Kracauer, tornou-se um meio de

percepção da modernidade, e de suas vicissitudes, assim como uma maneira de

diagnosticar esse processo de desintegração do mundo:

Dessa perspectiva, o cinema não constituiu apenas uma entre várias

tecnologias de percepção (...) ele foi, sobretudo, o mais singular e

expansivo horizonte discursivo no qual os efeitos da modernidade

foram refletidos, rejeitados ou negados, transmutados ou

negociados. Foi um dos mais claros sintomas da crise a qual a

modernidade se fez visível e, ao mesmo tempo, transformou-se em

discurso social por meio do qual uma grande variedade de grupos

buscou se ajustar ao impacto traumático da modernização (...) Dadas

suas capacidades formais de deslocamento e estranhamento,

argumenta o autor, o cinema está singularmente ajustado para captar

um “mundo sem substância e em processo de desintegração”; como

conseqüência, ele cumpre uma função cognitiva, diagnóstica, com

relação à vida moderna, mais verdadeira do que a maioria das mais

refinadas obras de arte. 87

Nesse sentido, Kracauer indica os aspectos “libertadores” da modernidade e

suas potencialidades em função das novas formas de comunicação e de relações

sociais, onde o cinema teria uma função fundamental, de interpretação de diferentes

realidades, de resignificação de determinados valores, que Anita Simis menciona ao

dialogar com Francisco Rüdiger:

A massificação era um processo sem volta, portador de um potencial

emancipatório. Assim, se por um lado o capitalismo controla e

extrapola essas massas, por outro, o sentido histórico sinaliza o

86 Idem, p.503. 87 HANSEN, Miriam Bratu. Estados Unidos, Paris, Alpes: Kracauer (e Benjamin) sobre o cinema e a modernidade, op. cit., pp.506-507.

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surgimento de uma concepção de mundo por meio da qual o modo

de vida das massas passa a ser expresso para as próprias massas (...)

com o avanço do racionalismo e da técnica, com as ocupações cada

vez mais mecanizadas e rotineiras, é preciso escapar do cotidiano,

estabelecer uma nova relação com a vida cotidiana e isso se dá em

esferas mundanas e banais, isso se dá nos divertimentos de massa. O

comportamento das multidões nos espetáculos, a busca da diversão

são aspectos da transformação do indivíduo no processo promovido

pelo capitalismo. Mas também são veículos em que as massas se

oferecem como espetáculos para si mesmas, são seu principal

ornamento (...) possibilitam que as massas se vejam como tais, isto

é, como virtuais sujeitos da história. 88

Kracauer vê as massas como uma instituição cultural que podem estar

representadas, de maneira dissimilar, onde “o público alternativo somente pode

realizar-se por meio da destruição da esfera pública dominante, ou seja, das

instituições burguesas da alta cultura, arte e educação que perderam todo e qualquer

contato com a realidade”. 89 Em seu ensaio de 1927, O ornamento de massa, Kracauer

argumenta sobre as ambigüidades do processo histórico que transforma em mito a

racionalidade da sociedade moderna. Seria “um processo de desmitologização ou

desencantamento que antecipa a humanidade das forças da natureza, mas que, ao

perpetuar relações sócio-econômicas que não incluem o ser humano, reproduz o natural

e reverte-se em mito”. 90

Essa temporalidade histórica revela uma imagem forjada de unidade cultural, e

Kracauer de certa maneira já indicava esses caminhos, pois se havia uma perda dos

vínculos da comunidade, da natureza, que se transmutaram numa super-racionalização

da sociedade, a própria idéia de natureza e de laços de pertencimento passariam a ser

resignificados.

(...) de fato a penetração da razão na natureza não avançou o

bastante: o problema com o capitalismo não reside no fato de que

88 SIMIS, Anita. Luzes e foco sobre Kracauer. Estudos de Sociologia. Revista Semestral do Departamento de Sociologia e Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Araraquara: FCL-UNESP - Ano 10 - n.18/19, 2005, pp.36-137. 89 HANSEN, Miriam Bratu. Estados Unidos, Paris, Alpes: Kracauer (e Benjamin) sobre o cinema e a modernidade, p.519. 90 Idem, p.516.

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ele racionaliza demais, mas sim que racionaliza de menos. Da

mesma forma que se abstém de investir na alteridade da arte

independente como o último refúgio de uma individualidade

socialmente negada, Kracauer rejeita toda e qualquer tentativa de

ressuscitar formas pré-capitalistas de comunidade como uma

solução alternativa: O processo avança passando pelo cerne do

ornamento de massas, não de volta a partir dele. [os grifos são da

autora]. 91

Kracauer desejava avistar na Alemanha uma modernidade dos meios de

comunicação em massa, que ultrapassassem os problemas da economia capitalista

industrial, isto é, por meio dessa cultura de massas, heterogênea, seria possível

elucubrar sobre os problemas, as contradições dessa modernidade.

Quaisquer que fossem as inquietações dessa modernidade vivida

pela república de Weimar, ela não logrou mais encontrar uma forma

alemã, muito menos européia, de longo prazo; Berlim jamais se

tornou a capital do século XX. Em vez disso, Berlim dividiu-se em

metades irreconciliáveis: a de um modernismo internacionalista

(norte-americano, judeu, “diaspórico”, politicamente de esquerda) e

a de um modernismo germânico, que incorporou a mais avançada

tecnologia para reinventar a tradição, a autoridade, a comunidade, a

natureza e a raça. 92

As reflexões de Kracauer sobre cinema e modernidade de massa, muitas vezes

carregadas de ambigüidades, ora revelando um sentido mais “pessimista”, ora

“libertador”, também vão de encontro a uma certa postura incerta e duvidosa em

relação a idéia de civilização.

Essa idéia começa a tomar corpo na cautelosa reavaliação feita por

Kracauer das análises elitistas-pessimistas da massa, desde LeBon

até Spengler, Klages e Freud. Aparentemente preparando-se para as

críticas já esperadas, ele dissocia a massa da comunidade orgânica

91 Idem. Ibidem. 92 HANSEN, Miriam Bratu. Estados Unidos, Paris, Alpes: Kracauer (e Benjamin) sobre o cinema e a modernidade, op. cit., p.537.

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do povo, ou Volk; da unidade mais elevada, “predestinada” da nação

e, nesse sentido, das noções socialistas ou comunistas do coletivo.

Enquanto o tipo ideal da comunidade é composto de indivíduos

singulares, tradicionais e voltados para si, a massa é um corpo

amorfo de partículas anônimas e fragmentadas que somente adquire

significado em contextos pautados pela extroversão, de seres

voltados para o outro, seja tal contexto um processo mecanizado de

trabalho, seja o de composições abstratas do ornamento de massas.

Para Kracauer, o aspecto libertador do ornamento de massas reside

justamente nessa transformação da subjetividade (...). 93

As oscilações de Kracauer, sobre a questão da modernidade, vão se tornar mais

enfáticas durante a crise econômica internacional, do final da década de vinte. Suas

acepções caminharão em direção à crítica ideológica. Kracauer movimentará suas

interpretações entre uma idéia “pessimista” sobre a modernidade, de um lado, e a

forma pela qual a tecnologia foi empregada e resignificada. Ou seja, quando o autor

passa a questionar os frutos dessa modernidade, assim como as “imagens inventadas”

pela cultura de massas, pela cultura do entretenimento, contribui valiosamente para a

compreensão da natureza paradoxal da Alemanha. E seu trabalho sobre a

cinematografia alemã do início do século XX, oferece pistas sobre a estreita relação

entre a produção cinematográfica e a formação dessas imagens nacionais.

93 Idem, p.521.

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2.3. Do revolucionário ao conformista

A mais conhecida interpretação de O Gabinete do Dr. Caligari, como já foi

explicitado em linhas gerais, foi feita pelo autor da escola de Frankfurt, Siegfried

Kracauer (1889-1966). Na historiografia do filme em questão, é percebida a influência

do autor em todos os trabalhos de críticos, historiadores do cinema sobre as obras

cinematográficas alemãs do período chamado expressionista. As análises de Kracauer,

que estão em De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão, livro

publicado em 1947, durante seu exílio nos Estados Unidos, só traduzido no Brasil em

1988, mostram as especificidades do país, por meio de uma leitura dos filmes

produzidos nos anos áureos do cinema alemão, como constata Anita Simis:

Neste livro, Kracauer, sem desconsiderar a importância dos fatores

de ordem econômica, social e política para explicar o nazismo e a

fraqueza da oposição, procura mostrar que podemos revelar, por

meio da análise dos filmes alemães, as profundas tendências

psicológicas dominantes na Alemanha de 1918 a 1933, tendências

que influíram no curso dos acontecimentos do período indicado e

que complementam as investigações políticas e econômicas

daquele período. Isto porque, ao analisar os filmes alemães

produzidos nas décadas de 10 e 20, verificou que eles já continham

todas as premonições do nazismo surgido nos anos 30. Os filmes

de então continham presságios históricos, pistas sobre a estreita

relação entre a produção cinematográfica e a psique coletiva de sua

época. 94

A autora relativiza os “presságios” de Kracauer, afirmando que as produções

cinematográficas não preparam fatalisticamente à ideologia nazista, mas servem como

um meio de investigação de sua pesquisa, como afirma o próprio Kracauer: “Tenho

razões para crer que o uso aqui feito dos filmes como meio de pesquisa pode ser

proveitosamente estendido aos estudos sobre o atual comportamento das massas nos

Estados Unidos e em outros países”. 95

94 SIMIS, Anita. Luzes e foco sobre Kracauer, op. cit., p.138. 95 KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão, op. cit., p.07.

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Se Kracauer estava preocupado com as discussões acerca da modernidade, da

cultura de massas, da indústria cultural, principalmente nas produções norte-

americanas96, como foi indicado no subitem acima, isso também aparece em sua análise

da cinematografia alemã, principalmente, quando faz apontamentos sobre as campanhas

maciças do governo alemão para melhorar a imagem da Alemanha fora do país, “não

apenas em uma propaganda cinematográfica direta, mas também em filmes

característicos da cultura alemã”. 97

Ao escrever sua obra em 1947 no exílio, debruçando-se sobre o passado recente

alemão, suas análises partem da crítica, tanto da experiência alemã da República de

Weimar98, como do próprio nazismo - afinal não se pode deixar de enfatizar que aos

historiadores cabem suas próprias experiências - e nada mais axiomático do que o olhar

de Kracauer sobre seu tempo.

Por isso, ao analisar O Gabinete do Dr. Caligari, suas críticas são incisivas

acerca da narrativa moldura, pois ela teria corrompido o caráter pacifista e de crítica à

autoridade originalmente sugerida pelos roteiristas.

A estória original era um registro de horrores reais; a versão de

Wiene transforma este registro numa quimera tramada e narrada

pelo mentalmente louco Francis. Para realizar essa transformação,

o corpo da estória original é colocado dentro de outra (estória

moldura) que introduz Francis como um louco. 99

Mas será possível desconsiderar a legitimidade da obra a partir dessas

alterações? Será que ela diz menos sobre seu tempo quando se transforma de

revolucionária a conformista? Será que não revelará seu tempo justamente por ter se

tornado uma obra susceptível de ambigüidades, tão intrincadas pelo ambiente histórico

de Weimar?

96 Não serão objetos dessa pesquisa, as análises sobre indústria cultural e de massas. 97 SIMIS, Anita. Luzes e foco sobre Kracauer, op. cit., p.143. 98 Kracauer chama a atenção para o caráter “improvisado” da República de Weimar: Chamar os acontecimentos de novembro de 1918 de uma revolução seria abusar do termo. Não houve revolução na Alemanha. O que realmente ocorreu foi a queda dos que estavam no comando, resultante de uma situação militar sem esperança e (...) porque as pessoas estavam cansadas da guerra. Os Social-Democratas que assumiram eram tão pouco preparados para uma revolução que originalmente nem pensaram em estabelecer uma República alemã. Sua proclamação foi improvisada (...) Após as primeiras semanas da nova República, as velhas classes dominantes começaram a se restabelecer. Exceto por algumas poucas reformas sociais, quase nada mudou. IN: KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão, op. cit., p. 55. 99 Idem, p.83.

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Se atualmente ninguém mais questiona a influência dos produtores, da direção

executiva e dos interesses comerciais no cinema, o mesmo não pode ser dito de O

Gabinete do Dr. Caligari, ao menos no que concernem suas críticas. Obviamente que o

cinema já possuía uma aparelhagem semelhante à de hoje em suas formas de produção e

criação, já havia a distinção desempenhada pelo autor, diretor, pela equipe técnica, pois

desde os primórdios do cinema expressionista, a indústria cinematográfica, apropriou-se

dos filmes chamados artísticos, acreditando em seu sucesso comercial como foi

apontado no capítulo anterior. Mas, quando O Gabinete do Dr. Caligari, foi produzido

por Erich Pommer, roteirizado por Mayer e Janowitz e dirigido por Robert Wiene, uma

série de críticas, polêmicas - que se sustenta até hoje nas interpretações sobre o filme -

foi promovida pelas modificações feitas em função desses “interesses” industriais e

comerciais.

Os incidentes marcados pela modificação da obra, relatados por Sigfried

Kracauer, mostram a criação de um prólogo e um epílogo, posteriormente inseridos

como uma espécie de “moldura” que circundava o filme. Se, na história original dos

roteiristas, a intenção era uma crítica à sociedade alemã submissa a autoridade em

função da vivencia do front, da guerra, metaforicamente representada pela figura de

Caligari, após as modificações, segundo essas críticas, o filme acabou por tornar a

narrativa o delírio de um jovem encarcerado num asilo de loucos.

O filme em sua concepção original revela o quanto os dois jovens escritores

estavam preocupados em transmitir uma mensagem pacifista, contra o militarismo em

geral, que inclusive haviam experimentado nos anos anteriores durante a guerra.

Kracauer, que pôde fazer uma apreciação mais refinada, já que teve acesso aos

depoimentos dos roteiristas, elucida sobre as inspirações dos jovens autores quando

escreveram Caligari, a história de uma história famosa.100

100O poeta tcheco Hans Janowitz, havia vivenciado, certa vez em Hamburgo, uma experiência que mais tarde usaria como inspiração para criar a idéia da quermesse de Hostenwall, além de outros elementos vistos no filme, como afirma Kracauer: Numa noite de outubro de 1913, este jovem poeta perambulava por um parque de diversões em Hamburgo, tentando encontrar uma moça cujos modos e beleza haviam-no atraído (...) À procura da moça, Janowitz seguiu a frágil trilha de uma risada, que ele pensou que fosse dela, chegando a um sombrio parque ao lado do Hostenwall. A risada, que aparentemente destinava-se a atrair um jovem, se interrompeu em algum lugar no matagal. Quando, pouco tempo depois, o jovem partiu, uma outra sombra, escondida até então atrás dos arbustos, de repente apareceu e caminhou - como se no rastro daquela risada. Ao passar por esta misteriosa sombra, Janowitz entreviu um homem, parecia um burguês médio. A escuridão reabsorveu o homem e tornou a perseguição impossível. No dia seguinte, grandes manchetes na imprensa local anunciavam: “Horrível crime sexual em Hostenwall. A jovem Gertrude...assassinada. Um obscuro sentimento de que Gertrude poderia ser a moça do parque impeliu Janowitz a comparecer aos funerais da vítima. Durante a cerimônia, de repente teve a sensação de ter descoberto o assassino, que ainda não havia sido capturado. O homem de que

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Hans Janowitz desde o início da guerra serviu como oficial da infantaria, assim

como Mayer que, após o suicídio de seu pai, vivenciou durante o front uma fase aguda

de “crise mental”, tornando-se alvo da psiquiatria militar. Ao se conhecerem em Berlim,

por intermédio da atriz Gilda Langer, ambos pacifistas ferrenhos, e com experiências

em comum, passam a enxergar o cinema como um meio de materializar a crítica ao

autoritarismo militar. 101 A história de Caligari revela a intenção dos roteiristas de

mesclar suas experiências vividas, seja no front, seja em asilos psiquiátricos, com o

inconformismo diante de uma autoridade brutal do qual fizeram parte.

Como indica Janowitz, ele e Carl Mayer semi-intencionalmente

estigmatizaram a onipotência de uma autoridade estatal que se

manifestava através do serviço militar obrigatório e das

declarações de guerra. O governo de guerra alemão parecia, para

os autores, o protótipo de tal autoridade voraz. O caráter de

Caligari engloba essas tendências: ele exemplifica uma autoridade

ilimitada que idolatra o poder como tal e que, para satisfazer sua

avidez pela dominação, viola cruelmente todos os direitos e valores

humanos. Funcionando como um mero instrumento, Cesare é não

tanto um assassino culpado, mas uma vítima inocente de Caligari.

Este é o modo como os autores o entendem. De acordo com o

pacifista Janowitz, eles criaram Cesare com o obscuro desejo de

retratar o homem comum que, sob a pressão do serviço militar

compulsório, é treinado para matar e ser morto. O significado

revolucionário da estória revela-se sem sombra de dúvida no final,

com a revelação de que Caligari é o psiquiatra; a razão ultrapassa o

poder irracional, a autoridade insana é simbolicamente abolida. 102

suspeitava pareceu reconhecê-lo também. Era o burguês - a sombra nos arbustos. Outro ponto importante, segundo Kracauer, aconteceu após Janowitz e Mayer se conhecerem em Berlim e assistirem a um espetáculo em Kantstrasse: (...) a dupla iria perambular pela noite, irresistivelmente atraída por um fascinante e barulhento parque de diversões em Kantstrasse. Era uma brilhante selva, mais inferno do que paraíso, mas um paraíso para os que haviam trocado o horror da guerra pelo terror do desejo. Um noite, Mayer arrastou seu companheiro para uma exibição que o impressionara. Sob o título “Homem ou máquina”, apresentava um homem forte que conseguia milagres de força aparentemente sem se esforçar. Agia como se estivesse hipnotizado. O mais estranho era que seus feitos eram acompanhados de expressões que atingiam os fascinados espectadores como fecundos presságios (...) Na noite deste espetáculo, os amigos visualizaram pela primeira vez a estória original de Caligari. KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão, op. cit., pp.78 a 80. 101KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão, op. cit., p.79. 102 Idem, p.82.

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Na história original de Mayer e Janowitz, visivelmente perdura a Alemanha

libertária, pacifista – os autores queriam desmascarar a brutal e insana autoridade

militar, como aponta Luiz Nazário:

Os dois artistas decidiram, através da metáfora do

psiquiatra louco que hipnotiza um paciente para cometer

crimes, denunciar a onipotência do Estado na conscrição

universal e declaração de guerras: o Estado alemão não

acabara de mandar seus cidadãos matar outros homens no

front? E estes não foram para lá, como sonâmbulos? (...) A

metáfora revolucionária de Caligari não chegou, contudo, à

versão final.103

Nesse sentido, mais importante que determinar as razões da criação de prólogos

e epílogos, ou mesmo atribuir responsabilidades sobre a nova moldura no filme, é

avaliar seu efeito. Kracauer apontaria algumas destas razões:

Janowitz e Mayer sabiam por que se insurgiram contra a

estória-moldura: ela perverteu, se não reverteu suas intenções

intrínsecas. Enquanto a estória original expunha a loucura

inerente à autoridade, o Caligari de Wiene glorificava a

autoridade e condenava seu antagonista à loucura. Um filme

revolucionário foi assim transformado em filme conformista –

seguindo o padrão muito usado de declarar insanos alguns

indivíduos normais, mas criadores de problemas, e de mandá-

los para um manicômio. Esta mudança sem dúvida não foi

resultado da predileção pessoal de Wiene, mas de sua instintiva

submissão às necessidades do cinema; filmes, pelo menos

filmes comerciais, são obrigados a responder aos desejos das

massas. 104

A narrativa moldura, com as intervenções criadas posteriormente, se passa em

retrospectiva, já que a história é narrada pelo jovem Francis. Em Hostenwall, cidade ao

103 NAZÁRIO, Luiz. As Sombras Móveis: Atualidade do Cinema Mudo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, p.158-159. 104 KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: Uma história psicológica do cinema alemão, op. cit., p.84.

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norte da Alemanha, uma figura cujo nome é Caligari, chega à cidade com o intuito de

apresentar seu espetáculo em uma espécie de parque de diversões - um sonâmbulo que

prevê o futuro das pessoas. Onde quer que Caligari se encontrava, a morte o seguia.

Primeiramente é assassinado o escrivão da prefeitura, figura que anteriormente humilha

Caligari ao disponibilizar a licença para a apresentação de seu show. Depois, já durante

o espetáculo, um jovem estudante - Allan, amigo de Francis, questiona seu futuro ao

sonâmbulo que prediz que o jovem morrerá ao amanhecer, terminando também

assassinado. Esses acontecimentos movem Francis a desvendar as mortes que se

seguem na cidade. Desconfiado de Caligari e seu sonâmbulo, o jovem passa a vigiar

seu gabinete, onde sabiamente, enquanto Cesare não está em seu esquife, é substituído

por um boneco, a fim de não levantar suspeita sobre os crimes. Neste momento da

narrativa, outro assassinato é premeditado por Caligari. Agora o alvo seria a

personagem de Jane, jovem anteriormente disputada pelo amor dos rapazes. Impelido

por alguma razão de cometer mais um crime, o sonâmbulo seqüestra Jane. Perseguido,

carrega a moça em seus ombros pelas ruas tortuosas e bosques íngremes da região,

morrendo de exaustão.

Cena em que Francis descobre o truque do boneco substituindo Cesare

Assim que a polícia e Francis descobrem o boneco na caixa de Caligari, logo

percebem seu golpe. Cesare é hipnotizado cometendo as atrocidades na cidade

ordenadas pelo mestre. Por um descuido da polícia, Caligari foge, refugiando-se em um

asilo de loucos. Francis o segue sem se deixar perceber. Ao chegar ao asilo tem uma

revelação: O hipnotizador Caligari e o diretor do asilo são a mesma pessoa. Ao

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examinar com a polícia os registros do hospital, Francis descobre um livro, cujo tema é

o sonambulismo e as experiências de um místico do século XVIII, chamado Caligari.

Assim sendo, logo percebem que o diretor, fascinado pela idéia de comandar um

paciente com sonambulismo, transforma seu sonâmbulo no assassino de Hostenwall. Ao

ser desmascarado diante do cadáver de Cesare, Caligari enlouquece e acaba

encarcerado em uma camisa-de-força. Esse é o momento em que a narrativa sofre um

prolongamento. De volta ao bosque, onde Francis contava sua história, o jovem e o

senhor idoso retornam para o asilo. Ali Francis é um interno do hospital, e em uma

crise de loucura, começa a chamar seu médico de Caligari. Nesse prolongamento

Francis termina em uma camisa-de-força, e seu médico, conhecendo a natureza de sua

psicose, finalmente passa a acreditar que poderá curá-lo.

Esse prólogo e epílogo criados posteriormente na história, modificando a

natureza do filme, podem revelar o caráter ambíguo dos expressionistas ou de uma

Alemanha que se reinventava, como afirma Peter Gay:

(...) em sua concepção original, sua forma definitiva e seu triunfo

eventual, Caligari espelha as incertezas e o pensamento confuso

dos expressionistas. Enquanto os expressionistas faziam o que

podiam, em sua opinião, para servir à Revolução, eram em geral

revolucionários sem serem políticos, ou pelo menos sem serem

programáticos, sua rebelião contra as formas estáveis e contra o

senso comum refletiam o desejo por uma renovação, o

descontentamento com a realidade, e a incerteza acerca dos valores

que marcavam a Alemanha em geral. O expressionismo não era

um movimento unificado, mas um grupo frouxamente unido. 105

Quando Janowitz deu seu depoimento a Kracauer, sobre a polêmica da moldura,

o processo de criação do filme, presumia-se que não havia mais nenhuma cópia do

roteiro, porém, na década de 1950, o ator Werner Krauss, disponibilizou para a escritora

Lotte Eisner a tão polêmica cópia do roteiro pensado originalmente. Em 1978, a Stiftung

Deutsche Kinemathek, conseguiu comprar o roteiro da viúva de Krauss, publicando-o

105 GAY, Peter. A cultura de Weimar, op. cit., p.121.

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em 1995. 106 Assim sendo, muitas das controvérsias sobre as modificações do roteiro

puderam ser esclarecidas. A começar pela atribuição da moldura.

Logo que Janotwitz e Mayer disponibilizaram seu roteiro à Pommer, este

selecionou Fritz Lang para direção. Figura sempre polêmica, Lang reivindicou para si a

idéia da moldura, alegando que o filme precisaria estar “compreensível” ao público. 107

Mas Lang, ocupado com o processo de finalização do seriado As Aranhas, foi afastado e

acabou sendo Robert Wiene o escolhido para a direção de O Gabinete do Dr.Caligari,

assim como é sabido desde a década de 1920, ser Wiene o autor do prólogo e do epílogo

do filme.

O filme, pensado pelos roteiristas, também não pressupunha um cenário

expressionista, ao contrário, tal recurso, segundo Laura Cánepa, “teria sido idéia do

diretor e dos seus cenógrafos, Warm, Reinman e Röhrig. Além disso, o cenário de

Janowitz-Mayer está ambientado no mundo moderno, com telefones, telegramas e luz

elétrica”. 108

Kracauer e Pommer foram, entretanto, traídos pela memória ao

evocar lembranças tão antigas. Eis como Hermann Warm conta a

verdadeira história de Caligari: não foi Erich Pommer - cuja

importância não queremos de forma alguma minimizar - o diretor

de produção, mas Rudolf Meinert (...) segundo o costume da

produção alemã da época, quando o cenário prevalecia sobre o

resto, confiou a decupagem de Caligari ao cenógrafo Warm. Este

estudou com dois amigos, contratados pelos estúdios como

pintores: Walter Röhrig e Walter Reimann. “Lemos, até o

anoitecer, aquela decupagem tão curiosa”, escreve Warm.

“Compreendemos que um tema assim precisava de um cenário

incomum, irreal. Reimann, então pintor de tendência

expressionista, propôs executarmos cenários expressionistas. Na

mesma hora começamos a traçar esboços nesse estilo”. 109

106 CÁNEPA, Laura Loguercio. Houve de fato um cinema expressionista alemão? Op. cit., p.15. 107 NAZÁRIO, Luiz. As sombras móveis: atualidade do cinema mudo, op. cit., p.511. 108 Idem p.512. 109 EISNER, Lotte H. A tela demoníaca: as influências de Max Reinhardt e do Expressionismo, op. cit.,p.27.

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O roteiro original de O Gabinete do Dr. Caligari, desde o início, foi dividido em

atos – inclusive Janowitz e Mayer já partilhavam da idéia da inclusão de um prólogo e

epílogo. A utilização de atos nos filmes da década de vinte era muito usual, menos

como uma convenção herdada pelo teatro e mais como uma preocupação dos

realizadores para com as deficiências das salas de exibição do período. 110

Na estréia do filme, não houve grandes discussões sobre a narrativa moldura, a

aceitação do filme foi praticamente unânime por parte da crítica e do público, tanto na

Alemanha, como na Europa e Estados Unidos. As interpretações dadas na época à

narrativa moldura se mostram bastante diversificadas: “alguns críticos a acharam

edificante, outros a consideraram simplesmente coerente com a ambientação

expressionista”. 111 O autor Thomas Elsaesser em The Weimar Cinema and After afirma

tratar-se de uma metáfora que mantém sua ambivalência, e cuja correlação não é apenas

o irracionalismo, mas também o ceticismo e a afirmação de uma dúvida radical, ou seja,

a Alemanha vivia uma desordem, portanto as dúvidas, as nuances, as oscilações se

revelam coerentes, por isso é altamente significativo que o filme traga elementos tão

ambíguos em sua narrativa revelando a instabilidade do ambiente político-cultural em

que foi gerado.

Como foi apontado anteriormente, desde a interpretação de Kracauer, quase todos

os estudos sobre o filme acolheram a leitura feita pelo autor, alegando que a moldura

“falsificou” a ação, glorificando a autoridade. Entretanto, ao espectador de hoje, cabe

lançar um olhar diverso, pois justamente essa moldura, evidencia as ambigüidades, a

fragmentação de uma Alemanha recém formada, que travava um conflito interno de

busca de uma unidade política e cultural, que oscilava entre idéias irracionalistas,

arraigadas à tradição romântica, de um lado, e à constituição de uma nova, democrática,

humanista fundamentada nos autos da Revolução de 1848. 112 O que não significa

desqualificar as análises de Kracauer, ao contrário, mas é necessário historicizar

também sua obra.

110 Muitos dos cinemas eram aparelhados de apenas um projetor, o que tornava a exibição um problema no momento da troca de rolos, os distribuidores e realizadores então “seriavam” os filmes, já prevendo sua interrupção dando a cada rolo uma unidade estrutural e dramática. 111 CÁNEPA, Laura Loguercio. Houve de fato um cinema expressionista alemão? Op. cit., p.12. 112 Sobre o tema ver: GAY, Peter. A cultura de Weimar, op. cit., p. 15.Na realidade existiam duas Alemanhas: a Alemanha orgulhosamente militar, abjetamente submissa à autoridade, agressiva na aventura externa, obsessivamente preocupada com a forma, e a Alemanha da poesia lírica, da filosofia humanística e do cosmopolitismo pacífico. A Alemanha tentara o caminho de Bismarck e Schilieffen e agora estava pronta a tentar o caminho de Goethe e Humboldt.

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Para o autor, o médico é a figura da autoridade ilimitada, tendo para si o poder de

matar e dominar, sua sede por poder o leva até a acreditar que é o mitológico Caligari,

que através de um paciente com sonambulismo, Cesare – metáfora da apatia do povo

alemão, dos soldados sem consciência – determina suas ações, isto é, deturpa a

realidade já caótica do pós-guerra.

Kracauer observou também, de maneira pertinente, as características de

monstruosidade no cinema alemão, chamando-as de “procissão de déspotas”, cujo maior

exemplo é o personagem de Caligari, que está intimamente vinculado à tirania, pois

havia nele todos os impulsos de dominação e destruição. Esses personagens

“monstruosos”, que atraíam o cinema expressionista, revelam uma necessidade de

onipotência e de liberdade instintiva, pois essas criaturas expõem desejos proibidos ou

reprimidos, por isso são repulsivos, estão fora das categorias sociais aceitas.

O livro de Kracauer parte de interpretações e inquietações que vão de encontro

com o seu tempo - a trágica experiência do nazismo, assim sendo, é compreensível o

viés de suas críticas à autoridade e às modificações do roteiro. Quando o autor

questiona que Wiene evitou “mutilar” o roteiro original ao preservar a “história

revolucionária” de Janowitz e Mayer, esta simplesmente é simbolizada como: “uma

fantasia de um louco, impulsionando os alemães a reconsiderarem suas crenças

tradicionais na autoridade”. 113 Obviamente que a censura de Kracauer é profundamente

adequada, mas o caráter crítico do filme, diante da autoridade, não se perde

integralmente, ao contrário, ela continua questionando as ações disciplinadoras e

coercitivas, continua a questionar o poder exercido pelos personagens dos “médicos”,

mas também deixa aberta a possibilidade de outras leituras que cabem ao receptor, seja

dos tempos weimarianos ou atuais, fazer. A crítica continua a existir nos meandros da

história que se tornou mais ambígua, assim como o próprio tempo em que foi

produzida.

Ao analisar o movimento expressionista, especificamente no cinema, é pertinente

considerar a especificidade histórica e estética deste inestimável documento imagético à

maneira weimariana, buscando ligações possíveis entre o cinema e os conflitos vividos

pela sociedade alemã, e de que forma, essas ambigüidades aparecem em O Gabinete do

Dr. Caligari. Pode-se pensar que o filme traz diversas possibilidades para a percepção

de um paradoxo vivido pela sociedade alemã, deixando de lado as interpretações pós-

113 KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: Uma história psicológica do cinema alemão, op. cit., p.84.

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nazismo, às quais muitas vezes Kracauer é levado, quando expõe os “problemas” e

“inspirações” dos roteiristas. Fica clara a crítica dos roteiristas à Alemanha autoritária

no dito roteiro original do filme. Mas o que é interessante no prolongamento deste, com

a narrativa moldura é que se pode perceber o choque de temporalidades de uma nação

que lutava para manter uma unidade cultural, vinculada à idéia de comunidade, diante

das vicissitudes advindas dos ideais de civilização na Alemanha de Weimar – o que não

existiria se o filme fosse apenas “revolucionário” ou simplesmente “conformista”. Ele

precisa dos dois elementos para revelar seu tempo. É importante ressaltar, a

especificidade histórica de Weimar, que nasceu e permaneceu paradoxal durante toda a

sua existência. Peter Gay ao apontar para a existência de “duas Alemanhas”, explicita

que esse paradoxo está enraizado na sociedade alemã, pois “buscava o novo e o antigo

ou novidade e raízes, era reflexo de dois passados históricos, o distante e o recente, um

recordado e um vivido pelas novas gerações”. 114

Quando Kracauer afirma que a “nova moldura” transformaria o filme de

“revolucionário” a “conformista”, está impregnado pela experiência do nazismo, afinal,

como já foi dito, ao escrever, os historiadores partem de suas vivências, dos problemas

de seu tempo, portanto, as interpretações do autor, estão mais próximas a uma severa

crítica às alterações do roteiro, pois, de certa maneira, ansiava por um filme que

condenasse as atrocidades do militarismo e da autoridade, vivenciadas durante as

guerras mundiais. Esta “nova moldura”, tão criticada, manifesta a ambigüidade alemã,

fazendo com que o filme revele Weimar e seu tempo.

A arte, “influenciada” pela conjuntura política dos últimos anos de Weimar sofre,

um rompimento com o expressionismo “já iniciado nos anos anteriores quando a arte

pós-impressionista renuncia a toda ilusão de realidade”. 115 A especial atenção de

Kracauer à Neue Schlichkeit (Nova Objetividade) – ou no cinema alemão o “Novo

Realismo” – é também permeada de severas críticas. Suas interpretações revelam que

os filmes, apesar da aparência realista, afastam-se da realidade social, isto é, o

tratamento dos conflitos sociais são imprecisos, minimizados e até mesmo negados.

As formas e concepções da arte não mais estavam exclusivamente vinculadas a

conteúdos sociais. E mesmo assim alguns elementos advindos do Dadaísmo,

essencialmente receosos com as formas de recepção das obras, faziam com que, no

114 Sobre o tema ver: GAY, Peter. A Cultura de Weimar, op. cit., p.16. 115 SANTANA, Ilma Esperança de Assis. O cinema operário na República de Weimar. São Paulo: UNESP: 1994, p. 135.

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cinema, o espectador não mais pudesse ser levado pelos clichês e hábitos seguros, até

então predominantes nas salas de exibição. As atividades da Neue Sachlichkeit “não

desenvolveram a dinâmica agressiva do Futurismo, os saltos associativos do

Surrealismo ou os componentes provocativos do Dadaísmo, a não ser no campo do

filme experimental”. 116

Walter Benjamin em suas apreciações ao movimento da Neue Sachlichkeit,

alerta para o fato “de que esta (Nova Objetividade) transforma em objeto de consumo a

luta contra a miséria”. 117 A Neue Sachlichkeit se distancia do expressionismo ao buscar

um novo estilo, mais próximo da sobriedade e do quotidiano, justamente pelas

alterações sofridas pelo conceito de “realidade” no século XX, que direcionava “o olhar

sobre os becos e sarjetas, nos pátios das fábricas e nos estaleiros, na sala de operação e

nos bordéis”. 118 A grande contribuição de Benjamin foi a percepção de que crise

cultural seria resolvida, para os intelectuais direitistas, através da tecnologia. Haveria

uma superação ou “libertação” dos problemas sociais e políticos e uma recuperação da

“alma alemã”.

116 Idem, p.136. 117 Sobre: BENJAMIN, Walter. Walter Benjamim. Flávio R. Kothe (org.). São Paulo, Ática, 1985. 118 SANTANA, Ilma Esperança de Assis. O cinema operário na República de Weimar, p.135.

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CAPÍTULO III

A singularidade alemã: um tempo de paradoxos e incertezas

Devemos despedir-nos de um mundo, antes que ele soçobre...

Hugo von Hofmannsthal.

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3.1.Fragmentação e unificação: os mundos de Caligari

Havia na Alemanha de Weimar uma longa duração histórica que foi encoberta

pelas interpretações pós-nazistas e pelas próprias representações do período em que o

filme O Gabinete do Dr. Caligari foi produzido. Uma permanência que, evidentemente,

sempre muda e, por isso, é muda. O filme é mudo, mas também está mudo dentro do

mundo da Zivilization que lhe permitiu existir até mesmo enquanto uma linguagem

moderna. Devemos lembrar que o cinema é fruto da técnica, do artifício e do simulacro,

bem distante da valorização de uma Kultur voltada à natureza e ao natural de uma

cultura.

Da formação do Sacro Império Romano-Germânico, passando pela unificação

alemã sob o manto de Guilherme I, e executada por Bismarck, estendendo-se para o

final da Segunda Guerra Mundial com a refragmentação da Alemanha em Oriental e

Ocidental, e chegando até 1989 com a queda do Muro de Berlim, há algo de estranho e

reincidente nesta história.

Um filme alemão de 2003, chamado Good bye Lenin! de Wolfgang Becker,

também parece tratar deste problema recorrente na história alemã, mas mutável a cada

reapresentação imagética do tempo: como lidar com hábitos arraigados culturalmente

que dão sentido de comunidade ou pertencimento a um grupo diante das vicissitudes de

um mundo em que a política racional e civilizatória parecem jogar, como dados, com as

vidas e a memória dos grupos? Ainda mais quando o sentido de comunidade está ligado

aos ritmos mais sincopados da natureza, entendida, pelas mentes “iluminadas” da

civilização ocidental como crenças “irracionais”?

O mundo descrito pelos expressionistas revelava o grotesco, o decadente, o

aflitivo do Zeitgeist alemão, o espírito de uma época marcado pelas contradições de

uma ambiência histórica profundamente conturbada, que fornece recursos para a

interpretação de mundos inconciliáveis.

Algumas representações imagéticas, encontradas em O Gabinete do Dr.

Caligari, revelam características marcantes do expressionismo, como também dois

mundos distintos, pois, se de um lado havia uma ânsia pela idéia de civilização

representada por um regime republicano que se instaurava politicamente e um diálogo

com as vanguardas internacionais no campo estético, por outro havia uma necessidade

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de permanência de tradições vinculadas à idéia de comunidade, de lastro cultural no

qual a Alemanha se distinguia de outros países europeus. 119

Os personagens expressionistas, em geral, como afirma Marion Fleischer, e

especificamente os simbolizados em O Gabinete do Dr. Caligari, são antimodelos

humanos, exprimiam um descontentamento com as concepções vigentes e com a

incerteza do mundo fragmentado e suas crises de valores do início do século:

(...) o vezo expressionista de enfocar temas rejeitados pela

sociedade da segunda década do século XX, evocam em seus

trabalhos as figuras de débeis mentais, loucos, prostitutas, doentes

e mendigos. Ou então configuram seres mental e fisicamente

deformados, habitantes de um mundo insólito e enfermo,

destituídos dos atributos e valores até então considerados válidos.

Na configuração desses seres revela-se a crise da época, o clima

crepuscular que, segundo os expressionistas, envolvia a vida

humana.120

Em grande parte dos personagens expressionistas, e também no caso específico

de O Gabinete do Dr. Caligari, estão presentes essas especificidades abordadas pelo

movimento artístico, de ruptura e retomada de alguns valores. Luiz Nazário evidencia as

características desses personagens no cinema como categorias gradativas do Mal,

estando sempre vinculadas ao criminoso, ao maquiavélico, ao perverso, ao sobrenatural.

Quando o expressionismo chega às telas, numa República recém instaurada, essas

figuras demoníacas sempre destituídas de moralidade, simbolizavam uma crítica à

autoridade, eram déspotas, tiranos que revelavam poderes sinistros e mágicos capazes

de dominar indivíduos desprovidos de autonomia. 121 Caso típico no filme de Robert

Wiene, está na relação entre Caligari-Cesare, que a partir de experiências médicas, ou

mesmo “místicas”, passa a controlar um paciente com sonambulismo.

A esses personagens reprimidos pela lei, pela natureza, pela própria

artificialização do mundo, cabia a total falta de vínculos morais, ou por serem

indivíduos intermediários que se submetiam às influências alheias, ou por representarem

“tiranos” que criavam suas próprias convicções.

119 Sobre o tema ver: ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: uma história dos costumes, op. cit. 120 FLEISCHER, MARION. O expressionismo e a dissolução de valores tradicionais: uma evolução e estética. Um período de análise e protesto. IN: GINSBURG, J. O Expressionismo, op. cit., p. 72-73. 121 NAZÁRIO, Luiz. De Caligari a Lili Marlene. Global, Revista Cinetexto. s/d, p. 23.

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A alteração psicológica e física dos personagens do cinema expressionista é tida

quase sempre como uma deformação, uma distorção da realidade, visto que, na maioria

das vezes, o herói “inventa” sua própria realidade, no caso do filme de Wiene, o

personagem de Francis acredita que seu psiquiatra é o mitológico Caligari, ou mesmo o

médico que, em determinado trecho do filme, se torna Caligari.

As deformações dos personagens descritos acima, revelam suas mais profundas

particularidades psicológicas, ou seja, se na concepção do filme modificado com a

“moldura”, a narrativa do filme não passa de uma história contada por um louco, suas

fantasias estariam também assinaladas em toda sua decoração, como se o processo

interior dessas figuras designassem o que estava sendo visto, portanto um mundo

desordenado, fragmentado política e culturalmente.

Há também a tendência dos personagens expressionistas de simbolizarem “a

realidade essencial da consciência”, 122 portanto, as figuras criadas na mente do

protagonista mostram uma outra realidade, que em sua convicção, teria realmente sido

vivida e rememorada, como o caso de Francis, que concebe em seu imaginário, dentro

do asilo, uma narrativa distorcida, envolvendo indivíduos que não necessariamente

existem. Como assinala Anatol Rosenfeld, “não se trata de seres matizados, e sim de

arquétipos portadores quase abstratos de visões apocalípticas ou utópicas”. 123

Proveniente do teatro, essa particularidade, como foi indicada no primeiro capítulo,

advém do ich drama, ou dramaturgia do ego de Strindberg, “e desembocou no chamado

‘drama de estações’, no qual o ego do herói é elemento unificador que substitui a

unidade do tempo, lugar e ação”. 124

Assim como na cinematografia expressionista, os personagens do filme de

Wiene também trilham os caminhos da monstruosidade, pois as alterações físicas e

psicológicas dos personagens expressionistas dentro da narrativa, podem representar

uma conseqüência do procedimento geral de deformação expressiva. Por isso, a

recorrência aos personagens monstruosos que justamente representam o “medo do

outro”, seja ele real ou um prolongamento dos próprios indivíduos. Dessa forma, além

da criação de duplos - como acontece na relação entre médico e paciente (Caligari-

122 CÁNEPA, Laura Loguercio. Houve de fato um cinema expressionista alemão? Op. cit., p. 07. 123 ROSENFELD, Anatol. História da Literatura e do Teatro Alemães. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 284. 124 CÁNEPA, Laura Loguercio. Houve de fato um cinema expressionista alemão? Op. cit., p. 07.

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Cesare) - o cinema alemão cria seus “monstros” 125. No ensaio O Estranho de Freud,

essas características estão nitidamente presentes:

O estranho provém de algo familiar que foi reprimido (...)

está ligado à onipotência de pensamentos, à pronta realização

de desejos, a maléficos poderes secretos e ao retorno dos

mortos (...) Membros arrancados, uma cabeça decepada, mão

cortada pelo pulso, pés que dançam por si próprios - todas

essas coisas têm algo de peculiarmente estranho (...) O

estranho seria sempre algo que não se sabe como abordar. 126

O cinema expressionista desvela uma obsessiva exploração do “mal”, como foi

apontado anteriormente, seus personagens são esmerados com características ditas

maléficas, como o criminoso, o maquiavélico, o perverso, o demoníaco e todas as

narrativas expressionistas apontam para os “estranhos que deveriam permanecer

secretos, mas vieram à luz”. 127

Notemos que as personagens Caligari e César são perfeitamente

adequadas à concepção expressionista: o sonâmbulo, isolado de

seu ambiente cotidiano, mata sem motivo ou lógica, enquanto seu

mestre, o misterioso Dr. Caligari, que não possui sombra de

escrúpulo humano, age com aquela insensibilidade furiosa, aquele

desafio à moral corrente que os expressionistas exaltam. 128

A autora Laura de Loguercio Cánepa assinala algumas tendências que eram

correntes aos filmes expressionistas, como o referencial fantástico, a deformação

expressiva, o isolamento e a monstruosidade, além da tematização da maldade.

A intenção dos artistas expressionistas, no cinema, era revelar um mundo

fantástico, o antilógico, o confuso, o incoerente da existência humana, evidenciando seu

próprio tempo. O cinema expressionista, de certa forma, tornou-se um meio para a

materialização do drama “fantástico”, com lendas tradicionais e histórias herdadas do

125 Idem, p. 09. 126 FREUD, S. O Estranho. IN: Obras Psicológicas Completas, Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1976, pp.277-307. 127 Idem, p. 307. 128EISNER, Lotte H. A tela demoníaca: as influências de Max Reinhardt e do Expressionismo, op. cit., p.32.

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século XIX – recurso já muito utilizado na literatura de autores como E.T.A. Hoffmann,

Edgar Allan Poe. O estilo traria a possibilidade de revelação do “absurdo da existência”

dissociado do “mundo habitual”, e Kracauer apontaria essa característica de predileção

pelo mundo imaginário como um diferencial positivo para o cinema alemão.129 Luckács

também havia observado a ambigüidade do cinema ao recuperar certas temáticas

românticas: “No cinema, pode realizar-se tudo o que os românticos esperaram - em vão

- do teatro: extrema, desenfreada mobilidade das formas, total animação do fundo e da

natureza, dos interiores, das plantas e dos animais, mas uma vividez que de modo algum

se associa, seja em conteúdo ou limites, à vida habitual”.130

(...) a distorção expressiva e o abstracionismo, herdados da pintura;

o gosto pelas imagens de horror, herdados da literatura; os

personagens “arquetípicos”, herdados da dramaturgia e o uso

dramático da luz, herdado da encenação teatral (...) o filme de

Wiene trazia uma história de horror vivida por personagens sem

qualquer ligação com a realidade, e cujos sentimentos apareciam

traduzidos em um drama plástico repleto de simbologias

macabras.131

Obviamente que, em certa medida, o expressionismo distancia-se do

romantismo, mas essa retomada das lendas e antigas tradições alemãs mostram que,

apesar das rupturas estilísticas nas artes figurativas, os temas ainda estão vinculados aos

antigos mitos germânicos. Há uma necessidade de recuperação da fantasia na narrativa

cinematográfica, que alterava as formas constituindo criaturas irreais, e a tendência era

de vislumbrar o cotidiano para além das aparências. Ou seja, no mundo fragmentado da

Zivilisation, onde politicamente a Alemanha entra para o concerto dos Estados-

nacionais modernos carregando consigo uma falta de unidade cultural, gera a retomada

de certos temas, forjando a unidade que está ausente, isto é, a antiga unidade da Kultur

perde-se na medida em que a idéia de civilização prevalece.

As profundas alterações das formas, que chegam a alcançar a “irrealidade”, estão

além da recuperação de antigas narrativas tradicionais, na verdade, procuram

resignificar as simbologias dessas narrativas diante de uma tumultuada experiência

129CÁNEPA, Laura Loguercio. Houve de fato um cinema expressionista alemão? Op. cit., p.10. 130 NAZÁRIO, Luiz. As Sombras Móveis: Atualidade do Cinema Mudo, op. cit., p. 134. 131 CÁNEPA, Laura Loguercio. Houve de fato um cinema expressionista alemão? Op. cit.,p. 10.

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vivida pela sociedade alemã do pós-guerra. E o filme de Robert Wiene apresenta essa

tendência quando contraditoriamente dialoga entre a racionalidade da psiquiatria por um

lado, e a irracionalidade da figura do místico Caligari, por outro.

Outros elementos importantes para o cinema expressionista estão vinculados à

decoração, à interpretação do ator, às inovações na iluminação, formando um conjunto

plástico bastante representativo. No caso de O Gabinete do Dr. Caligari, que inspirou

esteticamente uma série de outros filmes no período, a combinação desses elementos

fizeram dele um dos poucos filmes que conseguiram compor uma atmosfera

exclusivamente expressionista.

Os atores Werner Kraus (Caligari) e Conrad Veidt (Cesare) integram com

outros elementos estéticos suas gesticulações, atuações se opondo completamente às

interpretações realistas. Em sua “mímica”, esses personagens criavam ações figurativas,

típicas do expressionismo, como afirma Luiz Nazário, “aí o jogo dos atores está

integrado à decoração, que se integra à maquilagem e ao vestuário, que se integram à

iluminação e à decoração”. 132 Segundo Lotte Eisner, a cenografia é que deveria

determinar os caminhos da interpretação do ator:

Com a redução dos gestos, conseguem movimentos quase lineares,

que - a despeito de algumas curvas insidiosas - permanecem

bruscos como ângulos quebrados do cenário. Além disso, sua

evolução nunca ultrapassa os limites de um certo plano

geométrico. Krauss e Veidt dão à interpretação uma intensidade

adequada à concepção metafísica do cenário. Com o propósito de

alcançar uma “síntese dinâmica do ser”, suprimiram

deliberadamente de sua atitude todas as articulações

intermediárias. 133

O cenário134 do filme que é lido por muitos críticos como o diferencial de O

Gabinete do Dr. Caligari, estava intimamente articulado aos outros elementos estéticos

132 NAZÁRIO, Luiz. De Caligari a Lili Marlene, op. cit., p. 16. 133 EISNER, Lotte H. A tela demoníaca: as influências de Max Reinhardt e do Expressionismo, op. cit., p. 32. 134 Uma interpretação interessante de Lotte Eisner está no que concerne à incoerência dos cenários de O Gabinete do Dr. Caligari na narrativa moldura, pois se a história representa os delírios de Francis no asilo, após contar sua história para o senhor idoso, os cenários que exprimiam o estado de alma do personagem, “voltariam” para seu estado natural em uma representação realista do filme: Notamos em Caligari, uma certa descontinuidade, bastante incômoda, entre cenário expressionista e mobília

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do filme. Essa relação é que torna o filme expressionista. Suas linhas oblíquas,

nitidamente vistas nas ruelas, nos casebres que remetem a vilas medievais, as ladeiras

íngremes, o próprio formato tortuoso do gabinete de Caligari, como indica Lotte Eisner,

é que criarão no espectador uma reação psíquica, um efeito de inquietação e de terror.135

A animização dos objetos nas obras cinematográficas expressionistas traduz

simbolicamente, como afirma Jean Mitry “pelas linhas, formas e volumes, a

mentalidade dos personagens, seu estado de alma, sua intencionalidade, a decoração se

tornando a tradução plástica de seu drama”. 136 Por isso o objeto, carregado de

simbologias, adquire proporções grandiosas, transformando os próprios personagens em

objetos dramáticos, em figuras plásticas.

Como em muitos filmes alemães do período, as personagens são aí

fixadas no desenho, tornando a tela uma gravura e o filme uma

pintura viva: pinguelas desenhadas nos muros, paredes pintadas

com signos e letras, inscrição de bairros inteiros num telão (...) Há

uma continuidade espacial entre o cenário pintado ao fundo e a

realidade nele embutida, de modo que os personagens parecem

saídos da pintura, como “desenhos vivificados”. 137

Cenário que se assemelha a um desenho vivo

perfeitamente burguesa - as poltronas estofadas com tecidos floridos no salão de Lil Dagover (Jane), ou as poltronas de couro no pátio da casa dos alienados. A ruptura de estilo é, aliás, fatal, já que nesses outros trechos se considera a ação como passada na realidade. Por isso a fachada do asilo não é deformada. Contudo, o final do filme se passa de novo no mesmo cenário estranho. Terá prevalecido a tendência expressionista dos cenógrafos ou os escrúpulos econômicos do produtor? EISNER, Lotte H. A tela demoníaca: as influências de Max Reinhardt e do Expressionismo, p. 31. 135 Cabe ressaltar também uma afirmação de Eisner, dialogando com Rudolf Kurtz, sobre como na língua alemã os objetos tem vida: Na sintaxe normal da língua alemã, os objetos têm vida ativa, emprega-se para falar deles, adjetivos e verbos que servem para os seres vivos, as mesmas qualidades lhe são emprestadas, eles agem e reagem da mesma forma. Idem, p. 28. 136 MITRY, Jean. Le Cinéma Expérimental. IN: NAZÁRIO, Luiz. De Caligari a Lili Marlene, op. cit., p. 19. 137 Idem. Ibidem.

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A “mímica dos objetos” 138, denominada mais tarde no texto Geschichte des

Films pelos críticos Ulrich Gregor e Enno Patalas, revelaria a integração dos elementos

estéticos, tais como a estilização da cenografia e indumentária, os jogos de luz e

sombra, a interpretação do ator como se a pintura expressionista ganhasse vida, e esses

“desenhos vivificados” seriam os meios de distorção que faziam parte do “drama

plástico”, como indica Nazário:

O chão é desenhado em triângulos, dando a impressão de

indicadores de caminhos imperativos; torrões de terra e espigões

de telhados impõem-se ao passante e o forçam a prosseguir; o céu

forma uma superfície pálida na qual sobressaem árvores nuas e

bizarras, como sinais ameaçadores (...) A realidade só aparece

como um símbolo objetivado de reflexos anímicos. 139

Cenários oblíquos da cidade de Hostenwall

138Segundo Jean Mitry, o expressionismo transforma as representações do drama em uma simbologia das coisas com diversas significações, de forma que: ele existe enquanto objeto, com suas características físicas; ele é carregado de uma significação abstrata; introduzido na situação dramática, ele reflete e simboliza todo o estado de espírito. Sobre ver: NAZÁRIO, Luiz. As sombras móveis: atualidade do cinema mudo, op. cit., p. 162. 139 Idem, p. 160.

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O Gabinete do Dr. Caligari tornou-se referência pela “mímica dos objetos”

designando mais tarde as estilizações do expressionismo cinematográfico como

caligarismo. Essas características podem ser vislumbradas na maioria das cenas do

filme. Caligari, que com uma vestimenta que se assemelha a de um catedrático, um

homem da ciência, manuseia o livro tão estimado, Ciência do Sonambulismo - uma

coletânea da Universidade de Upsala, e interage com ele, sua fisionomia vai se

transformando na medida em que o personagem, por meio de seu gestual, aparenta estar

em um transe causado pela sua leitura. Essa gesticulação provoca no espectador a

sensação de que o médico está se transfigurando em Caligari.

Cena do médico com o livro sobre o místico Caligari.

O mesmo pode ser notado em Cesare. A figura angular do sonâmbulo, como

bem notou Luiz Nazário, revela seus contornos triangulares, quadris magros e ombros

largos, evidenciados pela malha preta que veste, suas olheiras privilegiadas pela escolha

do plano da cena, além de representarem sua condição de sonâmbulo, de assassino,

revelando sua inquietação existencial, a pressão do Mal, “impressas na face dos que

vivem no limite da existência”, estão vinculadas também aos objetos animizados de

Cesare.

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O sonâmbulo carrega consigo, para matar suas vítimas, um punhal afiado, e

após os assassinatos deixa as vidraças quebradas no mesmo formato de seu punhal

triangular. Allan, o estudante morto por Cesare, no início da narrativa, tem um quarto

com cadeiras de encostos impensáveis de serem utilizados, Jane, parece rodeada

utensílios lúgubres, e sua vestimenta é recoberta de losangos. 140

Maquiagem integrando representação às concepções expressionistas (Cesare)

Todas essas características reiteram a idéia de tornar os personagens e seus

objetos, seres animizados, quase pinturas que se movimentavam traduzindo o que

passava na alma. Aos personagens expressionistas cabia também uma resignificação do

mundo, feita a partir de questões universais e eternas:

Contra a descrição minuciosa, a experiência vivida intensamente.

Contra a reprodução mecânica do que se vê, a criação do próprio

testemunho. É necessário encontrar a verdade interna das coisas, o

irredutivelmente humano, mesmo que para isso seja preciso

refundir toda a realidade e criar um mundo novo sobre as ruínas do

antigo. 141

140 Sobre o tema ver: NAZÁRIO, Luiz. As sombras móveis: atualidade do cinema mudo, op. cit. 141 Idem, p. 21.

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Alguns elementos marcantes do expressionismo se fazem justamente ao revelar

por meio da abstração, um mundo distinto, um mundo compreendido pelo psíquico,

pelo que está na alma dos personagens e são manifestados de maneira oblíqua, tortuosa,

como em seus cenários, vestimentas, maneiras de agir e recriar o mundo. Em outras

palavras, os personagens enxergam o mundo por meio de suas fantasias mais profundas,

por meio de “imagens imaginadas”, por isso a recorrência nos filmes expressionistas

pela deformação, sejam essas deformações morais, físicas ou psicológicas, ou mesmo

uma criação de realidades, por parte dos personagens, como é o caso do médico que

inventa ser Caligari ou de Francis quando imagina que seu médico psiquiatra seria o

Dr. Caligari de sua narrativa.

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3.2.A natureza e as cidades expressionistas

O movimento expressionista, desde seus primórdios em 1903, aproximadamente,

construiu uma série de características que podem ser vistas em O Gabinete do Dr.

Caligari. As vicissitudes de uma época conturbada revelam um mundo sentido e olhado

de outra maneira, e obviamente também o farão, com as novas acepções artísticas, os

realizadores do filme em questão.

Os novos significados dados pelos expressionistas às diversas representações do

mundo, anteriormente vistas de maneira distinta, revelam um rompimento com as

formas tradicionais de representação, além da própria concepção de mundo, a exemplo

disso, estão as manifestações da natureza dentro da obra.

O filme revela a natureza sempre num viés deformador. Como afirma Marion

Fleischer, são sinônimos de manifestações monstruosas, ameaçadoras onde se celebra o

culto ao feio.142 As deformações expressivas passam a ser vistas como negativas,

contrariando antigas concepções ditas “tradicionais” advindas do naturalismo, e do

próprio romantismo, visto que os expressionistas estavam muito mais preocupados em

revelar o antiidílico em suas formas de representação da natureza:

Essas violentas transposições metafóricas demonstram que os

expressionistas perderam algo que, em maior ou menor grau,

possuíam seus predecessores: a capacidade de identificar-se afetiva

e emocionalmente com a natureza. Raros são os momentos que

apresentam uma visão harmoniosa das manifestações da natureza.

Estas, ao contrário, são geralmente consideradas elementos de um

reino despojado de encantos, muitas vezes hostil e apavorante. 143

A natureza, a partir dessa leitura, encontra-se separada abruptamente do homem,

tornando o espaço natural uma ameaça, por isso é suprimida e remodelada. A

importância da natureza aos alemães, seja ela idílica ou apocalíptica, foi profundamente

analisada pelo historiador Simon Shama em Paisagem e Memória, que a define como

um elemento unificador na cultura alemã, obviamente que o mito fundador do povo

germânico ao qual Shama se refere, vem de Cornélio Tácito ao analisar e comparar as

142 Sobre o tema ver: FLEISCHER, Marion. O Expressionismo e a dissolução de valores tradicionais. IN: GINSBURG, J. O Expressionismo, op. cit., p. 74. 143 Idem. Ibidem.

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sua própria cultura, romana, às tribos ditas bárbaras. O retrato, criado por Tácito, de

uma “não-Roma” mostra um habitat que, segundo o autor, “só sendo filho poderia

gostar de habitar e contemplar”, seria também algo “informe” e “horrível”, contrariando

a concepção de uma paisagem romana aprazível, que simbolizava, é claro, uma marca

civilizadora e frutífera do homem. 144

Ao se pensar nos mundos inconciliáveis da Alemanha expressionista, cabe

ressaltar as interpretações de Norbert Elias vinculadas à Kultur e Zivilisation. Para o

autor, no Ocidente 145 - mais especificamente França e Inglaterra - o conceito de

“civilização” resume sua honra e orgulho revelando suas melhores propriedades. Já para

os alemães, estes conceitos têm apenas um valor de segunda classe, compreendendo

apenas a aparência externa, a superfície da existência humana. 146

Na Alemanha este processo se deu à medida que o Estado-nacional, carregado de

“valores ancestrais coletivos, na herança e na tradição imutável de sua nação”, incorpora

os ideais universais e humanistas até então caros às classes médias:

Quando as elites de classe média tornam-se os dirigentes da nação,

o conceito de progresso perde status e significado e em seu lugar a

“nação” passa a ocupar o centro de sua “auto-imagem”, de suas

crenças sociais e de sua escala de valores – trocam o futuro pelo

passado a fim de basear no próprio passado sua imagem. Aí está o

cerne do “nós imagem” e do “nós ideal” – formados pela tradição

e herança nacionais. Cada vez mais se basearam no seu orgulho e

pretensões como um valor especial, ora na ancestralidade, ora em

suas realizações.

Essa imagem ideal de nação transfere-se para o “lugar supremo”

em sua escala de valores públicos ganhando precedência sobre os

mais antigos ideais humanistas. Com a transferência da ênfase na

crença do valor imutável das tradições nacionais é que conceitos

144 Sobre ver: SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 145 Este conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Poderíamos até dizer: a consciência nacional. Ele resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades contemporâneas “mais primitivas”. Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão de mundo. Ver: ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: uma história dos costumes, op. cit., p. 27. 146 Idem, p.24.

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como “civilização” e “cultura” mudaram de ‘processos’ para

conceitos ‘imutáveis’. 147

O conceito de Kultur, para os alemães é o que realmente expressa o próprio ser,

alude a fatos intelectuais, artísticos, religiosos, mas os distingue de fatos políticos,

econômicos e sociais. Aí está a dificuldade em interpretar este conceito tão singular ao

povo alemão e sua antítese ao conceito de Zivillisation, que para as nações já

estabelecidas com fronteiras e identidades nacionais – é até certo ponto, uma forma de

minimização das diferenças nacionais, uma maneira de enfatizar o que lhes é comum. A

Kultur salienta justamente as particularidades nacionais, haja vista que a Alemanha foi

tardia em sua unificação e formação de um Estado-nacional.148

A diferença estava no que o termo “civilização” reteve, o que

não ocorre com o termo alemão Kultur, algumas associações

com valores morais e humanos de ordem geral. O termo

Kultur, em fins do século XIX e início do XX, foi cada vez

mais usado na acepção de “cultura nacional” - as conotações

humanistas passaram a segundo plano e finalmente

desapareceram (...) Isso significou a subordinação de valores

morais ou humanos, as conotações de desenvolvimento e

também quaisquer referências de devir aos nacionais, a Kultur

estava associada a “nós imagem” de seções fortemente

nacionalistas e conservadoras das classes médias alemãs. Isto

influenciará o código de conduta dos indivíduos porque, na

medida em que as classes médias passaram de subordinadas à

classe dirigente, que não pretendiam abandonar seu status,

perspectivas, ou seja, sua cultura, há uma colisão desses

códigos, pois haviam desenvolvido um código de conduta

diferente do aristocrático (baseado na honra, civilidade, boas

maneiras), que nada se relacionava com as normas humanistas

(...) Com a exposição de experiências interestatais essa classe

média (sem abandonar seu código burguês) defronta-se com a

147 ELIAS, Norbert. Os Alemães: A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX, op. cit., pp. 134-136. 148 Idem, ibidem.

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dificuldade de aplicação desses códigos. Dessa forma, se

aproximam dos modelos fornecidos pela “cultura” dos

anteriores grupos dominantes, mas a tradição aristocrática –

que tivera suas origens entre as classes guerreiras da Europa,

perpetuada por nobres, cujas crenças e valores eram os dos

militares – notadamente não se ajustava às tradições das classes

médias pré-industriais e do começo da era industrial.149

Segundo Norbert Elias, o conceito germânico de Kultur, foi alterado após 1919, já

que uma guerra havia sido travada contra os Alemães, a nação precisaria redefinir sua

“auto-imagem” adaptando-se aos princípios da “civilização”, justamente pela formação

tardia de um Estado nacional unificado que traria conseqüências singulares.

Não havia, como no caso francês, uma corte centralizadora, o que implicava a

transfiguração de uma nobreza guerreira em uma nobreza cortesã. A unificação do

Estado alemão se fez sob a liderança de uma nobreza que não se firmou na corte e

continuou vinculada ao seu ethos guerreiro original – justamente o locus da nobreza

prussiana, isto é, do estrato que efetua a unificação alemã, o exército. Haja vista que a

unificação alemã se fez a partir de um conflito externo – num confronto com a França –

a Alemanha unificada se apropria do ethos guerreiro, como ethos nacional.

Este ethos nacionalista subentende um sentido de solidariedade e obrigação em

relação à coletividade soberana organizada em um Estado, de forma que se poderia

vivenciá-lo como representante deles mesmos – “o nós”. E a imagem que um indivíduo

faz da nação também é um componente da imagem que tem de si próprio, a sua auto-

imagem. 150

Isso se deu com uma tentativa de junção dos ideais humanistas e universais das

elites de classe média, e as formas de comportamento baseadas na ordem, no exército,

no código de honra e civilidade da nobreza, o que não significou necessariamente a

apropriação pelas classes médias da herança aristocrática sem modificá-la

consideravelmente. Envolveu mudanças e permanências. Havia um “sentimento-de-nós-

149 ELIAS, Norbert. Os Alemães: A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX, op. cit., pp.128-130, respectivamente. 150 Idem, p.143.

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e-eles, de identificação e exclusão, foi uma das principais condições do

desenvolvimento de sentimentos, valores e crenças nacionalistas”. 151

O choque de valores e códigos de conduta incompatíveis gerou um desvio de

rumo, a digressão para o nacional. Fazia-se necessário combinar as crenças igualitárias e

humanistas (que excluíam a violência e subentendiam uma identificação com todos os

seres humanos), com a crença de que nas relações entre Estados deveria permanecer o

interesse próprio irrestrito. Assim sendo, o ethos guerreiro se difunde para além da

aristocracia atingindo outros estrados sociais e torna-se o modelo de um habitus

nacional.

Para Elias, “isso mostra que códigos de normas contraditórios podem coexistir em

graus variáveis, podem ser integradores ou excludentes quando considerados valores

supremos”. 152

Dessa maneira, entendem-se os obstáculos para a implementação de um regime

democrático, já que o ethos guerreiro é ajustado em habitus nacional. Nota-se que este

habitus nacional que dá o “valor superior do próprio país sobre a maior parte dos outros,

é para Elias, um dos denominadores comuns de todos os sistemas de crenças

nacionalistas” 153, e a maneira de resolver o inoportuno – no caso alemão sob a presença

“natural” do uso da violência – como o foi durante a implementação do regime

parlamentar no período da República de Weimar. Elias questiona a “formalidade” da

democracia, pois para que um regime se torne formalmente democrático, é necessária

uma mudança não só da estrutura social, mas também da estrutura da personalidade.

Por isso, talvez os sentimentos de coletividade pareciam se exaurir numa

sociedade artificializada, que artificializava também as características mais arraigadas

do povo germânico. Os cenários expressionistas do filme (de geometrias disformes)

escolhem tanto a floresta, o bosque ou o parque para serem representados de maneira

artificial, enquanto produto da perda da Kultur (da cultura da natureza), quanto à cidade,

ela mesma produto artificializado, fruto extremado e hostil da Zivilisation. A noite, a

lua, as nuvens, o sol, mostram os elementos naturais animizados, artificializados,

representando sempre um potencial de angústia quando aliados aos personagens, um

bom exemplo disso está em Cesare. Quando o personagem comete as maiores

151 ELIAS, Norbert. Os Alemães: A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX, op. cit.,p. 137. 152 ELIAS, Norbert. Os Alemães: A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX, op. cit., p. 146. 153 Idem, p. 156.

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atrocidades, ordenadas por Caligari, sempre as faz durante a noite, com uma lua

brilhante revelando seus contornos nos muros da cidade de Hostenwall.

Assim, no processo de desilusionamento realizado pelos

expressionistas, em conformidade com a sua nova posição perante

o mundo, a animalização de elementos da natureza desempenha

importante papel (...) Sua aparência sinistra sugere que a natureza

constitui um reino inóspito, ameaçador - as qualidades funestas

atribuídas à lua pelos expressionistas são ressaltadas ainda mais

diretamente nas imagens que visualizam o satélite da Terra como

personificação do thánatos grega, da morte, que se apresenta sob

as formas mais virulentas.154

As imagens da natureza, representadas na acepção expressionista, estão sempre

vinculadas ao seu caráter demoníaco. Luiz Nazário em seu texto De Caligari a Lili

Marlene, indica o quanto essas manifestações transformam-se em acontecimentos

dramáticos, ele afirma que o sol, por exemplo, só nasceria para matar um vampiro,155 ou

mesmo, no caso de O Gabinete do Dr. Caligari, matar o sonâmbulo Cesare, após a

tentativa de seqüestro da personagem Jane, ao alvorecer.

Outro ponto indicado por Nazário, estaria na imagem do arbusto. Ele

representaria, segundo o autor, uma claustrofobia existencial, e está cenografado em

todo o filme de Robert Wiene, nas vielas contorcidas da cidade de Hostenwall, no pátio

estilizado do asilo, nos muros em que Cesare se apóia ao buscar novas vítimas, ou

mesmo no prólogo do filme quando Francis, em um pequeno bosque, narra sua história.

Essas características são marcantes em O Gabinete do Dr. Caligari, os

intertítulos do filme que mostram “a noite”, “o alvorecer”, ou “enquanto dorme”, como

mensageiros de acontecimentos catastróficos, indicam os momentos de clímax da

narrativa, que algo estranho, sombrio, moralmente condenável estaria para acontecer

nessas circunstâncias.

Incontáveis são as imagens “desencantadas” da natureza,

produzidas pelo Expressionismo, abrangendo todos os seus

154 FLEISCHER, Marion. O Expressionismo e a dissolução de valores tradicionais. IN: GINSBURG, J. O Expressionismo, p. 76. 155 NAZÁRIO, Luiz. De Caligari a Lili Marlene, p.18.

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elementos: a neblina, a noite, corpos celestes, a aurora, o céu, a

vegetação, as nuvens, os rios, as florestas, entre outros. Essas

imagens antiidílicas revelam, na perspectiva expressionista o

caráter demoníaco da natureza, uma atmosfera soturna que,

condensada em formas monstruosas, projeta as solidões, as

angústias, os pavores da geração expressionista.156

A natureza anímica revela a estranheza, a angústia de um mundo pelo qual os

expressionistas temiam, um mundo que parecia estar fragmentado política e

culturalmente e que de alguma maneira buscava maneiras de representar uma

coletividade.

Outro ponto interessante parece estar na oposição à natureza representada pelas

cidades que, ao contrário do que se poderia imaginar, carregam características muito

semelhantes. As manifestações da modernidade seduziram a geração expressionista por

sua temeridade. A solidão da cidade revela a “falta de alma” do homem que se submetia

cada vez mais a uma civilização anônima, sem lastros. As grandes metrópoles, as

profundas modificações políticas e econômicas da Alemanha, simbolizavam uma

experiência falida da cidade, novamente uma experiência angustiante e desumana, que

provocaria apenas a esterilidade espiritual.

O temor e a insegurança inspirados pelas grandes metrópoles

traduzem-se em visões fantasmagóricas e soturnas, casas e ruas

condensam-se num caos de dimensões dantescas, no qual o ser

humano é apresentado como uma criatura oprimida e ameaçada

pelo mundo infernal que criou e não mais consegue dominar. 157

Em O Gabinete do Dr. Caligari, a cidade parece representar, à maneira

expressionista, uma convicção vinculada ao destino do homem moderno. As imagens do

filme mostram as ruas tortuosas, obscuras e sem vida, onde figuras demoníacas,

grotescas e moralmente duvidosas reinam, praticam suas atrocidades, sufocando e

oprimindo por meio da violência e da destruição.

156 FLEISCHER, Marion. O Expressionismo e a dissolução de valores tradicionais. IN: GINSBURG, J. O Expressionismo, op. cit., p. 76. 157 Idem, p. 77.

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A realidade moderna, urbanizada e industrializada, para os artistas

expressionistas, aniquila e aprisiona o homem num mundo dito civilizado, pois as

grandes cidades simbolizavam a “coisificação” do homem, sua falta de comunidade, de

lastros tão importantes à cultura alemã. E o expressionismo criava as metáforas em

protesto a essa maneira de viver, por isso as representações do mundo são aflitivas,

inanimadas, como se os seres humanos vegetassem, fossem repelidos de suas próprias

experiências.

Nesse sentido, o filme de Robert Wiene e dos roteiristas Janowitz e Mayer,

retrata a cidade de maneira sintomática. A narrativa se passa na cidade de Hostenwall, a

quermesse realizada pelos citadinos denota uma condição de caos, de desordem, de

desagregação de uma Alemanha nas mesmas condições, suscitando uma fuga para a

natureza, como foi o caso de Cesare ao seqüestrar Jane, ou mesmo de Caligari quando

foge da polícia e de Francis ao ser desmascarado com um boneco ao invés de seu

sonâmbulo. Os personagens fogem da cidade e transpassam pelos arbustos, por uma

suposta floresta, revelando que a natureza, nos moldes já descritos, tampouco oferece o

refúgio desejado pelos personagens. A fuga, portanto, tornar-se-ia inútil no mundo tal

como estariam vivenciando.

(...) a cidade apresenta-se, na visão expressionista, como um

mundo maldito, desumano e impessoal. Nele, a vida humana

reduz-se a uma existência indefesa, ameaçada de sufocar em

monotonia, incomunicabilidade e venenos mortíferos de toda a

sorte. Em contrapartida, a matéria inorgânica - janelas, ruas, o ar, a

cidade, enfim - adquire inescrutável vida própria, subjuga o ser

humano e acorrenta-o aos seus domínios, àquela atmosfera que,

nas palavras de Georg Heym, é “tão sufocante que mal se podem

suportar as exaltações de sua podridão”. 158

Essas representações, maneiras de interpretar o mundo, só foram possíveis de

serem pensadas e idealizadas em função de sua especificidade histórica. As

representações do mundo nascem do olhar que se tem dele, e os expressionistas nada

mais fizeram do que expor suas angústias e indignações nessa conturbada experiência

advinda do front e de uma nova ordem social instaurada com a República de Weimar.

158 FLEISCHER, Marion. O Expressionismo e a dissolução de valores tradicionais. IN: GINSBURG, J. O Expressionismo, op. cit., p. 78.

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Por isso suas convicções estariam carregadas de críticas relativas à decomposição de

um mundo sem um elo unificador, havia uma ausência que não era suprida pela idéia de

civilização que se impunha precipitadamente.

O projeto assumido pela Alemanha de Weimar de florescimento cultural e

político não se realizava no filme. Neste sentido, a própria explosão das artes no

período revela o potencial de destruição do mesmo. A unificação política de Weimar

representava a falsa imagem de sua unidade cultural, da perda de lastro da Kultur numa

Zivilization que provocaria a super-racionalização da própria Kultur que desembocaria

numa história bastante conhecida no presente, mas ainda desconhecida naquele

momento histórico: a imagem muda dos conflitos era a única forma de avisar que algo

viria, mas que não era nem inevitável e tampouco podia ser traduzida em palavras.

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3.3. Os médicos taumaturgos

A narrativa moldura, ou simplesmente o prólogo e epílogo, como já foi

apontado, reconfigura os personagens do filme. Francis, o protagonista de sua própria

narrativa, personagem que desvenda o mistério em torno de Caligari e seu sonâmbulo,

passa a ser mais um enfermo do ambiente asilar da denominada narrativa moldura,

ambiente no qual se encontram também Jane, Cesare e o próprio Dr. Caligari, agora

com outras características, mais realistas, presumindo tratar-se de um outro

personagem.

A relação entre médico e doente nas duas “histórias” do filme, tanto na moldura

como nos resquícios do roteiro original, implica, segundo as interpretações de Foucault

a respeito da estrutura do mundo asilar e “da apoteose e novo estatuto do personagem

do médico”, uma leitura sobre a experiência da loucura e do poder dentro do filme de

Robert Wiene e também de Hans Janowitz e Carl Mayer.

As tipologias de médicos e doentes se configuram de acordo com a composição

de cada história indicada “pelos filmes” – o da narrativa moldura e o do roteiro

original como foi explicitado anteriormente. Ambas jogam com a sanidade e desatino

dos personagens. Ora o doutor é a figura que detém o conhecimento sobre a doença e

sua possível cura, ora este se torna o próprio doente ou mesmo um insano que inventa

uma doença e suas verdades. Assim acontece também com Francis, que na narrativa

moldura é o doente encarcerado, diferentemente do roteiro original, onde se torna o

libertador da cidade de Holstenwall dos males provocados por Caligari.

O Dr. Caligari, quando médico de Cesare, parece estar mais próximo do homem

da Kultur, retomando ritos e tradições opostas ao mundo da Zivilisation. Um “médico”

com intuitos aparentemente racionais, mas que se revela o mentor da destruição desse

homem da civilização. Caligari pode representar, nessa fase do filme, o que Foucault

chama de “sábio”, em suas interpretações sobre o nascimento do Asilo.

Desde o fim do século XVIII, o certificado médico tinha-se

tornado mais ou menos obrigatório para o internamento dos loucos.

Mas no interior do próprio asilo, o médico assume um lugar

predominante, na medida em que o transforma num espaço

médico. No entanto, e isto é essencial, a intervenção do médico

não se faz em virtude de um saber ou um poder médico que ele

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deteria, que se justificaria por um corpo de conhecimentos

objetivos. Não é como cientista que o homo medicus tem

autoridade no asilo, mas como sábio. Se a profissão médica é

requisitada, é como garantia jurídica e moral, e não sob o título de

ciência.159

O Dr. Caligari seria a autoridade absoluta para Cesare, na relação médico-

paciente, constituindo-se como “Pai e Juiz, Família e Lei, não passando sua prática

médica, durante muito tempo de um comentário sobre velhos ritos da Ordem, da

Autoridade e do Castigo”. 160 Esses poderes atribuídos ao médico seriam, ainda segundo

Foucault, de ordem moral e social e estariam concernentes à alienação do doente, sua

minoridade; portanto, o elo entre o médico e Cesare se faz muito mais pela relação de

poder que ele exerce, do que pelo conhecimento da suposta doença na narrativa

moldura.

Na cena em que Caligari apresenta seu show na quermesse de Holstenwall, fica

clara sua intenção para com seu sonâmbulo que prefigura apenas um “boneco” nessa

relação Caligari-Cesare, até o momento no qual Cesare passa a pensar por si mesmo no

final da narrativa. Neste trecho do filme, ainda não se sabe que Caligari é o suposto

diretor do asilo, menos ainda suas intenções na cidade. As cenas que apresentam os elos

entre Cesare e Caligari, fazem do sonâmbulo um objeto pelo qual Caligari realiza seus

objetivos. Como por exemplo:

Na apresentação do show, já dentro da tenda, Caligari abre o esquife: Acorde

Cesare. Eu, Caligari, seu mestre, assim lhe ordeno! Cesare abre os olhos e Caligari

pede às pessoas que questionem, que façam perguntas ao sonâmbulo, pois,

supostamente, prevê o futuro (futuro previsto e criado por Caligari): Senhoras e

senhores, Cesare conhece todos os segredos! Peçam-lhe para ver o futuro! Allan faz

sua pergunta ao sonâmbulo: Por quanto tempo mais eu vou viver? O sonâmbulo

responde: Seu tempo é curto. Você vai morrer amanhã.

O filme, de alguma maneira, traz a perda da unidade da Kultur, representado

pelo médico que se delineia na figura ambígua de Caligari, que é um velho decadente e

imoral em suas atitudes, no sentido de coletividade diante do mundo da Zivilisation

159 FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. SP: Perspectiva, 1978, p. 497. 160 FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica , op. cit., p. 498.

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opressora, burguesa, hipnotizada cujos valores seriam secundários quando comparados

à Kultur.

A relação médico-paciente ou, no caso Caligari-Cesare, constitui um par,

fazendo com que se crie uma coesão entre estes personagens, tornando-os cúmplices.

Cesare só sobrevive segundo as determinações de seu médico, que por sua vez, é

dotado de um poder de “desalienação” de seu paciente, restabelecendo sua ordem

interna. Ordem que estava de acordo com uma moral criada entre médico e paciente.

Uma moral à parte, constitutiva especificamente nestes personagens.

Havendo uma ordem distinta na relação Caligari-Cesare, obviamente em

desconformidade à ordem estabelecida – criadora de um mundo imaginário, que se

aproxima de uma realidade satisfatória para o médico – esta é subvertida pelos

personagens. Um exemplo relevante na narrativa é a cena na qual Caligari tem um

desentendimento com o escrivão da prefeitura da cidade de Holstenwall. Caligari

precisa de uma autorização da prefeitura para apresentar seu show na quermesse da

cidade. Mas ao ser subjugado pelo funcionário da prefeitura, Caligari condena-o à

morte161.

Na cena, o escrivão pede a Caligari que espere. Incomodado, o médico senta-se

ao lado do homem que continua suas atividades quotidianas, ignorando Caligari. Algum

tempo depois pergunta qual o objetivo do pedido, Caligari nitidamente irritadiço diz

tratar-se da licença necessária para a apresentação de seu show na quermesse da cidade,

o show de seu sonâmbulo:

- Warten!

- Warten!

- Ich möchte um die Erfaubinis bitten, mein Schavobjetkt auf dem

Jahmarkt austellen zu dürfen

- Was ist das für ein Schavobjekt?

- Ein sonambuler.162

161 Mord! Ein srich in die seite mit einen sonderbaren spitze Instrument hat den Tod des Stadtsekretär herbeigeführt. [Assassinato! Um golpe lateral com um estranho instrumento cortante provocou a morte do secretário municipal]. Texto extraído dos intertítulos do filme. 162 Espere!/ Espere!/ Eu quero pedir uma licença para exibir minha atração na quermesse/ De que tipo de atração se trata?/ Um sonâmbulo.

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Cena de Caligari com o escrivão da prefeitura de Holstenwall.

Em seu universo fantasioso seria improvável que fosse desautorizado por

“qualquer um”, menos ainda por um personagem que representa um mundo em

desacordo com o imaginado, um homem da civilização, burocrata menor de um Estado

em formação com valores menores, secundários.

Na República de Weimar o conflito entre tradição romântica (Kultur) e a

modernidade democrática e humanista (Zivilisation) parece ter sido uma nova

configuração de um paradoxo histórico reincidente na cultura alemã.

De um lado, a permanência de uma nobreza ou aristocracia rural Jünker baseada

na tradição de laços de consangüinidade, de susserania e vassalagem, no militarismo,

que remonta aos códigos medievais, e no apego a terra, isto é, da Alemanha Imperial,

bem demonstrado no livro de Arno Mayer sobre a permanência do Antigo Regime,

mesmo na era “moderna”. 2 De outro, a ascensão de uma burguesia industrial baseada

2 MAYER, Arno. A força da tradição: a persistência do Antigo regime (1848-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Nas páginas 102-103 há um exemplo claro que remonta ao reinado de Guilherme II que “concedeu 836 títulos, à média anual de 30 títulos, entre 1890 e 1918. Ele estava disposto a enobrecer proprietários rurais, generais e altos funcionários públicos, quase todos de religião protestante e em sua maioria oriundos da Prússia. Dos novos títulos, 65% foram para senhores rurais e oficiais do exército que, naqueles anos sofreram um pequeno declínio em sua posição geral em favor de banqueiros, empresários e profissionais liberais, dos quais apenas poucos eram judeus não-batizados,

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no humanismo democrático da racionalização do Estado, do uso da técnica para o

fomento da industrialização, do desenvolvimento econômico e intelectual, isto é, da

República Alemã. Porém, a própria burguesia alemã irá se reapropriar dos ideais de

unidade da coletividade da Alemanha Imperial para compor o ideário cultural da nova

República democrática alemã enquanto uma nação moderna; advém daí um paradoxo de

época, mas com um lastro quase imemorial de um mito.

O conceito de Kultur, que segundo Norbert Elias, sofreu essa reapropriação pela

burguesia emergente da Alemanha no século XIX para distinguir o caráter nacional da

sua gente em oposição ao conceito de Zivilisation da burguesia francesa e inglesa,

pertence ao mesmo movimento da formação dos Estados nacionais do final do século

XIX na Europa, que Eric Hobsbawn denominou de A invenção das tradições:

A invenção das tradições do Império Alemão associa-se,

portanto, antes de mais nada, à era de Guilherme II. Seus

objetivos eram primordialmente duplos: estabelecer a

continuidade entre o Primeiro e o Segundo Império Alemão,

ou, de modo mais geral, estabelecer o novo Império como

realização das aspirações nacionais seculares do povo alemão;

e enfatizar as experiências históricas específicas que ligavam a

Prússia ao restante da Alemanha na construção do novo

Império, em 1871. Ambas as metas, por sua vez, exigiam a

convergência da história prussiana e alemã, coisa que se

dedicaram os historiadores imperiais patriotas (...). A principal

dificuldade na maneira de atingir tais objetivos era, em

primeiro lugar, que a história do Santo Império Romano da

nação alemã era difícil de ser de ser adaptada a qualquer molde

nacionalista do século XIX, e, em segundo, que sua história

não afirmava que o desenlace de 1871 fosse inevitável, nem

mesmo provável. Podia ser relacionado a um nacionalismo

sendo os mais notáveis dois membros do clã Goldschmidt-Rothschild. Certamente, em 1914, os nobres rurais, soldados e burocratas tradicionais dominavam maciçamente o pariato da Alemanha. Ficavam muito à frente, não só em número, mas também em nível, e os títulos superiores, como sempre, eram reservados para os descendentes de respeitáveis famílias da nobreza agrária e dos serviços públicos. De fato, das 221 concessões de baronato e outros títulos superiores, 205 se destinavam a filhos de famílias nobres e apenas 16 a filhos de pais burgueses. Enquanto os homens de tradição rural monopolizavam o ápice da pirâmide aristocrática, os de extração burguesa e de classe média alta tendiam a se concentrar na ampla base dessa pirâmide. Sem dúvida, a peneira do enobrecimento, na Alemanha, era ainda mais fina. Praticamente todos os 350 neófitos de origens simples, que constituíam 30 % do nível inferior da nobreza, tinham uma mãe ou esposa aristocrática.”

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moderno apenas por meio de dois artifícios: pelo conceito de

inimigo secular nacional contra a qual o povo alemão havia

definido sua identidade, lutando para obter a unidade como

Estado; e pelo conceito de conquista ou supremacia cultural,

política e militar, pelo qual a nação alemã, espalhada por

grandes partes de outros países, principalmente na Europa

central e oriental, podia reivindicar o direito de unir-se num

Estado Maior alemão. O segundo conceito não era exatamente

salientado pelo império de Bismarck, especificamente ‘o

pequeno império’, embora a própria Prússia, como subentendia

seu nome, houvesse sido historicamente formada em grande

parte pela anexação de regiões bálticas e eslavônicas fora dos

limites do Santo Império Romano.4

Norbert Elias enfatiza a importância do conceito de Kultur para compreender a

cultura alemã, mas deixa de refletir sobre as implicações ideológicas do mesmo

enquanto uma “tradição inventada”. Eric Hobsbawn chama a atenção para este amplo

movimento de invenções de tradições do final do século XIX, mas deixa em aberto, pois

não chega a discutir a questão do ponto de vista cultural, de que forma o conceito de

Kultur, embora seja uma “tradição inventada”, possa ter reais significados para os

movimentos políticos e estéticos que se desenvolveram na Alemanha a partir de então e

tampouco perscruta a historicidade do conceito, que, diferente do que afirma Elias, é

bem anterior ao século XVIII.

O substrato cultural em torno da historicidade da Alemanha, de algum modo,

reverberou na arte e no cinema, pois foram construídos sob um solo cultural específico,

que não convém esquecer, mais ainda num texto de natureza historiográfica, como é o

caso.

Apesar das especificidades históricas relativas à Alemanha, o país encontrava-se

inserido na tradição ocidental moderna e fez parte da formação das novas subjetividades

emergentes, tais como os novos contornos da moralidade.

Em Os Anormais, Foucault argumenta sobre o indivíduo que terá grande

relevância até o fim do século XIX e início do XX – o chamado Monstro Moral. Esse

indivíduo de natureza turva, perturbada e contraditória, representado pelas figuras de

4 HOBSBAWN, Eric. A produção em massa de tradições: Europa, 1870 a 1914. IN: HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence. (orgs.) A invenção das tradições. op. cit., p. 282.

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Caligari-Cesare é o indivíduo dotado de uma outra moralidade, uma moralidade

egoísta, que prescinde às leis e ao interesse coletivo. Esse indivíduo nasce quando o

crime passa a ser enxergado como uma anomalia, quando passa a ter um caráter

patológico.

Quando a monstruosidade se relaciona à criminalidade, aparece uma outra

natureza do indivíduo, ou seja, há uma divisão em indivíduos normais e anormais. O

monstro, não será apenas aquele da transgressão dos limites naturais, religiosos e civis,

mas ganhará uma natureza distinta: “O crime tem uma natureza e o criminoso é um ser

natural caracterizado, no próprio nível da sua natureza, por sua criminalidade”, 163 ou

seja, o crime passa a ser visto como uma patologia:

Será, por conseguinte, que não vamos, com o criminoso, encontrar

um personagem que será, ao mesmo tempo, a volta da natureza ao

interior do corpo social que renunciou ao estado natural pelo pacto

e pela obediência às leis? Será que esse indivíduo natural não vai

ser bastante paradoxal, pois terá por propriedade ignorar o

desenvolvimento natural do interesse? Ele ignora o curso

necessário desse interesse, ignora que o ponto supremo do seu

interesse é aceitar o jogo dos interesses coletivos. Será que não

vamos ter um indivíduo natural que trará consigo o velho homem

da floresta, portador de todo arcaísmo fundamental de antes da

sociedade e que será, ao mesmo tempo, um indivíduo contrário à

natureza? Será que ele não é um monstro? 164

Foucault aponta para o nascimento do monstro moral, ou a patologização do

crime, a partir de uma nova “economia do poder de punir” 165, que fará com que esse

163 FOUCAULT, Michel. Os Anormais. Curso no Collège de France, 1975-1976, São Paulo, Martins Fontes, 2001, p.112. 164 Idem, p. 113. 165 FOUCALT, Michel. Os Anormais. Nas páginas 102-103 pode-se ler: No direito clássico o crime era o dano voluntário feito a alguém, mas não apenas isso. Não era apenas tampouco uma lesão e um dano aos interesses da sociedade inteira. O crime era crime na medida em que; ele atingia os direitos, a vontade do soberano, presentes na lei; por conseguinte, ele atacava a força, o corpo, o corpo físico, do soberano. Em todo o crime, portanto, choque de forças, revolta, insurreição contra o soberano. No menor do crime, um pequeno fragmento do regicídio. Com isso, e em função dessa lei econômica fundamental do direito de punir, a punição por sua vez, não era simplesmente nem reparação de danos, claro, nem reivindicação dos direitos ou dos interesses fundamentais da sociedade. A punição era algo mais: era vingança do soberano, era sua revanche, era a volta da sua força. A punição era sempre vindita, e vindita pessoal do soberano. O soberano enfrentava de novo o criminoso; mas, desta vez, na

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indivíduo siga seus próprios interesses, rompendo com o pacto primitivo, assim

retornando ao estado natural, ou seja, “é o homem da floresta que reaparece com o

criminoso, homem da floresta paradoxal, pois desconhece o cálculo de interesse que o

levou, a ele e seus semelhantes, a subscrever o pacto”. 166

Essa retomada ao homem primitivo, que não subscreve os pactos da sociedade,

pode estar representada pelo personagem do monstro moral na relação Caligari-Cesare.

Ele revela uma ausência - a perda de uma Kultur baseada numa noção quase mítica de

laços culturais (o que não significa dizer “falsa”) de pertença à natureza ligada ao culto

da floresta, da terra e da mata que remonta de um texto do historiador romano Cornélio

Tácito escrito por volta 98 d.C. intitulado Germânia; ou, sobre a origem e situação dos

germanos – um documento que inclusive será reapropriado pelos nazistas para os fins

que já conhecemos 167; e a entrada da Alemanha para o concerto dos Estados-Nações

modernos europeus do século XIX baseado na noção de Zivilisation, ligado ao aparato

técnico, burocrático, racional, burguês e liberal do Estado.

Apesar de Simon Schama, não tratar do conceito de Kultur, fornece pistas para

descobrir que o mesmo, embora tenha sido nomeado no século XVIII, faz parte de uma

história mais longa ligada ao documento já referido do historiador romano Cornélio

Tácito. É óbvio que o olhar de Tácito era de um romano em relação ao que ele

considerava os “bárbaros”, isto é, os germanos. Schama comenta que:

Tácito reconhece, com pesar, que, durante 210 anos, as legiões

romanas vinham tentando subjugar os germanos, e ‘entre o início

e o fim desse longo período [...] nem os samnitas, nem os

ostentação ritual da sua força, no cadafalso, era o reverso cerimonioso do crime ocorrido. Na punição do criminoso, assistia-se à reconstituição ritual e regulamentada da integridade do poder. 166 FOUCALT, Michel. Os Anormais, op. cit., p.115. 167 Sobre, ver o texto de SCHAMA, Simon. “Der Holzweg”: a trilha na floresta. IN: Paisagem e memória, no qual pode ser ler: “Segundo estudiosos que assessoraram a divisão especial da SS dedicada à pesquisa de clássicos antigos, a Ahnenerbe (Herança dos Ancestrais), quem forneceu tal certidão foi o historiador romano Cornélio Tácito. Sua Germânia; ou, sobre a origem e situação dos germanos foi escrita por volta de 98 d.C., quando os exércitos de Trajano ainda combatiam as tribos teutônicas, e constituía um ambíguo tributo da civilização à barbárie. (...) Na verdade, Tácito se mostra tão preocupado com o que era ser realmente romano quanto o que era ser realmente germano. Assim, seu texto, inevitavelmente, tornou-se propriedade cobiçada e disputada em função do autor e do assunto – Roma e Germânia. O manuscrito atravessou os Alpes várias vezes na bagagem de qualquer uma das duas culturas que se arvorava em sua principal guardiã. (...) Cabia aos intelectuais do nacional-socialismo demonstrar a base histórica e biológica da supremacia ariana, e Himmler acreditava que, para tanto, poderia encontrar elementos nas invencíveis tribos germânicas do passado – os semnônios (com a sua predileção por sacrifícios humanos) e os marciais cheruscos.”, pp. 86, 87; 89, respectivamente.

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cartagineses, nem a Espanha nem a Gália [...] nos ensinaram

mais’. Os germanos tinham um motivo para ser adversários tão

encarniçados. Ao contrário dos contemporâneos de Tácito na

Roma imperial, eles conseguiam preservar sua condição

essencial de filhos da natureza. Evidentemente, essa natureza, in

universum tamen aut silvis horrida aut paludibus foeda, ‘em

geral, [restrita] a horrendas florestas e pântanos infectos’, não

condizia em nada com o gosto dos romanos. Era preciso admitir,

contudo, que essa paisagem assustadora e sombria, onde até

mesmo o gado de pequeno porte era menor que a média, forjara

uma raça de guerreiros extremamente fortes, um povo que não

trata de ‘negócios, em particular ou em público, sem armas na

mão’. ‘Se acaso a comunidade onde nasceram acabou por

entorpecer-se com longos anos de paz e quietude, muitos de seus

jovens bem-nascidos voluntariamente procuram aquelas tribos

que no momento estão engajadas em alguma guerra; pois a raça

não aprecia repouso’. (...) Vestidos com peles de animais

selvagens, ou segundo Pompônio Mela, geógrafo do século I, em

trajes feitos de cortiça, os germanos de Tácito virtualmente

definam o que, em latim, se entendia por ‘incivilizado’. Se algum

germano romanizado, no entanto, chegou a ler sua primeira

etnografia, talvez tenha se sentido lisonjeado com sua

caracterização como habitante de pântanos e florestas. Pois,

embora os descreva como seres primitivos e ferozes, Tácito

também vê os germanos uma nobreza natural, resultante de sua

instintiva indiferença aos vícios que corromperam Roma: luxúria,

dissimulação, posses, sensualidade, escravidão. Ao contrário dos

romanos, eles não tinham nem vinho nem letras, eram um ‘povo

sem malícia ou astúcia’. 168

Para Simon Schama não interessa definir se a visão de um romano sobre um

“bárbaro” corresponderia a uma realidade mais profunda que definiria a “alma alemã”,

mas mostrar como historicamente o texto da Germânia foi utilizado no decorrer do

tempo, passando pela Idade Média, pelo Renascimento (em que a leitura pró-germanos

168 SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória, op. cit., pp. 86-87.

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do documento se liberta, pela primeira vez, da interpretação italiana), pelo século XVI

(com o surgimento da história e geografia germânica), pelos séculos XVII e XVIII (com

abundante iconografia florestal que, de alguma forma, representava a cultura alemã em

quadros ricamente ilustrados) e, principalmente, pelo século XIX quando, da tentativa

de formar um Estado-Nação moderno na Alemanha, crescem as produções intelectuais

sobre o tema.

Nesta longa duração, o documento de Tácito aparece direta ou indiretamente

sobre as produções artísticas e intelectuais, tendo como tema comum a floresta, a

madeira, a mata, o bosque, a terra, ou melhor, a natureza como unificadora da

coletividade, definidora de um traço característico da cultura alemã reapropriada de

diversas formas por seus intérpretes no tempo até torná-la um mito fundador. Não por

acaso, esse texto de Schama está na parte de seu livro Paisagem e memória, dedicado às

matas, diferente daqueles dedicados às águas e às rochas. Não que o autor acredite num

traço distintivo e quase abstrato de uma cultura sobre a outra, mas acredita que natureza

e cultura dialogam incessantemente para se compreender a formação histórica de mitos

patrióticos que foram perigosamente utilizados na cultura ocidental. Nem por isso deixa

de considerar a importância dos mitos como parte integrante de uma cultura, separando

cuidadosamente o joio do trigo. Portanto, não deixa de ser característico para a cultura

alemã que o seu próprio conceito de cultura esteja ligado à natureza por meio das matas,

florestas e bosques:

(...) não levar o mito a sério na vida de uma cultura

evidentemente ‘desencantada’ como a nossa equivale, na

realidade, a empobrecer nosso entendimento do mundo que

partilhamos. Equivale, também, a confiar o assunto àqueles que

não têm distanciamento crítico algum, que apreendem o mito não

como um fenômeno histórico e, sim, como um mistério

invariavelmente perene. Como disse o grande talmudista Saul

Lieberman ao apresentar as conferências de Gershom Scholem

sobre a Cabala, intituladas Major trends in Jewish mystcism

[Principais tendências do misticismo judaico]: ‘O absurdo

(depois que tudo foi dito e feito) continua sendo absurdo. Mas o

estudo do absurdo é uma ciência. 169

169 SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória, op. cit., p. 143.

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Na Idade Média, a representação do homem selvagem, primitivo, constituía a

antítese ao mundo cristão civilizado. Com o ressurgimento da Germânia de Tácito, os

selvagens tornam-se modelos de vida virtuosa e natural, diferentemente do que vinha do

mundo volúvel das cidades. Essa relação entre Germânia antiga, primitivismo utópico e

as matas foram temas muito recorrentes para manter essa unidade cultural alemã

baseada na idéia de Kultur. Não surpreende que essas inspirações tenham influenciado

profundamente as gerações do romantismo alemão170. O mais expressivo exemplo disso

está em Herder, guardião de uma memória vinculada ao solo, que defendia a verdadeira

história germânica ligada ao folclore, contos de fada e poesia popular, e que repudiava o

cosmopolitismo dos filósofos do Iluminismo. 171

A retomada da floresta, do obscuro, do camponês e do popular faz parte do

grande movimento cultural produzido pelas subjetividades românticas, que deitaram

raízes na cultural ocidental, de modo que seus ecos se fizeram sentir para muito além do

romantismo propriamente172. Heranças já modificadas dessas subjetividades românticas

e oitocentistas podem ser encontradas no filme.

Caligari é, na verdade, uma retomada dessa tradição do culto à floresta, às

matas, que Shama aponta. Ele busca resgatar o que estava perdido ou ausente, mudando

a imagem do “selvagem”, como Tácito, de um bruto a um nobre (mesmo sendo suas

intenções duvidosas e despóticas).

O monstro moral rompe o pacto, retorna a um estado primitivo, é um criminoso

que a partir de seu interesse pessoal, em oposição aos outros, realiza suas necessidades

170 O sociólogo Ferdinand Tönnies, já trazia uma definição para essa oposição. A chamada Gemeinschaft (uma comunidade organicamente unida) e a Gesellschaft (um conjunto de indivíduos ligados apenas por interesses materiais). Ver: SCHAMA, Simon. Op. Cit., pp.122-123. Jefrey Herf também aponta para o mesmo caminho: (...) defendiam a Gemeinschaft como alguma coisa intrinsecamente boa e unida em contraste a Gesellschaft dividida e fragmentada. Mais ainda, a idéia de Gemeinschaft e mais tarde Volksgemeinschaft tinham pronunciadas implicações autoritárias. Tanto proclamavam a existência da harmonia social sem se interessarem pelos conflitos sociais reais, quanto estabeleciam uma base moral e ética para o sacrifício individual e para o ato de abandono às forças políticas existentes. Por isso, a nação revolucionária conservadora da Volksgemeinschaft representava um ataque tanto à idéia liberal dos direitos individuais quanto às alegações socialistas de que as divisões e as desigualdades de classe se prestavam no caminho da genuína comunidade. HERF, Jefrey. O Modernismo reacionário: tecnologia, cultura e política em Weimar e no terceiro Reich, op. cit., p. 50. 171 SCHAMA, Simon., op. cit., pp.111-113. Ver também SALIBA, Elias Thomé. As utopias românticas. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, pp. 71-72. (...) Está aí, portanto, um dos pólos de projeção das utopias românticas que, no fundo, constituía mais uma idolatria do tempo e da história: a ‘nação’: Nada a estranhar que, numa época de profunda desagregação coletiva, ela pareça constituir-se no único caminho de regeneração e redenção social. Contra o individualismo desagregador, a ‘nação’ seria a realização completa e última do ideal de associação popular, ela seria a única capaz de reconciliar a auto-expressão dos homens com uma sociedade mais coesa e mais justa. pp. 71-72. 172 Ver: SALIBA, Elias Thomé. As Utopias Românticas.

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despóticas, ou seja, está intimamente ligado ao abuso do poder, portanto, Caligari,

mesmo sustentado pela sua condição de diretor de um asilo, um homem que por meio

de seu saber justificaria o “controle” para com o paciente, deseja um outro tipo de

controle.

(...) Há dos dois lados do pacto assim quebrado, uma espécie de

simetria, de parentesco entre o criminoso e o déspota, que de certa

forma se dão a mão, como dois indivíduos que, rejeitando,

desprezando ou rompendo o pacto fundamental, fazem de seu

interesse a lei arbitrária que querem impor aos outros. 173

Não há o interesse, por parte de Caligari, pela “cura” de seu paciente através do

conhecimento dela, há sim o interesse de obter o seu domínio para fins “obscuros”.

Quando o paciente com sonambulismo chega ao asilo, o único intuito do médico é saber

se um paciente, com as características de Cesare, seria capaz de fazer coisas as quais

condenaria se acordado, e o quanto seria ele capaz de subjugar Cesare.

Cena das experiências do médico

173 SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória, op. cit., p.116.

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De tarde…

O desejo, o impulso mais inexorável de minha vida está se

realizando. Agora eu vou resolver o mistério psiquiátrico daquele

Caligari. Agora eu vou comprovar se é verdade que um

sonâmbulo, caso esteja acordado, pode ser obrigado a fazer coisas

que ele jamais faria, coisas que ele abominaria, se é verdade que o

sonâmbulo pode chegar a ser levado a cometer assassinatos.174

Quando Caligari é desmascarado no final do roteiro original, Francis, médicos,

enfermeiros, acham em seu gabinete no asilo, um livro com os dizeres: Sonambulismo –

uma coletânea da Universidade de Upsala. O livro, que traz a história do místico que

aprisiona sob seus desígnios o sonâmbulo, justifica até determinado momento a

cientificidade do médico, quando este é o pesquisador do mito acerca de Caligari e da

doença de Cesare e não o próprio Caligari. Mas quando o sonâmbulo chega ao asilo, a

história torna-se realidade, transformando o médico em místico.

Em 1093, um monge chamado Caligari visitou uma pequena

cidade do noroeste da Itália, viajando com um sonâmbulo chamado

Cesare, a quem levava num caixote de madeira rústica semelhante

a um esquife.

Ele ordenou ao sonâmbulo, a quem mantinha sob seu estrito poder,

que executasse seus planos. Durante meses, ele causou pelas

cidades onde passou, um grande pânico devido a repetidas

ocorrências, de assassinatos cometidos sempre sob as mesmas

circunstâncias. 175

Na cena, o médico entra em delírio e os dizeres Du musst Caligari werden!,176

são exibidos na tela, as letras Caligari, são desenhadas de maneira disforme, como um

desejo, uma necessidade criada pelo médico, sugerindo que ali ele sofre a transformação

- o médico se torna Caligari. O personagem de Caligari, na verdade, não existe no

filme, ele é uma invenção, uma doença do próprio médico.

O médico traz uma necessidade ambígua em si, pois seus interesses estão

imbuídos de uma vontade de poder pelo conhecimento, um conhecimento baseado

174 Texto extraído dos intertítulos do filme. 175 Texto extraído dos intertítulos do filme. 176 Você tem que se tornar Caligari! Intertítulo extraído do filme.

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numa cientificidade desvirtuada para novos fins, novamente o desejo de realização de

uma Kultur paradoxalmente pelas vias da civilização, da racionalidade científica. Pois o

médico, conhecendo cientificamente a doença de seu paciente, controlando-o,

possibilita a realização de suas crenças e experimentos. Ao se tornar Caligari, o médico,

dito um homem da ciência dá vazão ao místico. O monstro moral do médico nasce na

sua relação com Cesare, e com a narrativa do místico Caligari que tenta reconstituir.

Esse monstro despótico só existe na relação entre esses personagens, não seria “apenas”

um déspota, como aponta Kracauer, figura que tenta resignificar a autoridade na

Alemanha de Weimar, que prenuncia o nascimento do nazi-fascismo, é um déspota que

pretende restabelecer uma unidade que se extinguia no mundo da civilização.

Caligari produzirá a verdade da doença de Cesare, o que justificaria o manter

seu paciente no ambiente asilar, mas para seu controle, para que possa reproduzir nas

cidades onde passa o mito, a tradição da história que acredita estar vivendo – Não há

menções no filme do nome do suposto médico do sonâmbulo, apenas Caligari, mas por

se tratar de uma apropriação do médico ao personagem mítico do livro no qual

acreditava ter se tornado. Portanto, não existiria um Caligari, existiria o mito do

personagem, a figura histórica do livro, mas a partir de sua conexão com o sonâmbulo.

Caligari é sempre uma menção, um delírio seja do médico, seja de Francis.

Traído por seus próprios desejos, Caligari, torna-se seu próprio “experimento”,

o médico de si mesmo, prevalecendo nele o eixo paixão-vontade-liberdade que em

consonância à sua maneira de tomar decisões, de agir e sentir, acaba como todos,

julgado e condenado ao confinamento – em uma camisa-de-força.

O hospício teria duas funções, de um lado a provação e a produção de uma

verdade, de outro, a constatação e conhecimento dos fenômenos. Esse local deveria

permitir a descoberta da verdade das doenças mentais, afastando do doente de tudo o

que pudesse mascará-la. A loucura, tanto de Francis como de Caligari, está menos

relacionada ao erro desses personagens em suas vidas, do que suas normas de conduta,

irregulares, que se apresentam na narrativa fílmica, como uma perturbação na maneira

de agir, pensar, ou seja, “não há, absolutamente, alienados cujas paixões e anomalias

morais não sejam desordenadas, pervertidas ou aniquiladas”. 177

A estrutura moral entre médico e paciente se perde, na medida em que o saber

médico sofre um estreitamento à objetividade. Assim que o médico “perde” o sentido da

177 FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica, op. cit., p. 482.

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prática moral, que seus poderes mais obscurecidos ganham autonomia, um estilo

próprio dentro da história da medicina, evidencia-se ainda mais sua constituição de

médico taumaturgo. Ou seja, quanto mais próxima – a psiquiatria – foi ficando de um

estatuto de objetividade, de cientificidade, menos se enxergavam as origens “mágicas”,

como afirma Foucault, da prática médica. “A psiquiatria das táticas morais foi recoberta

pelos mitos do positivismo”. 178

À medida que o positivismo se impõe à medicina e à psiquiatria,

singularmente essa prática torna-se mais obscura, o poder do

psiquiatra mais milagroso e o par médico-doente mergulha ainda

mais num mundo estranho. Aos olhos do doente, o médico torna-se

taumaturgo; a autoridade que ele emprestava da ordem, da moral,

da família, parece por ele retirada, agora, dele mesmo. É na

qualidade de médico que se supõe que ele esteja carregado desses

poderes, e enquanto Pinel, com Tuke, ressaltava bem que sua ação

moral não estava ligada necessariamente a uma competência

científica, acredita-se, e o doente é o primeiro a fazê-lo, que é no

esoterismo de seu saber, em algum segredo, quase demoníaco, do

conhecimento, que ele encontrou o poder de desfazer

alienações. 179

O médico garante suas asserções no conhecimento científico, portanto, todas as

doenças e suas implicações, justificam suas decisões acerca do paciente. O médico de

Francis, ao prognosticá-lo em delírio, faz com que seu paciente normatize uma

verdadeira doença, a do mito da existência de um médico chamado Dr. Caligari. Mais

uma vez Caligari é inventado.

Und seit diegen Tag hat der wahnsinnig die Zelle nicht mehr

verbissen!

Sehen Sie…das ist Cesare, hassen Sie sich niemals von Ihn

wahrsagen sond sind Sie hat.

Ich glaubt alle ich - sie wahnsinnig

Es ist nicht wahr

Die Direktor ist wahnsinnig! 178 Idem. Ibidem. 179 FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica, op. cit., p. 501.

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Er ist CaligariCaligari…180

Na moldura do filme, Francis está internado num asilo, ali narra sua história

para um senhor idoso, supostamente um outro interno. Os personagens que fizeram

parte da narrativa de Francis, vão sendo mostrados, um a um, também como internos no

asilo. A doença de Francis, portanto, parece ser uma reinvenção de sua própria história.

Ele acredita que após Caligari ser desmascarado e recluso, conseguiu subverter a todos

e se restabelecer como diretor e médico no asilo, e apenas ele lembraria das atrocidades

cometidas pelo médico.

Quando aparece o novo médico da narrativa, com características mais realistas

que afirma poder curar seu paciente, pois entende que Francis acredita que ele (médico)

é o mitológico Caligari, está atribuindo para si o conhecimento da suposta doença.

Criando uma doença para o personagem.

Cena em que o médico “descobre” a doença de Francis

180 E desde aqueles dias, o louco não abandonou mais a cela/ Veja! Este é Cesare. Não o deixe jamais prever seu futuro, senão o senhor pode morrer/ Vocês todos acreditam que eu sou louco, mas não é verdade, o diretor é que é louco/ Ele é Caligari, Caligari. Intertítulo do filme.

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Finalmente eu compreendo este delírio!

Ele acha que eu sou aquele místico Caligari.

E agora eu também conheço o caminho para sua cura!181

Se o poder psiquiátrico tornava acessíveis os fenômenos criados nas doenças

para o conhecimento, o próprio médico “transmitia” as doenças que combatia. Assim

acontece também com Cesare, que, mesmo sendo um caso a parte na narrativa, funciona

tanto como um duplo para o médico que se transforma em Caligari, como representa o

paciente que quando passa a pensar por si mesmo, libertando-se do poder psiquiátrico, é

condenado. Cesare poderia representar um indivíduo sem vínculos morais, pois suas

normas de conduta são as criadas pelo médico, ele apenas obedece aos comandos. Não

seria, como aponta Kracauer, uma metáfora dos soldados sem consciência, ou

simplesmente uma crítica ao governo de guerra alemão, pois Cesare mesmo sendo uma

vítima, como afirma o autor, toma consciência de si. Consciência que o leva a criar uma

nova moralidade distinta do médico, pois opta por não matar a personagem de Jane.

Essa atitude, faz com que o sonâmbulo, não enxergando a si mesmo até então, se perca,

escolhendo a morte a desobedecer as ordens estabelecidas e criadas por Caligari.

O grande médico de hospício – é ao mesmo tempo aquele que pode

dizer a verdade da doença pelo saber que detém sobre ela, e aquele

que pode produzir a doença na sua verdade e submetê-la na

realidade, pelo poder que sua vontade exerce sobre o próprio

doente. Todas as técnicas ou procedimentos praticados nos

hospícios do século XIX (...) tudo isso tinha por função fazer do

personagem médico o “mestre da loucura”: aquele que a faz

aparecer na sua verdade (quando ela se esconde, quando

permanece escondida e silenciosa) e aquele que a domina, a

apazigua e a faz desaparecer, depois de tê-la sabiamente

desencadeado. 182

Dessa maneira, pode-se pensar que todos os personagens ditos “loucos” do

filme, padeciam de “falsas doenças”, que se tornam verdadeiras na medida em que são

atribuídos os significados possíveis pelos seus diversos “médicos”.

181 Intertítulo do filme. 182 FOUCAUL, Michel. A História da Loucura na Idade Clássica, op. cit., pp.499-500.

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O médico do sonâmbulo recria a figura do místico, buscando uma nova

moralidade a partir de suas experiências com o paciente, estabelecendo para si uma

doença que deveria “combater”. Cesare, personagem que poderia se enquadrar apenas

como uma marionete do médico, passa a tomar suas decisões adquirindo consciência de

si e definindo sua direção, não está mais no interior do par médico-paciente, alienado na

figura de Caligari. Francis torna-se um louco por acreditar que seu médico é Caligari,

invenção que é caucionada pelo mesmo, criando um novo par médico-paciente, quando

afirma que finalmente compreende o delírio de seu paciente, adquirindo um estatuto,

esse médico não pode ser um taumaturgo, pois estaria agora alicerçado pela ciência.

Esses “médicos” de O Gabinete do Dr. Caligari, representam essencialmente

como a importância do poder médico pode promover a verdade do que ele diz, e

obviamente quanto seu poder pode fabricar essa verdade. Segundo Foucault, a reforma

da prática e do pensamento psiquiátrico, está intimamente relacionada em torno dessa

relação de poder, sempre buscando deslocá-lo, anulá-lo e nem sempre isso é garantido.

No filme, essas relações de poder mostram justamente a ambigüidade da figura do

psiquiatra buscando criar verdades e novas formas de pensar e agir numa sociedade que

perdia, em função de uma super-racionalização, sua auto-imagem nacional, a

consciência de si mesma num sentido “espiritual” e político.

A verdade da Kultur, que traria de antemão um paradoxo para o homem da

suposta “ciência”, destaca uma ausência ou perda de unidade coletiva cultural e

presença de uma fragmentação do indivíduo na sociedade burguesa de Weimar, que foi

ocultada tanto pelas representações da época na sua tentativa de salvaguardar a

“unidade” recém conquistada pela Alemanha, quanto pelas interpretações pós-nazistas

do período que extirparam qualquer possibilidade do mito da Kultur de se prolongar e

se autojustificar no tempo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Esta dissertação buscou lançar mais uma interpretação sobre O Gabinete do Dr.

Caligari procurando contribuir, de alguma maneira, para diversos enfoques que possam

ser trabalhados em outras pesquisas. Um filme como este, possibilita ao historiador

múltiplas leituras sobre o tempo em que foi produzido, é um valiosíssimo documento

sobre os primeiros anos da República de Weimar, assim como exprime as tendências

diversas da corrente artística expressionista e revela também o nascimento de um

cinema chamado de artístico e industrial.

Obviamente que o trabalho não esgota a temática abordada, ao contrário, muitas

questões, idéias, ainda ficaram para trás a fim de serem discutidas. É uma pesquisa que

permanece aberta, procurando matizar os seus resultados, sem descartar a sua

contribuição crítica para a compreensão de sua época.

A Alemanha, vista por meio do filme O Gabinete de Dr. Caligari, parece

apresentar um embate de temporalidades que ainda não havia encontrado os seus

limites, mesmo durante o período de sua unificação, como durante a República de

Weimar, ou seja, a Alemanha passava por grandes transformações sócio-econômicas e

convulsões políticas que marcaram as três primeiras décadas do século 20. O país saiu

derrotado da Primeira Guerra Mundial, o que conduziu à extinção da monarquia e a uma

profunda crise econômica.

Algumas questões insistentemente permearam o desenvolvimento dessa

pesquisa, que dizem respeito à idéia de uma falta de coesão cultural na Alemanha,

juntamente a uma profunda fragmentação política, que foi se tornando recorrente em

sua história, onde se revelava a falta de uma Kultur, que enfatiza a identidade particular

de grupos, as diferenças nacionais, sua auto-imagem, diante de uma nação moderna que

estava sendo inventada - Zivivillisation.

As nações são longas e tortuosas invenções históricas, e imaginam-

se tributárias de velhas, ou nem tão velhas, tradições. As heranças

ditas nacionais são leituras de um certo passado, editadas segundo

as necessidades ou possibilidades históricas de cada época. As

imagens do passado mudam ao longo de tempo, pois são sempre

matizadas pelo olhar do presente. 183

183 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Sílvio Romero: hermeneuta do Brasil. São Paulo: Annablume, 2005, p, 14.

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Como invenção histórica, a idéia de nação é introduzida, quando a Alemanha, no

século XIX, surge enquanto um Estado-nacional moderno, de maneira contraditória,

pois atrai para si um modelo de “civilização” (Zivilisation), oposto ao que foi

reapropriado pela burguesia durante sua ascensão, que era o que realmente definia o

caráter nacional de seu povo por meio de um mito de origem, depositário das

singularidades culturais da Kultur. Durante a República de Weimar, os conflitos

reportados entre uma tradição nacional, romântica e uma modernidade que estava sendo

construída ficam visíveis, inclusive nas manifestações artísticas do período, que

oscilavam entre essas duas tendências.

Sintomaticamente, o filme de Robert Wiene, não escapou a essa particularidade.

As alterações, sofridas pelo filme, aproximam-no dessa Alemanha “antitética”. As

críticas contrárias às mudanças ocorridas no filme, que vão de encontro ao seu tempo,

desconsideram esse caráter da obra, que pode revelar, com essa moldura, diversas

possibilidades de interpretação acerca de uma obra cinematográfica que diz muito sobre

sua temporalidade.

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APÊNDICE

Intertítulos de O Gabinete do Dr. Caligari

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INTERTÍTULOS

O GABINETE DO DR.CALIGARI 184

INTERTÍTULO 1

“Reaparecimento moderno de um mito do século XI, envolvendo a estranha e

misteriosa influência de um monge das montanhas sobre um sonâmbulo”.

CENA 1

INTERTÍTULO 2

Sr. Idoso - Os espíritos nos cercam por todos os lados...Eles me afastaram do meu

coração meu lar, minha esposa e filhos..

INTERTÍTULO 3

Francis - Esta é minha noiva...

INTERTÍTULO 4

Francis - O que eu e ela experimentamos ainda é mais estranho que a história que me

contou. Eu lhe contarei...

INTERTÍTULO 5

Francis - Em Honstenwall, onde eu nasci...

INTERTÍTULO 6

Francis - (...) uma feira itinerante havia chegado.

E com a feira, veio um monge...

CENA 2

INTERTÍTULO 7

Francis - Meu amigo, Alan.

184Versão Continental Home Vídeo. Infelizmente, na versão que existe comercialmente do filme, as legendas foram modificadas. Os intertítulos desenhados pelos artistas expressionistas, foram substituídos nessa versão, por legendas em inglês. Usei na dissertação uma versão distinta do filme, ainda com os intertítulos em alemão, portanto, pode haver algumas diferenciações na tradução.

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INTERTÍTULO 8

FEIRA DE HOLSTENWALL!

Prodígios! Maravilhas! Milagres!

Espetáculos inéditos! Tudo novo!

INTERTÍTULO 9

Allan - Venha, Francis! Vamos para a feira!

CENA 3

INTERTÍTULO 10

Funcionário da prefeitura - O Escrivão está de péssimo humor hoje.

INTERTÍTULO 11

Cartão - Dr. Caligari.

INTERTÍTULO 12

Escrivão - Espere!

INTERTÍTULO 13

Caligari - Eu gostaria de uma licença para operar na feira.

INTERTÍTULO 14

Escrivão - Que tipo de exibição?

INTERTÍTULO 15

Caligari - Um sonâmbulo!

INTERTÍTULO 16

Escrivão - Faquir!

CENA 4

INTERTÍTULO 17

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137

Caligari - Aproximem-se! Aproximem-se!

Vejam o incrível Cesare...o sonâmbulo!

CENA 5

INTERTÍTULO 18

“Naquela noite, o primeiro de uma série de estranhos crimes misteriosos ocorreu...E a

primeira vítima foi o escrivão”.

CENA 6

INTERTÍTULO 19

Caligari - Aproximem-se! Cesare está dormindo há 25 anos aproximadamente e

acordará agora. Não percam!

INTERTÍTULO 20

“O Gabinete do Dr. Caligari”.

INTERTÍTULO 21

Caligari - Acorde Cesare! Eu, Caligari, seu mestre, assim lhe ordeno!

INTERTÍTULO 22

Caligari - Senhoras e senhores! Cesare conhece todos os segredos! Pergunte a ele

sobre o seu futuro.

INTERTÍTULO 23

Alan - Por quanto tempo vou viver?

INTERTÍTULO 24

Cesare - Seu tempo é curto. Morrerá ao amanhecer!

CENA 6

INTERTÍTULO 25

“Assassino. Oferece-se recompensa”.

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CENA 7

INTERTÍTULO 26

“No caminho de casa...”.

INTERTÍTULO 27

Francis - Alan, nós dois a amamos... mas não importa quem ela escolherá,

continuaremos sendo amigos!

CENA 8

INTERTÍTULO 28

“A noite...”.

INTERTÍTULO 29

Senhora - Senhor Francis! Senhor Francis! Mestre Alan está morto...assassinado!

INTERTÍTULO 30

Francis - A profecia do sonâmbulo!

INTERTÍTULO 31

Francis - Existe algo terrível no nosso meio!

CENA 9

INTERTÍTULO 32

Pai de Jane - Sua suspeita do sonâmbulo parece justificada. Pedirei permissão à polícia

para examiná-lo.

INTERTÍTULO 33

“Quando caem as sombras da escuridão...”.

CENA 10

INTERTÍTULO 34

Da janela, uma senhora - Socorro! Socorro! É ele, o assassino!

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CENA 11

INTERTÍTULO 35

Dr. Olsen [pai de Jane] - Acorde-o!

INTERTÍTULO 36

“Pego o assassino de Hostenwall praticando o terceiro crime”.

INTERTÍTULO 37

“Preocupada pela longa ausência de seu pai...”.

CENA 12

INTERTÍTULO 38

Jakob Stratt [o falso assassino] - É verdade que tentei matar a velha...e pensei que

culpariam o assassino misterioso de novo, mas juro que não tive a ver com as outras

duas mortes. Juro por Deus!

CENA 13

INTERTÍTULO 39

Jane - Achei que encontraria meu pai, Dr. Olsen aqui...

INTERTÍTULO 40

Caligari - Oh, sim... o Doutor! Não gostaria de entrar e esperar por ele?

CENA 14

INTERTÍTULO 41

“Após o funeral”

INTERTÍTULO 42

“É noite novamente...”.

INTERTÍTULO 43

Jane - Cesare!

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140

INTERTÍTULO 44

Francis - Não pode ter sido Cesare. Eu estava observando-o durante horas dormindo

em seu esquife.

CENA 15

INTERTÍTULO 45

Francis - O prisioneiro está a salvo em sua cela?

INTERTÍTULO 46

Francis - Espero que sim, deixem-me vê-lo.

CENA 16

INTERTÍTULO 47

Caligari - Ele não pode ser perturbado!

CENA 17

INTERTÍTULO 48

Francis - Você tem um paciente chamado Caligari?

INTERTÍTULO 49

Funcionário do asilo - Só o diretor do instituto poderá divulgar a identidade de nossos

pacientes. Você pode vê-lo?

INTERTÍTULO 50

Francis - Mas... ele é Caligari!

CENA 18

INTERTÍTULO 51

“Enquanto Caligari dormia”.

INTERTÍTULO 52

“Sonambulismo - Coleção da Universidade de Upsala, publicado em 1156”.

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141

INTERTÍTULO 53

Funcionário do asilo - Esta sempre foi sua especialidade nas suas pesquisas.

INTERTÍTULO 54

“Gabinete do Dr. Caligari. No ano de 1093, um monge chamado Caligari, visitou uma

pequena cidade no nordeste da Itália, trazendo o seu sonâmbulo chamado Cesare que

ele carregava em uma caixa de madeira rústica como um caixão!”.

INTERTÍTULO 55

“Sob seu comando, o sonâmbulo foi completamente induzido, pelos seus poderes a

realizar seus planos sinistros!”.

INTERTÍTULO 56

“Vários meses, ele causou na cidade grande pânico. Cometendo repetidas vezes,

assassinatos. Sempre sob as mesmas circunstâncias”.

INTERTÍTULO 57

“Histórias de casos e anotações”

INTERTÍTULO 58

[Diário] - 12 de Março. Finalmente...registrou-se a internação de um sonâmbulo no

asilo!

INTERTÍTULO 59

[Diário] - Agora, nada pode atrapalhar minha grande ambição. Finalmente,

desvendarei os segredos deste Caligaro!

INTERTÍTULO 60

[Diário] - Agora saberei se é verdade que um sonâmbulo pode ser compelido a cometer

atos que acordado, seriam repugnantes para ele...Se...de fato, ele pode cometer

assassinatos!

INTERTÍTULO 61

“Tentação”

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142

INTERTÍTULO 62

Caligari - Eu preciso saber...Devo tornar-me Caligari!

INTERTÍTULO 63

“Caligari! Caligari! Caligari Werden!”.

CENA 18

INTERTÍTULO 64

Funcionário do asilo - O sonâmbulo foi encontrado morto na ravina.

INTERTÍTULO 65

Francis - O círculo está se fechando em torno do Dr. Caligari!

CENA 19

INTERTÍTULO 66

Francis - E hoje este homem louco está acorrentado em sua cela.

CENA 20

INTERTÍTULO 67

Francis - Veja, lá está Cesare. Se deixar ele profetizar você, morrerá!

INTERTÍTULO 68

Francis - Jane, eu te amo...Quando se casará comigo?

INTERTÍTULO 69

Jane - Nós, de sangue real, não seguimos os desejos de nossos corações.

INTERTÍTULO 70

Francis - Seus tolos, este homem está planejando a nossa destruição. Todos

morreremos.

INTERTÍTULO 71

Francis - Ele é Caligari!

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143

CENA 21

INTERTÍTULO 72

Diretor do Asilo - Finalmente reconheço sua obsessão. Ele acredita que sou o mítico

Caligari!

INTERTÍTULO 73

Diretor do Asilo - Surpreendente! Mas acho que sei como curá-lo agora!

*

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