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cadernos Nietzsche 3, p. 65-76, 1997 Ler Nietzsche com Mazzino Montinari Ernani Chaves* Resumo: O presente artigo visa a apresentar ao público brasileiro as prescri- ções metodológicas indicadas por Mazzino Montinari para a leitura de Nietzsche, que se encontram expressas em “Ler Nietzsche: O Crepúsculo dos Ídolos”. Pro- cura-se mostrar que estas prescrições decorrem de considerações do próprio Nietzsche a respeito do leitor que desejava para os seus livros. Elas implicam no estabelecimento de uma condição preliminar, de ordem filológico-histórica, para que possamos aceder à interpretação filosófica, sem que aquela se constitua numa substituta desta. Palavras-chave: leitura – filologia – história. À memória de Federico Gerratana** A importância de Mazzino Montinari (1928-1986) para a pesquisa sobre Nietzsche a partir da década de 60 pode ser medida, entre outras, por duas declarações. A primeira, de Karl-Heinz Hahn, na época o dire- tor do Arquivo Goethe-Schiller de Weimar, onde estavam depositados desde 1950 os manuscritos de Nietzsche: a chegada de Montinari a Weimar, diz ele, “nos começos de 1961”, “inicia uma segunda fase nas pesquisas sobre Nietzsche” (Hahn 3, p. 1). A outra declaração está no * Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Pará. ** Federico Gerratana fazia parte da equipe de colaboradores que trabalhou com Montinari, principalmente na organização e edição da correspondência de Nietzsche. Quando, por motivos de saúde, o Prof. Wolfgang Müller-Lauter não pôde mais continuar dirigindo seu seminário, passamos a realizar nossos encontros no apartamento de Federico, em Berlin- Kreuzberg. Sua morte repentina interrompeu uma brilhante carreira intelectual. Não es- quecerei sua amizade e seu jeito italiano de ser.

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Estudos sobre Nietzsche

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  • cadernos Nietzsche 3, p. 65-76, 1997

    Ler Nietzsche com Mazzino Montinari

    Ernani Chaves*

    Resumo: O presente artigo visa a apresentar ao pblico brasileiro as prescri-es metodolgicas indicadas por Mazzino Montinari para a leitura de Nietzsche,que se encontram expressas em Ler Nietzsche: O Crepsculo dos dolos. Pro-cura-se mostrar que estas prescries decorrem de consideraes do prprioNietzsche a respeito do leitor que desejava para os seus livros. Elas implicam noestabelecimento de uma condio preliminar, de ordem filolgico-histrica, paraque possamos aceder interpretao filosfica, sem que aquela se constituanuma substituta desta.Palavras-chave: leitura filologia histria.

    memria de Federico Gerratana**

    A importncia de Mazzino Montinari (1928-1986) para a pesquisasobre Nietzsche a partir da dcada de 60 pode ser medida, entre outras,por duas declaraes. A primeira, de Karl-Heinz Hahn, na poca o dire-tor do Arquivo Goethe-Schiller de Weimar, onde estavam depositadosdesde 1950 os manuscritos de Nietzsche: a chegada de Montinari aWeimar, diz ele, nos comeos de 1961, inicia uma segunda fase naspesquisas sobre Nietzsche (Hahn 3, p. 1). A outra declarao est no

    * Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Par.** Federico Gerratana fazia parte da equipe de colaboradores que trabalhou com Montinari,

    principalmente na organizao e edio da correspondncia de Nietzsche. Quando, pormotivos de sade, o Prof. Wolfgang Mller-Lauter no pde mais continuar dirigindo seuseminrio, passamos a realizar nossos encontros no apartamento de Federico, em Berlin-Kreuzberg. Sua morte repentina interrompeu uma brilhante carreira intelectual. No es-quecerei sua amizade e seu jeito italiano de ser.

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    necrolgio de Montinari escrito por Henning Ottmann. Ao lembrar queMontinari havia ganho, em 1985, o prmio Friedrich-Gundolf paraGermanstica no Estrangeiro, Ottmann acrescenta que o prmio foraum pequeno agradecimento a um germanista italiano, por aquilo que afilologia alem no fora capaz de fazer (Ottmann 11, p. 297). Ambasas declaraes tocam num ponto em comum: com Montinari comeou,de fato, uma nova etapa nas pesquisas sobre Nietzsche. Os resultadosdo seu esforo de pesquisador infatigvel so, hoje, sobejamente co-nhecidos. O principal deles, a organizao, ao lado do ex-mestre e amigoGiorgio Colli, da edio crtica e completa das obras de Nietzsche que,pela primeira vez, dava um tratamento adequado aos fragmentos ps-tumos ao orden-los cronologicamente, integrando-os de maneira con-fivel obra publicada e destruindo, de uma vez por todas, a legendaem torno da existncia de uma obra com o ttulo de Vontade de Potncia.Alm disso, ao lado de Wolfgang Mller-Lauter, Karl Pestalozzi e HeinzWenzel, Montinari reorganizou, a partir de 1972, os Nietzsche-Studien,anurio internacional para a publicao dos resultados das pesquisassobre Nietzsche, maneira dos Kant- ou Hegel-Studien, ao mesmo tempoem que fundou e coordenou at a sua morte a coleo intitulada Mono-graphien und Texte zur Nietzsche-Forschung, todos publicados pelamesma Walter de Gruyter que acolhera, aps longos percalos, a publi-cao da edio completa e crtica(1). Acrescente-se a isso a organizaoe edio da correspondncia e das inmeras anotaes para o Zaratus-tra, publicadas, finalmente, em 1991, trabalho que sua morte haviainterrompido.

    Entretanto, seria extremamente injusto reduzir a importncia deMontinari a um trabalho meramente editorial. Ao lado dessa tarefa, tor-nou-se tambm um intrprete fundamental de Nietzsche, deixando-nosalm de uma Introduo (Montinari 5 e 6) ao seu pensamento umnmero bastante elevado de artigos, ora escritos em alemo, ora em ita-liano e nem todos ainda publicados (Campioni 1). Se h um ponto emcomum nesta vasta produo, ele diz respeito a um tema que ocupouMontinari sobremaneira: a de como ler Nietzsche. Questo funda-mental para Montinari, que via na sua possvel resoluo um caminho

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    seguro de acesso ao controvertido pensamento de Nietzsche. Afinal,poucos filsofos no decorrer da Histria provocaram tantas controvr-sias quanto Nietzsche. Controvrsias que ganharam relevncia mparaps o seu colapso psquico e o trabalho de divulgao, mas tambm defalsificao e deturpao de sua obra, empreendido por Elizabeth Frster-Nietzsche. Com mos de empresria moderna, a irm de Zaratus-tra, ttulo que ela mesma se atribuiu, Elizabeth Frster-Nietzsche trans-formou o nome e a obra do irmo num empreendimento acima de tudolucrativo e contribuiu, de maneira decisiva, para sua apropriao pelonazismo. Controvrsias que s faziam aumentar, na medida em que in-trpretes to importantes quanto Jaspers, Lwith, Heidegger, Fink,Kaufmann e Deleuze, continuavam utilizando-se, em maior ou menormedida, das edies pouco confiveis dos fragmentos pstumos,publicadas por Elizabeth ou sob seus auspcios. Controvrsias, enfim,que faziam com que intrpretes to distantes ideologicamente, como onazista Alfred Baumler e o marxista Georg Lukcs, acabassem por re-petir os mesmos equvocos (Montinari 7, p. 169). Mas, a questo lerNietzsche passou a ganhar, para Montinari, uma absoluta atualidade,em vista dos novos nietzschianismos que grassavam a partir da dca-da de 60 e reconstruam algo que lhe aterrorizava: um novo mito emtorno de Nietzsche (Montinari 7, p. 1). Como ler Nietzsche tornou-seuma questo que no menor, irrelevante, pois o prprio Nietzsche nodesejava ser lido de qualquer maneira(2).

    O artigo que ora publicado, o primeiro de Montinari no Brasil,nos d uma amostra precisa do mtodo de leitura proposto por ele.Trata-se de uma espcie de guia ao leitor de Crepsculo dos dolos, deuma Introduo imprescindvel, sem a qual parece que a obra nosescaparia. Em que consiste tal mtodo? Ou, talvez, uma pergunta devaanteceder esta explicitao: qual o seu ponto de partida? Este , semdvida, a crtica de toda interpretao que, por ignorar as prescries doprprio Nietzsche leitura de sua obra, incorriam em uma dogma-tizao ou, pior, em uma deturpao de suas idias. A questo lerNietzsche torna-se, assim, uma questo ancorada nas inmeras decla-raes do prprio filsofo a respeito do leitor que pretendia. Por isso,

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    ela no uma questo margem das consideraes filosficas deNietzsche mas, ao contrrio, est intrnsecamente ligada a elas. Dessasprescries, Montinari destaca a importncia que Nietzsche conferia leitura filolgica (Montinari 7, p. 9). Eis aqui a pedra de toque domtodo de Montinari: sem um cuidado filolgico prvio, toda leiturade Nietzsche est condenada ao fracasso. Uma tal declarao provocou,sem dvida, inmeras crticas e mal-entendidos. Queria Montinari en-contrar o verdadeiro Nietzsche, tal como o ttulo em italiano de seulivro sugeria? Ao valorizar de maneira to decisiva a base filolgica,no estaria negligenciando as questes filosficas? Mas, como esquecer,por outro lado, que o prprio Nietzsche traara o retrato ideal do seuleitor, um leitor como eu o mereo, que me leia como velhos e bonsfillogos liam seu Horcio (EH/EH, Por que escrevo livros to bons, 5)? Ou ainda, que pretendia para Aurora leitores e fillogos perfeitos,exortando seu leitor a aprender a l-lo convenientemente (M/A,Prefcio, 5)? E que muito cedo j distinguia entre seu leitor ideal, quel tranquilo, sem pressa e deixa de lado seus preconceitos, em oposio voracidade do leitor de jornal (BA/EE, Prefcio, I)?

    Atento s crticas, Montinari procurava esclarecer desde o LerNietzsche (1981), seu escrito programtico acerca do tema, que a basefilolgica e histrica no substitui, de modo algum, a interpretao pro-priamente filosfica, mas que o seu pressuposto indispensvel(Montinari 7, p. 4)(3). ainda neste texto, ao aproximar filologia e hist-ria, que Montinari igualmente adverte, num aditamento para especula-dores, que inserir Nietzsche historicamente, coloc-lo em confrontocom o seu tempo, identificar os interlocutores que lhe eram contempo-rneos, reconstruir sua biblioteca ideal, no significa sacrificar a neces-sria interpretao filosfica (Montinari 7, p. 6). Filologia e histriano podem ser tomadas, s expensas do que Nietzsche pensava sobreisso, como possveis substitutas da interpretao filosfica, como se estaestivesse submetida s vissicitudes do intrprete, enquanto aquelas po-deriam promover uma leitura objetiva. Montinari no est reivindican-do uma filologia positivista, que restituiria a verdade ltima de umtexto. At porque, ele mesmo o ressalta, a leitura de um autor como

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    Nietzsche nunca passa ao largo das vivncias de seu leitor. A basefilolgico-histrica funcionaria, portanto, como uma espcie de sabe-doria apolnea, indispensvel ao leitor que no queira transformarNietzsche naquilo que ele no ou que nunca quis ser, necessria paraevitar toda crtica sem fundamento, mas tambm toda espcie demitificao. Entretanto, mesmo que se possa flagrar em Montinari umainteno de objetividade, ela s pode ser atribuda necessidade de norepetir os equvocos e os mal-entendidos dos nietzschianos e anti-nietzschianos de ontem e de hoje.

    Ler Nietzsche: O Crepsculo dos dolos no apenas mais umexemplo do procedimento adotado por Montinari. De certo modo, eletestemunha a radicalizao da sua proposta. Se no Ler Nietzsche,filologia e histria so aproximadas, na medida em que, lembra Mon-tinari, a questo do sentido histrico em Nietzsche no se esgota nodiagnstico feito na Segunda considerao extempornea, aqui filologia histria. No apenas aproximadas, filologia e histria constituemagora um nico procedimento, tornando-se quase que sinnimas umada outra. Entretanto, a ressalva feita no texto de 1981 permanece: oprocedimento filolgico-histrico um trabalho preliminar, que so-zinho no suficiente para a compreenso de Nietzsche, mas que podedeixar o caminho livre para ela. E exatamente isso que o movimentodo texto vai concretizar: a passagem do procedimento preliminar paraa interpretao filosfica.

    Com a mincia, a pacincia e a preciso do ourives figura queNietzsche compara do fillogo no mesmo Prefcio Aurora acimacitado Montinari disseca (para usar uma metfora mdica, to cara aoNietzsche da poca) o texto do Crepsculo dos dolos nas seis primeiraspartes que o compem. Com o auxlio do procedimento filolgico-his-trico, o que vimos aparecer um vasto painel, de onde surge no ape-nas o Crepsculo dos dolos, mas toda a ltima produo terica deNietzsche: os dois ltimos textos sobre Wagner, O anticristo e Eccehomo, na sua necessria conexo com o projeto de uma obra intituladaVontade de potncia. O exame dos fragmentos pstumos permitir aMontinari demonstrar o quanto a considerao da obra publicada exige

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    uma confrontao com os pstumos, para que possamos reconstiuir agnese de uma idia ou de um conceito. Assim, ficamos sabendo, porexemplo, que a mxima que abre o livro A ociosidade o incio detoda psicologia. Como? Seria a psicologia um vcio? j existia hsete anos nos manuscritos de Nietzsche. Podemos acompanhar portantoas transformaes que ela sofre desde este primeiro momento, onde selia: A ociosidade de Zaratustra o incio de todos os vcios. Ora, umaanlise detida destas modificaes at a verso final no livro publicadopermite-nos acompanhar o movimento da produo de um conceito emNietzsche. O leitor surpreendido pela montagem de uma extraordin-ria teia de relaes entre obras e fragmentos pstumos, onde as sucessi-vas modificaes dos planos inicialmente estabelecidos vo aparecen-do, para dar lugar, finalmente, forma que ganharam nos ltimos li-vros. Movimento de ir-e-vir, como uma lanadeira, que vai, aos poucos,costurando as bordas de um texto, em princpio, velado. Trabalho damais fina ourivesaria (da parte de Montinari), que revela a outra bri-lhante ourivesaria (a de Nietzsche), ao mostrar como uma frase, umapalavra, pedra bruta numa primeira apario, alcana todo o seu brilhoe valor inestimvel anos depois, no texto publicado. Processo delapidao, atravs do qual o pensamento de Nietzsche vai se mostrandoem formao, ganhando vida em meio a tantas hesitaes e flutuaes.

    Do mesmo modo, a nova terminologia usada por Nietzsche no li-vro, o ar de hospital que emana dele, s pode ser compreendida seNietzsche for inserido no debate que lhe era contemporneo. sua lei-tura fundamental dos Essais de psychologie contemporaine de PaulBourget e de outros franceses, acrescente-se a do livro Dgnerescenceet criminalit do psiquiatra Charl Fr, um estagirio no servio dofamoso Charcot, na Salptrire de Paris. Pode-se, portanto, ter um en-tendimento mais acurado da presena de tantas anlises fisiolgicasnos textos da poca e, principalmente, de que modo Nietzsche seposiciona, para freqentemente criticar, em relao ao conhecimentomdico-psiquitrico da poca. Por outro lado, detecta-se mais uma fa-lha nas edies to conhecidas das coletneas intituladas como Vontadede potncia: num dos aforismos (o de nmero 52 da edio conhecida

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    como cannica), uma passagem do livro de Fr, traduzida porNietzsche, aparece como sendo do prprio Nietzsche! Chamo particu-larmente a ateno para o fato de que a complexa elaborao da idia deuma fisiologia da arte liga-se diretamente com essas leituras deNietzsche.

    A passagem qual aludimos acima, do procedimento filo-lgico-histrico para a interpretao filosfica, feita na ltima partedo artigo. O texto denso , entretanto, demasiado rpido, criando, defato, um flagrante desequilbrio entre os dois nveis de anlise. De todomodo, o que tratado nele absolutamente importante: Montinari con-sidera o cerne filosfico do livro a reiterao do pensamento do eternoretorno como um pensamento da pura e total imanncia, ou seja, confi-gurando o carter absolutamente anti-metafsico do pensamento deNietzsche. Concluso ousada, pois a nica referncia ao eterno retornono livro , exatamente, sua ltima frase, onde Nietzsche diz de si mes-mo, que o ltimo discpulo do filsofo Dioniso e, por isso, tam-bm o mestre do eterno retorno (GD/CI, O que devo aos antigos, 5).Para chegar at ela, Montinari retoma uma idia de Heidegger, para quemo mtodo de Nietzsche um mtodo de converso. Tal conversoacontece, de incio, no plano da teoria do conhecimento, pela crtica daseparao entre mundo verdadeiro e mundo aparente. A partir da,a converso atinge o plano da moral, para desmentir a igualdade entrerazo, virtude e felicidade anunciada por Scrates, afirmando, ao con-trrio, que a virtude conseqncia da felicidade, para denunciar a li-mitao patolgica do moralismo da filosofia grega. O pensamento doeterno retorno a confirmao da imanncia aps a morte de Deus.Com isso, quando Montinari pensa a questo do eterno retorno, o fazexclusivamente a partir da sua concepo enquanto imperativo tico.A afirmao do eterno retorno significa a afirmao e a justificao davida: Ele , de fato, a maior justificativa da vida e, nesta medida, estem oposio ao que calunia a vida; mas porque isto parte da vida, tambm justificado e no julgvel. Mais ainda: o pensamento do eternoretorno que impede que o conceito de vontade de potncia acabe porse tornar um princpio metafsico, um princpio sistematizador. O pen-

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    samento do eterno retorno apresentado, enfim, como a superao dapretenso sistemtica que o conceito de vontade de potncia acabavapor implicar.

    Como dissemos acima, muita coisa para pouca explicao. Atentativa de procurar esclarecer a posio de Montinari nos levaria, ne-cessariamente, aos seus outros textos. Entretanto, gostaria de assinalaruma possvel pista, a partir de uma certeira observao de Karl Pestalozzi,na sua Introduo traduo alem do livro de Montinari sobreNietzsche. Como j assinalara Wolfgang Mller-Lauter, Montinari, noseu combate mitificao de Nietzsche e a idia de Nietzsche comocriador de mitos, na contra-mo da maioria dos intrpretes, considera-oum continuador da Aufklrung (Mller-Lauter 9, p. 33). Pestalozzi vaidizer-nos ento, que, deste ponto de vista, o Zaratustra um obstculo,um embarao para Montinari e contra o estilo do Zaratustra e suapretenso potica, ele dirigiu uma verdadeira guerra (Pestalozzi 12, p.XI). A conseqncia disso tinha sido a impresso de provisioriedadedo captulo sobre o Zaratustra neste livro, cuja primeira edio italiana de 1975. A intensa ocupao filolgica com o Zaratustra, que culmi-nar na publicao de todas as variantes do texto em 1991, fez com queMontinari, posteriormente, tivesse uma compreenso mais profunda destaobra. Assim sendo, em 1984, a posio central do eterno retorno na suaanlise do Crepsculo dos dolos j mostra os resultados deste aprofun-damento(4), embora, para fugir de toda mitificao e de todo modismo,Montinari tambm submeta o Zaratustra ao seu mtodo de leitura.Restaria, enfim, apontar, que permanece ainda uma questo: o lugar doconceito de vontade de potncia que, de todo modo, precisa ser su-perado, segundo Montinari. A anlise deste conceito no livro de 1975mostra claramente a importncia do livro de Wolfgang Mller-Lauter(Mller-Lauter 8), em especial sua crtica interpretao heideggeriana,que faz dele um princpio metafsico. Entretanto, parece que em 1984,Montinari entende que exorcizar o perigo deste tipo de interpretao,supe radicalizar o papel do pensamento do eterno retorno. E aqui resi-diria a originalidade deste pensamento, que segundo Pestalozzi, ele noreconhecia em 1975: ele e no a teoria da vontade de potncia, que

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    pode fazer-nos escapar das armadilhas da metafsica. Da ser ele, apesarda nica e breve referncia no livro, o ncleo filosfico do Crepsculodos dolos. Ousaramos dizer que, para Montinari, o de toda a ltimaproduo terica de Nietzsche. Como podemos observar, a basefilolgico-histrica no nos garante nenhuma interpretao filosficadefinitiva. Entretanto, ela nos garante algo precioso quando se trata deum filsofo como Nietzsche: impede toda interpretao abusiva.

    A que tradio de leitores de Nietzsche Montinari se filiaria? Pestalozzi ainda que nos responde: Torna-se claro que o prprioMontinari se via naquela tradio da recepo de Nietzsche fundada porOwerbeck e Bernouilli na Basilia e que se alinhara contra as manobrasdo Arquivo Nietzsche de Weimar (Pestalozzi 12, p. xiii). Uma tradi-o, portanto, para quem o pensamento de Nietzsche, como o declarouuma vez Owerbeck, no comporta nenhum entusiasmo pstumo (cit.em Montinari 7, p. 3). No limite, como se a contribuio fundamentalde Montinari pudesse ser resumida em dois pontos bsicos: primeiro, oindivduo Nietzsche, celebrado por sua loucura genial ou criticadopor seu estilo ou falta de sistematicidade pode, enfim, ser restitudocomo parte da histria (Campioni 1, p. xlix); segundo, sua atualida-de reside muito mais no fato de que ele, a despeito de suas inmerasdeclaraes em contrrio, foi um filsofo como os outros (Simon 13,p. 1). Estes dois pontos s ganham sua relevncia, quando confronta-dos, seja com as leituras ditirmbicas, seja com aquelas que criticamNietzsche como irracionalista, idelogo das classes dominantes, etc.Como estes dois tipos de leitura so ainda muito usuais no Brasil, apublicao deste artigo de Montinari me parece, mais do que nunca,necessria.

    Em 31.05.65, Montinari escrevia de Weimar a Giorgio Colli, acer-ca de seu trabalho. Um trecho desta carta, devolve-nos um pouco o ho-mem Montinari, debruado sobre os manuscritos de Nietzsche. Nocom devoo, mas com os instrumentos que o prprio Nietzsche lhelegara:

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    Desde a ltima quarta-feira, estou absorvido com os Ditirambos.Hoje, terminei a compilao das folhas. Mas, o mais importante queencontrei dois fragmentos, que devem ser datados de aps o primeirode janeiro de 1889. Creio que devero ser os ltimos de nossa edio.Um deles, decifrei inteiramente; o outro, ainda faltam algumas partes.At agora, ningum os conhecia: a respeito da decifrao, realizei ummilagre [...] Sigrid vai bem e manda lembranas a Ana e a ti. Amanh,espero receber notcias tuas; escreverei de volta logo depois. Abraos,Mazzino (Campioni 1, p. xxxv).

    Abstract: This article aims to present to the Brazilian public the methodologicalprescriptions for reading Nietzsche offered by Mazzino Montinari in ReadingNietzsche: the Twilight of Idols. It aims to show that these prescriptions issuefrom consideratioons done by Nietzsche himself about the reader that he desiredfor his books.Key-words: reading philology history

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    Notas

    (1) Como se sabe, o resultado do trabalho de Colli e Montinari recebeu aprovaoimediata das editoras Adelphi, de Milo e Gallimard, de Paris. S foi possvelencontrar uma editora alem, a partir da intermediao de Karl Lwith, que Collie Montinari conheceram pessoalmente no Colquio de Royaumont (Frana), em1964 (Montinari 7, p. 20).

    (2) No Brasil, Scarlett Marton tem se ocupado bastante com esta questo. Sua con-cluso que, em geral, devemos principalmente a Heidegger e a Foucault nossaperspectiva de leitura de Nietzsche. A estes, ela ope em um trabalho recente aperspectiva de Wolfgang Mller-Lauter (Marton 4), qual poderamos alinhar ade Montinari. O que no quer dizer que intrpretes como Foucault e Deleuze, porexemplo, no tivessem conhecimento do que acontecia do outro lado do Reno.Pelo contrrio. Para tanto, lembramos dois fatos: 1) que foi Deleuze quem insis-tiu no convite a Montinari, para que ele participasse do Colquio de Royaumont(cf. a carta de Montinari a Colli, escrita de Weimar, em 13.05.64 in Campioni 1,p. liii). Segundo Campioni, o convite ao Colquio de Royaumont pareceu aMontinari, de imediato, como uma oportunidade bem-vinda para tornar conheci-do internacionalmente o trabalho na edio crtica e o seu significado (Campioni1, p. li; 2). Na Introduo escrita por Deleuze e Foucault para a edio france-sa, eles destacam a importncia da edio nos mesmos termos de Montinari(Foucault 2, p. 561). Quanto a Heidegger, embora tenha morrido oito anos aps oincio da publicao da edio crtica, no conhecemos nenhuma aluso ao traba-lho de Montinari.

    (3) O artigo Ler Nietzsche, que tambm traduzimos, dever ser publicado em bre-ve, na revista Idias, da UNICAMP.

    (4) Acerca da anlise do Zaratustra no livro de 1975, escreve Pestalozzi: O desta-que principal concentra-se nos filosofemas do Zaratustra: a doutrina do eternoretorno e a do alm-do-homem. Atravs da anlise, a doutrina do eterno retorno relativizada na sua originalidade, na medida em que colocada ao lado de idiassemelhantes de outros pensadores contemporneos. expressamente descrita,tambm, como um conceito-limite da racionalidade (Pestalozzi 12, p. xi). Sobrea importncia do Eterno Retorno em 1984, cf. Mller-Lauter 9, p. 39.

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