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36 o Encontro Anual da ANPOCS GT 18 – Marxismo e Ciências Sociais Mariátegui e o Brasil: o socialismo indo-americano e os dilemas do marxismo na periferia Diogo Valença de Azevedo Costa Márcia da Silva Clemente Águas de Lindóia, 2012

DiogoCosta Mariategui

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  • 36o Encontro Anual da ANPOCS

    GT 18 Marxismo e Cincias Sociais

    Maritegui e o Brasil: o socialismo indo-americano e os dilemas do marxismo na periferia

    Diogo Valena de Azevedo Costa Mrcia da Silva Clemente

    guas de Lindia, 2012

  • Introduo

    O presente trabalho discute a recepo das ideias do marxista peruano Jos Carlos Maritegui no Brasil. Embora breves referncias a seu nome sejam encontradas no meio socialista brasileiro desde a dcada de 1920, a incorporao do pensamento do autor dos Siete ensayos de interpretacin de la realidad peruana (1928) possui como principal marco divisrio os anos 70. As mudanas ocorridas no cenrio nacional, com a instaurao do regime civil-militar em 1964, ajudam a explicar o repentino interesse pelo intelectual peruano, at ento desconhecido do pblico brasileiro. Nesse sentido, suas ideias polticas ajudavam a aprofundar questes relevantes para entender as razes do golpe de 64, tais como o colonialismo enraizado nas formaes sociais latino-americanas, a existncia de uma burguesia nacional pr-imperialista, a juno entre as formas capitalistas e pr-capitalistas de explorao, o carter complementar das modalidades de dominao tnico-racial e de classes e, ainda, a combinao entre subdesenvolvimento e dependncia. Por fim, a recente traduo de seus textos no Brasil reflete, por parte de nossa intelligentsia socialista e de nossos centros acadmicos, o interesse por sua concepo original de socialismo indo-americano.

    O jornalista peruano Jos Carlos Maritegui (1894-1930) considerado, a julgar pela quase totalidade dos comentrios sobre o conjunto de sua obra poltica e de crtica cultural publicados no Brasil, o primeiro marxista original da Amrica Latina. Apesar dessa opinio fortemente unnime, grande parte de seus trabalhos, que envolvem reflexes histricas, sociolgicas, polticas, literrias e filosficas elaboradas de modo combinado, ainda permanece desconhecida do pblico brasileiro e, em especial, pouco divulgada nos cursos de histria, letras, cincias sociais e servio social de nossas universidades. A prpria divulgao de parcela substancial de suas ideias no Brasil foi bastante tardia. Seu livro mais importante e j ento internacionalmente divulgado, Sete ensaios de interpretao da realidade peruana, publicado pela primeira vez em 1928, apenas iria aparecer aqui com quase meio sculo de atraso, no ano de 1975, sob os auspcios da Editora Alfa-mega e prefaciado por Florestan Fernandes. Um dos objetivos deste trabalho ser, portanto, sugerir algumas hipteses para procurar explicar os motivos dessa lacuna cultural, presente no somente na formao de nossa inteligncia socialista, mas tambm nos currculos universitrios brasileiros. Apesar do teor descritivo

  • da exposio nesta parte do trabalho, a principal hiptese explicativa sobre a recepo tardia das obras de Maritegui no Brasil poder ser assim resumida: a influncia decisiva do Stalinismo, por intermdio da III Internacional, conduziu o Partido Comunista do Brasil1 (PCB), desde sua fundao em 1922 at o incio da dcada de 1960, elaborao de um modelo etapista de revoluo, o qual se limitava a reproduzir de forma reducionista as fases do desenvolvimento histrico europeu, impedindo que interpretaes alternativas e mais prximas das especificidades da formao social brasileira, como a viso de Maritegui sobre a Amrica Latina, fossem aproveitadas para a elaborao das tticas e estratgias da luta socialista.

    Outro elemento importante a se levar em considerao neste debate se refere ausncia de uma integrao cultural mais slida entre o Brasil e a Amrica Hispnica. Os estilos de pensamento e as instituies especializadas na produo dos chamados bens culturais seguem predominantemente os modelos consagrados nos centros dominantes, Estados Unidos e Europa Ocidental. O dilogo no estabelecido em condies de igualdade e de autonomia entre os pases de origem colonial e capitalismo dependente, de um lado, e os plos culturais hegemnicos, de outro, mas dentro de uma lgica que reproduz o fenmeno da dependncia ideolgica ou do colonialismo mental entre as naes ditas em que pesem as restries ao emprego atual de tais noes perifricas e centrais. Ora, a obra de Maritegui se debrua sobre o carter especfico das formaes sociais de nosso subcontinente latino-americano, sem deixar de estabelecer, contudo, os vnculos mais gerais com a dinmica poltica internacional da Europa e Estados Unidos. Esse tipo de reflexo no se pauta pelo prestgio ou notoriedade cientfica que se ganha investigando o que seria mais relevante pesquisar em termos de problemticas tericas, prticas e empricas suscitadas no contexto poltico e intelectual dos principais ncleos acadmicos dos pases de capitalismo avanado. Em outras palavras, a mentalidade colonizada assumiu um papel decisivo nessa divulgao tardia das ideias de Maritegui no Brasil e ainda continua atuando como uma barreira para a efetiva incorporao das sugestes mais originais de seu pensamento poltico em nossas preocupaes sociolgicas, historiogrficas, filosficas e literrias.

    A partir da dcada de 1970, no entanto, o primeiro passo para a divulgao do pensamento de Maritegui no Brasil foi dado com a publicao de seu livro mais 1 Estamos nos referindo ao Partido Comunista do Brasil (PCB). Aps a ciso de 1962, que dar origem ao

    PCdoB, o PCB passar a se denominar Partido Comunista Brasileiro.

  • importante, os Sete ensaios de interpretao da realidade peruana (1975). Mas no apenas isso: um dos mais importantes intelectuais brasileiros, o socilogo Florestan Fernandes, utilizou algumas das diversas indicaes deixadas por Maritegui em sua interpretao do carter dependente do capitalismo brasileiro e do tipo de dominao autocrtico-burguesa aqui historicamente implantada. De fato, o golpe de 1964 retira a iluso de que o Pas estaria caminhando para a realizao de sua revoluo burguesa nos moldes de um regime democrtico capaz de concretizar as reformas de base necessrias correo das profundas desigualdades sociais do capitalismo dependente, reproduzindo em linhas gerais o modelo da socialdemocracia europeia. Nesse sentido, Maritegui pode ser considerado um dos precursores da teoria da dependncia na Amrica Latina, ao desmascarar o carter pr-imperialista da chamada burguesia nacional e ao apontar a persistncia estrutural de formas pr-capitalistas de explorao nas modernas relaes sociais de produo capitalistas, dada a posio subordinada das formaes nacionais de origem colonial no cenrio da diviso internacional do trabalho. Alm de Florestan Fernandes, a cincia social crtica latino-americana dos anos 70 incorpora, em seu conjunto, essas formulaes de Maritegui, a exemplo de socilogos e cientistas polticos como Pablo Gonzlez Casanova (Mxico), Anbal Quijano (Peru) e Orlando Fals Borda (Colmbia). Esse primeiro impulso de divulgao da obra de Maritegui no Brasil possui, portanto, fortes relaes com as transformaes polticas ocorridas na Amrica Latina a partir da dcada de 1960, representadas pela instaurao de ditaduras militares com apoio da superpotncia mundial, os Estados Unidos. Mas esse impulso ter um flego curto e quase desaparece com o processo de redemocratizao dos anos 80 no Brasil, pois a chamada Nova Repblica e, em seguida, o governo Collor representam um novo patamar da incorporao do Pas aos dinamismos financeiros, polticos, militares e ideolgicos do grande capital internacional. A reflexo sobre a especificidade das formaes sociais brasileira e latino-americana se tornaria mais uma vez obsoleta, dado que, logo aps a queda do Leste Europeu, a mundializao do capital iria homogeneizar, sob a gide das democracias ocidentais e da ideologia neoliberal triunfante, os diferentes espaos geopolticos nacionais e suas particularidades culturais. A verdadeira cincia social deveria seguir os parmetros universais dos principais centros acadmicos europeus e norte-americanos, sem o questionamento das relaes de poder e dos preconceitos culturais, alimentados internamente pelas formaes sociais dependentes, que envolvem o intercmbio intelectual entre as naes centrais e perifricas. Isso ajuda a

  • explicar em parte por que os livros de Maritegui no foram traduzidos para o portugus no Brasil, depois de uma breve tentativa de divulgao, ao longo dos anos 90 e s agora, no incio do sculo XXI, que seus escritos esto merecendo um tratamento editorial mais sistemtico.

    O renovado interesse pela publicao da obra de Maritegui est intimamente ligado falncia do discurso neoliberal nos pases da Amrica Latina, dado que a ideologia do Estado mnimo e da unificao dos mercados no trouxe a to sonhada estabilidade econmica acompanhada de justia social, bem como a harmonizao e homogeneizao das relaes comerciais em nvel internacional. O que houve, de fato, foi uma redefinio dos nexos de dependncia, coloniais e neocoloniais, entre as naes centrais e os plos de subdesenvolvimento, inclusive no interior dos pases capitalistas desenvolvidos, da sia, frica e Amrica Latina. Isso provoca a exacerbao das formas de dominao capitalistas em sua combinao com a explorao colonial baseada no preconceito tnico-racial e em movimentos xenfobos, a exemplo das sucessivas ondas de perseguio aos trabalhadores imigrantes em diversos pases da Europa. A esse respeito, o marxista peruano foi tambm pioneiro na proposta de investigar conjuntamente as dominaes de classe e de tipo tnico, que no seu caso especfico estava voltada contra os povos indgenas marginalizados. As propostas de um socialismo indo-americano, defendidas por Maritegui, encontram um forte eco na atualidade, com a emergncia de movimentos sociais na Amrica Latina no apenas de carter classista, mas de acentuado carter campons e de razes indgenas. No por acaso que uma das mais recentes reedies, no Brasil, dos Sete ensaios foi publicada pela Expresso Popular, editora vinculada ideologicamente ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. A releitura de Maritegui possui o propsito de superar as limitaes eurocntricas do marxismo brasileiro, concentrado unilateralmente na perspectiva de classes sociais, sem, portanto, a necessria pesquisa dos nexos existentes entre a explorao econmica e a discriminao racial, dois elementos a serem levados em conta na luta das organizaes populares pela eliminao de nossas desigualdades estruturais e da explorao do trabalho alheio.

    O presente trabalho foi dividido em duas partes. Na primeira, ser recuperada a fortuna crtica do pensamento de Maritegui no Brasil, desenvolvendo as hipteses interpretativas sobre as razes histricas, polticas e culturais da existncia de momentos diferenciados na divulgao de suas ideias em nosso meio universitrio e nos espaos

  • intelectuais mais abrangentes do movimento socialista. Na segunda parte, a sua concepo de socialismo indo-americano ser examinada, de um lado, em suas afinidades com o carter especfico da formao social brasileira, sustentada na dupla dominao de raa e de classe, e, de outro, na sua aproximao com as exigncias polticas dos movimentos sociais pela reforma agrria no Brasil. Por fim, uma breve comparao entre Maritegui e autores brasileiros, como Florestan Fernandes e Caio Prado Jr., poder evidenciar a atualidade de suas ideias na investigao dos dilemas do marxismo na periferia latino-americana.

    As razes de um silncio: a fortuna crtica de Maritegui no Brasil

    No intervalo de um decnio tem se tornado cada vez mais expressivo aqui no Brasil, aps um longo perodo de silncio, o interesse acadmico pela obra poltica e terica de Maritegui. A julgar pelas afirmaes de alguns comentadores, a tardia recepo dos textos mariateguianos no seria uma exclusividade brasileira (Aggio, 2006; Perics, 2010: 345), pois em outros pases latino-americanos o autor dos Sete ensaios ainda seria um ilustre desconhecido do grande pblico pelo menos at meados da dcada de 1980 e muitos dos seus textos, incluso seu livro mais importante, s comearam a ser publicados a partir dos anos 60. Talvez o desafio atual, como sinaliza Luiz Bernardo Perics2 (2010: 335), seja o de alcanar uma disseminao mais incisiva dos textos de Maritegui no meio editorial brasileiro. Um dos maiores obstculos para tal divulgao reside, contudo, no fato do esprito mariateguiano ser contrrio ao ethos da cordialidade brasileira, baseada na suposta unio harmnica de trs raas, ao constatar que foi obra da 2 As ideias fundamentais do presente trabalho j estavam delineadas quando nos deparamos com o artigo

    de Luiz Bernardo Perics, Jos Carlos Maritegui e o Brasil (2010). Baseado numa pesquisa documental minuciosa e original, o autor desenvolve outra linha de investigao sobre a recepo dos escritos de Maritegui no Brasil. Em especial, so ricas as suas inmeras indicaes sobre as referncias de intelectuais brasileiros aos textos de Maritegui antes mesmo da dcada de 1970, dentre os quais Alberto Guerreiro Ramos e Nelson Werneck Sodr, este ltimo tendo utilizado os Sete ensaios como referncia para seu curso no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) sobre a formao histrica do Brasil (que comeou a ministrar em 1956), curso esse que resultaria, mais tarde, em seu livro Formao histrica do Brasil, de 1962 (Perics, 2010: 341). Pode-se dizer que o artigo de Bernardo Perics sugere novos caminhos de comparao entre Maritegui e outros intelectuais brasileiros em alguma medida marginalizados diante das interpretaes hegemnicas de nossa formao nacional. Sugestes igualmente valiosas tambm podem ser encontradas quanto s apropriaes de Maritegui por intelectuais e movimentos sociais de esquerda no Brasil ps-1970. Nesse sentido, a leitura do artigo de Luiz Bernardo Perics serve como um contraponto s hipteses aqui apresentadas, de modo a relativizar, reforar ou reorientar algumas das proposies gerais que nos serviram de guia.

  • colonizao hispano-americana e portuguesa a subjugao, explorao e extermnio dos povos originrios. Para a mdia dos cidados brasileiros, a obra de Maritegui contraria preconceitos profundamente enraizados que atuam como mitos da nossa identidade nacional. J no campo da esquerda marxista mais tradicional (leia-se: stalinista) que predominou em grande parte do sculo XX na Amrica Latina e Brasil, cujas anlises costumam se circunscrever a um modelo simplificado das relaes entre classes sociais, a dificuldade maior de assimilar Maritegui talvez esteja na relutncia em incorporar as dimenses tnica e racial, no apenas como particularidades histricas acessrias, mas como determinaes fundamentais das formaes sociais perifricas iniciativa essa que levou alguns dos representantes da Terceira Internacional a identificar Maritegui como um pensador populista e negar-lhe o marxismo3. nesse sentido que a autora de uma das primeiras teses acadmicas sobre Maritegui defendida em 2004 numa universidade brasileira a qual pode ser lida proveitosamente como uma introduo a diversos aspectos do pensamento mariateguiano, desde a sua crtica artstico-literria a suas anlises marxistas da realidade peruana, nas quais incorporou a questo indgena, passando pelo seu papel de organizador sindical dos trabalhadores peruanos e dirigente partidrio socialista constata a existncia de um assombroso silncio devotado pela cultura socialista brasileira a esse pensador clssico do marxismo latino-americano, tanto do ponto de vista do tratamento crtico-analtico de sua obra, como do ponto de vista da publicidade de seus textos (Escorsim, 2006: 10). No que diz respeito a esse ltimo ponto, novas coletneas dos escritos de Maritegui esto sendo publicadas. As mais recentes dos ltimos cinco anos so: Maritegui sobre educao (2007), As origens do fascismo (2010a) e Revoluo russa: histria, poltica e literatura (2012), com organizao e introduo de Luiz Bernardo Perics; Defesa do marxismo (2011), introduzida e organizada por Yuri Martins Fontes. Apesar disso, um esforo mais sistemtico de publicao dos escritos de Maritegui, nos moldes de uma edio crtica

    3 No processo de bolchevizao dos partidos comunistas (leia-se: o enquadramento dos PCs direo do

    partido sovitico) que a Terceira Internacional stalinizada implementa, a partir de 1929/1930, a herana mariateguiana esconjurada pelos novos dirigentes do PC peruano: j num documento de dezembro de 1933 (Sob a bandeira de Lnin!, parcialmente disponvel em Alimonda, 1983), o partido d incio campanha contra o mariateguismo, que perdurar por toda a dcada e cujo lder ser Eudcio Ravines. [...] a campanha contra o mariateguismo ganhou a chancela do oficial Movimento Comunista Internacional, quando um respeitado historiador russo, especialista em Amrica Latina e destacado assessor do Bir Latino-Americano da Terceira Internacional, V. M. Miroshevski, publicou o ensaio O populismo no Peru: o papel de Maritegui na histria do pensamento social latino-americano (a verso castelhana saiu na revista Dialctica, La Habana, vol. 1, n 1, maio-junho de 1942) (Escorsim, 2009: 48).

  • de suas obras completas traduzidas para o portugus, ainda est por ser feito4. Essa tarefa seria de fundamental importncia num projeto mais amplo de redefinio das pesquisas acadmicas nas reas das Cincias Sociais, Letras, Pedagogia, Histria, Economia e Servio Social em direo a um dilogo mais estreito entre Brasil e Amrica Latina, ou seja, a esforos de investigao menos pautados por parmetros eurocntricos de avaliao de nossas respectivas formaes sociais. Nesse caso, uma publicao das obras completas em portugus no deveria se pautar por critrios mercadolgicos e, sim, pela necessidade de intercmbio cultural entre Brasil e outros pases latino-americanos, como meio de fortalecer uma identidade poltica comum, antagnica dominao dos centros imperialistas. No que se refere ao primeiro ponto, o tratamento crtico-analtico da obra de Maritegui supe profundas mudanas polticas, tticas e estratgicas, e tericas na esquerda latino-americana, j que o autor dos Sete ensaios no se limitou a transplantar os esquemas de interpretao da evoluo histrica dos povos europeus, caracterstica marcante dos Partidos Comunistas de orientao stalinista da Amrica Latina. Sob esse prisma, talvez o processo de latino-americanizao do marxismo explique o retorno a Maritegui e no a mera apreenso intelectualista das ideias do marxista peruano que poderia explicar uma maior preocupao das esquerdas latino-americanas com as lutas sociais de seus povos. Uma anlise das mudanas verificadas nas esquerdas marxistas latino-americanas a partir dos anos de 19705, quando se percebe uma crescente incorporao por intelectuais brasileiros dos escritos de Maritegui, superaria os objetivos do presente trabalho e demandaria um esforo mais amplo de reconstruo histrica muito alm de nossas atuais possibilidades de investigao sobre a diversidade de situaes concretas existentes na Amrica Latina. Nossos objetivos so mais modestos e se restringem a sugerir hipteses para explicar, primeiro, as razes do assombroso silncio em relao a Maritegui na 4 Quanto publicao das obras completas, informa Alberto Aggio (2006) que um trabalho desse tipo est

    sendo realizado pela famlia de Maritegui desde a dcada de 1950, sem, no entanto, ter sido concludo. Ao mesmo tempo, tais obras completas no incluem os escritos do perodo de sua trajetria intelectual que o prprio autor intitulava como Idade da Pedra, isto , antes de sua viagem para a Europa em 1919. Em nossas buscas mais recentes no encontramos referncias mais precisas de como andam as compilaes dos textos de Maritegui, a no ser a indicao de um levantamento de artigos jornalsticos do perodo da Idade da Pedra (Escorsim, 2006: 55) e a j mencionada publicao de suas obras completas. No site do Partido Comunista do Peru podem ser consultadas as obras completas de Maritegui: http://www.patriaroja.org.pe/docs_adic/obras_mariategui/. 5 Para um conhecimento mais aprofundado sobre as mudanas e diversidade de posies na esquerda

    marxista latino-americana, ver Michael Lwy, Marxismo na Amrica Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais, So Paulo, Fundao Perseu Abramo, 2003; Giancarlo Santarelli (org.), Il nuovo marxismo latinoamericano, Milo, Feltrinelli, 1970.

  • cultura socialista brasileira com notveis excees (Perics, 2010), tendo sido esse silncio bastante expressivo entre os anos que vo da fase final de sua produo intelectual, conhecida como a Idade da Revoluo (1923-1930), at meados da dcada de 1970 e, segundo, os condicionantes histricos do renovado, embora ainda tmido, interesse pela sua obra no ltimo quartel do sculo XX, ao lado do recente boom representado pelo estmulo editorial s publicaes de seus escritos e pela proliferao em nosso meio acadmico de comentrios sobre aspectos particulares do pensamento do marxista peruano6. Nesse sentido, o primeiro impulso para uma divulgao mais efetiva da obra de Maritegui no Brasil pode ser tomado como a traduo para o portugus dos Sete ensaios e sua publicao em 1975 pela Editora Alfa-mega. O livro conteve um prefcio redigido por Florestan Fernandes, em que procurou argumentar pela incluso da referida obra entre os principais clssicos do pensamento latino-americano (Fernandes, 2004: XIII). Talvez tenha sido essa circunstncia que levou o socilogo peruano Anbal Quijano a mencionar Florestan Fernandes, na qualidade de prefaciador da primeira edio dos Sete ensaios no Brasil, como um dos responsveis pela introduo de Maritegui no universo socialista brasileiro (Quijano, 1996: 68). Alm do cientista social paulistano, outros destacados intelectuais marxistas brasileiros Carlos Nelson Coutinho, Alfredo Bosi, Cludio Nascimento, Jorge Schwartz, Jos Paulo Netto e Leandro Konder (Escorsim, 2006: 41) foram responsveis pela compreenso da originalidade e importncia do pensamento de Maritegui para as investigaes sobre as especificidades do capitalismo latino-americano. No entanto, se o exemplo de Florestan Fernandes for tomado como um caso paradigmtico da radicalizao poltica pela qual

    6 Alm das coletneas dos escritos de Maritegui j mencionadas, a editora Expresso Popular publicou

    recentemente, acompanhada por uma introduo de Rodrigo Montoya Rojas, importante estudioso dos movimentos indgenas sul-americanos, a segunda edio brasileira dos Sete ensaios de interpretao da realidade peruana (2010). Um indicativo do crescente interesse pela reflexo mariateguiana so as comunicaes apresentadas em eventos acadmicos de projeo nacional e internacional. Num rpido bosquejo, encontramos os trabalhos de Andr Kaysel, Nao e revoluo: a teoria da revoluo em Caio Prado Jr. e Jos Carlos Maritegui, 35o Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 2011; Sydnei Ulisses de Melo Junior, Mito e religiosidade popular no pensamento poltico de Jos Carlos Maritegui e Antonio Gramsci: notas para uma pesquisa, VII Colquio Internacional Marx Engels, Campinas, 2012; Enrico Paternostro Bueno da Silva, O marxismo de Jos Carlos Maritegui, VII Colquio Internacional Marx Engels, Campinas, 2012; Ricardo Neves Streich, Os ecos da Revoluo Mexicana na obra de Jos Carlos Maritegui, VII Colquio Internacional Marx Engels, Campinas, 2012. Todos esses trabalhos foram apresentados por mestrandos de universidades brasileiras o que indica uma renovao da produo acadmica no campo do marxismo, talvez por influncia dos movimentos sociais da atualidade no Brasil e Amrica Latina, os quais ampliam os horizontes do debate sobre as classes sociais pela incorporao das lutas e viso contestatria de outras categorias (indgenas, negros etc.) marginalizadas do processo histrico de constituio e desenvolvimento das formaes sociais perifricas.

  • passou o pensamento socialista brasileiro na dcada de 1970, simultaneamente como crtica s ideologias nacional-desenvolvimentistas dos anos 50 em suas formulaes cepalinas e reao contra a ditadura civil-militar instaurada em 1964, os condicionantes histricos desse renovado interesse pelos escritos de Maritegui no Brasil passam pela compreenso do modo como nossa esquerda marxista passou a reconsiderar, ideolgica e teoricamente, as caractersticas especficas do capitalismo nas formaes sociais perifricas e os rumos da revoluo na Amrica Latina. Muitos setores das esquerdas marxistas, brasileira e latino-americanas, abandonaram a perspectiva de uma revoluo democrtico-burguesa e assumiram que o momento atual j seria o da revoluo socialista. Essa tomada de posio possua fortes afinidades com o pensamento de Jos Carlos Maritegui, que apontava de modo pioneiro na dcada de 1920 a prioridade da revoluo socialista nos pases de origem colonial submetidos dominao imperialista da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Os pases latino-americanos, por conta do carter pr-imperialista das suas burguesias nacionais, teriam perdido o tempo histrico da revoluo democrtica nos moldes estreitos da transformao capitalista. A alternativa seria, portanto, uma revoluo socialista que aprofundaria as transformaes democrticas dentro da ordem burguesa capazes de conduzir a uma ruptura com o prprio modo de produo capitalista. As mudanas de horizonte ideolgico e terico nas esquerdas latino-americanas a partir das dcadas de 1960 e 70, devido em parte emergncia de ditaduras militares em seus respectivos pases, produziram fortes identidades e aproximaes entre as distintas interpretaes das formaes capitalistas latino-americanas de cientistas sociais brasileiros, chilenos, argentinos, peruanos, colombianos, haitianos, cubanos e de outras paragens da Amrica Latina. Por isso, acompanhar como se processou no Brasil a recepo dos escritos de Maritegui potencializa ao mesmo tempo a possibilidade de perceber as afinidades entre as novas nfases tericas em alguns dos trabalhos historiogrficos, sociolgicos e polticos aqui produzidos nos anos 70 e as investigaes independentes de outros cientistas sociais latino-americanos pertencentes ao mesmo corte geracional e igualmente importantes no desenvolvimento de suas respectivas disciplinas em seus pases de origem, reconstruindo-se um captulo de imensa relevncia na histria intelectual brasileira, hoje esquecido pela predominncia de perspectivas eurocntricas e norte-americanizadas em nossos centros universitrios de pesquisas sociais. Nesse sentido, o incio de uma divulgao mais direta e sistemtica da obra de Maritegui em

  • nosso meio cultural iria coincidir com a convergncia entre as descobertas e resultados das atividades de pesquisa de socilogos brasileiros como Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Francisco de Oliveira, Theotonio dos Santos, dentre outros, e as de pensadores como Pablo Gonzlez Casanova (Mxico), Anbal Quijano (Peru), Orlando Fals Borda (Colmbia), Grard Pierre-Charles (Haiti), Jos Nun (Argentina), Julio Le Riverend e Moreno Fraginals (Cuba), bastante prximos entre si em suas interpretaes da realidade latino-americana, no obstante a diversidade em suas orientaes ideolgicas, formao acadmica, influncias tericas, posies polticas e trajetrias intelectuais7. Dado que as teses muito antes esposadas por Jos Carlos Maritegui, tomando como referncia a fase de transio e consolidao do capitalismo monopolista e da consequente dominao imperialista (leia-se: estadunidense) pela qual passava a sociedade peruana da dcada de 1920, serviram de inspirao a muitos desses cientistas sociais, uma rpida interpretao desse contexto intelectual, em que setores da esquerda latino-americana abandonam suas antigas teses da revoluo democrtico-burguesa, ajudar a compreender os condicionantes histricos do incio de um debate mais amplo sobre o pensamento do autor dos Sete ensaios entre intelectuais marxistas brasileiros. A maior divulgao dos textos de Maritegui no Brasil coincide com o enfraquecimento da hegemonia stalinista nos PCs da Amrica Latina, em especial aps o XX Congresso do Partido Comunista da Unio Sovitica (PCUS) em 1956, e com as crescentes crticas s ideologias cepalinas do nacional-desenvolvimentismo, cada vez mais comuns nas cincias sociais brasileiras produzidas sob o impacto da ditadura militar (1964) e do fechamento s alternativas democrticas representadas pelas alianas polticas em prol das reformas de base, um sinal decisivo de que a transformao capitalista em pases de capitalismo dependente se pautava pela exacerbao da dominao de classe da burguesia.

    Valendo-se ainda do artifcio metodolgico de considerar a evoluo intelectual de Florestan Fernandes como um caso paradigmtico de redefinio dos rumos do pensamento crtico e militante no Brasil (isto , um pensamento vinculado contestao da ordem capitalista e construo de uma alternativa socialista), ser preciso examinar mais detidamente o significado da mudana de nfase nos focos de interesse das

    7 Nos casos de Anbal Quijano e Pablo Gonzlez Casanova, pudemos encontrar uma influncia direta do

    pensamento de Jos Carlos Maritegui. A esse respeito, ver Anibal Quijano, Jos Carlos Maritegui: textos bsicos, Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1995 e Pablo Gonzlez Casanova, Os pioneiros do marxismo na Amrica Latina, in Paulo Barsotti e Luiz Bernardo Perics (orgs.), Amrica Latina: histria, ideias e revoluo, 2. ed., So Paulo, Xam, 1998.

  • investigaes histrico-sociolgicas das dcadas de 1940 e 50 ento permeadas pelos limites tericos e polticos dos horizontes nacional-desenvolvimentistas em relao aos anos de 1960 e 70, agora caracterizadas por um esforo mais substancial de desmascaramento ideolgico da verdadeira natureza das formaes sociais dos pases de capitalismo dependente da Amrica Latina. Como informa o prprio Florestan Fernandes, a agenda de pesquisas que se imps e expandiu-se dos anos de 1930 em diante aos cientistas sociais latino-americanos, tornando-se obrigatria por intermdio de iniciativas da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) e da Comisso Econmica para a Amrica Latina (CEPAL) especialmente na segunda metade do sculo passado, foi a questo do desenvolvimentismo8. Essa temtica iria se desdobrar aos poucos nas reflexes sobre o subdesenvolvimento, os entraves mudana e ao desenvolvimento, a dependncia e o carter do capitalismo perifrico (submetido dominao externa e ao imperialismo), at sofrer uma inflexo determinante em seu momento de culminncia fermentativa na dcada de 70 e, por conseguinte, reconfigurar de maneira radical o conjunto de seus diagnsticos anteriores e de seus pressupostos tericos e polticos. Situando-se no interior desse complexo e produtivo contexto cultural, ele iria dizer muito tempo mais tarde:

    A temtica do desenvolvimentismo expandiu-se no Brasil de 1930 em diante. Mas foi a UNESCO e em seguida a CEPAL que tornaram o assunto obrigatrio nas reflexes e nas investigaes dos cientistas sociais. J em 1960 fui ao Mxico para fazer parte de uma conferncia sobre os aspectos sociais do desenvolvimento. Da em diante, escrevi vrios trabalhos, que foram da resistncia mudana e do subdesenvolvimento dependncia e forma de capitalismo que se irradia a partir da dominao externa ou do imperialismo. (Fernandes, 1994: 9).

    Ainda de acordo com Fernandes, as indagaes estimuladas pelos horizontes ideolgicos e utpicos da conscincia social desenvolvimentista possuram uma grande importncia cultural, cientfica e poltica na Amrica Latina no tocante ao incentivo do exerccio crtico de anlises e explicaes macrossociolgicas que, ao vincularem entre si psicologia, antropologia, sociologia, economia e histria, favoreciam a

    incorporao da perspectiva marxista ao trabalho acadmico e abriam espao para uma militncia intelectual que conduzia os acadmicos para o debate pblico e o engajamento 8 Sobre o papel da CEPAL nos debates sobre o desenvolvimento, ver Fernando Henrique Cardoso, As

    idias e seu lugar, Petrpolis, Vozes, 1993 e Guido Mantega, A economia poltica brasileira, 8. ed., Petrpolis, Vozes, 1995.

  • poltico (Fernandes, 1994: 9). Era como se aos poucos as teias invisveis, que aprisionavam as sociedades subdesenvolvidas da periferia capitalista aos dinamismos econmicos internacionais e hegemonia dos principais centros imperiais e sua superpotncia, fossem sendo desvendadas e desmascaradas pela perspectiva objetiva de uma investigao cientfica voltada para a mudana social progressista9. Ora, se a conscincia cientfica de colorao socialista e inclinaes timidamente marxistas da dcada de 1950 j comeara a decifrar os diversos empecilhos autodeterminao das naes pobres em decorrncia de sua dependncia aos dinamismos econmicos internacionais e aos centros imperiais, o substancial de suas reflexes ainda se concentrava excessivamente no exame dos requisitos extraeconmicos, sociais e histricos, para o chamado desenvolvimento econmico auto-sustentado (Fernandes, 1994: 9)10. Acreditava-se como uma alternativa para o Brasil o desenvolvimento autnomo e auto-sustentado, apesar dos obstculos externos da dominao imperialista j identificados pelas investigaes histricas e sociolgicas. Em outras palavras, ainda constitua uma hiptese a ideia de que estava em curso no Brasil a revoluo burguesa em moldes clssicos, corporificados nos casos ingls, francs e norte-americano, de modo a fomentar a iluso de uma futura articulao entre crescimento econmico acelerado, democracia poltica, reformas de base e a conquista de diversas garantias sociais e direitos civis. Para tanto, a descoberta dos fatores extra-econmicos impeditivos do desenvolvimento serviria de estmulo a tentativas de controle racional dos ritmos histricos de desencadeamento e acelerao da revoluo burguesa pelas foras sociais supostamente empenhadas em sua concretizao. Setores da intelligentsia crtica brasileira identificavam como uma dessas foras sociais justamente a burguesia nacional, progressista e antiimperialista. Ainda que alguns cientistas sociais apresentassem opinies crticas em relao s perspectivas desenvolvimentistas e no pudessem ser enquadrados com exatido nesse campo ideolgico, tais como Florestan Fernandes e Costa Pinto, eles no ficaram alheios a essa grande agenda de debates e aceitaram certos

    9 Desmascarava-se a hegemonia externa e as funes dos dinamismos internacionais da economia

    mundial, como modalidades de associao nas quais as Naes Pobres entravam no rateio do excedente econmico mais como vtimas, que como beneficirias dos parceiros ricos (Fernandes, 1994: 9). 10

    Reconhecendo o valor das abordagens desenvolvimentistas, iria dizer o socilogo brasileiro: A importncia terica dessas abordagens era e evidente. Ela permitia compreender que o desenvolvimento econmico auto-sustentado exigia certos requisitos sociais ou premissas histricas, que no podiam ser transplantados com as tcnicas, as instituies empresariais, educacionais ou de pesquisa e os valores sociais assimilados (Fernandes, 1994: 9).

  • elementos e pressupostos de tais anlises, em especial a viso de aprofundamento de uma revoluo burguesa em atraso e que seria concretizada pela realizao de reformas democrticas nas estruturas sociais de distribuio da riqueza, do prestgio, da cultura e do poder no conjunto da sociedade brasileira.

    As perspectivas de anlise, alimentadas pelas ideologias nacionalistas e desenvolvimentistas, seriam abandonadas em consequncia dos impactos da ditadura civil-militar de 1964 sobre os horizontes polticos e tericos da esquerda marxista brasileira. Mas esse abandono no seria repentino, dado que as novas circunstncias histricas ainda levariam um tempo para serem assimiladas nos planos terico e prtico de redefinio dos caminhos a serem trilhados, no mdio e longo prazo, pela mudana social revolucionria. A esse respeito, ainda em 1965 a revoluo brasileira teria sido conceituada por Florestan Fernandes como um equivalente da revoluo burguesa na Europa e nos Estados Unidos (Fernandes, 1994: 166)11. No entanto, o golpe militar e a acelerao do processo de incorporao do Brasil ao capitalismo monopolista um processo cujas razes podem ser buscadas na atuao dos governos nacionalistas e desenvolvimentistas da dcada de 1950 iriam surgir como os condicionantes histricos mais imediatos para que a esquerda marxista pudesse desvendar o carter autocrtico e antidemocrtico do desenvolvimento capitalista dependente, abandonando as iluses da aliana com a burguesia nacional. Dentre algumas das obras mais representativas dessa nova fase, poderamos citar A revoluo brasileira (1966), de Caio Prado Jr., e A revoluo burguesa no Brasil (1975), de Florestan Fernandes. Tomando como parmetro os casos clssicos da revoluo burguesa, este ltimo iria traar a particularidade da revoluo brasileira nos seguintes termos:

    As revolues tpicas so a francesa, a inglesa e a norte-americana. As revolues alem e japonesa so atpicas, no desencadeiam revolues burguesas clssicas, face debilidade de suas burguesias. Na Alemanha, a revoluo poderia ter sido tpica. Porm, para usar a expresso de Marx e de Engels, sua burguesia era covarde e cedeu terreno, preferindo uma aliana com a casa imperial e com a nobreza, realizao de sua liberdade atravs do parlamento. Esse o sentido do trabalho que desenvolveram sobre a revoluo social na Alemanha. Agora, no Brasil, como aconteceu na Rssia no passado, houve um

    11

    Eu mesmo, certa vez, num discurso como paraninfo, cheguei a afirmar que ns, gostssemos ou no, tnhamos uma revoluo burguesa em curso e, portanto, quisssemos ou no, teramos que apoi-la para avanar. No para realizar os objetivos da burguesia, mas para fortalecer o processo de negao da ordem. [...] Isso foi em maro de 1965. (Conceituei a revoluo brasileira como o equivalente da revoluo burguesa na Europa e nos Estados Unidos) (Fernandes, 1994: 166). O discurso a que se refere o socilogo paulistano, que se intitula A revoluo brasileira e os intelectuais, pode ser encontrado em Florestan Fernandes, Sociedade de classes e subdesenvolvimento, 2. ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1972.

  • momento de iluso de que havia uma revoluo burguesa em processo. De fato havia, mas era atpica. O prprio Lnin, a quem no se pode negar a categoria de revolucionrio, chegou a escrever um pequeno ensaio intitulado A Nossa Revoluo, sobre a revoluo burguesa russa. Foi, mais tarde, com as Teses de Abril, em funo das reflexes que fez, na proximidade do momento crtico da desagregao da ordem, que chegou concluso de que a burguesia tinha perdido sua oportunidade histrica. Foram as Teses de Abril que lhe forneceram a conscincia de que a revoluo j no era burguesa, mas proletria. Ns repetimos a mesma iluso que houve na Rssia. (Fernandes, 1994: 166).

    semelhana dos casos atpicos representados pela Alemanha, Itlia, Rssia e Japo, e diferentemente dos exemplos clssicos tradicionalmente associados Inglaterra, Frana e Estados Unidos, a revoluo burguesa no Brasil no se caracteriza por um processo guiado pelo mpeto radical, transformador e revolucionrio de uma burguesia conquistadora, mas pela composio feita pelo alto com as classes dominantes da antiga ordem contra qualquer veleidade de rebelio das classes trabalhadoras e seus potenciais aliados nas camadas populares. Os setores da burguesia brasileira vinculados transio para o capitalismo monopolista, a fim de resguardarem suas posies nas estruturas de expropriao dual do excedente econmico (isto , sob a forma de extrao da mais-valia pelas burguesias interna e externa) e de dominao poltica de um pas capitalista de origem colonial e dependente, se associaram aos interesses imperialistas das naes capitalistas centrais e de sua superpotncia, os Estados Unidos, para garantir uma reserva de poder poltico, ideolgico e militar contra as ameaas de insubordinao das classes trabalhadoras e demais camadas populares, ento submetidas a novos padres de superexplorao do trabalho, marginalizao e concentrao de riquezas no topo da sociedade civil. A burguesia brasileira revela plenamente a sua face particularista, antinacional e pr-imperialista12. No haveria, portanto, uma burguesia nacional em que os trabalhadores e a massa de despossudos do campo e da cidade pudessem mobilizar no combate ao imperialismo. A revoluo que ento se afigurava no era, sob esse ponto de vista, uma revoluo nacional-democrtica e antiimperialista como a haviam caracterizado o Partido Comunista do Brasil (PCB) e demais setores da esquerda

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    Se a revoluo brasileira possui fortes semelhanas com os casos atpicos, deve-se prevenir que suas diferenas so tambm no menos importantes. Em relao aos casos atpicos, iria observar Florestan Fernandes que [...] a revoluo burguesa no Brasil no se deu pela burguesia nacional, mas pelo capital monopolista. [...] o imperialismo que tem o papel hegemnico e realiza as tarefas histricas dos prussianos ou ento da dinastia Meiji. O capital estrangeiro moderniza mas, ao mesmo tempo, retira da modernizao o seu contedo e sentido revolucionrio (Fernandes, 1994: 166-167). Nesse sentido, poderamos concluir que no Brasil e de modo geral nos pases de origem colonial, perifricos e dependentes da Amrica Latina a revoluo burguesa seria ainda mais atpica, pois seu centro de irradiao e sustentao seria externo.

  • nacionalista, em especial os intelectuais agrupados em torno do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Ao contrrio, a concretizao das revolues burguesas no Brasil e na Amrica Latina se processou mediante a acelerao do crescimento econmico como negao da autonomia nacional, dada a crescente incorporao dos pases de origem colonial e de capitalismo dependente esfera dos interesses imperialistas dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. As revolues burguesas em atraso criavam to somente as condies para a atuao do capital monopolista externo nos pases capitalistas dependentes, subordinando a organizao de suas economias internas s necessidades de acumulao das multinacionais e conglomerados internacionais situados nos centros hegemnicos. As reformas de base, que constituam as bandeiras de luta das foras progressistas da poca e poderiam trazer benefcios mais gerais para a maioria da populao brasileira, no contavam nos clculos das burguesias nacionais e seus scios estrangeiros. As anlises anteriores, motivadas pelos objetivos polticos do nacionalismo desenvolvimentista, no seriam capazes de estabelecer tal caracterizao das mudanas histricas em curso e, por isso, continuariam a insistir numa cada vez mais improvvel aliana ttica e estratgica com os setores progressistas da burguesia nacional. Contudo, a autocrtica de setores da prpria esquerda socialista brasileira de orientao marxista, que se depreende da utilizao de Florestan Fernandes como um exemplo paradigmtico da inteligncia crtica latino-americana atuante nas dcadas de 1960 e 70, ajudou a provocar o desmascaramento ideolgico do carter conservador e antidemocrtico das transformaes do capitalismo dependente na fase de transio e consolidao do capitalismo monopolista em escala mundial. Tal reviravolta se deu em grande parte como crtica s formulaes cepalinas e rejeio das prticas populistas e demaggicas do nacional-desenvolvimentismo. Ao mesmo tempo, a elaborao dessa perspectiva crtica foi o fruto coletivo de uma gerao de cientistas sociais do nosso subcontinente que, trabalhando muitas vezes sem conhecer as concluses de seus colegas de outros pases, produziram entre as dcadas de 1960 e 70 imagens muito semelhantes sobre as especificidades histricas de seus respectivos pases e da Amrica Latina. Florestan Fernandes nos fornece um resumo desse quadro intelectual nos seguintes termos:

    Embora tais preocupaes se evidenciassem na dcada de 1950, foi nas dcadas de 1960 e 1970 que elas atingiram o clmax cientfico e poltico. O desmascaramento das mistificaes engendrou um clima propcio para uma profunda reviso da

  • histria real (no a oficial) dos pases da Amrica Latina. No Brasil, na Argentina, no Mxico, no Chile, na Colmbia, no Peru, na Bolvia e em outras naes apareceram reconstrues da histria, do passado e do presente que destoavam das obras anteriores, embora as aproveitassem. Autores que realizavam suas investigaes em condies independentes (e, mesmo, ignorando o que se passava em outros centros anlogos) empreendiam descobertas idnticas ou convergentes, que possuam as mesmas implicaes tericas e prticas. Esse foi um momento de grandeza intelectual, em seguida estrangulado pela invaso de brasilianistas, que visavam reduzir as descobertas e os conhecimentos originais acumulados em common sense e em banalidades passageiras e separar a dominao externa do imperialismo, eliminando este conceito. No obstante, os livros publicados ficaram como marcos de referncia da anlise macro nas cincias sociais, demonstraram a capacidade inventiva dos cientistas sociais latino-americanos e fomentaram o esplendor do pensamento crtico, por vezes ligado ao poltica militante radical, da reforma estrutural ou de intenes revolucionrias. (Fernandes, 1994: 10).

    Esse contexto intelectual ajuda a explicar o novo impulso incorporao de Jos Carlos Maritegui no debate socialista brasileiro dos anos 70. Em primeiro lugar, as perspectivas tericas que rejeitavam a aplicao dos modelos simplistas de evoluo histrica dos modos de produo na Europa realidade latino-americana, uma das heranas dogmticas do Stalinismo aos partidos comunistas da Amrica Latina, possuam afinidades com a proposta poltica e ideolgica de Maritegui de produzir um pensamento revolucionrio a partir das condies concretas do Peru. Em segundo lugar, a referida gerao de cientistas sociais latino-americanos considerava Maritegui, ao lado de outros pensadores fundamentais, como um dos precursores das concepes que s iriam ser desenvolvidas posteriormente na segunda metade do sculo passado, tal como a percepo de que as supostas burguesias nacionais seriam aliadas e scias menores das naes imperialistas e da superpotncia mundial, os Estados Unidos. nesse sentido que Florestan Fernandes apresenta Maritegui como um pioneiro em relao s concluses de cientistas sociais latino-americanos, de filiaes marxistas, que somente seriam alcanadas entre as dcadas de 1960 e 70. Numa rpida referncia s explicaes sociolgicas mais radicalizadas produzidas a partir dos anos 1940 sobre a Amrica Latina, contida num ensaio escrito na fase final da ditadura civil-militar no Brasil, ele iria tecer o comentrio a seguir:

    No pretendo, nestra breve incurso, realizar um balano bibliogrfico e, tampouco, marcar o que se logrou descobrir em vrios pases da Amrica Latina, atravs da investigao cientfica engajada. surpreendente o quanto se avanou, dos fins da dcada de 1940 em diante, em uma obra consistente de reviso da explicao na histria, que no se unificou luz de uma teoria mas levou a resultados

  • francamente convergentes e reforou de modo considervel uma linha de trabalho intelectual que teve seus grandes pioneiros em Jos Carlos Maritegui13, Caio Prado Jnior e Srgio Bagu. (Fernandes, 1981: 72).

    Uma recepo mais consistente das ideias de Maritegui no Brasil comea a ocorrer, de fato, a partir do ltimo quartel do sculo XX. Esse processo foi capitaneado por intelectuais socialistas que se distanciavam da ortodoxia stalinista e avanavam reflexes sobre o carter especfico e particular do capitalismo nos pases perifricos e dependentes da Amrica Latina. o caso j discutido de Florestan Fernandes14. Mas esse seria tambm o caso de intelectuais e militantes socialistas como Joo Pedro Stedile e Michael Lwy, que travaram contato com textos de Maritegui nos anos 70 (Perics, 2010: 346-347). Ao preparar uma coletnea sobre o marxismo na Amrica Latina, Lwy iria incluir importantes escritos de Maritegui. Publicada na Frana no ano de 1980, o livro foi traduzido para o portugus e lanado aqui somente na dcada de 90. Nesse perodo so poucas as fontes e referncias sobre Maritegui no Brasil, podendo ser lembrados, alm dos textos j citados, os seguintes livros e artigos em ordem cronolgica: o artigo de Jos Paulo Netto (1980), O contexto histrico-social de Maritegui, publicado na revista Encontros com a Civilizao Brasileira; pela editora Brasiliense, Hctor Alimonda (1983) publicou um pequeno livro intitulado Jos Carlos

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    No acervo particular de Florestan Fernandes, localizado na Biblioteca Comunitria da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar), exemplares dos livros de Maritegui podem ser encontrados grifados e com diversas anotaes margem. Como um forte indicativo do papel de pioneiro desempenhado pelo revolucionrio peruano em relao ao pensamento socialista latino-americano dos anos 1960 e 70, escreve Fernandes ao final do escrito de Maritegui Punto de vista antiimperialista: Provavelmente = o escrito mais pertinente e criador de M. [Maritegui] = suas concluses s se tornariam empiricamente evidentes para os imperialistas com o relatrio Rockffer [Rockfeller]; e globais para a esquerda rev. [revolucionria] na dcada de 60 um antecipador. O referido texto datado de 1929, tendo sido reproduzido em Jos Carlos Maritegui, Ideologia y poltica, Lima, Amauta, 1979. 14

    Outras duas referncias de Florestan Fernandes ao autor dos Sete ensaios podem ser encontradas na sua famosa entrevista publicada sob o formato de livro, A condio de socilogo (1978: 33-36), em que compara Maritegui com os modernistas brasileiros, e num artigo lanado originalmente em 1994 no Anuario Mariateguiano, reproduzido posteriormente na sua coletnea de retratos polticos de intelectuais revolucionrios, A contestao necessria (Fernandes, 1995), afirmando a atualidade das ideias do marxista peruano e enfatizando sua firmeza ideolgica que no o levaria a renegar a adeso ao socialismo diante dos abalos provocados nas convices de muitos comunistas histricos pela queda do Leste Europeu em fins da dcada de 1980 e incio dos anos 90. Alm disso, na condio de coordenador da Coleo Grandes Cientistas Sociais da editora tica, o socilogo brasileiro acolheu no volume 27 uma seleo de escritos de Maritegui sobre poltica elaborada pelos historiadores Manoel L. Bellotto e Anna Maria M. Corra (1982). Uma comparao mais aprofundada entre Jos Carlos Maritegui e Florestan Fernandes, aproximando suas respectivas interpretaes das realidades peruana e brasileira, em relao a temas como colonialismo, liberalismo etc., seria objeto de uma interessante tese acadmica. A esse respeito, Hctor Alimonda (1983: 86), em A Revoluo Burguesa no Brasil [...] Florestan Fernandes utiliza propostas de Maritegui. Segundo Carlos Guilherme Mota (1998: 18), entretanto, uma tentativa de realizar um paralelo entre Florestan e Maritegui teria sido feita por Alejandro Losada.

  • Maritegui, ao mesmo tempo uma biografia e anlise da obra do marxista peruano; o artigo de Alfredo Bosi (1990), A vanguarda organizada: o marxismo de Maritegui, publicado originalmente na revista Estudos Avanados e depois incorporado coletnea organizada por Dnis de Moraes (2004), Combates e utopias: os intelectuais num mundo em crise. Dois textos de importantes estudiosos do marxismo latino-americano traduzidos para o portugus, ainda nos anos 80, podem ser citados: no oitavo volume da coleo Histria do Marxismo, organizada pelo historiador ingls Eric J. Hobsbawm, podemos encontrar no artigo de Jos Aric, O marxismo latino-americano nos anos da Terceira Internacional, uma seo inteiramente dedicada a analisar o surgimento do marxismo na Amrica Latina com nfase especfica na produo poltica e terica de Jos Carlos Maritegui (Aric, 1987: 447-59); em outro volume da mesma coleo h um artigo de Juan Carlos Portantiero (1983) intitulado O marxismo latino-americano, no diretamente tratando de Maritegui, mas de grande relevncia para compreender o contexto do debate marxista na Amrica Latina, indispensvel, portanto, ao conhecimento das ideias do jornalista peruano. Num intervalo de quase dez anos h uma interrupo nas referncias a Maritegui, que sero retomadas apenas na antologia de escritos sobre a Amrica Latina de Paulo Barsotti e Luiz Bernardo Perics (1998) com um texto do filsofo espanhol radicado no Mxico, Adolfo Snchez Vsquez, debatendo as caractersticas essenciais do marxismo de Jos Carlos Maritegui. Como um reforo a essa retomada do debate mariateguiano, podem ser citadas as seguintes referncias: o terceiro captulo, intitulado Existe um pensamento marxista latino-americano?, do livro de Bernardo Ricupero (2000: 61-91), no qual se encontra uma interessante aproximao entre Maritegui e Caio Prado Jr.; a antologia de textos sobre Maritegui organizada por Enrique Amayo e Jos Antonio Segatto (2002), reunindo ensaios de renomados estudiosos da obra do marxista peruano como Anbal Quijano, Antonio Melis e Ricardo Melgar Bao; o artigo do historiador e cientista poltico Luiz Bernardo Perics (2006), Maritegui e a questo da educao no Peru, publicado na revista Lua Nova. De igual modo, a publicao das antologias dos escritos de Maritegui ganha um novo impulso em dois livros organizados e introduzidos por Michael Lwy e Bernardo Perics (Maritegui, 2005a; 2005b), que seriam sucedidos por cinco novas compilaes (Maritegui, 2007; 2010a; 2010b; 2011; 2012). A referida interrupo na divulgao do pensamento de Maritegui no Brasil, que ocorre na ltima dcada do sculo XX, talvez possa ser explicada simultaneamente pela emergncia de governos neoliberais na

  • Amrica Latina e pela redefinio da esquerda revolucionria latino-americana aps a queda do Leste Europeu. A falncia da hegemonia stalinista nos partidos comunistas da Amrica Latina e as novas exigncias dos movimentos sociais contestatrios da ordem capitalista, de carter campons e indgena, transformaram aspectos do pensamento de Maritegui tais como a proposta de um socialismo indo-americano em bandeiras de luta das esquerdas revolucionrias latino-americanas no alvorecer do sculo XXI. O seu exemplo convida, pois, os marxistas na Amrica Latina a desenvolverem investigaes concretas da situao concreta de suas formaes sociais, com o objetivo de delinear os caminhos da revoluo socialista em escala continental e em consonncia com os movimentos contestatrios tambm no plano internacional.

    O socialismo indo-americano e os dilemas do marxismo na periferia

    Um dos principais dilemas do marxismo latino-americano e dos marxismos perifricos em geral se concentra nas dificuldades de estabelecer, na produo do conhecimento de cada situao concreta, as necessrias mediaes dialticas entre os elementos universais da teoria revolucionria e as caractersticas particulares das realidades locais. Esse dilema no exclusivo do marxismo. As cincias sociais e as doutrinas polticas, de origem europeia, tambm enfrentam os mesmos dilemas de adaptao s realidades locais. As crticas que podem ser feitas a certas expresses do pensamento marxista na Amrica Latina, sia e frica, em termos de colonialismo mental, caberiam igualmente a determinadas emanaes do liberalismo e, em geral, ao modo de cultivo institucionalizado das cincias sociais nas sociedades perifricas e dependentes. No caso do marxismo, entretanto, as distores da dependncia cultural so mais graves, pois as mudanas revolucionrias nele almejadas passam inevitavelmente pelo exame das condies histricas especficas de cada formao social. Dado que no faz parte da lgica poltica do liberalismo a proposta de subverso do estado de coisas existentes, pelo menos quando se supe que as liberdades individuais e a cidadania so respeitadas no mbito da convivncia internacional, as relaes de poder e dominao nos nveis culturais, econmicos, polticos e militares entre naes centrais e perifricas estariam distantes do alcance de suas indagaes crticas. Se a teoria substitui as diversas realidades locais, tomando-as como meros apndices ou ilustraes de seu contedo universal, as foras sociais capazes de impulsionar a revoluo socialista em contextos

  • histricos no europeus podem ser desprezados e substitudos no plano imaginrio e ideolgico da falsa conscincia pelas foras sociais produzidas nas situaes da luta de classes das naes de desenvolvimento capitalista hegemnico. Na Amrica Latina, a Terceira Internacional representou essa tentativa de aplicao universalista do materialismo histrico, o qual funcionava, numa espcie de ossificao do mtodo dialtico, como um modelo terico pronto e acabado, vlido para todos os tempos e lugares. A obra de Maritegui indicava uma posio diametralmente oposta, um dos motivos de seu ostracismo intelectual nos meios marxistas latino-americanos por longo perodo do sculo XX, apesar das menes a seu nome em discursos de ocasio ou de simples convenincia poltica. Seu objetivo, ao contrrio, foi o de realizar uma anlise da formao social peruana e, por conseguinte, latino-americana, processada criadoramente com os recursos heursticos do marxismo (Escorsim, 2006: 213). Tal esforo, portanto, era o de uma sntese inventiva entre a teoria revolucionria do marxismo e as tradies de luta locais. Dentro do falso dilema representado pela escolha entre um marxismo apenas situado na Amrica Latina e um marxismo de razes latino-americanas, o autor dos Sete ensaios ficaria com o marxismo latino-americano. Tambm situado nesse contexto histrico de hegemonia stalinista na Amrica Latina, Caio Prado Jr. procurou avanar no seu clssico Formao do Brasil contemporneo (2000[1942]) um esforo semelhante de nacionalizao do marxismo, isto , de adequao da teoria marxista s condies concretas da realidade brasileira. Ao mesmo tempo, a aproximao entre o marxismo e a tradio de pensamento radical15 no Peru, em especial o indigenismo peruano (Gonzlez Prada, Luiz Valcrcel etc.), fez com que Maritegui reunisse elementos que o

    15

    Para a conceituao de pensamento radical, ver Antonio Candido, Radicalismos, Estudos Avanados, So Paulo, 4(8): 4-18, jan./abr., 1990. A vinculao do marxismo com uma linha radical de pensamento autctone possibilitaria sua maior aproximao das situaes locais, superando as generalizaes doutrinrias e abstratas ento empobrecedoras da realidade concreta. Nas palavras do famoso crtico literrio paulistano, podemos compreender tais afinidades eletivas entre o marxismo e as tradies de pensamento radical das formaes sociais perifricas: Percebi que havia no Brasil um veio radical que seria interessante explorar, para poder tentar aquilo que foi sempre a aspirao da minha gerao: um pensamento socialista brasileiro que no fosse tributrio das normas impostas pela URSS. Observei que o marxismo foi fecundo na Amrica Latina onde havia pensamento radical. Onde no havia, no foi adiante; o caso do Brasil. Desenvolvi essa idia tambm como contribuio para um aproveitamento adequado do marxismo. medida que o marxismo encontrasse uma linha radical local, ele poderia perder a sua generalidade de doutrina pau-para-toda-obra e se aplicar s condies concretas de cada lugar, como aconteceu em Cuba, no Mxico, no Peru [talvez referncia indireta ao marxismo de Maritegui], no Uruguai, no Chile e como nunca aconteceu no Brasil. Mas recentemente a coisa mudou. Depois de Caio Prado Jr. veio, por exemplo, Florestan Fernandes, que fez, a meu ver, uma notvel extenso do pensamento marxista. [...] Eu imaginava um marxismo adaptado s condies brasileiras, como vejo esboado em Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes. (Candido, 2002: 131-2)

  • conduziriam elaborao de um dos ensaios mais originais de interpretao marxista da realidade peruana e, por extenso, da Amrica Latina. Como mencionamos anteriormente, a realizao desse projeto no seria feita sem confrontos polticos e tericos com os representantes mais puristas do dogmatismo marxista da Terceira Internacional. Nesse sentido, para entender a concepo mariateguiana de socialismo indo-americano e sua importncia atual para os movimentos sociais camponeses e indgenas de luta pela reforma agrria no Brasil e Amrica Latina, apresentaremos resumidamente os principais embates enfrentados por Maritegui com setores da esquerda latino-americana em consequncia de sua rejeio de um marxismo eurocntrico e correlata defesa do aproveitamento das tradies do comunismo incaico para a transformao revolucionria da sociedade peruana. Jos Carlos Maritegui, nascido em 1894 na cidade de Moquega, no teve uma formao escolar regular, tendo interrompido seus estudos, por razes de sade, no nvel equivalente ao do primeiro ano do ensino fundamental. Na adolescncia, aos 14 anos, passa a trabalhar no jornal La Prensa, primeiro como entregador e depois linotipista, procurando ajudar sua me, a costureira Amalia La Chira Ballejos, uma mestia catlica de origem humilde, que fora abandonada pelo pai de Maritegui, Francisco Javier Maritegui y Requejo, um criollo da aristocrtica elite limenha (Perics, 2006). No dispondo de educao formal escolarizada, Maritegui adquiriu de modo autodidata toda sua cultura em leituras realizadas nas oficinas dos jornais e nas conversas com personalidades intelectuais e polticas de sua poca, como Manuel Gonzlez Prada, pensador anarquista e um dos precursores do moderno indigenismo peruano (Perics, 2006). As lacunas em sua formao escolarizada no iriam impedir que Maritegui se tornasse um trabalhador intelectual dos mais profcuos e o autor de uma interpretao marxista para a Amrica Latina identificada entre as mais criativas16. Apesar da brevidade de sua vida, cessada ento aos 35 anos, a publicao de sua obra completa reunida at hoje, como informa Amayo (2002: 11), teve que ser compilada em nada menos do que 28 volumes. S a divulgao de sua correspondncia, mantida sistematicamente com figuras do mundo poltico e intelectual da Amrica Latina e do mundo (Amayo, 2002: 11-2), precisou de dois grandes volumes para poder ser dada a lume. Em vida, contudo, Maritegui s publicou dois de seus livros, La escena 16

    Para dados biogrficos mais especficos sobre Maritegui e suas etapas intelectuais, ver Bellotto e Corra (1982), Perics (2005 e 2006) e Escorsim (2006).

  • contempornea (1925) e sua obra mais famosa, os Siete ensayos (1928), permanecendo parcela substancial de seus textos dispersos por algum tempo em vrias revistas como Mundial, Variedades, Amauta e Labor. A prpria histria da divulgao dos escritos de Maritegui, ao apontar os embates entre suas concepes de socialismo e as faces de orientao stalinista da Internacional Comunista que acabariam por conduzir ao seu ostracismo intelectual e a injustificadas acusaes de populismo, nos ajuda a entender a repercusso atual de suas ideias nas correntes revolucionrias da Amrica Latina. Aps a morte do jornalista peruano, em 1930, iniciou-se logo em seguida o combate no seio do antigo Partido Socialista do Peru fundado em 1928 por Maritegui e logo depois denominado Partido Comunista do Peru por presso direta da Terceira Internacional contra os restos de mariateguismo. nesse sentido que se pode ler no Dictionnaire critique du marxisme: O relatrio preparatrio do Komintern ao VIII Congresso da Internacional Comunista dava conta, em 1935, de uma luta contra os restos de mariateguismo no Partido comunista peruano (Fernandez-Diaz, 1999: 710). Com valor pejorativo, o termo mariateguismo servia para designar, dentre outras coisas, uma espcie de ecletismo, um corpo doutrinal no qual alguns elementos estrangeiros coexistem com certos temas marxistas (Fernandez-Diaz, 1999: 710-1). A prpria designao de Maritegui como marxista era posta em questo poca por seus crticos soviticos, Miroshevski e Kossok, sendo-lhe atribuda mais precisamente a rotulao de populista o que, nos marcos da tradio stalinista, significava aderir aos horizontes polticos da pequena burguesia e ao conservadorismo dos campesinos. A autoridade incontestvel que tais posies assumiam nos quadros marxistas da Amrica Latina foi responsvel, em alguma medida, pelo atraso na divulgao do conjunto da obra do autor dos Sete ensaios. Apenas na dcada de 1950, quando os filhos de Maritegui fundam a editora Biblioteca Amauta, que tal situao comearia a ser contornada. Coletneas de seus escritos como El alma matinal y otras estaciones del hombre de hoy (1950) e La novela y la vida (1955) passariam a ser publicadas. Esse esforo, contudo, s se faria verdadeiramente sentir em 1959, com a edio popular das obras completas de Maritegui numa quantidade realmente expressiva de 50.000 exemplares, compreendendo os dez primeiros volumes (sobre um total de vinte) (Fernandez-Diaz, 1999: 712). Seria, por fim, na dcada de 1970 que o conjunto da obra de Jos Carlos Maritegui iria receber um tratamento mais detido e sistemtico por parte de seus crticos, superando as opinies negativas dos epgonos stalinistas e a mera hagiografia de

  • seus admiradores. O fim dos anos 70 testemunha o surgimento de novas tendncias nos estudos sobre Maritegui. As posies hagiogrficas cedem lugar s anlises que procuram descobrir o movimento especfico de seu pensamento. Os trabalhos se tornam bem mais rigorosos (Fernandez-Diaz, 1999: 711). Esse momento coincide com o enfraquecimento da hegemonia cultural do Stalinismo na Amrica Latina e com a renovao das investigaes nas cincias sociais latino-americanas, em que outras categorias sociais que no apenas a classe, mas tambm o negro, o ndio, os condenados da terra, o colonizado etc., passam a ser mobilizadas nas investigaes sociolgicas empenhadas em descobrir as potencialidades revolucionrias das sociedades perifricas e de capitalismo dependente. No Brasil, por exemplo, setores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) perceberam a importncia da militncia poltica nas periferias das cidades, nas favelas, e da associao com o movimento negro. A obra de Maritegui oferece, nesse sentido, algumas sugestes para a reflexo terica sobre o carter completar da explorao de classe e da dominao tnico-racial nos marcos histricos da expanso imperialista e consolidao do capitalismo dependente17. O seu pensamento estaria, portanto, mais sintonizado com a histria do marxismo e das lutas revolucionrias da Amrica Latina no sculo XXI, do que com os horizontes stalinistas dos partidos comunistas latino-americanos dos anos 20, avanando, por isso, suas investigaes sobre a formao econmico-social peruana em aproximao com outras foras de esquerda atuantes em seu pas e no nosso subcontinente. Aps o retorno de Maritegui da Europa em 1923, onde residira por quase trs anos na Itlia numa espcie de exlio poltico arquitetado pelo governo peruano do

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    No ignoramos alguns limites e insuficincias de Maritegui no tratamento da questo tnico-racial. Em especial, certas referncias preconceituosas em relao aos negros: O escravo negro emprestou ao culto catlico seu sensualismo fetichista, sua obscura superstio; o negro transpirava por todos os seus poros o primitivismo da tribo africana (Maritegui, 2010b: 175); O negro, o mulato, o zambo representam, em nosso passado, elementos coloniais. [...] A raa negra constitui um dos aluvies humanos depositados na costa pela colonizao. um dos estratos, pouco densos ou fortes, sedimentados nas terras baixas do Peru durante o vice-reinado e a primeira etapa da repblica. E, nesse ciclo, todas as circunstncias concorreram para manter sua solidariedade com a colnia. O negro sempre viu com hostilidade e desconfiana a serra, onde no pode se aclimatar nem fsica, nem espiritualmente. Quando se misturou com o ndio foi para abastard-lo, transferindo-lhe sua domesticidade bajuladora e sua psicologia exteriorizante e mrbida. Para com seu antigo amo branco guardou, depois de sua libertao, um sentimento de liberto afeioado (Maritegui, 2010b: 316); A contribuio do negro, vindo como escravo, quase como mercadoria, aparece ainda mais nula e negativa. O negro trouxe sua sensualidade, sua superstio, seu primitivismo. No estava em condies de contribuir para a criao de uma cultura, mas sim, em vez disso, prejudic-la com a influncia crua e vivente de sua barbrie (Maritegui, 2010b: 323). Apesar de tais limitaes, que devem ser levadas em conta numa anlise crtica mais aprofundada, consideramos que o marxista peruano representou inegveis avanos quanto incorporao do elemento tnico-racial no estudo sociolgico das classes sociais.

  • ditador Augusto Legua (Escorsim, 2006: 33), sua atuao poltica numa reao estreita perspectiva classista da orientao stalinista iria ter um rico desdobramento em amplas frentes populares e ideolgicas, destacando-se: (1) a sua atividade como colaborador e conferencista na Universidade Popular Gonzlez Prada, ocasio em que pde debater junto aos trabalhadores sua viso histrica da realidade peruana e internacional; (2) a militncia na faco socialista ligada Aliana Popular Revolucionria Americana (APRA) de Vctor Ral Haya de la Torre, no incio uma ampla frente classista de luta contra o imperialismo e depois desvirtuada em partido poltico de orientao pequeno-burguesa; (3) por fim, seu papel decisivo na fundao do Partido Socialista do Peru (1928), procurando mant-lo vinculado III Internacional no intuito de no dividir as foras revolucionrias mundiais e, ao mesmo tempo, procurando preservar com vigor sua autonomia poltica e terica face s determinaes emanadas do Komintern e sua cpula stalinista. A hegemonia da Terceira Internacional stalinista sobre a Amrica Latina no tocante definio dos rumos, das tticas e estratgia da revoluo nos pases coloniais e semicoloniais se fazia sentir por intermdio de seu Secretariado Latino-Americano. Para evitar uma fragmentao das foras de esquerda e manter a articulao dos grupos revolucionrios no plano internacional, sem sacrificar a autonomia de seu pensamento, Maritegui se sentiu obrigado a fazer pequenas concesses tticas, de um lado, ao aprismo de Haya de La Torre e, de outro, s fraes mais ortodoxas do movimento marxista mundial. A sua viso do socialismo na Amrica Latina, associada s tradies comunitrias indgenas18, foi construda no dilogo com e/ou em oposio a essas duas grandes vertentes revolucionrias. A filosofia da histria que atuava como cimento ideolgico do novo Estado sovitico e de sua Internacional Comunista estava embasada num acentuado evolucionismo de corte positivista e no mecanicismo do esquema sequencial dos cinco modos de produo (escravismo, feudalismo, capitalismo, socialismo e comunismo)19, pelos quais cada sociedade deveria

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    Crticas atuais no campo da antropologia podem ser feitas a certas idealizaes de Maritegui sobre a vida comunitria incaica. A esse respeito, ver Jean Tible, Jos Carlos Maritegui: Marx e Amrica Indgena, Cadernos Cemarx, (6): 97-114, 2009. 19

    Na simplificao stalinista da sequncia geral dos grandes modos de produo da histria da humanidade, o modo de produo asitico presente no famoso Prefcio de Para a crtica da Economia Poltica curiosamente foi omitido. Para Marx, essa sequncia no era uniliniar e, muito menos, deveria necessariamente ser seguida por todas as formaes sociais, como parece ser o caso na sua verso stalinista. Seria oportuno lembrar que essa mesma filosofia da histria de cunho evolucionista, positivista, mecanicista e etapista tambm fazia parte dos horizontes intelectuais do pensamento marxista do Partido

  • necessariamente passar. Assim, as antigas colnias da Amrica Latina, ainda supostamente vivendo no estgio feudal da histria da humanidade, deveriam lutar para realizar a revoluo democrtico-burguesa, contra as oligarquias agrrio-exportadoras vinculadas ao imperialismo. Essa revoluo resultaria da aliana o proletariado e as burguesias nacionais, progressistas e antiimperialistas. Sendo vitoriosa a revoluo nacionalista e democrtico-burguesa, a nova etapa seria a da revoluo socialista na Amrica Latina. Essa foi a orientao geral preconizada pela quase totalidade dos partidos comunistas latino-americanos que se fundaram a partir da dcada de 1920 e no escaparam hegemonia da Unio Sovitica20. A originalidade de Maritegui apesar da presena constante em seus textos de expresses como feudalismo, semifeudal, feudal e feudalidade para descrever a formao social peruana reside na sua recusa a meramente aplicar os modelos de explicao marxista da realidade histrica produzidos no contexto da sociedade europeia. Em suas palavras, o socialismo na Amrica Latina no poderia ser simples cpia ou decalque, mas criao heroica dos povos. A atividade terica dos intelectuais marxistas latino-americanos deveria, por isso, possuir independncia e autonomia em relao s determinaes emanadas da Internacional Comunista, mesmo que se procurasse uma colaborao entre as classes trabalhadoras dos pases socialistas e das naes capitalistas, centrais e perifricas. nesse sentido, como veremos logo a seguir, que ele iria divergir da Terceira Internacional tambm quanto ao carter da revoluo na Amrica Latina. A independncia e autonomia intelectuais do marxista peruano podem ser observadas nos relatrios que elaborou para a Primera Conferencia Comunista Latinoamericana, realizada no ano de 1929 em Buenos Aires. As intervenes de Maritegui, intituladas Punto de vista antiimperialista e El problema de las razas en Amrica Latina, foram lidas por dois de seus companheiros do Partido Socialista do Peru, Julio Portocarrero e Hugo Pesce. Por razes de sade, Maritegui no pde estar presente na conferncia. As diferenas de posies entre o grupo de Maritegui e a Internacional Comunista se devem fundamentalmente a formas distintas de encarar a utilizao do marxismo como ideologia, teoria revolucionria e mtodo de interpretao da realidade. No caso dos porta-vozes da Terceira Internacional, como o dirigente do

    Social Democrata da Alemanha no perodo de hegemonia da Segunda Internacional (1890-1914), tendo na ortodoxia de Karl Kautsky sua mais completa expresso. 20

    Michael Lwy (2003: 9-66) caracteriza de modo mais aprofundado o contexto histrico do surgimento do marxismo na Amrica Latina e do referido perodo de hegemonia sovitica.

  • Partido Comunista da Argentina e do Secretariado Sul-Americano, Vittorio Codovilla, o marxismo se limitava aplicao esquemtica do simplista modelo sequencial dos modos de produo Amrica Latina. Para Maritegui e seus companheiros do Partido Socialista do Peru, ao contrrio, a interpretao marxista consistia no estudo detalhado das condies concretas de cada realidade especfica. O que interessava pesquisar seriam as configuraes efetivas das classes sociais de determinada formao social, sua histria e razes culturais, suas dimenses e fraes diversas, os nveis de conscincia das classes trabalhadoras e das camadas populares, suas potencialidades de oposio s classes burguesas e, por fim, a prpria articulao do poder burgus, nos planos nacionais e internacionais. Segundo tal ptica, portanto, a aplicao de modelos tericos supostamente vlidos para toda e qualquer formao social estaria sempre fadada ao fracasso. So essas diferenas tericas e metodolgicas, que tambm se revelam de cunho poltico-ideolgico, os principais motivos das divergncias com a IC quanto ao carter da revoluo latino-americana e o papel da luta antiimperialista a ser nela desempenhado. Partindo da anlise concreta da situao concreta, segundo Lnin a alma viva, a essncia do marxismo, Maritegui chega concluso de que a revoluo no Peru e na Amrica Latina no seria nacional-democrtica e antiimperialista, j que os setores burgueses em ascenso, a classe mdia e a pequena-burguesia, no representam camadas autenticamente nacionalistas e antiimperialistas, como interpretava no s a Internacional Comunista, mas tambm a APRA. Esses setores sociais como explicava o Amauta21 podiam ser solidrios ao imperialismo em dadas circunstncias e dele tirar proveito. Desse modo, a luta antiimperialista no seria a meta principal, a etapa atual da revoluo peruana, como pensava a Terceira Internacional. Essa luta s poderia ter algum sentido se vinculada revoluo socialista:

    Sem prescindir do emprego de nenhum elemento de agitao antiimperialista, nem de nenhum meio de mobilizao dos setores sociais que eventualmente podem concorrer para esta luta, nossa misso explicar e demonstrar s massas que s a

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    Maritegui identificado, por muitos de seus estudiosos, como o Amauta. Em quchua, essa palavra quer dizer mestre ou sbio. Amauta tambm o ttulo da revista fundada por Maritegui em 1926, cujo propsito era inserir o Peru no panorama dos debates internacionais, por isso publicando textos de Sorel, Trotsky, Barbusse, Romain Rolland, Vallejo e outros (Lwy, 2005: 27). Dessa revista foram publicados ao todo 32 nmeros. A vida dessa publicao apresenta fases distintas. o que se pode inferir da leitura do editorial do segundo aniversrio da revista (setembro de 1928), intitulado Aniversario y balance e reproduzido em Quijano (1995: 125-8). Para uma contextualizao histrica da revista Amauta, ver Leila Escorsim, Maritegui: vida e obra, op. cit., p. 198-211.

  • revoluo socialista ir opor ao avano do imperialismo uma vala definitiva e verdadeira. (Maritegui, 1995b: 206).

    Essa tese, ento exposta no ensaio Punto de vista antiimperialista, acabaria por conduzir ideia de que a revoluo latino-americana, ou seria socialista, ou no passaria de uma caricatura de revoluo. Maritegui s alcanou tal concluso graas ao estudo concreto da formao social peruana vista comparativamente em relao ao conjunto da Amrica Latina, situando-as nas determinaes gerais da economia capitalista mundial a partir de suas relaes com os centros imperialistas e os Estados Unidos. Isso, porm, no o levou a desconsiderar as distines fundamentais entre as condies concretas das diversas formaes nacionais do nosso subcontinente, de modo que no costumava generalizar indevidamente o resultado de suas anlises para o conjunto da Amrica Latina. Cumpriria, a esse respeito, ressaltar a especificidade que atribui revoluo mexicana em sua brilhante anlise poltica desse processo e a diferenciao por ele estabelecida entre pases da Amrica Central e os da Amrica do Sul. O valor de suas anlises estava, portanto, no modo como situava as particularidades histricas e evitava generalizar de forma apressada. Igualmente nesse plano altamente especfico do historicamente particular, Maritegui examina a formao social peruana articulando as percepes da dominao tnico-racial e da explorao de classe. Nesse terreno o pensamento de Maritegui iria se contrapor de maneira muito mais veemente s formulaes da Internacional Comunista, ao apontar que a questo do ndio no Peru no uma questo nacional de autodeterminao dos povos como queriam os intrpretes soviticos e stalinistas, mas que estaria relacionada ao problema da terra, da propriedade gamonal (latifundiria) e deteria tambm um contedo econmico-social associado luta de classes22. Na leitura de Maritegui, o capitalismo tal como surgiu e se desenvolveu em pases sul-americanos como Peru, Bolvia e Equador, cujo contingente indgena da populao bastante forte e expressivo apresenta um irredutvel componente de dominao tnico-racial. As novas formas de explorao tipicamente capitalistas se entrelaam s antigas frmulas expropriatrias, pr-capitalistas, a exemplo

    da instituio da mita trabalho servil, compulsrio, gratuito e coletivo exercido pelos indgenas nas minas peruanas que fora eliminado pela Repblica liberal apenas

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    Para compreender como Maritegui situou o problema do ndio em relao questo agrria e atribuiu ao campesinato indgena uma importncia revolucionria, ver o segundo e terceiro captulos dos Sete ensaios de interpretao da realidade peruana (2010b).

  • formalmente em sua na carta constitucional, porm existindo de fato. Dada a intensidade de sua explorao, Maritegui identifica como uma das foras motrizes da revoluo peruana o campesinato indgena23 e enxerga em algumas caractersticas de sua vida comunal, apesar da ao deletria sobre ele dirigida pela presena colonial dos espanhis e em seguida da burguesia criolla, elementos que poderiam ser aproveitados na construo de uma moderna sociedade comunista no Peru e Amrica Latina. As afinidades entre as ideias de Maritegui sobre o comunismo incaico e as teses polticas do populismo russo, relativas importncia da comunidade camponesa numa futura transformao socialista, so evidentes24. Nesse sentido, haveria alguma pertinncia na identificao entre o marxista peruano e as variantes revolucionrias das correntes populistas. Na Amrica Latina, entretanto, elas assumiram uma dimenso predominantemente conservadora e demaggica. O interesse de Maritegui pelo passado incaico no deve, por isso, ser confundido com uma adeso ao sonho romntico e sentimentalista de restaurao do Tahuantinsuyo, o Estado ou Imprio Inca, numa espcie de idealizao da identidade nacional peruana. No somente ele apontava elementos autocrticos no comunismo incaico, como tambm no acreditava que as divises da sociedade peruana e sua dualidade de raa, de lngua e de sentimento, oriunda da invaso e da conquista do Peru autctone por uma etnia estrangeira, que no conseguiu fundir-se com a raa indgena (Maritegui apud Escorsim, 2006: 225) seriam eliminadas demagogicamente nos planos retrico e literrio, inteno muito presente numa literatura de exaltao do passado colonial. Para Maritegui, na verdade, a comunidade indgena, o ayllu, deveria ser assimilada pelas formas modernas de organizao socialista das relaes de produo, devido s exigncias do avano tecnolgico e ao carter continental e internacional das mudanas que afetam, no apenas a sociedade peruana, mas tambm os demais pases da Amrica Latina. A herana cultural do ayllu, da comunidade indgena, ainda presente no Peru, seria enriquecida com a incorporao das conquistas da civilizao ocidental (Maritegui, 2003: 103) e, ao mesmo tempo, traria para essa civilizao suas prprias contribuies civilizatrias mais originais, compatveis com as relaes humanas no socialismo, menos egostas e

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    Para situar a atuao poltica de Maritegui no conjunto da tradio revolucionria peruana, ver Jos Luis Rnique, A revoluo peruana, So Paulo, Unesp, 2009. 24

    Sobre o populismo russo e suas distintas vertentes, ver Andrzej Walicki, Socialismo russo e populismo, in Eric J. Hobsbawm (org.), Histria do marxismo: o marxismo na poca da Segunda Internacional, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984, v. 3.

  • individualistas, mais comunitrias e autnticas. O socialismo indo-americano de Maritegui assume uma dimenso latino-americana (Quijano, 1995: XV) e se vincula ao movimento antiimperialista de forte expresso na dcada de 20 que lutava pela libertao da Indo-Amrica, a Aliana Popular Revolucionria Americana (APRA). O revolucionrio peruano no aderiu, contudo, inteiramente ao aprismo e sempre teve divergncias profundas, tericas, polticas e ideolgicas, com seu fundador e dirigente mximo, Victor Ral Haya de la Torre, pois sabia das limitaes pequeno-burguesas desse movimento demaggico-nacionalista e percebia agudamente as inconsistncias de uma luta antiimperialista que se esgotava em si mesma, sem objetivos socialistas. Para o marxista peruano, no seria possvel ser, realmente, ser nacionalista e revolucionrio

    sem ser socialista (Maritegui, 2004: 23). O aprismo pretendia transformar a situao social das massas indgenas, libertando-a do jugo imperialista sem propor o fim da explorao capitalista. Na viso de Haya de la Torre essa era uma tarefa para os pases de capitalismo desenvolvido, que detinham condies objetivas para esse salto maior25. Tal concepo no difere muito, apesar de serem inteiramente opostas em outros aspectos de suas doutrinas polticas, da viso stalinista sobre o necessrio desenvolvimento das foras produtivas no capitalismo para alcanar o socialismo. A presena de Maritegui nas fileiras da APRA se deve basicamente a duas circunstncias que se relacionam com sua estratgia da frente popular como instrumento de luta pelo socialismo. Em primeiro lugar, havia a inteno de aproveitar o impulso da agitao antiimperialista dessa Aliana Popular, composta por uma ampla frente continental de classes, para fazer junto s massas uma propaganda poltica especificamente socialista. Maritegui e o grupo que o acompanhava percebia a importncia de uma atuao autnoma dos trabalhadores e camponeses nessa frente continental. Essa foi a razo de se constiturem como frao independente no interior da APRA, a fim de impulsionarem a luta antiimperialista para objetivos socialistas mais radicais de transformao da ordem capitalista, construindo sua atuao num movimento de baixo para cima, isto , com o suporte dos setores sociais mais espoliados e, no caso da realidade especfica do Peru, com base na rebeldia histrica das massas do

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    Sobre o pensamento de Haya de la Torre, ver Oliveiros Ferreira, Nossa Amrica: Indoamrica (A ordem e a revoluo no pensamento de Haya de la Torre), So Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1971; sobre as divergncias ideolgicas entre Haya de la Torre e Jos Carlos Maritegui, ver Jos Aric, O marxismo latino-americano nos anos da Terceira Internacional, in Eric J. Hobsbawm (org.), Histria do marxismo: o marxismo na poca da Terceira Internacional, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, v. 8.

  • campesinato indgena. Uma segunda circunstncia, talvez mais importante que a anterior em termos de conjuntura, se refere ao forte apelo demaggico-populista de massas existente no aprismo, acentuado ento pelo carter populista, personalista, demaggico e messinico de Haya de la Torre. Partir para o ataque direto ao aprismo seria isolar-se das massas, de modo que era necessrio resguardar uma atuao autnoma da frao socialista no seio da prpria APRA como um meio de evitar o isolamento e garantir a conquista ideolgica dos trabalhadores para o socialismo. No devemos esquecer aqui o importante papel de Maritegui como conferencista nas Universidades Populares Gonzlez Prada e o significado profundo que para ele detinha o debate direto com os trabalhadores. A ruptura com Haya de la Torre iria se tornar inevitvel quando este deu os primeiros passos para fazer da APRA um partido poltico pequeno-burgus e populista, extinguindo seu carter de frente de classes. nesse momento justamente, em fins de 1928, que Maritegui e seus companheiros de luta iriam fundar o Partido Socialista do Peru, que, apesar de vinculado Internacional Comunista, procura manter sua autonomia ttica e estratgica frente realidade peruana. Num dos documentos mais representativos de sua ruptura com a Aliana Popular de Haya de la Torre26, o marxista peruano ter a oportunidade de desenvolver suas concepes ideolgicas sobre a necessidade de construir vnculos polticos entre a revoluo socialista mundial, a civilizao ocidental e o indigenismo peruano:

    O socialismo no , certamente, uma doutrina indo-americana. Mas nenhuma doutrina, nenhum sistema contemporneo o , nem pode s-lo. E o socialismo, embora nascido na Europa, como o capitalismo, tambm no especfica nem particularmente europeu. um movimento mundial do qual no se exclui nenhum dos pases que atuam na rbita da civilizao ocidental. Esta civilizao leva, com uma fora e recursos no-disponveis para nenhuma outra civilizao, universalidade. A Indo-Amrica, nesta ordem mundial, pode e deve ter individualidade e estilo; mas no uma cultura nem um destino particulares. H cem anos devemos nossa independncia como naes ao ritmo da histria ocidental, que desde a colonizao nos imps inexoravelmente seu ritmo. Liberdade, democracia, parlamento, soberania do povo, todas as grandes palavras pronunciadas por nossos homens de ento procediam do repertrio europeu. A histria, porm, no mede a grandeza desses homens pela originalidade de suas idias, mas pela eficcia e gnio com que as serviram. E os povos que so vanguarda no continente so aqueles em que elas se enraizaram melhor e de forma mais rpida. No entanto, a interdependncia, a solidariedade dos povos e dos

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    Outros importantes documentos produzidos por Maritegui na sua polmica com a Apra podem ser encontrados em Quijano (1995: 125-45).

  • continentes eram naquele tempo muito menores do que neste. O socialismo, enfim, est na tradio americana. A mais avanada organizao comunista primitiva registrada pela histria a incaica. [...] Em nossa bandeira inscrevemos apenas uma grande e simples palavra: socialismo (com este lema afirmamos nossa absoluta independncia diante da idia de um partido nacionalista pequeno-burgus e demagogo). (Maritegui, 2003: 112-3).

    O Amauta revolucionrio (Escorsim, 2006: 9) procurou evitar as armadilhas de um marxismo eurocntrico, apoiando-se nas tradies locais do comunismo incaico e no potencial de mobilizao indgena para identificar as foras sociais da luta pelo socialismo no Peru. O jornalista peruano procurou rebater no somente as acusaes que se lhe so feitas de europesmo27, mas tambm encarou como inevitvel a estreita relao entre socialismo e indigenismo num pas onde a grande maio