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5/23/2018 E-book Casa Da Rua de Alcolena Barbara Aniello
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AGRADECIMENTOS
Este livro, concebido em Maro e acabado em Maio de 2009, o resultado duma investigao
que se insere num projecto de Ps-Doutoramento mais amplo e abrangente, cujo tema O
dilogo inter-artes em Portugal no sculo XX, financiado pela Fundao para a Cincia e
Tecnologia e acolhido pelo Instituto de Histria de Arte da Universidade de Lisboa e pelo
Centro Estudos Comunicao e Cultura da Universidade Catlica de Lisboa.
No percurso que levou sua concepo, preparao e edio, quero agradecer a todas as pessoas
que contriburam:
s Instituies que concorreram para o xito deste projecto: Fundao Calouste Gulbenkian,
Fundao para Cincia e Tecnologia, Guimares Editores, Academia Nacional de Belas-Artes,
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, IHA - Instituto de Histria de Arte da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, CESEM - Faculdade de Cincias Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, CECC - Centro de Estudos de Comunicao eCultura da Universidade Catlica de Lisboa, Assembleia da Repblica, Tribunal de Contas,
Fundao Mrio Soares, Palcio do Correio Velho, Leiles e Antiguidades S.A., Biblioteca de
Arte da Fundao Calouste Gulbenkian, Biblioteca Nacional de Portugal; Biblioteca de Belas
Artes da Universidade de Lisboa, Biblioteca da Universidade de Coimbra;
ao Professor Jos-Augusto Frana, pelo que representa na nossa Histria da Arte e pelo seu
entusiasmo, estmulo e ajuda no projecto;
ao Professor VtorManuelGuimares Verssimo Serro, pelo impulso, apoio moral e exemplo
de integridade tica e profissional;
ao Dr. Paulo Teixeira Pinto, por ter acreditado no projecto e defendido a sua publicao;
ao Jri do Concurso de Apoio Edio do Servio de Belas Artes da Fundao Gulbenkian,
Prof. Doutor Luiz Oosterbeek, Dr. Paulo Pereira e ao seu Presidente e Director deste Servio,
Dr. Manuel da Costa Cabral, por ter classificado o livro em 1 lugar entre 17 candidatos;
Professora Maria Manuela Toscano, pela assistncia amigvel e por ser um modelo de rigor
cientfico;
Senhora D. Maria do Cu Pimentel, sobrinha de Antnio Varela, pela sua total e entusistica
disponibilidade na partilha do esplio do arquitecto;
esposa e filha de Antnio Paiva, Senhora D. Alice Berta Gonalves Alves e Senhora D.Maria Lusa Alves de Paiva, que muito generosamente me ofereceram acesso ao esplio do
escultor;
Senhora D. Madalena Ferro, filha de Jos Manuel, que partilhou comigo preciosas
informaes e fontes sobre o poeta;
ao fotgrafo Paulo Cintra pelas suas sugestes, pela inesgotvel pacincia, incessante
disponibilidade e fraterno apoio;
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Senhora Dra. Andrea Azevedo Cardoso, pela ajuda constante e pelos conselhos humanos e
profissionais;
Advogada Senhora Dra. Rosa Videira, apaixonada defensora do Direito de Autor, por me ter
ensinado a proteger este filho de papel;
ao professor e escultor Joo Duarte, por me ter disponibilizado a sua coleco de medalhas e
todas as informaes sem as quais o aprofundamento da parte que concerne escultura no teria
sido possvel;
Senhora D. Maria da Conceio Delgado e Senhora D. Ndia Marina da Silva Pina Lomar do
Arquivo da Biblioteca da Faculdade de Belas Artes, pela ajuda concreta na pesquisa dos
documentos;
ao Dr. Jos Viriato por me ter mostrado o acervo dos gessos da Faculdade de Belas Artes;
Senhora Dra. Constana Rosa e ao Dr. Carlos Morais, Dr. Marco Antnio de Mesquita, Dra.
Anabela Igreja Freitas, Dra. Dolores Sebastio, Dra. Maria Joo Santos da Biblioteca de Arte da
Fundao Calouste Gulbenkian, pela grande profissionalidade, disponibilidade, carinho e ajudano acesso s fontes;
Dra. Manuela Rego e Dra. Graa Garcia, por me ter facilitado a pesquisa dos documentos;
aos escultores Professores Domingos Soares Branco, Virglio Domingues, Antnio Vidigal, por
terem conversado comigo e partilhado importantes recordaes do convvio com Antnio Paiva;
ao colega e amigo Arquitecto Hugo Nazareth Fernandes, pela generosa partilha de ideias e
fontes, pelos conselhos desinteressados, pelo encorajamento e pela sua lealdade;
a Nuno Nazareth Fernandes, pelo apoio documental e moral;
Senhora D. Lusa Venturini, pelas sugestes e pelo olhar de pssaro;
minha amiga Professora Maria Teresa lvares de Carvalho, pela ajuda essencial na
descodificao da linguagem geomtrica de Almada e pelos conselhos lexicais;
ao Dr. Renato Borges de Sousa pelo auxlio indispensvel;
minha amiga Dra. Ins Espada Vieira por ter revisto o texto, pela sua generosa dedicao e
imprescindvel encorajamento;
a Joana Pontes e Pedro Nu, pelo amigvel suporte moral;
a Rita Dinis da Gama e a Janine Barroso, madrinhas inigualveis desta obra;
minha me e s minhas irms, pelo alento;
aos meus trs filhos, Davide, Costanza e Luca, pela pacincia;a ti que no queres ser agradecido
e a mim por no ter desistido.
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Nota da Autora.
O presente trabalho surgiu com o intuito de prestar homenagem obra e legado de Jos
de Almada Negreiros, Antnio Varela, Antnio Paiva e Jos Manuel, que colaboraram
na criao de uma obra de arte, no meu entender, nica e total. Este livro tem tambm aesperana de contribuir para a preservao, tutela, classificao e reabilitao da Casa
da Rua de Alcolena.
Contudo, esta edio sai mutilada de algumas das suas imagens, que aqui no
publicamos, em virtude da impossibilidade de obter a necessria autorizao e iseno
dos Direitos de Autor junto das herdeiras de Jos de Almada Negreiros.
Por causa da remunerao que a famlia Almada Negreiros pediu, que inviabilizou aedio do livro, feito originariamente de imagens alternadas com texto, a autora viu
recuar o patrocnio j obtido junto da Cmara Municipal de Lisboa, que tinha avanado
com um apoio em troca da compra de exemplares, e perdeu sucessivamente dois
editores que se tinham comprometido com a publicao.
Decidiu-se ento optar por uma edio digital disponvel gratuitamente para o pblico.
Aqui fica o meu profundo agradecimento Fundao Calouste Gulbenkian, cujo jriInternacional no Concurso de Apoio Edio classificou em 1 lugar esta obra entre 17
candidatas, que decidiu manter o patrocnio e continuar a apoiar o livro, embora nesta
verso amputada, e ao Instituto de Histria de Arte da Universidade de Lisboa, ao
Centro Estudos de Comunicao e Cultura da Universidade Catlica e ao Centro de
Estudos de Sociologia e Esttica Musical da Universidade Nova de Lisboa que se
ofereceram para alojar e lanar este e-book.
Queira o leitor esclarecido paciente e benevolamente olhar para estas molduras vazias.
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a Maria
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ndice
Prefcio de Jos-Augusto Frana p. 7
1. Unidade e Metamorfose duma Casa polifnica. p. 11
2. Crnica de uma reabilitao anunciada p. 13
3. O Mito de Psique: um breve excursusatravs dos smbolos. p. 16
4. Uma arquitectura dissimuladamente racional. Psique e a harmonia dos opostos. p. 18
5. O hortus conclususde Antnio Varela: a viagem botnico-simblica de Psique. p. 33
6. Um Portal exotrico. A iniciao de Psique. p. 37
7. O Portal esotrico. A dupla queda de Psique, ou a descida da alma na conscincia. p. 47
8. A Estrela interior, ou a regenerao de Psique. p. 55
9. Um Vitral enigmtico. A juno-disjuno de Psique com Eros. p. 599.1 Um par andrgino. p. 65
9.2 A morte no o fim. p. 74
9.3 Ver Saber. p. 77
9.4Duvido ergo sum. p. 80
9.5. Uma localizao particular. As cores do vitral. p. 85
9.6 As medidas do vitral. p. 92
9.7 A queda do heri: Psique, Narciso, caro e Prometeu. p. 98
10. A Parede Sudoeste: a maternidade de Psique. p. 107
11. Eros e Psique sob as mscaras. p. 118
12. Eros e Psique no vrtice da dana. p. 135
13. Mistrio e maestria duma assinatura. p. 151
14. Trs personagens em busca de um autor. p. 157
14.1 Antnio Jorge Rodrigues Varela p. 161
14.2 Antnio Lus do Amaral Branco de Paiva p. 175
14.3 Jos Sobral de Almada Negreiros p. 187
14.4 Jos Manuel Mota Gomes Fris Ferro p. 201
Bibliografia p. 205
Elenco das Imagens p. 211
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Prefcio
Assim uma pea importante d entrada nas obras completas de Almada Negreiros,
em que andava esquecida ou ignorada.
Teve um acaso feliz esta entrada, que foi de salvamento tambm, de uma arquitectura
votada perdio patrimonial.
Depois da triste demolio, em Janeiro de 2005, do palacete romntico em que Garrett
faleceu, Estrela, foi possvel a outra vereao mais esclarecida e digna de confiana,
sob a presidncia de Antnio Costa, evitar outra danosa destruio do patrimnio
lisboeta, pondo em classificao, em 2009, uma moradia modernista ao Restelo, que ia
ser demolida e substituda por outro prdio de casas.
Da autoria do arquitecto Antnio Varela nos anos 50, projecto de 1951-1955, termo daobra em 1955, a moradia fora revelada por Ana Tostes na sua obra sobre os Verdes
Anos da Arquitectura Portuguesa nos Anos 50, em 1997, como pea importante e
tpica, envolvida por um jardim e contendo decoraes de azulejo e vitral de Almada
Negreiros. No desfazer do edifcio, um vitral fora desmontado e felizmente adquirido
para coleco da Assembleia da Repblica, em 2001, supondo-se ento, num catlogo
de leiloeiro, tratar-se da figurao da Queda de caro.
Outras peas, de pintura, tapearia ou escultura foram dispersas mas os azulejos
continuavam ainda nas paredes, aguardando destino mercantil, mais do que um conjuntode relevos de escultura, de Antnio Paiva que haviam de ter destruio ocorrente.
Um largo movimento de opinio, tendente salvao da casa, falhado por oportunas
influncias polticas do proprietrio promotor, no caso do palacete de Garrett, teve
ouvido responsvel na administrao municipal, e a obra, na sua totalidade artstica,
pode ser preservada e provavelmente recuperada mesmo que, por efeito negocial, o
novo proprietrio seja autorizado a acrescentar-lhe outro corpo arquitectnico, em
duvidosa deontologia por no ter assentimento do arquitecto-autor, falecido em 1963,
sete anos antes de Almada Negreiros e trinta antes do proprietrio da casa, o poetaJos Manuel Mota Gomes Fris Ferro, nascido em 1928.
Estranho proprietrio este, homem de fortuna, vivendo com sua me, amigo do seu
arquitecto e do seu escultor, e de Almada, em grandes frequncias, autor de dez livros
de poemas, entre 1944 e 1964, de limitadas tiragens e que se perderam
bibliograficamente, sem registos de histria ou de crtica que ao autor eram certamente
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indiferentes Poeta precioso, num simbolismo esotrico, Jos Manuel (como
assinava), dirigiu, ao mesmo tempo que fazia a sua casa, entre 1951 e 1958, quinze
nmeros de uma revista de pouco pblico tambm, Eros que eu fui lendo na
altura
A Casa, como a poesia, reservava-a ele para poucos e escolhidos amigos, vivendo (ttulo seu) numa Alquimia do sonhoque, sua volta, os espaos internos, e externos
tambm do jardim simbolizado, e as figuras pintadas ou na transparncia do vitral de
Eros e Psique, iluminavam. Apuleio, sim, por evidncia, mas tambm Almada que,
em 1949, escreveu os quatro quadros dramticos do Mito de Psique tendo perdido o
ltimo, que a Psique se referia
Entre a poesia de Jos Manuel e a poesia pintada ou escrita de Almada, h um encontro
vivo, nas linhas do qual se perdem e ganham as referncias da casa do Restelo. Ou as
suas vivncias.Estudioso da arquitectura moderna, s conheci e mal a casa por fora, melhor me
referindo a Ana Tostes; estudioso de Almada, nunca pude visit-la por dentro
aprendendo agora, com Barbara Aniello, o valor especial da sua decorao. Em 1952,
realizando uma exposio de Almada, que h dez anos no expunha, recolhi, sem
meno no catlogo, gouaches que moradia em questo j diziam respeito mais
longe no fui (como devia) escrevendo sobre o pintor, em 1974. E as grandes
exposies que se realizaram, em 1984 e 1993 do ncleo em questo no se ocuparam.
Coube agora faz-lo a Barbara Aniello, j com identificao do tema do vitral creditado,
em 2007 e 2009, a Ctia Mouro. Para os trabalhos em questo, Barbara Aniello, em
boa hora fixada em Lisboa, em 2005, com projectos co-universitrios, tem a seu favor
uma slida cultura clssica que lhe vem de doutoramento italiano, em Pdua, depois de
uma licenciatura na La Sapienza de Roma, dobrados de competncia musicolgica (e
de violoncelista j de longa prtica) que, por exemplo, a levou a um recente e notvel
estudo da poesia de Jorge de Sena que muito enriqueceu o seu aprofundamento esttico.
parede incisa do Comear de Almada Negreiros, por seu lado, dedicou Barbara
Aniello uma interessantssima investigao publicada em 2007.
Atravs dela a conheci pessoalmente, vontade ficando para lhe opor reservas, no ao
seu excelente trabalho, em si prprio, mas de adequao, na suposio, pela autora
assumida, de o artista dispor das referncias culturais que ela aponta, para esta obra
que ambos sabemos ser obra maior, na potica portuguesa, testamento espiritual de
Almada, Da Capo, achei eu, de toda a sua obra. Ou seja da sua vida
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O trabalho sobre a casa do Restelo, conheci-o depois, quando, em Maio de 2009, me
enviou cpia do manuscrito convidando-me para um prefcio que aqui escrevo. Ao
mesmo tempo, a autora confiou cpia dele ao Arquitecto Jos Almada Negreiros, meu
amigo de muitos anos por natural via paterna e que agora tive o desgosto de perder e
entrou numa longa corrida de obstculos para encontrar editor de uma obra de produonecessariamente onerosa, e ento intervim, amistosamente, de Frana, junto do filho
Almada, para ele diminuir os direitos de autor das reprodues indispensveis.
A obra pode sair agora on-line por urgncia de condies de subsdio da Fundao
Gulbenkian, sem a devida apresentao grfica. Um artigo j saiu (com atraso do
nmero 30) na revista Monumentos protegida a autora por um registo legal do texto,
feito em 3 de Julho de 2009, no I.G.A.C.- Inspeco Geral das Actividades Culturais.Coisa rara num pas descuidado como o nosso mas s vezes necessria. E, como
escreveu o prprio Almada, a propsito de idntica precauo de obra sua, em 1950:Fizeram isto de mim
*
A obra de Barbara Aniello vai entrar na bibliografia almadina como pea de grande
valor, na coincidncia da salvao das prprias obras do artista, na casa para a qual
foram criadas.
a globalidade da casa que interessa investigadora, e os seus quatro autores: o poeta
Jos Manuel, o arquitecto Antnio Varela, o pintor Almada Negreiros e o escultor
Antnio Paiva, nas devidas propores das suas intervenes e das suas
responsabilidades no programa. Entre poetas, passou a corrente de criao que interessa
seguir nesta obra mpar na arte portuguesa de meados do sculo XX, e de to grande
importncia na maturidade de Almada e no sentido geral da sua obra.
No cabe a um prefaciador criticar ou discutir o prprio livro que deve limitar-se a
introduzir na sua espcie, assegurando, por sua opinio, os valores que ele carreia.
Barbara Aniello percorre a casa abrindo-lhe as portas com a sua chave esotrica.
Metfora do mito de Psique num tema com variaes que afirma de entrada,
epigrafando o primeiro captulo com citaes do romance poemtico de Jos Manuel,
em 1953 publicado, e escrito que fora, antes, em 1949, O Mito de Psiquede Almada,
sublinha o prefaciador. Que entre os dois textos teve sem dvida nascimento esta casa
propositada. Considerando tambm outro, de dois anos anterior, que o filosofo Eudoro
de Sousa dedicou a Almada, na revista Atlntico, por efeito do longo convvio havido
entre ele e o artista. Fonte primeira, possivelmente, na exegese da autora, que importa
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registar para bom entendimento do que se passou entre um filsofo, um artista e um
poeta, com a colaborao maior do arquitecto obra assim global
De certo modo, o romance da casa do Restelo que, entre exegese e ekfrase, Barbara
Aniello conta, atenta aos mais escondidos pormenores da plantao do jardim planta
do edifcio, da porta de entrada, com esculturas de Antnio Paiva, exotrica essa, paraacolhimento do visitante, e articulada a outro portal, de azulejos almadinos, j
esotericamente considerados para a autora preludio ao Comear final do artista. E
porque no, se ele bem sabia e disse t-lo feito ao longo de toda a sua vida?...
E a tudo o mais que a casa contm programadamente sempre, na cumplicidade
estabelecida e decerto exigida pelo seu encomendador, o poeta Jos Manuel,
empenhado em transformar o mito potico (de Psique) em realidade de pedra e cal.
Ele prprio assim escreveu, no ltimo nmero da sua revista Eros, em Dezembro de
1958 terminada a casa que ao incio da revista fora projectada. No que deve reparar-setambm.
Virada a Noroeste, numa parede da biblioteca preciosa do proprietrio, o vitral (que em
mos mercantis perdera o ttulo, que para elas no podia servir como para os
proprietrios da embargada demolio) resume, no seu encontro dramtico, de fatal
curiosidade, o mito narrado, de Eros e Psique, que deu luz a esta casa polifnica
Alheio a polmicas, intrigas ou historietas, este livro vai cumprir o seu propsito de
apresentar uma obra nica na histria da arte moderna portuguesa.
Jarz, Novembro 2009
Jos-Augusto Frana
Professor JubiladoUniversidade Nova de Lisboa
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A Casa da Rua de Alcolena
Histria, Mistrio, Smbolo
Ir ao encontro de um cnone. Eis a razo fundamental de todo o meu trabalho1
H um ritmo nas cousas aparentemente sem nexo2
O que eu procuro o mistrio incessante da vida e do sonho, a grande aventura quotidiana, amultiplicao das Imagens e dos ritmos.3
Quero que todos saibam: procuro fundir a vida com a arte.Procuro a vida na arte e a arte na vida.4
1. Unidade e Metamorfose duma Casa polifnica.
A moradia situada na Rua de Alcolena n28/44 constitui um dos mais raros e belos
exemplos de dilogo inter-artes em Portugal no sculo XX. A residncia, integrada no
Bairro da Encosta da Ajuda, dito Bairro do Restelo, projectada em 1951-1955 por
Antnio Varela para Maria da Piedade Figueiredo Mota Gomes e para o seu filho Jos
Manuel Mota Gomes Fris Ferro, integrava onze paredes revestidas de azulejos e um
vitral da autoria de Jos de Almada Negreiros, uma escultura e dez baixos-relevos de
Antnio Paiva e, na sua origem, um conjunto de pinturas, tapearias, esculturas, para o
interior da casa, sucessivamente disperso em leiles. Belssimo vestgio de arquitectura
modernista, recentemente a casa foi objecto de candente actualidade, tendo sido alvo de
um projecto de destruio com parcial remoo dos painis em azulejo.A ntima correspondncia entre arquitectura e decorao, fruto duma extraordinria
colaborao entre artistas e proprietrios, resulta numa obra de arte que constitui um
unicum, no s pela sua vocao inter-artstica, mas tambm pelo programa unitrio e
pela linguagem comum nela revelados.
Da leitura integrada das suas vrias componentes artsticas, emerge que a casa uma
metfora do mito de Psique, contendo um conto coeso e coerente, quase um Tema com
Variaes, das suas metamorfoses. Psique est, segundo a nossa leitura, alegoricamente
presente em todas as obras plsticas que adornam a residncia, enfatizandoalternadamente o tema da queda, da viso ou contemplao divina, do conhecimento
superior (gnose) e da iniciao aos mistrios com ele relacionados. Com base nestas
1 Jos de Almada Negreiros, Assim Fala Geometria, entrevistas em srie, conduzidas por AntnioValdemar, Dirio de Notcias, Lisboa, 9-6-1960, p. 15.2Jos Manuel,Alquimia do sonho: romance poemtico, Lisboa, Tipografia Ideal, 1953, p. 15.3Ibidem, p. 51.4Ibidem, p. 52.
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premissas, o presente estudo envolver questes de exegese5e de ekphrasis,6 procura
por um lado das fontes literrias na raiz do seu programa iconogrfico e, por outro, dos
textos inspirados nas obras figurativas, uma vez realizadas. Ao longo deste percurso
traar-se- uma dupla anlise da habitao e das obras nela contidas, discernindo entre
uma componente exotrica e uma esotrica,7
com o intuito de identificar acessos e zonasdestinadas recepo dos visitantes e zonas reservadas a um restrito grupo de amigos e
colaboradores do proprietrio.
5O termo exegese deriva do grego e composto por ek(de, fora) e egomai (tiro, conduzo) e indica otrabalho de ex-trair, ex-ternar, ex-por o significado profundo dum texto, literrio, jurdico, religioso,visando a sua interpretao profunda.6O termo ekphrasisvem do grego e composto por ek(de) ephrazein(falar), indicando literalmente umfalar de, falar a partir de um modelo. Trata-se dum processo tpico da descrio, que tem razesclssicas, tal como lembra, na suaArs Retrica, Dionsio de Halicarnasso. A histria do termo ekphrasistem sido acompanhada por Carlos Ceia no seu E-Dicionrio de termos literrios: O termo ekphrasistornou-se um exerccio escolar para aprender a fazer descries de pessoas ou lugares. O locus classicusna literatura pica a descrio do escudo de Aquiles feita por Homero (Ilada, 18, 483-608). Virglioseguiu o mesmo modelo para a descrio do escudo de Eneias na Eneida(8, 626-731). Um outro tipo deekphrasisconcentra-se em descries epigramticas de pinturas e esttuas, como La galeriade Marino emuita poesia emblemtica. O termo alemo Bildgedicht corresponde praticamente ao conceito deekphrasis,neste sentido de descrio de uma obra de arte (pintura ou escultura). Os poetas romnticos
recorreram amide a este artifcio, tendo ficado clebre, por exemplo, a "Ode on a Grecian Urn", deKeats. Naturalmente, o recurso s descries particulares est presente em muita poesia contempornea,sobretudo a partir do momento em que a poesia se tornou cada vez mais prxima da prosa narrativa. Naliteratura portuguesa, o livroMetamorfoses (1963), de Jorge de Sena introduz um tipo de poesia descritivaque tem como objecto de contemplao toda a obra de arte visual. Este tipo de descrio plstica nolimita o conceito de ekphrasisa uma simples e passiva exposio dos dados observados, mas conduz-nosa um exerccio reconstrutivo do que foi examinado, querendo interferir subjectivamente nas qualidades doobjecto. O poeta ecfrstico raramente se contenta com uma descrio objectiva do que observa, quandotem a possibilidade de comunicar livremente o seu prprio gosto. A Secreta Vida das Imagens(1991), deAl Berto, ou Depois de Ver (1995), de Pedro Tamen, podem ilustrar o lado dinmico da ekphrasis. Cfr.http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/E/ekphrasis.htm. Veja-se tambm: Emilie L. Bergmann: ArtInscribed: Essays on Ekphrasis in Spanish Golden Age Poetry (1979); Fernando J. B. Martinho: Ver edepois: a poesia ecfrstica em Pedro Tamen, Colquio-Letras, 140/141 (1996); Maria FernandaConrado:Ekphrasise Bildgedicht: processos ekphrsticos nas metamorfoses de Jorge de Sena, Tese de
mestrado, Universidade de Lisboa (1996); Murray Krieger: Ekphrasis: The Illusion of the Natural Sign(1992).7A diferena entre os termos exotrico e esotrico deriva da filosofia de Pitgoras que distinguia no seuensinamento entre um saber acessvel a todos, visvel, comum, popular (x = fora) e um conhecimentoreservado a poucos eleitos, (eso = dentro). Assim os seus discpulos eram designados e distinguidos entreexotricos, ou alunos externos sua escola, e esotricos, os alunos admitidos no interior da sua escola, osnicos que podiam ver e ouvir as aulas do filsofo. Entre estes havia uma ulterior distino entreesotricos-acousmticos, que podiam s ouvir o Mestre, e esotrico-matemticos, que tinham o privilgiode argumentar com ele e tambm ensinar aos acousmticos. O presente estudo pretende utilizar estadefinio, com o intuito de distinguir entre uma componente explcita, divulgativa, exposta e uma maisreservada, ntima, privada, na fruio da casa.
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2. Crnica de uma reabilitao anunciada.8
A moradia pertence ao Bairro da Encosta de Ajuda, planeado e desenhado por Faria da
Costa no esprito da cidade-jardim, emoldurado a Norte pela zona verde de Monsanto e
a Sul pelo rio Tejo.
1. Casa da Rua Alcolena, Fotografia satlite, vista area, Google Maps.
Desde a sua edificao a Casa passou por vrios proprietrios. A construo do edifcio
deve-se ao arquitecto Antnio Varela, depois da aquisio por Maria da Piedade
Figueiredo Mota Gomes do lote de terreno n149, com uma rea total de 1122 metros
quadrados, Cmara Municipal de Lisboa em Agosto de 1951, parte por compra directa
e parte por arrematao em hasta pblica. Concludas as obras, em 10 de Fevereiro de1954, o imvel manteve-se na posse da primeira proprietria, passando em 1981, aps a
sua morte, para o seu filho Jos Manuel Mota Gomes Fris Ferro. Depois do
falecimento deste, a moradia passou para a viva e para as suas quatro filhas, que a
venderam em 2002 imobiliria Espcimo. Trs anos mais tarde, a nova proprietria
viu a residncia do Restelo ser objecto de sucessivas penhoras, acabando por vend-la
em Janeiro de 2007, a uma outra imobiliria: a Principado do Restelo, com sede em
8A histria da casa foi relatada por Jos Antnio Cerejo e Maria Jos Oliveira a Ins Boaventura num
artigo publicado no Pblico, em 21.02.2009 e em 25.02.2009, e por Lusa Botinas no Dirio de Notciasde 20.02.2009. Para uma bibliografia sobre a Casa veja-se Ana Tostes, Os verdes anos da arquitecturaportuguesa nos anos 50, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Porto, 1997, p. 60; FtimaCordeiro Ferreira coord.; Jos Silva Carvalho; Teresa Nunes da Ponte; Filipe Jorge Silva, GuiaUrbanstico e Arquitectnico de Lisboa, Associao dos Arquitectos Portugueses, 1987; Helena Roseta,Joo Afonso, Joana Morais, Manuel Tvora,IAPXX-Inqurito Arquitectura do Sculo XX em Portugal,Ordem dos Arquitectos, 2003; Inventrio Docomomo Ibrico da Habitao, 2008. Vide tambm: Obra23293, Processos 1951, 22260/1955, 15454/1981, Arquivo Cmara Municipal de Lisboa. A Ordem dosArquitectos promoveu uma petio para salvar a moradia que atingiu at hoje cerca de 5000 assinaturas:http://www.petitiononline.com/Alcolena. Cfr. tambm a proposta do movimento Cidados por Lisboa:http://www.cidadaosporlisboa.org/?no=50400001519,053, apresentada em 18 de Fevereiro de 2009.
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Cascais. No dia 5 de Janeiro desse ano, verificou-se uma nova transferncia de
propriedade, desta vez para a Soindol, Sociedade de Investimentos Dominiais Lda., que
comprou o imvel por um milho e 750 mil euros. Trs semanas depois, no dia 29 de
Janeiro de 2009, os novos proprietrios entregaram na Cmara Municipal de Lisboa o
pedido de licenciamento da demolio integral da casa e da construo de uma novamoradia familiar de grandes dimenses, com uma rea total de 1534 metros quadrados.
Sucessivamente, no mbito das condies negociadas com os anteriores proprietrios,
parte dos azulejos foram removidos. Depois das denncias Comunicao Social feitas
pelos herdeiros de Jos de Almada Negreiros, nomeadamente seu filho o Arquitecto
Jos de Almada Negreiros e as netas Rita e Catarina, por Helena Roseta, Vereadora do
Movimento Cidados por Lisboa, e por Joo Rodeia, presidente da Ordem dos
Arquitectos,9a Cmara de Lisboa embargou, em 23.02.2009, a retirada dos painis de
azulejos da autoria de Almada Negreiros. Em particular, Helena Roseta defendeu aintegridade da Casa: a remoo uma destruio do patrimnio. Trata-se de um imvel
(no seu todo, incluindo os painis de azulejos) representativo da produo
arquitectnica moderna portuguesa dos anos 50 na cidade de Lisboa, que interessa
salvaguardar enquanto testemunho da qualidade da conjugao e integrao de artes e
ainda como documento qualificado de uma fase do desenvolvimento da cidade de
Lisboa e da diversidade do seu tipo de ocupao arquitectnica.10Confrontado com oincio da remoo dos azulejos, antes de qualquer deciso sobre os projectos
apresentados, o vereador do Urbanismo, o Arquitecto Manuel Salgado, determinou de
imediato o embargo dos trabalhos. A moradia est inserida na Zona de Proteco
Especial de vrios imveis classificados (Capela de So Jernimo, Capela de Santo
Cristo e dois palacetes da Rua de Pedrouos), razo pela qual todas as obras ali
efectuadas tm de ser previamente aprovadas pelo Igespar (Instituto de Gesto do
Patrimnio Arquitectnico e Arqueolgico). Os painis de Almada esto classificados
no inventrio municipal do patrimnio com a designao de patrimnio integrado, ou
seja, toda a construo est protegida e o conjunto de azulejos inamovvel, afirma o
director daquele Instituto, Elsio Summavielle. A Casa est citada tambm num
levantamento da arquitectura do sculo XX, realizado pela Ordem dos Arquitectos e
est includa na lista do Docomomo, organizao que subsidia a documentao e
conservao das manifestaes do movimento moderno em arquitectura. Segundo a
9Dirio de Notcias, Lisboa, 20 de Fevereiro de 2009, p. 28.10Dirio de Noticias, Lisboa, 3 de Maro de 2009.
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vice-presidente da Ordem dos Arquitectos e do Docomomo Ibrico, Ana Tostes, os
azulejos desta moradia so especiais, uma vez que se inserem num perodo criativo de
Almada Negreiros que antecipa o trabalho gravado na pedra no trio da Gulbenkian, o
painel Comear, 1968-1969. O processo de classificao como bem cultural de interesse
municipal j foi iniciado pela Vereadora do Movimento Cidados por Lisboa, HelenaRoseta, com uma proposta apresentada em 18 de Fevereiro de 2009, que inclui tambm
a criao de um projecto-piloto de casa-museu-atelier de artes plsticas e dum catlogo-
roteiro da Casa. Em resposta a este apelo surge o presente estudo, na esperana de
ajudar a restituir Casa da Rua de Alcolena o seu justo lugar no panorama histrico-
artstico nacional e internacional.
Em Julho de 2009 a polcia esteve a vigiar a casa, 24 horas por dia, para evitar episdios
de remoo ilegal dos azulejos e eventual vandalizao do interior da casa, dado o
historial recente. Contudo, em meados de Julho 2009, a Moradia foi arrombada outravez e a polcia est a verificar danos e eventuais despojamentos.11
No dia 9 de Agosto foi aprovada pela Cmara Municipal de Lisboa uma proposta do
ateli Massapina, subscrita pelo Vereador Manuel Salgado, para a alterao e ampliao
do prdio, que no s anula a continuidade do simblico jardim, mas apaga o alado
sudeste da Casa, cancelando a sua perspectiva geomtrica, o seu valor cbico, a sua
metafrica orientao.
No curso da nossa atribulada investigao, chegou-nos a feliz notcia que em 2 de
Dezembro de 2009 a Casa foi classificada como Imvel de Interesse Municipal.
Gostaramos muito de assistir ao renascimento da Casa como Centro de Estudos
Permanente do Modernismo Portugus e como casa-museu-atelier de artes plsticas.
Dada a sua riqueza inter-artstica, a sua colocao no panorama histrico e geogrfico
de Lisboa, a sua unicidade e unidade, esta Casa extra-ordinria corresponderia
perfeitamente vocao de acolher um Centro de Estudo Permanente de um dos
perodos artsticos mais interessantes e com projeco internacional da Histria da Arte
Portuguesa.
11Pblico, 21 de Julho de 2009.
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3. O Mito de Psique: um breve excursusatravs dos smbolos.12
Era uma vez um rei e uma rainha que tinham uma filha de rara beleza de nome Psique.
To grande era a sua fama que os homens comearam a ador-la, descuidando os rituais
de Vnus. Esta, invejosa, planeou vingar-se, enviando o seu filho Eros com o intuito de
a fazer apaixonar-se pelo ser mais horrvel da terra. Entretanto, Psique lamentava a suasolido, ao contrrio das irms, que j se tinham casado. Vtima da sua prpria beleza
parecia, aos olhos dos mortais, inatingvel pelo amor dum homem. Porm um ainda
mais msero destino lhe reservava o futuro: o Orculo preanunciara que, num lugar
terrvel, a donzela haveria de celebrar esponsais fnebres com um monstro que enchia
de horror os prprios deuses. Psique, acompanhada por todo o povo em pranto,
submeteu-se ao seu Fado e foi, com passos firmes, ao encontro do drama da sua
existncia. Do alto de um rochedo desceu a um vale delicioso onde se erguia um palcio
encantado. Vozes de corpos invisveis convidaram-na a sentar-se mesa nupcial e,chegada a noite, recebeu em seu leito o incgnito amante. Ele advertiu-a dos horrveis
tormentos que teria que sofrer, se confiasse na perfdia das irms mais que nas delcias
da hora presente. Eros, que outro no era seno o nocturno visitante, diante de tanta
beleza, tinha decidido desobedecer me e, desistindo da vingana, substitui-se ao
monstro, espetando-se nas prprias flechas e apaixonando-se perdidamente por Psique.
Alertando a sua amante para no dar ouvidos s insdias das irms, que a iriam
aconselhar a examinar o seu semblante, disse Amor, ou seja Eros, em relao ao seu
rosto: se uma vez o vires, nunca mais o vers. Sucessivamente, como para lhe mitigar
o tormento, Eros anunciou a Psique a sua iminente maternidade, mas acrescentou se
guardares o nosso segredo em silncio, o nosso filho ser divino; se o divulgares, ser
mortal. O Fado cumpriu-se. A inveja e a perversidade das irms levaram Psique a
ignorar os avisos do seu terno amante e uma noite, luz clara e brilhante duma lucerna
cheia de azeite, a miservel aproximou-se do leito onde julgava que dormisse o terrvel
12Toda a narrao retirada de Eudoro de Sousa, Quem v Deus, morre... : o mito de psique, sep. do
Atlntico, n. 5, Lisboa, 1947, pp. 1-17. O texto que concerne o mito de Psique, pp. 5-7, aqui readaptado eresumido, foi dedicado a Jos de Almada Negreiros e publicado exactamente quatro anos antes doprimeiro projecto de construo da residncia da Rua Alcolena, na sequncia dum longo convvio que oprofessor, filsofo, pedagogo, fillogo, mitlogo teve com o artista. Segundo Joaquim Domingues foi ocontacto com Almada Negreiros e Santana Dionsio que despertou em Eudoro de Sousa o interesse pelosimblico, como sntese sensvel da ideia unitria e universal. Cfr. De Ourique ao Quinto Imprio.Para uma Filosofia da Cultura Portuguesa, Lisboa, INCM, 2002. Pela profunda interligao entre ainterpretao sousiana do mito e a representao do mesmo no vitral da autoria de Almada Negreiros queornava a casa, e dada a anterioridade do texto face ao projecto da casa, julgamos importante referir estafonte e no outras, como fonte iconogrfica privilegiada da obra. Vide tambm Lus Loia, O Essencialsobre Eudoro de Sousa, INCM, Lisboa, 2007.
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monstro e ps-se a perscrutar o seu vulto. Mas para sua grande surpresa Psique, que no
se contentava com o seu amor cego, descobriu a imagem sublime do deus adormecido.
Resultado da viso, Psique estremeceu e o seu corpo ardeu, como a luz da lucerna,
rasgando o vu da noite. Depois, insacivel, levou-a a curiosidade a tocar nas armas que
jaziam aos ps do leito e, de mos ainda frementes, feriu-se nas setas do poderoso deus:assim a ignorante Psique se inflamou de amor por Amor. ento que uma gota
ardente da lucerna caiu no ombro da divindade, que despertou e desapareceu, no
cuidando da sua prpria ferida. Este o primeiro momento crtico no drama de Psique.
Desde ento, vtima de si mesma, a Alma, ou seja Psique, passar toda a sua existncia
condenada a um vaguear inquieto pelo mundo em busca daquele Amor que a
desobedincia lhe arrancou. Psique, depois de ter recorrido em vo a Ceres e a Juno,
caiu em poder de Vnus, que j ento a procurava, no s pela antiga afronta, como
tambm pela vingana frustrada. No correspondendo s splicas da jovem, Vnusimps-lhe tarefas superiores s possibilidades humanas, tais como: separar um monte de
sementes diversas, trazer l dos carneiros do Sol, ir em busca da gua estgia e, enfim,
descer aos infernos para de l trazer num frasco um pouco da formosura de Prosrpina.
Em todas estas provas a Alma foi assistida por Amor que lhe prestou o auxlio
necessrio ao bom xito das provas. As formigas separaram as sementes numa noite de
labor; uma cana viosa, suave criadora de msica, aconselhou-a a esconder-se dos
ardores do Sol; a guia, ave real do supremo Jove, encheu a urna de gua estgia; a
torre, donde Psique intentou atirar-se para ir ter directamente aos infernos, ensinou-
lhe o caminho e proporcionou-lhe o vitico; e, quando no regresso a invadiu um sono
infernal e verdadeiramente estgio, por, mais uma vez, no ter resistido curiosidade
de abrir o frasco, o prprio Eros que acorre, limpando cuidadosamente o sono e
desperta Psique com o inocente toque da ponta de uma das suas setas. Este despertar
outro momento crtico no drama de Psique. Mas o segundo ferimento das setas de Amor
conferiu-lhe a imortalidade e o gozo pleno da unio perfeita com o divino esposo.
Todos os momentos-chave e os eventos crticos do mito esto dramtica e
simbolicamente representados na Casa da Rua de Alcolena.
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4. Uma arquitectura dissimuladamente racional. Psique e a harmonia dos opostos.
Comeando pela implantao da Casa, notamos que esta originada pela juno
desfasada de um quadrado e um rectngulo, formando uma figura geomtrica irregular,
testemunho de uma plasticidade tpica do racionalismo do Movimento Moderno.
2. Antnio Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 14, Arquivo Municipal de Lisboa.
Como se l na memria descritiva da Casa, redigida pelo arquitecto Antnio Varela, a
estrutura articula-se em trs pisos: a cave, com as dependncias destinadas ao pessoal de
servio, a arrumos e instalao de equipamento de aquecimento-chauffage e gua;
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3. Antnio Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 52, Arquivo Municipal de Lisboa.
o rs-do-cho para as dependncias destinadas s necessidades da vida quotidiana:
zonas de recepo, estar, refeies, fruio de espao;
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4. Antnio Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 52, Arquivo Municipal de Lisboa.
o primeiro andar destinado ao repouso e recolhimento dos proprietrios, coroado por um
terrao com vista panormica sobre o Tejo.13
13 Obra 23293, Processo 35792/1951, Arquivo Municipal de Lisboa. Cfr. tambm a petio on-linepromovida pela Ordem dos Arquitectos preciso salvar a Casa da Rua Alcolena, da autoria doarquitecto Antnio Varela, com murais de azulejo da autoria do pintor Almada Negreiros,http://www.petitiononline.com/Alcolena/, op. cit.
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5. Antnio Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 52, Arquivo Municipal de Lisboa.
Quanto ao aspecto exterior da casa, notar-se- que o alado se ergue numa posio
sobrelevada em relao rua. A moradia abraada por um vasto jardim, que emoldura
a construo, atenuando a sua aparncia abstracto-geomtrica e o seu purismo
volumtrico. Notamos uma preocupao simtrica na disposio da garagem, comduplas janelas e duplas escadas, especularmente esquerda e direita, contradita da
soluo arquitectnica, deslocada ligeiramente direita do eixo vertical sugerido pelo
acesso da rua ao jardim. A coincidncia desta preferncia pela assimetria, no iderio do
arquitecto, do proprietrio e do pintor bastante singular, como explicaremos adiante.
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6. Vista principal, virada a Sudoeste, da Casa da Rua de Alcolena. FotografiaPaulo Cintra, Novembro2008.
Atravs dum jogo entre claro e escuro, cheio e vazio, duro e mole, mineral e vegetal,
deparamo-nos com um tapete em xadrez disseminado na encosta do terreno sobrelevado
e realizado com quadrados de pedra calcria, alternados com pores de idntica
dimenso de terra, anteriormente arrelvadas. O padro axadrezado prolonga-se no muro
que delimita o confim esquerdo da moradia. Confrontando as fotografias antigas do
muro da casa com as actuais, notar-se- um idntico claro-escuro que repetia
originariamente a alternncia patente na entrada.
7. Fotografia antiga da Casa. Esplio Varela. FotografiaPaulo Cintra, Novembro 2008.
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Da anlise das fotografias antigas da casa, emerge um surpreendente duplo tapete de
xadrez: manifesta alternncia lcido-opaco dos cubos em pedra e relvado, junta-se o
jogo em claro-escuro dos seixos brancos e acinzentados. Desenha-se, assim, por
sobreposio, uma impresso ptica de dois xadrezes: um em primeiro plano, de pedra-
relva, manifestamente claro, e um em segundo plano, de pedra-pedra, formando umjogo bicromtico mais encoberto e crptico: manifestao do duplo, exotrico e
esotrico. Posteriormente, o muro foi repintado, apagando-se assim a continuidade do
desenho em xadrez que fazia de elo entre o exterior e o interior, acompanhando a
passagem do visitante desde a rua at entrada.
8. Pormenor da Fotografia antiga da Casa. Esplio Varela. FotografiaPaulo Cintra, Novembro 2008.
A aluso do pavimento-mosaico ao sagrado evidente. Os quadrados lcidos e opacos
encaixam-se na bipolaridade luz-trevas, bem-mal, negativo-positivo, unidade-
duplicidade, corpo-esprito. Essa bipolaridade est presente em toda a simbologia desta
obra de arte que a Casa. A complementaridade da cor branca e da cor preta, presente
no templo sagrado e na entrada da moradia, reflecte a confluncia entre activo e passivo,
masculino e feminino, solar e terrestre, num intenso dilogo com a decorao interior e
exterior da casa. Assim, a procura da harmonia csmica passa, curiosamente, atravs
dum disfarado jogo com o assumido radicalismo dum volume puro, cbico,
afirmativamente colocado no alto do terreno, com rigorosa geometria plasticamente
trabalhada14, do edifcio de Antnio Varela.
14Ana Tostes, op. cit., p. 60.
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9. Alado Sudeste e Nordeste da Casa da Rua de Alcolena. FotografiaPaulo Cintra, Novembro 2008.
Neste propositado dilogo entre irracional e racional, entre esprito e lgica, entre gnose
(conhecimento intuitivo) e epistme (conhecimento cientfico) tecido o significado
unitrio de toda a obra. O pavimento, tal como a construo, simboliza a unio entre o
eixo vertical (celeste) e o eixo horizontal (terrestre), ou seja o Tempo e o Espao, o
Universal e o Particular.
Por isso mesmo, a construo, aparentemente racionalista, na sua essncia
completamente mstica, aderindo componente esotrica de acordo com os interesses
do comitente
A natureza odeia a monotonia, a simetria. O absoluto reflecte-se na alma e transfigura-se em inumerveisformas, diferentes todas, semelhantes todas...15
Em qualquer dos casos o racionalismo uma posio extrema, - quase pattica. Tu sabes. Tudo eraassimtrico em ti.16
e em coincidncia com os de Almada tambm:
Este o princpio da Simetria, palavra que no grega, mas formada com duas palavras gregas (sim +mtron = com medida), e no significa o que por ela correntemente se entende. A palavra grega quecorresponde ao que devia ser a Simetria, e no o que por ela se entende, Tekn.17
A simetria cujo nome verdadeiro Magia Branca e em oposio a Magia Negra que transcendentalista,no se resume combinao das linhas simples ou dos algarismos entre si []
15Jos Manuel,Alquimia do sonho, op. cit.,p. 35.16Ibidem, p. 28.17Jos de Almada Negreiros, Ver, notas e prefcio de Lima de Freitas, Lisboa, Arcdia, 1982, p. 84.
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Chamando Magia Negra ao transcendentalismo, parecer pejorativo, o caso , porm, que otranscendentalismo tem artes para estar constantemente a sair da sua magia negra []O transcendente indubitavelmente o despertador dos longos letargos humanos, mas os marcos nocaminho do Homem vo sendo postos em seguimento, pessoa em pessoa, pela simetria.Tudo quanto se passou no mundo, se passa e se passar, o desta dualidade humana da simetria e dotranscendente.18
Significativa , nesse contexto, a declarao de Jos Manuel Ferro19
acerca dapredileco pelo natural-assimtrico face ao racionalismo-simtrico.
Antnio Varela ter tido em considerao os gostos do proprietrio, optando por uma
estrutura veladamente racionalista e sensivelmente assimtrica. De acordo com o
proprietrio e o arquitecto, Almada privilegia uma esttica outra, diferente,
procurando na assimetria o transcendente e na simetria a relao entre as partes e o
Todo.
Almada procurar na sua ltima obra, Comear, 1968-1969, verdadeiro testamento
gravado na pedra do trio da Fundao Gulbenkian, uma Simetria sensvel, uma Medidasecreta, uma Cifra pessoal, desenhando no centro um Pentalfa e realizando uma simetria
assimtrica, onde a estrela ocupa um lugar mais esquerda do ponto de interseco das
diagonais com origem nas extremidades do painel.20
significativo que num contexto como o da casa, tecido em torno do mito de Psique,
Almada diga que o transcendente, ou a assimetria, despertador dos longos letargos
humanos, de acordo com o tema do vitral por ele concebido sob encomenda de Jos
Manuel.
Mais ainda. Na escadaria de entrada, perto da assinatura do Arquitecto Antnio Varela,
com a data de inaugurao e dedicatria da Casa, coincidente com o aniversrio do filho
da proprietria, 10 de Fevereiro de 1954, encontra-se uma outra inscrio que reporta a
frase de Paul luard:La maison sleva comme un arbre fleurit, referncia programtica
ao significado simblico da construo.
18Ibidem, pp. 86-87.19O Dr. Jos Manuel Ferro, poeta, artista, editor, msico, escolheu assinar os seus trabalhos com umsimples Jos Manuel. Por isso, daqui em diante referir-nos-emos a ele apenas pela sua assinatura.20Barbara Aniello,Jos de Almada Negreiros: do Caos Estrela danante, inArtis, Revista do Institutode Histria de Arte da Universidade de Lisboa, n. 6, Lisboa, 2007, p. 347.
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10. e 11. Epgrafes com citao de Paul luard e assinatura do Arquitecto com data. FotografiaPauloCintra, Novembro 2008.
Colocada numa cota de terreno sobrelevada, a Casa ergue-se em relao ao nvel da rua,
mas ergue-se ao contrrio, de cima para baixo, como uma rvore invertida: as razes,
que esto no alto, so representadas pelos respiradores e chamins no terrao e as flores
esto geometricamente implantadas no pavimento em mosaico na entrada do jardim.Desta maneira explicar-se- a enigmtica funo duma chamin fingida no terrao, que
no tem qualquer ligao com o interior da casa,
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12. Chamin fingida no telhado da Moradia. FotografiaPaulo Cintra, Novembro 2008.
como tambm do retculo do alado Nordeste, que corresponde, no interior, escada
que liga os andares. O jogo rtmico e geometricamente trabalhado deste bordado remete,
ao nvel simblico, para o desenho dum tronco de rvore.
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13. Alado Nordeste da Casa da Rua de Alcolena. FotografiaPaulo Cintra, Novembro 2008.
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A trama vegetal que percorre a escada muito mais palpvel nas alteraes de 1955,
que no desenho original de 1951:
14. Antnio Varela, Obra 23293, Processo 2306/1955, Folha 11, Arquivo Municipal de Lisboa.
15. Antnio Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 53, Arquivo Municipal de Lisboa.
significativo encontrar no esplio familiar do proprietrio uma foto de Dona Maria da
Piedade, retratada em pose de inspirao potica, junto das duas inscries. A referncia
rvore, a assinatura do arquitecto e a imagem da proprietria estabelecem uma
triangulao de significados e aluses filosficas que no nos podem deixarindiferentes.
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16. Dona Maria da Piedade. Fotografia gentilmente cedida por Madalena Ferro. Esplio familiar.FotografiaPaulo Cintra, Novembro 2008.
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O smbolo da rvore invertida pertence ao Neoplatonismo esotrico e foi utilizado em
muitas outras correntes espirituais. O seu esquema, com as razes metafsicas viradas
para o alto, o seu tronco nico e os ramos voltados para baixo, mostra como todas as
manifestaes temporais e particulares esto ligadas a uma unidade universal. Tal como
a Tbua esmeraldina, que recita o que est em cima anlogo ao que est em baixo, arvore invertida sublinha uma reciprocidade entre o mundo das esferas e o mundo
emprico. Todas as coisas materiais tm origem nas Ideias, ou seja, no Universal.
Curiosamente, entre os raros vestgios da obra do escultor Antnio Paiva, que colaborou
na decorao do portal principal, encontramos a imagem duma rvore invertida numa
medalha cunhada em 197021e no seu desenho preparatrio:
17. Antnio Paiva, Medalha em bronze, 80 mm, cunhada, 1970 para a Comisso de ConstruesHospitalares, Hospital de Beja. Coleco particular. Fotografia de Barbara Aniello.
21Devo generosidade e disponibilidade do professor, escultor, coleccionador Joo Duarte a publicaodestas medalhas de sua propriedade e a partilha de importantes notcias acerca da actividade de AntnioPaiva, do qual chegou a ser aluno na Escola de Belas Artes nos anos 1974-1976. Cfr. Joo Duarte,Um percurso na medalha em Portugal, fotogr. Jos Viriato; concepo grfica Andreia Pereira,Universidade de Lisboa, 2005, pp. 1-26.
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18. Antnio Paiva, desenho preparatrio para a Medalha em bronze, 80 mm, cunhada, 1970 para aComisso de Construes Hospitalares, Hospital de Beja. Esplio Paiva. Fotografia de Barbara Aniello.
Em particular, no desenho o tronco e as razes erguendo-se formam uma figura
antropomorfa de braos estendidos em cruz.
A tentativa de harmonizar os opostos visualizados no pavimento em mosaico, na
referncia da inscrio rvore, na arquitectura mstico-racionalista, na colocao doedifcio fora do eixo, corresponde ao simblico acesso do iniciado, em busca da unidade
perdida. A Alma, ou Psique, ao aproximar-se da casa, sente-se, graas a toda uma srie
de indcios, impulsionada a superar os obstculos e as oposies derivadas do Duplo,
claro-escuro, ortogonal-curvilneo, simtrico-assimtrico, at, finalmente, compreender
e alcanar a Unidade.
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5. O hortus conclususde Antnio Varela: a viagem botnico-simblica de Psiqueno jardim de Alcolena.
19. Planta geral da Obra Rua de Alcolena, Lote 149, autografada por Antnio Varela com indicao das
plantas, rvores e elementos decorativos do jardim. Esplio Ferro. FotografiaPaulo Cintra, Novembro2008.22
22 Requereu a Senhora D. Madalena Ferro que fosse referido que esta planta foi descoberta pelainvestigadora Ctia Mouro e pelo fotgrafo Paulo Cintra, aquando da visita ao esplio da famlia de JosManuel Ferro e de Maria da Piedade Figueiredo Mota Gomes.
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19A. Esquema a partir da Planta geral da Obra Rua de Alcolena, Lote 149, autografada por AntnioVarela com indicao das plantas, rvores e elementos decorativos do jardim. Desenho de BarbaraAniello.
Superado o recinto sagrado, preldio ao acesso casa, deparamo-nos com um vasto
jardim que abraa e emoldura a construo, atenuando a sua aparncia abstracto-
geomtrica. Da anlise da planta original assinada pelo arquitecto, emerge uma atenta e
ponderada escolha das plantas, rvores e elementos decorativos que, no meu entender,
no fruto duma elaborao casual ou meramente esttica, mas sim dum sbio e ciente
programa mitogrfico-simblico. Atravs do significado de cada rvore,23 seguindo o
seu intuito ou a sugesto de outrem, Antnio Varela desenha botnica e simbolicamente
a peregrinatio animaede Psique em busca de Eros. Assim, no mito como no jardim,
podemos ler a histria da Alma que, no contente com o seu amor cego, vtima da sua
dvida (representada pelos Oleandros) descobre a imagem sublime do amante
adormecido, inflama-se de amor por Amor e, abandonada pelo amado, ela, que era
destinada a ser deusa imortal, recai numa humana e mortal condio. A este primeiro
momento crtico do drama corresponde uma rvore que pela sua longevidade e
persistente verdura duplamente alusiva Morte e Imortalidade (Ciprestes). Daqui
em diante comea a peregrinao da Alma em busca do Amor perdido, no sem
23 Alain Gheerbrant, Jean Chevalier, Bernard Gandet, Dictionnaire des symboles: mythes, rves,coutumes, gestes, formes, figures, couleurs, nombres, Paris: Robert Laffont, 1969, pp. 274 e 677.
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sofrimento e lgrimas (Salgueiro choro).24A memria do amado (Alecrim do Norte)
impulsiona Psique a enfrentar inmeras provas, a ltima das quais roubar o perfume a
Persfone. Vtima pela segunda vez da sua prpria curiosidade, Psique abre o frasco e
invadida por um sono infernal. Esta segunda morte (Ciprestes) o outro momento cr-
tico no drama, mas desta vez Eros a despertar Psique e a doar-lhe a imortalidade,como prmio pela sua perseverana (Magnlia). Neste sentido particularmente
indicativo o outro significado do Alecrim do Norte, resumido pela frase a vossa
presena me reanima, devido ao cheiro que a planta exala.25A arquitectura do jardim
contm um duplo nvel de leitura, tornando visvel, por um lado, o mito e as
peregrinaes de Psique, por outro, o conceito filosfico da viagem circular cumprida
pela Alma na reincarnao. Neste roteiro botnico, debaixo dos vus da fabula,
deciframos a teoria platnico-pitagrica da Metempsicose, segundo a qual a Alma
reincarna em novas vidas, depois de ter mergulhado nas guas do Lthe, o rio do olvidoque apaga a memria das vidas passadas. Ao Lthe, representado pelo espelho de gua
rectangular no lado sudoeste do jardim, corresponde no lado oposto o Euno, o rio da
memria, citado por Dante na Comdia. O primeiro faz esquecer o Mal e os pecados
passados, o segundo faz lembrar unicamente o Bem. Junto do Lthe, quebrando o
itinerrio circular das plantas, no por acaso est a Tuia, ou arbor vitae, cuja etimologia
remete para o grego incenso, particularmente significativo num contexto de purificao,
ascenso e reincarnao da Alma.
Os dois lagos poderiam tambm ter outro significado. De facto num rio que, depois do
abandono de Eros, a inconsolvel Psique se tenta suicidar, mas as mesmas guas
trazem-na para a margem at ao encontro com Pan que a convida a esquecer o passado,
a procurar e ganhar novamente o amor de Eros. Daqui a coincidncia entre o rio do
olvido e a perseverana significada pela Magnlia. Por outro lado, o segundo lago
poderia representar o rio Estge, atravessado por Psique procura de Persfone,
conhecido por ser rio da imortalidade, destino final da futura deusa.
As formas opostas dos dois lagos, geomtrica-orgnica, ortogonal-curvilnea,
masculina-feminina, aludem coincidentia opositorumque percorre toda a iconografia
24 Na linguagem das flores, o Salgueiro-choro indica sem dvida a melancolia. Esta rvore remetetambm para a imagem de uma amante desventurada, que parece murmurar sem cessar: dos males opior a ausncia! e que, exilada, est permanentemente em busca do amado. Cfr. Diccionario dalinguagem das flores, Lisboa: Typ. Lusitana, 1868, pp. 46-47.25Ibidem, p. 15. Alm destes significados, o Alecrim do Norte representa tambm o amor fiel, videDiccionario e linguagem das flores, das cores e das pedras preciosas, Lisboa: Aillaud, Alves, 1913, p.12,e o profundo entendimento entre amados: quero o que tu queres, ibidem, p. 84.
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da Casa. Em particular, a do espelho de gua a Noroeste, em contraponto com os
avanos e recuos das duas varandas exteriores, das escadas em semi-elipse interiores e
dos dois grupos de Ciprestes, remete, como explicaremos mais adiante, para a dialctica
cheio-vazio, plenitude-escassez dos mticos progenitores de Eros, Poros e Pnia.
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6. Um Portal exotrico. A iniciao de Psique.
Contornado o jardim simblico, depois desta imerso na filosofia do mito, encontramos
no lado Sul Poente um duplo portal, em ambos os pisos, inferior e superior. Esta dupla
entrada reflecte a necessidade de separar a zona de recepo, situada no piso trreo, da
zona mais privada, destinada ao proprietrio, Jos Manuel, cujo acesso independente garantido por uma escada exterior. A primeira apresenta dez baixos-relevos assinados e
datados de 1952 e uma escultura de autoria de Antnio Paiva. A segunda um amplo e
cncavo painel de azulejos de Almada Negreiros. No meu entender, a primeira
corresponde parte exotrica da casa, enquanto a segunda d acesso diviso esotrica,
destinada aos poucos eleitos do entouragedo proprietrio.
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20. Antnio Paiva, Baixos-relevos e Escultura. Portal principal da Casa. FotografiaPaulo Cintra,Novembro 2008.
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A inteno de decorar plasticamente o portal principal da Casa visvel nos desenhos
do projecto de Antnio Varela.
Em particular, confrontando os primeiros desenhos dos alados de 1951 com as
alteraes de 1955, enquanto reparamos na inalterada presena das sete esculturas do
conjunto decorativo da ombreira, surpreende a substituio da primordial e vaga ideiada escultura cimeira porta por uma mais abstracta modelao zoomrfica. O arquitecto
imagina, no primeiro projecto, trs figuras antropomrficas com uma provvel
maternidade por cima do portal e, quatro anos depois, troca-as pelo ouroboros,
mantendo inalterada a ideia do culo e da janela que albergaria o vitral.
21. Antnio Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 53, Arquivo Municipal de Lisboa.
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22. Antnio Varela, Obra 23293, Processo 2306/1955, Folha 11, Arquivo Municipal de Lisboa.
O escultor Virglio Domingues recorda-se de ter assistido e participado na execuo dos
dez baixos-relevos que fogem, sem dvida, iconografia habitual do escultor. O estilo
francamente geomtrico destas terracotas algo nico na produo at agora encontrada
do artista, que muito provavelmente correspondeu a um requisito especfico de
encomenda. Contrariamente prxis da poca, em que, como lembra Antnio Duarte
num artigo in memoriam de Paiva, os artistas plsticos eram solicitados a integrar na
arquitectura e espaos urbanizados as suas criaes, realizadas sem dirigismo, que estes
no consentiriam qualquer tutela, digo castrao, 26 o esclarecido comitente, Jos
Manuel, ter fornecido ao escultor o motivo e o sujeito desta encomenda. Ser que na
sua preciosa biblioteca, infelizmente dispersa, ou na sua produo indita,
malogradamente queimada depois da sua morte, segundo o seu desejo, encontrvamos a
chave da interpretao deste ciclo inicitico? O conjunto de dez baixos-relevos em barro
cozido apresenta um percurso possvel atravs da gnose pitagrica, sintetizada pelas
revolues geomtricas dos arqutipos do quadrado, do tringulo, do crculo, da espiral,
do pentagrama, interligados pela ideia da progressiva ecloso da luz, do 1 ao 10 grau,
correspondente gradual iluminao do iniciado.
26Antnio Duarte, Escultor Antnio Paiva, inBelas-Artes Revista e Boletim da Academia Nacional deBelas-Artes, Lisboa 1986 a 1988, 3 srie, n 8 a 10 (especial comemoraes), p. 165.
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23. Antnio Paiva, Dez baixos-relevos. Portal principal da Casa. FotografiaPaulo Cintra, Novembro2008.
O nmero dez sagrado para os pitagricos. Almada Negreiros cita os dez lugares da
coleco do nmero no seu escrito Ver, ligando-os figura do Pentalfa, ou
Pentagrama, ou Estrela de cinco pontas.
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24. Jos de Almada Negreiros, Os dez lugares da coleco do nmero, desenho publicado em Mito-Alegoria-Smbolo: monlogo autodidacta na oficina de pintura, Livraria S da Costa, Lisboa, 1948,republicado em Almada Negreiros, Jos de, Ver, notas e prefcio de Lima de Freitas, Lisboa, Arcdia,1982, p. 260.
As linhas do pentagrama cruzam-se em 10 pontos, desde 0 at 9. A soma dos algarismos
na horizontal, que perpendicular ao segmento que une o zero e o cinco e dele
equidistante, sempre 10.
O nmero cinco, em linha com o zero, ocuparia o eixo de simetria da srie, dividindo-a
em duas metades. No por acaso, Antnio Paiva desenha o Pentalfa em 5 posio.
Almada lembra que, sendo o zero contguo de um e nove, tanto pode comear comoterminar a srie, tornando a coleco dos algarismos circular e potencialmente ilimitada.
Utilizando um verbo a ele muito caro, Almada diz a coleco recomea sempre at
infinito [itlico nosso]:27
27 Jos de Almada Negreiros, Mito-Alegoria-Smbolo: monlogo autodidacta na oficina de pintura,Livraria S da Costa, Lisboa, 1948, republicado em Jos de Almada Negreiros, Ver, notas e prefcio deLima de Freitas, op. cit., p. 260 [itliconosso].
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A teoria do eterno retorno e do eterno devir sintetizada por Antnio Paiva na figura
zoomrfica que domina o portal, alusiva ao ouroboros, reunindo os conceitos de
princpio e fim, de vida e morte, de nascena e renascena.
25. Antnio Paiva, Escultura. Portalprincipal da Casa. FotografiaPaulo Cintra, Novembro 2008.
O smbolo da eternidade est relacionado com a roda da evoluo, com o movimento e a
continuidade, com a unio entre o um e o todo, com a criao e a existncia circular dos
seres, com a unio entre cu e terra, sendo a serpente animal infernal e terrestre e o
crculo smbolo do mundo celeste.
Os antigos interpretavam o Ouroboros(do copto Ouro= re e do ebraico Ob= serpente),
ou seja a serpente que morde a prpria cauda, como a mudana do ano e o retorno ao
incio, mas tambm como princpio alqumico do fogo.28
28Roob Alexander,Il Museo Ermetico,Alchimia & Mistica, Tachen, Kln, 1997, pp. 402-403 e 421.
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26. Smbolo alqumico da serpente Ouroborosin Antigo Manuscripto Grego, Bridgeman Art Library Ltd.v. Corel Corporation.
No por acaso o proprietrio, Jos Manuel, autor do texto A Alquimia do sonho,1951no s explora o tema do eterno fluir do tempo
H qualquer cousa de profundamente doloroso na conscincia. Tudo flui, tudo se perdeirremedivelmente A nica eternidade do homem a plena vivncia do instante, comunho com tudo,indiscriminadamente, em contemplao e humildade, em aceitao e ddiva.29
mas tambmpe como nume tutelar da sua casa a serpente, o animal alqumico capaz
de se devorar a si mesmo, tal como o fogo que se alimenta com o fogo [] o fogo que
consome tudo, que abre e fecha todas as coisas.30Por isso a serpente alter-ego da
porta, tal como lembra o proprietrio da Casa num seu escrito de 1964:
A cobra: desde o princpio do mundo amaldioada rasteja de porta em porta procura de qu? de umperdo? de uma esmola? talvez de nada de resto quem a conhece? quem a v?31
Aparentemente naf, este Bestirio, esconde uma mensagem profunda, invisvel ao
profano, mas evidente para quem procure uma exegese crtica do texto. Ligado s
origens e ao pecado, o pobre animal associado porta e invisibilidade. Neste quem
a v ? legvel um apelo aos iniciados que conseguem ver alm das formas, da
natureza, do quotidiano, tal como lembra o poeta na epgrafe do mesmo texto:
"Rien ne me parait plus surprennent que le banal; le surrel est l, la porte de la main, dans lebavardage de tous les jours." Eugne Ionesco32
Premissa necessria para o Nefito que queira ultrapassar a ombreira da porta do
Conhecimento Superior a clarividncia, ou seja no s a capacidade de ver
29Jos Manuel,Alquimia do sonho, op. cit., p. 33.30Abraham Eleazar, Uractes chymisches werk, Leipzig, 1760, in Alquimia & Misticismo, AlexanderRoob, Taschen, Lisboa, 1997, p. 403.31Jos Manuel,Bestirio, Lisboa, Tipografia Ideal, 1964, n. 7.32Idem.
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claramente, de ante-ver, mas tambm de possuir a segunda vista, na qual falava
Swedenborg,33para descortinar os misteriosos significados que as aparncias encobrem.
Indicativa dum contexto inicitico, como o da casa, preanunciado pela entrada a xadrez,
esta associao entre a porta e o infinito. Se o Conhecimento Superior permite a
transio entre dois mundos, desde as trevas at a luz, significativo que at mesmo noelemento da porta, verdadeiro diafragma entre estas duas esferas, se apresentem os
emblemas do infinito.
Mais ainda. Na minha opinio, na escultura adossada de Antnio Paiva, por detrs do
smbolo do ouroboros, esto os emblemas do mega34e do Alfa sobrepostos: o mega
por baixo e o Alfa por cima. Trata-se das duas letras justapostas: o corpo da serpente
descreve o Alfa em posio vertical, por detrs dum suporte em jeito de mega. Deste
jogo entre o zoomrfico e o cifrado, resultaria um trplice emblema, Alfa-Ouroboros-
mega, a sublinhar, por um lado, o incio e o fim de Tudo e de todos os Tempos (Alfa-mega) e, por outro, a continuao dos Tempos no eterno recomeo at Infinito
(Ouroboros). Isso condiz com a interpretao unitria da Casa como unio dos opostos,
num contexto dedicado a Psique. Uma reverberao acstica desta interpretao ler-se-
nas poesias de Jos Manuel:
Sers o incio e o fimDe todos os momentosA primeira e a ltimaDe todas as mulheres35
Depois o prncipe encontrou a sua alma e amou-a tanto tanto tanto que deu a sua vida por ela.E nesse mesmo instante reconheceu-a e descobriu o seu mistrioA sua alma era tambm a sua morte.36
Psique coincide com o incio e com o fim, remetendo simultaneamente para a
circularidade infinita dos Tempos. De facto, segundo a doutrina rfico-pitagrica,
Psique, ou seja a Alma, cumpre uma viagem (Metempsicose), transmigrando depois da
morte para outro corpo.
Observando o desenho do alado Noroeste de 1955 de Antnio Varela, reparamos numa
vontade de reduo do smbolo zoomrfico geometria triangular dum Delta.
33 Emanuel Swedenborg, cientista, filsofo, telogo, inventor, poltico, literato, espiritualista sueco dosculo XVII-XVIII, descreveu a Cincia das Correspondncias na obra Arcana Clestia, entre 1746 e1747.34Devo ao arquitecto Hugo Nazareth Fernandes e a uma troca de opinies num caf tarde a intuio deque a escultura simulasse um mega.35 Jos Manuel, Eros, in Eros, revista literria fundada e dirigida por Jos Manuel, n. 1 (Abril 1951) - n15 (Dezembro 1958), I, 17.36Jos Manuel, Uma histria triste, in Eros VIII (Fevereiro 1955), op. cit.
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27. Antnio Varela, Obra 23293, Processo 2306/1955, Folha 11, Arquivo Municipal de Lisboa.
O Delta na realidade uma ttrakis. Pitgoras e os seus estudantes prestavam juramento
sobre esta figura, baseada no nmero quatro.
28. Ttrakis pitagrica
Como se v, cada lado do tringulo equiltero tem quatro pontos. No vrtice est o
nmero 1. A ttrakis representa o nmero dez, soma dos primeiros quatro nmeros
naturais, 1+2+3+4, dispostos em pirmide ou Delta. O nmero 10 exprime a
multiplicao dos seres e das formas criadas e o retorno Unidade, atravs da
reintegrao no Fogo primordial, no Esprito Criador. Se na sequncia numrico-
geomtrica das dez terracotas est didctica e analiticamente explicitado o caminho do
iniciado, no ouroboros, cimeiro do portal, encontramos a sntese geomtrica e filosfica
desta viagem. O portal parece-nos a metfora implcita do percurso por parte do Nefito
que, em frente s portas do saber, chamado a meditar no contnuo comeo ou re-
comeo, onde a cabea e a cauda, o alfa e mega, o 1 e o 10 se sobrepem,
contemplando os vrios graus de iluminao, exemplificados nos baixos-relevos.
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7. O Portal esotrico. A dupla queda de Psique, ou a descida da alma na
conscincia.
29. Jos de Almada Negreiros, paineldo portal da entrada secundria da Casa. FotografiaPaulo Cintra,Novembro 2008. http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081126N1yIE8zf0Ej96QN9.JPG(_CCC4559.tif)
A entrada esotrica surge em cariz cncavo face varanda, cuja convexidade est em
contraponto com a plataforma anloga no piso inferior. O aspecto aberto e ondulado das
duas varandas no s contribui para desmentir a austeridade do bloco ortogonal do
edifcio, mas tambm remete para a raiz mitolgica da iconografia do vitral e dos
azulejos que o decoram, assim como alude ao significado oculto e hermtico da
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construo. A articulao salincia/reentrncia, proeminncia/concavidade remete, a
meu ver, para a origem do mito de Eros, tal como narrado por Scrates, que refere o
discurso de Ditima, noBanquetede Plato:
Quando nasceu Afrodite, os deuses banquetearam-se e, entre eles, estava Poros (o Expediente), filho de
Mtis. Depois de terem comido, chegou Pnia (a Pobreza) para mendigar, porque tinha sido um grandebanquete, e ela estava perto da porta. Aconteceu que Poros, embriagado de nctar, dado que ainda nohavia vinho, entrou nos jardins de Zeus e, pesado como estava, adormeceu. Pnia, ento, pela carncia emque se encontrava de tudo o que tem Poros, e cogitando ter um filho de Poros, dormiu com ele e concebeuEros. Por isso, Eros tornou-se seguidor e ministro de Afrodite, porque foi gerado durante as suas festasnatalcias; e tambm era por natureza amante da beleza, porque Afrodite tambm era bela. Pois que Eros filho de Pnia e Poros, eis qual a sua condio. sempre pobre no de maneira alguma delicado e belocomo geralmente se cr; mas sujo, hirsuto, descalo, sem teto. Deita-se sempre por terra e no possuinada para cobrir-se, descansa dormindo ao ar livre sob as estrelas, nos caminhos e junto s portas. Enfim,mostra claramente a natureza da sua me, andando sempre acompanhado da pobreza. Ao invs, da partedo pai, Eros est sempre espreita dos belos de corpo e de alma, com sagazes ardis. corajoso, audaz econstante. Eros um caador temvel, astucioso, sempre armando intrigas. Gosta de invenes e cheiode expediente para consegui-las. filsofo o tempo todo, encantador poderoso, fazedor de filtros, sofista.Sua natureza no nem mortal nem imortal; no mesmo dia, em um momento, quando tudo lhe sucede
bem, floresce bem vivo e, no momento seguinte, morre; mas depois retorna vida, graas naturezapaterna. Mas tudo o que consegue pouco a pouco sempre lhe foge das mos. Em suma, Eros nunca totalmente pobre nem totalmente rico.37
No princpio, Scrates, porta-voz de Ditima, narra que os homens eram inteiros e
acrescenta que Eros o que est entre dois extremos, entre sabedoria e ignorncia,
sendo, por condio e origem, filho de um pai sbio e rico e de uma me que no sbia
nem rica. Assim, o mito, legvel na decorao interior e exterior da casa, est presente
tambm na sua estrutura arquitectnica, feita de proeminncias e concavidades, como
evidente nas plantas do rs-do-cho e do primeiro andar, onde o avanar de Poros
interpretado pelas varandas e o recuar de Pnia pela melodia curvilnea da escada,
desenhada em semi-elipse.
37http://pt.wikipedia.org/wiki/Eros
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30. Antnio Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 52, Arquivo Municipal de Lisboa.
Do ponto de vista figurativo, o portal esotrico um singular preldio j referida obra
Comear, 1968-1969.38Tal como na sua ltima obra, o autor desenha aqui as evolues
e revolues dum pentagrama, perceptvel na sua dupla verso invertida em alto
esquerda e direita, enquanto atravessa momentos de invisibilidade e momentos de
grande visibilidade (linhas negras e linhas douradas), alternando um percurso linear e
anguloso, com uma passagem circular ou em espiral (linhas vermelhas e douradas). Os
fundos negros alternam-se aos campos vermelhos. A presena simultnea das trs cores
remete para a alquimia dos materiais: ouro, chumbo e fogo. Mais ainda. Na pea teatral
de Almada O mito de Psique, 1949, encontramos a citao da famosa caverna do outro
mito de Plato.
A cena representa o interior duma caverna cuja entrada ao fundo da medida duma pessoa39
38Para uma anlise do painel veja-se: Jos-Augusto Frana, Almada: o portugus sem mestre,Lisboa,Estdios Cor, 1974;Jos-Augusto Frana, "Comear", in Colquio, Lisboa, n 60 (Out. 1970), pp. 20-26;Jos Lima de Freitas, Almada e o nmero, Lisboa, Arcdia, 1977; Lima de Freitas, Jos, Almada e onmero, Lisboa, Arcdia, 2 ed. rev., corrigida e aumentada, Lisboa, Soctip, 1990; Jos de AlmadaNegreiros, Ver, notas e prefcio de Lima de Freitas, Lisboa, Arcdia, 1982; Jos Lima de Freitas, Pintarosete: ensaios sobre Almada Negreiros, o pitagorismo e a geometria sagrada, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, D.L., 1990. Joo Furtado Coelho, Osprincpios de comear,em Colquio. Artes, n. 100,Lisboa, Maro 1994, pp. 8-23, 75. Barbara Aniello, op. cit.39Jos de Almada Negreiros, O mito de Psique, em Teatro, Lisboa, Estampa, 1971, p. 171.
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O mito platnico da caverna, descrito no VII livro da Repblica, uma parbola de
como o homem se consegue libertar da escurido da ignorncia, para alcanar a luz da
verdade.
Conta o mito que um grupo de homens vivia no interior duma caverna, com uma
entrada aberta luz, acorrentados e de costas para que no se pudessem mexer nempudessem ver seno diante deles. Nas paredes da caverna vem-se uma srie de sombras
pertencentes aos homens que vivem no exterior do antro, onde h uma fogueira acesa.
Os prisioneiros acreditam que as sombras projectadas pelos homens e pelos objectos so
reais. Se fossem libertados das suas cadeias, obrigados a voltar-se, aps sofrer um
deslumbramento que os impediria de distinguir os objectos de que antes viam apenas as
sombras, constrangidos a sair da caverna, seriam curados da sua ignorncia, no sem
antes ter de esperar o tempo necessrio para a adaptao da vista.
Alegoria do processo do conhecimento, o mito da caverna permite explicar que overdadeiro Conhecimento, a Epistme, passa pela gradual ultrapassagem das coisas
sensveis, Doxa, chegando ao domnio das Ideias. Para o filsofo, a realidade est no
mundo das Ideias, enquanto a maioria dos homens vive na condio da ignorncia, ao
nvel da Doxa, no mundo ilusrio das coisas sensveis, mutveis, corruptveis, meras
sombras da luz da Verdade, da Gnose, da qual se mantm afastada. As concluses do
mito, tiradas por Scrates, esto surpreendentemente em sintonia com a figura e o
significado do mito de Psique:
Scrates - Quanto subida regio superior e contemplao dos seus objectos, se a considerares como aascenso da alma para a manso inteligvel, no te enganars quanto minha ideia, visto que tambm tudesejas conhec-la. S Deus sabe se ela verdadeira. Quanto a mim, a minha opinio esta: no mundointeligvel, a ideia do Bem a ltima a ser apreendida, e com dificuldade, mas no se pode apreend-lasem concluir que ela a causa de tudo o que de recto e Belo existe em todas as coisas; no mundo visvel,ela engendrou a luz; no mundo inteligvel, ela que soberana e dispensa a verdade e a inteligncia; e preciso v-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pblica.40
A subida da Alma para a Manso inteligvel, as provas para alcanar o Belo e o
Bem, a Luz como alegoria da Ideia: tudo isso a essncia, a mensagem, o fil-
rouge que liga escultura, arquitectura, pintura e poesia, na obra de arte total que a
Casa da Rua de Alcolena.
Em consonncia com o mito platnico e coerentemente com o desenho escolhido para
os azulejos do painel esotrico, Almada descreve o ingresso da cena, desenhada em
forma de estrela. A personagem de Psique teatralmente pintada como uma moderna
40Plato,A Repblica, trad. e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, Fundao Calouste Gulbenkian,Lisboa, 1993, livro VII, pp. 317 e segg.
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mannequin la mode, caracterizada pela curiosidade, qualidade que a distingue entre as
outras e que lhe consente ultrapassar o antro escuro:
Depois passa para l da abertura da caverna uma jovem, autntico figurino de jornal de modas, dechapu, luvas e sombrinha muito bem enrolada que lhe serve de bengala. Torna a aparecer e fica entrada curiosa do interior da caverna.
A JOVEM - Ol!
Depois com a ponta da sombrinha vai cautelosamente experimentando a passagem at que entraperdendo-se na escurido da caverna.41
Alma gmea da Psique teatral a Psique representada nos azulejos da varanda exposta
no lado Sudoeste da casa. Daqui em diante, a jovem sofrer vrias metamorfoses: de
Psique em mulher de Cabaret, de mulher de Cabaret em Colombina, de Colombina em
Me. Por sua vez, Eros torna-se Arlequim e, de Arlequim, Pai.
O dilogo entre as personagens da pea almadina um crptico ritual de iniciao entre
mestre e discpulo, nomeadamente Eros e Psique, acerca da gnose ou filosofia doConhecimento.
ELE - A ideia difcil porque simples.ELA - Qual ideia?ELE - Toda a ideia. Toda a ideia uma glosa da luz.ELA - Qual luz?ELE - A nica. A luz nica, como cada glosa.ELA - Qual glosa?ELE - A glosa da luz.42
Em unssono com a pea teatral, no s o azulejo da entrada esotrica da casa da
medida de uma pessoa e desenhado em forma de estrela, representando a escuridoda caverna, mas tambm o seu fundo negro se torna o palco para a dana do Pentagrama
que, como em Comear, nas suas revolues e rotaes actua, estiliza e personifica a
Ideia. Precisamente por isso, Almada escolhe os riscos coloridos: para fixar numa
iconografia abstracta a Ideia, sendo Toda a ideia uma glosa da luz. Em perfeita
assonncia com o pensamento platnico, segundo Almada, da luz da ris nasceram as
cores todas e a luz todas contm. A Ideia, contendo todo o saber, alter-ego da Luz. Por
isso, na sua dana, a estrela conhece as cores brilhantes dos trajectos curvilneos e
rectilneos. um precipitar-se de linhas e tintas que revelam e ocultam, ao mesmo
tempo, no habitual jogo entre visvel e invisvel que caracteriza tambm o painel da
Gulbenkian, a dana e a queda livre do Pentalfa invertido.43
41Jos de Almada Negreiros, O mito de Psique, op. cit., pp. 172-173.42Ibidem, p. 174.43Barbara Aniello, op. cit., p. 344.
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Alm disso, Almada d-nos, noutros espaos da sua escrita, a chave da motivao da
sua escolha cromtica, tal como acontece em particular na clebre Cena do dio:44
Sou vermelho-niagara dos sexos escancarados nos chicotes dos cossacos!,Pajem loiro,Amarelo-mmia,Resto de cedros e Fumo de cinzas,
Vulco pirotcnico com chuvas de ouro.45
Como nos sulcos gravados na pedra do painel da Gulbenkian, estes traos coloridos,
desenhados por Almada no azulejo da entrada dos aposentos privados do proprietrio da
casa, veiculam um significado particular: na obra pblica representam as revolues
planetrias da estrela Vnus; na casa privada encarnam a luz da Gnoseou, melhor, a luz
que ilumina o sujeito que atinge a Gnose, em outras palavras Psique. Da exegese dos
textos almadinos, conclui-se que as linhas coloridas do portal esotrico no so mais
que um retrato luminoso do conhecvel (do que se pode conhecer) e do conhecedor
(do sujeito que conhece). A decorao do portal revela-se assim uma abstraco lrico-
geomtrica de cariz gnoseolgico, procura dos fundamentos do saber.
O fundo preto do painel de azulejos remete para o mito da caverna platnica e, como
tal, o conhecimento das coisas sensveis, ou Doxa, apenas uma sombra da ideia
arquetpica. O iniciado deve passar pelas trevas da imanncia, para atingir a luz da Ideia
na sua transcendncia. Mais ainda: a cor negra, na esttica do proprietrio da casa,
ocupa um lugar especial:
o escuro, o negro,
a cr que se no v! 46
Anjo ou demnio, no sei quem s, no sei quem sou. Em ti, e em mim, o bem e o mal, a beleza e afealdade, a verdade e o rro no surgem como um conflito, - formam uma harmonia, uma unidade. S hperverso no que inautntico. E tu s pura na tua misria, na tua grandeza, - s o meu anjo negro, o meudemnio branco. E eu sou puro na minha misria, na minha grandeza, - sou o teu anjo negro, o teudemnio branco.47
44 Jos de Almada Negreiros, Obras Completas, Poesia, vol. I, Obras Completas, Imprensa NacionalCasa da Moeda, Lisboa 1986-1993,pp. 47-66.45 Idnticas policromias encontram-se no painel Comear. Almada quis colorir os riscos gravados napedra, segundo uma deciso final dele (Frana, Jos-Augusto, Almada: o portugus sem mestre,Lisboa,Estdios Cor, 1974, p. 177). Alm de fornecer uma razo didctica, como orientao na floresta dosriscos geomtricos, estas faixas de cores constituem uma linguagem cifrada, uma mensagem crptica,esculpida na pedra, semanticamente densa de aluses. De uma leitura teosfica da obra almadina, combase na carta teosfica das cores, editada por Besant e Leadbeater num texto de 1901, infere-se que opercurso da estrela se inicia em Comear, pela descida no orgulho e na clera e, depois de ter superado aobscuridade da malcia, conhece o brilho dourado do intelecto audaz. Cfr. Barbara Aniello, op. cit., p. 350e segg.46Jos Manuel,Alquimia do sonho, op. cit., pp.105-106.47Ibidem, p. 61.
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A procurada ambiguidade entre Luz e Trevas, Visvel e Invisvel, Bem e Mal, Anjo e
Demnio, reflecte o universo filosfico de Jos Manuel, em busca dum equilbrio entre
os opostos. O eterno devir, o escorrer do tempo e a contnua transmutao dos seres
esto relacionados com o conceito de Metamorfose.
Psique, cujo mito ocupa os captulos centrais das Metamorfoses de Ovdio, emblemada alma em perptua mudana espiritual. Este conceito se reflecte na escrita de Jos
Manuel:
H uma transformao das imagens. Modificam-se permanentemente. impossvel fix-las. Do mesmomodo, a realidade obedece a uma contnua transformao. E a prpria conscincia um processo desucessivas metamorfoses. Deste modo, h trs movimentos no personagem, - o movimento de fora, omovimento de dentro e o movimento da conscincia. De tudo isto resulta um ritmo. E esse ritmo ainda oritmo da vida...48
A iconografia do Pentalfa invertido assume, assim, o valor duma tomada de conscincia
e, ao mesmo tempo, duma queda em si mesma, por parte de Psique, iniciada Gnose,
enquanto no momento de fora para dentro, de alto para baixo legvel o recuar, a
descida da Alma in interiore homini.
Emblemtica, nesse texto de Jos Manuel, a afirmao da prioridade da metamorfose
como processo vital e cognitivo. Psique, na sua iniciao, conduzida pela mo por
Eros no seu percurso das trevas luz. A Alma pode conhecer a Beleza, a Filosofia, a
Ideia desde que seja levada pelo Amor. Eros tem a funo de trmite (Eros metax)na
escalada dos fenomena at s eideias, sendo uma mistura gentica entre aspirao e
satisfao, desejo e saciedade, privao e plenitude, Pnia e Poros.No por acaso, todos os 15 nmeros da revista Eros so epigrafados com este mote
platnico:
Do sensvel ao inteligvel
O mito de Eros torna-se, para Jos Manuel e para os seus colaboradores, uma metfora
da gnose:
A cultura manifesta-se pois pelo amor do desconhecido, pelo Eros platnico, por uma inquietude e desejopermanentes.49
Emblema do Conhecimento e do Auto-Conhecimento o Pentalfa invertido: Noli foras
ire, in te ipsum redi; in interiore homini habitat Veritas.50
Por Jos Manuel:
48Ibidem, p. 33.49Jorge Nemsio, Cultura comunicao e transposio, in Eros I (Abril 1951), op. cit.50Agostinho,De vera religioneXXXIX, 72, inAugustinianumXXXVIII, I, 1998 [itlico nosso].
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TEMA COM VARIAES:1
Conhece-te a ti mesmo. O que s toda a tua realidade.
2
S uno enquanto existes. Tu s a ideia e a forma dos mundos temporais,multmodos que sentes.
3
A nica certeza, a nica verdade, a essncia interior da tua prpria alma.51
E por Almada:
Todas as coisas do universo aonde, por tanto tempo, me procurei, so as mesmas que encontrei dentro dopeito no fim da viagem que fiz pelo Universo.52
51Jos Manuel, Tema e variaes, Tipografia Ideal, 1950, p. 13.52Jos de Almada Negreiros, Confidncias, emA inveno do dia claro, II parte, em Obras Completas,Poesia, p. 171.
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8. A Estrela interior, ou a regenerao de Psique.
O arqutipo da Estre