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ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ROBERTO CODORNIZ LEITE PEREIRA O REGIME BRASILEIRO DE TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS POR CONTROLADAS E COLIGADAS NO EXTERIOR: Um estudo empírico sobre as suas causas e efeitos MESTRADO EM DIREITO São Paulo 2012

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ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

ROBERTO CODORNIZ LEITE PEREIRA

O REGIME BRASILEIRO DE TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS POR

CONTROLADAS E COLIGADAS NO EXTERIOR:

Um estudo empírico sobre as suas causas e efeitos

MESTRADO EM DIREITO

São Paulo

2012

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ROBERTO CODORNIZ LEITE PEREIRA

O REGIME BRASILEIRO DE TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS POR

CONTROLADAS E COLIGADAS NO EXTERIOR:

Um estudo empírico sobre as suas causas e efeitos

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio

Vargas como requisito parcial para a obtenção de

título de MESTRE no Programa de Mestrado

Acadêmico em Direito e Desenvolvimento.

Professor Orientador: Eurico Marcos Diniz de Santi

Linha de pesquisa: Direito e Desenvolvimento

Econômico e Social

São Paulo

2012

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PEREIRA, Roberto Codorniz Leite.

O Regime Brasileiro de Tributação de Lucros Auferidos por Controladas e

Coligadas no Exterior: Um estudo empírico sobre as suas causas e efeitos / Roberto

Codorniz Leite Pereira. - 2012 fls. 257

Orientador: Eurico Marcos Diniz de Santi.

Dissertação (mestrado) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio

Vargas.

1. Direito tributário - Brasil. 2. Direito internacional privado - Impostos. 3. Política

tributária - Brasil. 4. Concorrência. I. SANTI, Eurico Marcos Diniz de. II. Dissertação

(mestrado) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. III. O

Regime Brasileiro de Tributação de Lucros Auferidos por Controladas e Coligadas

no Exterior: Um estudo empírico sobre as suas causas e efeitos

CDU 34::336.2(81)

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ROBERTO CODORNIZ LEITE PEREIRA

O REGIME BRASILEIRO DE TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS POR

CONTROLADAS E COLIGADAS NO EXTERIOR:

Um estudo empírico sobre as suas causas e efeitos

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio

Vargas como requisito parcial para a obtenção de

título de MESTRE no Programa de Mestrado

Acadêmico em Direito e Desenvolvimento.

Professor-orientador: Eurico Marcos Diniz de Santi

Linha de pesquisa: Direito e Desenvolvimento

Econômico e Social

O presente trabalho foi realizado com o apoio da

Fundação Getulio Vargas, por meio da bolsa Mário

Henrique Simonsen de ensino e pesquisa.

Data da aprovação: ___/___/___

Banca examinadora:

Prof. Dr. Eurico Marcos Diniz de Santi

(Orientador)

Prof. Dr. Carlos Ari Sundfeld

Prof. Dr. Luis Eduardo Schoueri

São Paulo

2012

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Aos meus avós (Marina, Mário, Lorena e Tarquínio)

Page 6: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, ao Professor Eurico Marcos Diniz de Santi, orientador deste

trabalho, por todos os conselhos e pelo direcionamento dado por ele à presente pesquisa.

Certamente, o seu papel foi fundamental para que eu pudesse mergulhar no universo empírico

no qual se respalda esta pesquisa. Nunca me esquecerei das suas lições, sobretudo, a mais

importante delas: Mudar o Brasil! Sim, nós podemos!

Agradeço aos meus queridos pais, Rosana e Roberto, que sempre me apoiaram e

acreditaram no meu sucesso profissional e acadêmico. Aos meus irmãos, Christian, Tiago e

Isabella, que eu tanto amo, sem dúvida o seu apoio foi fundamental. Aos meus amados avós,

aos quais dedico este trabalho, que sempre me trataram como um filho. Aos meus tios, em

especial Carmen e Adão, e aos meus primos.

Agradeço a todos os meus amigos com quem discuti este trabalho e que certamente me

ajudaram em muito na sua elaboração dando as suas ideias e sugestões de discussões. André

Janjácomo Rosilho, obrigado pela revisão, dicas e amizade de quase 17 anos. Os

pesquisadores do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getulio Vargas (NEF-FGV),

Frederico Bastos, Basile Christopoulos, Mariana Pimentel, Guilherme Bandeira, Daniel

Zugman, Eduarda Monteiro, Vanessa Rahal e Isaias Coelho (nosso amado profeta), do qual

tenho a honra de fazer parte, em especial, muito me auxiliaram. Devo fazer um agradecimento

em especial ao meu amigo, companheiro de mestrado, pesquisador do NEF e coordenador,

juntamente comigo, do Grupo de Estudos de Tributação Internacional do NEF-FGV, Dalton

Yoshio Hirata que muito me ajudou com as suas opiniões e a sua tranquilidade inabalável.

Agradeço a todos os meus colegas de mestrado, por toda a força, pelo espírito de

equipe e pela amizade que jamais será esquecida por mim.

O Professor Carlos Ari merece também os meus mais sinceros agradecimentos, não

apenas por compor a minha banca, mas, sobretudo, por ter sido um grande mestre na minha

vida, desde a graduação até as aulas do mestrado. Já se passaram 7 anos desde a sua primeira

aula na graduação da Direito GV. Espero, sinceramente, continuar aprendendo com as suas

lições.

O Professor Luis Eduardo Schoueri que, não apenas me acolheu em suas aulas na

FDUSP, mas também contribuiu em muito para o direcionamento dado ao presente trabalho,

merece, também, os meus agradecimentos.

Page 7: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

Agradeço, também, ao Professor Marco Aurélio Greco pelas conversas, dicas e pela

entrevista. Em relação às entrevistas que me foram concedidas para a elaboração deste

trabalho, merecem o meu agradecimento todos os entrevistados, em especial Everardo Maciel,

Simone Dias Musa e Marcos Vinícius Néder.

Agradeço aos Professores Ronaldo Porto Macedo Jr., Salem Hikmat Nasser, Maíra

Machado, Oscar Vilhena Vieira, Bruno Salama, José Girardi Garcez, Luciana Gross e todos

os outros professores da Direito GV pelas aulas, ensinamentos e pela dedicação à nossa

escola.

Por fim, um agradecimento especial à minha namorada, Andressa, por todo apoio,

carinho e amor.

Page 8: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

RESUMO

O presente trabalho é o resultado de uma pesquisa empírica que buscou reconstruir toda a

trajetória percorrida pela política pública que orienta o atual regime de tributação de lucros

auferidos no exterior por controladas e coligadas de empresas brasileiras com o objetivo de

compreender as razões que levaram o Brasil a adotar uma norma de antidiferimento

demasiadamente ampla, quando comparada às normas de natureza similar adotadas na

experiência internacional. Além disso, buscamos identificar a real extensão dos efeitos

econômicos ensejados pelo regime brasileiro, em especial, frente ao processo de

internacionalização produtiva que vem se fazendo cada vez mais presente na realidade de

diversas empresas de capital nacional. Partimos da hipótese de que o regime vigente afeta

negativamente às empresas que buscam internacionalizar parte da sua atividade produtiva. Os

resultados da pesquisa são de grande importância e nos ajudaram a compreender melhor as

causas de muitas das questões jurídicas que atualmente ocupam grande parte do debate

acadêmico no direito tributário brasileiro. Defendemos a ideia de que, se os efeitos do regime

brasileiro afetam negativamente a internacionalização produtiva, o regime poderá afrontar a

Ordem Econômica Constitucional.

Palavras-chave: Transparência Fiscal Internacional, Tributação do Lucro de Coligadas e

Controladas no Exterior, Política Tributária, OCDE, Concorrência, Concorrência Fiscal

Danosa, Desenvolvimento.

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ABSTRACT

This thesis presents the conclusions of an empirical legal research that remade the path

followed by the public policy adopted by Brazilian government to tax corporate foreign

income in order to understand precisely the reasons that led Brazil to adopt an antideferral

rule that is broader that the Controlled Foreign Company (CFC) rules adopted world wide.

Besides, our objective was also to identify the economic effects on Brazilian transnational

companies arising from Brazilian CFC rules, regarding the increasing internationalization

process that Brazilian firms are making through in the past decade. We adopted the hypothesis

that Brazilian tax regime affects negatively transnational companies that aim to

internationalize part of their production. The outcomes of the present research are of a great

value to achieve a better understanding about the causes of many legal questions that are

currently being discussed among legal practitioners and scholars and faced by courts. Our

opinion is that, if the economic effects arising from Brazilian tax regime affects the

internationalization process of Brazilian firms, that may go against, in certain cases, the

economic order settled by our Constitution.

Key-words: CFC rules, Taxation, Corporate Foreign Income, Subsidiaries, Tax Policy,

Competition, Harmful Tax Competition, OECD, Development.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

I. Delimitação temática da pesquisa 13

II. Premissas metodológicas 17

III. Estrutura do trabalho 22

CAPÍTULO 1: TRAJETÓRIA DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO

REGIME DE TRANSPARÊNCIA FISCAL INTERNACIONAL 25

1.1. Notas introdutórias 25

1.2. A globalização e a mudança de concepção do Estado 26

1.3. O debate norte-americano: as origens históricas das CFC rules 30

1.3.1. Primeiras tentativas e alterações legislativas pré-1962 31

1.3.2. A alteração legislativa de 1962 (subpart f) 33

1.3.3. Subpart f: tendências posteriores a 1962 39

1.3.4. As exceções criadas às Foreign Sales Corporations (FSC) 41

1.4. O debate internacional: a concorrência fiscal danosa e as CFC rules 44

1.4.1. O projeto da OCDE sobre concorrência fiscal danosa 45

1.4.2. A concorrência fiscal danosa no direito comunitário europeu 55

1.5. Bases conceituais e teóricas do regime de transparência fiscal internacional 62

1.6. Conclusões da trajetória da evolução histórica do regime de transparência

fiscal internacional 66

CAPÍTULO 2: TRAJETÓRIA DA EVOLUÇÃO NORMATIVA

DO REGIME DE TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS

NO EXTERIOR NO DIREITO BRASILEIRO 69

2.1. Notas introdutórias 69

2.2. A evolução do regime de tributação de lucros auferidos no exterior no

direito brasileiro 70

2.2.1. 1º Momento: territorialidade 70

2.2.2. 2º Momento: a Lei nº 9.249 72

2.2.2.1. O processo legislativo 72

2.2.2.2. Conclusões parciais – Lei nº 9.249/95 81

2.2.3. 3º Momento: a IN SRF nº 38/1996 82

2.2.4. 4º Momento: a Lei nº 9.532/1997 84

2.2.4.1. O processo legislativo 84

2.2.4.2. Conclusões parciais – Lei nº 9.532/97 90

2.2.5. 5º Momento: a Lei Complementar nº 104/2001 92

2.2.5.1. O processo legislativo 92

2.2.5.2. Conclusões parciais – Lei Complementar nº 104/2001 97

2.2.6. 6º Momento: a Medida Provisória nº 2.158-35/2001 98

2.2.6.1. O processo legislativo 98

2.2.6.2. Conclusões parciais – Medida Provisória nº 2.158-35/2001 101

2.2.7. 7º Momento: a IN SRF nº 213/2002 102

2.3. Quadro-resumo dos 7 momentos 103

2.4. Afinal, por que o regime brasileiro é diferente? 105

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2.4.1. A primeira hipótese 106

2.4.2. A segunda hipótese 108

2.4.3. Conclusões parciais das duas hipóteses 109

2.5. Participação dos grupos de interesse na formulação da política tributária 111

2.6. Conclusões da trajetória da evolução normativa do regime de tributação de

lucros auferidos no exterior no direito brasileiro 112

CAPÍTULO 3: OS EFEITOS DO REGIME DE TRIBUTAÇÃO DE

LUCROS AUFERIDOS NO EXTERIOR NA INTERNACIONALIZAÇÃO

PRODUTIVA DAS EMPRESAS DE CAPITAL NACIONAL 114

3.1. Notas introdutórias 114

3.2. Premissas conceituais do fenômeno da internacionalização 115

3.3. Internacionalização produtiva e desenvolvimento nacional 122

3.4. O diagnóstico da internacionalização produtiva no Brasil 126

3.5. A internacionalização é um objetivo buscado pelo Estado? 131

3.5.1. A internacionalização nas políticas industriais brasileiras 131

3.5.2. O papel do BNDES no financiamento da internacionalização produtiva 134

3.5.3. Conclusões parciais da internacionalização nas políticas de governo 136

3.6. A pesquisa empírica: os efeitos do regime vistos da perspectiva dos

contribuintes e do fisco 137

3.6.1. Notas metodológicas 137

3.6.2. Resultados da pesquisa 140

3.6.2.1. Importância e motivações da internacionalização produtiva 140

3.6.2.2. Efeitos econômicos do regime brasileiro de tributação de lucros

auferidos no exterior 141

3.6.2.2.1. Perspectiva dos contribuintes 141

3.6.2.2.2. Perspectiva do fisco 147

3.7. Conclusões dos efeitos do regime de tributação de lucros auferidos no

exterior na internacionalização produtiva das empresas de capital nacional:

o regime visto em dois contextos distintos 151

CAPÍTULO 4: ANÁLISE JURÍDICA CRÍTICA DO REGIME DE

TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS NO EXTERIOR 153

4.1. Notas introdutórias 153

4.2. Uma questão preliminar 153

4.2.1. A primeira linha doutrinária: O regime brasileiro não é de transparência fiscal

internacional 154

4.2.2. A segunda linha doutrinária: O regime brasileiro é de transparência fiscal

internacional 158

4.2.3. Observações críticas sobre as duas linhas doutrinárias 161

4.3. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e o direito interno 162

4.3.1. 1º momento de debate da validade jurídica do regime: a questão

da disponibilidade dos lucros e o conceito constitucional de renda 162

4.3.1.1. A ADI nº 2.588 162

4.3.1.2. As posições doutrinárias 166

4.3.1.3. Os efeitos fiscais do Método da Equivalência Patrimonial (MEP) 171

4.3.1.4. Demais questões jurídicas presentes no 1º momento de debate 175

4.3.1.4.1. A questão da compensação dos prejuízos incorridos no exterior

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com os resultados positivos apurados no Brasil 175

4.3.1.4.2. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e as

regras de preços de transferência 177

4.3.2. 2º momento de debate da constitucionalidade do regime:

a Ordem Econômica Constitucional e a internacionalização empresarial 179

4.3.2.1.Constituição, ordem econômica e desenvolvimento nacional 180

4.3.2.2. Internacionalização empresarial e a Ordem Econômica Constitucional:

Quais são os limites jurídicos que o Estado deve observar ao criar uma

política industrial de internacionalização produtiva? 184

4.3.2.3. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e a Ordem

Econômica Constitucional 186

4.4. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e o direito

internacional 189

4.4.1. A compatibilidade das normas de transparência fiscal internacional

com os tratados celebrados pelos países para evitar a dupla

tributação segundo a OCDE 192

4.4.2. A compatibilidade do regime brasileiro de tributação de lucros

auferidos no exterior com os tratados celebrados pelo Brasil

para evitar a dupla tributação 199

4.5. Conclusões da análise jurídica crítica do regime brasileiro de tributação

de lucros auferidos no exterior 207

CAPÍTULO 5: CONCLUSÕES FINAIS 210

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 222

APÊNDICE A 231

ANEXO A 253

Page 13: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

13

INTRODUÇÃO

I. Delimitação temática da pesquisa

As questões de direito tributário internacional vêm ocupando posição central nos

debates entre tributaristas, economistas, formuladores de políticas públicas e acadêmicos

especialmente em um contexto em que o Brasil vem sofisticando, progressivamente, a sua

legislação fiscal de modo a criar instrumentos jurídicos, cada vez mais eficazes, para proteger

– e, em certos casos, reforçar – a sua arrecadação tributária nacional. Soma-se a este cenário o

fato de o Brasil ter celebrado diversos tratados destinados a evitar a dupla tributação e a

promover a maior troca de informações com diferentes jurisdições fiscais ao redor do mundo.

Este diagnóstico está intimamente relacionado ao fenômeno da internacionalização da

economia brasileira que não é apenas um reflexo de um fenômeno econômico mais amplo – a

globalização –, mas, sobretudo, uma consequência advinda da adoção de uma política

econômica mais aberta, através da qual o Brasil deixou de se pautar pela estratégia de

substituição de importações e passou a firmar a sua presença no mercado internacional de

forma mais expressiva, desde o governo Collor e, principalmente, com o sucesso do Plano

Real1.

Dentre os diversos instrumentos jurídico-tributários adotados pelo Brasil para se

deparar com esta nova realidade econômica, está o regime de tributação de lucros, ganhos de

capital e rendimentos auferidos no exterior por sociedades controladas, coligadas, filiais e

sucursais de pessoas jurídicas residentes no Brasil. Trata-se do regime brasileiro de tributação

das pessoas jurídicas em bases universais – ou mundiais – no direito tributário brasileiro.

De fato, as pessoas físicas já vinham sendo tributadas pela universalidade dos seus

rendimentos auferidos tanto no Brasil quanto no exterior à época em que foi introduzido

semelhante regime para as pessoas jurídicas. É importante esclarecer, no entanto, que este

trabalho tratou apenas incidentalmente do regime de tributação aplicável às pessoas físicas, de

modo que o seu foco foi a tributação das pessoas jurídicas. É claro que, ao se fazer menção ao

1 Este diagnóstico de alteração da política econômica brasileira, que caracterizou a Nova República, pode ser

obtido a partir da análise da obra de FISHLOW, Albert. O novo Brasil: as conquistas políticas, econômicas,

sociais e nas relações internacionais. São Paulo: Saint Paul, 2011, p. 53- 86 e 165-200.

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14

regime jurídico como de “tributação de lucros auferidos no exterior”, o presente estudo está se

referindo não apenas ao lucro, mas, igualmente, à integralidade dos rendimentos e ganhos de

capital auferidos pelas empresas residentes no Brasil através das suas coligadas, controladas,

filiais e sucursais residentes no exterior.

Quando o Brasil introduziu o regime de tributação de lucros auferidos no exterior no

seu ordenamento jurídico, ele passou a determinar que todos os lucros, rendimentos e ganhos

de capital auferidos no exterior passariam a ser imputados automaticamente – i.e.

independentemente da sua efetiva disponibilização jurídica ou econômica – na base de cálculo

da sua controladora ou coligada residente no Brasil. A evolução normativa do regime

brasileiro foi caracterizada por constantes mudanças no seu desenho, ora permitindo o

diferimento da tributação nacional, ora reprimindo-o, mas, ao final, prevaleceu um desenho

normativo semelhante ao inicialmente concebido (regra de antidiferimento ampla).

À época em que o Brasil introduziu tais regras no seu ordenamento jurídico, diversos

países já haviam adotado semelhante regime de tributação sob a orientação da OCDE

(Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico) e com base na experiência

bem sucedida de outros países pioneiros na sua adoção (e.g. EUA)2. Na experiência

internacional, as regras que permitem a tributação em bases mundiais dos rendimentos

auferidos por pessoas jurídicas independentemente da sua efetiva disponibilização econômica

ou jurídica são denominadas de CFC rules (Controlled Foreign Corporation rules) ou de

regime de transparência fiscal internacional.

A discussão sobre se as normas brasileiras são propriamente as CFC rules consagradas

pela experiência jurídica internacional será abordada em momento oportuno do presente

trabalho. Por ora, é importante chamar atenção para o fato de que o Brasil optou por um

regime de tributação de lucros auferidos no exterior que difere da experiência internacional.

No plano internacional, a utilização do regime de transparência fiscal internacional está

orientada para combater práticas abusivas de elisão fiscal internacional, denotando-lhe nítida

natureza antiabuso ou antielisiva. No Brasil, o regime de tributação de lucros auferidos no

exterior aparentemente não possui natureza antielisiva na medida em que se aplica de forma

irrestrita a qualquer tipo de rendimento oriundo de qualquer jurisdição fiscal do mundo.

2 Analisaremos, no capítulo 1 deste trabalho, o debate legislativo norte-americano, que antecedeu a adoção das

suas normas CFC, bem como o debate patrocinado no âmbito da OCDE.

Page 15: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

15

O regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior foi inicialmente

introduzido no ordenamento jurídico pelos artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95, tendo-se

seguido diversas alterações legislativas (IN SRF nº 38/96, Lei nº 9.532/97 e LC nº 104/2001)

até que o regime atual estivesse finalmente consagrado através do artigo 74 da MP 2.158-

35/2001 e da IN SRF nº 213/2002 que o regulamentou.

Na sequência da publicação da medida provisória e da sua regulamentação, surgiram

diversos questionamentos quanto à validade jurídica do critério de disponibilização

automática – também denominado de “disponibilização ficta” –, previsto no artigo 74 da MP,

frente ao disposto no caput do artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN) e ao conceito

constitucional de renda que, segundo argumentou-se, dependia da efetiva disponibilização

jurídica ou econômica da renda para que sobre ela houvesse incidência tributária.

A segunda questão que foi levantada diz respeito à adequação do regime brasileiro

com os tratados celebrados pelo Brasil com outros países para evitar a dupla tributação

internacional da renda. Vale ressaltar que o Brasil seguiu em grande medida a convenção

modelo da OCDE. Esta é uma questão ainda mais complexa e que requer uma análise muito

mais cuidadosa porque as consequências do posicionamento que o Brasil vier a adotar

referente à temática poderão repercutir nas relações mantidas pelo Brasil no plano

internacional. De fato, este tema é muito controvertido não apenas no Brasil, como também

em outros países, tendo a OCDE, conforme demonstraremos neste trabalho, adotado distintos

posicionamentos ao longo do tempo.

Há, ainda, outras questões secundárias, mas que não deixam de possuir a sua

importância no debate atual, tais como os limites legais impostos à compensação de prejuízos

incorridos no exterior com os lucros auferidos no Brasil e a potencial sobreposição das

normas de preços de transferência brasileiras com o regime de tributação de lucros auferidos

no exterior.

O debate, como se viu, já está posto e muitos autores têm se empenhado em formular

interpretações jurídicas – muitas delas muito coerentes outras nem tanto – para se posicionar

neste debate que divide opiniões e interesses em dois polos distintos: fisco e contribuintes.

O objetivo que pretendemos alcançar no presente trabalho foi, no entanto, realizar uma

pesquisa empírica que nos permitisse compreender profundamente as origens dos problemas

jurídicos apontados. Para que pudéssemos compreender porque este tema se tornou alvo de

tantas críticas jurídicas foi preciso compreender a política tributária que orientou o regime

Page 16: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

16

brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior. Além disso, identificamos os efeitos

econômicos do regime sobre um fenômeno econômico maior que é a internacionalização

produtiva3 das empresas de capital nacional

4 para que pudéssemos, na sequência, fazer o juízo

de adequação do regime com a Ordem Econômica Constitucional, com precisão e fundamento

empírico.

Através do recurso à pesquisa empírica5, procuramos identificar, por um lado, quais

são as causas, o momento histórico e os interesses que estavam envolvidos no debate

legislativo que orientaram o desenho do regime brasileiro, e, por outro lado, os efeitos que o

regime provoca no processo de internacionalização produtiva das empresas brasileiras,

sobretudo no momento da decisão de constituir unidades produtivas no exterior e na

competitividade das suas unidades no exterior com os seus competidores locais.

Assim, a compreensão mais profunda do tema, através do recurso a fontes empíricas e

não apenas à literatura especializada, nos permitiu chegar a um posicionamento qualificado

sobre as causas que levaram aos debates atuais, os interesses em jogo, os efeitos do regime e

como tais efeitos podem ter repercussões jurídicas. Com isso, pretendemos abrir novas frentes

de discussão jurídica sobre o regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior

que vão além daquelas já existentes.

3 Conforme será demonstrado em maiores detalhes adiante neste trabalho, há diversas formas distintas de

internacionalização empresarial. Optou-se, no entanto, por analisar as repercussões econômicas sob a óptica da

internacionalização produtiva por razões que serão demonstradas adiante. 4 Entende-se, para os propósitos do referido trabalho, que “empresa de capital nacional” seja a sociedade

empresária cujo acionista com maior capital votante seja, direta ou indiretamente, pessoa física ou jurídica

domiciliada no Brasil. 5

Tanto a literatura nacional quanto a literatura internacional apontam para o fato de que as pesquisas empíricas

(pesquisas de campo) são pouco usuais na ciência jurídica. Internacionalmente, as pesquisas empíricas

empreendidas na ciência do direito têm gerado ganhos significativos, inclusive para a formulação de políticas

públicas. Há países, como os EUA e o Reino Unido, onde a pesquisa empírica no direito possui muito maior

evidência e importância do que no Brasil. Ainda assim, há autores que apontam para a necessidade de expansão

da pesquisa empírica do direito para outras áreas, além daquelas tradicionalmente feitas tais como a

administração da justiça, como, por exemplo, setores do direito ligados ao comércio e a economia. Em relação a

este breve diagnóstico, veja-se: BARRAL, Welber Oliveira. Metodologia da pesquisa jurídica. Belo Horizonte:

Del Rey, 2010, p. 94; BITTAR, Eduardo C. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática da monografia

para os cursos de direito. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 35, 36 e 205; PARTINGTON, Martin. Empirical Legal

Resarch and Policy-Making. In: CANE, Peter e KRITZER, Herbert M. (org). The Oxford Handbook of

Empirical Legal Research. Oxford University Press, p. 1.003-1.022.

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17

II. Premissas metodológicas

Conforme mencionamos no tópico anterior, este estudo se propôs a analisar dois

problemas relativos ao regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior. O

primeiro deles possui natureza conceitual6 e diz respeito à identificação dos interesses, razões

e condicionantes históricos que determinaram a política tributária que estabeleceu o desenho

normativo do regime jurídico objeto do presente estudo. Buscamos compreender porque o

Brasil optou por um modelo diverso do modelo consagrado pala experiência internacional. O

segundo deles possui natureza prática7 e refere-se à investigação dos eventuais efeitos

econômicos deste regime no processo de internacionalização produtiva das empresas

nacionais e, principalmente, na sua competitividade em mercados externos.

Consideramos que esta abordagem do tema do regime de tributação em bases

universais é relevante para os propósitos de uma pesquisa jurídica e merece uma investigação

empírica minuciosa, pois, conforme sustentamos no tópico anterior, procuramos compreender

de forma aprofundada as razões que teriam levado às críticas e ao debate que se tem hoje

sobre o tema. Uma compreensão mais aprofundada sobre o tema, respaldada em fontes

empíricas, nos permite não apenas identificar corretamente as linhas que estão sendo

defendidas como também os interesses que estão por trás delas.

Por um lado, diante do diagnóstico de que o regime brasileiro destoa sensivelmente

dos modelos de tributação em bases universais adotados pela maioria dos países, torna-se

relevante um estudo que se destine a compreender porque as normas brasileiras são diferentes.

Compreender o porquê da diferença de orientações implica investigar quais foram os

condicionantes que determinaram a política tributária que orientou a criação do regime

brasileiro em todas as suas distintas etapas: (i) desde a sua proposição inicial no interior do

Poder Executivo, (ii) passando pelas alterações propostas pelo Poder Legislativo, (iii) até a

atribuição dos seus últimos condicionantes impostos pelo controle judicial ou por influência

de outros órgãos regulatórios. Este é o caminho percorrido pelas políticas públicas desde a sua

propositura até a sua aplicação no campo prático no Brasil. Reconstruir este percurso

6 Cf. BOOTH, Wayne, COLOMB, Gregory G. e WILLIAMS, Joseph. The Craft of Research. 3ª Edição

Chicago: The University of Chicago Press, p. 53-59. 7 Ibid., p. 53-59.

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18

legislativo, contextualizando-o e trazendo à baila os interesses envolvidos, consiste em um

trabalho de “engenharia normativa”.

Por outro lado, identificar quais são os impactos do referido regime na realidade

prática, sobretudo do ponto de vista do processo de internacionalização produtiva das

empresas de capital nacional, é importante diante da constatação de que as empresas

brasileiras estão em um processo crescente de internacionalização produtiva, conforme será

devidamente demonstrado no decorrer deste trabalho. Trata-se de um diagnóstico que não

deixa de possuir repercussões importantes do ponto de vista do desenvolvimento econômico

brasileiro. Analisar, portanto, se as normas possuem consequências sobre este fenômeno, bem

como sobre a competitividade das empresas nacionais no mercado internacional, foi relevante

para determinar, com precisão, os suas efeitos econômicos8. O resultado deste diagnóstico nos

permitiu ponderar em que medida os efeitos advindos do regime brasileiro possuem

repercussões jurídicas, indo ou não de encontro à Ordem Econômica Constitucional.

Os dois problemas, embora em um primeiro momento pareçam independentes entre si,

estão, na verdade, interligados. Isso porque um dos objetivos da identificação da política

tributária que orientou a criação do regime atual de tributação de lucros auferidos no exterior

foi observar, até que ponto, houve a devida ponderação dos seus impactos sobre a atividade

econômica das empresas nacionais em fase de internacionalização produtiva. Assim, foi

possível identificar em que medida a internacionalização produtiva e a competitividade das

empresas nacionais nos mercados internacionais foram uma condicionante sopesada pelo

formulador de políticas públicas na engenharia normativa do regime tributário estudado.

Em relação ao primeiro problema, as questões centrais que nos serviram de guia de

pesquisa foram: Qual foi a política tributária que orientou a criação do regime de tributação

universal da pessoa jurídica no direito brasileiro? Quais razões poderiam justificar a opção

brasileira por um regime diverso da prática mundial? Há, em relação a este tema, questões

secundárias: Quais foram os debates e interesses em cada um dos momentos da evolução

normativa do tema? Como o setor privado e a Administração Pública fazendária se

8 Em relação ao segundo problema, foi preciso recorrer a um estudo que, até certo ponto, ultrapassou as

fronteiras do direito – sendo, portanto, interdisciplinar – e que envolveu a articulação de conhecimentos da

ciência econômica juntamente com a ciência jurídica. Apesar desse desafio, entendemos que esta abordagem do

tema tinha um potencial enorme de enriquecer a discussão atual sobre o regime de tributação de lucros auferidos

no exterior desde que seja respeitada a autonomia sistêmica das duas ciências, requisito fundamental de um

estudo interdisciplinar no direito. Em relação ao tema da pesquisa interdisciplinar no direito, confira-se: NEVES,

Marcelo. Pesquisa Interdisciplinar no Brasil: O Paradoxo da Interdisciplinaridade. Revista do Instituto de

Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, 2005, p. 207-214.

Page 19: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

19

articularam no Congresso Nacional para fazerem valer seus interesses? Qual era o contexto

histórico envolvido em cada debate? Em que medida as justificativas apresentadas estão em

consonância com o desenho da norma? Caso negativo, quais razões poderiam justificar tais

idiossincrasias?

Quanto ao segundo problema, as questões centrais orientadoras foram: O regime

jurídico brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior interfere no processo de

internacionalização produtiva das empresas brasileiras? Há impactos do regime na

competitividade das empresas nacionais no mercado internacional? Caso positivo, eles se

operam na prática? Em que medida, os eventuais impactos advindos do regime no processo de

internacionalização produtiva afrontam a Constituição Federal (em especial a Ordem

Econômica Constitucional)?

Houve, ainda, uma questão que estabeleceu a conexão entre os dois problemas

tratados nesta pesquisa: Ao longo da evolução da disciplina normativa do regime de

tributação de lucros auferidos no exterior, foram ponderados os seus possíveis efeitos sobre a

atividade industrial brasileira, sobretudo do ponto de vista da internacionalização produtiva

das empresas de capital nacional?

Nesta pesquisa, testamos três hipóteses centrais. A primeira delas consiste na ideia de

que, ao longo da evolução normativa do regime de tributação em bases universais, não houve

a ponderação adequada dos seus possíveis efeitos sobre o processo de internacionalização

produtiva das empresas de capital nacional. Assim, segundo esta hipótese, a política tributária

que resultou da evolução legislativa do regime no tempo levaria a crer que esta questão teria

sido pouco relevante, ou mesmo, menosprezada. A segunda hipótese é de que o regime

brasileiro difere da prática internacional, pois as autoridades fazendárias estavam, desde o

início, muito mais preocupadas com o aumento da arrecadação federal do que com a

dissuasão de práticas de elisão fiscal internacional. A terceira hipótese parte da ideia de que o

regime brasileiro não interfere no processo de internacionalização produtiva de empresas de

capital nacional, mas o seu desenho relativamente amplo possui efeitos econômicos no

processo de conquista de novos mercados. Com isso, adotamos também a hipótese de que o

regime pode afrontar a Ordem Econômica Constitucional.

Feitos estes comentários preliminares, serão detalhados os aspectos relativos à

estratégia metodológica utilizada nesta pesquisa. A pesquisa empírica compreendeu três

técnicas de coletas de dados: (i) entrevistas com autoridades públicas de escalões variados,

Page 20: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

20

que pertencessem a órgãos da administração fazendária e que tivessem participado no

processo de formulação do regime de tributação de lucros auferidos no exterior ou, ainda, que

atuassem diretamente com o mesmo; (ii) entrevistas com empresas brasileiras que já tivessem

internacionalizado parte da sua atividade produtiva; e (iii) o processo legislativo9 referente a

todos os diplomas legais que caracterizaram a evolução normativa do regime (Lei nº 9.249/95,

Lei nº 9.532/97, Lei Complementar nº 104/2001 e Medida Provisória nº 2.158-35/2001).

Nesta pesquisa, tivemos a pretensão de responder às perguntas relativas ao primeiro

problema (política tributária) através da análise do processo legislativo e por meio de

entrevistas com autoridades públicas pertencentes à Administração Pública que tiveram

participação na concepção inicial do regime. As perguntas que dizem respeito ao segundo

problema (internacionalização produtiva e competitividade no mercado internacional) foram

respondidas através dos resultados das entrevistas realizadas com administradores,

economistas, diretores e consultores tributários de grandes empresas de capital nacional que já

tivessem internacionalizado parte da sua atividade produtiva e das entrevistas feitas com

autoridades fiscais de modo geral.

As estratégias de coleta de dados definidas acima foram escolhidas a partir da natureza

das questões propostas10

. Optou-se, portanto, por uma estratégia de levantamento de dados

empiricamente obtidos11

submetidos, posteriormente, a uma análise qualitativa de conteúdo.

As entrevistas foram guiadas através de roteiros com perguntas amplas e abertas.

Neste sentido, optamos por não se utilizar questionários nas entrevistas, mas sim perguntas

abertas que tinham como objetivo central captar as percepções e a experiência pessoal dos

entrevistados sobre o tema tratado12

. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na sua

íntegra, ressalvado o direito de sigilo da identidade dos entrevistados. A maior parte das

entrevistas foi realizada de forma presencial tendo algumas delas sido feitas, no entanto, por

9 Em relação à pesquisa realizada a partir do processo legislativo, esclarecemos que os autos referentes a cada

um dos diplomas normativos indicados foram obtidos junto ao Departamento de Processo Legislativo da

Secretaria de Assuntos Legislativo do Ministério da Justiça. Eles foram analisados na sua íntegra. 10

Cf. WEBLEY, Lisa. Qualitative approaches to empirical legal research. In: CANE, Peter e KRITZER,

Herbert M. (org). The Oxford Handbook of Empirical Legal Research. Oxford University Press, p. 932- 936. 11

Cf. YIN, Robert K. Estudo de Caso: Planejamento e Métodos. Tradução: Daniela Grassi. Porto Alegre:

Bookman, 2005, p. 19-38. 12

Há diversos autores que sugerem a utilização de roteiros com questões abertas em pesquisas empíricas sujeitas

à análise qualitativa de conteúdo. Neste sentido, vejam-se: BOOTH, Wayne, COLOMB, Gregory G. e

WILLIAMS, Joseph. The Craft of Research. 3ª Edição Chicago: The University of Chicago Press, p. 82; e

WEBLEY, Lisa. Qualitative approaches to empirical legal research. In: CANE, Peter e KRITZER, Herbert M.

(org). The Oxford Handbook of Empirical Legal Research. Oxford University Press, p. 937.

Page 21: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

21

telefone ou videoconferência. No momento oportuno deste trabalho daremos maiores detalhes

metodológicos relativos às entrevistas.

Alertamos que esta pesquisa não teve a intenção de criar uma amostra representativa

de entrevistas com empresas de capital nacional já que este não é o propósito de uma pesquisa

cuja estratégia de análise de dados é qualitativa que, por sua vez, atribui maior importância ao

conteúdo de cada um dos relatos do que à sua representatividade amostral. As pesquisas

qualitativas são pautadas na qualidade dos relatos e na capacidade de interpretação do

pesquisador que, a partir daí, poderá obter conclusões satisfatórias13

. Com isso, enfatizamos

que o nosso objetivo foi, tão somente, colher percepções e impressões que nos foram

transmitidas pelos entrevistados para, a partir delas, construir, com o devido cuidado,

informações e fatos relevantes para a presente pesquisa14

.

Apesar desta pesquisa ser em grande medida empírica, em momento algum deixamos

de analisar a literatura jurídica (e econômica) especializada. Neste diapasão, a literatura

teórica – fonte secundária de coleta de dados – teve a importante função de complementar a

pesquisa empírica – fonte primária de coleta de dados – e de reconstruir os debates jurídicos

aos quais nos reportamos anteriormente. Reconstruímos os debates para não apenas chamar

atenção para os problemas jurídicos ensejados pelo regime, como também para chamar

atenção para os interesses envolvidos nos debates jurídicos.

Ao final deste trabalho, esperamos poder contribuir para o debate acadêmico atual

sobre o regime de tributação de lucros auferidos no exterior através da demonstração de como

a política tributária modulou o regime de tributação de lucros auferidos no exterior, bem como

quais são os seus efeitos sobre o setor privado, sobretudo diante do fenômeno da

internacionalização produtiva das empresas nacionais e como tais efeitos podem afrontar a

constituição federal. Toda a presente investigação científica foi guiada pela esperança de que

os resultados desta pesquisa empírica possam sensibilizar formuladores de políticas públicas

para a futura elaboração de políticas tributárias.

13

Trata-se do enfoque epistemológico interpretativista que é geralmente associado às pesquisas submetidas à

análise qualitativa. O enfoque interpretativista afasta a pretensão de pura objetividade que alguns autores

atribuem à análise quantitativa, valorizando-se a capacidade de o pesquisador obter resultados válidos através da

sua interpretação dos dados obtidos. Em relação a esta abordagem, veja-se: WEBLEY, Lisa. Qualitative

approaches to empirical legal research. In: CANE, Peter e KRITZER, Herbert M. (org). The Oxford Handbook

of Empirical Legal Research. Oxford University Press, p. 929-931. 14

Informamos que nós tomamos os devidos cuidados no sentido de afastar eventuais interesses e outros

elementos externos que poderiam enviesar a opinião dos entrevistados, de modo a obter, de cada relato, a

informação mais neutra e objetiva possível.

Page 22: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

22

A pesquisa empírica no direito tem muito a contribuir para a formulação de políticas

públicas especialmente porque, de acordo com a literatura especializada, os resultados

empíricos podem revelar “brechas” na lei ou fraquezas na forma como a norma funciona,

apontando para desafios futuros que deverão ser levados em consideração na formulação de

novas políticas15

. No entanto, a grande contribuição da pesquisa empírica no direito é

justamente demonstrar que o direito visto a partir do ordenamento jurídico (perspectiva

estática) difere sensivelmente do direito observado a partir da sua aplicação prática

(perspectiva dinâmica) 16

. O que se precisa é, tão somente, facilitar os canais de acesso entre o

cientista do direito e o formulador de políticas públicas para que a pesquisa empírica passe a

representar um verdadeiro referencial de formulação – e reformulação – de políticas. Esta é a

função deste estudo.

Fica claro, portanto, que o presente estudo também está alinhado com o estudo do

“direito e desenvolvimento” o qual busca compreender a relação causal que existe entre a

engenharia do sistema jurídico e o fenômeno do desenvolvimento17

. Neste sentido, possuímos

a esperança de que os resultados obtidos a partir do presente estudo possam servir de

inspiração para um regime de tributação de lucros auferidos no exterior que favoreça o

desenvolvimento brasileiro e que seja benéfico tanto para o fisco quanto para o contribuinte.

III. Estrutura do trabalho

Delimitado o tema e estabelecidos os pressupostos metodológicos, detalhamos, abaixo,

o que trata cada uma dos capítulos que compõem o presente trabalho de forma a demonstrar

qual foi a abordagem adotada em cada um deles, a sua importância (ou função) no contexto

do trabalho e a natureza das fontes utilizadas. Este trabalho está dividido em cinco capítulos.

15

Cf. PARTINGTON, Martin. Empirical Legal Resarch and Policy-Making. In: CANE, Peter e KRITZER,

Herbert M. (org). The Oxford Handbook of Empirical Legal Research. Oxford University Press, p. 1.003. 16

Ibid., p. 1.021-1.022. 17

Em relação a este tema, vale chamar atenção para a tese elucidativa defendida por David Trubek e Álvaro

Santos no sentido de que, em qualquer momento no tempo, o estudo do direito e desenvolvimento pode ser visto

como sendo definido pela intersecção de três esferas distintas: (i) teoria econômica; (ii) políticas e práticas

institucionais; e (iii) o direito. Nota-se que, de acordo com os referidos autores, ao mesmo tempo em que o

estudo do direito e desenvolvimento é definido pela intersecção das três esferas, ele as influencia mutuamente.

Neste sentido, confira-se: TRUBEK, David M. e SANTOS, Alvaro. Introduction: the third moment in Law and

Development theory and the emergence of a new critical practice. In: TRUBEK, David e SANTOS, Alvaro

(org.). The new law and economic development: a critical appraisal. Cambridge: Cambridge University Press,

2006, p. 04.

Page 23: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

23

O capítulo 1 analisa a trajetória da evolução histórica do regime transparência fiscal

internacional (CFC rules) no mundo. O foco do capítulo foi a reconstrução do caminho

percorrido pelo instituto ao longo do tempo bem como as razões que foram determinantes no

seu desenvolvimento e adoção em escala mundial. Atribuímos especial relevância ao papel

dos EUA como país pioneiro na implantação de CFC rules e ao papel da OCDE e da

Comunidade Europeia no período pós-segunda guerra mundial no debate referente ao

combate às práticas de concorrência fiscal danosa18

. As fontes pesquisadas compreendem

desde a literatura teórica até artigos e livros publicados pela OCDE e por instituições

pertencentes à Comunidade Europeia.

O capítulo 2 enfrenta o primeiro problema indicado na seção anterior (identificação da

política tributária). Nele, reconstruímos a trajetória da evolução normativa do regime de

tributação de lucros auferidos no exterior, sob a perspectiva de um estudo empírico, de forma

a abordar cada um dos sete momentos que caracterizaram a sua evolução normativa.

Este capítulo abrange a reconstrução do contexto histórico presente à época, os debates

legislativos, os interesses em jogo e as razões que foram determinantes no desenho do regime

jurídico em estudo. Para tanto, utilizamos as seguintes fontes de pesquisa: o processo

legislativo relativo à Lei nº 9.249/95, Lei nº 9.532/97, LC nº 104/2001 e MP nº 2.158-

35/2001, os diplomas normativos legais e infralegais que caracterizaram cada um dos

momentos de legalidade do regime de tributação em análise (além dos diplomas já

mencionados, a IN SRF nº 36/98 e a IN SRF nº 213/2002); entrevistas com autoridades

públicas que participaram no seu processo de formulação; e material explicativo de fonte

governamental em que foram detalhados os objetivos buscados com a instituição do regime.

Como se vê, neste capítulo, a pesquisa se concentrou em material fundamentalmente

empírico.

O capítulo 3 enfrenta o segundo problema exposto no tópico anterior desta Introdução

– internacionalização produtiva e competitividade no mercado internacional – a partir dos

resultados das entrevistas feitas com administradores, economistas, diretores e consultores

tributários de grandes empresas de capital nacional que já tenham internacionalizado parte da

sua atividade produtiva. O foco, neste tópico, foi a análise dos efeitos econômicos gerados

pela aplicação do regime no plano prático. Expusemos alguns postulados teóricos da

18

Este trabalho abordará o tema da concorrência internacional em dois sentidos distintos. O primeiro deles

refere-se à concorrência entre jurisdições fiscais para atrair investimento através do oferecimento de certas

condições tributárias favoráveis, abordagem que será feita no capítulo 2. O segundo sentido diz respeito à

competitividade das empresas nos seus respectivos mercados locais, abordagem que será feita no capítulo 5.

Page 24: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

24

internacionalização produtiva, bem como o diagnóstico do recente movimento de

internacionalização produtiva das empresas de capital nacional com dados econômicos e

empíricos. Posteriormente, as entrevistas foram analisadas qualitativamente para que fossem

identificados os efeitos econômicos ensejados pela aplicação do regime.

O capítulo 4 se debruça sobre as repercussões jurídicas ensejadas pelo desenho

normativo do regime de tributação de lucros auferidos no exterior no direito tributário

brasileiro. Foram feitos breves comentários sobre alguns aspectos teóricos e práticos da sua

aplicação – entre eles, discutimos como poderiam ser conceituadas as normas adotadas pelo

Brasil (e.g. se teriam a mesma natureza do instituto da transparência fiscal internacional) –

seguidos da exposição dos problemas que a aplicação do regime jurídico enseja no direito

brasileiro. Entre os problemas, abordamos, em especial, a discussão sobre a validade jurídica

do regime, patrocinada nos autos da ADI 2.588, a questão da sua compatibilidade com os

tratados celebrados pelo Brasil para evitar a dupla tributação, a atribuição de efeitos fiscais ao

Método da Equivalência Patrimonial (MEP), os limites legais impostos à compensação de

prejuízos incorridos no exterior com os lucros auferidos no Brasil e a potencial sobreposição

das normas de preços de transferência brasileiras com o regime de tributação de lucros

auferidos no exterior. Esta análise não teve a pretensão de ser exaustiva, mas sim de apontar

os problemas jurídicos ensejados pelo desenho normativo do regime brasileiro.

Defendemos, neste capítulo, que o debate relativo à validade jurídica do regime deverá

assumir novas frentes futuramente. A principal delas diz respeito ao confrontamento dos

efeitos econômicos advindos do regime brasileiro com a Ordem Econômica Constitucional.

Neste sentido, ao confrontar os efeitos econômicos regime brasileiro de tributação de lucros

auferidos no exterior – identificados em nossa pesquisa empírica – com a Ordem Econômica

Constitucional, restou comprovado que, em determinadas circunstâncias, o regime brasileiro

será inconstitucional por desincentivar a internacionalização produtiva. Em outras, será

constitucional. Este debate não exclui, no entanto, o debate quanto à disponibilização

automática e do conceito de renda, mas vem a se somar a ele, conforme demonstraremos.

Por fim, o capítulo 5 se ocupará das conclusões finais da pesquisa. Ademais, é

importante esclarecer que a maior parte dos capítulos possui um tópico destinado à realização

de considerações parciais relativas àquele capítulo específico. Não obstante os referidos

tópicos consolidem muitas das conclusões a que chegamos em cada um dos capítulos, eles

terão um objetivo nitidamente reflexivo. A consolidação de todas as conclusões a que

chegamos em cada um dos capítulos será feita, em maiores detalhes, no capítulo 5.

Page 25: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

25

1. TRAJETÓRIA DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO REGIME DE

TRANSPARÊNCIA FISCAL INTERNACIONAL

1.1. Notas introdutórias

O presente capítulo tem como objetivo central identificar, através de uma perspectiva

internacional, as origens históricas e interesses envolvidos na criação do regime de

transparência fiscal internacional – também denominado, internacionalmente, como CFC

rules (Controlled Foreign Corporation rules) – ao mesmo tempo em que busca conectar tais

origens com os temas que ensejam grandes debates atuais, como é o caso da concorrência

fiscal danosa e da elisão fiscal internacional.

A importância que os temas mencionados adquiriram ao longo do tempo legitimou a

atuação de órgãos internacionais e supranacionais – tais como a OCDE e a Comissão

Europeia – no combate às práticas da concorrência fiscal danosa incorridas por diversas

jurisdições fiscais no mundo. Estes problemas encontram as suas raízes em um cenário de

integração econômica e do fenômeno da globalização que caracterizou parte significativa do

século XX, em especial, as suas últimas décadas.

O debate sobre a função e a importância das CFC rules passou por uma evolução

desde a sua positivação no direito norte-americano, em 1962, até a sua utilização atual

patrocinada pela Comissão Europeia, no âmbito do direito comunitário da União Europeia, e

pela OCDE, na esfera internacional.

Este capítulo identificará os interesses envolvidos em cada um dos momentos

mencionados e os motivos que levaram o debate a assumir os seus contornos atuais. Serão

identificadas também as teorias que respaldam a aplicação do regime de transparência fiscal

internacional. Antes disso, no entanto, é importante estabelecer o pano de fundo no qual toda

esta discussão se insere, o qual é marcado pelo fenômeno da globalização e da mudança de

concepção de Estado.

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26

1.2. A globalização e a mudança de concepção do Estado

O direito vem passando, desde as últimas décadas do século XX, por um processo de

transformação no qual a norma jurídica, muito embora continue sendo aplicada a um território

específico onde o respectivo ordenamento jurídico possui jurisdição, conforme prevê a maior

parte dos ordenamentos jurídicos, não restringe mais os seus efeitos aos seus limites

territoriais. Cada vez mais, as normas aplicadas por uma determinada jurisdição possuem

repercussões não apenas no plano interno, como também no plano global, de modo a afetar o

comportamento de outras jurisdições, alterando expectativas normativas e ensejando reações

no plano do direito.

Este diagnóstico pode ser observado com facilidade no âmbito do direito tributário

quando se constata que a aplicação de algumas das suas normas possui repercussão

internacional, seja no comportamento de operadores privados no exterior, seja no

comportamento de outras jurisdições fiscais. Alguns autores conceituam este fenômeno como

sendo a “extraterritorialidade” da lei tributária19

.

No entanto, a razão para esta transformação do direito está intimamente relacionada ao

fenômeno da globalização que, por sua vez, deve ser compreendido em uma moldura

conceitual ampla como um fenômeno que diz respeito não apenas à esfera econômica, mas

também à política, cultural, social, jurídica, entre inúmeras outras.

Do ponto de vista econômico e político, no final da década de 1990, houve um

processo de integração de mercados motivado por esforços de diversas instituições

internacionais no sentido de promover a liberalização dos mercados. Assim, surgiu uma

economia global que, de acordo com Manuel Castells, consiste em “uma economia cujos

componentes centrais têm a capacidade institucional, organizacional e tecnológica de

trabalhar em unidade e em tempo real, ou em tempo encolhido, em escala planetária”20

.

Segundo o referido autor, a economia global não foi criada pelos mercados, mas pela

interação entre mercados, governos e instituições financeiras agindo em nome dos mercados

19

Entre eles: HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e elisão: rotas internacionais do planejamento tributário. São

Paulo: Saraiva, 1997, p. 228. 20

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo:

Paz e Terra, 2011, Volume I, p. 143.

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27

ou de sua ideia do que devem ser os mercados21

. Dentre as estratégias usadas pelas empresas

para aumentar a sua produtividade, chama atenção a estratégia de internacionalização da sua

produção. A internacionalização produtiva, por sua vez, depende de três aspectos centrais: (i)

o aumento de investimento estrangeiro direto (Foreign Direct Investment – FDI); (ii) o papel

decisivo dos grupos empresariais multinacionais como produtores na economia global; e (iii)

a formação de redes internacionais de produção22

.

Quanto à formação das redes internacionais de produção, esclarecemos que elas são

compostas por empresas transnacionais que se combinam de forma estratégica com empresas

de menor porte, incluindo, ainda que de forma limitada, redes de produção de empresas de

países em desenvolvimento. Castells afirma que essas redes produtivas transnacionais,

“ancoradas pelas empresas multinacionais, distribuídas pelo planeta de maneira desigual, dão

forma ao padrão de produção global e, por fim, ao padrão de comércio internacional”23

.

Do ponto de vista geopolítico, a globalização alterou a concepção de Estado que era

reconhecida até então; o Estado-nação. Esta transição do modelo de Estado-nação para o

modelo de Estado-transnacional foi abordada por Marco Aurélio Greco24

ao analisar, entre

outros autores, Ulrich Beck. A transição dos modelos consiste, sobretudo, na redefinição do

próprio conceito de soberania política, econômica e fiscal que se tinha no passado.

De acordo com a referida abordagem, o Estado-nação – visão da figura do Estado

adotada durante séculos – era visto como uma entidade independente em que o exercício da

sua soberania era concebido como o exercício de um poder independente sobre o povo de um

determinado território. Os ordenamentos jurídicos se contrapunham em algumas relações

internacionais e, por vezes, entravam em conflito. Tratava-se do exercício de uma soberania

exclusiva25

. Na esfera do exercício do poder de tributar, os elementos de conexão utilizados

pelos sistemas tributários se fixavam em elementos clássicos da soberania, tais como o povo e

o território.

A crise da visão do Estado-nação ocorreu a partir da segunda metade do século XX na

medida em que a globalização avançou e as relações econômicas passaram a ocorrer em

21

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo:

Paz e Terra, 2011, Volume I, p. 176. 22

Ibid., p. 158. 23

Ibid., p. 164. 24

GRECO, Marco Aurélio. Globalização e tributação da renda mundial. Revista Fórum de Direito Tributário

(RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 1, nº 2, 2003, p. 75-90. 25

Cf. BECK, Ulrich. O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 230 e ss apud GRECO, Op. Cit., p.

77.

Page 28: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

28

caráter transnacional – e não mais limitadas ao um único território – na figura da economia

global definida por Castells anteriormente. As tecnologias da informação e a sociedade

conectada em rede acentuaram a crise deste modelo de estado, transnacionalizando as relações

interpessoais e, em especial, as relações econômicas.

Diante deste novo contexto, os Estados não mais poderiam formular as suas políticas

públicas sem se atentarem para as suas repercussões no comportamento e nas expectativas de

outros Estados. A própria noção de soberania foi recontextualizada pela globalização,

acenando com modelos democráticos que prenunciavam um novo equilíbrio de forças26

. O

processo de compreensão do direito passou por uma profunda alteração. De acordo com

Marco Aurélio Greco, neste novo contexto, “compreender a legislação interna não é apenas

verificar a sua adequação formal ou material a uma norma superior, mas também verificar a

sua adequação funcional ao contexto ‘glocal’ (global/local) que visa regular”27

.

No que diz respeito à esfera do direito tributário, a emergência de um Estado-

transnacional impôs desafios significativos ao alcance da capacidade contributiva e aos

elementos de conexão usados até então. Com mercados liberalizados e com recursos

tecnológicos de ponta, o capital ganhou mobilidade expressiva. Passou a ser muito fácil alocar

rendimentos – em especial os rendimentos passivos - em outras jurisdições fiscais que se

apresentavam de forma mais vantajosa, principalmente do ponto de vista tributário.

Tornou-se mais difícil, portanto, alcançar a capacidade contributiva na medida em que

as operações econômicas transnacionais facilitavam o esvaziamento das bases imponíveis em

nível local. O desenvolvimento de novas tecnologias apenas acentuou este efeito perverso;

afinal, com novos meios de pagamentos e de transferência de capitais através de sistemas

eletrônicos, o capital ganha mais mobilidade e o seu controle se torna ainda mais difícil pelas

autoridades monetárias e fiscais. Este fenômeno pode ser denominado de “volatilização dos

elementos da hipótese de incidência tributária”28

.

O mundo começou a se deparar com questões, tais como a concorrência fiscal danosa

(ou lesiva) propiciada pela existência dos paraísos fiscais e de regimes fiscais privilegiados,

que passaram a demandar soluções globais advindas da cooperação de diversos países. No

26

Cf. HELD, David. Democracy and global order: from the modern state to cosmopolitan governance. Stanford:

Stanford University Press, 1995, p. 80 e ss. 27

GRECO, Marco Aurélio. Globalização e tributação da renda mundial. Revista Fórum de Direito Tributário

(RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 1, nº 2, 2003, p. 80. 28

Cf. ANDRADE, André Martins de. A tributação universal da renda empresarial: uma proposta de

sistematização e uma alternativa inovadora. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 79.

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29

mesmo sentido do cenário descrito até o presente momento, Maria Eduarda Azevedo aponta

também, com precisão, para a transição do papel das políticas tributárias do passado para o

presente:

No passado, a política tributária respondia a preocupações nacionais e tinha

repercussões que só escassamente ultrapassavam o âmbito doméstico, acabando os

aspectos internacionais, conquanto presentes, por não serem os mais relevantes.

Todavia, na actualidade, não obstante a política fiscal dos Estados continuar a ser

moldada por objetivos tradicionais, a crescente mobilidade de pessoas e capitais, que

conduz à globalização da economia potenciada pelas novas tecnologias, faz com que

a política fiscal de um país tenha repercussões inevitáveis nos demais parceiros.

Deste modo, qualquer medida tomada por uma jurisdição fiscal no sentido de

diminuir a tributação é susceptível de justificar que outra reaja, promovendo uma

igual baixa de impostos a fim de não perder vantagens competitivas e assim

sucessivamente. 29

Este cenário impôs forte pressão sobre os elementos de conexão tradicionalmente

utilizados o que culminou na sua sofisticação e adequação a esta nova concepção de Estado –

o Estado-transnacional –, pois, somente dessa forma, é possível garantir eficácia à legislação

tributária local frente ao ambiente internacional. Assim, os elementos de conexão,

reformulados em vista desta nova realidade, passaram a ser vistos como protetores da

arrecadação tributária nacional.

Diante da necessidade de garantia de eficácia às leis tributárias nacionais, não é

incomum a adoção de normas que, embora aplicadas em bases territoriais, irradiam os seus

efeitos no ambiente global. Este é o pano de fundo no qual se insere toda a evolução histórica

das normas de direito tributário internacional, em especial, do regime de transparência fiscal

no mundo. Não é por acaso que, embora as suas raízes datem do início do século XX, o

referido regime tributário tenha assumido especial importância a partir da segunda metade do

século, em especial, nas duas últimas décadas. A seguir, serão descritas as suas origens no

direito norte-americano.

29

AZEVEDO, Maria Eduarda. A concorrência fiscal prejudicial. Revista Fórum de Direito Tributário (RFDT),

Belo Horizonte: Fórum, ano 8, nº 48, 2010, p. 37.

Page 30: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

30

1.3. O debate norte-americano: as origens históricas das CFC rules

Os EUA foi o país que concebeu originalmente o regime de transparência fiscal

internacional – ou CFC rules, conforme a doutrina norte-americana convencionou chamar –

através do qual os rendimentos auferidos em bases universais seriam submetidos à tributação

no país de residência do investidor (empresa controladora) ainda que os referidos rendimentos

não tivessem sido econômica ou juridicamente disponibilizados (disponibilização automática)

pela pessoa jurídica residente no exterior (empresa controlada ou coligada).

Seguindo-se a lógica da tributação em bases universais (princípio da universalidade), o

regime tributário que permite a tributação dos rendimentos auferidos no exterior apenas no

momento em que jurídica ou economicamente disponibilizados pode ser denominado de

regime de diferimento (tax defferal regime) da tributação devida sobre eles no país de

residência da sociedade investidora. Por outro lado, o regime tributário que sujeita os

rendimentos à tributação independentemente de sua efetiva disponibilização – através da sua

disponibilização automática – pode ser denominado de regime antidiferimento (tax

antidefferal regime). Nestes casos, os elementos de conexão tradicionalmente utilizados são a

residência ou a nacionalidade do contribuinte submetendo todos os rendimentos por ele

auferidos à tributação nacional independentemente do local da sua fonte produtora (elemento

de conexão subjetivo).

O regime de tributação em bases territoriais (princípio da territorialidade), em

contraposição ao regime de tributação em bases universais, exclui do campo de incidência da

norma tributária todo rendimento auferido fora de um determinado território, pois o elemento

de conexão usado é a fonte de produção dos rendimentos e não a residência ou nacionalidade

da sociedade investidora (elemento de conexão objetivo).

A evolução do tema no direito norte-americano data de tentativas iniciais de instituir

as CFC rules ocorridas em 1913 até as últimas alterações substanciais sofridas pelo instituto

na década de 1990 e nos anos 2000. Abaixo, fizemos a separação de cada um dos momentos

que caracterizou a evolução legislativa do instituto apenas para facilitar a sua análise.

Page 31: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

31

1.3.1. Primeiras tentativas e alterações legislativas pré 1962

No início do século XX, logo nos primeiros anos de vigência do Internal Revenue

Code (código do imposto de renda norte-americano), o investidor norte-americano que

desejasse investir no exterior através da internacionalização dos seus fatores de produção

dispunha, do ponto de vista societário, de duas estratégias (vigentes até os dias de hoje) que

consistiam na constituição de: (i) filial ou sucursal desprovida de personalidade jurídica

(foreign branch); ou (ii) subsidiárias com personalidade jurídica própria (foreign subsidiary).

Até 1913, vigia no direito americano o princípio da territorialidade da tributação, segundo o

qual os EUA não poderiam tributar rendas, rendimentos e ganhos de capital auferidos fora do

seu território, ainda que através de uma subsidiária ou filial de uma empresa norte-americana.

Em 1913, o Governo norte-americano instituiu o regime de tributação em bases

universais, permitindo, no entanto, o diferimento da tributação norte-americana na medida em

que submetia os rendimentos auferidos por subsidiárias residentes no exterior à tributação

apenas no momento em que os mesmos fossem repatriados (disponibilizados jurídica ou

economicamente), ficando resguardado o direito de crédito relativo ao imposto pago no

exterior para compensação com o imposto devido nos EUA.

O regime de tributação em bases universais com permissão para o diferimento do

imposto norte-americano ensejou diversas estratégias de planejamento tributário nos EUA

cujo objetivo central era elidir30

o fisco norte-americano. Entre elas, estava a tradicional forma

de elisão fiscal internacional que ocorria através da criação de subsidiárias – verdadeiras

30

A elisão fiscal consiste, fundamentalmente, em subtrair o ato praticado ou o conjunto de atos praticados do

âmbito de aplicação da norma tributária. A prática de um ato elisivo está dentro da esfera da licitude uma vez

que ela precede ao momento da ocorrência do fato gerador - fato que, uma vez ocorrido, enseja a incidência da

norma tributária a qual constitui a obrigação tributária - estando, neste sentido, dentro da esfera de liberdade

negocial do contribuinte. A evasão fiscal, em oposição à elisão, pressupõe a prática de um ato ilícito em que,

uma vez ocorrido o fato gerador e caracterizada a obrigação tributária, o contribuinte se utiliza de recursos

desonestos e ardilosos para se evadir ao seu cumprimento. Como se vê, o critério temporal é importante na

qualificação de um ato como elisivo ou evasivo, mas não se mostra satisfatório para, sozinho, fazê-lo. Na lógica

do direito interno, as condutas elisivas repreensíveis pelo ordenamento jurídico ocorrem, fundamentalmente,

através das figuras do abuso de direito, da simulação relativa, do negócio indireto e da fraude à lei que, uma vez

presentes, tornam a conduta ilícita. Na lógica do direito internacional, a elisão ocorre através da manipulação dos

elementos de conexão que permitem a tributação de fatos geradores ocorridos no exterior, podendo ela ser

passível de reação pelo ordenamento jurídico a depender das condições estabelecidas pela legislação interna (e.g.

deslocamento de ativos para paraísos fiscais). Este aspecto será abordado, em maiores detalhes, adiante neste

trabalho. Em relação ao conceito de elisão e evasão fiscal e aos critérios que levam à sua caracterização, confira

maiores detalhes em: HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e elisão: rotas internacionais do planejamento tributário.

São Paulo: Saraiva, 1997, p. 15-52; XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva.

São Paulo: Dialética, 2002, p. 87-88.

Page 32: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

32

sociedades holdings31

– em paraísos fiscais com a subseqüente transferência de ações e

valores mobiliários que, por sua vez, produziam rendimentos passivos que permaneciam ali

por prazo indeterminado, evitando-se a tributação norte-americana (foreign subsidiaries as

incoporated pocketbooks)32

.

Como reação a esta modalidade de elisão fiscal internacional, o Congresso norte-

americano aprovou, em 1934, um regime jurídico especial aplicável às companhias holding

residentes no exterior denominado de Foreign Personal Holding Company regime o qual

determinava que houvesse a desconsideração da personalidade jurídica, para fins

exclusivamente fiscais, das subsidiárias norte-americanas no exterior que se qualificassem

como foreign personal holding companies.

Apesar dos esforços para coibir a prática de elisão fiscal internacional, o regime não

logrou êxito na coação da maior parte das práticas já que o seu campo de aplicação era

relativamente restrito. O regime só se reputava aplicável com o preenchimento de dois

requisitos: (i) o capital social da subsidiária residente no exterior deveria ser detido por até 5

pessoas norte-americanas; e (ii) até 60% dos rendimentos brutos da subsidiária deveriam

corresponder a certas classes de rendimentos passivos.

Conforme aponta Keith Engel, o condicionamento de aplicação deste regime ao fato

de a subsidiária ser controlada por até 5 pessoas norte-americanas limitava o campo de

aplicação da norma, excluindo-a de quase todas as empresas com capital aberto nas bolsas de

valores norte-americanas ou que auferissem, preponderantemente, rendimentos ativos33

.

Alberto Xavier sustenta que esta tentativa norte-americana caracterizou um

movimento de combate unilateral à prática de acumulação de rendimentos em paraísos

fiscais34

. Neste sentido, as medidas adotadas, já neste momento inicial, podiam ser

caracterizadas como:

As medidas adotadas traduzem-se essencialmente em, por ficção legal,

“desconsiderar” a personalidade jurídica das sociedades cuja constituição ou

funcionamento tenha sido ou seja inspirada predominantemente por razões de ordem

fiscal, considerada transparente (pass-throught entity) em termos de permitir a

31

Trata-se de sociedades empresariais cujo objeto social é deter participação societária de outras sociedades

empresariais. 32

Cf. ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle

with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p. 1.532. 33

Ibid., 2001, p.1.534. 34

XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 285.

Page 33: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

33

tributação dos respectivos sócios, como se tivessem auferido diretamente os lucros,

sem aguardar pelo momento da distribuição dos lucros entretanto acumulados.35

O mecanismo descrito acima promovia a transparência fiscal das subsidiárias norte-

americanas residentes no exterior de modo a permitir a tributação dos rendimentos nelas

acumulados independentemente da sua efetiva disponibilização. Este foi o primeiro regime

antidiferimento criado no mundo. Embora o seu campo de aplicação tivesse suas limitações, o

mecanismo foi posteriormente aperfeiçoado de modo a ampliar, sensivelmente, o seu campo

de incidência. Este passo fundamental foi dado, posteriormente, em 1962.

1.3.2. A alteração legislativa de 1962 (Subpart F)

O contexto histórico que antecedeu à introdução do regime de transparência fiscal

internacional nos EUA, vigente até os dias de hoje com algumas alterações que serão tratadas

mais adiante, era um contexto de grande déficit fiscal no qual o ritmo de crescimento da

economia norte-americana havia diminuído sensivelmente. Muitos estudiosos e funcionários

da administração fiscal norte-americana acreditavam que os investimentos em subsidiárias no

exterior – especialmente nos casos em que o regime de antidiferimento introduzido em 1934

não era aplicável – contribuía para o déficit fiscal constatado e que a sua tributação poderia

gerar receitas suficientes para equilibrar novamente as contas públicas36

.

Diante deste contexto, a Administração Kennedy propôs, em 1961, a larga eliminação

do regime anterior que permitia o diferimento de parte dos rendimentos auferidos no exterior.

Sob a égide do novo regime proposto, a regra geral passaria a ser o antidiferimento para a

maior parte dos investimentos feitos pelas companhias americanas no exterior, o que se

traduziria pela aplicação, quase que irrestrita, do regime de transparência fiscal internacional.

Este regime foi visto como uma alternativa normativa que favoreceria o maior ganho possível

de arrecadação ao fisco norte-americano.

Visto sob outra perspectiva, o que a Administração Kennedy pretendia era a promoção

da neutralidade na exportação de capitais, muito embora ela não estivesse disposta a restituir a

35

XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 285. 36

Cf. ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle

with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p. 1.538.

Page 34: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

34

eventual diferença positiva entre o imposto pago no exterior e o imposto devido nos EUA

(nos casos em que o imposto cobrado pelo país de fonte fosse superior ao norte-americano), o

que, teoricamente, impediria que fosse plenamente atingida a neutralidade na exportação de

capitais.

Antes mesmo de prosseguir ao debate legislativo que culminou na inserção da subpart

f ao Internal Revenue Code, é importante tecer uma breve explicação sobre o conceito de

neutralidade na exportação de capitais e sobre a concepção que lhe contrapõe, da neutralidade

da importação de capitais.

A neutralidade na exportação de capitais – Capital Export Neutrality (CEN) – é

alcançada na medida em que a carga tributária não afete a decisão do investidor nacional entre

investir dentro das fronteiras nacionais ou no exterior. O CEN parte, portanto, da ideia de

isonomia de tratamento tributário entre os investimentos feitos dentro e fora das fronteiras

nacionais. Desse modo, a decisão entre investir dentro ou fora das fronteiras nacionais se

torna neutra do ponto de vista fiscal. Este método está geralmente associado à concessão de

créditos relativos ao valor dos impostos pagos no exterior como medida destinada a atenuar a

dupla tributação e a equalizar o retorno líquido (retorno pós-impostos) dos investidores

nacionais e estrangeiros37

. Dessa forma, a premissa adotada é de que a carga tributária

efetivamente arcada pelo investidor residente nos EUA corresponda à carga do seu país (país

de residência do investidor) e não à tributação devida no país de residência da sociedade

investida (país da fonte produtora).

O modelo que mais favorece a neutralidade na exportação de capitais – tendo sido

inclusive vislumbrado como o tipo ideal pela Administração Kennedy – é o regime de

tributação em bases universais associado à regra geral de antidiferimento uma vez que este

desenho normativo é capaz de impedir a postergação indefinida no tempo da tributação do

país de residência da sociedade investidora. Assim, o regime de transparência fiscal, através

do qual todos os rendimentos são tributados independentemente da sua efetiva

disponibilização, favorece o CEN. O elemento de conexão que será utilizado para determinar

a competência tributária será a residência ou a nacionalidade do contribuinte (elemento de

conexão subjetivo), submetendo o residente ou o nacional à tributação universal de todos os

seus rendimentos independentemente do local da sua fonte de produção.

37

Cf. AVI-YONAH, Reuven S. Globalization, Tax Competition and the Fiscal Crisis of the Welfare State.

Harvard Law Review, v. 113, n. 7, 2000, p. 1.607.

Page 35: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

35

A neutralidade na importação de capitais – Capital Import Neutrality (CIN) – é

alcançada na medida em que tanto os investidores estrangeiros quanto os investidores

nacionais arquem com a mesma carga tributária incidente sobre os rendimentos obtidos em

seus respectivos investimentos. Assim, não importa onde o investidor seja residente fiscal, ele

estará submetido à carga tributária incidente apenas no país onde o seu investimento estiver

localizado (país da fonte de produção)38

. Desta forma, o país de residência do investidor

deverá assegurar isenção aos rendimentos auferidos no exterior, não se aplicando a lógica da

concessão de créditos para coibir a dupla tributação internacional39

. Diferentemente do CEN,

o CIN não está ancorado na ideia de isonomia de tratamento tributário entre investimentos

feitos no exterior e dentro das fronteiras nacionais. A decisão de onde investir não é, por sua

vez, neutra.

No entanto, o debate norte-americano revela que este regime favorece a

competitividade das empresas no mercado internacional uma vez que elas estarão sujeitas à

mesma carga tributária arcada pelas suas concorrentes. O elemento de conexão adotado será a

fonte de produção dos rendimentos, independentemente do local de residência ou da

nacionalidade do contribuinte (elemento de conexão objetivo), de modo que o modelo de

tributação que mais favorece a CIN é o regime de tributação em bases territoriais40

.

Em ambos os casos há de se ter um critério de isonomia. No primeiro, a isonomia se

dá no tratamento dos investidores. No segundo, a isonomia se dá no tratamento dos

investimentos.

Os modelos teóricos tratados acima não são excludentes entre si. Seria possível, em

teoria, alcançar, ao mesmo tempo, tanto a neutralidade na exportação de capitais quanto a

neutralidade na importação de capitais. Bastaria que, em um mundo hipotético onde só

38

Cf. CHORVAT, Terrence R. Taxing International Corporate Income Efficiently. NYU Tax Law Review, New

York, v. 53, 2000, p. 227 e ss. 39

Como medida destinada à eliminar a dupla tributação internacional, são celebrados tratados entre duas

jurisdições fiscais por meio do qual se pode escolher entre os dois métodos tradicionais de eliminação da dupla

tributação: (i) método crédito; e (ii) método da isenção. O primeiro método, conforme mencionado, implica a

concessão de créditos, no país de residência da pessoa investidora, de créditos correspondentes ao valor do

imposto pago no exterior. Algumas jurisdições fiscais, tais como a brasileira, limitam o valor do crédito ao

montante da tributação devida no Brasil por aquele rendimento auferido no exterior. O segundo método implica

o reconhecimento de que apenas um país possui jurisdição para tributar determinado rendimento, afastando a

jurisdição fiscal do outro país. O primeiro método permite que se evite a dupla tributação no âmbito da CEN. O

segundo permite que a concretização da CIN. 40

Cf. CHORVAT, op. cit., p. 227.

Page 36: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

36

existem duas jurisdições fiscais, ambas fizessem incidir a mesma carga tributária41

sobre os

rendimentos oriundos da atividade econômica42

.

A separação conceitual entre CEN e CIN parte do pressuposto de que a tributação

sobre a renda pode afetar a decisão de investimento. Isso ocorre não apenas quanto à decisão

de internacionalizar a atividade econômica, mas, sobretudo, no tocante à competitividade das

subsidiárias frente a outras empresas que se aproveitam de carga tributária menor, ainda que

temporariamente, em virtude da possibilidade de diferimento da sua tributação até o momento

em que os seus lucros forem disponibilizados econômica ou juridicamente.

Como então escolher entre os dois modelos teóricos? Qual deles será mais eficiente do

ponto de vista econômico? A literatura especializada defende que ambos os modelos poderão

gerar o mesmo nível de eficiência, dependendo da elasticidade da demanda e da oferta de

capital. A CEN será preferida nas situações em que a oferta de capital for fixa e a sua

demanda for elástica. Por outro lado, a CIN será preferida nas hipóteses em que a oferta por

capital for elástica e a sua demanda for fixa43

.

A Neutralidade Nacional – National Neutrality (NN) – é um modelo teórico que visa

romper com a oposição clássica entre CEN e CIN, na medida em que coloca a maximização

do bem estar nacional como prioridade central44

. Feitos estes breves esclarecimentos,

prosseguiremos com a análise do debate legislativo norte-americano.

41

O termo “identidade de carga tributária” deve ser entendido como “identidade de todos os aspectos

quantitativos da regra matriz de incidência tributária dos impostos incidentes sobre a atividade empresarial”. 42

Em relação ao tema, é interessante notar que a comissão “Ruding” (Ruding Comission) chegou a apontar para

a harmonização da carga tributária entre todos os estados-membros da União Europeia como forma de se atingir

tanto a CEN quanto a CIN e de reduzir distorções no mercado interno europeu. Neste sentido, veja-se o disposto

no Capítulo 10 das Conclusions and recommendations of the Committes of Independent Experts on Company

Taxation – Ruding Tax Comission of European Comunities. Luxembourg, 1992. 43

Cf. AVI-YONAH, Reuven S. Globalization, Tax Competition and the Fiscal Crisis of the Welfare State.

Harvard Law Review, v. 113, n. 7, 2000, p. 1.606. 44

Daniel Shaviro – Professor da Universidade de Nova Iorque – defende a adoção de um sistema pautado na

isenção dos rendimentos auferidos por subsidiárias no exterior o que implicaria, na prática, a adoção do princípio

da tributação em bases territoriais. Primeiramente, o referido acadêmico parte da ideia de que não faz sentido

pensarmos em um sistema de tributação em bases universais, que se utilize do método do crédito, que preze por

um bem-estar global, pois, com isso, se opera uma verdadeira transferência de dinheiro para o exterior, o que

leva à qualificação do imposto pago no exterior (sobre o qual se calculou o valor do crédito) como sendo uma

verdadeira despesa no país do investidor. Esta é a concepção orientadora da neutralidade nacional (National

Neutrality - NN) que se contrapõem amplamente à neutralidade da exportação de capitais (CEN), aceita por

longo período de tempo como diretriz de formulação de políticas tributárias, respaldando-se em um sistema de

tributação em bases mundiais atrelado à concessão de créditos sobre impostos pagos no exterior como medida

destinada a evitar a dupla tributação internacional. Do ponto de vista da CEN, a concessão de créditos relativos a

impostos pagos no exterior é visto, no país de residência do investidor, como sendo uma transferência – ao

contrário do NN que o vê como uma despesa – denotando nítida preocupação com o bem-estar global e não com

o bem-estar nacional. Segundo o autor, a concessão de créditos tributários sobre o imposto pago no exterior custa

ao país de residência do investidor a renda pós-imposto estrangeiro e elimina o incentivo das suas empresas em

Page 37: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

37

A Administração Kennedy propôs a criação de um modelo que favoreceria a

neutralidade na exportação de capitais, colocando, portanto, fim ao diferimento da tributação

norte-americana incidente sobre rendimentos auferidos no exterior. Não obstante a sua

coerência lógica, a proposta de regime de transparência fiscal internacional apresentada pela

da Administração Kennedy sofreu forte oposição no Congresso norte-americano.

A crítica feita, à época, dizia respeito a dois aspectos centrais da proposta: (i) possível

inconstitucionalidade do regime de transparência fiscal; e (ii) potenciais impactos ensejados

pelo regime na competitividade das subsidiárias americanas no exterior45

. Tratou-se, de fato,

da organização de lobbies por empresários norte-americanos junto aos grupos de interesse

organizados no Congresso norte-americano que efetivamente conseguiram barrar a proposta

feita pelo Governo.

Em relação ao argumento da competitividade nos mercados internacionais, note-se que

a comunidade empresarial alegou, na época, que se os seus concorrentes internacionais

poupar impostos estrangeiros (afinal é garantido o direito ao crédito desde que limitado ao valor do imposto

devido no Brasil). Além disso, há dificuldades práticas de se alcançar um padrão de plena reciprocidade na

concessão de créditos tributários quando se pensa em escala global, o que coloca em xeque a sua eficiência e

desequilibra o jogo que deveria ser “de soma zero” que ocorreria se duas nações idênticas adotassem políticas

fiscais idênticas com a cobrança e a concessão mútua de impostos. Pelas razões expostas acima, o autor defende

que a perspectiva mais adequada quando se pensa uma política tributária seria prezar pela maximização do bem-

estar nacional, a despeito do global. O sistema que maximiza o bem-estar nacional é adequadamente

representado pela NN, que tradicionalmente, segundo o autor, partia de dois pressupostos fundamentais: em

primeiro lugar, o sistema tributário deve abranger a renda dos seus contribuintes auferida em bases universais, ao

invés de territorialmente, pois assim ele evitará que haja perdas de receitas fiscais na medida em que, caso

houvesse a previsão de um sistema de isenção (territorialidade), o investimento exterior seria feito às custas do

investimento interno; em segundo lugar, os impostos estrangeiros devem ser dedutíveis na medida em que, do

ponto de vista do bem-estar nacional, eles não passam de meras despesas. O autor aponta, no entanto, que o

primeiro pressuposto foi significativamente enfraquecido ou refutado na medida em que estudos empíricos

comprovaram que o investimento externo dos países não se dava às custas do investimento interno. Assim,

rejeitada a primeira premissa, a segunda – a qual preza pela maximização do bem-estar nacional – pode ser

alcançada por um sistema de tributação que isente os lucros auferidos no exterior da tributação no Estado de

residência do sócio investidor uma vez que a isenção corresponde, implicitamente, a um sistema de dedução do

imposto pago no exterior. O pressuposto não apenas de que a NN é desejável como também que ela pode ser

alcançada mediante a tributação dos rendimentos de origem estrangeira dos residentes à alíquota tributária

geralmente aplicável aos demais rendimentos, com a possibilidade de dedução dos impostos estrangeiros já havia

sido estabelecido, desde 1963, por Peggy Richman Musgrave. A ideia, portanto, não é nova. O que é novo é a

visão de que um sistema de tributação em bases territoriais – ou seja, que isente os rendimentos auferidos em

bases universais – é um sistema implícito de dedução e que ele corrobora com a maximização do bem-estar

nacional, favorecendo, portanto, a NN (uma vez derrubada a sua primeira premissa). O autor aponta ainda que

muito do fascínio das pessoas pelo direito ao crédito no valor do imposto pago no exterior é o seu papel de evitar

a dupla tributação. A atenção não deveria, no entanto, estar focada na dupla tributação jurídica, mas sim na

econômica e na neutralidade fiscal geral do sistema. O sistema de créditos é, neste sentido, apenas uma das

formas de se resolver o problema da dupla tributação. Outra alternativa igualmente plausível seria simplesmente

diminuir a alíquota do imposto incidente sobre lucros auferidos no exterior que, no limite, cairia para zero,

tornando-se um sistema que se respalda na isenção (ou territorialidade). Vejam-se maiores detalhes em:

SHAVIRO, Daniel. Repensando o crédito tributário estrangeiro. Revista Tributária das Américas, São Paulo:

Revista dos Tribunais, v. 2, 2011. 45

Cf. ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle

with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p. 1.539.

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38

pudessem continuar se utilizando de paraísos fiscais para reduzir a sua carga tributária,

principalmente através da possibilidade de diferimento da tributação nos seus respectivos

países de residência, eles perderiam competitividade caso não pudessem fazer o mesmo já que

não poderiam igualar os seus preços aos dos seus concorrentes. Veja-se, neste sentido, o

trecho abaixo:

Similarmente, testemunhas da comunidade empresarial norte-americana levantaram

a bandeira da competitividade em oposição às propostas feitas pelo Governo. Apesar

de concordarem que a maior parte dos seus competidores provinha de nações

industrializadas de elevada carga tributária, essas testemunhas argumentavam que os

seus competidores internacionais estavam se utilizando, igualmente, de

planejamentos tributários envolvendo paraísos fiscais para reduzir a sua carga

tributária. Portanto, caso a Administração acabasse com o regime de diferimento,

conforme proposto, os empresários norte-americanos não seriam capazes de

competir com os seus competidores estrangeiros que iriam continuar reduzindo a sua

carga tributária global através do recurso aos paraísos fiscais.46

(Tradução livre)

Em resposta ao argumento trazido pelos empresários norte-americanos, a

Administração alegou que as preocupações relativas à competitividade internacional das

subsidiárias norte-americanas, apesar de coerentes em tese, não se verificavam de fato. Neste

sentido, defendia a Administração que, muito embora alguns competidores internacionais

estivessem se utilizando de paraísos fiscais para reduzir a sua carga tributária, os

competidores estrangeiros recorriam a esta prática muito menos do que os empresários norte-

americanos47

. De fato, a Administração Kennedy estava comprometida em combater o recurso

aos planejamentos tributários envolvendo paraísos fiscais.

No entanto, ao apreciar o projeto apresentado pelo Poder Executivo, o Congresso

houve por bem limitar a proposta de combater todas as formas de diferimento do imposto

sobre a renda corporativa norte-americano, fundamentalmente, porque ele havia sido

convencido, pelo empresariado, de que muitas subsidiárias, que desempenhavam atividades

econômicas substanciais e que produziam rendimentos ativos no exterior, poderiam ter a sua

competitividade onerada por este regime tributário.

46

ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle

with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p 1.540. No original: “Similarly, witnesses from U.S.

international business community raised the banner of competitiveness in opposition to the Proposals. While

conceding that most of their competitors were from high-tax industrialized nations, these witnesses argued that

these foreign competitors were similarly using tax-haven devices to reduce their own foreign tax burdens.

Therefore, if the Administration ended deferral as proposed, U.S. business would be unable to compete with

their foreign counterparts who would continue to reduce their global tax burdens through the tax-heaven device.” 47

Ibid., p. 1.540.

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39

O regime que prevaleceu ao final deste embate previu a regra de antidiferimento

parcial que se aplicava tão somente em relação a: (i) rendimentos passivos em geral (foreign

personal holding company income); (ii) ganhos de capital auferidos sob condições especiais

(foreign base company sales income) e; (iii) rendimentos oriundos de serviços prestados sob

determinadas condições (foreign base company services income) 48

. O Congresso entendeu

que não havia razões para que os rendimentos passivos fossem excluídos do regime de

antidiferimento já que eles não suscitavam as mesmas questões concorrenciais que os

rendimentos ativos por não serem o fruto da atividade econômica efetivamente produtiva no

exterior (industrial, comercial ou agrícola).

Ao final do debate, prevaleceu um regime tributário híbrido que proibiu o diferimento

do pagamento do imposto norte-americano apenas em relação aos rendimentos mencionados

acima que, em sua maioria, são de natureza passiva. Neste sentido, de acordo com João

Francisco Bianco, a postura do Congresso norte-americano, quando da votação da proposta

apresentada pelo Governo, foi no sentido de distinguir entre duas formas de diferimento: (i)

diferimento lícito (rendimentos ativos); e (ii) diferimento ilícito (rendimentos passivos) 49

.

1.3.3. Subpart f: Tendências posteriores a 1962

Entre o período de 1962 e o começo da década de 1990, o regime de tributação de

lucros auferidos no exterior sofreu alterações legislativas que, embora não tivessem alterado

os aspectos centrais do regime aprovado em 1962, aumentaram as hipóteses normativas de

incidência do regime de antidiferimento (regime de transparência fiscal internacional). Neste

sentido, houve um claro movimento legislativo de restrição ao diferimento no direito norte-

americano até o início da década de 199050

.

48

A subpart f do Internal Revenue Code americano possui algumas hipóteses de exclusão (safe harbors) da

aplicação do regime antidiferimento norte-americano. Sem pretender descer aos detalhes da legislação dos EUA,

as hipóteses de exclusão do regime de transparência fiscal são representadas pelas situações em que a principal

motivação que orientou a constituição de uma subsidiária no exterior não foi fiscal e por determinadas transações

que visam facilitar as exportações norte-americanas. 49

BIANCO, João Francisco. Transparência fiscal internacional. São Paulo: Dialética. 2007, p. 28-29. 50

Cf. ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle

with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p. 1.549.

Page 40: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

40

Desde 1962, o Congresso norte-americano expandiu as categorias de rendimentos

sujeitas à aplicação do regime antidiferimento, denominadas subpart f income categories.

Houve a inclusão de novas categorias de rendimentos passivos sujeitos ao regime. Além

disso, os rendimentos auferidos por subsidiárias estrangeiras de companhias de navegação e

empresas petrolíferas também foram incluídos no seu campo de incidência. As alterações que

foram feitas na legislação norte-americana tiveram como objetivo central adaptar o regime,

concebido e aprovado em 1962, às formas desenvolvidas ao longo do tempo de geração ou

disfarce de rendimentos passivos.

O mais emblemático esforço norte-americano no sentido de enrijecer o regime

antidiferimento consistiu na aprovação do Passive Foreign Investment Company regime

(PFIC) e das CFC Excess Passive Asset rules51

. Ambos tiveram como objetivo central acabar

com o diferimento da tributação de subsidiárias de companhias norte-americanas que

possuíssem excesso de ativos que gerassem, tão somente, rendimentos passivos.

Antes da aprovação desses dois regimes, havia uma hipótese de exclusão na legislação

norte-americana aplicável a todas as pessoas jurídicas que detivessem até 10% de participação

societária em subsidiárias no exterior, mesmo que elas produzissem rendimentos que

estivessem, em princípio, sujeitos à aplicação do regime antidiferimento (subpart f income).

Assim, o PFIC veio como um regime complementar às CFC rules. O PFIC é mais flexível do

que as CFC rules – não exige, por exemplo, participação societária mínima para ser aplicável

– e possibilitou o combate a abusos que estas últimas não conseguiam coibir. O regime PFIC

norte-americano chegou a inspirar normas de semelhante natureza que passaram a ser

defendidas por organizações como a OCDE, como técnica de combate à concorrência fiscal

danosa, conforme trataremos no próximo tópico.

Por fim, vale mencionar que, a partir da década de 1990, houve intensas pressões

políticas no Congresso norte-americano demandando maior flexibilidade do regime de

antidiferimento para que as subsidiárias de companhias dos EUA pudessem ter melhores

condições de competitividade no mercado internacional. Neste contexto, houve um

relaxamento do regime especialmente em relação à acumulação de ativos em subsidiárias no

exterior que só produzissem rendimentos passivos – as CFC Excess Passive Asset rules foram

revogadas – e aos rendimentos ativos auferidos por subsidiárias de bancos.

51

Cf. ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle

with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p. 1.550.

Page 41: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

41

A tendência, após a metade da década de 1990, foi a criação das “check the box”

regulations através das quais uma entidade estrangeira poderia ser qualificada como uma

entidade jurídica autônoma para fins de tributários do país onde ela reside e, ao mesmo tempo,

como filial (i.e. sem personalidade jurídica) para fins de incidência do imposto norte-

americano. O objetivo era evitar que subsidiárias híbridas fizessem transações intragrupo para

transferir renda de países de elevada tributação para paraísos fiscais, evitando-se a aplicação

da subpart f52

.

Conforme visto, o debate norte-americano, embora preocupado com o combate à

prática do uso de paraísos fiscais (hipótese de diferimento ilícito), está muito mais voltado

para a batalha de grupos de interesses junto ao Congresso norte-americano no sentido de

excluir determinados rendimentos do regime antidiferimento da subpart f em nome da

competitividade das suas subsidiárias no mercado internacional53

, do que com o debate sobre

competição fiscal danosa promovida pela OCDE e pela União Europeia. Este debate será

visto nos próximos tópicos, sendo ele igualmente importante para que se possa compreender a

trajetória histórica do instituto da transparência fiscal internacional no direito tributário

internacional.

1.3.4. As exceções criadas às Foreign Sales Corporations (FSC)

É interessante observar que, se por um lado a Administração Kennedy objetivou

combater estratégias elisivas voltadas à transferência de capital de países de elevada carga

tributária para países de tributação favorecida, submetendo determinados tipos de rendimentos

(denominados subpart f income) à tributação através das suas CFC rules, por outro lado o

Congresso norte-americano entendeu que as empresas exportadoras deveriam ter o benefício

tributário do diferimento da tributação norte-americana incidente sobre as receitas de

exportações auferidas por subsidiárias residentes no exterior que fossem qualificadas como

export trade corporations.

52

Cf. ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle

with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p. 1.552. 53

Observa-se que a questão da competitividade esteve presente desde o debate legislativo de 1962 até hoje nos

EUA, favorecendo um modelo de diferimento parcial ou, em alguns casos, até mesmo a adoção do CIN. Neste

sentido, confira-se: AVI-YONAH, Reuven S. Globalization, Tax Competition and the Fiscal Crisis of the

Welfare State. Harvard Law Review, v. 113, n. 7, 2000, p. 1.610.

Page 42: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

42

A principal razão que motivou o Congresso a criar um regime especial para as

exportações dizia respeito à concorrência comercial oferecida pelos europeus. Acreditava-se,

na época, que os sistemas de tributação em bases territoriais adotados pela grande parte dos

países da Comunidade Europeia poderiam gerar uma desvantagem concorrencial para as

exportações norte-americanas que, ainda que não estivessem sujeitas às suas CFC rules,

estariam sujeitas à tributação em bases mundiais54

. A verdade era, no entanto, que os EUA

queriam incentivar as suas exportações através da concessão de um regime tributário mais

benéfico.

O regime vigente desde 1971, denominado Domestic International Sales Corporation

(DISC regime), consistia, fundamentalmente, em um regime que permitia o diferimento da

tributação norte-americana incidente sobre receitas de exportação de subsidiárias residentes

no exterior qualificadas como DISC. Na prática, uma parte das receitas de exportação era

isenta da tributação norte-americana e a outra parta era diferida indefinidamente no tempo55

.

O regime da DISC foi objeto de disputa internacional por ser acusado de violar o

Acordo GATT (General Agreement on Tariffs and Trade), tendo o conselho decidido que o

regime norte-americano era um subsídio proibido às exportações norte-americanas, bem como

uma verdadeira isenção e não mero diferimento da tributação56

. A Comunidade Europeia,

particularmente, além de acusar os EUA de conceder subsídio proibido às suas exportações,

fez fortes pressões para que o conselho autorizasse o uso de medidas compensatórias contra o

comércio norte-americano. Diante da possibilidade de sofrer medidas compensatórias, no ano

de 1984, o Congresso norte-americano substituiu o DISC regime pelo FSC regime (Foreign

Sales Corporation regime), em uma tentativa de se adequar à decisão proferida pelo conselho

do GATT57

.

No regime das FSC, as receitas decorrentes de exportação das sociedades qualificadas

como FSC estavam sujeitas à tributação em bases territoriais pelo país da fonte produtora, ou

seja, não estavam sujeitas à tributação nos EUA, tampouco à aplicação das suas CFC rules,

ainda que tais sociedades fossem residentes em países de tributação favorecida. Alguns

autores questionam se a adoção do regime das FSC não seria uma reação contra o sistema de

54

Em relação a questão concorrencial advinda da tributação em bases territoriais dos países da Comunidade

Europeia, confira-se: JELSMA, Phillip L. The making of a subsidy, 1984: The tax and international trade

implicatios of the Foreign Sales Corporation legislation. Stanford Law Review, v. 38, n. 5, 1986, p. 1.327-1.362. 55

Ibid., p. 1.333-1.334. 56

Ibid., p. 1.334. 57

Cf. ENGEL, Keith. Tax Neutrality to the Left, International Competitiveness to the Right, Stuck in the Middle

with Subpart F. Texas Law Review, Texas, v. 79, 2001, p. 1.547-1.548; e JELSMA, Phillip L. Op. Cit., p. 1.334.

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43

tributação em bases territoriais adotado pela Comunidade Europeia bem como contra os

benefícios fiscais dados no âmbito dos seus tributos indiretos (sobretudo o Imposto sobre o

Valor Agregado - IVA)58

.

No entanto, o FSC regime foi questionado junto à OMC (Organização Mundial do

Comércio), da mesma forma que ocorreu com o seu antecessor. Em 2000, a referida

organização proferiu decisão, em sede de recurso (Appellate Body), reconhecendo que o

regime norte-americano violava o Acordo GATT, mais precisamente o Acordo sobre

Subsídios e Medidas Compensatórias (art. 3.1, a) que o integra. O referido dispositivo faz

menção ao Anexo I do acordo em que constam exemplos do que se entende por subsídios

concedidos às exportações, sendo que a nota de rodapé nº 59 resguardava o direito de o país

adotar medidas destinadas a evitar a dupla tributação internacional, desde que em respeito ao

princípio arm’s length.

Sem querer entrar muito nas suas minúcias, vale ressaltar que a discussão central que

foi levada à OMC era, fundamentalmente, se o FSC regime, enquanto medida destinada a

evitar a dupla tributação, poderia ser excluído do conceito de subsídio proibido às

exportações. Na ocasião, os EUA argumentaram que a parte final da nota de rodapé tornava

possível essa interpretação, ao passo em que a Comunidade Europeia defendeu que o

dispositivo não permitia que os países signatários adotassem métodos destinados a evitar a

dupla tributação – tais como a isenção completa – de receitas estrangeiras oriundas de

operações de exportações diferentes do método geral adotado pelo país em relação às demais

receitas, que, no caso dos EUA, é o método do crédito. Prevaleceu, ao final, a visão defendida

pelos europeus59

.

A crítica que se pode fazer à decisão da OMC é que, não obstante ela tenha

determinado que os EUA extinguissem o seu regime tributário aplicável às FSC, a decisão

não impediu que o país viesse a adotar medidas futuras que tivessem efeitos similares

(beneficiar as exportações), desde que precedida do devido cuidado para que tais medidas não

violassem os acordos celebrados pelo país60

.

58

Entre eles: JELSMA, Phillip L. The making of a subsidy, 1984: The tax and international trade implicatios of

the Foreign Sales Corporation legislation. Stanford Law Review, v. 38, n. 5, 1986. p. 1.353-1.355. 59

Cf. LANGBEIN, Stanley I. Tax treatment for “foreign sales corporations” – WTO Doc. WT/DS108/AB/R.

The American Journal of International Law, American Society of International Law, v. 94, n. 3, 2000, p. 546-

555. 60

Ibid., p. 553.

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44

Ademais, notamos que o embate entre os EUA e a Comunidade Europeia esteve

presente tanto na ocasião em que se discutiu o regime das DISC com o Acordo GATT, quanto

em momento posterior, quando se questionou a adequação do regime das FSC com o referido

acordo. Tal embate no âmbito do Acordo GATT é, acima de tudo, um reflexo de uma disputa

comercial acirrada entre os EUA e a Europa, bem como uma consequência da tentativa de se

comparar sistemas tributários com composição completamente distinta; enquanto o sistema

europeu se respalda muito mais na tributação incidente sobre o consumo (e.g. IVA) do que na

tributação direta (e.g. IR), o sistema tributário norte-americano, que pouco tributa o consumo,

está mais ancorado na tributação incidente sobre a renda corporativa e das pessoas físicas.

1.4. O debate internacional: a concorrência fiscal danosa e as CFC rules

O debate norte-americano posterior à introdução das CFC rules no Internal Revenue

Code (subpart f regime) foi acompanhado por um debate internacional patrocinado por

organizações internacionais e supracinacionais – fundamentalmente a OCDE e a Comissão da

Comunidade Europeia (atual União Europeia) – cujo objetivo central era combater as práticas

de concorrência tributária danosa entre os países, principalmente no que tange à existência de

países de tributação favorecida (paraísos fiscais) e regimes fiscais privilegiados.

A preocupação dos impactos arrecadatórios causados por práticas de elisão e evasão

fiscal internacional, favorecidas pela existência de regimes de menor pressão fiscal, na

arrecadação tributária global de países de tributação regular, levou diversos países membros

da OCDE e da Comunidade Europeia a solicitar a realização de estudos que demonstrassem

os potenciais efeitos negativos advindos da concorrência fiscal e a formulação de

recomendações de política tributária destinadas à proteção das suas bases imponíveis.

Tanto no debate norte-americano, quando no debate internacional patrocinado pela

OCDE e pela Comissão Europeia, que será analisado a seguir, o objetivo que foi atribuído ao

regime de transparência fiscal internacional – ou CFC rules conforme internacionalmente

conhecidas – é antielisivo, ou seja, por meio da sua aplicação, busca-se desconsiderar uma

conduta voluntária do contribuinte que tem por motivo exclusivo ou preponderante evitar a

incidência da norma que prescreve a hipótese de incidência tributária. Os pressupostos

normativos e as teorias que respaldam a aplicação do regime de transparência fiscal serão

Page 45: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

45

analisados adiante neste capítulo. Por ora, analisaremos a relação entre a função antielisiva do

regime de transparência fiscal e do debate internacional sobre a concorrência fiscal danosa.

1.4.1. O projeto da OCDE sobre a concorrência fiscal danosa

O debate patrocinado no âmbito da OCDE culminou na publicação, em 1998, de um

relatório denominado Harmful Tax Competition: an Emerging Global Issue. Antes disso,

outros estudos já haviam sido feitos pela OCDE sobre a problemática da concorrência fiscal

internacional e dos paraísos fiscais61

. No entanto, o relatório publicado em 1998 foi um

importante marco no entendimento da organização sobre o tema já que ela expôs as

conseqüências advindas da concorrência fiscal, estabeleceu critérios para a identificação de

países de tributação favorecida e regimes fiscais privilegiados e fez recomendações para a

proteção da arrecadação tributária dos seus países membros.

De acordo com o relatório, a concorrência fiscal internacional foi vista pela OCDE

como uma das conseqüências advindas do fenômeno da globalização, no qual as políticas

tributárias praticadas individualmente pelos países passaram a ter implicações que não mais se

restringiam à condução das suas políticas internas, passando a surtir efeitos também em outras

jurisdições fiscais62

. Este diagnóstico está relacionado à formação de uma economia global

pautada pela elevada mobilidade do capital e pela consequente facilidade com a qual

contribuintes nacionais passaram a transferir os seus capitais de jurisdições de maior pressão

fiscal para jurisdições de menor pressão, motivados pelo objetivo de aumentar o seu lucro

pós-tributário.

Diversas jurisdições fiscais passaram a oferecer regimes tributários mais vantajosos

destinados, fundamentalmente, a atrair capitais com elevada mobilidade orientados por razões

preponderantes de economia fiscal. Esta prática ficou sendo conhecida como concorrência

fiscal danosa – harmful tax competition – e se opõe à concorrência fiscal justa – fair tax

competition. A diferença entre as duas espécies é que, apesar de em ambos os casos a

jurisdição fiscal apresentar carga tributária relativamente baixa, no primeiro caso ela se

61

Veja-se, neste sentido: OCDE, L’evasion et la fraude fiscales internationales. Paris, 1987; e OECD,

Controlled Foreign Company Legislation. In: Studies in Taxation of Foreign Source Income. Paris, 1996. 62

OECD. Harmful tax competition: an emerging global issue. Paris, 1998, p. 14.

Page 46: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

46

apresenta e é percebida como uma alternativa oferecida ao não residente destinada a evitar a

incidência da tributação devida no seu país de residência, sendo ela, na maioria dos casos, não

transparente no sentido de não disponibilizar informações relativas ao seu sistema tributário

ou de dados dos próprios contribuintes para fins de controle fiscal63

. De fato, a prática de

concorrência fiscal danosa está diretamente ligada tanto à elisão quanto à evasão fiscal

internacional64

.

De acordo com Alberto Xavier, a elisão fiscal internacional praticada pelo contribuinte

consiste em se evitar a aplicação de certa norma ou conjunto de normas através de atos ou

conjunto de atos que visem impedir a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária em

certa ordem jurídica (menos favorável) ou produzam a ocorrência desse fato em outra ordem

jurídica (mais favorável)65

.

A característica que diferencia a elisão fiscal aplicada ao direito interno daquela

aplicada ao direito internacional é justamente o fato de que, nesta segunda categoria, o que se

busca é manipular os elementos de conexão66

entre o contribuinte e determinada jurisdição

fiscal, enquanto que, na primeira, a elisão fiscal se opera tão somente através da manipulação

das formas negociais previstas no direito privado, das quais dispõe o contribuinte para

organizar a sua atividade econômica sem, no entanto, que elementos de conexão sejam

manipulados. Neste sentido, a elisão fiscal internacional depende de dois pressupostos: (i) da

existência de dois ou mais ordenamentos tributários em que, ao menos um deles, ofereça

vantagens de natureza fiscal; e (ii) da faculdade de o contribuinte aproveitar os benefícios de

natureza tributária oferecidos.

O que caracterizará a elisão fiscal internacional como sendo passível de repreensão

unilateral ou de forma coordenada, seguindo a linha de raciocínio do relatório da OCDE, será

a constatação de prática de concorrência fiscal danosa. Por outro lado, a elisão fiscal

internacional lícita, que não enseja repreensão por parte dos países, está inserida no campo da

concorrência fiscal justa.

63

Cf. OECD. Harmful tax competition: an emerging global issue. Paris, 1998, p. 21. 64

É importante esclarecer, no entanto, que o foco do presente tópico será a elisão fiscal internacional, devido à

sua relação com as CFC rules, razão pela qual não analisaremos a questão da evasão fiscal internacional com a

mesma profundidade. 65

Cf. XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 235. 66

Os elementos de conexão são os critérios que permitem delimitar a competência tributária internacional ou, em

outros termos, representam as bases para atribuição de jurisdição tributária.

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47

Há, segundo Alberto Xavier, duas modalidades de elisão fiscal internacional: (i) a

subjetiva; e (ii) a objetiva67

. Na primeira modalidade, há manipulação do elemento de

conexão subjetivo, tal como o domicílio ou a residência da pessoa, para que ela passe a se

aproveitar de um regime fiscal mais vantajoso. É o que ocorre, por exemplo, quando uma

pessoa física transfere o seu domicílio fiscal para outro país com regime fiscal mais vantajoso

(expatriação fiscal) e com isso deixa de estar submetida à jurisdição tributária de maior

pressão fiscal. Na segunda modalidade, há manipulação do elemento de conexão objetivo, tal

como a fonte de produção ou de pagamento dos rendimentos. A manipulação do elemento de

conexão objetivo pode ocorrer, mais precisamente, através da divisão, acumulação e

transferência de rendimentos, tal como ocorre com a criação de controladas, coligadas, filiais

e sucursais em países de baixa tributação para que os lucros ali produzidos possam ser

acumulados por prazo indefinido.

Tulio Rosembuj defende, sob outra perspectiva, que a elisão fiscal não se opera apenas

no plano de ações positivas do particular, mas, sobretudo, do ponto de vista do Estado. Assim,

o conceito de elusión de Estado apresentado pelo autor consiste, fundamentalmente, no

oferecimento de regimes tributários favoráveis que buscam atrair capitais de elevada

mobilidade orientados por interesses de natureza exclusiva ou preponderantemente tributária.

Trata-se de um conceito muito próximo ao conceito de concorrência fiscal danosa proposto

pela OCDE, mas que com ele não se confunde já que não contêm em si as hipóteses de

cooperação com o particular para a ocultação de renda ou riqueza, condutas que estão situadas

no campo da evasão fiscal. Confira-se neste sentido:

A elisão de Estado se manifesta através do estabelecimento de regimes fiscais

favorecidos, especiais ou excepcionais, para favorecer a transferência de

investimentos entre Estados motivada por considerações exclusivamente fiscais, o

qual não apenas altera a alocação de recursos econômicos, como também,

principalmente, compromete o interesse fiscal dos Estados que os têm.

A elisão objetiva de Estado é um dos suportes, juntamente com a evasão, da

concorrência fiscal danosa entre os Estados.68

(Tradução nossa)

67

XAVIER, Alberto, 2010, op. cit., p. 236 e 237. 68

ROSEMBUJ, Tulio. Derecho Fiscal Internacional. Barcelona: El Fisco, 2001, p. 211-212. No original: “La

elusión de Estado se manifesta en el establecimiento de regímenes fiscales preferentes, especiales o

excepcionales, para favorecer el desplazamiento de inversiones entre Estados motivado por consideraciones

exclusivamente fiscales, lo cual no solo falsifica la asignación de recursos económicos, sino, y más destacado,

compromete el interés fiscal de los Estados que la padecen. La elusión objetiva de Estado es uno de los soportes,

junto con el de evasión, de la competencia fiscal lesiva o dañosa entre Estados.”

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48

O referido autor reconhece, no entanto, que é possível postular a existência de um

princípio geral antielisão fiscal entre Estados no sentido de que toda lei tributária editada por

uma jurisdição fiscal que infrinja os interesses legítimos de outra jurisdição fiscal será

passível de uma reação por sua parte em virtude do exercício do seu direito de autotutela69

. O

exercício do direito de autotutela implica reconhecer que os Estados estão legitimados a

adotar diversas medidas unilaterais de combate, tais como as medidas propostas pela OCDE

em 1998.

A concorrência fiscal danosa, aos olhos da OCDE, é promovida através de regimes

fiscais vantajosos oferecidos por países ou dependências de tributação favorecida e regimes

fiscais privilegiados. O relatório indicou critérios para a identificação de cada um deles.

Os países ou dependências de tributação favorecida (paraísos fiscais) podem ser

identificados pela combinação de alguns critérios. O primeiro critério, que é imprescindível à

sua caracterização, é a imposição carga tributária real baixa ou nula aliada ao fato de que a

jurisdição fiscal se apresente e seja percebida como um local destinado ao uso de não

residentes que queiram elidir as normas tributárias do seu país de residência. Em adição ao

primeiro critério, a constatação de ao menos uma das características abaixo leva à

confirmação definitiva da qualificação do país como paraíso fiscal: (i) falta de efetiva troca de

informações com outras jurisdições fiscais relativas aos contribuintes beneficiários; (ii) falta

de transparência das práticas e leis tributárias; e (iii) inexistência de qualquer norma que exija

que a atividade conduzida sob a sua jurisdição fiscal possua substância econômica70

.

Os regimes fiscais privilegiados também podem ser caracterizados a partir do

preenchimento de alguns requisitos enumerados pela OCDE. O primeiro critério apontado

pela OCDE para a sua caracterização é – assim como em relação aos paraísos fiscais – a

imposição carga tributária real baixa ou nula. Este primeiro critério deverá ser combinado

com ao menos um dos seguintes critérios: (i) o regime deverá ser ring-fencing no sentido de

possuir elementos que protejam o mercado interno do país que o adota evitando-se, com isso,

que os efeitos perversos do regime fiscal privilegiado gerem efeitos concorrenciais negativos

aos residentes daquele país (o acesso ao regime privilegiado é geralmente restrito aos não

residentes ou possui mecanismos que proíbam os seus beneficiários de atuar no mercado

local); (ii) falta de transparência quanto ao modo pelo qual o regime se opera; e (iii) falta de

69

ROSEMBUJ, Tulio. Derecho Fiscal Internacional. Barcelona: El Fisco, 2001, p. 212. 70

OECD. Harmful tax competition: an emerging global issue. Paris, 1998, p. 21-25.

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49

efetiva troca de informações com outras jurisdições fiscais relativas aos contribuintes

beneficiários71

.

No entanto, a própria OCDE reconheceu haver limitações dos critérios elencados em

face da pluralidade de formas possíveis de criação de regimes fiscais privilegiados. Assim, há

outras características discriminadas no próprio relatório que qualificam um regime como

favorecido, tais como a definição artificial da base de cálculo dos seus impostos, a adoção do

regime territorial “puro”, a possibilidade de negociação da base de cálculo e da alíquota

aplicável, entre outras.

Neste contexto, o tratamento favorecido concedido por paraísos fiscais e regimes

fiscais privilegiados geralmente atrai rendimentos passivos com elevada mobilidade que são

transferidos através da criação em seus territórios de empresas off-shore, sociedades cativas,

sociedades de seguro cativas (captive off-shore insurance companies), sociedades de

faturação (invoicing companies), sociedades holding, sociedades-base (headquarters regime),

sociedades de artistas (rent a star companies) entre diversas outras formas de estruturação

societária72

. Dentre as alternativas apontadas, as sociedades-base e as sociedades holding são

especialmente utilizadas para diferir a tributação no país de residência do seu investidor.

A preocupação da OCDE estava centrada, naquele momento, fundamentalmente, nos

potenciais efeitos dos referidos regimes favorecidos sobre a arrecadação tributária dos demais

países do mundo de tributação “regular” – desenvolvidos e com elevada carga tributária em

sua esmagadora maioria –, em especial dos seus Estados membros. As conseqüências da

concorrência fiscal danosa são diversas: (i) distorção de fluxos de investimentos financeiros e

imobiliários; (ii) degeneração da integridade e da equidade das estruturas tributárias; (iii)

desencorajamento do cumprimento das leis das demais jurisdições fiscais; (iv) distorção do

desenho dos sistemas tributários, da arrecadação total, da participação de cada espécie

tributária na sua composição e do padrão de gastos incorridos no fornecimento de bens

públicos; (v) alteração da composição da base de arrecadação tributária para materialidades

com menor mobilidade, tal como a tributação incidente sobre a folha de salários (o que acaba

aumentando os custos do emprego formal); e (vi) aumento dos custos administrativos para

assegurar o respeito dos contribuintes à legislação interna dos países73

.

71

Cf. OECD. Harmful tax competition: an emerging global issue. Paris, 1998, p. 25-34. 72

Cf. XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 264-274. 73

Cf. OECD, 1998, Op. Cit., p. 16.

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50

Diante deste cenário, a OCDE houve por bem recomendar a adoção de medidas

unilaterais de combate, ressaltando que o ideal seria alcançar a cooperação em escala global,

objetivo em relação ao qual a OCDE também apresentou recomendações, muito embora a

própria organização tenha reconhecido as inúmeras dificuldades de se chegar à plena

cooperação mundial. O relatório também apresentou recomendações relativas aos tratados

internacionais celebrados74

.

No tocante às recomendações de práticas unilaterais, há de se ressaltar a recomendação

referente à adoção do regime de transparência fiscal (CFC rules). De acordo com o relatório

da OCDE, as CFC rules deveriam ser utilizadas como técnica de combate à concorrência

fiscal danosa através da eliminação do benefício do diferimento da tributação devida no país

de residência do investidor, em relação aos investimentos localizados em paraísos fiscais ou

que se beneficiassem de regimes fiscais privilegiados75

.

O próprio relatório reconheceu, no entanto, que há necessidade de se alcançar uma

coordenação maior entre os países de modo que o desenho das CFC rules adotadas por cada

um deles possua padrões mínimos de harmonização e estejam voltados para o cumprimento

dos objetivos previstos no relatório (combater a concorrência fiscal danosa) 76

.

A recomendação tratada acima está alinhada com a recomendação feita pela OCDE

relativa às participations exeptions no contexto da concorrência fiscal danosa. De acordo com

esta recomendação, os países que se utilizam do método de isenção para evitar a dupla

tributação – método que implica, na prática, a adoção do princípio da territorialidade –,

deveriam deixar de aplicá-lo em relação a determinados rendimentos (rendimentos passivos)

auferidos em países de tributação favorecida e regimes fiscais privilegiados77

. Tais

rendimentos deveriam ser tributados através de um regime de tributação em bases universais

com regra de antidiferimento que impedisse, dessa forma, o diferimento da tributação no país

de residência do investidor.

O relatório também recomendou o uso de foreign investment fund rules cuja função é

eliminar o diferimento da tributação devida no país de residência do investidor incidente sobre

rendimentos auferidos através de fundos de investimento estrangeiros que tenham sido

74

Vale ressaltar que todas as recomendações feitas pela OCDE não possuem natureza vinculativa de modo que

os países membros não se encontram obrigados a adotá-las. Trata-se de um instrumento de soft law no direito

internacional público. 75

OECD. Harmful tax competition: an emerging global issue. Paris, 1998, p. 41. 76

Ibid., p. 42. 77

Ibid., p. 43.

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51

excluídos do campo de aplicação das CFC rules em virtude do critério de participação

societária mínima78

. Sua aplicação é complementar às CFC rules na medida em que visa

cobrir as brechas deixadas por elas. Trata-se de um regime semelhante ao Passive Foreign

Investment Company regime (PFIC) adotado pela legislação norte-americana do qual

tratamos anteriormente.

Conforme vimos, as CFC rules foram vistas pela OCDE como técnica de combate às

práticas internacionais de concorrência fiscal danosa. Assim, do ponto de vista do debate

internacional, as CFC rules possuem natureza claramente sancionatória não sendo, portanto,

uma técnica voltada, tão somente, para fins arrecadatórios, já que a sua aplicação seletiva a

transforma em um forte instrumento de combate unilateral de estratégias abusivas de elisão

fiscal internacional.

Ficou muito clara, portanto, em 1998, a postura assumida pela OCDE no sentido de

definir os critérios que levariam à caracterização dos países ou dependências que estivessem

praticando a concorrência fiscal danosa e de recomendar a adoção de medidas unilaterais –

entre elas as CFC rules – como estratégia de proteção da arrecadação dos seus países

membros, em sua esmagadora maioria desenvolvidos. Na época em que o relatório foi

elaborado, a OCDE estava cumprindo um mandato do G7 – grupo das sete economias mais

desenvolvidas do mundo – que estava preocupado com os efeitos de determinadas estratégias

de elisão e evasão fiscal internacional na arrecadação tributária dos seus países membros.

Posteriormente, a OCDE recebeu críticas em relação aos critérios elencados para a

discriminação de países ou dependências como sendo de tributação favorecida. Já em 2001,

com a publicação de um novo relatório sobre o tema, pudemos identificar críticas apontadas

por países, em sua maioria subdesenvolvidos, ao critério elencado no relatório de 1998 de que

a prática de concorrência fiscal lesiva estaria atrelada ao oferecimento de baixa carga

tributária. Assim, alegou-se em defesa dos países em desenvolvimento que o fato de

possuírem baixa carga tributária apenas significava que o custo da sua máquina pública era

baixo, já que tais países não dispunham de elevada infraestrutura e os seus custos eram,

portanto, reduzidos. Deste modo, os países em desenvolvimento defenderam que não estavam

praticando concorrência fiscal danosa. Criticou-se, também, o critério da falta de atividade

substancial como forma de determinação de um paraíso fiscal. Ademais, a OCDE foi acusada

78

Cf. OECD. Harmful tax competition: an emerging global issue. Paris, 1998, p. 42-43.

Page 52: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

52

de não combater a concorrência fiscal danosa patrocinada pelos regimes fiscais favorecidos

dos seus próprios países membros79

.

Em virtude das pressões feitas, a OCDE mudou de posicionamento e o critério

determinante da concorrência fiscal lesiva passou a ser a ponderação do quão transparentes as

jurisdições fiscais são e em que medida elas estão dispostas a promover a efetiva troca de

informações fiscais caso requisitas por outras jurisdições.

De fato, no ano de 2000, o Fórum Global da OCDE de Transparência e Intercâmbio de

Informações para Assuntos Tributários (OECD’s Global Forum on Transparency and

Exchange of Information for Tax Purposes) havia sido criado e já estava em operação. O

objetivo central do Fórum Global é “assegurar que padrões elevados de transparência e de

troca de informações sejam implementados de uma forma justa, igualitária e que permita a

concorrência justa entre todos os países, pequenos ou grandes, membros ou não da OCDE” 80

.

A primeira iniciativa importante do Fórum Global foi a criação, em 2002, do modelo

de acordo de intercâmbio de informações em matéria fiscal (model agreement on exchange of

information on tax matters) 81

. Este modelo de acordo internacional é especificamente voltado

para a promoção da troca de informações entre os países juntamente com as convenções

celebradas entre eles para evitar a dupla tributação que já possuíam uma cláusula de

intercâmbio de informações (art. 26 da convenção modelo da OCDE). Com isso, as duas

modalidades de convenções fiscais passaram a ser usadas para promover maior troca de

informações entre jurisdições fiscais.

O modelo de acordo de intercâmbio de informações passou a ser apoiado,

principalmente, pelo G2082

que, desde a sua criação, assumiu uma posição cada vez mais forte

no Fórum Global chegando a substituir o papel que o G7 possuía até então na OCDE83

.

79

Cf. OECD. The OECD’s project on harmful tax practices: The 2001 progress report. Paris, 2001. 80

Cf. OECD. Tax Co-operation: towards a level playing field – Assessment by the Global Forum on Taxation,

2006, p. 7. No original: “The Global Forum seeks to ensure the implementation of high standards of

transparency and information exchange in a way that is fair, equitable and permits fair competition between all

countries, large and small, OECD and non-OECD.” 81

Ibid., p. 7. 82

O G20 é um grupo de países composto pelas 19 maiores economias do mundo, abarcando países

desenvolvidos e emergentes, e pela União Europeia (20º membro) como um bloco único. Ele foi criado no final

da década de 1990, em meio a sucessivas crises econômicas, com o objetivo de abarcar novos países de grande

peso econômico, porém emergentes, ao debate que antes era patrocinado pelo G7. 83

A inserção do G20 fica muito evidente no comunicado feito pelo órgão, em 2004, na reunião dos ministros de

finanças e dos presidentes dos bancos centrais de diversos países em Berlim (Alemanha), situação na qual a

cúpula do G20 fez o seguinte pronunciamento: O G20 apoia os esforços do Fórum Global da OCDE na

promoção de padrões elevados de transparência e troca de informações para propósitos fiscais e de promover um

fórum cooperativo no qual todos os países podem trabalhar para o estabelecimento de um cenário pautado por

Page 53: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

53

Em 2004, a OCDE decidiu fazer uma revisão das regras jurídicas e das práticas

administrativas e fiscais dos países membros, bem como dos não membros, mas que sejam

participantes do Fórum Global, para identificar até que ponto eles são efetivamente

transparentes e promovem a troca de informações. Houve, também, o objetivo de aumentar o

número de países pertencentes ao Fórum Global para que o projeto fosse o mais inclusivo

possível, o que só veio a fortalecer a sua legitimidade.

Para proceder a revisão pretendida, a OCDE elencou os três princípios fundamentais

necessários para que se possa atingir o padrão internacional de transparência e de troca de

informações almejado. Os três princípios estabelecem que as jurisdições fiscais devem: (i) ter

a disponibilidade de informações contábeis, bancárias e de titularidade de participação

societária dos seus contribuintes; (ii) ter poder de acesso às informações fiscais dos seus

contribuintes, desconsiderando o seu sigilo bancários e retirando quaisquer obstáculos que

poderiam atrasar ou inviabilizar o acesso às suas informações fiscais; e (iii) possuir

mecanismos que promovam a efetiva troca de informações tais como os acordos de

intercâmbio de informações em matéria fiscal, convenções celebradas entre os países para

evitar a dupla tributação ou, mesmo, dispositivos normativos de direito interno84

.

Com o objetivo de tornar a análise mais objetiva, a OCDE elencou, pontualmente, 10

elementos que compõem os três princípios tratados acima.

Em relação ao primeiro princípio (disponibilidade de informações), as jurisdições

fiscais devem assegurar que: (i) informações relativas à identidade dos contribuintes e à

titularidade de todas as entidades relevantes estejam disponíveis para as autoridades

administrativas competentes; (ii) as demonstrações financeiras das empresas sob a sua

jurisdição contenham informações confiáveis e sejam arquivadas por prazo adequado para

fins de consulta; (iii) as informações bancárias de todos os titulares de contas sob a sua

jurisdição estejam disponíveis para eventual consulta.

Quanto ao segundo princípio (acesso a informações fiscais), as jurisdições fiscais

devem: (iv) ter o poder de obter acesso às informações que sejam requisitadas em acordo de

intercâmbio de informações fiscais de qualquer pessoa que as detenha e que esteja sob a sua

esses padrões. No original: “The G20 therefore strongly support the efforts of the OECD Global Forum on

/Taxa/tion to promote high standards of transparency and exchange of information for tax purposes and to

provide a cooperative forum in which all countries can work towards the establishment of a level playing field

based on these standards.” Veja-se, neste sentido: <www.oecd.org/document/39/0,3746,en_2649_37427_

45602343_1_1_1_1,00.html>. Acesso em: 20/07/2012. 84

Cf. OECD. Tax Co-operation: towards a level playing field – Assessment by the Global Forum on Taxation,

2006, p. 9; e OECD. Progress report to G20. 2012.

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54

jurisdição fiscal; e (v) aplicar os direitos e salvaguardas das pessoas de acordo com as

convenções firmadas para a troca de informações fiscais.

Por fim, no tocante ao terceiro princípio (mecanismos de troca de informações): (vi) os

mecanismos de troca de informações devem promover o efetivo intercâmbio de informações

entre as jurisdições fiscais; (vii) os instrumentos firmados pelos países devem abranger todos

os parceiros relevantes; (viii) as jurisdições devem adotar medidas especiais que assegurem a

confidencialidade das informações trocadas e que elas sejam utilizadas unicamente para o fim

que deu causa à sua solicitação; (ix) a aplicação dos mecanismos deve ser feita com o devido

respeito aos direitos dos contribuintes e de terceiros; e (x) as informações requisitadas pelas

outras jurisdições devem ser transmitidas em tempo adequado85

.

A revisão das normas legais e práticas administrativas é feita através de relatórios

específicos de acompanhamento de cada um dos países – chamados de peer reviews – através

dos quais a OCDE deve verificar, em uma primeira fase, se os 10 elementos considerados

centrais para atingir o padrão internacional de transparência e troca de informações estão

presentes no ordenamento jurídico dos países, e, em uma segunda fase, a sua aplicação no

plano prático (eficácia). Não pode passar para a segunda etapa o país que não tiver previsão

dos 10 elementos em seu ordenamento jurídico. Na primeira etapa, caso os elementos

precisem ser aperfeiçoados, a OCDE pode fazer recomendações aos países. Atualmente, os

trabalhos do Fórum Global se encontram justamente na transição entre a primeira e a segunda

fase.

O relatório com a demonstração dos resultados alcançados até o final de 2011 e o

relatório feito pela OCDE ao G20 demonstram, ainda, que o órgão irá prestar assistência

técnica aos países que necessitem de auxílio para implementar o padrão internacional de

transparência e de troca de informações fiscais, tais como Gana e Quênia, que já

manifestaram o seu interesse em obter a referida assistência86

.

A presença do G20 nas discussões da OCDE sobre transparência e intercâmbio de

informações demarca uma preocupação da organização menos focada nos interesses dos

países desenvolvidos – como era visível no relatório de 1998 –, levando-se em conta, também,

as preocupações manifestadas pelos países em desenvolvimento que estão, cada vez mais,

preocupados com o risco de erosão da sua arrecadação tributária advindos de práticas lesivas

85

Cf. OECD. Progress report to G20. 2012, (Anexo IV) p. 27. 86

Ibid., p. 15.

Page 55: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

55

de concorrência fiscal87

. Não apenas o G20 é composto por países desenvolvidos e economias

emergentes, como a OCDE logrou êxito em incluir um número progressivamente maior de

participantes (em especial países em desenvolvimento) ao Fórum Global de modo que, em

junho de 2012, o número de países participantes somava 10988

. Esta nova postura traz mais

legitimidade ao papel desempenhado pelo órgão e evita que críticas, tais como aquela feita à

OCDE em virtude do relatório de 1998, se repitam, embora, a nosso ver, não impeça que o

órgão seja eventualmente capturado pelos interesses das economias mais robustas.

1.4.2. A concorrência fiscal danosa no direito comunitário europeu

Paralelamente ao debate realizado no âmbito da OCDE, estava sendo promovido um

debate na então Comunidade Europeia sobre o tema. Na Europa, não apenas o fenômeno da

globalização como também a garantia da liberdade de circulação de mercadorias, serviços,

pessoas e capitais – princípios basilares do mercado comum europeu –, aliadas às medidas

que estavam sendo tomadas para a consolidação da União Monetária, trouxeram grande

mobilidade ao fluxo de capitais no interior do mercado comum europeu o que ensejou

preocupações com as práticas de concorrência fiscal danosa.

Além disso, a existência de práticas de concorrência fiscal danosa passou a ser vista,

não apenas como lesiva às políticas tributárias e orçamentárias dos países, como também um

possível entrave à manutenção do mercado comum e à consolidação de uma união monetária.

Havia, portanto, importantes interesses comunitários em jogo que não estavam

necessariamente presentes nos estudos feitos pela OCDE.

A partir da década de 1980, houve uma tendência acentuada de os Estados membros

criarem regimes fiscais privilegiados e, por esta razão, as preocupações dos órgãos

supranacionais da União Europeia estavam muito mais voltadas para os referidos regimes do

que para os paraísos fiscais tradicionalmente conhecidos89

.

87

Cf. OECD. Progress report to G20. 2012, (Anexo IV) p. 15-16. 88

Veja-se, neste sentido, a página eletrônica do Fórum Global da OCDE: <eoi-tax.org/>. 89

Cf. PALMA, Clotilde Celorico. O controle da concorrência fiscal prejudicial na União Europeia. Revista

Fórum de Direito Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 3, nº 15, 2005, p. 51.

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56

Os primeiros estudos feitos em nível comunitário que apontaram para a existência de

práticas de concorrência fiscal danosa, através da criação dos referidos regimes, foram feitos

pela Comissão Europeia, em 1992, através da criação de um Comitê de Experts em tributação

empresarial. O objetivo do Comitê era analisar três questões centrais: (i) A existência de

diferenças nas cargas tributárias dos Estados membros gera distorções no mercado interno

quanto à decisão de investimento? (ii) Se houver distorções, é provável que elas sejam

eliminadas apenas pela interação das forças de mercado e da concorrência tributária entre os

Estados membros, ou há necessidade de ação comunitária? e (iii) Quais medidas específicas

devem ser adotadas pela comunidade para remover ou mitigar essas distorções?90

Para responder as questões formuladas, o Comitê fez um estudo comparativo das

regras tributárias dos países – especialmente no tocante à tributação sobre renda da pessoa

jurídica – através do qual ele identificou uma tendência de convergência dos sistemas

tributários, mas também identificou diferenças significativas entre os sistemas adotados pelos

países membros, inclusive no tocante à sua carga tributária real. Nas conclusões do estudo, o

Comitê demonstrou “a tendência de estados membros a introduzir esquemas tributários

específicos desenhados para atrair negócios internacionais com elevada mobilidade,

principalmente no setor financeiro” 91

.

A preocupação central do Comitê era a eliminação de entraves tributários – tais como

a tributação de determinadas remessas intracomunitárias (e.g. dividendos remetidos da

controladora para a controlada em outro estado-membro) – que pudessem impedir o livre

fluxo de capitais no âmbito do mercado comunitário. Neste sentido, o caminho que o Comitê

escolheu para eliminar as distorções tributárias advindas das diferenças entre os sistemas

tributários foi a defesa de um critério de harmonização mínima da legislação que deveria ser

seguido pelos países em três etapas distintas. Embora tendo reconhecido que a harmonização

plena não seria necessária no curto prazo e que os países membros deveriam manter a sua

liberdade na determinação dos seus sistemas tributários, o Comitê fez uma clara

recomendação no sentido de que uma harmonização maior seria desejável no longo prazo.

Assim, foi reconhecida a importância da questão da concorrência fiscal danosa, mas a solução

adotada pela Comunidade Europeia, neste primeiro momento, foi a harmonização das

90

Cf. Conclusions and recommendations of the Committees of Independent Experts on Company Taxation:

Ruding Tax Commission of European Communities. Luxembourg. 1992, p. 9. 91

Ibid., p. 11.

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57

legislações fiscais e não a adoção de medidas unilaterais de combate entre os estados

membros.

Em março de 1996, foi feita uma reunião do Conselho ECOFIN da União Europeia

que resultou em um documento denominado “A fiscalidade na União Europeia” por meio do

qual se decidiu continuar com o debate sobre a concorrência fiscal danosa através da criação

de um Grupo de Alto Nível criado e coordenado pelo Executivo comunitário. Em setembro do

mesmo ano, a Comissão Europeia apresentou uma proposta de pacote fiscal cujo foco era

justamente o combate à concorrência fiscal danosa. O Conselho da União Europeia aprovou o

pacote em dezembro de 1997 na forma de uma resolução.

Esta resolução teve um escopo muito maior do que o relatório da OCDE já que

abrangia três questões importantes – tributação da renda das pessoas jurídicas (empresas),

tributação das poupanças e tributação de remessas intracomunitárias de juros e royalties –

enquanto que o relatório da OCDE limitou-se à tributação da renda das empresas e, em

especial, à problemática dos paraísos fiscais92

.

A partir da Resolução, foi criado um código de conduta que, apesar de não ser um

instrumento jurídico vinculativo dos Estados membros93

, possui elevada importância no plano

político o que, segundo Maria Eduarda Azevedo, asseguraria a eficácia das suas disposições

no seio da União Europeia94

. Clotilde Celorico Palma também entende que a natureza do

código de conduta – natureza de mero compromisso político ou de declaração geral de

intenções – não implica, necessariamente, a diminuição da eficácia das suas disposições95

.

O campo de incidência do código é um pouco limitado uma vez que se aplica

unicamente aos países membros da União Europeia. Há, no entanto, a previsão de que o

código seja adotado também pelos países membros em seus territórios dependentes ou

associados (e.g. possessões e territórios da Inglaterra, França e Holanda no Caribe, América

do Sul e na Oceania) e que seja encorajada a sua adoção em países não pertencentes ao bloco

comunitário. O relatório da OCDE, em comparação, abrange um número maior de países.

92

Cf. AVI-YONAH, Reuven S. Globalization, Tax Competition and the Fiscal Crisis of the Welfare State.

Harvard Law Review, v. 113, n. 7, 2000, p. 1.658. 93

É um instrumento de soft law, assim como o relatório da OCDE. 94

AZEVEDO, Maria Eduarda. A concorrência fiscal prejudicial. Revista Fórum de Direito Tributário (RFDT).

Belo Horizonte: Fórum, ano 8, nº 48, 2010, p. 51. 95

PALMA, Clotilde Celorico. O controle da concorrência fiscal prejudicial na União Europeia. Revista Fórum

de Direito Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 3, nº 15, 2005, p. 54-55.

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58

O código de conduta restringe o seu campo regulatório à tributação direta incidente

sobre as empresas sem definir, no entanto, quais são as espécies tributárias abrangidas. O

código abrange todas as medidas que afetem, ou possam vir a afetar, de forma significativa a

localização de atividades econômicas na União Europeia. Neste sentido, o seu foco recai

sobre a concessão de ajudas de estado96

e sobre as práticas de concorrência fiscal danosa. Os

critérios elencados para a sua identificação são, entretanto, muito semelhantes aos critérios

elencados no relatório da OCDE para a identificação dos regimes fiscais privilegiados97

. Ao

serem detectadas as condutas passíveis de enquadramento como práticas de concorrência

fiscal danosa, elas devem ser imediatamente congelas (standstill) e desmanteladas (roll-over)

pelo país membro concedente. O Grupo de Alto Nível, de acordo com o ponto H do código de

conduta, é a instituição responsável pela avaliação das medidas potencialmente prejudiciais e

pela supervisão do fornecimento de informações pelos Estados membros para que a avaliação

seja feita.

O código de conduta acabou sendo uma alternativa politicamente viável na União

Europeia para promover coordenação de políticas fiscais entre os Estados-membros uma vez

que as políticas fiscais necessitam de unanimidade de aprovação para serem implementadas

na esfera comunitária, o que se torna politicamente muito custoso em vista do número de

membros que integram o bloco comunitário. Além disso, a União Europeia adota o princípio

da subsidiariedade, segundo o qual só em casos de necessidade absoluta é que a competência

nacional cede às competências de natureza comunitária98

.

É interessante observar que, após a publicação da Resolução, outras propostas

passaram a ser pensadas, na União Europeia, visando promover uma reforma que permitiria

96

O conceito de ajuda de estado não se confunde com o conceito de concorrência fiscal danosa. As ajudas de

estado podem ou não ter natureza tributária. O que caracteriza a lesividade das ajudas de estado frente à

concorrência empresarial é a seletividade setorial ou individual da sua concessão. Ademais, as ajudas de estado

possuem o seu regime jurídico previsto no ponto J do código de conduta e nos artigos 87 a 89 do Tratado da

União Europeia. Cabe à Comissão Europeia analisar a priori os seus impactos concorrenciais, a posteriori no

caso de denúncias de concessão ilegal de denúncias e proceder à revisão das ajudas já existentes. Apesar das

diferenças entre os dois conceitos, não se pode excluir a possibilidade de sobreposição de ambos quando da sua

aplicabilidade na realidade prática. 97

Dentre eles, destaca-se o critério “ring-fencing” segundo o qual o tratamento privilegiado é atribuído somente

a não residentes, excluindo-se os residentes do seu aproveitamento, além de serem previstas medidas que

asseguram o isolamento dos seus efeitos concorrenciais perversos do mercado local. Neste sentido, por exemplo,

regimes fiscais que apliquem tributação baixa ou nula em caráter geral não são passíveis de enquadramento

como de tratamento privilegiado e, portanto, não estarão submetidos à disciplina do código de conduta. 98

PALMA, Clotilde Celorico. O controle da concorrência fiscal prejudicial na União Europeia. Revista Fórum

de Direito Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 3, nº 15, 2005, p. 50.

Page 59: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

59

atingir um padrão de harmonização maior na legislação europeia relativa à tributação direta

incidente sobre a atividade empresarial99

.

Em relação às formas de combate às práticas de concorrência fiscal danosa e de elisão

fiscal internacional, observamos que as alternativas pensadas pela União Europeia não estão

pautadas na adoção de medidas unilaterais de combate – tais como a adoção de CFC rules –

mas sim em medidas coordenadas de identificação, congelamento e desmantelamento de tais

práticas. No caso do debate europeu, a obediência dos países membros da União Europeia ao

código de conduta é mais provável do que no caso do relatório da OCDE devido à sua força

política, que é inerente ao fato dele ter sido criado em âmbito comunitário.

Em relação a países terceiros, os países-membros da União Europeia podem aplicar

livremente as recomendações feitas pela OCDE, mas, no tocante aos países-membros do

bloco comunitário, as medidas unilaterais recomendadas sofrem algumas restrições. Tais

restrições se mostram evidentes, especialmente, no caso da aplicação das CFC rules.

Bernard Castagnède expõe que a aplicação das CFC rules foi considerada

incompatível com o direito comunitário pela jurisprudência da Corte de Justiça da

Comunidade Europeia (CJCE) sob o argumento de que a luta de um Estado membro contra a

fraude ou a evasão fiscal internacional não pode constituir um obstáculo ao princípio da

liberdade de estabelecimento previsto no artigo 43 do Tratado da Comunidade Europeia100

.

Segundo o entendimento da CJCE, as CFC rules constituem não apenas uma restrição à

entrada de capitais no território de um determinado Estado membro como também um entrave

à saída101

.

Um caso emblemático na jurisprudência da CJCE é o caso Cadbury Schweppes102

. Na

ocasião, a aplicação do regime de transparência fiscal internacional do Reino Unido a

rendimentos auferidos em outros Estados membros da União Europeia foi considerada como

99

Michael Devereux, Rachel Griffith e Alexander Klemm assinalam que uma das propostas em discussão visa

instituir um único conjunto de regras, ao qual estarão submetidas todas as empresas da União Europeia, para a

apuração da base de cálculo dos impostos incidentes sobre a renda da atividade empresarial. Os autores

assinalam ainda que, segundo a proposta, os grupos empresariais (inclusive controladas e coligadas) deveriam

apurar o seu lucro de forma consolidada e depois os resultados seriam apropriados para cada um dos países.

Trata-se da aplicação da lógica da tributação unitária na União Europeia. Há, também, alternativas que estão

sendo atualmente pensadas para promover maior harmonização no domínio da tributação direta. envolvidos

segundo fórmulas pré-estabelecidas (formulary apportionment method). Confira-se maiores detalhes em:

DEVEREUX, Michael, GRIFFITH, Rachel, KLEMM, Alexander. Corporate income tax reforms and

international tax competition. Economic Policy, v. 17, nº 35, 2002, p. 475-476. 100

CASTAGNÈDE, Bernard. Précis de fiscalité internationale. Paris: Presses Universitaires de France (PUF),

2010, p. 146. 101

Ibid., p. 146. 102

Trata-se do processo nº 196/04 da Corte de Justiça da Comunidade Europeia de 12 de setembro de 2006.

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60

contrária à liberdade de estabelecimento empresarial. De acordo com a decisão proferida, a

regra de antidiferimento do regime de transparência fiscal só pode ser aplicada em âmbito

comunitário quando houver a caracterização de uma montagem artificial destinada puramente

a elidir o fato gerador previsto na legislação interna de um dos seus Estados membros.

Neste sentido, o próprio regime francês de transparência fiscal internacional –

denominado Régime des Sociétés Étrangères Contrêlées (SEC) –, vigente anteriormente ao

ano de 2005, foi considerado excessivo quando confrontado com a jurisprudência firmada

pela CJCE, pois ele estabelecia uma presunção geral de evasão nas hipóteses em que filiais,

sucursais, controladas e coligadas fossem estabelecidas em paraísos fiscais ou se

beneficiassem de regimes fiscais privilegiados.

Assim, o regime atualmente vigente das SEC, conforme consta do artigo 209-B do

Côde Général des Impôts (CGI), estabelece a presunção geral de evasão em relação aos

regimes fiscais privilegiados tipificados no artigo 238-A do mesmo código, salvo se ele

pertencer a um dos países membros da União Europeia (art. 209-B, II), hipótese em que o

regime somente se aplica caso se trate de uma montagem artificial cujo objetivo seja driblar a

legislação tributária francesa103

. Nestas situações, o regime deixa de ser aplicável caso o

contribuinte comprove que as instalações são reais e que há o exercício de uma atividade

econômica substancial ainda que o empreendimento seja beneficiário de um regime fiscal

privilegiado. Tais critérios foram chancelados pela jurisprudência da CJCE.

Vale lembrar que o regime francês somente se aplica a rendimentos passivos (revenu

de capitaux mobiliers) e que o critério de participação societária é preenchido uma vez que se

constate haver poder de controle, através da titularidade de mais de 50% de ações, direitos de

votos ou direitos patrimoniais sobre a sociedade estrangeira104

.

Em 2010, o Conselho dos Ministros de Finanças da União Europeia – Conselho

ECOFIN – se reuniu para deliberar sobre novos princípios orientadores da aplicação do

regime de transparência fiscal internacional aplicável às transações intracomunitárias e com

103

CASTAGNÈDE, Bernard. Précis de fiscalité internationale. Paris: Presses Universitaires de France (PUF),

2010, p. 147. 104

Vale ressaltar que a legislação francesa (SEC) deixa de ser aplicável – hipótese de exclusão do regime (safe

harbor) – caso se comprove que mais de 50% das receitas das controladas residentes em paraísos fiscais ou em

países que lhe concedam um regime fiscal privilegiado provêm de atividades efetivamente comerciais ou

industriais que não sejam necessariamente pertencentes à União Europeia. Pode-se perceber, no entanto, que os

critérios de exclusão do regime em relação a controladas residentes em países da União Europeia são, em geral,

mais brandos do que os critérios aplicados em relação a países terceiros. Vejam-se maiores detalhes em:

MACIEL, Taísa Oliveira. Tributação dos Lucros das Controladas e Coligadas Estrangeiras. Rio de Janeiro:

Renovar, 2007, p. 50.

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61

países terceiros não pertencentes ao mercado comum. Considerando a necessidade de

caracterização da uma montagem artificial abusiva para que a o regime de transparência fiscal

seja aplicado em relação às operações intracomunitárias, o Conselho ECOFIN propôs, através

da resolução nº 10.689/2010, novos critérios – em adição aos critérios anteriormente adotados

pelo Conselho e pela jurisprudência da CJCE – que levam à qualificação de uma determinada

transação como uma montagem artificial e abusiva em uma tentativa de aumentar o número

de hipóteses em que o regime se repute aplicável.

Para Jose Manuel Calderón Carrero, esta é uma tentativa de minimização dos

princípios estabelecidos pela CJCE – inclusive no caso Cadbury Schweppes – e de

maximização dos interesses fiscais dos Estados membros que contraria o entendimento da

referida corte na medida em que “a presença de um benefício fiscal não é suficiente para

estabelecer a existência de abuso, exigindo-se, no entanto, que a sociedade controlada

estrangeira não realize qualquer atividade econômica efetiva” 105

. Assim, Carrero defende que

as regras de transparência fiscal internacional não sejam adotadas sem que haja um safe

harbor à sua aplicação, que preveja a aplicação de um teste de propósito negocial que

possibilite à administração tributária saber qual foi a real motivação que levou o contribuinte

a deslocar parte dos seus ativos para outra jurisdição fiscal; o desempenho de uma atividade

econômica industrial ou comercial efetiva ou, tão somente, a vantagem advinda do

diferimento da tributação devida no Estado de residência da sociedade controladora

(investidora).

Ademais, observamos que o exemplo francês demonstra convergência com as

recomendações da OCDE no sentido de que o regime possui natureza sancionatória sendo,

portanto, utilizado como técnica de combate às formas de elisão e evasão fiscal propiciadas

pela prática de concorrência fiscal danosa, não obstante o fato dele prever tratamento especial

em relação aos países membros da União Europeia. As bases teóricas e conceituais que

resultaram de toda a trajetória da evolução histórica do regime de transparência fiscal

internacional serão tratadas, em maiores detalhes, no próximo tópico.

105

CARRERO, Jose Manuel Calderón. La coordinación europea de las normas de transparencia fiscal

internacional y de subcapitalización. Revista de Direito Tributário Internacional (RDTI), São Paulo: Quartier

Latin, n. 15, 2010, p. 244-245. No original: “(...) la presencia de un motivo fiscal no es suficiente para establecer

la existencia de un abuso requiriéndose además que la SEC no realice una actividad económica en el territorio de

tal Estado atraves de medios humanos y materiales.”

Page 62: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

62

1.5. Bases conceituais e teóricas das CFC rules

O presente tópico abordará algumas teorias que foram sendo desenvolvidas ao longo

da evolução histórica dos regimes de transparência fiscal no mundo e que explicam não

apenas a sua aplicação e funcionamento como também o seu desenho normativo.

O regime de transparência fiscal internacional, conforme restou evidenciado na

descrição da evolução do regime no direito norte-americano, se opera através da qualificação

das sociedades residentes no exterior como “sociedades transparentes” submetendo-as a uma

disciplina fiscal específica. A teoria da transparência fiscal (pass-through entity) muito se

assemelha, embora não se confunda, com a teoria da desconsideração da personalidade

jurídica106

. Uma análise mais aprofundada sobre o tema revela que são diversas as

características que diferenciam as duas teorias, sendo relevante, para os propósitos do

presente trabalho, chamar atenção para o fato de que na transparência fiscal tanto a finalidade

quanto os fundamentos da desconsideração possuem natureza exclusivamente fiscal107

.

Desse modo, há transparência da pessoa jurídica residente no exterior na medida em

que os rendimentos por ela auferidos sejam alcançados para fins de incidência tributária pelo

país de residência da sociedade investidora, independentemente da sua efetiva

disponibilização jurídica ou econômica, desconsiderando-se, apenas para fins tributários, a

autonomia patrimonial das duas pessoas jurídicas distintas. Devem ser respeitados, no

entanto, a autonomia das entidades no tocante aos demais atributos da personalidade jurídica.

106

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica – originada a partir da doutrina do direito inglês

denominada disregard of the legal entity - é reconhecida no direito privado, por sua vez, como técnica destinada

a desconsiderar a separação patrimonial existente entre a pessoa do sócio e da sociedade com o objetivo

específico de coibir a prática de fraude à lei. Através da referida técnica, o aplicador do direito pode

responsabilizar os sócios ou administradores da sociedade empresária personificada pelas obrigações assumidas

pela sociedade que resultem em fraude à lei. Observa-se, portanto, que a regra no direito privado é o respeito à

separação dos patrimônios dos sócios e da pessoa jurídica empresária enquanto que a exceção é a

desconsideração da personalidade jurídica uma vez que ela só pode ser autorizada com o preenchimento de

alguns requisitos legais. No Brasil, o Juiz poderá declarar a desconsideração da personalidade jurídica, conforme

consta do artigo 50 do Código Civil, se houver abuso de personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de

finalidade ou pela confusão patrimonial. 107

Vejam-se, neste sentido: SCHOUERI, Luis Eduardo. Imposto de renda e os lucros auferidos no exterior. In:

ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, v. 7,

2003, p. 308 a 310; TÔRRES, Heleno Taveira. Pluritributação Internacional sobre as Rendas das Empresas.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 205-209; e ANDRADE, André Martins de. A tributação universal da

renda empresarial: uma proposta de sistematização e uma alternativa inovadora. Belo Horizonte: Fórum, 2008,

p. 149.

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63

Na ausência de transparência fiscal da sociedade residente no exterior e em respeito à

autonomia das duas personalidades jurídicas distintas, a disponibilização dos rendimentos,

lucros e ganhos de capital auferidos no exterior depende de um ato formal da sociedade

controlada estrangeira, pois, até então, eles pertencem à sua esfera patrimonial e não ao

patrimônio da sociedade controladora. Do ponto de vista societário, a disponibilização dos

rendimentos auferidos no exterior só ocorre após convocada uma assembleia dos sócios para

deliberar sobre a distribuição de dividendos ou, então, através de cláusula prevista no contrato

ou estatuto social da sociedade controlada que fixe o momento da distribuição do lucro

apurado. Estes atos formais são necessários para se opere a passagem da titularidade dos

rendimentos da esfera patrimonial da pessoa jurídica da sociedade controlada para a esfera

patrimonial da pessoa jurídica da sociedade controladora.

Tulio Rosembuj108

e João Francisco Bianco109

também entendem que a aplicação do

regime de transparência fiscal implica a desconsideração da personalidade jurídica da

sociedade controlada residente no exterior exclusivamente para fins fiscais. Segundo

Rosembuj, a aplicação do regime de transparência significa desconhecer que a entidade que

auferiu os rendimentos no exterior – fato gerador da obrigação tributária – é distinta da pessoa

dos seus sócios e está sujeita a outra jurisdição fiscal110

.

No regime de transparência fiscal, não há incidência tributária sobre a variação

patrimonial positiva da sociedade controladora, mas sim sobre os rendimentos, lucros e

ganhos de capital auferidos pela sociedade controlada no exterior, através da ficção ou

presunção jurídica de disponibilização pela fonte pagadora. A transparência fiscal é uma

técnica por meio da qual se permite alcançar a capacidade contributiva manifestada pela

sociedade controlada no exterior, afastando-se a sua personalidade jurídica para este fim

exclusivo. Neste sentido, a aplicação do regime de transparência fiscal a essas pessoas

jurídicas implica a sua equiparação a estabelecimento permanente, ou seja, desprovido de

personalidade jurídica, para fins de enquadramento no regime tributário aplicável. Daí o

reconhecimento de que as sociedades controladas no exterior são transparentes para fins

fiscais.

No direito tributário internacional, uma sociedade pode ser considerada transparente

tanto em virtude da sua natureza societária – e.g. estabelecimentos permanentes, sucursais e

108

ROSEMBUJ, Tulio. Derecho Fiscal Internacional. Barcelona: El Fisco, 2001, p. 176-193. 109

BIANCO, João Francisco. Transparência Fiscal Internacional. São Paulo: Editora Dialética. 2007, p. 117-

124. 110

ROSEMBUJ, Op. Cit., p. 177.

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64

filiais desprovidos de personalidade jurídica – quanto em virtude da caracterização de evasão

ou elisão fiscal repreensíveis pelo ordenamento jurídico para o caso de controladas e

coligadas (dotadas de personalidade jurídica)111

.

Seguindo-se a linha de raciocínio de Tulio Rosembuj, a aplicação extraterritorial da

legislação interna – denominada pelo autor de ultraterritorialidad ofensiva – é uma medida

destinada à manutenção das bases de arrecadação tributária quando se está diante de países de

tributação favorecida e consiste no “exercício da soberania fiscal sobre bens ou pessoas que se

encontram em estados ou territórios estrangeiros”112

. O caráter ofensivo atribuído pelo autor

decorre de a aplicação da lei interna desconsiderar o fato de que a sociedade controlada está

sujeita a outro ordenamento jurídico para alcançar os rendimentos ali auferidos e submetê-los

à incidência tributária. Na ausência de prática de concorrência fiscal danosa que justificasse a

aplicação extraterritorial da lei interna, caberia ao Estado o dever de autolimitação da sua

jurisdição tributária, não podendo ele alcançar os rendimentos auferidos fora da sua jurisdição

antes do momento da sua disponibilização. É com base nesta última finalidade que a OCDE

defendeu a aplicação do regime de transparência fiscal internacional como técnica

exclusivamente voltada ao combate da concorrência fiscal danosa realizada por paraísos

fiscais e regimes fiscais privilegiados.

Em conformidade com as características descritas acima, o regime de transparência

fiscal internacional possui natureza de norma antielisiva posto que a sua utilização tem

finalidade defensiva na medida em que visa sancionar determinadas práticas abusivas de

elisão fiscal internacional. Dentre os diversos tipos de normas antielisivas existentes, o regime

de transparência fiscal se enquadra mais adequadamente na categoria das regras especiais

antielisivas – Special Anti Avoidance Rules (SAAR) – uma vez que, conforme aponta Alberto

Xavier, é através delas que “certos atos ou negócios passam a ficar incluídos no tipo legal por

via de lei, socorrendo-se da técnica da ficção ou da presunção legal” 113

para fazer incidir a

norma tributária interna. É exatamente o que ocorre com o regime de transparência fiscal.

Há, fundamentalmente, dois critérios que podem ser utilizados pelo formulador de

políticas tributárias na definição do desenho normativo do regime de transparência fiscal

internacional: (i) jurisdictional approach; e (ii) transactional approach.

111

SCHOUERI, Luis Eduardo. Imposto de renda e os lucros auferidos no exterior. In: ROCHA, Valdir de

Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, v. 7, 2003, p. 309. 112

Ibid., p. 203 a 205. 113

XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2002, p.

85-97.

Page 65: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

65

Do ponto de vista do jurisdictional approach, o desenho das CFC rules levará à sua

aplicação às sociedades residentes em determinados territórios que, na maioria dos casos, são

jurisdições de tributação favorecida ou concedem regimes fiscais privilegiados geralmente

discriminados em listas (black list, grey list ou white list) ou através do estabelecimento de

uma alíquota mínima de tributação114

.

Do ponto de vista do transactional approach, o desenho das CFC rules orientará a sua

aplicação para tipos específicos de renda juridicamente determinados. Em geral, os países

optam por tributar rendas passivas, devido à sua maior mobilidade, e a excluir rendas ativas,

com menor mobilidade e decorrentes de atividades industriais, comerciais e agrícolas. Os

conceitos de rendas passivas e rendas ativas poderão variar a depender da legislação tributária

considerada. Alguns países optam por tributar qualquer tipo de rendimento e admitem certas

exclusões da base imponível enquanto outros optam por excluir, em princípio, todos os

rendimentos da base imponível e adicionar somente alguns tipos. Os critérios de adição à base

imponível variam de acordo com o país considerado.

Na prática, conforme esclarece Alberto Xavier, são raros os ordenamentos jurídicos

que escolhem por um critério “puro” para orientar a aplicação das suas CFC rules de modo

que ambos os modelos acabam sendo utilizados pelo formulador de políticas tributárias ao

definir o desenho do regime de transparência fiscal internacional115

. Conforme aponta Taísa

Oliveira Maciel em um importante estudo que contemplou uma análise em direito comparado

sobre as CFC rules, apenas o Canadá adota um modelo de regime pautado em um único

critério que, no caso, é o transactional approach116

. Até mesmo os EUA, cujo modelo é muito

próximo ao critério do transactional approach, conforme observado anteriormente, possui

influências do jurisdictional approach¸ já que o regime possui uma hipótese de exclusão da

sua aplicação caso o país onde tiver sido auferido o rendimento possuir carga tributária

correspondente ao menos a 90% da carga tributária norte-americana incidente sobre os lucros

da atividade empresarial117

.

114

O Brasil adota ambos os critérios para a qualificação do regime favorecido de uma determinada jurisdição

fiscal. A lei nº 9.430/96 define, em seus artigos 24 e 24-A, os critérios para a qualificação de uma jurisdição

fiscal como, respectivamente, país ou dependências de tributação favorecida ou concedente de regimes fiscais

privilegiados. Além disso, o Poder Executivo houve por bem detalhar quais são as referidas jurisdições na

Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 1.037/2010. A adoção de ambos os critérios pelo Brasil leva

a discussões acadêmicas quanto à natureza taxativa ou exemplificativa da referida lista. 115

XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 287. 116

MACIEL, Taísa Oliveira. Tributação dos Lucros das Controladas e Coligadas Estrangeiras. Rio de Janeiro:

Renovar, 2007, p. 28. 117

Ibid., p. 28.

Page 66: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

66

Além disso, desde o modelo adotado inicialmente pelos EUA, a grande maioria das

CFC rules adotadas internacionalmente dependem de um teste de percentual mínimo de

participação societária. As legislações dos países geralmente exigem que seja caracterizado o

controle societário, seja por meio da propriedade direta de participação societária que permita

o seu exercício, seja por meio de acordo de acionista que garanta preponderância nas decisões

societárias ou mesmo influência significativa na sua administração. A ideia subjacente à

caracterização de controle societário é que a pessoa que o exerça tenha condições de

determinar o momento da distribuição de dividendos118

. No entanto, os critérios variam de

acordo com o país sendo certo que outros países não exigem a caracterização de controle, mas

tão somente a qualificação de participação social que seja minimamente relevante.

A partir da análise da evolução histórica do regime de transparência fiscal

internacional, concluimos que a sua aplicação ocorre de forma seletiva, seja em virtude da

natureza do rendimento (transactional approach), seja em virtude da natureza da jurisdição

onde os mesmos foram auferidos (jurisdictional approach), seja, até mesmo, de uma

combinação de ambos. O fato é que a aplicação do regime de transparência fiscal

internacional assumiu caráter de exceção à regra de autonomia da personalidade jurídica da

sociedade estrangeira tendo, o regime, adquirido nítidos contornos de regra antiabuso pela

maior parte dos países que o adotaram em seus ordenamentos jurídicos pátrios.

1.6. Conclusões sobre a trajetória da evolução histórica do regime de transparência

fiscal internacional

O estudo da trajetória histórica do regime de transparência fiscal internacional no

mundo permitiu que nós chegássemos à conclusão preliminar de que ele surgiu como uma

reação unilateral dos países contra a perda das suas bases arrecadatórias advinda de práticas

de elisão fiscal envolvendo paraísos fiscais e regimes fiscais privilegiados. No entanto, é

interessante observar que essas práticas são uma decorrência de um fenômeno maior – a

globalização – que levou ao surgimento de um mercado global todo interligado por redes

tecnológicas que permitiu mobilidade e livre fluxo de capitais ao redor do mundo.

118

MACIEL, Taísa Oliveira. Tributação dos Lucros das Controladas e Coligadas Estrangeiras. Rio de Janeiro:

Renovar, 2007, p. 32.

Page 67: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

67

Operou-se, neste contexto, a transformação da visão de Estado que se tinha até então –

do Estado-nação para o Estado-transnacional – juntamente com o surgimento de uma nova

percepção das repercussões das suas políticas públicas. As políticas tributárias implementadas

pelos Estados passaram a gerar reações de outros Estados diretamente afetados neste ambiente

global. Na medida em que o capital se tornava móvel, aumentava a concorrência fiscal entre

os países pela sua atração. As vantagens tributárias oferecidas por alguns países para atrair

capital com elevada mobilidade começou a repercutir negativamente em outros países.

A primeira reação unilateral partiu da iniciativa dos EUA, já na década de 1930, de

implementar um regime de transparência que foi, posteriormente, aprimorado pela

Administração Kennedy e finalmente aprovado, após algumas alterações feitas pelo

Congresso norte-americano, em 1962. Na medida em que o problema foi assumindo

proporções globais, os países se organizaram através de instituições internacionais e

supranacionais para obter recomendações de políticas tributárias e, até mesmo, buscar a

cooperação em escala internacional.

É importante esclarecer que os debates realizados pelos EUA, OCDE e União

Europeia, embora convergentes em diversos pontos, apresentam particularidades próprias. O

debate norte-americano demonstra uma luta entre grupos de interesses distintos. Por um lado,

a Administração Kennedy buscava eliminar por completo o diferimento do imposto norte-

americano, promovendo-se a neutralidade na exportação de capitais, o que terminaria por

afetar todos os investimentos que estivessem em jurisdições de tributação inferior à norte-

americana, fossem elas paraísos fiscais ou não. Por outro lado, o empresariado norte-

americano se articulou no Congresso e conseguiu, em nome da competitividade das suas

subsidiárias no exterior, a aprovação de um regime de antidiferimento apenas parcial. Os

movimentos posteriores demonstram uma forte luta de interesses determinando ora o

abrandamento do regime ora o seu enrijecimento.

Os debates patrocinados pela OCDE e pela União Europeia estavam mais preocupados

com a prática da concorrência fiscal danosa – uma prática específica de concorrência fiscal –

e as suas conseqüências sobre as bases arrecadatórias dos seus países membros. A questão da

competitividade não esteve presente nesses debates.

Apesar de os debates apresentarem grande semelhança entre si, os interesses

envolvidos eram claramente distintos. A União Europeia possuía um interesse em particular

que não estava presente nos debates promovidos pela OCDE; ela estava mais preocupada com

Page 68: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

68

a consolidação de um mercado comum e com a criação de uma união monetária e, neste

contexto, a concorrência fiscal danosa se apresentou como uma possível ameaça à sua

concretização e não apenas às bases arrecadatórias e às políticas tributárias dos seus Estados

membros. Devido às diferenças de interesses envolvidos, as soluções encontradas por ambas

as instituições foram diferentes. A União Europeia pautou-se muito mais em medidas

coordenadas enquanto a OCDE, descrente da possibilidade de atuação coordenada em escala

global no curto prazo, defendeu o uso de medidas unilaterais.

A experiência internacional tem demonstrado que, na ausência de uma política de ação

coordenada, as medidas unilaterais de proteção das bases arrecadatórias têm sido amplamente

utilizadas, dentre elas, o regime de transparência fiscal internacional. O desenho que foi

atribuído a estes regimes impõe a sua aplicação seletiva seja em função do tipo de rendimento

(transactional approach) seja em função da sua origem (jurisdictional approach), seja, ainda,

em função da combinação dos dois critérios. O fato é que a seletividade da aplicação do

regime – constatada nos diferentes momentos da sua evolução histórica – demonstra a sua

natureza antielisiva, destinada a coibir práticas abusivas de elisão e evasão fiscal

internacional.

Page 69: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

69

2. TRAJETÓRIA DA EVOLUÇÃO NORMATIVA DO REGIME DE

TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS NO EXTERIOR NO DIREITO

BRASILEIRO

2.1. Notas introdutórias

O cenário exposto no capítulo precedente demonstrou quais foram os interesses e as

preocupações condicionantes do regime de transparência fiscal internacional desde a sua

propositura inicial, no direito norte-americano, até a sua evolução mais recente no âmbito da

OCDE. Observou-se que ao regime foi atribuída uma função antiabusiva, característica que

não se faz presente no regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior devido à

ausência da sua aplicação seletiva. Diante desta constatação, este capítulo se dedicará a

identificar quais foram as razões, os interesses e o contexto histórico que estavam em jogo na

formulação da política tributária e que justificam os contornos que foram dados ao regime

brasileiro.

Para tanto, reconstruiremos todas as etapas da política tributária que foi inicialmente

concebida no Poder Executivo e posteriormente submetida à aprovação pelo Poder

Legislativo. Os debates no Poder Executivo serão reconstruídos através de entrevistas feitas

com autoridades públicas que tenham participado da formulação do regime jurídico e nas suas

subseqüentes alterações legislativas. Os debates no Poder Legislativo serão reconstruídos

através da análise do processo legislativo das Leis nº 9.249/95, 9.532/97, Lei Complementar

nº 104/2001 e Medida Provisória nº 2.158-35/2001119

. Conforme salientado na introdução do

presente trabalho, reconstruir este percurso legislativo do regime de tributação de lucros

auferidos no exterior, contextualizando-o e trazendo à baila os interesses envolvidos, consiste

em um trabalho de “engenharia normativa”.

É através deste trabalho de engenharia normativa que se pretende chegar às respostas

para as questões relativas ao primeiro problema que motivou este trabalho.

119

A Medida Provisória nº 2.158-35/2001 não foi convertida em lei pelo Congresso Nacional tendo a sua

vigência sido prorrogada por força do artigo 2º da Emenda Constitucional nº 32/2001. Entretanto, foi possível ter

acesso a documentos que emitidos e encaminhados internamente dentro do próprio Poder Executivo e que

poderão auxiliar na presente pesquisa.

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70

2.2. A evolução do regime de tributação de lucros auferidos no exterior no direito

brasileiro

2.2.1. 1º Momento: territorialidade

Até o ano de 1995, não havia previsão legal no direito brasileiro para a tributação de

lucros, ganhos de capital e rendimentos auferidos no exterior por sociedades controladas e

coligadas de empresas residentes no Brasil. O Brasil adotava o princípio da territorialidade,

segundo o qual somente os rendimentos auferidos em território nacional poderiam ser

submetidos à tributação. Não havia, neste sentido, nenhum elemento de conexão previsto na

legislação tributária brasileira que possibilitasse a tributação de lucros auferidos fora do

território brasileiro. O princípio da territorialidade podia ser abstraído a partir do disposto nos

artigos 157, parágrafo único, e 268 do Regulamento de Imposto de Renda (RIR) de 1980 (art.

337 do RIR/94) 120

.

No entanto, o contexto econômico do ano de 1995 foi caracterizado por importantes

transformações que estavam em curso. Graças ao sucesso do Plano Real a economia já não

sofria com a hiperinflação que havia dominado o cenário macroeconômico desde a transição

do governo militar ao governo civil, possibilitando maior estabilidade econômica. Ao mesmo

tempo, todos os esforços promovidos inicialmente pelo Governo Collor e posteriormente

pelos seus sucessores na promoção de abertura comercial como alternativa à política de

120

Em 1987, ocorreu a primeira modificação legislativa destinada a abolir o princípio da territorialidade da

tributação da renda. A modificação, à época, foi feita em duas etapas. A primeira modificação foi introduzida

através da publicação do Decreto-lei nº 2.397 (art. 7º) o qual dispunha que os lucros auferidos no exterior através

de filiais, sucursais, agências ou representações passariam a ser tributados pelo imposto de renda brasileiro. A

segunda modificação foi veiculada através do Decreto-lei nº 2.413 (art. 8º e 15) e caracterizou a ampliação do

regime de tributação universal introduzido pelo Decreto-lei nº 2.397 de modo que o regime passou a abranger

não apenas entidades despersonalizadas como também entidades dotadas de personalidade jurídica própria

residentes no exterior, tais como as sociedades controladas e coligadas. Estranhamente, pouco tempo depois da

publicação dos dois decretos-lei que haviam instituído o regime de tributação em bases universais, o Decreto-lei

nº 2.429 (art. 11) revogou os dispositivos relativos à matéria previstos nos diplomas normativos anteriormente

publicados, o que caracterizou a volta ao princípio da territorialidade ao direito brasileiro até a posterior

alteração feita em 1995 através da Lei nº 9.249.

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71

substituição de importações, bem como na privatização de empresas públicas, demarcavam

uma nova conjuntura econômica121

.

Neste novo cenário, a economia brasileira começou a se internacionalizar e as

empresas de capital nacional começavam a se aventurar no mercado internacional. Os bancos

brasileiros, em especial, já apresentavam grau de internacionalização mais avançado naquela

época, com subsidiárias localizadas principalmente em paraísos fiscais, com o objetivo de

possibilitar que muitos contribuintes nacionais remetessem rendimentos, em sua maioria

passivos, a essas localidades para gerar mais divisas aproveitando-se de um regime tributário

mais favorável122

. Paralelamente a este diagnóstico, havia um movimento muito forte de luta

contra a concorrência fiscal danosa patrocinada, especialmente, por organizações

internacionais, tais como a OCDE, conforme descrevemos no capítulo anterior.

O diagnóstico de internacionalização das empresas de capital nacional e da possível

transferência das suas operações para “paraísos fiscais” sensibilizou a Secretaria da Receita

Federal que chegou a expor a problemática da seguinte forma123

:

A internacionalização também gera impactos sobre o setor público na medida em

que a capacidade das empresas operarem em bases mundiais tem incentivado a

proliferação de paraísos fiscais. É justamente a possibilidade de as empresas

transferirem suas operações entre jurisdições fiscais distintas que gera o incentivo a

que determinados países optem por isentar ou reduzir sua carga tributária de modo a

atrair o fluxo de capital internacional. Essa estratégia é conhecida como ‘competição

tributária internacional’ e tem sido um tema amplamente discutido, nos últimos

anos, por diversos governos e organizações internacionais, já que o ganho dos

paraísos fiscais pode significar, para outros países, redução de base tributária e

arrecadação.

Por todos esses fatores, a questão internacional tem se tornado um aspecto relevante

da política tributária nacional.

Este movimento internacional – liderado pela OCDE – juntamente com a conjuntura

econômica nacional levou o Ministério da Fazenda a formular uma nova política tributária em

relação aos lucros auferidos no exterior pelas empresas controladas e coligadas de empresas

121

Para ter maiores detalhes sobre a conjuntura econômica da época, confiram-se detalhes em: FISHLOW,

Albert. O novo Brasil: as conquistas políticas, econômicas, sociais e nas relações internacionais. São Paulo:

Saint Paul, 2011. 122

Não é por acaso que, em julho de 2012, houve um levantamento feito pelo “Tax Justice Network” apontando

que os bancos são os principais meios pelos quais se opera a evasão de divisas de países de tributação regular

para paraísos fiscais. Segundo o levantamento feito, o Brasil está em 4º lugar, no mundo, no ranking dos países

que mais possuem dinheiro em offshores localizadas em paraísos fiscais. Vejam-se detalhes em:

<www.taxjustice.net/cms/upload/pdf/Price_of_Offshore_Revisited_120722.pdf>. Acesso em: 08/08/2012. 123

BRASIL. Ministério da Fazenda – Secretaria da Receita Federal. Tributação da Renda no Brasil Pós-Real.

2001, p. 86.

Page 72: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

72

residentes no Brasil. O passo seguinte foi a previsão legal de elementos de conexão que

possibilitaria ao fisco brasileiro tributar os referidos lucros. Trata-se da Lei nº 9.249/95.

2.2.2. 2º Momento: a Lei nº 9.249/95

2.2.2.1. O processo legislativo

A Lei nº 9.249/95 foi fruto da conversão do Projeto de Lei nº 913 encaminhado à

Câmara dos Deputados pelo então Ministro da Fazenda Pedro Malan. O projeto foi proposto

em um contexto histórico no qual a economia brasileira havia respondido de forma muito

positiva ao Plano de Estabilização Econômica proposto pelo Governo Itamar Franco – sob a

coordenação do seu Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso – por meio do qual se

buscou estabilizar a economia brasileira que sofria, desde meados da década de 1980, com

índices elevados de inflação. O projeto de lei refletia o momento histórico posterior ao

sucesso do plano econômico em que havia a necessidade de se adequar a legislação tributária

a esta nova realidade econômica.

O projeto previa diversas alterações na legislação tributária vigente à época relativa à

tributação sobre a renda, em especial, das pessoas jurídicas (Imposto de Renda da Pessoa

Jurídica e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e propunha uma reforma tributária que

possuía, segundo a Exposição de Motivos nº 325 do Ministério da Fazenda, os seguintes

objetivos centrais:

A reforma objetiva simplificar a apuração do imposto, reduzindo as vias de

planejamento fiscal, uniformizar o tratamento tributário dos diversos tipos de rendas,

integrando a tributação das pessoas físicas e jurídicas, ampliar o campo de

incidência do tributo, com vistas a alcançar os rendimentos auferidos no exterior por

contribuintes estabelecidos no País e, finalmente, articular a tributação das empresas

com o Plano de Estabilização Econômica.

No mesmo sentido do trecho descrito acima no qual o então Ministro da Fazenda,

Pedro Malan, explicita os objetivos visados pela reforma promovida pelo Projeto de Lei nº

913, o Deputado Antônio Kandir, relator do parecer da Comissão de Finanças e Tributação,

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73

ao apreciar o projeto de lei juntamente com as emendas propostas pelos deputados federais,

proferiu a sua percepção geral sobre o referido projeto com o seguinte teor:

(...) Numa análise geral, cabe salientar, de início, que o projeto apresenta várias

qualidades. Contêm medidas simplificadoras, medidas destinadas a dificultar

práticas de evasão fiscal, medidas orientadas para tratar de forma isonômica

situações idênticas que hoje recebem tratamentos desiguais, medidas incentivadoras

do investimento produtivo. Merece destaque as medidas destinadas a promover a

integração da tributação entre pessoa jurídica e pessoas físicas, que se manifestam na

isenção da distribuição de dividendos, com repercussão especial na tributação do

lucro presumido em que se eleva de maneira considerável a faixa de retiradas

isentas. Mesmo que alguns pontos do projeto possam ser aperfeiçoados, ressaltamos

que, no contexto geral, ele se mostra positivo.

Outro aspecto que merece destaque especial nesse voto, até mesmo pelo fato de não

ter sido suficientemente explorado pela Imprensa quando da divulgação do projeto,

consiste na ousada decisão tomada pelo Governo de reduzir as alíquotas do imposto

de renda das pessoas jurídicas. Fato que, no contexto atual de inflação reduzida e

controlada, representa para as empresas que cumprem com regularidade suas

obrigações tributárias redução significativa da carga tributária.

Mesmo assim, o Governo teve segurança firme para manifestar a convicção de que

as mudanças deverão gerar aumento da arrecadação, confiante no fato de que a

redução das alíquotas associadas à notável simplificação da legislação do imposto

induzirá grande parte de contribuintes ao cumprimento espontâneo das obrigações

tributárias.

A partir do contexto descrito acima tanto pelo Ministério da Fazenda, na exposição de

motivos, quanto pelo pronunciamento da Comissão de Finanças e Tributação, constata-se que

o projeto de lei buscava promover importantes ajustes no sistema tributário o qual não

apresentava, por sua vez, plena compatibilidade com a realidade econômica e social da época.

Dentre os tipos de alterações propostas pelo projeto, ressaltamos, de acordo com o

pronunciamento transcrito acima, quatro espécies fundamentais de alterações: (i) medidas

simplicadoras; (ii) medidas inibidoras; (iii) medidas de isonomia; e (iv) medidas

incentivadoras.

Em breve resumo – e sem querer ser exaustivo – a referida lei promoveu alterações

consideradas importantes na época, tais como: (i) redução da alíquota do IRPJ e do adicional;

(ii) disciplina ao lucro inflacionário e à correção monetária das demonstrações financeiras;

(iii) disciplina, em parte, da tributação incidente sobre o mercado financeiro; (iv) a isenção

tributária da distribuição de lucros e dividendos; (v) previsão da dedutibilidade de despesas de

juros sobre o capital próprio (JCP) pagos aos sócios ainda que limitada à aplicação da

variação, pro rata dia, da TJLP sobre o patrimônio líquido da empresa124

; (vi) ajuste na

124

Sem falar na condicionante de que existam lucros apurados no período ou acumulados em conta de reserva no

valor mínimo de duas vezes o valor dos juros pagos, conforme dispõe o §1º do artigo 9º da Lei nº 9.249/95 o

qual foi incluído pelo artigo 78 da Lei nº 9.430/96.

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74

disciplina normativa das empresas optantes pelo lucro presumido e arbitrado; (vii) limitação

da dedutibilidade de determinadas despesas sujeitas a elevada manipulação – os chamados

fringe benefits – na apuração do lucro real; e, por fim, (viii) instituição do regime de

tributação em bases universais (com regra de antidiferimento ampla).

Todas as alterações propostas visavam, aos olhos dos formuladores de políticas

públicas, racionalizar alguns aspectos da tributação sobre a renda no Brasil, na medida em que

adequavam o sistema tributário nacional à realidade macroeconômica do Brasil pós-Real,

reduziam a tributação incidente sobre a renda das pessoas jurídicas e buscavam aprimorar os

mecanismos normativos existentes para combater práticas de elisão fiscal. É justamente em

relação a este último objetivo em que se insere o regime de tributação de lucros auferidos no

exterior (tributação em bases universais) com regra de antidiferimento. Veja-se, neste sentido,

a Exposição de Motivos nº 325 do Ministério da Fazenda:

As regras de tributação dos rendimentos auferidos fora do País constam dos arts. 25

a 27. O Projeto alcança unicamente os lucros, permitindo a compensação do imposto

de renda que sobre eles houver incidido no exterior, e determinando a

obrigatoriedade de apuração do imposto com base no lucro real, para as pessoas

jurídicas que obtiverem lucros no exterior.

Adota-se, com a tributação de renda auferida fora do País, medida tendente a

combater a elisão e o planejamento fiscais, uma vez que o sistema atual – baseado

na territorialidade da renda – propicia que as empresas passem a alocar lucros em

filiais ou subsidiárias situadas em “paraísos fiscais”. Intenta-se, ainda, harmonizar o

tratamento tributário dos rendimentos, equalizando a tributação das pessoas jurídicas

à das pessoas físicas, cujos rendimentos externos já estão sujeitos ao imposto de

renda na forma da legislação em vigor. 125

A partir deste marco legislativo, o regime de tributação aplicado até então somente às

pessoas físicas, segundo o qual todos os rendimentos auferidos por pessoas físicas residentes

estavam sujeitos à tributação independentemente da localização da fonte geradora desses

recursos, passou a ser aplicado também às pessoas jurídicas residentes que, até aquele

momento, adotavam exclusivamente o princípio da tributação exclusiva no país da fonte

produtora. Em razão disso, pode-se afirmar que a lei visava equalizar o tratamento tributário

das pessoas físicas e das jurídicas.

125

Confira, também, o trecho do relatório do Dep. Antônio Kandir (relator do projeto de lei) sobre o regime de

tributação em bases universais: “Pelas alterações propostas, adota-se o critério de tributar as pessoas jurídicas

pelos resultados obtidos em bases mundiais, à semelhança do critério adotado para as pessoas físicas, e não

apenas em base territorial brasileira. O regime proposto revela preocupação das autoridades fiscais com o

incremento de dependências de empresas brasileiras em locais conhecidos como ‘paraísos fiscais’, para as quais

podem ser transferidos lucros através de práticas de subfaturamento ou de superfaturamento. Lucros esses que

eventualmente seriam repatriados, sem tributação, pela avaliação do investimento segundo o método da

equivalência patrimonial”.

Page 75: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

75

É interessante notar que o objetivo do Governo, ao apresentar a proposta legislativa de

tributação de lucros auferidos no exterior, foi coibir mecanismos de planejamento tributário

internacional através do represamento de lucros em subsidiárias localizadas em paraísos

fiscais e regimes fiscais privilegiados. No entanto, a opção do Governo federal do desenho

normativo do regime de tributação em bases mundiais leva à aplicação indiscriminada da sua

regra de antidiferimento – operacionalizada através da disponibilização automática dos

rendimentos ao final de um período-base (ano-calendário) – em relação a todos os países

(tributação favorecida ou não) e a todos os tipos de rendimentos (rendimentos ativos ou

passivos), o que coloca em dúvida a natureza antielisiva do regime brasileiro.

Tal fato causa estranheza, pois vai à contramão da experiência internacional que,

conforme restou evidenciado no capítulo precedente, optou por combater o diferimento

apenas dos rendimentos passivos auferidos por subsidiárias residentes em paraísos fiscais,

mantendo a regra de permissão do diferimento da tributação nacional aos rendimentos ativos

auferidos por subsidiárias residentes em países de tributação regular.

Apesar de destoante da prática internacional, o Governo Federal parecia estar

convencido de que, ao adotar o regime de tributação em bases mundiais com regra

antidiferimento “abrangente”, conforme previsto nos artigos 24 a 27 do Projeto de Lei nº 913

– posteriormente convertido na Lei nº 9.249/95 (arts. 25 a 27) –, estava, na verdade, se

alinhando à prática internacional. Veja-se, neste sentido, os comentários feitos pela equipe da

Secretaria da Receita Federal que concebeu o regime de tributação universal:

A Lei nº 9.249/95 supriu uma das grandes lacunas existentes na legislação brasileira

até aquele momento e instituiu o regime de tributação mundial da renda, iniciando o

processo de adequação do imposto de renda brasileiro ao aumento e à diversificação

das transações entre residentes e não-residentes. Dessa forma, a lei determinou que

os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior fossem computados

na determinação do lucro real das pessoas jurídicas, sendo que a empresa tem o

direto de compensar o imposto pago, no exterior, sobre seus resultados até o limite

do imposto de renda incidente no Brasil. Isto é, o Brasil passou a tributar suas

empresas, inclusive filiais, sucursais e controladas, pelos seus lucros mundialmente

computados, alinhando-se à maioria dos sistemas tributários internacionais.126

A despeito do comentário transcrito acima, o fato era que o Brasil não estava

plenamente alinhado às práticas internacionais já que a sua regra de disponibilização

automática de lucros auferidos no exterior era demasiadamente ampla. Não obstante as

126

BRASIL. Ministério da Fazenda – Secretaria da Receita Federal. Tributação da Renda no Brasil Pós-Real.

2001, p. 87.

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76

críticas referentes à amplitude da regra antidiferimento adotada, não se pode negar que o

formulador de política tributária teve o mérito de integrar pessoa física e jurídica, do ponto de

vista do seu tratamento tributário, na medida em que os lucros apurados passariam a ser

tributados apenas no âmbito da pessoa jurídica, sendo isento tanto no pagamento (e.g. IRRF),

quanto na pessoa física que os recebe sob a forma de dividendos ou lucros distribuídos (regra

de isenção de dividendos).

Assim que proposto, o Projeto de Lei nº 913 foi objeto de 95 emendas parlamentares

que visavam suprimir alguns artigos, alterar a sua redação ou mesmo incluir novos

dispositivos. De forma geral, as matérias que mais geraram repercussões entre os diferentes

segmentos políticos na Câmara dos Deputados foram: (i) a restrição imposta à dedutibilidade

de despesas na apuração do lucro real; (ii) a abolição da correção monetária das

demonstrações financeiras; e (iii) as alterações legislativas relativas à tributação do mercado

financeiro.

No tocante às normas que propunham a instituição da tributação em bases universais

de lucros auferidos no exterior (arts. 24 a 27 do Projeto de Lei), poucas emendas foram

apresentadas; somente 4 (emendas nº 10, 27, 36 e 85). Das 4 emendas apresentadas, 2 delas

(emendas nº 10 e 27) visavam suprimir o §1º do art. 24 do projeto de lei - o qual dispunha

que os prejuízos decorrentes das operações referidas neste artigo [operações no exterior]

não serão compensados com lucros auferidos no Brasil – sob a justificativa de que seria um

contrassenso pretender tributar os lucros auferidos no exterior sem permitir a dedutibilidade

dos prejuízos e perdas incorridos em operações no exterior com lucros apurados no Brasil

pois tal medida resultaria em afronta à isonomia de tratamento que deve ser dada aos lucros e

prejuízos obtidos no exterior127

.

As propostas de supressão da norma prevista no §1º do artigo 24 do projeto de lei –

que impedia a compensação dos prejuízos obtidos no exterior com os lucros obtidos no Brasil

– foram rejeitadas pelo Dep. Antônio Kandir, na Comissão de Finanças e Tributação, sob a

justificativa de que o dispositivo não cometia qualquer injustiça já que permitia a

127

Veja-se, neste sentido, a transcrição de um trecho da justificativa apresentada pelo Deputado Sandro Mabel à

emenda supressiva nº 27: “Não se pode compreender a tributação de operações efetuadas no exterior sem que se

permita a respectiva compensação dos eventuais prejuízos. Se o objetivo da emenda é impedir que através de

prejuízos forjados se diminua o lucro tributável no Brasil, está claro que o que se busca é impedir fraudes, ao

invés de adotar-se uma postura adequada a uma legislação tributária, tendo como base os contribuintes que se

comportam corretamente. Mais uma vez, penalizam-se os bons contribuintes através de um tratamento injusto às

suas atividades. A tributação integrada, ou consolidada, como agora se pretende, implica um tratamento que não

deixa de se observar a lógica jurídica. Daí, a necessidade de suprimir-se o dispositivo em questão, por ser

contrário a esse pressuposto.”

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77

compensação de prejuízos obtidos no exterior com lucros auferidos também no exterior, além

de ter como objetivo evitar operações de planejamento tributário envolvendo paraísos fiscais.

Talvez o Dep. Antônio Kandir, ao mencionar o objetivo de “evitar possíveis planejamentos

fiscais envolvendo empresas localizadas em paraísos fiscais” referindo-se ao §1º do artigo 24

do projeto de lei, estivesse se referindo às possíveis técnicas de “geração” de prejuízos no

exterior que poderiam ensejar prejuízos ao Erário Público brasileiro caso tais prejuízos ditos

“artificiais” pudessem ser compensados com o lucro real apurado no Brasil. Esta questão dos

prejuízos será aprofundada no capítulo 4 do presente trabalho.

Em relação às emendas 36 e 85, o seu objetivo era tão somente promover alterações

pontuais no texto dos artigos 24 a 27 do projeto de lei no sentido de aumentar a sua precisão

conceitual, sem, no entanto, que houvesse qualquer alteração relevante do ponto de vista do

comando jurídico-normativo dos referidos dispositivos. Tais emendas foram parcialmente

aceitas pelo Dep. Antônio Kandir.

Após a apresentação das emendas parlamentares e do parecer da Comissão de

Finanças e Tributação, o projeto de lei foi levado para discussão em turno único na Câmara

dos Deputados. Nesta ocasião, houve diversas discussões importantes que foram travadas

entre Governo e Oposição.

A primeira grande crítica ao projeto de lei como um todo foi, fundamentalmente, a

ausência de comprovação, por parte do Governo Federal, de que a redução da progressividade

do IRPJ – segundo a qual o IRPJ devido pelas empresas deixaria de ser de 25% de imposto e

15% de adicional (40%) e passaria a ser de 15% de imposto e 10% de adicional do imposto

devido (25%) – possuiria uma contrapartida financeira para equilibrar as contas públicas.

Aliada a esta crítica, a Oposição também se opôs à proposta de se colocar um fim à correção

monetária das demonstrações financeiras alegando que ela prejudicaria as pequenas e médias

empresas que não mais poderiam corrigir os seus balanços patrimoniais e que, neste sentido,

beneficiaria somente as grandes empresas em relação às quais a correção continuaria sendo

permitida nos termos da Lei das S.A. Veja-se o trecho do pronunciamento da Dep. Conceição

Tavares (PT – RJ) em plenário relatando as críticas ora analisadas:

Há o problema de se baixar a alíquota. Imaginam, ‘a la Reagan’s Economics’, que

baixando a alíquota os empresários rigorosamente pagariam o imposto. Duvidoso. A

única vez em que isso aconteceu foi nos Estados Unidos, e, quando baixaram a

alíquota, a arrecadação caiu.

A outra hipótese é de que se essa alíquota for baixa e o Governo tirar a correção

monetária, as grandes empresas, que são as mais capitalizadas e que em geral

Page 78: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

78

descontam mais a correção monetária, pagariam mais. Essa é uma maneira não

explicativa de torná-lo progressivo. Naturalmente, o Governo apresenta aqui uma

contradição, razão pela qual – a meu ver – a Receita não fez estimativas. As grandes

empresas, cujos lucros ultrapassam 750 mil reais, pagavam 25% mais 15%, isto é,

40%. Agora, passarão a pagar 15% mais 10%. O Governo só arrecadará mais se a

inflação for superior a 15% ao ano; do contrário arrecadará menos. Como não pode

fazer uma simulação superior ao referido índice, devido ao plano de estabilização –

que deveria baixar a inflação para um dígito – pela primeira vez na história da

legislação do imposto de renda um projeto como esse, que foi aprovado muito

rapidamente, em urgência urgentíssima, não contará com simulação alguma.

Das duas, uma: ou o Governo assume que a inflação ficará acima de 15%, e, neste

caso, vai arrecadar mais das grandes empresas, ou assume - como está previsto no

seu programa de estabilização – que ele cairá e, neste caso, perderá receita. As

pequenas e médias empresas literalmente vão para o espaço. Como não há mais

correção monetária no balanço e elas passam de 25% para 15%, a menos que este

Governo consiga atingir uma inflação européia de 4% ou 5% ao ano, não ganharão

renda alguma. Esse projeto trata mal as pequenas e médias empresas. As grandes,

tratará mal, sempre que elas não puderem corrigir o seu balanço – o que elas podem

fazer, pela Lei das S.A. – ou bem, se a inflação ficar um pouco abaixo de 15%.

(...)

Fazer uma reforma para diminuir a arrecadação do imposto de Renda das pessoas

jurídicas, sem nenhum benefício social, parece-me um completo despropósito.

De acordo com o pronunciamento transcrito acima, fica nítido um ceticismo em

relação à capacidade de o Governo Federal equilibrar as suas finanças e não prejudicar as

pequenas e médias empresas diante das propostas de alteração da legislação tributária

apresentadas para votação. O ceticismo da Oposição abrangia, sobretudo, a capacidade de o

Governo Federal manter taxas de inflação inferiores a 15%, já que, aos olhos da Oposição,

somente seria possível compensar a queda na arrecadação tributária – decorrente da redução

da progressividade do IRPJ – caso a inflação se mantivesse em patamares superiores à taxa

anual de 15%.

As críticas apresentadas pela Dep. Conceição Tavares são uma boa síntese das críticas

apresentadas por outros segmentos da Oposição. Havia, de fato, uma pressão muito forte da

Oposição para que os deputados da base aliada ao Governo Federal demonstrassem,

satisfatoriamente, como a queda de arrecadação federal seria compensada para que as contas

públicas permanecessem equilibradas.

Não houve nenhum debate crítico em relação às normas de tributação de lucros

auferidos no exterior, sobretudo, quanto à sua adequação com uma possível política industrial

e de internacionalização produtiva de empresas brasileiras mais ampla, o que incluiria

importantes variáveis tais como renda nacional, presença do Brasil no exterior, emprego,

arrecadação, entre outras questões conexas ao tema. As referidas normas foram consideradas,

em todos os pronunciamentos, como sendo parte de um pacote de medidas que visavam

combater práticas elisivas através do uso de paraísos fiscais e, mais do que isso, como

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benéficas, pois através delas o Governo Federal estaria igualando o tratamento dado aos

lucros auferidos tanto no Brasil quanto no exterior (neutralidade na exportação de capitais).

Em resposta às críticas apresentadas pela Oposição, o Dep. Antônio Kandir – relator

do projeto de lei e aliado do Governo no Congresso – fez um pronunciamento final sobre a

matéria discutida, ocasião na qual foi explicada qual seria a estratégia do Governo Federal

para compensar a queda na arrecadação federal advinda da redução da progressividade do

IRPJ. Veja-se, abaixo, um trecho elucidativo do referido pronunciamento:

Agora qual é a mágica? De onde vêm as condições para a redução da carga tributária

de quem paga?

Vêm daquilo que todos nós, na Subcomissão, e depois na Comissão, sempre vimos

como mais importante: tapar os ralos jurídicos que permitem o planejamento

tributário.

Certamente, a maior contribuição deste projeto, na minha opinião, é o fato de

colocar um fim à farra dos paraísos fiscais, pois nele estamos transformando o

Imposto de Renda, que deixa de ter bases territoriais para ser de bases globais. Isso

que dizer o seguinte: uma empresa, que por subfaturamento ou superfaturamento

exporta lucro para um paraíso fiscal, hoje não paga imposto do lucro lá e não paga

imposto do lucro pequeno que fica aqui. Agora não: na verdade, se agregará o lucro

das filiais com o da matriz e apurar-se-á o lucro total, e do imposto sobre ele será

deduzido aquele pago lá fora. Se está num paraíso fiscal, paga todos os impostos

aqui.

(...)

Estamos finalmente fazendo aquilo que todos nós queríamos: quem paga imposto

agora vai pagar menos, e a vida daquele que dribla impostos agora vai ficar um

pouco mais complicada, devido ao fechamento das brechas que permitem o

planejamento fraudulento.

A partir do trecho transcrito acima, elucidou-se a estratégia que seria adotada pelo

Governo Federal para compensar a redução na tributação federal; o combate à elisão fiscal

internacional. Assim, as normas de tributação de lucros auferidos no exterior, aliadas às

demais medidas inibidoras de elisão e evasão fiscal, forneceriam, segundo a lógica do

Governo Federal, as receitas federais necessárias para compensar a queda na arrecadação

tributária decorrente da diminuição da progressividade do IRPJ. A partir deste episódio,

conforme demonstraremos adiante, o Governo Federal teve a tendência cada vez maior de se

utilizar de normas de natureza antielisiva como estratégia voltada à obtenção de volumes

maiores de receitas tributárias, destinadas, por vezes, a financiar políticas públicas específicas.

Após a discussão em turno único no Congresso Nacional, o projeto de lei foi enviado

ao Senado Federal onde outros aspectos foram discutidos, mas que, por não guardarem

relação direta ou indireta com a presente temática, não serão abordados.

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80

O texto final dos dispositivos que tratavam do regime de tributação de lucros auferidos

no exterior (artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95) foi aprovado pelas duas casas do Poder

Legislativo sem sofrer alterações relevantes e de forma a manter a regra jurídica proposta pelo

Poder Executivo segundo a qual os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos por

filiais, sucursais, controladas e coligadas residentes no exterior deveriam ser computados na

determinação do lucro real das pessoas jurídicas residentes no Brasil, correspondente ao

balanço levantado em 31 de dezembro de cada ano, no valor proporcional à sua participação

societária no capital social da sociedade residente no exterior128

.

Os referidos dispositivos não condicionaram a inclusão dos referidos lucros,

rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior na base de cálculo da investidora

brasileira à sua efetiva disponibilização econômica e jurídica, conforme exigia o enunciado

normativo do artigo 43 do Código Tributário Nacional vigente à época. Ademais, a regra de

inclusão e submissão à tributação brasileira ao final de cada ano-calendário (31 de dezembro)

demonstra a adoção de uma regra de antidiferimento ampla e irrestrita, a nosso ver,

descalibrada.

Tampouco foram acolhidas as reivindicações de alguns deputados federais no sentido

de possibilitar a compensação de prejuízos incorridos no exterior na apuração do lucro real da

empresa residente no Brasil – de modo a conferir tratamento tributário isonômico entre lucros

e prejuízos incorridos no exterior –, conforme se conclui a partir da leitura do enunciado

normativo final do §5º do artigo 25 da Lei nº 9.249/95. A Lei nº 9.249/95 permitiu que o

imposto pago no exterior fosse compensado com o devido no Brasil como medida destinada a

evitar a bitributação dos lucros, rendimentos ou ganhos de capital (art. 26).

A pretensão inicial da lei em estabelecer um critério de “disponibilização automática”,

em desrespeito ao artigo 43 do CTN, levou ao questionamento quanto à sua

constitucionalidade, fato que tentou ser contornado através da publicação da Instrução

Normativa SRF nº 38/1996. Esta Instrução Normativa será tratada a seguir.

128

Vale ressaltar que todas as pessoas jurídicas que auferem lucros, rendimentos ou ganhos de capital no

exterior, estão obrigadas a apurar Lucro Real, não sendo possível a opção pelo lucro presumido ou pelo

SIMPLES nacional, conforme dispõe o artigo 27 da Lei nº 9.249/95.

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81

2.2.2.2. Conclusões Parciais – Lei nº 9.249/95

Em relação às normas de tributação em bases universais, a análise do processo

legislativo da Lei nº 9.249/95 permite chegar às seguintes conclusões parciais:

Primeira: Não houve resistência política à aprovação dos dispositivos que instituíram o

regime de tributação de lucros auferidos no exterior, nem qualquer tipo de ponderação quanto

aos seus possíveis efeitos econômicos do ponto de vista de uma política industrial ou de uma

política de internacionalização produtiva de empresas de capital nacional. Tal fato demonstra

a pouca articulação política dos setores privados no Congresso Nacional no sentido de barrar

as referidas normas ou alterá-las o que, por um lado, pode ser um reflexo da realidade

econômica da época (poucas empresas tinham a sua produção internacionalizada) e, portanto,

da ausência de interesse em se opor às normas tratadas ou, por outro lado, pode significar que

as empresas afetadas pelo regime aprovado possuíam baixa representatividade política no

Congresso Nacional.

Segunda: A justificativa apresentada para a criação do regime de tributação de lucros

auferidos no exterior foi o combate às práticas de elisão fiscal internacional abusivas

(ilegítimas), realizadas através de planejamentos tributários que visassem transferir ativos e

lucros para paraísos fiscais. No entanto, o regime contrariou a prática internacional na medida

em que a sua regra de antidiferimento era ampla demais, ou seja, não havia sido arquitetada

para ser aplicada de forma seletiva, considerando-se o tipo de rendimento (transactional

approach) e a sua origem (jurisdictional approach). O regime se aplica, em princípio, a todas

as pessoas jurídicas residentes no Brasil que possuem participação societária em empresas

residentes no exterior (coligadas e controladas) e a todas as filiais e sucursais sem distinguir o

tipo de rendimento auferido por elas. Assim, devido à ausência de um desenho antielisivo, ou

antiabusivo, o regime brasileiro se mostrava em descompasso com a justificativa apresentada

para a sua criação.

Terceira: A redução da arrecadação tributária advinda da redução da progressividade

do IRPJ devido pelas empresas brasileiras foi compensada, em grande parte, através da

introdução no ordenamento jurídico brasileiro do regime de tributação de lucros auferidos no

exterior. Assim, havia interesses arrecadatórios envolvidos na aprovação do regime de

tributação em bases universais uma vez que ele foi visto, à época, como uma estratégia

voltada ao equilíbrio das contas públicas.

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2.2.3. 3º Momento: a Instrução Normativa SRF nº 38/1996

De acordo com o disposto no caput do artigo 25 da Lei nº 9.249/95, os lucros,

rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior deveriam ser incluídos na base de

cálculo da sociedade residente no Brasil – para fins de apuração do lucro real – até o dia 31 de

dezembro de cada ano independentemente de a sociedade controlada ou coligada no exterior

tê-los disponibilizado econômica ou juridicamente. Havia elevado risco, à época da aprovação

da Lei nº 9.249/95, de que o referido critério normativo fosse declarado inconstitucional

devido à inevitável afronta ao disposto no caput do artigo 43 do CTN.

Em virtude do risco de invalidade jurídica do referido critério legal, a Secretaria da

Receita Federal regulamentou a aplicação dos artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95 de forma a

“adequá-los” ao ordenamento jurídico vigente e a contornar o risco de inconstitucionalidade.

Foi justamente com esta preocupação em mente que foi publicada a Instrução

Normativa SRF nº 38/1996 que estabeleceu, logo em seu artigo 2º, que a inclusão dos lucros,

rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior na determinação do lucro real da

sociedade controladora ou coligada residente no Brasil estava condicionada à sua efetiva

disponibilização econômica ou jurídica. O administrador público tomou, inclusive, o cuidado

de conceituar, nos §§1º e 2º do artigo 2º, quais seriam as hipóteses de disponibilização que

seriam consideradas para fins de inclusão dos lucros, rendimentos e ganhos de capital na

determinação do lucro real.

A Instrução Normativa manteve a regra que possibilitava a compensação do imposto

pago no exterior pela controlada ou coligada com o imposto devido no Brasil pela

controladora ou coligada sem impor qualquer exigência adicional (art. 13). Ademais, a

referida Instrução Normativa deixou expressa a regra já prevista na Lei nº 9.249/95 segundo a

qual a contrapartida do ajuste do valor do investimento da empresa residente no Brasil no

exterior seria neutra para fins fiscais, ou seja, as contrapartidas em conta de resultado do

ajuste do valor do investimento contabilizado segundo o método de equivalência patrimonial

seriam neutras para fins de apuração do lucro real (art. 11) – e, posteriormente, da base de

cálculo da CSLL –, conforme já previa a legislação societária vigente.

Apesar de o administrador público, através do seu poder regulamentar, ter

“contornado” a possível inconstitucionalidade do regime vigente, nos moldes previstos pelos

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83

artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95, ele criou novas hipóteses de disponibilização automática

através da previsão de hipóteses de equiparação à disponibilização129

na IN SRF nº 38/96. As

hipóteses foram previstas nos parágrafos do artigo 2º da referida IN e podem ser sintetizadas

da seguinte forma: (i) extinção de empresa brasileira e consequente transmissão do patrimônio

da sociedade estrangeira (art. 2º, §4º); (ii) encerramento das atividades da controlada ou

coligada no exterior (art. 2º, §5º); (iii) absorção do patrimônio da sociedade estrangeira por

sociedades brasileiras em virtude de incorporação, fusão ou cisão (art. 2º, §7º); (iv) absorção

do patrimônio da controlada ou coligada por empresa sediada no exterior (art. 2º, §8º); e (v)

alienação de participação societária em controlada ou coligada no exterior (art. 2º, §9º).

É bem verdade que as alterações na legislação tributária promovidas pela instrução

normativa no sentido de “contornar” a possível inconstitucionalidade incorrida pelo artigo 25

da Lei nº 9.249/95 foram absolutamente inválidas já que, a despeito de serem mais favoráveis

aos contribuintes, as alterações não poderiam ter sido feitas através de instrução normativa,

cujo poder é, tão somente, regulamentar, devendo o regulamento se ater aos limites

estabelecidos pela lei regulamentada, sem inovar na ordem jurídica a ponto de alterar o

critério de tributação antes previsto em lei. Esta conclusão decorre do fato de ser o

regulamento (instrução normativa), norma hierarquicamente inferior à lei. A nosso ver, a

alteração do critério normativo temporal da hipótese de incidência tributária, bem como a

previsão de novas hipóteses de disponibilização, promovidas pela IN SRF nº 38/1996 foram

inválidas por veicularem inovação jurídica para além do que permitia a lei (Lei nº

9.249/95)130

. Tal alteração só poderia ser feita por meio de lei em vista da regra constitucional

de reserva específica de lei aplicável ao sistema tributário nacional.

129

Nomenclatura utilizada por Alberto Xavier em: XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do

Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 392- 394. 130

A razão pela qual defendemos que a administração tributária não poderia ter inovado através de regulamento

é respaldada no pressuposto de que, no direito tributário, as alterações nos critérios normativos que compõem a

hipótese de incidência tributária se submetem à reserva específica de lei (cf. art. 150, I, C.F.). Não estamos

defendendo a ideia de que o administrador público nunca pode inovar no desempenho da sua função

administrativa. Muito pelo contrário. Ele pode e deve inovar, quando a lei estabelecer princípios e limites gerais

dentro dos quais é atribuída ao administrador plena liberdade regulamentar. O administrador público não pode

ser visto com desconfiança pelo legislador nem mesmo ser tratado como mero “braço mecânico” da vontade da

lei. Ocorre que, para que isso seja possível, a lei não apenas deve delegar o poder normativo ao regulamento –

prevendo, no entanto, princípios e diretivas que devem orientar o poder regulamentar do administrador – como

também deve a matéria da qual versa estar sujeita à mera primazia da lei ou à genérica dependência de lei. Isso

não ocorre, no entanto, quando o tema é de natureza tributária, em que o princípio da legalidade impõe uma

verdadeira reserva específica de lei ao formulador de políticas tributárias. Além de estar sujeita à reserva

específica de lei, os artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95 não delegaram poder ao regulamento, o que torna ilegal a

alteração do critério temporal da hipótese de incidência da norma tributária pretendida pela instrução normativa.

Neste sentido, confira-se: SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. São Paulo: Malheiros,

2012, p. 132-181 (Capítulo 6 – Administrar é criar?).

Page 84: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

84

Apesar da crítica à pretensão de se corrigir uma potencial invalidade da lei através do

regulamento, o fato era que a Administração Tributária havia, ainda que pela via errada,

evitado questionamentos maiores quanto à constitucionalidade do critério normativo de

tributação. Restava, no entanto, atribuir “status legal” às alterações promovidas pela via do

regulamento. Tais alterações foram feitas pela Lei nº 9.532/97, conforme será analisado na

sequência.

2.2.4. 4º Momento: a Lei nº 9.532/97

2.2.4.1. O processo legislativo

A Lei nº 9.532/97 foi fruto do projeto de conversão em lei da Medida Provisória nº

1.602/97. A referida medida provisória foi editada e publicada em um contexto histórico em

que o Estado passava por uma série de reformas por meio das quais se buscava manter a

estabilidade da moeda, o equilíbrio fiscal, a modernização do Estado e a implementação de

programas de privatização de empresas públicas. O objetivo das referidas reformas era

agregar solidez às bases fundamentais da economia ao passo em que havia um esforço para

tornar o Estado mais eficiente mediante a privatização de empresas públicas que, por sua vez,

levaria a lógica da concorrência de mercado a setores antes monopolizados pelo Estado.

Do ponto de vista macroeconômico, o Brasil passava por um momento de dificuldades

devido à crise asiática de 1997. A situação chegou a se complicar, em agosto de 1998, quando

a Rússia decretou moratória. O Brasil estava na iminência de adotar um câmbio flutuante

frente ao dólar. O Banco Central havia elevado a taxa Selic, no período, para mais de 50% ao

ano como forma de compensar a redução nas reservas cambiais brasileiras ocasionada em

vista da ação de especuladores contra o Real, fato que levou à fuga de capitais investidos no

Brasil131

. O então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) chegou a negociar um novo

acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) às vésperas da sua reeleição.

131

Cf. FISHLOW, Albert. O novo Brasil: as conquistas políticas, econômicas, sociais e nas relações

internacionais. São Paulo: Saint Paul, 2011, p. 141- 165.

Page 85: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

85

Tal conjuntura macroeconômica levou o Governo Federal a focar todos os seus

esforços em amenizar os efeitos da crise iminente através da proposta de uma série de

medidas de austeridade fiscal voltadas a reduzir despesas públicas e a aumentar a arrecadação

federal para os anos de 1998 e 1999. De fato, entre os anos de 1997 e 2002, a arrecadação

tributária havia sido elevada de 27,4% para 32,8% do PIB132

. Ao mesmo tempo, o Governo

Federal procurou dar continuidade às reformas pontuais que já vinham sendo feitas através de

leis anteriores – tais como a Lei nº 9.249/95 – cujo objetivo era adaptar a legislação tributária

à nova realidade econômica pós-Real, sobretudo, através da sofisticação dos mecanismos de

combate à elisão fiscal como meio de fortalecimento das bases arrecadatórias do Estado.

Ainda em relação ao contexto geral macroeconômico em que se inseriu a publicação

da MP 1.602/97, confira-se o excerto transcrito abaixo extraído da Exposição de Motivos do

Ministério da Fazenda nº 644:

Nesse sentido, o Projeto, ao mesmo tempo em que estabelece formas para prevenir a

evasão de receita tributária e reduzir a renúncia fiscal decorrente de todos os

incentivos fiscais, atualmente, em vigor, cria mecanismos que estimulam a atividade

produtora e viabilizam operações entre empresas nacionais e o exterior.

A partir da análise do trecho transcrito acima, fica clara a preocupação do Governo

Federal em reduzir as despesas públicas para equilibrar o orçamento público em face da queda

da arrecadação federal que havia sido a conseqüência dos reflexos da crise asiática de 1997 na

economia brasileira133

. De fato, foram várias as alterações promovidas pela MP e que tinham

como objetivo fundamental aumentar a arrecadação tributária. A reforma pontual promovida

pela MP tinha como alicerces fundamentais o corte de diversos benefícios fiscais, a disciplina

de isenções e imunidades e o aumento da tributação incidente sobre a renda das pessoas

físicas.

De forma geral, as principais alterações da legislação tributária federal propostas pela

referida MP eram: (i) a redução de benefícios fiscais, principalmente, aqueles destinados para

132

Cf. FISHLOW, Albert. O novo Brasil: as conquistas políticas, econômicas, sociais e nas relações

internacionais. São Paulo: Saint Paul, 2011, p. 180. 133

Tal preocupação fica ainda mais evidente no trecho em destaque do parecer da Comissão de Finanças e

Tributação, cujo relator era o Deputado Roberto Brandt: “A medida provisória sob exame foi editada no contexto

das medidas destinadas à redução do déficit público, dos exercícios de 1998 e 1999, para proceder às alterações

da legislação tributária consideradas aptas a proporcionar o aumento da arrecadação comprometido pelo

Governo no processo de equilíbrio das contas públicas. Esse aumento, segundo a medida provisória, advirá da

redução de incentivos fiscais, da redução de deduções na determinação da base de cálculo do imposto de renda

das pessoas físicas, do adicional a ser calculado sobre o valor do imposto de renda das pessoas físicas, do

aumento do IPI.”

Page 86: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

86

as áreas da Sudam, Sudene, Zona Franca de Manaus (ZFM), Programa de Alimentação do

Trabalhador (PAT), Programa de Desenvolvimento Tecnológico Industrial (PDTI), entre

outros; (ii) a limitação as despesas dedutíveis na Declaração de Ajuste Anual do Imposto de

Renda das Pessoas Físicas (IRPF); (iii) a criação de um adicional para o IRPF; (iv) a

disciplina da amortização do ágio/deságio na incorporação ou fusão societária (objetivo de

incentivar privatizações); (v) a previsão de requisitos para que instituições de educação e de

assistência social pudessem usufruir da imunidade constitucional prevista no art. 150, inciso

VI, alínea c; (vi) a regulamentação da isenção de IR concedida às instituições de caráter

filantrópico; (vii) a criação de regras mais rígidas para a concessão de isenção de imposto de

renda sobre rendimentos oriundos de Fundos de Investimento Imobiliário (FII); (viii) a

majoração da alíquota de IPI incidente sobre algumas mercadorias; (ix) a criação e o

aperfeiçoamento de medidas destinadas à proteção do crédito tributário; e, por fim, (x) a

disciplina do regime de tributação de lucros auferidos no exterior.

As medidas fiscais propostas pelo Governo Federal buscavam diminuir benefícios

fiscais, aumentar fontes de arrecadação de receitas tributárias e proteger o crédito tributário

desde o seu lançamento até a sua cobrança. Tais medidas se mostravam plenamente coerentes

com a política de austeridade fiscal anunciada tanto pelo Ministério da Fazenda quanto pelas

bases aliadas ao Governo Federal no Congresso Nacional.

Não obstante a lógica das medidas fiscais propostas pela MP nº 1.603/97 ter seguido

uma política de forte austeridade fiscal dado o contexto macroeconômico da época, o

Governo Federal demonstrou um aparente “arrependimento” no seu objetivo inicial de

instituir o regime de tributação em bases universais da pessoa jurídica juntamente uma regra

geral de antidiferimento da tributação brasileira (critério de disponibilização automática da

renda ao final do período-base no qual o lucro foi apurado).

Com efeito, o Governo Federal já havia demonstrado arrependimento quando, poucos

meses após a publicação da Lei nº 9.249/95, publicou a Instrução Normativa SRF nº 38/1996

a qual, apesar de ter mantido o regime de tributação em bases universais, disciplinou o

momento em que ocorreria a disponibilização dos referidos lucros (momento do pagamento

ou crédito em conta representativa de obrigação da empresa, conforme dispunha o artigo 2º da

referida instrução). Ao aparente “arrependimento” quanto à adoção da regra antidiferimento

ampla podem ser apresentadas diversas justificativas, mas é certo que, a despeito da coerência

de muitas delas, o regime proposto pelo Governo Federal, conforme disposto nos artigos 25 a

27 da Lei nº 9.249/95, corria grande risco de ser considerado inconstitucional em eventual

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87

ação judicial apreciada pelo Poder Judiciário. Dessa forma, o artigo 1º da MP nº 1.603/97 –

posteriormente convertida na Lei nº 9.532/95 – atribuiu status legal à alteração promovida

pelo artigo 2º da IN SRF nº 38/1996. De fato, tanto a redação do artigo 1º da MP nº 1.603/97

quanto do artigo 2º da IN SRF nº 38/1996 eram muito semelhantes, salvo pela omissão do

artigo 1º da medida provisória em tratar das hipóteses de equiparação à disponibilização

tratados na instrução normativa, o que levou, a nosso ver, à sua revogação tácita.

A análise do processo legislativo revela que, a despeito da substancial alteração

promovida na disciplina do regime de tributação em bases universais, pouco se discutiu sobre

o artigo 1º da MP nº 1.603/97, tendo as discussões se concentrado muito mais na diminuição

dos benefícios fiscais, na disciplina das isenções e imunidades e, principalmente, no aumento

da tributação da renda das pessoas físicas134

.

Observa-se que, não obstante o Governo Federal tivesse dado “um passo para trás” em

relação ao seu objetivo de instituir a regra geral de antidiferimento da tributação nacional, foi

inserido no artigo 1º da MP 1.603/97 o §4º que condicionava o direito ao crédito do imposto

pago no exterior para compensação com o imposto devido no Brasil à repatriação dos lucros

no prazo máximo de 2 anos; passado este prazo, o contribuinte seria bitributado (na ausência

de tratado para evitar bitributação), devendo ele arcar tanto com o imposto devido no exterior

quanto com a integralidade da tributação devida no Brasil.

Havia, neste sentido, uma forte crença de que o §4º do artigo 1º, ao condicionar o

direito à compensação do imposto pago no exterior com o imposto devido no Brasil,

estimularia o repatriamento de lucros no curto prazo (até 2 anos) gerando, dessa forma,

resultados arrecadatórios análogos ao pretendido com a sistemática vigente anteriormente. Em

relação a este ponto específico, veja-se, também, o trecho do relatório proferido pelo Dep.

Roberto Brandt na Comissão de Finanças e Tributação:

O dispositivo [art. 1º] estabelece a incidência tributária sobre lucros auferidos de

coligadas e controladas situadas no exterior para o ano-calendário em que tais lucros

134

A Exposição de Motivos nº 644 do Ministério da Fazenda é pouco elucidativa sobre a alteração promovida no

regime tributação de lucros auferidos no exterior, conforme se pode observar a partir da leitura do trecho ora

transcrito: “O artigo 1º do Projeto refere-se às hipóteses em que os lucros auferidos por filiais, sucursais,

controladas e coligadas de empresas brasileiras no exterior são considerados disponíveis para a investidora no

Brasil. Esta definição é importante do ponto de vista tributário, tendo em vista que o fato gerador do imposto de

renda, na hipótese desses rendimentos, ocorre com a disponibilização dos lucros auferidos no exterior. Além

dessas definições, o §4º do referido artigo estabelece um prazo máximo de dois anos para o aproveitamento do

crédito do imposto pago no exterior sobre os referidos rendimentos, o que, acredita-se, irá incentivar a

disponibilização desses resultados, produzindo efeitos benéficos tanto do ponto de vista tributário quanto

cambial”.

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88

sejam colocados à disposição da pessoa jurídica sediada no País. Com o propósito de

induzir à aceleração da disponibilização de tais lucros à empresa sediada no País, a

medida provisória condiciona a compensação do imposto de renda pago no exterior

com o imposto de renda devido no Brasil, a que tais lucros sejam postos à disposição

da empresa sediada no País no prazo de até dois anos. Vencido esse prazo, mantém-

se a incidência tributária, mas extingue-se a possibilidade de compensação do

imposto pago no exterior.

Após a submissão do projeto de conversão em lei da medida provisória à análise

parlamentar, é interessante observar que foram apresentadas 319 emendas parlamentares no

total o que indica, em princípio, forte oposição de parte considerável dos membros do

Congresso Nacional ao projeto de lei de conversão. As emendas se opuseram,

fundamentalmente: ao corte de benefícios fiscais, principalmente aqueles destinados à Sudam,

Sudene e ZFM, às limitações à dedutibilidade fiscal de IRPF nas Declarações de Ajuste

Anual, à proposta de criação de um adicional do IRPF e à imposição de requisitos para o

reconhecimento de imunidade (instituições de educação ou de assistência social) e de isenções

(instituições de caráter filantrópico).

A análise das referidas emendas parlamentares permite afirmar que houve uma grande

articulação política dos parlamentares ligados a grupos de interesses das regiões Norte e

Nordeste uma vez que os cortes de benefícios fiscais destinados às regiões da Sudam, Sudene

e ZFM foram amplamente questionadas pelos parlamentares que visavam, senão suprimir os

dispositivos legais da MP 1.603/97 que tratavam do assunto, atenuar a redução dos benefícios

fiscais pretendida pelos setores aliados ao Governo Federal.

É interessante observar que apenas 1 emenda foi proposta visando alterar o artigo 1º

da Lei nº 9.532/97 com o objetivo de compatibilizar a disciplina da tributação de lucros

auferidos no exterior com o disposto nos tratados destinados a evitar a bitributação135

.

Devido à articulação de diferentes segmentos políticos para barrar muitas das

alterações da legislação tributária propostas pelo Governo Federal com o objetivo de reduzir

benefícios fiscais e aumentar a tributação incidente sobre a renda das pessoas físicas, a base

aliada ao Governo Federal na Câmara dos Deputados se viu diante de um impasse político que

poderia impedir a aprovação do projeto de conversão de lei. Neste sentido, a base aliada

135

A referida emenda foi, no entanto, rejeitada pela Comissão de Finanças e Tributação sob a justificativa de

que, “em matéria tributária, já está ressalvado no Código Tributário Nacional que os tratados e convenções

internacionais prevalecem sobre as leis do País”. Por esta razão, a redação final do artigo 1º da Lei nº 9.532/97

permaneceu igual à redação do artigo 1º da Medida Provisória nº 1.603/97. O irônico é que um dos grandes

problemas atuais do regime de tributação universal é justamente a sua compatibilidade com os tratados, questão

esta que parece não ter recebida a atenção merecida pela Comissão de Finanças e Tributação.

Page 89: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

89

procurou solucionar o impasse político através da inclusão de novos dispositivos ao projeto de

lei de conversão cujo objetivo era atenuar as medidas inicialmente propostas pelo Poder

Executivo através do aumento da tributação incidente sobre outras materialidades que não

tivessem um “custo político” direto tão elevado, tais como o mercado financeiro.

O “redirecionamento” de parte das medidas propostas pelo Governo Federal cuja

finalidade era permitir a aprovação do projeto de conversão de lei no Congresso Nacional

pôde ser identificado no processo legislativo através da análise de parte do relatório da

Comissão de Finanças e Tributação em que o Dep. Roberto Brant (PSDB-MG) afirma, com

clareza, que a inserção de novos dispositivos no projeto de conversão tinha em vista a

finalidade apontada. Neste sentido, confira-se:

MATÉRIA INCLUÍDA NO PROJETO DE CONVERSÃO

Concluída a análise dos dispositivos constantes da Medida Provisória e concluída

também a análise das emendas apresentadas, reportamo-nos, a seguir, sobre a

matéria nova incluída no projeto de conversão.

Incluímos os artigos 28 a 35, que aumentam a alíquota incidente sobre rendimentos

de renda fixa, de 15% para 20%. Incluímos, também, o artigo 36, que passa a

tributar os rendimentos obtidos nas operações de swap como rendimentos de renda

fixa, sujeitos, portanto, à alíquota de 20%, a partir de 1998. O aumento da tributação

dos rendimentos de renda fixa, inclusive quando obtidos através dos fundos de

aplicação coletiva, permitiram abrandar a redução dos incentivos fiscais no FINOR,

FINAM e FUNRES, bem como dos demais benefícios fiscais concedidos para

empreendimentos nas áreas de atuação da SUDAM e SUDENE. Permitiram,

também, eliminar a incidência do adicional do imposto de renda sobre os

rendimentos da pessoa física, que atualmente são tributados à alíquota de 15%.

Depois de feitas as alterações indicadas acima, o projeto de conversão de lei foi

encaminhado para discussão em turno único no Congresso Nacional. Nesta ocasião, a

Oposição apresentou diversas críticas à Medida Provisória editada pelo Governo Federal. A

principal crítica diz respeito à opção do Governo Federal em onerar, em tempos de crise,

diretamente o contribuinte brasileiro (pessoa física) ao invés de aumentar a tributação

incidente sobre operações de renda fixa e variável do mercado financeiro, opção que

implicaria a alocação do ônus tributário na pessoa do investidor estrangeiro. A réplica do

Governo Federal foi no sentido de ressaltar que opções deveriam ser feitas para preparar as

finanças públicas para a crise que estava na iminência de afetar o Brasil, bem como na

ausência de apresentação de qualquer contraproposta sólida pela Oposição.

Há, no entanto, uma crítica em especial que foi apresentada ao Governo Federal e que

merece o devido destaque. Trata-se da acusação de que o Governo Federal sempre se recusou

a discutir política industrial junto ao Congresso Nacional. Tal crítica pode estar relacionada ao

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90

fato de que – após a análise das Leis nº 9.249/95 e 9.732/97 – não identificamos qualquer

ponderação relativa ao alinhamento das normas de tributação de lucros auferidos no exterior

com uma política industrial de incentivo ou desincentivo à internacionalização produtiva das

empresas de capital nacional. Nem mesmo houve a ponderação dos seus possíveis efeitos

sobre a atividade produtiva, tendo o Governo Federal se limitado a alegar que as referidas

normas seriam parte de um pacote de medidas destinadas ao combate à elisão fiscal. Veja-se a

referida crítica no trecho do pronunciamento do Deputado José Machado (PT-SP) abaixo

transcrito:

Afirmamos aos Parlamentares brasileiros que esse pacote – aproveito a imagem que

um colega, com muita felicidade, usou – é apenas para “enxugar o gelo”. Estamos,

na verdade, empurrando a crise com a barriga. Ela é por demais grave e não é um

problema exclusivamente internacional; diz respeito a uma opção do Governo

brasileiro, de uma forma irresponsável, vem fazendo, colocando o nosso País na rota

da desagregação econômico-social. É disso que se trata, Srs. Parlamentares, porque

o Governo sempre se recusou a discutir política industrial; o Governo sempre se

recusou a discutir política agrícola; o Governo escancarou o nosso País para as

importações.

É evidente que se deve ter o cuidado de analisar o pronunciamento do deputado da

Oposição ao Governo Federal considerando o contexto de forte embate político no Congresso

Nacional. Não obstante a necessidade de se tomar o referido cuidado, o trecho acima

transcrito leva a crer que havia uma dificuldade em discutir uma política industrial para o

Brasil entre os diversos setores políticos do Poder Executivo e Legislativo. Talvez a falta de

uma política industrial amplamente discutida tenha impedido que ponderações dessa natureza

tivessem sido feitas em relação às normas de tributação de lucros auferidos no exterior.

2.2.4.2. Conclusões Parciais – Lei nº 9.532/97

Em relação às normas de tributação de lucros auferidos no exterior, a análise do

processo legislativo da Lei nº 9.532/97 permite chegar a quatro conclusões parciais.

Primeira: O foco da preocupação política, no Congresso Nacional, foi o corte de

benefícios fiscais, principalmente, aqueles destinados à Sudam, Sudene e ZFM, as limitações

à dedutibilidade fiscal de IRPF nas Declarações de Ajuste Anual, a proposta de criação de um

adicional do IRPF e a imposição de requisitos para o reconhecimento de imunidade

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(instituições de educação ou de assistência social) e de isenções (instituições de caráter

filantrópico).

Segunda: A alteração na sistemática de lucros auferidos no exterior passou de modo

despercebido no processo legislativo de votação do projeto de conversão em lei da Medida

Provisória nº 1.603/97.

Terceira: Além disso, chama a atenção o descompasso entre o artigo 1º da Lei nº

9.532/97 – que deu caracterizou o “arrependimento” do Governo Federal em instituir o

regime de tributação em bases universais na medida em que se condicionou a tributação dos

lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior à sua efetiva disponibilização

econômica ou jurídica (e não automática), o que certamente impactou negativamente na

arrecadação federal – e o restante dos dispositivos da lei que previam medidas cujo principal

objetivo era o aumento da arrecadação federal. Conforme observado, o objetivo das propostas

de alteração legislativa do Governo Federal era reduzir as despesas e aumentar o ingresso de

receitas no tesouro federal para enfrentar a crise econômica que estava na iminência de

ocorrer à época, ao passo em que a alteração promovida pelo artigo 1º da lei levaria à redução

da arrecadação federal, ao menos até que os lucros auferidos no exterior fossem

disponibilizados ao sócio brasileiro, devido à substituição da regra geral de antidiferimento

por uma regra de diferimento da tributação nacional.

Quarta: Por outro lado, havia a forte crença de que a limitação temporal do direito de

crédito do imposto pago no exterior estimularia a repatriação de lucros no curto prazo.

Tratava-se, portanto, de uma norma indutora que buscava amenizar os efeitos arrecadatórios

advindos da previsão de um regime de tributação universal com regra geral de diferimento da

tributação nacional para as pessoas jurídicas (art. 1º da Lei nº 9.532/97).

No próximo tópico a análise terá como foco as alterações feitas pela Lei

Complementar nº 104/2001 em diversos dispositivos do CTN. A principal delas, tendo-se em

vista os propósitos do presente trabalho, caracterizou uma inversão na evolução das normas

de tributação de lucros auferidos no exterior, permitindo-se que o objetivo inicialmente

previsto pelo Governo Federal fosse atingido, qual seja, a previsão de uma regra geral de

antidiferimento da tributação brasileira, a despeito da sua questionável juridicidade.

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2.2.5. 5º Momento: a Lei Complementar nº 104/2001

2.2.5.1. O processo legislativo

A Lei Complementar nº 104/2001 foi fruto da conversão do Projeto de Lei

Complementar nº 77/99 encaminhado à Câmara dos Deputados pelo Ministro da Fazenda

Pedro Malan. O projeto de lei complementar estava inserido em um contexto em que o

Governo Federal pretendia instrumentalizar a Secretaria da Receita Federal do Brasil com

medidas que lhe possibilitassem aumentar a arrecadação tributária, através de técnicas mais

sofisticadas de fiscalização e controle das quais se destaca o combate a planejamentos

tributários (práticas de elisão fiscal), entre outras medidas.

De forma geral, o projeto de lei complementar abrangia quatro pontos centrais. O

primeiro deles dizia respeito à disciplina dos requisitos para o gozo de imunidades pelas

entidades de assistência social, das entidades beneficentes e filantrópicas. É interessante notar

que este tema já vinha sendo discutido quando da votação dos projetos que originaram as leis

nº 9.249/95 e 9.532/97, ocasião em que a disciplina fiscal proposta pelo Governo Federal

enfrentou considerável oposição por diversos segmentos políticos. Pois bem, o tema estava

novamente na pauta para discussão política. O segundo ponto consistia na modificação do

critério quantitativo da hipótese de incidência do imposto de renda. O terceiro ponto tratava

da previsão de normas antielisivas no Código Tributário Nacional. O quarto, por sua vez,

tratava de medidas judiciais em matéria tributária.

De forma mais detalhada, as alterações que o projeto de lei complementar visava

implementar eram: (i) ampliação do campo de incidência do imposto de renda que passaria a

incidir sobre “receitas” para permitir a criação de um “imposto de renda mínimo”; (ii)

disciplina, no plano da legislação complementar, dos requisitos para o reconhecimento de

imunidades das entidades presentes no artigo 150, inciso VI, alínea c, da C.F.; (iii)

aperfeiçoamento das medidas administrativas e, sobretudo, judiciais de proteção ao crédito

tributário; (iv) previsão legal da norma geral antielisiva (combate a planejamentos tributários);

e, por fim, (v) a criação de dispositivo legal que permitiria que, em relação aos lucros

auferidos no exterior, a lei estabelecesse as condições e o momento em que se daria a sua

disponibilidade, para fins de incidência do imposto de renda (inserção do §2º ao artigo 43 do

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CTN). É importante ressaltar que este último dispositivo foi visto, pelo relator do projeto de

lei complementar – Dep. Antônio Cambraia (PSDB – CE) –, como uma norma antielisão

fiscal, de modo que, sempre que for feita menção a “normas antielisivas”, o presente trabalho

estará se referindo não apenas ao parágrafo único do artigo 116 do CTN como também ao §2º

do artigo 43.

A expectativa que se tinha em relação à aprovação do Projeto de Lei Complementar

nº 77/99 era o aumento indireto da arrecadação tributária através do aperfeiçoamento dos

meios de controle e de fiscalização da Secretaria da Receita Federal do Brasil sobre os fatos

geradores e os sujeitos passivos. O objetivo era coibir técnicas de elisão fiscal envolvendo

planejamentos tributários por meio das quais o sujeito passivo adotava estratégias negociais

voltadas unicamente a evitar total ou parcialmente a ocorrência do fato gerador. Daí a

centralidade das normas antielisivas para esta reforma do Código Tributário Nacional. Em

relação a este tema específico, confira-se, abaixo, um trecho do pronunciamento do Dep.

Antônio Cambraia no relatório da Comissão de Finanças e Tributação sobre o projeto de lei

complementar ora tratado:

O projeto em análise, por tratar de normas gerais do Direito Tributário, não trará

diretamente aumento ou diminuição da receita pública, mas, indiretamente, deverá

produzir crescimento na arrecadação tributária em decorrência de aperfeiçoamentos

e acréscimos propostos, que deverão provocar redução da evasão fiscal, atualmente

existente, tanto sob a forma de elisão, quanto de sonegação de tributos. 136

Em relação à importância da temática da elisão fiscal para o momento histórico no

qual foi encaminhado o projeto de lei complementar pela Presidência da República para

deliberação pelo Congresso Nacional, havia uma clara percepção de que o CTN não estava

suficientemente instrumentalizado para o seu combate. Veja-se o trecho abaixo do Parecer nº

1.257 da Comissão de Assuntos Econômicos cujo relator era o Senador Romero Jucá:

136 É curioso notar que muitos dos deputados que se pronunciaram sobre a temática da elisão fiscal, tanto no

presente projeto de lei complementar quanto nos projetos de lei anteriormente analisados que deram origem às

Leis nº 9.249/95 e 9.532/97, cometeram a imprecisão conceitual de tratar a elisão fiscal ora como subespécie de

evasão fiscal ora como conceito idêntico. Talvez não fosse de se esperar elevada precisão conceitual dos nossos

congressistas, mas o fato é que a elisão fiscal era vista como uma forma de prática do ilícito penal e tributário da

evasão fiscal. Tal “confusão” não estava livre de consequências na medida em que se tornava um forte elemento

de convencimento contra o planejamento tributário e inibia que questões mais profundas relativas à matéria (e.g.

liberdade do contribuinte na condução dos seus negócios) fossem devidamente discutidas.

Page 94: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

94

Sucede que o Código Tributário Nacional, ainda que seja um fruto das melhores

cabeças de então representa um inestimável progresso em relação à situação

anterior, foi elaborado em um contexto econômico, jurídico e constitucional bastante

distinto do que temos hoje. Seria inevitável que alguns desses dispositivos se

tornassem ultrapassados, reclamando atualização não apenas formal para a letra da

Constituição vigente, mas também substancial para equiparar-se às condições

criadas pela evolução, significativa nas últimas décadas, das práticas e do Direito

Comercial, Financeiro e Internacional.

(...)

Aperfeiçoamento dos mais importantes é o introduzido no artigo 116, que permite à

autoridade fiscal trazer para as malhas da tributação as operações efetuadas com

vício de simulação. Trata-se, no caso, de coibir o que em direito se denomina de

abuso de forma jurídica.

Após a submissão do projeto de lei complementar à análise do Congresso Nacional,

foram apresentadas 18 emendas que questionaram diversos dispositivos do projeto, de modo

que apenas 2 delas (Emendas nº 8 e 9) questionaram a nova redação que se desejava dar ao

caput artigo 43 do CTN – segundo a qual o fato gerador do imposto de renda passaria a ser a

aquisição de disponibilidade de receita e não de renda ou provento de qualquer natureza –

alegando a sua incontestável inconstitucionalidade.

Note-se que não foi proposta nenhuma emenda que questionasse os novos parágrafos

que seriam incluídos no artigo 43. Não se discutiu, neste sentido, se o objetivo da inserção do

§2º ao artigo 43 seria possibilitar o critério de disponibilização automática dos lucros

auferidos no exterior, bem como do próprio regime de tributação em bases universais,

tampouco se tal fato seria desejável do ponto de vista econômico ou político. A inclusão do

§2º ao artigo 43 passou despercebida no processo legislativo e foi tratada como norma

pertencente ao “pacote” destinado ao combate à elisão fiscal, conforme demonstra o trecho do

relatório do Dep. Antônio Cambraia, exposto na discussão em turno único do projeto na

Câmara dos Deputados:

Observe-se, porém, que a proposição acrescenta dois parágrafos, no art. 43, que

talvez mereça acolhida. Os dois parágrafos objetivariam assumir o papel de norma

antielisiva, ou seja, normas genéricas que pretendem evitar que o contribuinte com

capacidade econômica de pagar o seu imposto dele escape mediante fórmulas

engenhosas de fugir à caracterização do fato gerador do imposto.

A maior parte das emendas foi acatada de forma a amenizar as medidas propostas pelo

Governo Federal e a corrigir inconstitucionalidades “evidentes” do projeto de lei

complementar. Neste sentido, não houve grande embate político para a aprovação do projeto e

para convertê-lo em lei complementar.

Page 95: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

95

A partir da analise do processo legislativo, em especial da discussão em turno único do

projeto na Câmara dos Deputados, é possível encontrar o porquê de o projeto ter sido

aprovado com 98% de apoio na Câmara dos Deputados e 100% no Senado Federal. Tratava-

se de um contexto em que houve uma grande articulação de diversos segmentos políticos para

que o salário mínimo pudesse ser aumentado, à época, para R$ 180,00, acréscimo este

considerado significativo. Os recursos que seriam utilizados para financiar o aumento do

salário mínimo seriam provenientes do ganho de receitas tributárias advindas da sofisticação

das técnicas de fiscalização e de controle de práticas de planejamento tributário as quais

passariam a ser fortemente combatidas pelas autoridades fazendárias. Este movimento de

combate é atualmente constatado a partir da análise da evolução recente da jurisprudência das

cortes administrativas – em especial do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF)

– no sentido de desconsiderar diversas operações estruturadas cuja motivação central advém

de razões puras ou preponderantes de economia fiscal. Veja-se, neste sentido, parte da fala do

Dep. Eduardo Paes (PTB-RJ) na discussão do projeto em turno único na Câmara dos

Deputados:

Parece-me que o Deputado Antônio Cambraia, em seu substitutivo, trata da questão

mais relevante deste projeto, questão que faz parte de um acordo de honra nesta

Casa: a norma que busca viabilizar o aumento do salário mínimo para 180 reais.

O que estamos tentando fazer neste momento, ao aprovarmos o substitutivo do

referido Deputado, é permitir que esta luta, iniciada por diversos partidos, por

diversos parlamentares no início deste ano, possa se concretizar agora. Estaremos

aprovando a norma antielisiva e criando dispositivos que serão regulados por lei –

talvez seja essa a única pequena modificação que faria no substitutivo aprovado pelo

Deputado Antônio Cambraia –, para que, ao instrumentalizar a Receita Federal, a

tentativa de se anular atos ou negócios jurídicos que busquem dissimular o

conhecimento do fato gerador possa ser feita com critério, garantindo os direitos dos

contribuintes. Esta é uma questão básica no País, que já sofre com uma carga

tributária abusiva, com uma carga tributária que inviabiliza boa parte das empresas e

com um processo político que, infelizmente, ainda não nos permitiu a realização da

reforma tributária.

Estamos dando um grande passo para a justiça social, com o aumento do salário

mínimo, instrumentalizando a Receita Federal para acabar com esse absurdo do

planejamento tributário abusivo no País.

Neste contexto, certamente a previsão do §2º ao artigo 43 do CTN – visto, conforme

ressaltamos anteriormente, como norma destinada a combater à elisão fiscal – estava alinhada

com o objetivo de fortalecer as bases arrecadatórias do Governo Federal para permitir o

aumento do salário mínimo. Deve-se esclarecer, no entanto, que não estamos defendendo que

o Governo Federal não deveria reprimir práticas de elisão fiscal. De fato, elas merecem ser

repreendidas quando consideradas abusivas. O fato é que o objetivo do Governo Federal não

Page 96: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

96

era repreender práticas abusivas de planejamento tributário apenas pela questão de justiça

fiscal, mas, principalmente, porque assim seria possível obter o aumento de arrecadação

necessário para financiar o aumento do salário mínimo vigente à época.

Fica claro, portanto, que a inclusão do dispositivo ora tratado ao CTN tinha como

objetivo central possibilitar que o Governo Federal voltasse à sua intenção inicial de instituir

o regime de tributação em bases universais com regra geral de antidiferimento sem incorrer,

segundo o seu ponto de vista, em inconstitucionalidade. Assim, aos olhos da Secretaria da

Receita Federal do Brasil, o §2º do artigo 43 do CTN teria excepcionado a norma prevista no

caput do referido artigo 43, ao permitir que a lei estabelecesse o momento em que ocorreria a

disponibilização jurídica e econômica da renda auferida no exterior, ainda que fictamente.

Em entrevista concedida pelo Ex-secretário da Secretaria da Receita Federal do Brasil

que não apenas concebeu o regime brasileiro de tributação em bases universais como também

acompanhou os distintos momentos da sua evolução normativa – Everardo Maciel137

– a

conclusão mencionada acima fica bastante clara. Veja-se, neste sentido um trecho da referida

entrevista:

Nós considerávamos que para poder fazer isto [tributar através do critério da

disponibilização automática] seria necessária uma mudança no Código Tributário

Nacional. Então foi um recuo estratégico. Então nós cuidamos de fazer essa

alteração no CTN para só depois trazer essa norma de volta ao direito positivo.

(...)

Quando nós regressamos à questão da disponibilidade é porque nós observamos que

era necessária a alteração do CTN. Fizemos a alteração e depois voltamos porque

observamos que faltava amparo legal ao critério da disponibilização automática. Foi

um “zig-zag” decorrente de uma revisão porque achávamos que faltava amparo legal

em relação a este ponto.

Como se pode observar a partir da leitura do trecho reproduzido acima, a volta à regra

de diferimento foi um “recuo estratégico” por parte do Poder Executivo que estava receoso

quanto à validade jurídica do regime proposto nos moldes previstos pela Lei nº 9.249/95 sem

que houvesse uma alteração legislativa no CTN. Por esta razão, o Poder Executivo tinha a

forte crença de que a alteração feita no artigo 43 do CTN teria criado as condições jurídicas

necessárias para acolher o regime inicialmente proposto no direito positivo, permitindo-se que

a lei estabelecesse livremente o momento em que ocorreria a disponibilidade quando se

137

Entrevista realizada com Everardo Maciel, através de contato telefônico, no dia 13/12/2011. O entrevistado

autorizou a utilização da entrevista para os fins da presente pesquisa e permitiu a menção ao seu nome.

Page 97: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

97

tratasse de lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior, sem incorrer em

inconstitucionalidade.

Ademais, a análise do processo legislativo demonstra que a sofisticação das técnicas

de combate à elisão fiscal representou uma alternativa para aumentar a arrecadação tributária

sem que, para tanto, se incorresse no mesmo custo político da previsão legislativa de novos

tributos ou da majoração da sua base de cálculo ou alíquota (elementos quantitativos da

hipótese de incidência). Esta é uma tendência que pode ser observada desde o final da década

de 1990 até os dias atuais. O aumento da arrecadação tributária passou a ser pautada muito

mais no sucesso da fiscalização e do controle das autoridades fiscais do que na criação de

novos tributos ou na sua majoração.

2.2.5.2. Conclusões Parciais – Lei Complementar nº 104/2001

Em relação às normas de tributação de lucros auferidos no exterior, a análise do

processo legislativo da Lei Complementar nº 104/2001 permite chegar a duas importantes

conclusões parciais:

Primeira: O grande objetivo buscado pela Lei Complementar nº 104/2001 foi a

introdução das normas antielisivas (art. 43, §2º e art. 116, parágrafo único) com a finalidade

de desconsiderar atos praticados pelos contribuintes que tivessem como finalidade única ou

preponderante a economia tributária (planejamentos fiscais).

Segunda: O Poder Executivo, em especial a Secretaria da Receita Federal do Brasil,

tinha a forte crença de que a inclusão do §2º ao artigo 43 do CTN criaria o suporte jurídico

necessário para que a regra geral de antidiferimento aplicável à tributação em bases universais

das pessoas jurídicas, nos moldes inicialmente propostos pelos artigos 25 a 27 da Lei nº

9.249/95, fosse validamente reintroduzida no ordenamento jurídico nacional. Assim, aos

olhos das autoridades fiscais, o §2º do artigo 43 deveria ser interpretado como uma “exceção”

à regra de disponibilização econômica ou jurídica prevista no seu caput e não de forma

condicionada ao seu mandamento normativo.

Terceira: O objetivo da alteração do CTN foi fortalecer as bases de arrecadação

tributária indiretamente – ou seja, não diretamente através da majoração de tributos vigentes

Page 98: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

98

ou da criação de novas espécies tributárias – para que políticas públicas específicas e

imediatas fossem concretizadas (aumento do salário mínimo).

A seguir, será analisada a Medida Provisória nº 2.158-35/2001 que alterou

sensivelmente o regime jurídico em vigor desde a vigência da Lei nº 9.532/97, demarcando a

retomada da intenção governamental em instituir um regime de tributação universal nos

moldes inicialmente propostos pela Lei nº 9.249/95.

2.2.6. 6º Momento: a Medida Provisória nº 2.158-35/2001

2.2.6.1. O processo legislativo

A Medida Provisória nº 2.158-35/2001, juntamente com a Instrução Normativa SRF nº

213/2002 que a regulamentou, marcaram o último marco legislativo na trajetória da evolução

normativa da sistemática brasileira de tributação de lucros auferidos no exterior. A referida

versão da medida provisória é fruto da sua última reedição, tendo a sua vigência sido

prorrogada até que medida provisória ulterior venha a revogá-la expressamente ou até

deliberação definitiva do Congresso Nacional, nos termos previstos pelo artigo 2º da Emenda

Constitucional nº 32, o que, até hoje, não aconteceu.

As versões anteriores da medida provisória vinham promovendo alterações gerais em

matéria tributária federal com uma ênfase maior na legislação de PIS e COFINS na

sistemática cumulativa (Lei nº 9.718/98).

A retomada do objetivo do Governo Federal em instituir o regime de tributação

universal com base em um critério de disponibilização ficta (automática), nos moldes

previstos inicialmente pela Lei nº 9.249/95, foi atingido através da inserção do artigo 74 da

MP nº 2.158-35/2001 (art. 73 conforme consta da edição anteriormente publicada da MP)

cujo texto legal dispôs que os lucros auferidos no exterior seriam considerados

disponibilizados na data do balanço em que tivessem sido apurados (31 de dezembro de cada

ano) para a controladora ou coligada no Brasil. Além disso, em seu parágrafo único, previu o

dispositivo que os lucros apurados até 31 de dezembro de 2001 seriam considerados

Page 99: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

99

disponibilizados em 31 de dezembro de 2002. Confira-se o artigo 74 da Medida Provisória nº

2.158-35/2001 cuja redação transcrevemos abaixo:

Art. 74. Para fim de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da

CSLL, nos termos do art. 25 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e do art.

21 desta Medida Provisória, os lucros auferidos por controlada ou coligada no

exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no

Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento.

Parágrafo único. Os lucros apurados por controlada ou coligada no exterior até 31

de dezembro de 2001 serão considerados disponibilizados em 31 de dezembro de

2002, salvo se ocorrida, antes desta data, qualquer das hipóteses de disponibilização

previstas na legislação em vigor.

Após a publicação da Medida Provisória, foram apresentados diversos

questionamentos quanto à validade jurídica tanto do critério de disponibilização adotado pelo

caput do artigo 74 quanto do critério adotado pelo seu parágrafo único. Tais questionamentos

foram levantados – e levados ao Poder Judiciário para discussão – por contribuintes cujo

interesse principal era diferir a tributação brasileira incidente sobre rendas auferidas no

exterior até o momento em que eles fossem efetivamente disponibilizados. Estes

questionamentos demarcam o início de uma luta de interesses entre fisco e contribuintes que

está sendo travada no Poder Judiciário até o presente momento.

Essa luta de interesses ensejou o surgimento de linhas de entendimento acadêmico

opostas das quais trataremos no capítulo 4. Por ora, adiantamos que o argumento apresentado

pelos contribuintes a favor da inconstitucionalidade do art. 74 da MP nº 2.158-35/2001 é no

sentido de que tanto o seu caput quanto o seu parágrafo único haviam se respaldado em

critérios de disponibilização por ficção legal, o que não corresponde à efetiva disponibilização

econômica ou jurídica da renda, conforme exige o caput do artigo 43 do CTN.

Vale ressaltar que a afronta à Constituição Federal se dá na medida em que a própria

carta de direitos delegou à lei complementar a atribuição de “estabelecer normas gerais em

matéria de legislação tributária, em especial, a definição de tributos e de suas espécies, bem

como, em relação aos impostos discriminados na Constituição, a dos respectivos fatos

geradores, bases de cálculo e contribuintes”. Esta tarefa havia sido cumprida pelo CTN – lei

formalmente ordinária que foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 como sendo

materialmente lei complementar – por delegação constitucional. Neste sentido, a afronta ao

CTN implica não apenas o desrespeito à norma prevista em lei complementar como,

sobretudo, a afronta ao conteúdo nuclear mínimo de renda previsto na Constituição Federal

(art. 153, inciso III). Segundo esta linha, o §2º do artigo 43 não teria legitimado que a lei

Page 100: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

100

previsse o momento da disponibilização em etapa anterior à sua efetiva disponibilização

jurídica ou econômica, tão somente em etapa posterior, o que resultaria na sua interpretação

harmoniosa com o disposto no caput. Neste sentido, o artigo 74 da MP 2.158-35/2001 seria

inconstitucional e ao §2º do artigo 43 do CTN deveria ser dada uma leitura conforme a

Constituição Federal.

Outro aspecto importante da referida medida provisória é que ela previu, através do

artigo 21, a hipótese de incidência de CSLL sobre o lucro apurado no exterior bem como

possibilitou a compensação do crédito relativo ao imposto pago no exterior com o saldo a

pagar da CSLL devida caso o referido crédito ultrapassasse o valor do débito de IRPJ devido

no Brasil. É bem verdade que a hipótese de incidência da CSLL e o referido direito à

compensação já se encontravam previstos no ordenamento jurídico desde a publicação da MP

nº 1.858-6 (art. 19), não se podendo cogitar da sua incidência antes da vigência da referida

medida provisória por ausência de previsão legal para tanto. Abaixo, encontra-se reproduzido

o teor do artigo 21 da MP 2.158-35/2001:

Art. 21. Os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior sujeitam-

se à incidência da CSLL, observadas as normas de tributação universal de que

tratam os arts. 25 a 27 da Lei nº 9.249, de 1995, os arts. 15 a 17 da Lei nº 9.430, de

1996, e o art. 1o da Lei nº 9.532, de 1997.

Parágrafo único. O saldo do imposto de renda pago no exterior, que exceder o valor

compensável com o imposto de renda devido no Brasil, poderá ser compensado com

a CSLL devida em virtude da adição, à sua base de cálculo, dos lucros oriundos do

exterior, até o limite acrescido em decorrência dessa adição.

Em relação ao diploma legal ora analisado, não há um processo legislativo

formalizado justamente por se tratar de uma medida provisória e, portanto, por não ter sido

objeto de apreciação pelo Congresso Nacional. Tal fato dificulta uma análise com o mesmo

grau de profundidade como aquela adotada em relação aos diplomas legais tratados

anteriormente. A única justificativa formal encontrada para a “retomada” do objetivo de se

coibir o diferimento na sistemática de tributação em bases universais da pessoa jurídica,

conforme originalmente previsto na Lei nº 9.249/95, foi localizada em um comunicado do

Ministro da Fazenda Pedro Malan ao Presidente da República Fernando Henrique Cardoso

que justificou as alterações feitas na legislação tributária. Abaixo, por oportuno,

transcrevemos um trecho do comunicado explicativo referente às alterações propostas para o

regime de tributação em bases universais:

Page 101: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

101

A lei complementar nº 104, de 2001, alterou também o art. 43 do CTN, o qual, em

seu §2º, estabelece que, na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do

exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará a sua

disponibilidade, para fins de incidência do imposto de renda. Assim, o art. 73 [art.

74 na redação da última versão da MP nº 2.158-35/2001] estabelece que a

disponibilização dos lucros auferidos por controladas ou coligadas no exterior dar-

se-á, para fins de incidência do imposto de renda e da contribuição social sobre o

lucro líquido na controladora ou coligada no País, na data do balanço em que haja

sido apurado.

Confirma-se, a partir da análise do trecho reproduzido acima, a crença do Governo

Federal de que a introdução do §2º ao artigo 43 do CTN teria criado as condições jurídicas

necessárias para a válida previsão legal do regime de tributação em bases universais com uma

regra geral de antidiferimento, nos moldes inicialmente propostos pelos artigos 25 a 27 da Lei

nº 9.249/95.

Posteriormente à edição da medida provisória, a Instrução Normativa SRF nº 213/2002

disciplinou a sistemática de tributação universal em cumprimento à determinação normativa

prevista no artigo 74 da MP 2.158-35/2001 que delegou ao regulamento a tarefa de disciplinar

a forma e o momento em que se daria a inclusão dos lucros, rendimentos e ganhos de capital

auferidos no exterior na determinação do lucro real apurado no Brasil. A referida Instrução

Normativa permanece em vigor até os dias de hoje. A seguir, analisaremos algumas das suas

características mais importantes tendo-se em vista os propósitos centrais deste trabalho.

2.2.6.2. Conclusões Parciais – Medida Provisória nº 2.158-35/2001

A única conclusão que se pode extrair a partir da análise do escasso material relativo à

Medida Provisória nº 2.158-35/2001 é que a norma disposta no artigo 74 segue a tendência

evidenciada na Lei Complementar nº 104/2001 de ampliação da arrecadação tributária através

de normas de natureza antielisiva.

No caso, há fortes indícios de que a Lei Complementar nº 104, ao inserir o §2º ao artigo

43 do CTN, buscou criar as condições jurídicas necessárias à retomada da sistemática de

tributação universal com base em uma regra de antidiferimento ampla, conforme prevista

originalmente pela Lei nº 9.249/95, de modo a evitar questionamentos futuros quanto à sua

Page 102: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

102

constitucionalidade. Não obstante o esforço legislativo, atualmente a constitucionalidade do

artigo 74 da MP está sendo questionada junto ao STF.

2.2.7. 7º Momento: a Instrução Normativa SRF nº 213/2002

Há alguns aspectos que merecem atenção em relação à Instrução Normativa nº

213/2002 que regulamentou o regime jurídico de tributação em bases universais, em

cumprimento à determinação normativa prevista expressamente no artigo 74 da MP nº 2.158-

35/2001.

O primeiro aspecto diz respeito ao momento no qual os lucros, rendimentos e ganhos

de capital auferidos no exterior são considerados disponibilizados para fins de tributários.

Seguindo a norma disposta no artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001, o artigo 2º da Instrução

Normativa previu que os referidos lucros, rendimentos e ganhos de capital deveriam ser

incluídos na base de cálculo do IRPJ (lucro real) e da CSLL no balanço levantado em 31 de

dezembro do ano que tiverem sido apurados.

Em contraste com o tratamento atribuído pela Instrução Normativa nº 38/1996, a

presente instrução não condicionou a sua inclusão à efetiva disponibilização econômica ou

jurídica da renda. No entanto, as autoridades fazendárias tinham a forte crença de que o

regime de tributação de lucros auferidos no exterior inaugurado pelo artigo 74 da MP nº

2.158-35/2001 possuía a sua validade fortemente respaldada pelo §2º do artigo 43 do CTN.

Tal fato justifica a mudança de orientação adotada pelas autoridades fazendárias quanto à

possibilidade de a lei vir a estabelecer o momento em que haveria a disponibilização para fins

de incidência do IRPJ e da CSLL.

O segundo aspecto importante se refere à manutenção da mesma orientação que havia

prevalecido desde a votação da Lei nº 9.249/95 relativa à impossibilidade de compensação

dos prejuízos incorridos no exterior com os lucros apurados pela sociedade controladora ou

coligada residente no Brasil. O artigo 4º da instrução normativa ora tratada manteve esta

regra.

O terceiro aspecto é a alteração da regra que havia sido adotada pela Instrução

Normativa nº 38/1996 segundo a qual os ajustes no valor contábil do investimento detido pela

pessoa jurídica no Brasil no exterior – através de sociedades coligadas ou controladas –

Page 103: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

103

deveriam receber tratamento fiscal neutro. Com efeito, o artigo 7º da Instrução Normativa nº

213/2002 rompeu a regra de neutralidade fiscal da contrapartida em conta de resulta dos

ajustes em conta de ativo (ajuste da conta “investimentos”) decorrentes da avaliação dos

investimentos segundo o Método da Equivalência Patrimonial (MEP).

Além disso, não se pode cogitar a aplicação do regime de tributação de lucros

auferidos no exterior com a regra geral de antidiferimento – nos moldes previstos pelos

artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95, artigo 74 da MP 2.158-35 e pela IN SRF nº 213/2002 – às

pessoas jurídicas que não estejam obrigadas a apurar o valor dos seus investimentos pelo

MEP. Aqueles que não estiverem sujeitos à avaliação dos seus investimentos através do

método da equivalência patrimonial devem pagar o imposto sobre os lucros auferidos no

exterior somente no momento em que eles forem disponibilizados (regime de tributação de

lucros auferidos no exterior com a regra geral de diferimento). O capítulo 4 analisará o MEP

em maior profundidade.

Por fim, o quarto aspecto diz respeito à reintrodução no ordenamento jurídico das

mesmas hipóteses de equiparação à disponibilização previstas anteriormente na IN SRF nº

38/1996 e que, a nosso ver, haviam sido tacitamente revogadas pelo artigo 1º da Lei nº

9.532/97. As referidas hipóteses encontram-se previstas nos §§ 1º, 2º, 3º, 5º e 6º do artigo 2º

da instrução normativa ora comentada.

A Instrução Normativa nº 213/2002 representou a concretização da intenção

inicialmente pretendida pelas autoridades fazendárias desde a publicação da Lei nº 9.249/95.

A referida instrução permanece em plena vigência até os dias de hoje.

2.3. Quadro-resumo dos 7 momentos

Com o objetivo de sintetizar o percurso normativo narrado até o presente momento,

optamos por elaborar um quadro-resumo em que cada momento que caracterizou a evolução

do regime jurídico de tributação em bases universais da pessoa jurídica (i) está relacionado ao

diploma normativo correspondente (ii), aos critérios normativos da hipótese de incidência

tributária contida na regra matriz (iii) e à conseqüência prática decorrente da sua aplicação

(iv).

Page 104: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

104

Momento

(i)

Diploma

Normativo (ii) Critério Normativo (iii) Consequência (iv)

Territorialidade

(sem diploma

específico)

Não há critérios normativos que possibilitem a

tributação da renda da pessoa jurídica em bases

universais

Tributação em bases

territoriais

2º Lei nº 9.249/1995

CM: auferir lucro, rendimento e ganho de

capital por coligada ou controlada no exterior

CP: sociedade controladora/coligada residente

no Brasil

CT: em 31 de dezembro de cada ano

CE: Exterior

Tributação em bases

universais com

disponibilização

automática

(regra de

antidiferimento)

3º IN SRF nº

38/1996

CM: auferir lucro, rendimento e ganho de

capital por coligada ou controlada no exterior

CP: sociedade controladora/coligada residente

no Brasil

CT: em 31 de dezembro do ano em que houver

a disponibilização econômica ou jurídica dos

lucros, rendimentos e ganhos de capital

CE: Exterior

Tributação em bases

universais condicionada

à disponibilização

econômica ou jurídica

(regra de diferimento)

4º Lei nº 9.532/1997

CM: auferir lucro, rendimento e ganho de

capital por coligada ou controlada no exterior

CP: sociedade controladora/coligada residente

no Brasil

CT: em 31 de dezembro do ano em que houver

a disponibilização econômica ou jurídica dos

lucros, rendimentos e ganhos de capital

CE: Exterior

Tributação em bases

universais condicionada

à disponibilização

econômica ou jurídica

(regra de diferimento)

5º LC nº 104/2001

CM: auferir lucro, rendimento e ganho de

capital por coligada ou controlada no exterior

CP: sociedade controladora/coligada residente

no Brasil

CT: momento em que a lei dispuser que se dará

a disponibilidade daquela renda

CE: Exterior

Introdução do §2º ao

artigo 43 do CTN

intenção de atribuir

validade jurídica ao

critério normativo

vigente no 2º momento

6º MP nº 2.158-

35/2001

CM: auferir lucro, rendimento e ganho de

capital por coligada ou controlada no exterior

nos termos do artigo 25 da Lei nº 9.249/95

CP: sociedade controladora/coligada residente

no Brasil

CT¹: data do balanço na qual os lucros,

rendimentos e ganhos de capital tiverem sido

apurados, na forma do regulamento

CT²: para os lucros apurados até 31 de

dezembro de 2001, os lucros serão considerados

disponibilizados até 31 de dezembro de 2002,

salvo se houver qualquer hipótese de

disponibilização anteriormente.

CE: Exterior

Tributação em bases

universais com

disponibilização

automática

(regra de

antidiferimento)

7º IN SRF nº

213/2002

CM: auferir lucro, rendimento e ganho de

capital por coligada ou controlada no exterior

CP: sociedade controladora/coligada residente

no Brasil

CT¹: data do balanço na qual os lucros,

rendimentos e ganhos de capital tiverem sido

apurados

CT²: para os lucros apurados até 31 de

dezembro de 2001, os lucros serão considerados

Tributação em bases

universais com

disponibilização

automática

(regra de

antidiferimento)

Page 105: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

105

disponibilizados até 31 de dezembro de 2002,

salvo se houver qualquer hipótese de

disponibilização anteriormente.

CE: Exterior

Item (iii): CT é o critério temporal, CM é critério material, CP é o critério pessoal e CE é o critério espacial.

Note-se que a primeira alteração, que ocorreu no decorrer da evolução da sistemática

da tributação de lucros auferidos no exterior, recaiu sobre o critério espacial que passou da

territorialidade para a universalidade dos rendimentos auferidos por contribuintes residentes

no Brasil – o elemento de conexão passou a ser a residência e não mais, tão somente, a fonte

produtora – do primeiro momento para o segundo momento.

A partir do segundo momento, o principal critério normativo que passou a ser alterado

foi o critério temporal e é em torno dele que estão posicionadas todas as críticas atuais quanto

à constitucionalidade do regime. O critério temporal é também determinante na qualificação

do regime como de diferimento da tributação ou de antidiferimento da tributação da jurisdição

fiscal em que reside a pessoa jurídica investidora (no caso, o Brasil).

2.4. Afinal, por que o regime brasileiro é diferente?

Em vários momentos do presente trabalho, afirmou-se que o regime brasileiro se

distancia do modelo de regime de transparência fiscal internacional adotado

internacionalmente que oscila entre uma abordagem mais transacional (seletiva em função do

tipo de rendimento) e uma abordagem mais jurisdicional (seletiva em função da origem do

rendimento).

Apesar de a análise do processo legislativo ter demonstrado idiossincrasias existentes

entre as justificativas que foram apresentadas como motivação para a criação do regime de

tributação em bases universais no direito brasileiro – veja-se, por exemplo, a exposição de

motivos da Lei nº 9.249/95 – e o desenho do regime que resultou após a sua aprovação final

pela MP nº 2.158-35/2001, as razões identificadas no processo legislativo para justificá-las

foram, tão somente, de natureza arrecadatória (compensação da redução da alíquota do IRPJ e

financiamento do aumento do salário mínimo). Diante deste diagnóstico, é de fundamental

Page 106: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

106

importância que se faça uma investigação empírica mais profunda sobre o tema. A questão

que se coloca aqui é: Por que o regime brasileiro é diferente da prática mundial?

Para responder esta pergunta, utilizamos entrevistas feitas com autoridades públicas

que ocupavam cargos elevados na Secretaria da Receita Federal do Brasil na época da criação

do regime e que tiveram participação na concepção e na delimitação dos contornos do regime

tributário. Abaixo serão expostas as duas hipóteses centrais que foram obtidas ao longo das

entrevistas realizadas para o presente trabalho138

.

2.4.1. A primeira hipótese

A primeira hipótese de resposta para a pergunta proposta surgiu a partir da entrevista

concedida por Everardo Maciel – secretário da Secretaria da Receita Federal do Brasil que

concebeu o regime de tributação em bases universais das pessoas jurídicas e acompanhou

cada um dos momentos da sua evolução normativa, conforme dito anteriormente – quando

questionado sobre as razões que o teriam levado a propor um regime de tributação com uma

regra de antidiferimento tão abrangente ao invés de seguir o modelo adotado pela maior parte

dos países. Veja-se, abaixo, o trecho da entrevista relativo a este questionamento:

Entrevistador: Mas Sr. Everardo, a maior parte dos países que optam por se utilizar

do critério da disponibilização automática, ao tributar a renda mundial, o aplicam

apenas em relação a rendimentos passivos em paraísos fiscais, excluindo do seu

escopo de incidência os rendimentos ativos que denotam nítido propósito negocial.

Há um descompasso do Brasil em relação a estes países. Quais razões justificariam

tal descompasso?

Entrevistado: Veja bem, vamos colocar isso no tempo. As discussões sobre elisão

fiscal vieram bem depois, com a Lei Complementar nº 104/2001, com o parágrafo

único do artigo 116 do CTN que, sendo uma norma de eficácia limitada, ficou

pendente de disciplinamento por uma norma concreta. Fui eu quem introduziu esta

norma e fui eu que tentei disciplinar através da MP nº 66 de agosto de 2002

estabelecendo como uma das hipóteses de caracterização da elisão fiscal a falta de

propósito negocial. Entretanto, era final de Governo e as pessoas não entenderam

direito, dava muito trabalho para conversar, não foi a frente e o dispositivo da MP

não foi aprovado pelo Congresso Nacional, o que gera hoje uma situação de zona

cinzenta. Portanto, vamos colocar as coisas no tempo. Não tributar enquanto não

forem disponibilizados os lucros, desde que haja propósito negocial, só pode ser

visto no contexto de elisão e esse nós não tínhamos ainda.

(...)

138

Ressalte-se, no entanto, que as hipóteses que serão elencadas não excluem que outras, tão ou mais plausíveis,

sejam apresentadas em resposta à pergunta proposta. As duas hipóteses expostas trabalhadas neste estudo foram

identificadas dentro do universo de entrevistas realizadas pelo autor.

Page 107: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

107

Olhe as datas que você verá isso. Foi havendo um amadurecimento dentro da

Receita Federal sobre essas matérias. Infelizmente, depois que eu sai, não avançou.

Fui secretário da RFB durante oito anos. Já fui Ministro da Fazenda também,

momentos em que tive a oportunidade de entrar mais no assunto. Trata-se, portanto,

de uma questão de escalonamento do tempo. Agora, o disciplinamento de vincular a

aplicação da norma antielisiva a institutos tais como a falta de propósito negocial aí

sim permite rediscutir o outro.139

Segundo o trecho da entrevista transcrito acima, a razão que teria determinado o

desenho amplo da regra de antidiferimento do regime de tributação em bases universais teria

sido a sua introdução no direito brasileiro em período anterior aos debates sobre elisão fiscal e

normas antielisivas. Conforme foi demonstrado anteriormente, o regime de transparência

fiscal internacional adotado pela maioria dos países possui natureza antiabuso, sendo uma

norma antielisiva especial (special anti avoidance rule – SAAR). Assim, de acordo com

Everardo Maciel, não havia suficiente maturação do debate brasileiro sobre elisão fiscal razão

pela qual o regime de tributação de lucros auferidos no exterior deixou de assumir contornos

antielisivos o que resultou na aplicação de forma ampla da sua regra antidiferimento, ou seja,

sem seletividade alguma. Veja-se outro trecho da entrevista em que esta conclusão fica muito

clara:

Quando nós regressamos à questão da disponibilidade é porque nós observamos que

era necessária a alteração do CTN. Fizemos a alteração e depois voltamos porque

observamos que faltava amparo legal ao critério da disponibilização automática. Foi

um “zig-zag” decorrente de uma revisão porque achávamos que faltava amparo legal

em relação a este ponto. Muito bem. Mas quando nós estávamos discutindo tudo

isso foi anteriormente às discussões sobre elisão fiscal.

Historicamente, segundo a presente hipótese, os temas foram discutidos em ordem

inversa no Brasil na medida em que a regra de antidiferimento do regime de tributação em

bases universais acabou sendo demasiadamente abrangente porque o próprio debate sobre a

elisão fiscal e as normas antielisivas, que lhe deveria preceder, ocorreu somente em momento

posterior. Em outras palavras, a Secretaria da Receita Federal do Brasil – órgão que concebeu

originalmente o desenho normativo do regime de tributação em bases universais – não se

atentou para o fato de que a função da regra de antidiferimento, inspirado na bem sucedida

139

A Medida Provisória nº 66/2002 visava promover alterações em diversas matérias da legislação tributária

federal (em especial na sistemática da cobrança não cumulativa da contribuição ao PIS e da COFINS). Dentre as

matérias que se buscava alterar, destaca-se a propositura de normas destinadas a regulamentar a aplicação da

norma geral antielisiva prevista no parágrafo único do art. 116 do CTN. Apesar dos esforços do Poder Executivo

em regulamentar a aplicação da norma geral antielisiva através dos artigos 13 a 19 da medida provisória, tais

dispositivos regulamentadores não estavam presentes na Lei nº 10.637/2002, objeto da conversão da MP nº

66/2002. Vale lembrar que muitos segmentos da doutrina sustentam – e com razão a nosso ver – que a norma

geral antielisiva tem a sua eficácia contida uma vez que precisa de lei ordinária que regulamente a sua aplicação,

não sendo possível, portanto, a sua incidência imediata.

Page 108: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

108

experiência internacional do regime de transparência fiscal internacional, deveria ter função

antiabusiva e não puramente arrecadatória.

2.4.2. A segunda hipótese

A segunda hipótese de resposta para a pergunta proposta surgiu a partir da entrevista

que foi concedida para este estudo pelo Marcos Vinícius Neder140

– ex-subsecretário da

Secretaria da Receita Federal do Brasil e ex-coordenador geral de fiscalização – quando lhe

foi pedido para expor o contexto presente no momento em que o regime de tributação em

bases universais foi inicialmente proposto e a sua percepção sobre o regime. Veja-se, no

trecho reproduzido abaixo, o seu depoimento:

Houve no início uma tentativa de se passar para um regime de tributação universal

da renda. O Brasil não tinha muita experiência nisso e fez um sistema parecido, em

alguns aspectos, com o sistema internacional que permitia o diferimento do

reconhecimento da receita, ou seja, só havia tributação no momento em que

efetivamente distribuídos. Isso vigorou por muito tempo, mas o Fisco começou a

perceber que quando se tem o sistema de diferimento com crédito, muitas vezes o

dinheiro acabava não sendo repatriado ou acabava demorando muito.

O sistema ao qual o entrevistado faz menção como sendo “parecido com o sistema

internacional” era o regime sob a égide da Lei nº 9.532/97 que permitia o diferimento da

tributação brasileira até que os lucros, rendimentos e ganhos de capital fossem efetivamente

disponibilizados pela fonte pagadora.

A segunda hipótese, ora tratada, é de que o Brasil adotou uma regra geral ampla que

coibia o diferimento da tributação nacional, não apenas pela relativa “falta de experiência no

assunto” – conforme menciona o entrevistado – como também pelo fato de o sistema de

diferimento estar sujeito à sua ineficácia uma vez que o contribuinte não teria um estímulo

para repatriar os seus lucros se fosse submetê-los à tributação brasileira. Sob o regime de

diferimento, de acordo com o entrevistado, os lucros acabavam ficando alocados no exterior

por um prazo indefinido de tempo, ainda que medidas, como o condicionamento do direito de

compensação do imposto pago no exterior com o imposto devido no Brasil à disponibilização

140

Entrevista realizada com o Sr. Marcos Vinícius Neder, presencialmente em seu escritório em São Paulo, em

02/12/2011. O entrevistado autorizou a utilização da entrevista para os fins da presente pesquisa e permitiu a

menção ao seu nome.

Page 109: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

109

dos lucros no prazo inferior a dois anos, tivessem sido adotadas durante o período em que

vigorou o regime de diferimento (cf. artigo 1º, §4º da Lei nº 9.532/97).

Neste contexto, a passagem do regime de antidiferimento (Lei nº 9.249/95) para o de

diferimento (Lei nº 9.532/97) foi apenas estratégica para que se pudessem evitar eventuais

críticas quanto à validade jurídica do regime. Posteriormente, a volta ao regime de

antidiferimento (MP nº 2.158-35/2001) – cuja validade estava respaldada, aos olhos das

autoridades públicas, na alteração promovida pela Lei Complementar nº 104/2001 no artigo

43 do CTN – representou, sobretudo, o desenho mais eficiente do ponto de vista da

arrecadação tributária, permitindo que os lucros não ficassem alocados no exterior de forma

indefinida no tempo.

2.4.3. Conclusões parciais das duas hipóteses

Observa-se que as duas hipóteses apresentadas acima não são excludentes entre si.

Elas são, na verdade, complementares. Ambas estavam presentes e determinaram o desenho

do regime de tributação em bases universais que se tem hoje.

A partir delas, pode-se chegar a duas conclusões parciais.

Primeira: O debate brasileiro sobre o tema da elisão fiscal e, principalmente, das

normas antielisivas especiais aplicáveis ao direito tributário internacional não estava

suficientemente amadurecido entre os segmentos da Administração Pública – berço da

política tributária –quando o regime brasileiro foi inicialmente concebido. Assim, a falta de

experiência brasileira relativa ao tema pode ter influenciado na adoção de uma regra geral de

antidiferimento demasiadamente ampla quando comparada à experiência de outros países com

regimes de transparência fiscal internacional.

Segunda: O regime de antidiferimento foi uma alternativa mais eficiente do ponto de

vista da arrecadação tributária haja vista o fato de que, durante o período em que prevaleceu o

regime de diferimento, os contribuintes não tinham incentivos suficientes para repatriar os

seus lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior e submetê-los à tributação

brasileira.

Page 110: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

110

2.5. Participação dos grupos de interesse na formulação da política tributária

Além das críticas que já foram apresentadas à formulação da política tributária que

culminou no regime brasileiro de tributação em bases universais das pessoas jurídicas, há uma

crítica adicional que merece especial destaque. Trata-se da ausência de participação dos

principais grupos de interesse afetados no processo de formulação da política tributária, em

especial os contribuintes. Este diagnóstico pode ser obtido através do trecho reproduzido

abaixo da entrevista concedida por Everardo Maciel quando questionado sobre a participação

dos contribuintes no processo de formulação da política tributária ora em análise:

Entrevistador: Sr. Everardo, eu gostaria de lhe fazer uma última pergunta: quando

esta norma foi criada – e mesmo ao longo da sua evolução legislativa – foi

estabelecido algum canal de diálogo com o contribuinte? Ele expressou a sua

opinião?

Entrevistado: Não, isso não é da tradição brasileira. Não é assim que as coisas

acontecem. Agora, seja lá como for, assuntos dessa natureza eram sempre

precedidas de discussões com tributaristas. Inúmeros tributaristas. Todos que você

possa imaginar que eram importantes. Com isso, colhíamos muitas ideias

interessantes. A construção abstrata de uma norma é matéria de criatividade.

A participação dos diversos segmentos interessados poderia enriquecer o debate que

antecedeu a formulação da política tributária através da ponderação dos seus possíveis efeitos

e das metas buscadas pelo Governo Federal no longo prazo. Com isso, o Governo Federal

garantiria, sobretudo, um padrão mais elevado de participação democrática no processo de

formulação de políticas, ganhando, com isso, maior legitimidade. Esta é a razão que orienta a

convocação de audiências públicas antes da formulação de políticas públicas que culminam

em grandes marcos legislativos relativos a diferentes áreas do direito.

Esta é, portanto, uma crítica que se pode fazer ao processo de formulação da política

tributária, relativa ao regime tributário discutido, adotada pelo Brasil. Quanto mais uma

proposta é submetida à análise crítica de grupos de interesse distintos antes da sua aprovação,

maior será a capacidade do formulador de políticas de antecipar possíveis pontos fracos e

críticas que poderiam ser apresentadas. Assim, através deste expediente democrático de

discussão pública ex ante, pode-se evitar, também, um contencioso tributário ex post – como o

que se tem hoje em relação à possível inconstitucionalidade do regime de tributação de lucros

auferidos no exterior – que se arraste durante longos anos e que implique elevados custos

tanto para o Estado quanto para o particular.

Page 111: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

111

2.6. Conclusões da trajetória da evolução normativa do regime de tributação de

lucros auferidos no exterior no direito brasileiro

Desde o momento em que foi apresentado o Projeto de Lei de conversão nº 913 à

Câmara dos Deputados, o Ministério da Fazenda já havia declarado a sua intenção em instituir

um regime jurídico de tributação que fosse capaz de alcançar os lucros auferidos fora das

fronteiras nacionais. Duas razões teriam motivado tal objetivo: (i) a nova conjuntura

macroeconômica interna do Brasil pós-Real; e (ii) a existência de uma orientação

internacional recomendando o uso da transparência fiscal internacional como forma de

proteção da arrecadação tributária interna frente ao fenômeno da competição tributária danosa

no qual os países ou dependências de tributação favorecida e os regimes fiscais privilegiados

assumiram posição central.

O Brasil parece ter seguido o movimento de adoção de normas de transparência fiscal

internacional. No entanto, o desenho do regime brasileiro diferiu sensivelmente da prática

internacional e da própria recomendação do modelo da OCDE na medida em que a sua regra

antidiferimento – operacionalizada através do critério de disponibilização automática dos

lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior – não discriminou o rendimento

nem pela sua natureza (ativo ou passivo), nem pela sua origem (regime fiscal favorecido ou

não). Assim, a regra antidiferimento brasileira desconsidera tanto o transactional approach

quanto o jurisdictional approach que, tradicionalmente, definiu contornos ao regime de

transparência fiscal internacional adotado ao redor do globo.

A possível inadequação do regime inicialmente formulado pelos artigos 25 a 27 da Lei

nº 9.249/95 representou um risco que precisava ser contornado no curto prazo, o que veio a

ocorrer através da publicação da IN SRF nº 38/1996 e da Lei nº 9.532/97. Posteriormente,

com a alteração introduzida pela Lei Complementar nº 104/2001 no artigo 43 do CTN, o

Governo Federal entendeu estarem satisfeitas as condições jurídicas necessárias para a

previsão de uma regra de antidiferimento ampla e irrestrita. Tal intenção veio a ser

concretizada através do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 e com a IN SRF nº 213/2002 que o

regulamentou.

É notável o fato de que houve um aumento significativo da arrecadação tributária no

contexto pós-Real. Esta tendência foi motivada por diferentes fatores políticos e econômicos;

ora buscava-se amenizar a perda de arrecadação federal advinda de crises econômicas, ora

Page 112: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

112

procurava-se arrecadar recursos necessários ao financiamento de políticas específicas de

governo. Em todas essas situações, observa-se que tanto a criação de novas espécies

tributárias quanto a majoração da alíquota das espécies já existentes representavam estratégias

com custo político muito elevado.

Neste sentido, a alternativa política mais viável para aumentar a arrecadação tributária

parece ter sido a instrumentalização das autoridades fiscais com medidas mais sofisticadas de

controle e fiscalização do contribuinte destinada, principalmente, ao combate à prática do

planejamento tributário. Não foi por acaso que o discurso político acabou sendo muito

direcionado no sentido de que seria necessária uma nova postura de combate a tais práticas.

Tal postura estava, por sua vez, muito mais preocupada com o ganho de arrecadação que

adviria do combate à elisão fiscal do que com a dissuasão da prática em si.

Aliada a esta constatação, está a ideia de que o Brasil não possuía longa experiência no

debate sobre elisão fiscal e, principalmente, em normas antielisivas especiais aplicáveis ao

direito tributário internacional quando o regime brasileiro foi inicialmente concebido.

Ademais, uma regra geral de antidiferimento foi uma alternativa mais eficiente e menos

custosa, para o Governo Federal, do ponto de vista da arrecadação tributária.

Apesar do discurso político presente em diversos momentos do processo legislativo

analisado expressar a intenção do Governo Federal de combater práticas de competição

tributária danosa – patrocinada por países ou dependências de tributação favorecida e regimes

fiscais privilegiados – através da adoção do regime de tributação em bases universais, o fato é

que o objetivo buscado era aumentar as bases de arrecadação federal para a concretização de

políticas específicas, do mesmo modo que ocorreu com a introdução da norma geral

antielisiva (parágrafo único do artigo 116 do CTN) no ordenamento jurídico brasileiro.

A regra antidiferimento do regime brasileiro de tributação em bases universais não

possui natureza antielisiva no sentido de coibir apenas o abuso das práticas de elisão fiscal

internacional. De fato, ela coíbe tanto as situações abusivas quanto as não abusivas. Neste

sentido, a análise crítica do processo legislativo leva à conclusão de que, no Brasil, o objetivo

que prevaleceu não foi apenas dissuadir condutas elisivas envolvendo paraísos fiscais, o que

poderia ser feito adotando-se o modelo consagrado pela prática internacional com ganhos

mais reduzidos de arrecadação, mas sim a combinação de duas finalidades: (i) dissuasão; e (ii)

ampliação da arrecadação tributária federal (com ganhos mais generosos advindos da relativa

Page 113: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

113

amplitude da norma quando comparada à prática internacional) para que políticas de natureza

diversa fossem concretizadas.

Outra conclusão que se pode tirar a partir da análise do processo legislativo é que o

debate político é pouco direcionado para a análise da adequação das alterações tributárias à

uma conjuntura macroeconômica, especialmente, frente a uma política industrial ou de

desenvolvimento de empresas em mercados internacionais de longo prazo. Não foi sequer

cogitada a discussão quanto aos impactos da sistemática de tributação em bases universais nas

finanças das empresas de capital nacional, tampouco sobre o processo de internacionalização

produtiva das empresas nacionais.

O debate político pouco preocupado com o impacto das normas de tributação em bases

universais demonstra, sobretudo, pouca articulação política das empresas em relação a esta

temática específica, fato que pode ser justificado, em um primeiro momento, pelo

desconhecimento de que a norma seria introduzida no direito brasileiro e, também, pelo fato

de que, à época, as empresas brasileiras não se encontravam tão preparadas para

internacionalizar parte da sua atividade produtiva como ocorre hoje. Há, neste sentido, a

hipótese de que a articulação política de segmentos privados foi se aprimorando

gradativamente após a publicação da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 em virtude da

importância, cada vez maior, da internacionalização produtiva das empresas de capital

nacional para a conquista de novos mercados, estratégia de expansão da sua atividade

produtiva e, também, de sobrevivência em uma economia globalizada.

Outro ponto a ser levado em consideração é a ausência de debate entre fisco e

contribuinte ao longo do processo de evolução normativa da sistemática de tributação em

bases universais. A análise do processo legislativo e as entrevistas realizadas levam à

conclusão de que as normas não foram o resultado de um processo de construção em que

todos os grupos de interesse envolvidos tiveram direito à participação assegurado, mas sim

uma política tributária que surgiu no interior do Poder Executivo e que recebeu pouca

oposição política pelos grupos de interesse organizados no Congresso Nacional,

especialmente quando outras políticas pontuais – talvez de maior apelo popular, como foi o

caso do aumento do salário mínimo – estavam em jogo e dependiam de recursos para o seu

financiamento.

Page 114: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

114

3. OS EFEITOS DO REGIME BRASILEIRO DE TRIBUTAÇÃO DE LUCROS

AUFERIDOS NO EXTERIOR NA INTERNACIONALIZAÇÃO PRODUTIVA DAS

EMPRESAS DE CAPITAL NACIONAL

3.1. Notas introdutórias

Até o momento, o foco do presente trabalho recaiu sobre o regime de tributação em

bases universais aplicável às pessoas jurídicas. Em um primeiro momento, analisamos a sua

evolução normativa no mundo, dando-se especial atenção para a sua utilização, juntamente

com uma regra de combate ao diferimento da tributação nacional, como norma antielisiva

especial pela experiência internacional cuja finalidade central é o combate à evasão e à elisão

fiscal internacional abusiva. Em um segundo momento, demonstramos a evolução do regime

no direito brasileiro de modo a identificar como os interesses e o contexto histórico

envolvidos condicionaram o seu desenho normativo.

No presente capítulo, o nosso olhar deixará de recair sobre o regime e passará a recair

sobre os seus efeitos econômicos. Neste sentido, optamos por analisar os seus efeitos no

processo de internacionalização produtiva das empresas de capital nacional e na sua

competitividade em mercados externos devido à crescente importância do tema em um

cenário em que as empresas brasileiras se tornam cada vez mais internacionalizadas.

Os problemas econômicos ensejados pelo desenho do regime são o fruto da política

tributária pouco preocupada com os seus efeitos sobre a atividade produtiva nacional.

Conforme visto no capítulo 2, o debate sobre a internacionalização produtiva das empresas de

capital nacional sequer foi abordado ao longo de toda a evolução da política tributária desde a

sua formulação inicial pelo Poder Executivo até a sua aprovação final pelo Congresso

Nacional. Por esta razão, é de grande importância demonstrar que o regime não possui

implicações apenas na esfera jurídica – conforme demonstrado no capítulo 4 –, mas,

sobretudo, no plano da realidade prática (efeitos econômicos).

Este capítulo se dividirá em duas partes. Na primeira parte, serão abordados os

conceitos, as causas e as motivações do fenômeno da internacionalização empresarial. Será

feito, também, um diagnóstico da realidade brasileira relativo ao crescimento expressivo, que

Page 115: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

115

se observou na década de 2000, dos investimentos brasileiros no exterior. Na segunda parte,

serão expostos os resultados da pesquisa empírica feita com empresas nacionais

internacionalizadas de grande porte pertencentes a diferentes setores de atividade econômica,

autoridades fiscais e consultores em matéria fiscal. O objetivo deste capítulo, em especial da

sua segunda parte, é responder as perguntas relativas ao segundo problema que orientou a

presente pesquisa, bem como testar as suas respectivas hipóteses. O objetivo da primeira parte

deste capítulo será introduzir ao leitor o tema da internacionalização empresarial bem como

situá-lo nos seus principais fundamentos teóricos e, com isso, prepará-lo para a análise dos

resultados empíricos demonstrados na segunda parte.

3.2. Premissas conceituais do fenômeno da internacionalização

O tema da internacionalização deve ser analisado sob a perspectiva de um mercado

globalizado compreendido em uma economia aberta em que há um constante fluxo tanto de

entrada de capitais em um determinado país, na forma de investimentos diretos de empresas

transnacionais estrangeiras (inflow foreign direct investments ou inflow FDI), quanto de saída

de capitais, na forma de investimentos diretos das suas empresas no exterior (outflow foreign

direct investment ou outflow FDI).

Como uma economia globalizada pressupõe elevada integração comercial entre os

países e baixos custos de transação de se operar em mercados externos, o que se tem, na

prática, é a simultânea importação e a exportação de capitais por cada um dos países, não

obstante se admita a existência de disparidades – por vezes muito elevadas – entre os fluxos

de entrada e saída de capitais a depender do país considerado. Por esta razão, não faz sentido

falar que os países são “importadores” ou “exportadores” de capital; os países importam e

exportam capitais simultaneamente, porém em diferentes proporções141

.

O termo “internacionalização” é relativamente amplo de modo que ele pode comportar

diferentes significados. Por um lado, tem-se a internacionalização comercial que consiste na

parcela de produção nacional de mercadorias e serviços destinada ao exterior através de

141

Veja-se, neste sentido: ANDRADE, André Martins de. A tributação universal da renda empresarial: uma

proposta de sistematização e uma alternativa inovadora. Belo Horizonte: Fórum, 2008.

Page 116: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

116

exportações comerciais. Esta espécie de internacionalização não requer a realização de

investimentos diretos no exterior, mas, tão somente, de vendas de mercadorias e serviços para

mercados externos. Por outro lado, há a internacionalização produtiva que consiste, segundo

Barreto e Ricupero, “na movimentação internacional de fatores de produção, sendo apenas

necessária que haja uma relação contínua com o exterior” 142

.

Segundo os referidos autores, o conceito de internacionalização não poderia ser

confundido com o de exportações – aqui tratadas como internacionalização comercial – nem

de meras negociações internacionais, só podendo se falar em internacionalização quando há o

deslocamento de fatores de produção através da abertura de uma filial ou subsidiária no

exterior, do estabelecimento de parcerias, de investimentos cruzados entre empresas, de

acordos de cooperação industrial e/ou comercial ou, ainda, da aquisição de empresas já

constituídas no exterior. O conceito de internacionalização adotado por Rubens Ricupero se

confunde com o próprio conceito de internacionalização produtiva adotado para os propósitos

do presente trabalho.

Para outros autores, como Edmund Amann, a internacionalização consiste em um

processo que possui quatro etapas sequenciais distintas: a primeira delas é a exportação de

mercadorias e serviços; a segunda é o estabelecimento de escritórios de representação no

exterior; a terceira é a criação de empresas subsidiárias propriamente no exterior; a quarta, por

fim, é a integração global de todas as operações realizadas pelo grupo econômico143

. Veja-se

que, para o referido autor, a internacionalização comercial seria uma etapa anterior do

processo mais amplo de internacionalização empresarial o qual só se completaria com a

internacionalização produtiva das atividades empresariais e com a subsequente integração de

todas as operações realizadas em todos os pontos do globo pelo conglomerado empresarial.

A literatura econômica possui dois grandes modelos teóricos que identificam as

motivações que levam as empresas a internacionalizarem parte das suas atividades produtivas

e as condições necessárias para tanto.

O primeiro deles foi desenvolvido por Dunning e denomina-se abordagem eclética

(eclectic paradigm). De acordo com a abordagem eclética de Dunning, a principal

142

BARRETO, Fernando Mello e RICUPERO, Rubens. A importância do investimento direto estrangeiro do

Brasil no exterior para o desenvolvimento socioeconômico do país. In: ALMEIDA, André (org,).

Internacionalização de empresas brasileiras: perspectivas e riscos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 22. 143

AMANN, Edmund. Technology, public policy, and the emergence of Brazilian multinationals. In:

BRAINARD, Lael e MARTINEZ-DIAZ, Leonardo (editors). Brazil as an economic superpower? –

Understanding Brazil’s changing role in the global economy. Washington: Brookings Institution Press, 2009, p.

188.

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117

condicionante para que a empresa busque internacionalizar parte dos seus fatores de produção

é possuir uma vantagem de propriedade (firm-specific advantage) que consiste em uma

vantagem comparativa relacionada a seus ativos tangíveis e intangíveis (e.g. propriedade de

marcas, patentes, mão-de-obra qualificada e modelo organizacional diferenciado) que permita

às empresas explorá-las em outros mercados aproveitando-se das suas vantagens de

localização144

. As vantagens de propriedade proporcionam à empresa investidora alta

probabilidade de captura de fração relevante do mercado consumidor destinatário dos

investimentos.

Em relação às motivações que levam à internacionalização produtiva, Dunning indica

que há três motivações centrais: a primeira delas é o acesso a novos mercados (the market-

seeking motive); a segunda delas é a busca por recursos materiais, como matérias-primas

minerais e vegetais, e imateriais, como ideias e habilidades (the resource-seeking motive); e a

terceira delas é o desejo de se alcançar padrões de maior eficiência econômica, através da

busca pela economia de escala através da redução do custo médio unitário de produção de

mercadorias (the efficiency-seeking motive)145

.

Para Iglesias e Veiga, a teoria eclética vai um pouco mais além e coloca o tema da

internacionalização como condicionado não apenas à existência de vantagens de propriedade,

mas também a outras vantagens que não devem ser asseguradas pela empresa, mas sim pelos

países de residência da sociedade investidora e da sociedade investida. Esses outros

condicionantes são definidos de acordo com o contexto econômico e jurídico dos países

envolvidos, o que inclui o grau de desenvolvimento do país, as condições concorrenciais e o

seu marco jurídico. Neste sentido, ao adotar essa visão da teoria eclética, Iglesias e Veiga

colocam especial destaque na importância das regras jurídicas e nas políticas de Estado como

fatores indutores da internacionalização produtiva146

.

No presente trabalho, adotou-se a mesma premissa de Iglesias e Veiga. Neste sentido,

o que se fará adiante neste capítulo é testar a hipótese de que as normas jurídico-tributárias

brasileiras afetam a competitividade das empresas em mercados internacionais. Procuraremos

144

Cf. ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das

empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p. 45-46. 145

Cf. AMANN, Edmund. Technology, public policy, and the emergence of Brazilian multinationals. In:

BRAINARD, Lael e MARTINEZ-DIAZ, Leonardo (editors). Brazil as an economic superpower? –

Understanding Brazil’s changing role in the global economy. Washington: Brookings Institution Press, 2009, p.

189 e 190. 146

IGLESIAS, Roberto e VEIGA, Pedro da Motta. Investimento das firmas brasileiras no exterior: algumas

hipóteses e resultados de uma pesquisa entre exportadores. In: HAMAIS, Carlos A. (org.). O desafio dos

mercados externos: teoria e prática na internacionalização da firma. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, v. II p. 204.

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118

saber, também, em que medida o regime afeta a decisão quanto a internacionalizar parte da

atividade produtiva empresarial.

O segundo modelo teórico é denominado de modelo comportamentalista e vem sendo

desenvolvido nas últimas duas décadas por diversos autores que estão engajados na

explicação do comportamento usado pelas firmas para se inserirem no mercado internacional

no contexto da globalização. De modo geral, os autores de modelos comportamentalistas

afirmam que a internacionalização produtiva das firmas é o resultado de uma sequência – um

processo – em que a empresa reduz incertezas em relação ao mercado externo o que lhe

permite, portanto, comprometer recursos para se internacionalizar147

. Este modelo teórico não

está livre de críticas, uma vez que nem sempre a internacionalização é fruto de uma sequência

de medidas que culminam na transferência de fatores de produção ao exterior.

Apesar desta possível crítica, o fato é que a maioria das empresas exportadoras faz

investimentos diretos em subsidiárias no exterior como estratégia destinada a apoiar as

exportações comerciais que elas já vinham fazendo anteriormente através dos seus países de

origem. Seria esta uma condição, conforme demonstramos no modelo de Dunning, para que

se tivesse melhor acesso aos mercados externos.

Ademais, deve-se considerar também que, diante da existência de mercados que não

estão plenamente liberalizados (e.g. o mercado brasileiro nos anos que precederam ao

Governo Collor) ou de produtos ou setores específicos aos quais são impostas barreiras

comerciais e/ou tarifárias protecionistas voltadas a encarecer ou a impedir a sua importação

(e.g. suco de laranja brasileiro no mercado norte-americano), a internacionalização produtiva

torna-se uma condição para a inserção do produto nacional no mercado destinatário em

condições de isonomia de competição.

147

De acordo com Alem e Cavalcanti, há duas linhas teóricas principais relativas aos modelos

comportamentalistas. A primeira delas é o modelo dinâmico de aprendizagem ou Uppsala model e defende que a

empresa se compromete com mercados externos de forma gradual e na medida em que adquire experiência e

conhecimento dos mercados-alvo. A empresa começa internacionalizando as suas atividades para mercados

relativamente próximos em termos de distância cultural, de desenvolvimento industrial, de práticas negociais,

linguísticas, entre outras. Após a conquista desses mercados mais próximos, a empresa começa a se aventurar em

mercados mais distantes, porém, sempre de forma gradual e obedecendo-se estágios evolutivos. O modelo

Uppsala foi refinado posteriormente de modo que ele passou a defender que as empresas optam por se

internacionalizar a partir da ponderação de variáveis que representam oportunidades e ameaças do negócio bem

como os riscos do país de destino (políticos, econômicos, sociais, etc). A segunda linha é o modelo de estágios

ou innovation-related internationalization model. De acordo com este modelo, cada estágio de

internacionalização é alcançado através de inovações desenvolvidas da empresa (e.g. o aperfeiçoamento de

técnicas e processos produtivos) que representam vantagens competitivas e que são, portanto, determinantes no

processo de internacionalização. Confira maiores detalhes em: ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos

Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do

BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p. 47-48.

Page 119: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

119

Iglesias e Veiga realizaram um estudo empírico com uma amostra composta por

empresas de diferentes tamanhos e pertencentes a segmentos diversos da economia e

comprovaram que as empresas de capital nacional que mais investem no exterior são

empresas de grande porte, com histórico antigo de exportações comerciais, com elevado

percentual do seu faturamento oriundo de receitas de exportação, de capital aberto nas bolsas

de valores e cujo controle não está em poder de famílias (salvo se a família for de origem

estrangeira)148

. Este estudo comprova que, ao menos do ponto de vista da realidade

empresarial brasileira, as empresas que mais exportam são aquelas que mais têm propensão a

investir no exterior o que pode, muito provavelmente, indicar que a internacionalização

produtiva é uma estratégia de apoio às exportações brasileiras nos mercados externos. O

cenário brasileiro será tratado no tópico adiante em maiores detalhes. O importante é destacar

que a internacionalização produtiva pode ser utilizada como estratégia complementar – e não

excludente – à internacionalização comercial.

Considerando os modelos teóricos propostos acima, as empresas que se

internacionalizam em virtude da busca por novos mercados – the market-seeking motive –

tendem a esgotar primeiramente o potencial de consumo do mercado local para, apenas após o

seu esgotamento, partir para empreendimentos no exterior. Dessa forma, somente as empresas

que já desenvolveram vantagens competitivas significativas sobre as demais empresas nos

seus mercados locais serão capazes de se arriscarem em mercados externos através da

realização de investimentos diretos. Isso ocorre porque as empresas têm incertezas quanto aos

retornos que elas poderão ter em mercados internacionais já que os riscos de se aventurar em

mercados pouco conhecidos são significativamente elevados, ainda mais se considerarmos

que elas terão um custo a mais de entrada decorrente de serem novas no mercado externo

devendo, portanto, investir elevadas quantias na promoção da marca e na conquista da

clientela local. Neste cenário, a criação de vantagens competitivas pode ser um fator de

minimização dos riscos ou mesmo de maximização da expectativa da rentabilidade futura

esperada de se investir no exterior.

Por outro lado, para as empresas que deslocam parte dos seus fatores de produção para

o exterior devido à necessidade de acesso aos insumos necessários à sua atividade a custos

mais reduzidos – the resource-seeking motive –, a internacionalização produtiva será

148 IGLESIAS, Roberto e VEIGA, Pedro da Motta. Investimento das firmas brasileiras no exterior: algumas

hipóteses e resultados de uma pesquisa entre exportadores. In: HAMAIS, Carlos A. (org.). O desafio dos

mercados externos: teoria e prática na internacionalização da firma. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, v. II, p. 212-

227.

Page 120: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

120

determinante para a continuidade da sua atividade em padrões competitivos tanto no mercado

interno quanto no mercado externo caso as suas concorrentes já tenham acesso a esses

insumos oferecidos a custos inferiores. Há casos, como das empresas que exploram

commodities, em que a exploração das matérias-primas vegetais e minerais depende da

propriedade de fatores de produção nos locais (países) onde elas se encontram.

A desvantagem de ser o “recém-chegado” é apenas uma das desvantagens de se operar

em mercados externos. Cyrino e Penido apontam para outros custos e riscos da

internacionalização produtiva, tais como: (i) os custos crescentes de coordenação e

governança de uma estrutura transnacional com atividade produtiva conduzida por muitos

empregados situados em diferentes pontos do globo; (ii) a desvantagem de ser uma empresa

estrangeira sujeita a todas as diferenças culturais, linguísticas, de práticas negociais e tendo

que se adaptar a uma clientela, até então, pouco conhecida; e (iii) riscos políticos e

econômicos nos mercados externos (e.g. instabilidade econômica, inflação elevada, governos

autoritários, etc)149

.

Além dos benefícios que advém das próprias motivações que levam à

internacionalização produtiva – conforme anteriormente exposto quando da análise da

abordagem eclética de Dunning – devemos chamar atenção para o fato de que operar em

mercados externos fortalece, sobretudo, a posição competitiva da empresa no seu mercado

nacional. A internacionalização traz, portanto, ganhos de competitividade na medida em que

leva as empresas nacionais a “aprenderem a competir no mesmo nível das empresas mais

eficientes do mundo”150

.

Empresas que não se internacionalizam e que mantém a sua participação restrita a

poucos mercados se tornam mais vulneráveis a concorrentes maiores e mais

internacionalizados na medida em que todo o seu faturamento está concentrado e depende da

sua presença em poucos mercados. Logo, se a empresa sofrer forte concorrência em um

desses poucos mercados em que atua, ficará mais vulnerável e, no limite, terá que sair daquele

mercado específico ou poderá, ainda, ser adquirida e incorporada pelas suas concorrentes.

149

CYRINO, Álvaro Bruno e PENIDO, Erika. Benefícios, riscos e resultados do processo de internacionalização

das empresas brasileiras. In: ALMEIDA, André (org,). Internacionalização de empresas brasileiras:

perspectivas e riscos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 101. 150

ALMEIDA, André L. Santos de. A relevância do investimento brasileiro direto no exterior para as empresas e

para a sociedade. In: ALMEIDA, André (org,). Internacionalização de empresas brasileiras: perspectivas e

riscos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 295.

Page 121: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

121

Barreto e Ricupero apontam que, antes mesmo de ser a busca por acesso a mercados

externos, a motivação que leva as empresas a se internacionalizarem é a própria proteção da

sua posição competitiva nos mercados internos, evitando-se, com isso, que elas sejam

excluídas do mercado ou adquiridas por outras empresas. Veja-se o trecho reproduzido abaixo

em que este ponto é ressaltado pelos autores:

É interessante que se tenha sublinhado no texto, como primeiro objetivo, antes de

partir à conquista de mercados de fora, a manutenção do mercado interno, o que é

inteiramente correto e confirma o que anteriormente ficou dito, isto é, em setores

mais competitivos, portanto, mais contestáveis, a escolha foi reduzida a comprar ou

ser comprado. Para enfrentar esse desafio, as empresas brasileiras passaram a buscar

alianças com outras firmas, inclusive estrangeiras, além de instalar unidades no

exterior na forma de escritórios de vendas, assistência técnica, representações

comerciais ou plantas produtivas.151

É importante ressaltar que se a empresa possui subsidiárias nos países das suas

concorrentes ela dissuadirá movimentos mais agressivos nos mercados mais importantes em

que atua e garantirá a sua presença nos mercados consumidores mais importantes antes que as

suas concorrentes criem barreiras à sua entrada152

.

Deve-se chamar atenção também para o potencial benefício de aprendizagem que a

internacionalização produtiva das empresas traz. Ao se expor a mercados externos, a empresa

é exposta a desafios com os quais não estava acostumada a lidar em seu país de origem, tais

como padrões técnicos de qualidade mais elevados, que lhe impõem o grande desafio de se

adaptar rapidamente às condições impostas pelos novos mercados em que passou a atuar.

Além de acumular novos conhecimentos necessários à sua sobrevivência e sucesso em novos

mercados, a empresa também aperfeiçoa as competências já existentes na medida em que ela

testa algumas habilidades previamente adquiridas e as aperfeiçoa, caso isso seja necessário153

.

Isso acontece, principalmente, no quesito competitividade.

Por fim, há diversas estratégias que são utilizadas pelas empresas para a sua inserção

produtiva em novos mercados. Dentre elas, há duas que merecem especial atenção.

151

BARRETO, Fernando Mello e RICUPERO, Rubens. A importância do investimento direto estrangeiro do

Brasil no exterior para o desenvolvimento socioeconômico do país. In: ALMEIDA, André (org,).

Internacionalização de empresas brasileiras: perspectivas e riscos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 24. 152

Cf. CYRINO, Álvaro Bruno e PENIDO, Erika. Benefícios, riscos e resultados do processo de

internacionalização das empresas brasileiras. In: ALMEIDA, André (org,). Internacionalização de empresas

brasileiras: perspectivas e riscos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 85-87. 153

Ibid., p. 95-100.

Page 122: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

122

A primeira estratégia consiste na realização de investimentos diretos no exterior

através da aquisição de empresas ou unidades industriais já existentes no mercado-alvo

seguida da sua incorporação. Neste caso, a empresa investidora já dispõe de todo o fundo de

comércio da empresa adquirida o qual inclui os seus bens tangíveis – tais como a estrutura

industrial, terrenos, máquinas, galpões – e intangíveis – tais como marcas, patentes, desenhos

industriais, etc.

A segunda estratégia consiste na realização de greenfield investments que são

investimentos feitos para a constituição de subsidiárias em novos mercados “partindo-se do

zero”, ou seja, os investimentos contemplam, por exemplo, desde a criação de uma planta

industrial ou uma rede de distribuição até a promoção do nome da marca para conquistar a

clientela local.

No primeiro caso, o “custo de inserção” no novo mercado é mais baixo já que a

empresa ou o estabelecimento empresarial adquirido já contempla, em um primeiro momento,

um conjunto de bens tangíveis organizados para a produção ou distribuição de mercadorias –

ou para a prestação de serviços a depender do ramo da empresa que se internacionaliza – bem

como um conjunto de bens intangíveis que garantem acesso a uma parte da clientela local. No

caso dos investimentos do tipo greenfield, em um primeiro momento, não há nenhum

estabelecimento comercial organizado, tampouco o acesso à clientela local. A subsidiária

criada deverá incorrer em custos para a promoção da sua marca no mercado local até que seja

conquistada parcela significativa da clientela local. Muitas vezes, investimentos são feitos por

um longo período antes que o negócio possa ser lucrativo e autossuficiente. Vale ressaltar que

a nossa opção por analisar apenas duas das estratégias possíveis não exclui outras, tais como a

realização de parcerias e joint ventures com empresas pertencentes a mercados externos.

3.3. Internacionalização produtiva e desenvolvimento nacional

Apesar das inúmeras vantagens demonstradas no item anterior relativas à

internacionalização produtiva, há algumas críticas que lhe são geralmente formuladas pelos

seus opositores. Tais críticas são dirigidas aos efeitos causados pela internacionalização do

ponto de vista do Estado e da sociedade, e não do ponto de vista da empresa em si. Por esta

Page 123: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

123

razão, as críticas que serão enumeradas neste item não negam em momento algum que, de

fato, existem importantes benefícios da internacionalização produtiva para o setor privado.

Através da formulação das críticas que serão expostas aqui, buscamos saber se seria

desejável para um país formular políticas públicas de promoção da internacionalização

produtiva das suas empresas de capital nacional. A pergunta central que norteia esta discussão

é: Em que medida a internacionalização produtiva é capaz de trazer benefícios em termos de

desenvolvimento para o Estado? É importante tê-la em mente ao se analisar as críticas que

serão apresentadas a seguir. Este tópico se destina a enumerar as referidas críticas e a explicar

os fundamentos que lhe dão embasamento ponderando argumentos tanto dos críticos à

internacionalização quanto daqueles que contestam as críticas apresentadas.

A literatura especializada aponta para quatro grandes críticas que são feitas aos efeitos

supostamente negativos causados pela internacionalização produtiva das empresas.

A primeira crítica diz respeito à possibilidade de “exportação” de empregos. Segundo

esta crítica, quando uma empresa de capital nacional se internacionaliza ela deixa de gerar

empregos no seu país de origem e passa a contratar mão de obra nos mercados externos.

Assim, os críticos argumentam que um país que carece de oferta de empregos para a

totalidade da sua população economicamente ativa, não deveria estimular a

internacionalização produtiva das suas empresas, pois, caso o fizesse, estaria estimulando a

criação de novos cargos de emprego no exterior a despeito das necessidades internas do seu

país de origem.

A segunda crítica refere-se ao prejuízo que se tem no balanço de pagamentos do país

de origem dos investimentos. O prejuízo ocorreria na medida em que o investimento no

exterior envolveria a saída de dividas do Brasil (país de origem). Além disso, haveria prejuízo

à balança comercial, pois, segundo alguns críticos, o investimento direto no exterior em

subsidiárias implicaria a redução das suas exportações o que, consequentemente, poderia

reduzir o superávit da sua balança comercial ou até torná-la deficitária.

A terceira crítica está muito relacionada à crítica apontada acima. Trata-se da

possibilidade de redução dos investimentos nacionais caso sejam feitos investimentos no

exterior.

A quarta crítica, por fim, diz respeito ao deslocamento para o exterior de grande

parcela dos fatos geradores – materialidades passíveis de incidência da norma tributária – que

poderiam estar sujeitos aos tributos nacionais incidentes, por exemplo, sobre a renda (e.g.

Page 124: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

124

IRPJ e CSLL), faturamento (e.g. PIS e COFINS) e o consumo (e.g. IPI, ICMS e ISS),

levando, com isso, à redução da arrecadação tributária do país exportador de capitais.

Sob este ponto de vista, pode-se adotar a hipótese plausível de que o regime brasileiro

de tributação de lucros auferidos no exterior foi uma reação ao fenômeno da globalização,

sobretudo, da internacionalização produtiva das empresas. Em outras palavras, a aplicação

extraterritorial da legislação tributária brasileira surgiu como uma forma de garantir a

incidência da norma tributária brasileira sobre fatos ocorridos em outras jurisdições fiscais e,

assim, proteger a arrecadação tributária nacional em vista, principalmente, dos efeitos

ensejados pela globalização (transformação do Estado-nação em Estado-transnacional).

Embora esta lógica vise assegurar a maior eficácia possível à legislação tributária de

um determinado país – finalidade que se torna necessária diante da elevada volatilização da

base cálculo no contexto do Estado-transnacional – este objetivo deve ser devidamente

ponderado com os efeitos causados pela norma tributária no plano prático, de modo que não é

válido ao Estado garantir a sua arrecadação tributária a despeito de quais sejam os efeitos da

norma tributária para os seus contribuintes.

Por outro lado, há autores que questionam até que ponto os argumentos levantados

pelos críticos da internacionalização produtiva procedem. Alem e Cavalcanti sustentam que as

críticas levantadas correspondem a uma análise estática do processo uma vez que, em termos

dinâmicos, a internacionalização produtiva é fundamental para a sobrevivência das empresas

de capital nacional, aumenta a competitividade dos seus países de origem, bem como reduz a

vulnerabilidade externa das empresas transnacionais brasileiras154

.

Os autores questionam, ainda, a primeira crítica apresentada anteriormente ao

defenderem que “a internacionalização pode levar a um crescimento no número de empregos

na economia de origem, o que certamente deixaria de acontecer caso uma empresa não

internacionalizada e enfraquecida pela concorrência internacional viesse a fechar as suas

portas”155

. Eles alegam, ainda, que “é importante rever o enfoque simplista que coloca o trade

off entre o mercado interno e o mercado externo”156

, tendo-se em vista a necessidade de as

empresas se tornarem mais competitivas em nível internacional após a abertura da economia

brasileira no começo da década de 1990, como estratégia de sobrevivência.

154

ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das

empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p. 55. 155

Ibid., p. 55. 156

Ibid., p. 55.

Page 125: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

125

A ideia de que a internacionalização produtiva reduz as exportações feitas pelo país,

afetando, consequentemente, a sua balança comercial, é questionada também. Com efeito,

sustenta-se que, no médio e longo prazo, as exportações feitas pela matriz brasileira à sua

subsidiária estrangeira (comércio intercompany) aumentam significativamente uma vez que a

subsidiária estabelecida no exterior serve como canal de acesso ao mercado local que se

deseja explorar157

. Seguindo-se este raciocínio, se a internacionalização leva ao incremento

das exportações, logo há incremento também das atividades produtivas no Brasil, o que, por

sua vez, compensaria a eventual redução da arrecadação tributária advinda da escolha por

alocar fatores produtivos no exterior.

Os dividendos distribuídos no exterior, após superada a fase de reinvestimento,

também são positivos na medida em que representam a repatriação de divisas que podem ser

reinvestidas na pessoa jurídica controladora ou coligada. Nada impede, a nosso ver, que o

Governo do país de origem dos investimentos regule prazos máximos para que a empresa

repatrie lucros, na forma de dividendos distribuídos, tendo-se em vista o risco da postergação

indefinida no tempo da sua disponibilização, contanto que não o faça de modo a prejudicar

situações em que os lucros seriam reinvestidos, já que, nessas circunstâncias, eles serão

fundamentais para o desenvolvimento e a consolidação da unidade produtiva no exterior.

Procuramos expor, no presente tópico, que a conveniência do estímulo governamental

à internacionalização produtiva é demarcada por uma discussão ideológica, no campo

econômico, entre defensores e opositores de uma economia mais internacionalizada (aberta)

ou fechada, de modo que ela não pode ser tida, de modo absoluto, como sempre contrária ou

sempre favorável ao desenvolvimento nacional.

Não cabe a nós, juristas, nos posicionarmos quanto ao tema. No entanto, para os

propósitos do presente trabalho, podemos concluir que a internacionalização produtiva poderá

ser favorável ao desenvolvimento nacional quando submetida a determinadas condições e

critérios que visem assegurar que dela decorrerão efeitos positivos como, por exemplo, a

promoção das exportações, o aumento do número de empregos e da arrecadação tributária. É

157

Para ilustrar esta hipótese, Alem e Cavalcanti expõem que, nos EUA entre os anos de 1966 e 1987, as

multinacionais mantiveram o seu padrão de exportação no mercado mundial, ao passo em que a participação das

exportações totais do país no mundo caiu um terço. O mesmo ocorreu com a Suécia entre os anos de 1965 e

1990. Além disso, os autores destacam que uma série de países em desenvolvimento conseguiu melhorar sua

performance exportadora em função das atividades orientadas para a exportação das multinacionais nacionais e

das firmas locais ligadas a elas. Confira-se, neste sentido: ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos

Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do

BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p. 58-59.

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126

certo que cabe ao Governo Federal estabelecer critérios para a discriminação das hipóteses em

que a internacionalização produtiva será um objetivo a ser buscado pelo Estado. Voltaremos a

tratar do presente tema no capítulo 4 ao confrontarmos os efeitos do regime com a Ordem

Econômica Constitucional.

3.4. O diagnóstico da internacionalização produtiva no Brasil

As empresas brasileiras de capital nacional estão em um processo crescente de

internacionalização produtiva. Atualmente, o Brasil não é apenas um destinatário de elevados

fluxos de investimentos diretos do exterior como também vem efetuando, sobretudo na última

década, crescentes investimentos diretos no exterior.

Hiratuka e Sarti sustentam que, até o ano de 2004, houve uma elevada assimetria entre

os fluxos de investimentos diretos recebidos do exterior pelo Brasil e de investimentos diretos

realizados no exterior pelo país, já que, até o referido ano, os investimentos recebidos eram

muito superiores aos investimentos realizados158

. A partir de 2004, o Brasil passou a aumentar

significativamente os fluxos de investimentos destinados a mercados externos. No ano de

2006, pela primeira vez na sua história, os fluxos de saída de capitais, na forma de

investimentos diretos realizados no exterior, superaram os fluxos de entrada. Veja-se, neste

sentido, a tabela 1 e o gráfico 1 anexos ao presente trabalho (Anexo A).

A conclusão dos referidos autores pode ser comprovada a partir da análise da tabela 1

na qual se observa que, do total de investimentos diretos realizados – outflow FDI – no

mundo, o Brasil passou de 0,2% no decênio 1990-2000 para 0,9% no quinquênio 2004-2008

fato que representa um crescimento considerável da sua participação no total acumulado de

investimentos. Por outro lado, a participação brasileira no fluxo de investimentos diretos

recebidos do exterior – inflow FDI – passou de 2,4% para 1,9% no mesmo período analisado.

Neste sentido, a relação outflow/inflow FDI permite concluir que, no quinquênio 2004-2008,

para cada US$ 2,00 recebidos, o Brasil investia, em média, US$ 1,00 no exterior. Tais dados

permitem concluir que, de fato, foram reduzidas as assimetrias brasileiras entre inflow e

outflow FDI, mas que o Brasil ainda é um país que importa mais capitais do que exporta.

158

HIRATUKA, Célio e SARTI, Fernando. Investimento direto e internacionalização de empresas brasileiras

no período recente. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Brasília, 2011, p. 21-24.

Page 127: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

127

De fato, o aumento dos investimentos brasileiros no exterior está inserido em um

cenário mais amplo de crescimento da participação dos países em desenvolvimento no total de

investimentos realizados no mundo. A tabela 1 comprova que a participação dos países em

desenvolvimento no total de investimentos realizados no mundo (outflow FDI) saltou de

10,8% no decênio 1990-2000 para 14,4% no quinquênio 2004-2008.

Observando a evolução dos investimentos feitos pelo Brasil no exterior, pode-se

constatar que os investimentos diretos realizados pelas empresas brasileiras no exterior

passaram por fases distintas. De acordo com Barreto e Ricupero, a primeira delas ocorreu no

período compreendido entre 1960 e 1982, momento em que o processo de internacionalização

produtiva estava concentrado fundamentalmente na Petrobrás, em instituições financeiras e

em empresas de engenharia. A segunda fase ocorreu entre 1983 e 1992 no qual empresas de

diferentes portes passaram a investir prioritariamente no Mercosul, aproveitando-se dos

benefícios trazidos pelo Tratado de Assunção.

Durante toda a década de 1990, os investimentos realizados no exterior continuaram

crescendo, porém com grande concentração no Mercosul. Começaram a se destacar algumas

empresas de bens manufaturados, siderurgia, material de transporte e bens intermediários. É

importante ressaltar que, durante o Governo Collor, houve a abertura comercial brasileira

motivada, entre outras razões, pela percepção de que as empresas de capital nacional estavam

muito acomodadas na medida em que não estavam acostumadas a enfrentar a forte

concorrência internacional.

Com a abertura comercial, as pressões competitivas impuseram a necessidade de uma

resposta não só das empresas, mas também dos atores institucionais dos países em

desenvolvimento159

. O desafio era agregar maior eficiência à produção das empresas

nacionais e elevar o seu padrão tecnológico. Diante deste cenário, a internacionalização –

comercial e produtiva – passou a ser vista como uma estratégia para que as grandes empresas

nacionais “passassem a explorar as suas competências centrais com a sinergia entre atividades

nacionais e no exterior e, ao mesmo tempo, permitisse que as economias nacionais

fortalecessem seus setores mais competitivos” 160

.

159

Cf. SILVA, Maria Lussieu da. A inserção internacional das grandes empresas nacionais. In: LAPLANE,

Mariano, COUTINHO Luciano e HIRATUKA, Célio (org.). Internacionalização e desenvolvimento da indústria

no Brasil. São Paulo: Unesp; Campinas, São Paulo: Instituto de economia da UNICAMP, 2003, p. 112. 160

SILVA, Maria Lussieu da. A inserção internacional das grandes empresas nacionais. In: LAPLANE,

Mariano, COUTINHO Luciano e HIRATUKA, Célio (org.). Internacionalização e desenvolvimento da indústria

no Brasil. São Paulo: Unesp; Campinas, São Paulo: Instituto de economia da UNICAMP, 2003, p. 112.

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128

Devido às pressões concorrenciais advindas da abertura da economia no início da

década de 1990, muitas empresas buscaram se organizar em nichos de mercado nos quais a

sua competitividade era significativamente maior face às concorrentes internacionais. Dentre

eles, um dos nichos que mais se destacou foi o das commodities minerais e agrícolas, setor no

qual o Brasil efetuou importantes investimentos até então e desenvolveu, portanto, vantagens

comparativas. Durante os anos 2000, os investimentos realizados por empresas de capital

nacional no exterior aumentaram exponencialmente, porém de forma concentrada em alguns

setores específicos, tais como o setor de commodities. Apesar dos investimentos brasileiros no

exterior terem aumentado ao longo de toda a década de 1990 e no começo dos anos 2000, foi

apenas após o ano de 2004 que eles passaram a ganhar maior expressão161

.

Conforme visto, com a liberalização do mercado nacional no início da década de 1990,

as empresas nacionais foram obrigadas a se internacionalizarem como estratégia de aumento

de eficiência, ganhos de escala e competitividade para enfrentar as grandes empresas

competidoras internacionais que vieram para o Brasil. Porém, atualmente, as motivações que

levam as empresas a internacionalizar parte dos seus fatores de produção é a busca por novos

mercados (market-seeking motive) e o acesso a insumos produtivos (resource-seeking motive).

Este diagnóstico da realidade brasileira foi feito por Ben Ross Schneider no trecho transcrito

abaixo:

O investimento direto no exterior realizado pelas principais empresas brasileiras

realmente decolou depois de 2004 e chegou até mesmo a exceder investimentos

diretos recebidos no ano de 2006, embora os investimentos tenham sido feitos

através de algumas poucas empresas, notavelmente Vale e Petrobrás. O valor

agregado de investimentos feitos pelo Brasil no exterior aumentou de $ 96 bilhões

161

Em 2004, o grande salto no valor de investimentos realizados no exterior deveu-se à aquisição da cervejaria

belga, Interbrew, pelo grupo cervejeiro nacional Ambev por US$ 4,5 bilhões. No ano, o total de investimentos

agregados realizados no exterior foi de US$ 9,8 bilhões. Em 2005, houve a aquisição da empresa Loma Negra

pela construtora brasileira Camargo Corrêa no valor de US$ 1 bilhão. O total de investimentos diretos feitos no

exterior foi menor do que no ano anterior, totalizando US$ 2,5 bilhões. No ano de 2006, pela primeira vez, o

fluxo de investimentos diretos realizados em mercados externos (outflow FDI) superou o valor dos investimentos

diretos recebidos pelo Brasil (inflow FDI), conforme já foi descrito neste trabalho. Naquele ano, destacam-se as

seguintes operações: a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) adquiriu as empresas canadenses Inco e Canico

por US$ 16,7 bilhões e US$ 678 milhões respectivamente; o Banco Itaú adquiriu as filiais brasileira e chilena do

Banco de Boston pelo valor de US$ 2,2 bilhões e US$ 650 milhões; e a Ambev adquiriu a cervejaria Quilmes

pelo valor de U$S 1,2 bilhões. O total de investimentos agregados realizados no exterior, naquele ano, foi de

US$ 28,2 bilhões. Em 2007, o grupo Gerdau promoveu a aquisição de empresas estrangeiras em valor que

ultrapassou a cifra dos US$ 5,6 bilhões, o grupo JBS promoveu aquisições que supereram o valor de US$ 1,7

bilhões, sem contar em diversos investimentos feitos pela Petrobrás, CVRD, Votorantim e Marfrig. O valor

agregado de investimentos feitos foi de aproximadamente US$ 7 bilhões. Em 2008, houve diversas operações de

menor valor que totalizaram o valor de US$ 20,4 bilhões. Confira maiores detalhes em: HIRATUKA, Célio e

SARTI, Fernando. Investimento direto e internacionalização de empresas brasileiras no período recente.

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Brasília, 2011, p. 22.

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129

em 2001 para $112 bilhões em 2005. (...) Em termos de estratégia para

investimentos internacionais, os investimentos realizados pelo Brasil em

empreendimentos produtivos foi predominantemente orientado pela busca de

mercados ou de recursos [insumos produtivos], ao invés de buscar ganhos de

eficiência, como seria mais comum entre manufaturas (Embraer é, claramente, uma

exceção a este padrão geral). Geralmente na América Latina, comparados com os

seus colegas asiáticos que se utilizaram de recursos tecnológicos e capital humano

para a sua expansão internacional, as empresas transnacionais latinas investiram no

exterior como estratégia destinada a enfrentar o processo de liberalização. E, com

exceção de muitos bilhões de dólares em investimentos novos pela Vale e Petrobrás,

quase todos os investimentos realizados no exterior pelo Brasil foram feitos na

forma de aquisições de empresas.162

(Tradução livre)

A partir da análise do trecho reproduzido acima, observamos que a estratégia de

internacionalização seguida pelas empresas nacionais foi pautada muito mais na aquisição de

empresas no exterior do que na realização de investimentos novos (greenfield investments).

Além disso, o perfil de internacionalização das empresas brasileiras seguiu uma lógica diversa

dos demais países em desenvolvimento pertencentes ao leste asiático; enquanto as

transnacionais orientais se internacionalizaram pautadas em vantagens de propriedade como

tecnologia e capacitação humana, no Brasil, salvo algumas poucas exceções, as vantagens de

propriedade estavam voltadas à exploração de commodities, o que requer, em geral, menos

tecnologia e capacitação humana (salvo exceções como é o caso da exploração de petróleo

pela Petrobrás em águas extremamente profundas).

Por fim, uma última característica que deve ser ressaltada do processo de

internacionalização produtiva brasileiro é a destinação dos investimentos. De acordo com

Hiratuka e Sarti (veja-se o gráfico 2 do Anexo A), o principal destino dos investimentos

realizados no exterior pelas empresas de capital brasileiro é a América Latina (46,2%),

seguida da Europa (20,6%), América do Norte (17,3%), Ásia (10,8%), África (4,7%) e

Oceania (0,4%)163

.

162

SCHNEIDER, Ben Ross. Big business in Brazil – leveraging natural endowments and state support for

international expansion. In: BRAINARD, Lael e MARTINEZ-DIAZ, Leonardo (editors). Brazil as an economic

superpower? – Understanding Brazil’s changing role in the global economy. Washington: Brookings Institution

Press, 2009, p. 177. No original: “Outward foreign direct investment (FDI) by leading Brazilian firms really took

off after 2004 and even exceeded inward FDI in 2006, though the bulk of the investment has run through a

handful of firms, notably Vale and Petrobrás. The stock of outward FDI from Brazil grew from $96 billion in

2001 to $112 billion in 2005. (…) In terms of strategies for international investment, Brazilian FDI in productive

ventures has been predominantly market seeking or resource seeking, rather than efficiency seeking, as is more

common among manufacturing firms (Embraer is again the clear exception to this general pattern). More

generally for Latin America, compared to their Asian peers, which leveraged technological prowess and social

capital in their foreign expansion, multilatinas have invested abroad in the basis of a superior ability to manage

the process of economic liberalization. And, with the exception of several billion dollars in Greenfield

investments by Vale and Petrobrás, nearly all the remaining Brazilian FDI has come through acquisitions.” 163

HIRATUKA, Célio e SARTI, Fernando. Investimento direto e internacionalização de empresas brasileiras

no período recente. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Brasília, 2011, p. 32 e 33.

Page 130: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

130

No entanto, os autores também advertem que a maior parte dos investimentos

nacionais realizados no exterior é feita por intermédio de paraísos fiscais e regimes fiscais

privilegiados. Este dado fica muito evidente a partir da leitura da tabela 2 do Anexo A na qual

constam as 16 principais jurisdições fiscais destinatárias de investimentos brasileiros no

exterior. Nota-se que, em 2008, os três principais destinos primários de investimentos

realizados no exterior foram Ilhas Cayman (42,7%), Ilhas Virgens Britânicas (9,2%) e Ilhas

Bahamas (7,9%). É surpreendente observar que os três principais destinos de investimentos de

empresas de capital nacional, que respondem por mais de 58% do total de investimentos

realizados, são paraísos fiscais. A tabela demonstra que, do total de investimentos primários

feitos no exterior, apenas 41% não são feitos diretamente em países de tributação regular.

A análise desta tabela deve ser precedida de algumas cautelas. O fato de os

investimentos serem feitos primariamente em paraísos fiscais pode induzir ao erro de se achar

que eles permaneçam lá, quando, na verdade, muitas vezes o seu destino final é um país de

tributação regular. Muitas são as empresas que se utilizam de paraísos fiscais para constituir

sociedades-base e sociedades holding – conforme visto no capítulo 1 deste trabalho – cuja

finalidade é deter participações societárias de empresas localizadas em países de tributação

regular por razões fiscais.

Esta constatação é de grande relevância para o presente trabalho uma vez que ela

aponta para a necessidade de que o Brasil possua normas antielisivas especiais para combater

justamente este tipo de planejamento fiscal que se faz através de paraísos fiscais e regimes

fiscais privilegiados. O grande ponto de discordância atual quanto ao tema não diz respeito ao

reconhecimento da importância de um regime de tributação em bases universais com uma

regra de antidiferimento, mas sim quanto à calibragem do campo de incidência desta última,

conforme defendemos até o presente momento deste trabalho.

Page 131: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

131

3.5. A internacionalização é um objetivo buscado pelo Estado?

3.5.1. A internacionalização nas políticas industriais brasileiras

Neste tópico, optamos por analisar brevemente os principais planos industriais e de

estímulo ao crescimento econômico formulados pelo Governo Federal após a abertura

econômica promovida pelo Governo Collor. A opção por este recorte temporal justifica-se

pelo fato de que foi justamente a partir desse período que as empresas brasileiras passaram a

ter maior liberdade e capacidade econômica para internacionalizar a sua atividade produtiva.

Antes disso, no entanto, os exemplos de internacionalização produtiva de empresas brasileiras

eram muito escassos e restritos a mercados específicos (e.g. petróleo e construção civil).

Analisando-se as últimas políticas industriais formulados pelo Governo Federal –

Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP)164

, lançada pelo Governo Lula para o período

de 2008 a 2010, e o Plano Brasil Maior165

, lançado pelo Governo Dilma para o período de

2011 a 2014 – observamos que, em ambas, há um nítido objetivo de se aumentar a

competitividade da indústria nacional, de inseri-la de forma competitiva no mercado global e

de fortalecimento de cadeias produtivas internacionais. No entanto, o objetivo de estimular a

inserção das empresas nacionais no exterior parece estar muito mais alinhado com uma

estratégia de internacionalização comercial, através do estímulo às exportações, do que com

uma estratégia de internacionalização produtiva.

A exposição de motivos da PDP faz menção aos objetivos de fortalecimento do

ambiente competitivo nacional e de elevar os esforços para a criação de inovações. No

entanto, os investimentos parecem estar orientados para a promoção do aumento das

exportações brasileiras. Há, entretanto, o objetivo de se estimular a integração produtiva com

os países da América Latina, Caribe e África, como forma de se alcançar maior integração

entre as regiões tratadas com vistas à consolidação de um mercado regional. Aos olhos do

Governo, este mercado regional seria um espaço de integração e fortalecimento mútuo, no

qual as Cadeias se aproveitariam das distintas competitividades em cada um dos seus

164

Vejam-se detalhes em: <www.mdic.gov.br//sitio/interna/interna.php?area=2&menu=3253#PDP e

www.pdp.gov.br/paginas/objetivo.aspx?path=Objetivos>. Acesso em: 16/04/2012. 165

Vejam-se detalhes em: <www.brasilmaior.mdic.gov.br/publicacao/index.php?area=12&sitio=1&idioma =2>.

Acesso em 16/04/2012.

Page 132: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

132

segmentos, para competir com produtos finais em âmbito mundial e alcançar um padrão de

inserção internacional que permita acesso a melhores mercados e maior valor agregado nas

exportações166

.

Resta claro, portanto, que o tipo de internacionalização pretendida pelo PDP era

comercial, através do incremento às exportações, e não produtiva como regra geral,

admitindo-se, no entanto, a internacionalização produtiva – voltada à criação de cadeias

produtivas – em hipóteses específicas envolvendo determinados países (América do Sul,

Caribe e África). Esta exceção à regra de estímulo da internacionalização comercial sugere

que o Mercosul receba um tratamento especial do ponto de vista do estímulo à

internacionalização produtiva. Este ponto será retomado adiante neste trabalho.

Quanto ao Plano Brasil Maior, ele afirma que é preciso atravessar fronteiras e

enfrentar a competição nos mercados globais; conquistar liderança tecnológica em setores

estratégicos; internacionalizar as empresas brasileiras e, ao mesmo tempo, enraizar aqui as

estrangeiras, para que elas passem a investir cada vez mais em Pesquisa e Desenvolvimento

(P&D) no Brasil167

. Como se vê, o plano estabelece como objetivo a internacionalização das

empresas de capital nacional deixando, no entanto, vago qual modalidade de

internacionalização seria aquela desejada pelo Governo Federal. Ao se buscar uma resposta

nas metas estabelecidas para o plano, observamos que nenhuma delas faz menção à

internacionalização produtiva como sendo uma meta de governo, mas sim ao incremento das

exportações brasileiras.

A meta nº 8 do plano estabelece o objetivo de ampliação da participação do Brasil no

comércio internacional através do estímulo às exportações168

. Ademais, tampouco podemos

afirmar que a internacionalização é um dos objetivos do plano quando analisamos as suas

diretrizes estruturantes169

. Assim, não é possível afirmar que a internacionalização produtiva

seja um objetivo buscado por esta política industrial. Novamente, o Governo Federal parece

ter feito a opção por estimular a internacionalização, tão somente, pela via comercial.

Houve, no entanto, dois grandes planos anteriores ao PDP e Plano Brasil Maior que

possuíam metas mais abrangentes do que estes últimos. Trata-se do Programa Brasil em Ação,

166

Vejam-se detalhes em: <www.mdic.gov.br//sitio/interna/interna.php?area=2&menu=3253#PDP e

http://www.pdp.gov.br/paginas/objetivo.aspx?path=Objetivos>. Acesso em: 16/04/2012. 167

Vejam-se detalhes em: <www.brasilmaior.mdic.gov.br/oplano/brasilmaior/>. Acesso em 01/12/2011. 168

Vejam-se detalhes em: < www.brasilmaior.mdic.gov.br/publicacao/index.php?area=16&idioma=2&sitio =1>.

Acesso em 16/04/2012. 169

Vejam-se detalhes em: <www.brasilmaior.mdic.gov.br/publicacao/index.php?area=13&idioma=2&sitio =1>.

Acesso em 16/04/2012.

Page 133: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

133

lançado em agosto de 1996 e concluído em dezembro de 1999 pelo ex-presidente Fernando

Henrique Cardoso, e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) lançado durante a

“Era Lula” e que também foi incorporado pelo Governo Dilma sob a designação de “PAC 2”.

O objetivo central do Programa Brasil em Ação foi investir em obras específicas de

infraestrutura de transportes, portos, energia, gás natural (construção do gasoduto Brasil-

Bolívia), telecomunicações e em políticas específicas de emprego, agricultura, habitação,

saneamento básico, saúde e educação. A meta era que os investimentos não se limitassem ao

setor produtivo, mas abrangessem igualmente projetos sociais. Observamos que não houve

nenhuma menção ao objetivo de se estimular a internacionalização das empresas nacionais

como meta do programa170

. Sustenta-se que este programa foi o “embrião” do PAC.

O PAC foi um programa de estímulo à economia nacional que tinha como pilar não

apenas o investimento em grandes obras de infraestrutura, visando afastar os gargalos que

limitavam o crescimento econômico, como também fomentar a economia através do estímulo

ao consumo interno e às exportações. O PAC possuía cinco grandes pilares: (i) investimento

em projetos de infraestrutura (inclusive com parcerias público-privadas); (ii) estímulo ao

crédito e ao financiamento; (iii) melhora do ambiente de investimento; (iv) desoneração e

aperfeiçoamento do sistema tributário; e (v) medidas fiscais de longo prazo171

. Não

identificamos, novamente, qualquer menção a uma política de estímulo à internacionalização

produtiva como estratégica para o desenvolvimento econômico e social. O “PAC 2” seguiu

muitas das diretrizes já firmadas no “PAC 1” na medida em que procurou consolidá-las,

ampliando, no entanto, algumas das metas anteriormente concebidas172

.

A literatura econômica, ao tratar do tema da internacionalização produtiva das

empresas de capital nacional nas políticas públicas brasileiras, confirma a conclusão a que

chegamos anteriormente ao afirmar que, não obstante diversos países em desenvolvimento de

perfil econômico semelhante ao Brasil incentivem a internacionalização produtiva das suas

firmas, por vezes, criando agências governamentais especializadas, no Brasil, os casos bem-

sucedidos de internacionalização produtiva das transnacionais de capital nacional são o

170

Confiram-se detalhes em: <www.abrasil.gov.br/anexos/anexos2/bact.htm#top> Acesso em: 31/07/2012. 171

Neste sentido, confira-se: <www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/noticias/pac/070122_

PAC_medidas_institucionais.pdf> Acesso em: 31/07/2012. 172

Confiram-se detalhes em: <www.brasil.gov.br/pac/o-pac/investimentos-em-infraestrutura-para-desenvolvi

mento-economico-e-social> Acesso em: 31/07/2012.

Page 134: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

134

resultado da sua própria iniciativa e não o resultado de uma política pública de apoio à criação

de subsidiárias no exterior como estratégia de desenvolvimento nacional173

.

3.5.2. O papel do BNDES no financiamento da internacionalização produtiva

Apesar de o Governo Federal não possuir uma política industrial explícita no sentido

de apoiar a internacionalização produtiva das empresas de capital nacional, o Banco Nacional

de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) não apenas possui previsão estatutária

para apoiar investimentos produtivos de empresas nacionais no exterior, desde que o projeto

se reverta em desenvolvimento nacional, como também já financiou investimentos dessa

natureza.

Alem e Cavalcanti retratam que, até o ano de 2002, os incentivos concedidos pelo

BNDES à internacionalização produtiva eram feitos de forma indireta através de

financiamentos realizados mediante operações de renda variável. Assim, o BNDES adquiria

ações de empresas de capital nacional com capital aberto nas bolsas de valores, mas a decisão

de destinar os recursos a investimentos na constituição, aquisição ou expansão de fatores de

produção em mercados externos ficava a cargo da companhia beneficiária. O destino dos

aportes do BNDES na empresa era orientado somente por uma estratégia de ação previamente

definida pela própria empresa174

.

Posteriormente, com o crescente número de consultas e com o aumento da demanda de

financiamento para a internacionalização produtiva, surgiu a necessidade de o BNDES

desenvolver uma modalidade específica para este tipo de financiamento. Em 2002, o BNDES

houve por bem definir as diretrizes para o financiamento aos investimentos de empresas

brasileiras no exterior. Segundo Alem e Cavalcanti, as diretrizes estabelecidas tinham por

finalidade “orientar a criação de uma linha capaz de estimular a inserção e o fortalecimento de

173

Neste sentido, vejam-se: ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à

internacionalização das empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24,

2005, p. 54; BARRETO, Fernando Mello e RICUPERO, Rubens. A importância do investimento direto

estrangeiro do Brasil no exterior para o desenvolvimento socioeconômico do país. In: ALMEIDA, André (org,).

Internacionalização de empresas brasileiras: perspectivas e riscos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 28 a 31; e

AMANN, Edmund. Technology, public policy, and the emergence of Brazilian multinationals. In: BRAINARD,

Lael e MARTINEZ-DIAZ, Leonardo (editors). Brazil as an economic superpower? – Understanding Brazil’s

changing role in the global economy. Washington: Brookings Institution Press, 2009, p. 196. 174

ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das

empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p. 69.

Page 135: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

135

empresas brasileiras no mercado internacional, pelo apoio à implantação de investimentos no

exterior, desde que resultassem em estímulo às exportações brasileiras” 175

.

Neste sentido, o estatuto social do BNDES foi reformulado com a publicação do

Decreto nº. 4.418/2002 da Presidência da República. O referido estatuto social – além de

tratar de diversos tópicos importantes relacionados à estrutura institucional, ao regime jurídico

aplicável, ao objeto social, às formas de financiamento, entre outros – estabelece as operações

que o BNDES tem competência para financiar. Dentre as operações autorizadas para

financiamento do BNDES, o artigo 9º, inciso II, prevê a possibilidade de financiamento da

aquisição de ativos estrangeiros ou de investimentos realizados por empresas de capital

nacional no exterior, podendo o banco, inclusive, captar recursos no mercado externo para

tanto conforme dispõe o inciso VIII do referido artigo176

. Confira, neste sentido, os referidos

dispositivos:

Art. 9º O BNDES poderá também:

II – financiar a aquisição de ativos e investimentos realizados por empresas de

capital nacional no exterior, desde que contribuam para o desenvolvimento

econômico e social do País;

VIII – utilizar recursos captados no mercado externo, desde que contribua para o

desenvolvimento econômico e social do País, para financiar a aquisição de ativos e a

realização de projetos de investimentos no exterior por empresas brasileiras,

subsidiárias de empresas brasileiras e empresas estrangeiras cujo acionista com

maior capital votante seja, direta ou indiretamente, pessoa física ou jurídica

domiciliada no Brasil, bem como adquirir no mercado primário títulos de emissão ou

de responsabilidade das referidas empresas.

Note-se que, em ambos os incisos do artigo 9º, o financiamento está condicionado à

sua contribuição para o desenvolvimento econômico e social do Brasil. Visando assegurar o

cumprimento deste requisito legal, o BNDES constituiu, em 2002, um Grupo de Trabalho

destinado a analisar o tema do financiamento à internacionalização das empresas de capital

nacional. Através de diversas visitas a empresas interessadas no financiamento do banco para

a sua internacionalização produtiva, o grupo concluiu que: (i) mesmo as companhias mais

avançadas em seu processo de expansão no exterior mostraram ter necessidades financeiras,

operacionais ou técnicas para continuar a expandir as suas atividades internacionais; (ii) entre

as modalidades de investimento consideradas importantes para ampliar a presença

175

ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das

empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p. 69. 176

Ressaltamos que a redação do inciso II do artigo 9º foi dada pelo Decreto nº 6.322/2007 e a do inciso VIII foi

dada pelo Decreto nº 7.635/2011, ambos da Presidência da República. Isso demonstra o quão atual é o

posicionamento do Governo Federal sobre a importância de o BNDES financiar a internacionalização produtiva

de empresas de capital nacional como estratégia voltada ao desenvolvimento social e econômico brasileiro.

Page 136: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

136

internacional das empresas, estão a criação de bases no exterior, especialmente para gestão e

estoque, e iniciativas voltadas para o desenvolvimento das vendas locais, assistência técnica e

promoção comercial, a fim de garantir melhor acesso e condições competitivas nos mercados

consumidores; (iii) as demandas formalizadas por apoio à internacionalização têm

características distintas por setores e empresas; e (iv) o objetivo principal das empresas

interessadas é, em última instância, aumentar a participação no mercado internacional, via

expansão das exportações177

.

Para fins de atendimento à condição de “contribuição ao desenvolvimento econômico

e social” o BNDES entende que, se a internacionalização produtiva levar ao aumento das

exportações brasileiras, tal requisito estará atendido, devendo o incremento nas exportações

líquidas da empresa beneficiária do financiamento ser correspondente ao valor total do

empreendimento no prazo máximo de 6 anos178

. A título de exemplo da atuação do BNDES

neste tipo de financiamento, em 2005, foi aprovado o financiamento no valor de US$ 80

milhões para que a Friboi pudesse adquirir 85,3% da empresa argentina Swift Armour S.A.,

sob a condição de aumento das suas exportações brasileiras179

.

3.5.3. Conclusões parciais da internacionalização nas políticas de governo

Através da análise das duas últimas políticas industriais formuladas pelo Governo

Federal e do papel desempenhado pelo BNDES, podemos chegar às seguintes conclusões

parciais quanto ao papel do Estado no estímulo à internacionalização produtiva:

Primeira: Embora a internacionalização produtiva não conste das políticas industriais

do Governo Federal, ela vem sendo estimulada através do BNDES, ainda que em um estágio

pouco desenvolvido. Há, certamente, muito espaço para a ampliação da política de

financiamento da internacionalização produtiva de empresas de capital nacional por parte do

BNDES.

177

As conclusões expostas do Grupo de Trabalho foram expostas por: ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI,

Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista

do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p. 70-71. Vale lembrar que ambos eram, respectivamente,

economista e engenheiro do BNDES à época da elaboração do referido artigo. 178

Cf. ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à internacionalização das

empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2005, p.71. 179

Ibid., p. 71.

Page 137: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

137

Segunda: O Governo Federal não apenas pode como deve estabelecer condições que

assegurem que a internacionalização produtiva traga benefícios para o país em termos de

desenvolvimento social e econômico – como é o caso da exigência de que haja incremento

nas exportações nacionais ou de repatriamento de lucros em determinado período de tempo –

sem os quais não há aprovação da linha de financiamento, conforme o BNDES vem fazendo.

3.6. A pesquisa empírica: os efeitos do regime vistos da perspectiva dos contribuintes

e do fisco

3.6.1. Notas metodológicas

Esta segunda parte deste capítulo se destinará a responder as perguntas relativas ao

segundo problema orientador da presente pesquisa, quais sejam: O regime jurídico brasileiro

de tributação de lucros auferidos no exterior interfere no processo de internacionalização

produtiva das empresas brasileiras? Há impactos do regime na competitividade das empresas

nacionais no mercado internacional? Caso positivo, como os efeitos advindos do regime se

operam na prática? Ainda não trataremos do confronto dos efeitos econômicos advindos do

regime brasileiro com a Ordem Econômica Constitucional pois esta análise será objeto de

tópico específico no capítulo 4.

Nesta parte, buscaremos testar a hipótese de que o regime brasileiro de tributação de

lucros auferidos no exterior não interfere no processo de internacionalização produtiva de

empresas de capital nacional, não obstante o seu desenho amplo. No entanto, partimos

também da hipótese de que o regime possui efeitos econômicos sobre as empresas na

conquista de novos mercados. Assim, esta hipótese será testada e, se restar comprovado que o

regime brasileiro afeta o processo de internacionalização produtiva das empresas de capital

nacional e/ou apresenta quaisquer efeitos econômicos, a tarefa passará a ser a investigação de

como tais efeitos se operam na prática.

A hipótese que se deseja testar parte da constatação feita pela literatura acadêmica

especializada. A literatura econômica aponta que a regra de antidiferimento abrangente do

regime brasileiro pode representar, na prática, uma carga tributária adicional para as empresas

Page 138: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

138

que realizam investimentos em países de tributação inferior à brasileira e que não sejam,

necessariamente, um paraíso fiscal ou um regime fiscal privilegiado, fato que levaria a uma

desvantagem concorrencial em relação aos seus concorrentes locais180

. Na literatura tributária

especializada, apesar de haver poucos autores que se dedicaram a analisar os efeitos

econômicos do regime brasileiro, há autores que apontam para o mesmo problema de natureza

concorrencial ainda que não com a devida profundidade181

.

Para responder as questões formuladas acima, optamos por realizar entrevistas com

grandes empresas brasileiras que já tivessem se internacionalizado, através da realização de

investimentos diretos no exterior. Esta é a fonte primária de coleta de dados utilizada para

responder as perguntas ora tratadas. Neste sentido, foram entrevistadas empresas grandes

pertencentes a diferentes setores da atividade econômica; empresas que exploram

commodities agrícolas e minerais, que comercializam bens de consumo e que prestam

serviços de construção.

Vale lembrar que a seleção das empresas não buscou construir um universo amostral

da percepção de todo o empresariado brasileiro. O objetivo pretendido foi, tão somente,

colher relatos que demonstrassem as percepções de representantes de grandes empresas

internacionalizadas para submetê-los a uma análise qualitativa, sem pretender criar um

universo amostral compatível com o cenário empresarial brasileiro. Procuramos entrevistar

profissionais responsáveis por cargos de diretoria das grandes empresas, economistas, bem

como representantes do seu setor jurídico. Alguns consultores tributários – advogados em sua

maioria – foram entrevistados também devido à sua experiência com várias empresas.

Além das entrevistas com empresas, foram feitas entrevistas com autoridades fiscais

de médio e alto escalão na Receita Federal do Brasil sobre as suas percepções referentes aos

efeitos econômicos do regime de tributação de lucros auferidos no exterior. Todas as

entrevistas foram gravadas, feitas preferencialmente de forma presencial e guiadas por um

roteiro, com questões abertas.

Vale a pena lembrar que todos os entrevistados autorizaram o uso da sua entrevista por

meio da sua anuência em formulário de consentimento próprio. No entanto, a grande maioria

180

Entre eles: ALMEIDA, Fabiana, MELLO, Murilo, MUNHOZ, Marienne. Questões tributárias referentes ao

investimento direto de empresas brasileiras no exterior. In: ALMEIDA, André (org,). Internacionalização de

empresas brasileiras: perspectivas e riscos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 143. 181

Entre eles: CARDOSO, Daniel Gatschnigg. A “CFC legislation” brasileira e os impactos na competitividade

internacional. Repertório de Jurisprudência IOB, n. 3, v. I, 2006, p. 122; e SCHOUERI, Luis Eduardo. Imposto

de renda e os lucros auferidos no exterior. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do

direito tributário. São Paulo: Dialética, v. 7, 2003, p. 307.

Page 139: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

139

dos entrevistados não autorizou que fosse feita menção direta ao seu nome ou que a empresa

onde trabalha fosse identificada, razão pela qual lhes foram atribuídos pseudônimos (e.g.

Empresa 1, Autoridade Fiscal 1, etc) 182

.

Adiante, as entrevistas realizadas serão analisadas qualitativamente e, para tanto,

optou-se por dividi-las em dois grandes grupos temáticos: o primeiro refere-se às motivações

que levaram as empresas a internacionalizarem parte da sua atividade produtiva; e o segundo

grupo se dedicará a analisar os efeitos econômicos ensejados pelo regime bem como

apresentar todas as críticas que lhe foram formuladas pelos contribuintes (empresas,

consultores e advogados) e por representantes do fisco. Ao longo da análise, procurar-se-á

ponderar igualmente tanto as percepções do setor privado (contribuintes) quanto do setor

público (fisco).

Devido à extensão dos relatos e da análise dos diferentes argumentos, optamos por

apresentar adiante, de forma objetiva, apenas os resultados e conclusões obtidos. Caso o leitor

queira ter acesso a uma análise mais pormenorizada dos relatos, inclusive com a

demonstração de vários trechos das entrevistas que respaldam as nossas conclusões,

informamos que a análise detalhada dos relatos encontra-se ao fim do presente trabalho

(Apêndice A).

Procuramos investigar como os problemas jurídicos apontados nas entrevistas podem

ser prejudiciais ao setor privado do ponto de vista dos seus efeitos econômicos. Em outras

palavras: De que forma os problemas jurídicos apontados geram custos ao setor privado e

podem afetar o processo de internacionalização produtiva? Adiante, buscaremos identificar

nas entrevistas possíveis respostas para esta questão.

182

O formulário de consentimento utilizado – formulário padrão utilizado pelo Comitê de Ética da Escola de

Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas – possui dois campos distintos: um deles destinado à

autorização para o uso da entrevista na pesquisa e o outro destinado a autorizar a menção do nome do

entrevistado, empresa ou repartição fiscal ao qual ele pertence. Caso o entrevistado não manifeste consentimento

em relação a este último ponto, a alternativa é a atribuição de um pseudônimo e a omissão de informações dadas

ao longo da entrevista que possam levar à sua identificação ou à identificação da sua empresa. Trata-se de uma

medida necessária à garantia da confidencialidade das fontes entrevistadas.

Page 140: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

140

3.6.2. Resultados da pesquisa

3.6.2.1. Importância e motivações da internacionalização produtiva

Antes de proceder a uma análise dos efeitos econômicos advindos dos problemas

jurídicas, entendemos ser importante demonstrar quais são as motivações que levaram as

empresas entrevistadas a internacionalizar parte dos seus fatores de produção.

As empresas entrevistadas que comercializam bens de consumo tendem a realizar

investimentos produtivos primeiramente em países da América Latina – não restritos ao

Mercosul – em virtude da maior facilidade geográfica, linguística e de práticas e costumes

comerciais. Após a conquista desses mercados, as referidas empresas investem em outros

países do mundo. Além da América Latina, tais investimentos se encontram mais

predominantemente alocados nos mercados da Europa e dos EUA.

A motivação adotada por essas empresas é, fundamentalmente, a busca por novos

mercados consumidores e por um melhor canal de acesso à clientela local (the market-seeking

motive). Os desafios encontrados por essas empresas ao investirem diretamente no exterior

dizem respeito às barreiras que outras empresas já previamente estabelecidas impõem à sua

entrada e, sobretudo, o custo – em termos de tempo e valores – necessário à consolidação da

marca empresarial no mercado-alvo.

A motivação para a internacionalização produtiva das empresas que exploram e

comercializam commodities atende a dois objetivos: o primeiro é a busca por matérias-primas

e o segundo é o acesso a novos mercados consumidores (the market-seeking motive),

geralmente próximos ao local de exploração das commodities.

O terceiro grupo de empresas entrevistadas é composto por empresas que atuam na

prestação de serviços de engenharia. Tal grupo de empresas afirmou que a internacionalização

de parte das suas atividades produtivas deveu-se a uma estratégia de sobrevivência em seu

respectivo mercado e como forma de diminuição da sua dependência em relação à demanda

do mercado interno.

Em relação à percepção de que a internacionalização produtiva é uma estratégia

necessária para garantir a sobrevivência da empresa, a Empresa 5 chegou a defender que “o

negócio é, se você não sair, alguém vem e te pega”.

Page 141: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

141

A advogada e consultora tributária Simone Musa Dias183

relatou já ter trabalhado com

empresas que buscaram a internacionalização produtiva devido a problemas de natureza

regulatória no Brasil. Segundo a referida consultora, o problema enfrentado por essas

empresas era que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) não permitia a

aquisição de seus concorrentes no Brasil de modo que a única alternativa que elas possuíam

para a sua expansão era investir em projetos no exterior. Tratava-se de uma operação cuja

motivação central era a busca por novos mercados, a despeito de a questão regulatória ter sido

determinante na decisão de investimento no exterior.

Vale, ainda, ressaltar que algumas empresas entrevistadas admitiram possuir

sociedades holdings no exterior não apenas para fins fiscais, mas, principalmente, para a

centralização das suas operações no exterior.

3.6.2.2. Efeitos econômicos do regime brasileiro de tributação de lucros

auferidos no exterior

3.6.2.2.1. Percepções dos contribuintes

Após a realização de todas as entrevistas junto ao setor privado, chegamos à conclusão

de que o regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior gera efeitos

econômicos na conquista de novos mercados, mas não representa um fator de desincentivo

capaz de tornar a internacionalização produtiva custosa demais frente aos seus respectivos

benefícios a ponto de inviabilizá-la. Ou seja, a percepção da maioria dos entrevistados indica

que, se a empresa deseja investir no exterior, ela irá fazê-lo, ainda que o regime brasileiro

implique um ônus tributário maior (adicional) quando comparado ao regime de tributação em

bases universais adotado por outros países. No entanto, todas as entrevistas realizadas com as

empresas apontadas no tópico anterior demonstram, nitidamente, que o regime brasileiro

representa um ônus concorrencial significativo no processo de conquista de mercados

externos.

183

Entrevista realizada com Simone Musa Dias, no escritório onde a entrevistada exerce a sua profissão, no dia

10/11/2011. A entrevistada autorizou a utilização da entrevista para os fins da presente pesquisa e permitiu a

menção ao seu nome.

Page 142: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

142

Do ponto de vista econômico, o regime tem repercussões concorrenciais negativas às

empresas de capital nacional que investem diretamente no exterior, pois, na prática, ele

implica a exigência de que o investidor nacional arque com os 34% correspondentes à carga

tributária184

brasileira incidente sobre os lucros, ganhos de capital e rendimentos apurados

pelas pessoas jurídicas não importa onde elas venham a investir, ao final do mesmo ano em

que houver a sua contabilização no balanço da subsidiária.

Neste contexto, se elas investirem em um país de tributação inferior – que possui

tributação correspondente a, por exemplo, 25% – ela terá que pagar, ao final do ano em que

apurado o lucro no exterior, 34% correspondente à tributação brasileira incidente sobre o

lucro real apurado – 25% de IRPJ e 9% de CSLL – sendo admitida a compensação do imposto

pago no exterior (25%) até o limite do valor do imposto devido no Brasil, o que implicará, na

prática, que ela arque com a tributação devida no exterior (25%) com a adição da diferença de

9% (34% - 25%), no nosso exemplo, ao fisco brasileiro.

A partir do exemplo demonstrado acima, fica claro que só há ônus concorrencial

quando uma sociedade residente no Brasil investe em países que possuem carga tributária

incidente sobre a renda das pessoas jurídicas inferior à brasileira.

O problema central é que o mesmo ônus arcado pela subsidiária brasileira não é

suportado pelas suas concorrentes nos mercados externos.

Por um lado, se as suas concorrentes forem subsidiárias de empresas localizadas em

outros países, elas (i) poderão arcar somente com a tributação do seu mercado local (25% no

exemplo acima), caso o seu país de origem tribute em bases territoriais, ou, então, (ii) poderão

contar com o privilégio do diferimento da tributação até o momento em que os lucros forem

disponibilizados para os seus acionistas, na hipótese de o país de origem adotar um regime de

tributação em bases universais com regra de diferimento. Neste último caso, ainda que a

vantagem tributária advinda do diferimento da tributação no país de origem decorra, tão

somente, do critério temporal da sua hipótese de incidência, ela não deixa de ter elevada

relevância do ponto de vista das suas repercussões econômicas na dinâmica concorrencial.

Por outro lado, se o concorrente for uma empresa local, que só esteja obrigada a arcar

com a tributação local (25%), a vantagem tributária será ainda maior, pois, em momento

algum, ele deverá arcar com qualquer tributação adicional.

184

Por “carga tributária” ou por “tributação” deve-se entender o conjunto dos elementos que compõem o critério

quantitativo da hipótese de incidência dos tributos que incidem sobre a renda das pessoas jurídicas (lucro, ganhos

de capital e demais rendimentos recebidos).

Page 143: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

143

Como consequência, a tributação adicional arcada pela empresa brasileira poderá ser

refletida nos preços das suas mercadorias ou serviços no exterior, o que levará os seus clientes

a deixar de consumi-los da subsidiária brasileira e a passar a consumi-los das suas

concorrentes. É claro que outros elementos possuem também influência na decisão do

consumidor, tais como o peso da marca e a qualidade do produto a ela associada. No entanto,

conforme demonstramos anteriormente, há elevados custos de se promover o nome de marcas

novas em investimentos do tipo greenfield que vão desde os recursos despendidos até o tempo

necessário para a sua promoção. Caso a tributação adicional não se reflita nos preços, será

refletida na queda da lucratividade do negócio e, com isso, poderá reduzir sensivelmente a

capacidade da subsidiária de reinvestir lucros, além de tornar o negócio menos atrativo e mais

arriscado ao empresário nacional.

O principal efeito econômico negativo causado pelo regime tributário brasileiro, o qual

implica o recolhimento de imposto adicional no país de origem do investimento no final ano

em que forem auferidos resultados no exterior (31 de dezembro) – regime de antidiferimento

por excelência –, é o desestímulo ao investimento ou ao reinvestimento dos resultados da

subsidiária para a sua expansão.

Ademais, nas entrevistas, ficou muito claro, também, que a razão pela qual a empresa

de capital nacional não repatria (disponibiliza jurídica ou economicamente aos seus sócios

brasileiros) os seus lucros tão logo eles sejam auferido e contabilizados é a necessidade de

reinvesti-los em seu próprio negócio buscando, assim, o fortalecimento da sua posição

negocial nos mercados externos.

As empresas entrevistadas chamaram atenção para o fato de que é uma prática comum

os governos locais de países subdesenvolvidos concederem benefícios fiscais para empresas

estrangeiras como forma de compensação pela pouca infraestrutura oferecida. Em relação aos

referidos benefícios fiscais – espécie do gênero ajuda de Estado –, o problema enfrentado

pelas empresas entrevistadas é que, não obstante os governos dos países destinatários dos seus

investimentos aceitem conceder benefícios para a atração de investimentos como um todo

relativos a um determinado setor-alvo, a sistemática do regime brasileiro desconsidera tal fato

e impede que a subsidiária da empresa de capital nacional possa se aproveitar de tais

benefícios. Isto porque o fisco brasileiro exige, na prática, que a empresa residente no Brasil

arque com a diferença entre a carga tributária devida no Brasil e a carga tributária devida no

exterior (compensável com o imposto devido no Brasil), pouco importando se houve a

concessão de uma ajuda de Estado para a atração de tais investimentos.

Page 144: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

144

A consequência oriunda da aplicação do regime brasileiro é que ele impede a

homologação automática de ajudas de Estado concedidas por outros governos. Em outras

palavras, o regime brasileiro assegura que, mesmo em situações em que há concessão de

ajudas de Estado no exterior, as subsidiárias de empresas de capital nacional continuem

arcando com a tributação devida no Brasil. Neste sentido, caso o outro Estado não exerça a

sua soberania fiscal de forma plena, o Brasil não apenas exerce a sua parcela de soberania

fiscal como também exerce a parcela de soberania recusada pelo outro Estado. Trata-se do

combate ao tax sparring. No Brasil, a regra é que toda a homologação de ajudas de Estado

concedidas no exterior é expressa e nunca automática185

. Este tema será explorado em

maiores detalhes no próximo tópico.

Em termos econômicos, a opção política de não homologar automaticamente as ajudas

de Estado concedidas por outros países causa uma forte distorção concorrencial às empresas

de capital nacional caso os governos dos países de origem das suas concorrentes: (i)

homologuem-nas automaticamente ou (ii) não homologuem mas aceitem o diferimento da

tributação para o momento em que ocorrer a efetiva disponibilização econômica ou jurídica

dos referidos lucros, ganhos de capital e rendimentos.

No Brasil, a questão mais gravosa não chega nem mesmo a ser a não homologação de

forma automática de ajudas de Estado concedidas por outras jurisdições fiscais, mas sim a

proibição ao diferimento da sua tributação. A maior parte das empresas, em suas entrevistas,

indicou esta questão como uma das mais prejudiciais à sua competitividade.

Outro fator que tem representado um entrave à realização de investimentos no exterior

pelo investidor brasileiro tem sido a insegurança jurídica quanto aos critérios de aplicação das

disposições dos tratados. Conforme será analisado em maiores detalhes no próximo capítulo,

a jurisprudência das cortes administrativas tem oscilado quanto à decisão de enquadramento

do regime brasileiro nos artigos 7º (lucros das empresas), 10 (dividendos) e 21 (outros

rendimentos) da convenção-modelo da OCDE, demonstrando ora que os tratados celebrados

pelo Brasil são incompatíveis com o regime jurídico-tributário brasileiro ora que são

185

Há, no entanto, alguns tratados celebrados pelo Brasil em que há previsão de cláusula de matching credit, tal

como o tratado Brasil-Itália, através da qual os dois países signatários acordam que, ao ser adotado o método do

crédito para evitar a dupla tributação (art. 23 da convenção modelo da OCDE – methods for elimination double

taxation), o imposto que deve ser considerado pago no país da fonte pagadora dos rendimentos para fins de

compensação com o imposto do país de residência do beneficiário dos rendimentos é, necessariamente, 25%.

Assim, esta cláusula permite que o país de fonte deixe de exercer, plenamente, a sua competência tributária sem

que isso legitime o país de residência do beneficiário do rendimento a exercer a sua competência tributária

conjuntamente com a competência renunciada pelo país de fonte. Na prática, isso permite o tax sparring e que o

país da fonte pagadora conceda benefícios fiscais sem que eles sejam neutralizados pelo país de residência do

beneficiário.

Page 145: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

145

compatíveis. A incerteza jurídica decorrente do fato de este tema não estar devidamente

pacificado na jurisprudência das cortes administrativas e judiciais gera insegurança ao

investidor brasileiro quanto a confiar na proteção oferecida pelo tratado. Esta insegurança é,

por sua vez, vista como um custo de se investir no exterior.

Outro ponto da legislação brasileira que também merece especial atenção por ter sido

apontado na maior parte das entrevistas é a vedação que consta do artigo 25, §5º da Lei nº

9.249/95 segundo o qual os prejuízos incorridos no exterior não podem ser compensados com

os lucros apurados no Brasil.

A questão dos prejuízos enseja uma desvantagem concorrencial muito relevante uma

vez que leva à majoração do valor do imposto devido no Brasil ao considerar que a base de

cálculo da tributação brasileira incidente sobre a renda da pessoa jurídica – lucro real – é

maior do que ela deveria ser caso os prejuízos incorridos em determinadas jurisdições

pudessem ser livremente compensados com os resultados positivos apurados tanto no exterior

quanto no Brasil. Há, neste sentido, tributação de “resultados fictícios”.

Nas entrevistas, foram relatados casos em que o contribuinte brasileiro possui

investimentos localizados em diversos pontos do globo sendo alguns deles deficitários e

outros lucrativos. Na lógica da consolidação dos resultados apurados pela empresa em bases

universais não haveria nenhum tributo a pagar. Porém, na lógica do regime brasileiro – que

não é de consolidação de resultados – pode ser apurado tributo mesmo em uma situação em

que o resultado global consolidado dos investimentos brasileiros no exterior seja negativo.

As peculiaridades do regime de tributação em bases universais adotado pelo Brasil

levaram algumas das empresas entrevistas a criar sociedades holding em países que admitem

a participation exemption por três motivos centrais.

O primeiro deles é diferir a tributação brasileira para o momento em que houver a

efetiva disponibilização econômica ou jurídica dos lucros, ganhos de capital e rendimentos

auferidos no exterior evitando-se a aplicação do regime brasileiro. Isso é possível através da

escolha de um país com o qual o Brasil tenha celebrado tratado destinado a evitar a dupla

tributação, não obstante haja toda a incerteza dos órgãos julgadores, conforme descrito

anteriormente, quanto à compatibilidade do regime brasileiro com as disposições dos tratados

celebrados pelo Brasil. Há, neste sentido, uma forte crença das empresas entrevistadas de que

as cortes se posicionarão no sentir de reconhecer a sua incompatibilidade. A escolha do país,

além de levar em consideração as disposições dos tratados que, em tese, impediriam a

tributação dos lucros no Brasil de fonte produtora localizada no outro Estado, também está

Page 146: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

146

orientada a reduzir, senão evitar por completo, a retenção de Imposto sobre a Renda Retido na

Fonte (IRRF) no ato da distribuição dos dividendos pelo Estado onde se localiza a fonte

produtora186

.

O segundo motivo que leva à criação de sociedades holdings no exterior é a

consolidação de resultados, ou seja, compensar prejuízos incorridos em operações realizadas

em alguns países, nos quais a empresa possua investimentos diretos, com lucros apurados em

outros países.

O terceiro motivo é facilitar as transações realizadas dentro do grupo econômico –

operações denominadas intercompany – tais como empréstimos contratados pela sociedade

holding na posição de mutuante (credora) a outras sociedades que compõem o grupo na

posição de mutuarias (devedoras).

Esta estruturação societária, segundo o relato de algumas empresas, visa tornar mais

eficientes as transações e operações realizadas dentro do grupo econômico, sendo esta uma

prática usual adotada pelo setor privado internacionalmente. Neste contexto, surge o problema

jurídico, que possui repercussões econômicas, do tratamento jurídico dado pelo Governo

brasileiro às controladas e coligadas indiretas, ou seja, as pessoas jurídicas nas quais a pessoa

jurídica residente no Brasil possui investimentos através de uma pessoa jurídica interposta

(geralmente uma sociedade holding).

O problema do tratamento jurídico conferido às controladas indiretas consiste no fato

de que o governo brasileiro vem manifestando o entendimento de que só há direito de

compensação do imposto pago no exterior com o imposto devido no Brasil quando o imposto

devido no exterior tiver sido pago pela controlada ou coligada diretas. Ou seja, a interposição

de uma sociedade holding no exterior leva à perda do direito de compensação do imposto

pago pelas sociedades nas quais ela detém participação societária com o imposto devido no

Brasil. Aos olhos do governo brasileiro, no exemplo demonstrado acima, só haveria direito de

compensação do imposto pago pela sociedade holding no seu país de residência. No entanto,

conforme demonstrado anteriormente, como as empresas geralmente constituem holdings em

países de baixa tributação ou que admitam o participation exemption, o imposto compensado

no Brasil acaba sendo muito baixo senão nulo. Neste sentido, o governo brasileiro não

reconhece o direito de creditamento do imposto pago pelas controladas e coligadas indiretas

da empresa residente no Brasil. O tema das controladas indiretas será tratado, em maiores 186

Podem ser citados como exemplos de países com os quais o Brasil possui tratados que, não apenas asseguram

que a tributação dos lucros seja feita de forma exclusiva pelo Estado onde se localize a sua fonte produtora,

como também prevejam a não incidência de IRRF sobre os dividendos distribuídos, os tratados celebrados pelo

Brasil com a Espanha, Áustria e Holanda.

Page 147: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

147

detalhes, no próximo capítulo, ocasião em que analisaremos até que ponto a proteção

oferecida pelos tratados às controladas diretas vem sendo reconhecida, igualmente, às

controladas indiretas pela jurisprudência administrativa e judicial.

Para além das suas repercussões jurídicas, este posicionamento implica repercussões

econômicas que também se refletem na competitividade das empresas de capital nacional em

mercados externos. Para ajudar na visualização de tais efeitos, imagine-se que uma empresa

residente no Brasil constituiu uma sociedade holding na Holanda e que esta sociedade detém a

participação societária de uma empresa no Japão (com tributação de 50% sobre a renda das

pessoas jurídicas), outra na Argentina (25%) e outra nos EUA (35%) 187

. Imagine-se que

todos os resultados positivos dessas empresas sejam consolidados na sociedade holding

holandesa ao final de cada ano-calendário. De acordo com o posicionamento adotado pelo

governo brasileiro, a sociedade residente no Brasil somente poderá compensar o montante do

imposto pago na Holanda ao apurar o imposto brasileiro devido sobre os lucros auferidos pela

sociedade holandesa. Neste caso, se a Holanda adotar o participation exemption, a sociedade

brasileira deverá arcar com a integralidade dos 34% correspondentes à tributação brasileira

juntamente com o valor da tributação arcada no Japão, Argentina e EUA188

.

Considerando que este tipo de estruturação societária é uma prática comum por

empresas residentes em diversos países, conclui-se que o posicionamento do governo

brasileiro possui um grande impacto econômico que pode ser refletido na competitividade das

empresas brasileiras caso os demais governos reconheçam o direito de crédito do imposto

pago por controladas e coligadas indiretas.

3.6.2.2.2. Percepções do Fisco

Em relação às entrevistas feitas junto ao fisco, cabe ressaltar que foram entrevistadas

autoridades fiscais que pertenceram ou pertencem ainda ao médio e alto escalão da RFB. As

autoridades de médio escalão ocupavam a posição de delegados da RFB. As autoridades de

alto escalão entrevistadas foram o ex-secretário da Receita Federal do Brasil, Everardo

Maciel, e o ex-subsecretário da Receita Federal do Brasil, Marcos Vinícius Neder.

187

Os percentuais relativos às cargas tributárias dos países são aproximados. 188

No exemplo analisado, a carga tributária efetiva arcada pela empresa brasileira foi, ao final, de 67%, 50,5% e

57,1% respectivamente.

Page 148: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

148

Novamente, ressaltamos que o nosso objetivo não foi compor um universo amostral, mas,

sim, captar as percepções de entrevistados estrategicamente selecionados.

De forma geral, as opiniões e as percepções demonstradas pelos entrevistados

divergem sensivelmente. Os funcionários pertencentes ao médio escalão se posicionaram de

forma extremamente favorável ao regime e ressaltaram, a todo tempo, as suas vantagens para

a Fazenda Nacional. Os ex-funcionários de elevado escalão na RFB divergiram em diversos

pontos tratados relativos às vantagens do regime brasileiro, mas, de modo geral, assumiram

uma postura mais crítica em relação a ele, de modo a tratar não apenas das suas vantagens

como também das suas falhas e ineficiências.

Apresentaremos, primeiramente, os posicionamentos dos entrevistados pertencentes ao

médio escalão da RFB, ressaltando as vantagens do regime e, posteriormente, serão

apresentados os relatos dos entrevistados que pertenceram a postos do alto escalão da RFB

com um viés mais crítico.

Em relação aos entrevistados de médio escalão é importante ressaltar, primeiramente,

que, aos olhos dos entrevistados, o regime brasileiro estabelece o primado da neutralidade na

exportação de capitais. Neste sentido, do ponto de vista dos entrevistados, o regime de

tributação em bases universais da pessoa jurídica adotado pelo Brasil teria surgido como uma

reação governamental ao fenômeno mais amplo da globalização – causa central da

transformação do Estado-nação no Estado-transcional – estrategicamente orientada para a

defesa contra a perda de base imponível dos Estados. Um dos problemas identificados nas

entrevistas que se deseja evitar é a dupla não tributação internacional da renda que ocorre

fundamentalmente quando dois Estado deixam de exercer o seu poder de tributar uma

determinada materialidade.

Quando questionados sobre o porquê de o regime brasileiro diferir da prática

internacional, a postura deste grupo de entrevistados foi no sentido de defender que o regime

adotado pelos outros países é facilmente contornável pelo contribuinte e é muito mais difícil

de ser fiscalizado.

No tocante à questão do aproveitamento das ajudas de Estado, os entrevistados se

posicionaram no sentido de defender que o Brasil não deve homologar automaticamente as

ajudas concedidas por outros países. A decisão de homologar deve ser vista como uma

decisão de natureza política e, portanto, deve ser analisada casuisticamente pelo Governo

Federal.

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149

Ao serem questionados quanto à possibilidade de o regime brasileiro de tributação em

bases universais gerar efeitos econômicos danosos ao processo de internacionalização

produtiva e à competitividade das empresas de capital nacional no exterior, as autoridades

fiscais ora tratadas negaram, em um primeiro momento, que o regime brasileiro gerasse

qualquer efeito negativo. No entanto, no decorrer das entrevistas, momento em que o tema foi

analisado em maior profundidade, as autoridades entrevistadas reconheceram que o regime

pode apresentar impactos econômicos significativos.

Em relação à temática dos efeitos econômicos provocados pelo regime, Marco Aurélio

Greco, em entrevista concedida189

, demonstrou interessante visão favorável à tese de que o

regime não afetaria, em princípio, nem o processo de internacionalização produtiva nem a

competitividade das empresas brasileiras nos mercados externos. Ele respalda o seu

argumento no fato de que a tributação recai sobre o acréscimo que houve no patrimônio da

pessoa jurídica brasileira quando do reconhecimento dos lucros auferidos no exterior por

sociedades controladas e coligadas. Neste sentido, conforme será demonstrado no próximo

capítulo, o referido autor não entende que a tributação recai sobre os lucros auferidos no

exterior. Esta perspectiva afastaria, em princípio, a tese de que o regime poderia repercutir

negativamente na pessoa jurídica residente no exterior. A única hipótese em que o regime

jurídico brasileiro poderia afetar a competitividade das empresas de capital nacional no

exterior, a seu ver, seria se houvesse um plano de investimentos da controladora ou coligada

nas suas controladas ou coligadas residentes no exterior.

Por “plano de investimentos”, entende-se como sendo o emprego de capital da

controladora ou coligada na sua controlada ou coligada residente no exterior (e.g. através de

aporte de capital na sociedade controlada ou coligada ou através de empréstimos) para

financiar a expansão das suas atividades no exterior ou, simplesmente, para lhe prover maior

fluxo de caixa. O plano pode ser periódico ou não. O importante é que ele envolva o

investimento de capital na sociedade controlada ou coligada no exterior após a sua

constituição. O plano de investimento ficaria caracterizado se, após constituída, a sociedade

residente no exterior não tivesse condições de autofinanciar a sua expansão com o seu próprio

lucro.

189

Entrevista realizada com o Professor Marco Aurélio Greco, na Escola de Direito de São Paulo da Fundação

Getúlio Vargas, no dia 01/03/2011. O entrevistado autorizou a utilização da entrevista para os fins da presente

pesquisa e permitiu a menção ao seu nome.

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150

A visão apresentada pelo entrevistado, apesar de plausível, não se sustenta, pois, a

nosso ver, desconsidera o fato de que muitas vezes as empresas são obrigadas a repatriar

renda do exterior para poderem adimplir com a tributação incidente no Brasil sobre os lucros

auferidos no exterior, fato que reduz a sua capacidade de reinvestimento, ensejando perda de

capacidade competitiva. A perspectiva adotada por Marco Aurélio Greco parte de uma

separação formal da personalidade jurídica da sociedade controladora ou coligada e da

sociedade controlada ou coligada residente no exterior que leva ao equívoco de se inferir que

as duas sociedades são entidades economicamente autônomas. Adotar essa perspectiva é

plausível para uma análise de repercussões jurídicas (e.g. definição de responsabilidade civil).

No entanto, adotá-la para definir as repercussões econômicas consiste, a nosso ver, em um

erro já que desconsidera o fato de que um grupo societário deve ser visto como um único

grupo econômico. A compreensão mais adequada da dinâmica do sistema financeiro

empresarial deve sempre se respaldar na visão do todo, ao invés da visão segmentada das

partes que o compõe.

Em relação aos entrevistados que pertenceram a cargos de elevado escalão da RFB, a

sua visão, apesar de divergente em diversos pontos, é mais crítica quanto ao regime jurídico

vigente atualmente. A entrevista realizada com Everardo Maciel revela, conforme se

demonstrou no capítulo 2, que o regime assumiu forma abrangente porque a sua criação havia

precedido de uma discussão sobre elisão fiscal internacional considerada essencial para que o

regime possuísse contornos antielisivos de modo a combater somente o planejamento fiscal

internacional considerado abusivo, envolvendo paraísos fiscais e a concessão de regimes

fiscais privilegiados.

Em um primeiro momento da entrevista, o ex-secretário da Receita Federal do Brasil,

que foi o autor da proposta encaminhada à Presidência da República do regime de tributação

de lucros auferidos no exterior, negou que o regime poderia afetar a internacionalização

produtiva ou a competitividade das empresas de capital nacional que operam em mercados

externos. No entanto, ao final da entrevista, ele reconheceu que o regime “pode

eventualmente ter” efeitos concorrenciais negativos e defende que o regime deve ser revisto

diante de um debate mais maduro sobre o tema da elisão fiscal internacional.

O ex-subsecretário da Receita Federal do Brasil, Marcos Vinícius Neder, assume uma

postura bem mais crítica frente ao regime de tributação em bases universais adotado pelo

Brasil. Segundo ele, o regime brasileiro, por possuir uma regra de antidiferimento aplicável de

forma geral a qualquer tipo de rendimentos auferido em qualquer jurisdição fiscal, prejudica

Page 151: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

151

concorrencialmente as subsidiárias das empresas de capital nacional na conquista de novos

mercados.

Fica claro, na exposição dos resultados das entrevistas realizadas com funcionários e

ex-funcionários da RFB, que não há um consenso entre eles quanto às vantagens e

desvantagens do regime de tributação em bases universais adotado pelo ordenamento jurídico

brasileiro. De modo geral, os funcionários entrevistados de escalão médio tenderam a

defender as vantagens decorrentes do regime, em especial, a sua eficiência arrecadatória e os

seus relativos baixos custos de fiscalização e controle talvez até por uma postura mais

corporativista. Por outro lado, os ex-funcionários entrevistados de maior escalão assumiram

uma postura muito mais crítica quanto o regime.

3.7. Conclusões dos efeitos do regime de tributação de lucros auferidos no exterior

na internacionalização produtiva das empresas de capital nacional: o regime

visto em dois contextos distintos

Feita a exposição dos resultados das entrevistas realizadas com o setor privado e

público, o que se busca, neste subtópico, é tecer breves reflexões críticas sobre a mudança dos

contextos históricos, desde a criação do regime até os dias de hoje, e evolução da articulação

dos grupos de interesses envolvidos.

As duas últimas décadas do século XX, de fato, foram caracterizadas pela globalização

que aumentou a mobilidade do capital, aproximou mercados e flexibilizou barreiras

anteriormente existentes ao livre fluxo de capitais fato que levou à redução de custos de

transação de se investir no exterior. O mundo viu a transformação da concepção de Estado-

nação em Estado-transnacional conforme expusemos. O Brasil, que permaneceu boa parte do

século com a sua economia fechada seguindo a política econômica de substituição de

importações, não resistiu às pressões internas e externas e houve por bem abrir a sua

economia na Era Collor, dando-se início a um movimento mais intenso de investimentos

brasileiros diretos realizados no exterior.

Durante toda a evolução do regime brasileiro de tributação em bases universais das

pessoas jurídicas, as empresas de capital nacional não só não possuíam capital suficiente

como também não vislumbravam, naquele momento, o melhor cenário para investir no

Page 152: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

152

exterior devido aos elevados riscos inerentes à internacionalização produtiva já demonstrados

neste capítulo. Com o tempo, a economia brasileira foi dando sinais de maior estabilidade e

crescimento de modo a permitir que as empresas nacionais reunissem as condições

necessárias para investir no exterior. Tal fato pode explicar porque houve baixa articulação

política das empresas de capital nacional no passado e porque hoje se observa uma articulação

muito maior.

Hoje este é um tema de grande valor para diversas empresas brasileiras em vista da

emergência de um novo país que reduziu as assimetrias existentes entre os investimentos

diretos recebidos do exterior (inflow FDI) e os investimentos diretos realizados no exterior

(outflow FDI) e que, hoje, possui grandes e médias empresas com parte dos seus fatores de

produção alocados no exterior.

A questão que se impõe hoje é: Até que ponto a legislação brasileira se mostra

adequada a esta nova realidade? Em outras palavras: O desenho do sistema tributário deve

estar orientado tão somente a proteger as bases imponíveis nacionais ou deve, também,

fomentar atividades econômicas de interesse governamental? A transformação do Estado-

nação em Estado-transnacional impôs um desafio que vai muito além da articulação de

políticas tributárias que tenham por finalidade proteger a arrecadação nacional. Neste

contexto, o tema das políticas tributárias passa a se deparar com um grande desafio: proteger

as bases imponíveis nacionais e, ao mesmo tempo, fomentar atividades econômicas que sejam

de interesse do país. A ponderação dos objetivos buscados pelo Estado levará ao desenho que

melhor favorecerá o desenvolvimento nacional.

No entanto, antes que se pense no desenho da política tributária – no presente caso, o

desenho do regime de tributação em bases universais – deve-se assumir uma postura política

muito clara no sentido de se definir, de forma coerente, quais objetivos governamentais

devem ser buscados. Diante deste contexto, questiona-se: A internacionalização produtiva das

suas empresas de capital nacional é um objetivo buscado pelo Estado? A análise das políticas

industriais e do BNDES feita neste capítulo aponta para uma postura pouco clara e coerente

de apoio à internacionalização produtiva. Temas desta importância e repercussão merecem

um posicionamento governamental claro. Não é possível definir o desenho do regime sem

antes definir os objetivos políticos buscados pelo Estado especialmente quando se constata

que o regime brasileiro possui efeitos econômicos negativos na competitividade das empresas

de capital nacional em mercados externos.

Page 153: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

153

4. ANÁLISE JURÍDICA CRÍTICA DO REGIME BRASILEIRO DE

TRIBUTAÇÃO DE LUCROS AUFERIDOS NO EXTERIOR

4.1. Notas introdutórias

As questões jurídicas que serão abordadas neste capítulo são, em grande parte, fruto

da evolução da política tributária demonstrada no capítulo 2. Os problemas que foram

identificados na engenharia normativa do regime de tributação de lucros auferidos no exterior

vigente atualmente repercutiram no plano jurídico, ensejando dúvidas quanto à sua adequação

tanto ao direito interno quanto ao direito internacional. Este capítulo fará uma análise de tais

questões que vêm sendo apontadas como problemáticas.

Entretanto, haja vista a demonstração dos efeitos econômicos advindos da aplicação

do referido regime no capítulo anterior, analisaremos a sua validade jurídica não apenas em

relação ao conceito constitucional nuclear de renda, como também frente à Ordem Econômica

Constitucional. O objetivo dessa análise será examinar em que medida os efeitos produzidos

pelo regime sobre a internacionalização produtiva de empresas de capital nacional

determinam a sua inconstitucionalidade por afronta aos princípios e regras constitucionais que

orientam a Ordem Econômica Constitucional. Esta abordagem do plano da validade jurídica

do regime não foi defendida, até o presente momento, pela literatura acadêmica especializada,

mas nós possuímos a forte crença de que este seja o direcionamento que se dará às discussões

futuramente.

4.2. Uma questão preliminar

Antes de prosseguir na análise das principais questões jurídicas ensejadas pelo regime

atual de tributação em bases universais da pessoa jurídica é de fundamental importância que

se faça uma reflexão sobre uma questão preliminar: O regime brasileiro possui a mesma

natureza do regime de transparência fiscal internacional (as CFC rules) adotado no direito

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154

comparado? Em outras palavras: O regime de tributação em bases universais adotado pelo

direito brasileiro é o regime de transparência fiscal internacional?

Em relação ao tema, há, fundamentalmente, duas linhas de entendimento. A primeira

defende que o regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior – previsto nos

artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95 e no artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 – não

se confunde nem possui a mesma natureza do regime de transparência fiscal internacional

mundialmente adotado. A segunda sustenta que o regime brasileiro corresponde à aplicação

do regime de transparência fiscal no ordenamento jurídico pátrio.

Abaixo serão expostos, de forma sintética, os postulados de cada uma das linhas

doutrinárias.

4.2.1. A primeira linha doutrinária: o regime brasileiro não é de transparência

fiscal internacional

De acordo com esta primeira linha doutrinária, o regime brasileiro de tributação de

lucros auferidos no exterior não “alcança” e tributa os lucros auferidos pela sociedade

controlada residente no exterior, mas sim a variação patrimonial positiva sofrida pela

sociedade controladora residente no Brasil. Esta variação positiva é um reflexo do aumento do

valor patrimonial dos seus investimentos no exterior e ela se opera através da consolidação

contábil dos resultados auferidos no exterior ao final de cada período-base (ano calendário).

Esta corrente postula que o Brasil não teria adotado a teoria da transparência fiscal

internacional no seu ordenamento jurídico; teria, por outro lado, criado uma nova hipótese de

incidência do imposto de renda (e proventos de qualquer natureza) cujo critério quantitativo

seria a variação patrimonial da empresa controladora ou coligada residente no Brasil na exata

medida em que os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos pelas suas controladas e

coligadas no exterior tivessem sido reconhecidos e na proporção da sua participação

societária. Vale lembrar que, conforme expusemos no capítulo 1, o foco do regime de

transparência fiscal internacional recai sobre o valor dos lucros, rendimentos e ganhos de

capital das sociedades controladas no exterior que são alcançados desconsiderando-se a sua

personalidade jurídica para fins exclusivamente tributários (pass-throught entity theory).

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155

Um dos principais defensores desta corrente doutrinária no direito brasileiro é Marco

Aurélio Greco que, em entrevista concedida para o presente trabalho, expôs a sua opinião da

seguinte forma:

Primeiro, eu não acho que seja um regime de transparência. Na minha visão, não se

está tributando o lucro da empresa estrangeira. Na minha visão, se está tributando o

aumento do patrimônio da brasileira pelo fato de existir um lucro na empresa

estrangeira. A tributação é sobre o aumento de patrimônio da empresa brasileira. Se

eu fizer uma avaliação do patrimônio da empresa brasileira na véspera do

reconhecimento do lucro na empresa estrangeira, o número será um. Se eu fizer a

avaliação da empresa brasileira no dia seguinte ao reconhecimento do lucro na

empresa estrangeira, o número será diferente. O patrimônio da brasileira será maior

pelo fato de existir esse lucro reconhecido lá. Eu não estou falando da equivalência

patrimonial, não estou falando em técnica de apuração de patrimônio para fins de

balanço. Eu estou falando de realidade de patrimônio, o que vai gerar uma série de

problemas.

A partir da análise do posicionamento exposto acima, Marco Aurélio Greco adverte

que uma das principais decorrências do regime de tributação em bases universais no direito

brasileiro é o reconhecimento de que o imposto não incide sobre a renda da controlada ou

coligada, mas sim sobre proventos da controladora ou coligada residente no Brasil - assim

entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos como renda – o que implica por

enquadrá-lo não no inciso I do artigo 43 do CTN, mas sim no seu inciso II190

. É justamente

porque o regime brasileiro tributa o provento da controladora ou coligada brasileira que ele

não poderia ser considerado como regra de antidiferimento da tributação dos lucros,

rendimentos e ganhos de capital apurados em bases universais191

. Segundo o entrevistado, o

direito ao crédito, concedido pelo Brasil, sobre os lucros auferidos no exterior, seria um

indício de que o legislador está preocupado com a realidade econômica e não jurídica, já que,

economicamente, a seu ver, negar direito ao crédito pode levar à dupla tributação econômica,

embora não exista dupla tributação jurídica.

190

Confira-se, neste sentido, outro trecho de suma importância da entrevista: “O primeiro [problema] é o

enquadramento dele para fins tributários porque, a meu ver, não é no inciso I, mas é no inciso II do artigo 43 que

fala sobre proventos de qualquer natureza. Neste sentido, qualquer aumento patrimonial está sujeito ao imposto

de renda. Ou, então, pode-se argumentar que o artigo 43, inciso II, é inconstitucional, mas este é um debate que

nem sequer foi aberto”. 191

Veja-se, neste sentido, o trecho reproduzido abaixo da referida entrevista: “Entrevistador: É um regime

antidiferimento puro? Entrevistado: Não é regime antidiferimento porque, para ser antidiferimento, você terá que

supor que só seria possível tributar no momento futuro da distribuição. A norma brasileira não é nem

antidiferimento. A norma brasileira capta o aumento patrimonial da brasileira, ponto. O patrimônio da brasileira

cresceu? Sim, na medida em que ele reconheceu o que lá estava. Ele capta algo que já existe no Brasil,

patrimonialmente. Então, a sua terminologia [norma antidiferimento] supõe uma premissa que não é a minha

premissa. Ela não é de transparência fiscal, não é antidiferimento, nada. Ela capta algo que já existe no Brasil”.

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156

Sob esta perspectiva, o patrimônio da sociedade controladora residente no Brasil será

dimensionado de acordo com o valor dos lucros (ou prejuízos) auferidos por sociedades

controladas e coligadas no exterior e esse “redimensionamento”, caso positivo, ensejará a

incidência do imposto de renda (e proveitos de qualquer natureza) brasileiro. Novamente,

repita-se: não se trata da tributação dos lucros auferidos por controladas e coligadas no

exterior, mas sim da tributação do acréscimo patrimonial sofrido pela sociedade controladora

ou coligada residente no Brasil, o que não se confunde com a aplicação do regime de

transparência fiscal internacional.

Alberto Pinto Souza Júnior adota entendimento semelhante, porém não idêntico, e

sustenta que a tributação recai sobre a variação positiva do valor do patrimônio líquido do

investimento localizado no exterior contabilizado através do MEP. De acordo com a

legislação comercial, as empresas que possuem participação societária em outras e que

apurem Lucro Real são obrigadas a adotar o método de equivalência patrimonial como técnica

de “espelhamento contábil” do valor dos seus investimentos. Através da adoção do MEP, o

patrimônio líquido da controladora variará na mesma medida em que o patrimônio líquido das

suas controladas, coligadas, filiais e sucursais variar dentro de um determinado período192

.

Segundo o autor, na medida em que os ajustes positivos são feitos na sociedade

investidora em virtude de resultados positivos apurados pela sociedade investida em

observância ao regime de competência193

, eles são computados como receitas tributáveis – i.e.

passíveis de inclusão na apuração do lucro real e na base de cálculo da CSLL – de modo que,

a tributação incide sobre a variação patrimonial positiva da sociedade controladora residente

no Brasil, em virtude dos resultados positivos auferidos no exterior, e não sobre a sociedade

investida residente no exterior através da teoria da transparência fiscal internacional194

.

Seguindo a lógica desta visão, o MEP mitigou a autonomia jurídica existente entre

192

Trataremos do MEP em maiores detalhes adiante em tópico específico. 193

O regime de competência é de observância obrigatória pela pessoa jurídica na sua escrituração contábil,

representando a regra geral que comporta exceções – hipóteses em que o regime de caixa será aplicado – apenas

nas hipóteses expressamente previstas em lei. Segundo o regime de competência, a despesas e receitas são

consideradas incorridas e devem ser escrituradas, independentemente da efetiva saída ou entrada de valores em

seu caixa. Veja-se o teor do artigo 177 da Lei das S.A. em que a obrigação de se escriturar a partir do regime de

competência fica claramente estabelecida: “Art. 177. A escrituração da companhia será mantida em registros

permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade

geralmente aceitos, devendo observar métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo e registrar as mutações

patrimoniais segundo o regime de competência”. 194

SOUZA JÚNIOR, Alberto Pinto. A disponibilidade de lucros oriundos do exterior. Revista Fórum de Direito

Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 1, nº 2, 2003, p. 56-67.

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157

controladora e controlada na medida em que adotou uma visão da entidade como um único

complexo econômico (entidade econômica) e não como duas entidades jurídicas distintas195

.

Em relação a este último ponto – visão da entidade como um único complexo

econômico – André Martins de Andrade defende em sua obra a relativização da separação das

pessoas jurídicas como uma tendência aplicada à tributação empresarial cuja causa central é a

dinâmica cada vez mais complexa da atividade empresarial, caracterizada por grupos

societários que se internacionalizam e que, portanto, estão sujeitos a uma pluralidade de

jurisdições fiscais distintas (fenômeno da multijurisdionalidade)196

. O referido autor está

alinhado com a visão de que as cadeias transnacionais devem ser vistas como uma única

entidade econômica ao invés de uma pluralidade de entidades jurídicas autônomas.

O autor também concorda com a visão de que o regime de tributação em bases

universais adotado pelo direito brasileiro não tributa os lucros auferidos no exterior pela

controlada ou coligada, mas sim o acréscimo patrimonial reflexo sofrido pela sociedade

controladora quando os referidos lucros são consolidados nas suas demonstrações financeiras

e incorporados ao seu patrimônio através da técnica do MEP197

.

O acréscimo patrimonial objeto de incidência tributária é reflexo dos resultados

positivos registrados no exterior, porém são autônomos em relação ao mesmo, o que faz com

que o sócio seja o sujeito passivo (contribuinte) da obrigação tributária. Nestas circunstâncias,

o autor sustenta que “o objeto da tributação não é o lucro efetivamente distribuído, mas o

direito à participação do lucro produzido pela sociedade controlada ou coligada, direito este

de titularidade dos sócios, erigidos à condição de sujeito passivo da obrigação tributária” 198

.

Por fim, Fernando Netto Boiteux também defende que a tributação incide sobre o

acréscimo patrimonial uma vez que as pessoas jurídicas brasileiras devem reconhecer os seus

lucros auferidos dentro das fronteiras nacionais, aos quais são adicionados os lucros

resultados positivos apurados pelas suas controladas e coligas, através da teoria do balanço –

sinônima, segundo o autor, do regime de competência199

- que consiste na comparação do

patrimônio no início e ao final do período-base. Neste sentido, o autor parte do pressuposto de

que “todo e qualquer aumento patrimonial que se reflita no balanço pode ser tributado, sendo

195

SOUZA JÚNIOR, Alberto Pinto. A disponibilidade de lucros oriundos do exterior. Revista Fórum de Direito

Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 1, nº 2, 2003, p. 72. 196

ANDRADE, André Martins de. A tributação universal da renda empresarial: uma proposta de sistematização

e uma alternativa inovadora. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 107-112. 197

Ibid., p. 203-215. 198

Ibid., p. 153. 199

BOITEUX, Fernando Netto. As sociedades coligadas, controladoras, controladas e a tributação dos lucros

obtidos no exterior. Revista Dialética de Direito Tributário (RDDT). São Paulo: Dialética, nº 105, 2004, p. 33.

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158

indiferente para tanto a existência de um ato da fonte pagadora que coloque o rendimento à

sua disposição, bastando a sua disponibilidade jurídica ou virtual” 200

.

Embora parecidos, o posicionamento de Marco Aurélio Greco e dos demais têm uma

diferença fundamental; a atribuição de efeitos fiscais ao MEP. Para o primeiro autor, não há

que se falar em atribuição de efeitos fiscais ao MEP, instrumento de mero espelhamento

contábil de situação patrimonial. Para os demais, a tributação da variação patrimonial positiva

é feita justamente através do reconhecimento de efeitos tributários ao ajuste realizado através

da equivalência patrimonial. Para todos os autores, o acréscimo patrimonial sofrido pela

sociedade investidora já se encontra disponível, ao menos, juridicamente.

4.2.2. A segunda linha doutrinária: o regime brasileiro é de transparência fiscal

internacional

A segunda linha doutrinária é composta por juristas que entendem que o regime de

tributação em bases universais, adotado pelo ordenamento jurídico pátrio, possui a mesma

natureza do regime de transparência fiscal internacional. Neste sentido, o regime incide sobre

os lucros auferidos pela controlada ou coligada residente no exterior, ainda que na pessoa do

sócio residente no Brasil. Esta é a linha majoritária na doutrina especializada.

Um dos principais defensores desta linha doutrinária é Luis Eduardo Schoueri para o

qual “o tema da transparência fiscal, confunde-se, no Brasil, com a própria adoção do padrão

de tributação de lucros auferidos no exterior (world wide taxation)” 201

. O referido autor

defende que o interesse que estava por trás do regime brasileiro, em especial com o advento

do artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001, o qual caracterizou a retomada do

objetivo inicialmente pretendido pelos artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95, foi, de fato,

combater práticas de elisão fiscal envolvendo países de baixa tributação através da extinção

do diferimento da tributação brasileira devida em virtude da apuração de lucros no exterior.

200

BOITEUX, Fernando Netto. As sociedades coligadas, controladoras, controladas e a tributação dos lucros

obtidos no exterior. Revista Dialética de Direito Tributário (RDDT). São Paulo: Dialética, nº 105, 2004, p. 27. 201

SCHOUERI, Luis Eduardo. Transparência fiscal internacional, proporcionalidade e disponibilidade:

considerações acerca do artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35. Revista Dialética de Direito Tributário

(RDDT), São Paulo: Editora Dialética, n. 132, 2007, p. 39.

Page 159: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

159

De acordo com este posicionamento, os lucros auferidos por sociedades controladas e

coligadas no exterior são imputados automaticamente, ao final de um período-base, à base de

cálculo do imposto sobre a renda das suas sócias. Dessa forma, os lucros são submetidos à

tributação no país de residência da sociedade controladora como se houvessem sido

produzidos internamente, muito embora, frise-se, a sua origem seja estrangeira.

Neste caso, a tributação não recai sobre a variação patrimonial positiva sofrida pela

sociedade investidora durante um determinado período-base, mas sim sobre os lucros

auferidos pelas suas sociedades investidas no exterior. Os lucros são, dessa forma,

“alcançados” e “trazidos” do exterior através do reconhecimento de que a sociedade residente

no exterior é transparente para fins exclusivamente fiscais (pass-throught entity theory),

conforme aponta, com precisão, o referido autor:

Assim, identificando-se a sociedade não residente como uma CFC, mediante a

aplicação de critérios estabelecidos na lei, atribui-se a ela a condição de “sociedade

transparente” com o propósito de submeter à tributação, na pessoa do sócio,

controladora ou coligada, o lucro por ela obtido no exterior.202

O autor identifica grande semelhança entre o regime brasileiro de tributação de lucros

auferidos no exterior e o regime das CFCs do direito americano na medida em que ambos

teriam como objetivo combater práticas de elisão e evasão fiscal internacional, muito embora

ele reconheça que a abrangência do regime brasileiro – que não discrimina nem a origem do

rendimento nem o tipo de rendimento, contrariamente à prática internacional – mostra-se

inadequada e desproporcional para atingir os fins pretendidos203

.

Alberto Xavier compartilha da mesma visão adotada por Luis Eduardo Schoueri de

que a figura do regime de tributação de lucros auferidos no exterior previsto no direito

brasileiro corresponde ao regime de transparência fiscal internacional. Neste sentido, veja-se o

trecho reproduzido abaixo:

A adição direta ao lucro de sociedade brasileira do lucro das controladas e coligadas

no exterior, independentemente de este ter sido distribuído ou não (designada na lei

inglesa sobre as Controlled Foreign Corporations como apportionment of foreign

accumulated income) representa, pois, a concepção das sociedades estrangeiras

como “sociedades fiscalmente transparentes”, cuja personalidade jurídica é

desconsiderada ex lege para efeitos fiscais, de tal modo que os seus lucros se

202

SCHOUERI, Luis Eduardo. Imposto de renda e os lucros auferidos no exterior. In: ROCHA, Valdir de

Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, v. 7, 2003, p. 308. 203

Ibid., p. 308, 329 e 330.

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160

consideram automaticamente distribuídos para as sociedades brasileiras, que

passarão a serem tributadas numa arising basis e não numa distribution basis204

.

Como se vê, para o referido tributarista, os lucros auferidos por sociedades controladas

e coligadas residentes no exterior são alcançados pelo regime de transparência que

desconsidera, para fins tributários, a separação patrimonial existente entre elas e a sua

controladora, equiparando a controlada ou coligada a uma entidade despersonalizada.

Marciano Seabra de Godoi concorda não apenas com a tese de que o regime brasileiro

de tributação de lucros auferidos no exterior corresponde ao regime de transparência fiscal

internacional, como também com a crítica relativa à sua abrangência exagerada tendo-se em

vista o fim antielisivo inicialmente pretendido. Para o referido autor, o regime brasileiro teria

sido o resultado da “adoção irrefletida da transparência fiscal internacional no direito

brasileiro”205

.

Sérgio André Rocha G. da Silva se posiciona no mesmo sentido dos autores

mencionados acima ao reconhecer que o regime brasileiro com vistas a atingir a renda

auferida no exterior por empresas controladas ou coligadas de pessoas jurídicas residentes no

Brasil, como se tivessem sido direta e imediatamente auferidas por estas últimas, encontra-se

inserido no âmbito da denominada transparência fiscal internacional206

.

Heleno Taveira Tôrres sustenta que a qualificação de uma “sociedade-transparente”,

exclusivamente para fins fiscais, depende de uma ficção jurídica segundo a qual, para efeitos

tributários, “considera-se que o sujeito interposto efetua uma automática e direta distribuição

de lucros ao sujeito residente na data do balanço no qual os lucros são apurados”207

. Neste

sentido, segundo o posicionamento do autor, o recurso à ficção jurídica atua de forma a

viabilizar a transparência fiscal da sociedade residente no exterior. Esta é uma característica

importante para esta linha de pensamento208

.

204

XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 374. 205

GODOI, Marciano Seabra. O imposto de renda e os lucros auferidos no exterior. In: ROCHA, Valdir de

Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, v. 6, 2002, p. 282. 206

SILVA, Sérgio André Rocha G. da. Transparência fiscal no direito tributário brasileiro. Revista Dialética de

Direito Tributário (RDDT), São Paulo: Dialética, n. 99, 2003, p. 113. 207

TÔRRES, Heleno Taveira. Pluritributação Internacional sobre as Rendas das Empresas. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2001, p. 208. 208

Ressaltamos que há alguns autores que entendem que há duas formas de se alcançar os lucros auferidos por

controladas e coligadas no exterior e tributá-los, ainda que na pessoa da controladora. A primeira delas seria a

desconsideração da sua personalidade jurídica e a segunda seria através da disponibilização ficta dos seus lucros,

de modo que elas não seriam complementares, mas sim exclusivas. Veja-se, neste sentido: TROIANELLI,

Gabriel Lacerda. Tributação de lucros no exterior em face de convenção celebrada segundo o modelo da OCDE.

In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, v.

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161

4.2.3. Observações críticas sobre as duas linhas doutrinárias

Observa-se que, nas duas linhas expostas acima, a questão central que as opõe é o

critério material da hipótese de incidência tributária (o que, de fato, se tributa).

Na primeira linha doutrinária, a pessoa do sócio investidor (sociedade controladora ou

coligada) é submetida à tributação pela variação patrimonial positiva sofrida em razão dos

resultados positivos das suas controladas e coligadas no exterior que são refletidos no valor do

seu patrimônio líquido, gerando um acréscimo patrimonial disponível e, portanto, tributável.

A tônica da incidência tributária, segundo este ponto de vista, está na variação patrimonial

positiva sofrida pela sociedade investidora.

Na segunda linha doutrinária, as sociedades controladas e coligadas residentes no

exterior são consideradas transparentes para que os seus lucros, rendimentos e ganhos de

capital possam ser alcançados e tributados na pessoa do seu sócio investidor. A tônica da

incidência tributária, nesta segunda linha, está nos lucros, rendimentos e ganhos de capital

auferidos pelas sociedades investidas.

A escolha de qual posicionamento adotar não está livre de repercussões jurídicas. Com

efeito, reconhecer que o regime de tributação brasileiro não recai sobre os lucros auferidos no

exterior, mas sim sobre a variação patrimonial da controladora, implica afastar o

entendimento de que a norma se opera através da desconsideração da personalidade jurídica

da controlada ou coligada residente no exterior para que os resultados sejam considerados

fictamente disponibilizados. Caso se reconheça que é a primeira linha doutrinária que deverá

prevalecer, muitas das questões jurídicas colocadas em debate atualmente, tais como as

discussões acerca da constitucionalidade do regime brasileiro bem como a sua adequação aos

tratados para evitar a dupla tributação que serão expostas a seguir, deverão ser repensadas.

A ausência de um debate legislativo mais aprofundado e técnico que tenha precedido a

introdução do presente regime no ordenamento jurídico brasileiro gerou toda a controvérsia

demonstrada acima e a grande insegurança jurídica quanto ao entendimento que deverá ser

firmado em relação a todas as questões que serão analisadas nos próximos tópicos do presente

capítulo. No final das contas, a grande questão que está por trás de todas as discussões que

6, 2002, p. 112; e BARRETO, Paulo Ayres. Imposto sobre a renda e os lucros auferidos no exterior. In:

ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, v. 6,

2002, p. 342.

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162

serão analisadas a seguir é: Afinal, qual é a natureza do regime brasileiro de tributação de

lucros auferidos no exterior? Até o momento, esta pergunta permanece sem resposta

definitiva.

Nos tópicos que serão expostos adiante, trataremos da adequação do regime de

tributação de lucros auferidos no exterior com o direito interno e, na sequência, com o direito

internacional, em especial com os tratados celebrados pelo Brasil para evitar a dupla

tributação.

4.3. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e o direito interno

4.3.1. 1º momento de debate da validade jurídica do regime: a questão da

disponibilidade dos lucros e o conceito constitucional de renda

4.3.1.1. A ADI nº 2.588209

O primeiro momento de debate da validade jurídico do regime brasileiro de tributação

de lucros auferidos no exterior caracterizou-se pela proposta, em dezembro de 2001, da Ação

de Declaração de Inconstitucionalidade com pedido de liminar nº 2.588 ao Supremo Tribunal

Federal (STF) pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) por meio da qual se questionou

a constitucionalidade do caput do artigo 74 e respectivo parágrafo único da MP nº 2.158-

35/2001, bem como do §2º do artigo 43 do CTN.

A autora (CNI) alegou, preliminarmente, que o artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001

viola o artigo 62 da Constituição Federal uma vez que não estavam presentes os requisitos de

relevância e urgência previstos em seu caput como elementos necessários à validade formal

da adoção de medidas provisórias, com força de lei, pela Presidência da República. No plano

da validade material, a autora alegou que as referidas normas violam os conceitos

constitucionais de renda e lucro previstos nos artigos 153, III (IRPJ) e 195, I, alínea c (CSLL)

209

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.588. Autora:

Confederação Nacional da Indústria. Ministra-relatora: Ellen Gracie.

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163

da Constituição Federal na medida em que a tributação recai sobre a renda ainda não

disponibilizada jurídica ou economicamente o que vai de encontro ao próprio conceito

constitucional de renda.

A autora se respaldou na tese, já mencionada anteriormente, de que o artigo 74 da

medida provisória pretende tributar algo que não é renda, pois, para tanto, é fundamental a sua

disponibilidade econômica ou jurídica, conforme prevê o caput do artigo 43 do CTN que nada

mais é do que mera explicitação do conceito constitucional de renda por atribuição da própria

C.F., conforme dispõe o seu artigo 146, inciso III210

. O conceito constitucional de renda é, por

sua vez, a expressão da medida exata de capacidade contributiva (art. 145, §1º da C.F.) que

deve ser alcançada pela incidência da norma tributária.

É justamente porque o artigo 43 é mera “explicitação” do conceito constitucional de

renda que ele não poderia definir ou atribuir à lei ordinária a tarefa de definir que há renda

quando ela de fato não existe, ou seja, antes mesmo de ocorrida a sua disponibilização

econômica ou jurídica. Tal diretriz normativa não poderia estar acobertada pela delegação

constitucional contida no artigo 146, III, da C.F. uma vez que trairia o próprio conceito

constitucional de renda previsto no texto constitucional.

Assim, a autora requereu que o §2º do artigo 43 do CTN fosse declarado

inconstitucional, sem redução de texto, para que fosse afastada a interpretação de que a lei

poderia fixar o momento de ocorrência do fato gerador do imposto de renda antes da sua real

disponibilização.

Sustentou-se, também, que o parágrafo único do artigo 74 da medida provisória vai de

encontro à regra da irretroatividade e da anterioridade, previstas, respectivamente, no artigo

150, III, incisos a e b da Constituição Federal, ao pretender tributar, no mesmo exercício

financeiro em que foi editado o referido diploma normativo, lucros apurados anteriormente,

porém ainda não disponibilizados.

A defesa da tese de que seria inconstitucional a lei tributar renda ainda não disponível

estava respaldada na jurisprudência firmada pelo STF quando do julgamento do Recurso

Extraordinário (RE) nº 172.058-1 (Caso do ILL)211

.

210 Para a autora, “o conceito constitucional de renda abrange em si a disponibilidade da renda, pelo que, o

disposto no artigo 43 do CNT nada mais é que a explicitação do que já está contido na Constituição”. 211

Trata-se da ocasião em que o STF julgou a constitucionalidade do imposto sobre a renda retido na fonte

incidente à alíquota de 8% sobre o lucro líquido apurado pela pessoa jurídica na data do encerramento do

período-base, conforme previa o artigo 35 da Lei nº 7.713/88. O STF declarou a inconstitucionalidade da

referida norma jurídica por entender que a lei não poderia tributar o lucro líquido da pessoa jurídica apurado

ainda não disponibilizado jurídica ou economicamente aos seus sócios. Na época, a análise do STF se pautou na

confrontação do referido dispositivo com o disposto no caput do artigo 43 do CTN de modo a concluir que ele

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164

Até o presente momento, o julgamento da ADI nº 2.588 ainda não foi concluído.

Houve, no entanto, o pronunciamento de 9 votos até o momento sendo que o Ministro Gilmar

Mendes foi impedido de votar, restando pendente apenas o voto do Ministro Joaquim

Barbosa. O “placar” do julgamento está em 5 votos a favor da improcedência da ação

(constitucionalidade) contra 4 pela sua procedência (inconstitucionalidade) no tocante às

sociedades controladas residentes no exterior. No tocante às sociedades coligadas, o placar

está em 4 votos a favor da improcedência da ação contra 5 pela sua procedência. Dentre os

diversos votos proferidos pelos ministros, vale a pena discutir de forma mais detalhada os três

primeiros já que eles apontam para as três linhas principais que foram posteriormente

seguidas pelos demais ministros, com pequenas variações de entendimentos.

Primeiramente, a Ministra-relatora Ellen Gracie manifestou em seu voto o

entendimento de que haveria verdadeira hipótese de aquisição de disponibilidade jurídica dos

lucros de controladas residentes no exterior. Isso porque, em se tratando de sociedade

controlada, “o acionista controlador é titular dos direitos de sócio que lhe asseguram, de modo

permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos

administradores”. Segundo a ministra-relatora, a preponderância nas decisões sociais faz com

que a decisão quanto à distribuição de lucros dependa, única e exclusivamente, da pessoa

jurídica controladora. Assim, a relação de controle implica, a seu ver, a disponibilidade

jurídica da renda auferida pela controlada. Não haveria disponibilidade, no entanto, em

relação às sociedades coligadas residentes no exterior, já que a sociedade residente no Brasil

detentora da participação societária não possui poder de controle para determinar, a qualquer

momento, a distribuição dos lucros por ela auferidos. Assim, a referida ministra julgou pela

procedência da ADI apenas em relação às sociedades coligadas, julgando a sua improcedência

em relação às controladas.

O Ministro Nelson Jobim votou pela constitucionalidade do artigo 74 da MP nº 2.158-

35/2001, manifestando o entendimento de que o regime somente poderia se aplicar às

sociedades que estão submetidas à avaliação dos seus investimentos através do MEP. De fato,

o Ministro seguiu a primeira linha doutrinária demonstrada no tópico anterior ao sustentar que

o regime de tributação de lucros auferidos no exterior incide sobre a variação patrimonial

positiva sofrida pela sociedade residente no Brasil e registrada em sua contabilidade através

do MEP. Defende o ministro que, como a empresa deve reconhecer as suas despesas e receitas

não possuía amparo no CTN o que implicaria violação ao artigo 146, III, da C.F., que exige lei complementar

para definir o fato gerador dos impostos. A análise não recaiu, portanto, sobre o conceito constitucional de renda

(art. 153, III da C.F.).

Page 165: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

165

de acordo com o regime de competência, o espelhamento da variação patrimonial positiva

decorrente dos lucros auferidos pela controlada ou coligada no ativo (conta “investimentos”)

da sociedade residente no Brasil dará ensejo a um ajuste positivo em conta de resultado que já

será considerado disponível, ao menos juridicamente, como consequência da aplicação do

regime de competência. Trata-se da tributação do resultado positivo da equivalência

patrimonial da pessoa jurídica investidora brasileira.

O Ministro Marco Aurélio de Mello, por fim, votou pela declaração da

inconstitucionalidade do caput do artigo 74 e do parágrafo único da MP nº 2.158-35/2001

bem como do artigo 43, §2º do CTN, sem redução de texto, para que lhe fosse dada

interpretação conforme a Constituição Federal. O referido ministro seguiu,

fundamentalmente, o entendimento da CNI na petição inicial da ADI. Ademais, argumenta o

ministro que a desconsideração da personalidade jurídica da empresa regularmente

constituída, sob os pontos de vista formal e material, somente seria admissível a partir do seu

exame casuístico. Neste sentido, entendendo que o regime ora discutido se opera através de

uma ficção jurídica, o referido ministro critica a possibilidade de o conceito de renda ser

deturpado, a tal ponto, que o imposto incidisse sobre renda ainda não disponibilizada. O

ministro entendeu, também, ser aplicável o precedente do ILL ao presente caso.

Os demais ministros seguiram, de uma forma geral, as linhas de entendimento

demonstradas acima212

. A doutrina também se dividiu de forma a seguir o raciocínio

evidenciado nos votos dos Ministros Nelson Jobim e Ellen Gracie ou no voto do Ministro

Marco Aurélio de Mello, ressalvados alguns poucos autores que manifestaram opinião diversa

das linhas discutidas pelo STF. O STJ, por sua vez, vem defendendo a legalidade da cobrança

e sinaliza aguardar o julgamento da constitucionalidade da matéria pelo STF213

.

212

Os ministros Eros Grau, Carlos Ayres Britto e Cezar Pelluso acompanharam o voto do Ministro Nelson

Jobim, enquanto que os ministros Ricardo Lewandowski, Sepúlveda Pertence e Celso de Mello acompanharam o

voto do Ministro Marco Aurélio Mello. O Ministro Gilmar Mendes estava impedido de participar do julgamento.

Resta, até o presente momento, pendente de prolação, o voto do Ministro Joaquim Barbosa. 213

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem firmando jurisprudência no sentido da legalidade da sistemática de

tributação do IRPJ e da CSLL sobre os lucros auferidos pelas empresas brasileiras investidoras, sobre empresas

investidas no exterior, destacando que, enquanto o STF não proferir decisão definitiva quanto à questão da

constitucionalidade do regime, ele permanece válido e eficaz no ordenamento jurídico. O STJ tem demonstrado

entendimento no sentido de que a destinação dos lucros auferidos no exterior depende unicamente da decisão da

controladora, razão pela qual estariam eles disponíveis desde que apurados no balanço da controlada e refletidos

no patrimônio da controladora (linha adotada no voto da Min. Ellen Gracie na ADI nº 2.588). Neste sentido,

vejam-se os seguintes julgados: EDcl no AgRg nos EDcl no REsp 1232796/RS, Ministro Relator: Humberto

Martins, segunda turma, data de julgamento: 27/03/2012; REsp 1161003/RS, Ministro Relator: Mauro Campbell

Marques, segunda turma, data de julgamento: 27/09/2011; REsp 1222719/RS, Ministro Relator: Humberto

Martins, segunda turma, data de julgamento: 03/05/2011; REsp 983134/RS, Ministro Relator: Castro Meira,

segunda turma, data de julgamento: 03/04/2008; REsp 907404 / PR, Ministro Relator: Humberto Martins,

segunda turma, data de julgamento: 23/10/2007.

Page 166: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

166

4.3.1.2. As posições doutrinárias

A tese da constitucionalidade é defendida, em sua maioria, por autores pertencentes à

primeira linha doutrinária exposta no tópico anterior. A maior parte desta corrente de

entendimento defende a tese do Ministro Nelson Jobim de que a tributação ocorre na medida

em que há o reconhecimento da receita positiva de equivalência patrimonial, seguindo-se o

regime de competência, decorrente da apuração de lucros auferidos por sociedades investidas

no exterior. Neste sentido, o reconhecimento de receitas pelo regime de competência faz com

que elas estejam disponíveis na pessoa da controladora no momento em que ela as registra

contabilmente. Tal fato não ocorre em relação às pessoas submetidas ao regime contábil de

caixa, tais como as pessoas físicas, situação em que haveria, de fato, a necessidade de se

aguardar a efetiva distribuição dos valores pela controlada para que os mesmos se reputassem

disponíveis214

.

Em apoio à visão demonstrada acima à tese acima que dá suporte à tese da

constitucionalidade e, seguindo em muito a linha de raciocínio do Ministro Nelson Jobim,

André Martins de Andrade, conforme expusemos anteriormente, defende que grupos

empresariais sujeitos a diversas jurisdições fiscais devem ser vistos como um único complexo

econômico de modo que a separação formal entre as pessoas jurídicas deveria ser relativizada.

Portanto, seria possível adotar a participação societária como elemento de conexão que

embora não seja “forte” – tais como a fonte, a residência e a nacionalidade – permitiria a

tributação do sócio pelos lucros auferidos no exterior por sociedades investidas antes mesmo

da sua disponibilização, sem implicar afronta ao conceito constitucional de renda.

Partindo-se desse pressuposto, pondera o autor que o regime brasileiro determina a

incidência tributária sobre o valor do acréscimo patrimonial experimentado pelo sócio

brasileiro em virtude da sua participação societária na empresa que auferiu lucros no exterior.

Tal fato, por si só, já acarretaria disponibilidade do lucro, incorporado ao patrimônio do sócio,

uma vez que a sua realização financeira (em moeda) depende exclusivamente de um ato de

vontade do próprio investidor que possui plena titularidade sobre o ativo (investimento) ao

214

Curiosamente, em virtude de as pessoas físicas estarem sujeitas ao regime de caixa e de não haver previsão

legal para que a elas seja aplicável uma norma de antidiferimento, muitos são os planejamentos tributários

atualmente realizados utilizando-se de pessoas físicas – na função de intermediárias detentoras de participação

societárias de sociedades residentes no exterior – como estratégia voltada a diferir a tributação brasileira sobre

lucros auferidos no exterior.

Page 167: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

167

qual se agregou o incremento patrimonial reflexo (lucro da subsidiária) 215

. A nosso ver, este

raciocínio só se aplica às hipóteses de controle societário.

Os autores que advogam pela tese da constitucionalidade não entendem que seja

aplicável o precedente jurisprudencial do ILL por não considerarem que eles tratam do

mesmo objeto; enquanto o precedente tratava de dividendos, a presente discussão versa sobre

lucros216

.

Seguindo linha de raciocínio semelhante, Eliana Karsten Anceles defende a

flexibilização dos conceitos de disponibilidade econômica e jurídica. Neste sentido, haveria

disponibilidade jurídica dos lucros auferidos no exterior nas hipóteses em que a sociedade

brasileira detivesse o controle da sociedade residente no exterior. Este raciocínio segue, em

muito, as linhas de pensamento demonstradas pela Ministra Ellen Gracie. A necessidade de se

flexibilizar o conceito de disponibilidade adviria da emergência do Estado-transnacional, ao

qual nos referimos anteriormente, em que os países devem tomar medidas de proteção para

resguardar as suas bases imponíveis217

.

Há, no entanto, críticos em relação a este entendimento. Tais críticos pertencem, em

sua maioria, à segunda linha demonstrada acima e defendem a tese da inconstitucionalidade

dos dispositivos normativos ora tratados.

Ricardo Mariz de Oliveira defende que a inclusão do §2º ao artigo 43 do CTN teria

excluído qualquer dúvida quanto à validade da tributação da pessoa jurídica em bases

mundiais, mas questiona, até que ponto este dispositivo legal teria sido o fundamento de

validade para o art. 74 da MP nº 2.158-35/2001 (regra de antidiferimento). Ao analisar a

questão, o referido autor conclui que o §2º do artigo 43 do CTN não permite que a

disponibilização dos lucros auferidos no exterior ocorra através de uma presunção ou ficção

jurídica; o dispositivo requer que haja a sua efetiva disponibilização econômica ou jurídica218

.

Isso porque, o §2º não é uma exceção ao caput do artigo 43, devendo aquele dispositivo ser

interpretado de forma harmoniosa com o comando normativo deste último, de modo que “não

215

Cf. ANDRADE, André Martins. Os limites da tributação universal da renda e a ADI nº 2.588. Revista Fórum

de Direito Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, n. 29, 2007, p. 21-25. 216

O precedente ILL tratava de dividendos uma vez que era somente sobre eles que a fonte poderia ser

responsabilizada pela inobservância do seu dever de reter IRRF como responsável tributária. 217

ANCELES, Eliana Karsten. Transparência Fiscal Internacional (Controlled Fo.reign Corporations – CFC):

uma visão analítica à luz da sistemática jurídico-tributária brasileira. Revista Fórum de Direito Tributário

(RFDT). Belo Horizonte: Fórum, n. 8, 2004, p. 77-128. 218

OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin. 2008, p. 334.

Page 168: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

168

há uma disponibilidade no parágrafo 2º que seja distinta das disponibilidades previstas no

caput” 219

.

O autor sustenta ainda a tese de que o artigo 1º da Lei 9.532/97 não teria sido

expressamente revogado por qualquer dispositivo legal, nem mesmo pelo artigo 74 da MP –

nas vias previstas pelo artigo 12 da Lei Complementar 95 – razão pela qual é ele quem deve

reger a sistemática de tributação de lucros auferidos no exterior220

.

Esta linha de raciocínio se respalda fortemente na tese de que para que o fisco

brasileiro tribute a renda auferida no exterior, não seria possível, em vista dos limites

impostos pelo ordenamento jurídico brasileiro, considerá-la transparente. Apenas através de

um ato formal da fonte pagadora que retire tais rendimentos da sua esfera patrimonial e os

coloque à disposição da pessoa dos seus sócios – e.g. crédito, pagamento, entrega, emprego,

remessa deliberados em assembleia societária ou mesmo a previsão de cláusula no contrato ou

estatuto social dispondo sobre o momento da disponibilização dos lucros – é que seria

possível ao fisco brasileiro tributar tais rendimentos pois seria só neste momento é que

haveria a transferência da sua titularidade de um patrimônio para o outro. Seguindo esta linha

de raciocínio, não há direito ao crédito da investidora dos lucros auferidos no exterior quando

da mera apuração pela investida, pois, neste momento, há tão somente a potencialidade de

direito ao lucro, representada pelo seu direito de voto em assembleia societária a favor da

distribuição dos lucros auferidos.

Tércio Sampaio Ferraz Júnior defende um posicionamento semelhante ao ponderar

que o §2º do artigo 43 do CTN atribuiu competência à lei ordinária apenas para viabilizar a

incidência do imposto de renda sobre rendas auferidas no exterior sem, no entanto, lhe

permitir que o momento e as condições da passagem da situação de “não ter” para a situação

de “ter” – passagem operada através da aquisição de disponibilidade – fossem fixadas

livremente pela lei ordinária, pois a sua definição é elemento inerente ao tipo tributário o qual,

por sua vez, é competência exclusiva da lei complementar regular221

. Assim, a delegação de

competência à lei ordinária deve se ater ao disposto do caput do artigo 43.

Ademais, ao ponderar qual seria a verdadeira natureza do critério de disponibilização

automática previsto no artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001, Tércio Sampaio Ferraz Júnior

conclui que ela seria uma ficção jurídica – na linha apontada por Heleno Tôrres conforme

apontamos anteriormente – e não a uma mera equiparação jurídica na medida em que “a 219

OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin. 2008, p. 338. 220

Ibid., p. 593. 221

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Disponibilidade: CTN art. 43. Revista de Direito Tributário (RDT). São

Paulo: Malheiros, n. 91, 2001, p. 22-23.

Page 169: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

169

equiparação afirma uma igualdade, desprezando desigualdades secundárias, enquanto a ficção

afirma uma desigualdade essencial, procedendo, não obstante, a uma igualação”222

.

O ponto de vista demonstrado acima se respalda na ideia de separação rígida entre

duas pessoas jurídicas que, embora sejam vinculadas entre si pelo fato de uma deter

participação societária da outra, compõem duas entidades juridicamente distintas e autônomas

de modo que a passagem de bens e direitos que compõem um dos patrimônios para o outro

dependeria do preenchimento de determinados requisitos formais (e.g. deliberação em

assembleia de acionistas). Essa visão rígida possui repercussões diretas no conceito de

disponibilidade jurídica adotado que passa a exigir o preenchimento de requisitos formais

para que a renda passe a ser disponível à pessoa jurídica controladora ou coligada. Apesar de

razoável e coerente, esta tese inviabiliza, por completo, a adoção do regime de transparência

fiscal no direito brasileiro que, conforme expusemos anteriormente, é de fundamental

importância para a proteção das bases imponíveis nacionais223

.

Em vista da necessidade de o Brasil ter normas de transparência fiscal internacional

para a proteção da sua arrecadação tributária, outra parte da doutrina, que também se opõe à

tese da constitucionalidade do regime brasileiro, defende a aplicação do princípio da

proporcionalidade como critério destinado a aferir a validade jurídica das normas em análise.

Luís Eduardo Schoueri, ao analisar a adoção do regime de transparência fiscal

internacional em direito comparado, demonstra a sua natureza antibusiva e a sua aplicação

como regra de exceção haja vista o preenchimento de critérios específicos – tais como a

localização dos investimentos feitos no exterior, a natureza dos rendimentos, o propósito

negocial do investimento e a caracterização de controle societário – requisitos esses que,

conforme demonstramos anteriormente, são geralmente adotados pelos países para definir as

situações em que se deve coibir o diferimento da tributação no país de residência do

investidor. Assim, tendo-se em vista o propósito almejado pelo regime brasileiro de tributação

em bases universais, o autor sustenta que ele é desproporcional na medida em que esta

finalidade poderia ser alcançada com uma regra de antidiferimento que se aplicasse

222

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Disponibilidade: CTN art. 43. Revista de Direito Tributário (RDT). São

Paulo: Malheiros, n. 91, 2001, p. 25. 223

Esta crítica fica muito clara quando o próprio autor afirma que: “(...) nem mesmo o fato de alguns – mas não

todos – investimentos estarem em controladas situadas em paraísos fiscais autoriza uma mudança de atitude

interpretativa para validar o art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35/2001, especialmente sabendo-se que a lei

brasileira contém inúmeras normas dirigidas a atenuar os efeitos fiscais deletérios para a arrecadação nacional,

decorrentes dessas situações, e nenhuma delas tem a ver com a distribuição de lucros e dividendos, além de que

o próprio art. 74 não é restrito às coligadas ou controladas mantidas naquelas jurisdições.” Vejam-se maiores

detalhes em: OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin. 2008,

p. 363.

Page 170: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

170

seletivamente de modo a coibir, tão somente, o abuso e não a onerar todas as formas de

investimentos feitos por empresas brasileiras no exterior. Através da aplicação do princípio da

proporcionalidade, resultaria que apenas as rendas produzidas por investimentos feitos em

paraísos fiscais ou beneficiados por regimes fiscais privilegiados – e que preenchessem os

demais requisitos delimitados acima – é que seriam atingidos pelo regime brasileiro224

.

Embora esta linha de entendimento venha a se somar à que defende a

inconstitucionalidade do regime, ela propõe a sua válida aplicação quando preenchidos os

critérios mencionados acima de modo a alinhar as normas brasileiras ao modelo

internacionalmente consagrado. Isto porque as rendas (passivas) auferidas por sociedades

constituídas sem propósito negocial em paraísos fiscais ou nas situações em que o

contribuinte se beneficie de regimes fiscais privilegiados estarão, desde a sua apuração,

disponíveis já que a legislação do país permite que o sócio controlador tenha elevada

ingerência na sociedade controlada, desprezando, por vezes, formalidades societárias que são

inerentes à existência de duas entidades juridicamente distintas e autônomas, levando a crer

serem meras sociedades “casca de ovo” 225

.

O que praticamente todos os autores que entendem ser o regime brasileiro

inconstitucional (segunda linha doutrinária) possuem em comum é o fato de que nenhum

deles defende, de fato, que seja juridicamente válida a tributação através do reconhecimento,

pelo regime de competência, de receita decorrente do ajuste positivo feito no patrimônio da

sociedade investidora brasileira em virtude da equivalência patrimonial dos seus

investimentos em controladas e coligadas no exterior, ponto este considerado central pela

grande maioria dos autores que defende a tese da constitucionalidade do artigo 74 da MP

2.158-35 e do §2º do artigo 43. Este entendimento é, por sua vez, um reflexo da visão da

pessoa jurídica como ente distinto e autônomo em relação à pessoa jurídica que detém

participação na sua estrutura societária, principalmente, no que diz respeito ao seu patrimônio.

É por esta razão que o conceito de disponibilidade jurídica torna-se menos flexível e sujeito

ao preenchimento de muitos requisitos formais para a sua qualificação. Estas são,

fundamentalmente, as premissas que opõem as duas linhas doutrinárias.

224

SCHOUERI, Luis Eduardo. Transparência fiscal internacional, proporcionalidade e disponibilidade:

considerações acerca do artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35. Revista Dialética de Direito Tributário

(RDDT). São Paulo: Dialética, n. 132, 2007, p. 39-50. 225

Há outros autores que possuem entendimento muito semelhante a este. Entre eles: BIANCO, João Francisco.

Transparência fiscal internacional. São Paulo: Dialética. 2007, p. 80-83; GODOI, Marciano Seabra. O imposto

de renda e os lucros auferidos no exterior. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do

direito tributário. São Paulo: Dialética, v. 6, 2002, p. 277-289; e SILVA, Sérgio André Rocha G. da.

Transparência fiscal no direito tributário brasileiro. Revista Dialética de Direito Tributário (RDDT), São Paulo:

Dialética, n. 99, 2003, p. 118-121.

Page 171: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

171

Entre a doutrina especializada, fica muito claro que as linhas de entendimento

contrárias aos votos do Ministro Nelson Jobim e da Ministra Ellen Gracie são motivadas por

argumentos que amparam um posicionamento visivelmente favorável aos interesses dos

contribuintes, em especial, grandes empresas de capital nacional internacionalizadas (segunda

linha doutrinária). Por outro lado, há também autores que se propõe a defender a validade

jurídica do regime de tributação de lucros auferidos no exterior, sustentando a coerência dos

argumentos do Ministro Nelson Jobim e, neste sentido, estão aliados a interesses fiscais

(primeira linha doutrinária). Trata-se aqui de uma batalha que se trava no campo jurídico

motivada, na maior parte dos casos, pela proteção de um determinado grupo de interesse, seja

ele o dos contribuintes, seja o do fisco. Esta disputa torna-se perfeitamente visível quando se

olha para o placar acirrado da ADI 2.588 no STF.

Não pretendemos, no presente trabalho, firmar um posicionamento sobre qual dessas

linhas deve prevalecer. O nosso objetivo será, no entanto, chamar atenção para um novo

campo de debate que não está preso a estas duas linhas analisadas. Trata-se do (possível)

segundo momento de debate sobre a validade jurídica do regime tributário que não excluirá a

discussão quanto conceito constitucional de renda, mas se focará na adequação regime frente

à Ordem Econômica Constitucional.

4.3.1.3. Os efeitos fiscais do Método da Equivalência Patrimonial (MEP)

Em diversos momentos do presente trabalho, fizemos menção ao método da

equivalência patrimonial sem que, na ocasião, tivéssemos feito uma análise mais profunda

sobre o tema. Os comentários que serão feitos neste tópico são importantes na medida em que

eles esclarecem os fundamentos nos quais algumas das linhas de pensamento demonstradas

acima estão respaldadas.

O que já deve ter ficado claro até o presente momento é que o MEP é uma técnica de

avaliação de investimentos feitos em sociedades controladas e coligadas e que a legislação

vigente tem utilizado a referida técnica como forma de quantificação e submissão dos

resultados positivos auferidos no exterior – bem como os demais elementos positivos que

influenciam no cálculo da mutação patrimonial positiva sofrida pelas controladas e coligadas

Page 172: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

172

estrangeiras – à tributação imediata na pessoa da sociedade controladora ou coligada residente

no Brasil.

Antes mesmo de entrarmos na questão dos efeitos fiscais atribuídos ao MEP, cabe

tecer comentários mais detalhados sobre o seu funcionamento na legislação comercial. O

dever de avaliar os resultados de coligadas e controladas está previsto no artigo 248 da Lei

6.404/76 (Lei das S.A.). De acordo com o referido dispositivo legal, “os investimentos em

coligadas ou em controladas e em outras sociedades que façam parte de um mesmo grupo ou

estejam sob controle comum serão avaliados pelo método da equivalência patrimonial”,

devendo o valor do investimento ser determinado através da aplicação do percentual de

participação societária da sociedade investidora sobre o valor do patrimônio líquido da

controlada ou coligada, o qual deverá ser reajustado a cada novo exercício. Assim, a diferença

positiva decorrente dos resultados auferidos pelas controladas e coligadas deverá compor, nos

termos do artigo 248, o resultado do exercício.

Na sistemática vigente anteriormente à reforma realizada pelas Leis nº 11.638/2007 e

11.941/2009, o MEP só era aplicável em relação às coligadas nas quais a detentora de

participação societária possuísse “investimento relevante” – nos termos definidos pelo

parágrafo único do artigo 247 da Lei das S.A. – e sobre cuja administração a detentora de

participação societária tivesse “influência”. No que diz respeito às controladas, o MEP era

aplicável nas hipóteses em que a controladora detivesse 20% ou mais do capital social.

As duas leis, no entanto, modificaram o enunciado normativo do artigo 248 da Lei das

S.A. de modo a ampliar a abrangência da aplicação do MEP o qual passou a ser obrigatório a

todos os investimentos em coligadas, controladas e em outras sociedades que façam parte de

um mesmo grupo ou estejam sob controle societário comum. Apenas nas situações em que a

sociedade não fizer parte do mesmo grupo e não estiver sujeita a controle comum é que o

MEP não será aplicável, estando tais investimentos sujeitos a avaliação pelo método do

custo226

.

A despeito de a legislação comercial determinar a inclusão dos resultados do ajuste

positivo constatado em virtude da avaliação dos investimentos pela equivalência patrimonial

na apuração do resultado contábil, a legislação fiscal previa, desde a publicação do Decreto-

226

Trata-se do método em que o valor dos investimentos da pessoa jurídica não são atualizados na medida em

que são contabilizados resultados positivos nas sociedades investidas. No método do custo, mantém-se o valor

histórico do investimento, não havendo qualquer ajuste contábil na conta do investimento no ativo da

investidora, nem qualquer contrapartida em conta de resultado.

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173

lei nº 1.598/77 no seu artigo 23, que o resultado positivo ou negativo dessa avaliação não

seria computado na apuração do lucro real (resultado fiscal). Tratava-se da regra de

neutralidade fiscal dos efeitos da contrapartida do ajuste decorrente do MEP. Com a vigência

da Lei 9.249/95, que introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a tributação em bases

universais da pessoa jurídica com uma regra de antidiferimento ampla, a regra da neutralidade

fiscal do ajuste do MEP foi, ao menos em tese, mantida pelo seu artigo 25, §6º. A

neutralidade fiscal do MEP não era prevista apenas pela legislação do IRPJ, como também

pela legislação aplicável à determinação da base de cálculo da CSLL227

.

Foi com a regulamentação do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 que a contrapartida

do ajuste promovido pelo MEP deixou de ser considerada neutra para fins tributários, ao

menos em relação a investimentos realizados no exterior. Com efeito, a Instrução Normativa

SRF nº 213/2002 previu, em seu artigo 7º, que os valores relativos aos resultados positivos da

equivalência patrimonial deveriam ser considerados no balanço apurado em 31 de dezembro

pela empresa enquanto que os resultados negativos deveriam ser adicionados para fins de

determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL. Ou seja, por meio de instrução

normativa, determinou-se a tributação do ajuste positivo e a neutralidade fiscal do ajuste

negativo do MEP, o que somente veio a ressaltar a regra de que o contribuinte não poderia

compensar os prejuízos incorridos no exterior.

Diante dessas alterações, atualmente a regra de neutralidade fiscal do MEP só é válida

para investimentos detidos pela pessoa jurídica no Brasil, de modo que ele deixa de ter

neutralidade fiscal quando os investimentos estão localizados no exterior. Há, entretanto,

fortes críticas que vem sendo apresentadas à sistemática atual.

Primeiramente, criticou-se o fato de se utilizar de um método, cuja finalidade consiste

em permitir a consolidação das mutações patrimoniais decorrentes dos resultados econômicos

havidos em cada uma das unidades componentes do grupo econômico ao longo do tempo,

para fins de reconhecimento e quantificação da renda para posterior submissão à tributação

nacional já que o resultado da equivalência patrimonial não passa de reconhecimento do que

já ocorreu na investida, ou seja, o que já foi gerado e tributado. A consequência prática de se

atribuir efeitos fiscais ao resultado apurado pelo MEP é a manipulação artificial da base de

cálculo do IRPJ e da CSLL.

227

Conforme dispõe o artigo 2º, §1º, c, 4, da Lei 7.689/88.

Page 174: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

174

A segunda delas diz respeito à impossibilidade de uma instrução normativa prever

tratamento legal distinto daquele estabelecido em lei, contrariando-a frontalmente. Conforme

sustentamos, a neutralidade da contrapartida do MEP estava previsto no artigo 25, §6º da Lei

9.249/95, tendo o referido dispositivo sido mantido até mesmo pelo artigo 74 da MP 2.158-

35/2001 que não o revogou expressamente. Neste sentido, teria o dispositivo ora tratado da

instrução normativa contrariado frontalmente dispositivo legal o que o tornaria ilegal.

A terceira crítica também se refere a possível extravasamento do âmbito regulamentar

de uma instrução normativa e é uma decorrência da primeira crítica. Critica-se o fato de o

artigo 7º da IN ter determinado a tributação de toda a contrapartida em conta de resultado do

ajuste positivo da equivalência patrimonial enquanto que a legislação teria previsto a

tributação, tão somente, dos lucros, rendimentos e ganhos de capital (art. 25 da Lei

9.249/95)228

. Assim, ao tributar toda a contrapartida positiva em conta de resultado do MEP, a

base de cálculo do imposto teria sido alargada de modo a incluir variações patrimoniais

positivas das sociedades investidas que não representam renda e que nem mesmo possuem

respaldo legal (e.g. transferências patrimoniais)229

.

228

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendido que o artigo 7º da Instrução Normativa nº 213/2002 é

ilegal na medida em que, ao submeter todo o acréscimo patrimonial sofrido pela controlada à tributação na

pessoa da controladora, ele estaria captando valores que não necessariamente correspondem ao lucro, ampliando

indevidamente a base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Neste sentido, vejam-se os seguintes julgados: EDcl no

AgRg nos EDcl no REsp 1232796/RS, Ministro Relator: Humberto Martins, segunda turma, data de julgamento:

27/03/2012; REsp 1222719/RS, Ministro Relator: Humberto Martins, segunda turma, data de julgamento:

03/05/2011; REsp 983134/RS, Ministro Relator: Castro Meira, segunda turma, data de julgamento: 03/04/2008. 229

Essas três críticas foram precisamente apontadas por: CEZAROTTI, Guilherme. Lucros auferidos no exterior:

a tributação do resultado da equivalência patrimonial pela IN SRF nº213/02. Revista Dialética de Direito

Tributário (RDDT). São Paulo: Dialética, n. 97, 2003; GONÇALVES, José Artur Lima. Equivalência

patrimonial e imposto sobre a renda. Revista de Direito Tributário (RDT). São Paulo: Malheiros, n. 100, 2008;

GONÇALVES, José Artur Lima. Imposto de renda sobre o lucro das coligadas e controladas estabelecidas no

exterior. Revista de Direito Tributário (RDT). São Paulo: Malheiros, n. 87, 2001.

Page 175: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

175

4.3.1.4. Demais questões jurídicas presentes no 1º momento de debate

4.3.1.4.1. A questão da compensação dos prejuízos incorridos no

exterior com os resultados positivos apurados no Brasil

Juntamente com os questionamentos sobre a validade jurídica do regime de tributação

de lucros auferidos no exterior, conforme expusemos acima, questionou-se, também, a regra

prevista no §5º do artigo 25 da Lei 9.249/95, segundo a qual “os prejuízos e perdas

decorrentes das operações referidas neste artigo não serão compensados com lucros auferidos

no Brasil”.

Já tratamos deste dispositivo no capítulo 2 quando analisamos criticamente o processo

legislativo relativo à elaboração da referida lei. Na ocasião, chamamos atenção para as

diversas emendas apresentadas contra o dispositivo legal uma vez que os congressistas

consideraram que atribuir tratamento distinto a lucros e prejuízos incorridos no exterior – uma

vez que os lucros, ganhos de capital e demais rendimentos são tributados no Brasil enquanto

que os prejuízos não podem ser trazidos para o país e abatidos na base de cálculo da pessoa

jurídica residente – seria injusto e contra o princípio da isonomia tributária.

Esclarecemos, no entanto, que a razão que teria motivado a manutenção do enunciado

do dispositivo normativo, nos moldes originalmente propostos, teria sido o receio das

autoridades fazendárias brasileiras de que os contribuintes se utilizassem de artifícios para

“gerar” prejuízos no exterior que, caso pudessem ser abatidos do resultado positivo incorrido

no Brasil, poderiam comprometer a arrecadação tributação nacional.

Não obstante a coerência do argumento apresentado pelo Dep. Antônio Kandir ao

rejeitar as emendas que propunham a alteração do conteúdo da regra tratada, muitos são os

questionamentos jurídicos ensejados por ela na atualidade. O mais importante deles diz

respeito à possível afronta da regra ao princípio da capacidade contributiva previsto no §1º do

artigo 145 da C.F. uma vez que, através da referida regra, se está restringindo, indevidamente,

os fatores negativos que, juntamente com os positivos, levam à correta aferição da base de

cálculo do IRPJ e da CSLL que é justamente o lucro, entendido como sendo o acréscimo

patrimonial experimentado pela pessoa jurídica, de acordo com o artigo 43, inciso I, do CTN.

Dessa forma, a restrição criada pela lei à compensação de prejuízos auferidos no exterior

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176

afronta o princípio da capacidade contributiva e o conceito constitucional nuclear de renda na

medida em que tributa aquilo que não configura legitima manifestação de capacidade

contributiva e que sequer é lucro.

Além do mais, a literatura especializada se opõe à pretensão do legislador de combater

as práticas de “geração” de prejuízos no exterior através da criação de uma norma que impede

que os prejuízos das controladas e coligadas sejam “trazidos” ao Brasil para compensá-los

com os resultados positivos apurados pela sócia brasileira, alegando que, embora a

neutralização dos prejuízos fictícios seja um objetivo indispensável, o legislador não poderia

tê-lo feito através de uma regra genérica de vedação à compensação de prejuízos, havendo,

para tanto, controles especiais e a exigência de informações para que as autoridades fiscais

possam se cercar da certeza necessária de que os prejuízos são reais230

.

Uma segunda crítica que se poderia apresentar à regra brasileira é que ela atribui

tratamento jurídico distinto a lucros e prejuízos. Ao mesmo tempo em que a legislação

determina que os lucros auferidos no exterior sejam incluídos na apuração da base de cálculo

dos tributos devidos pela sócia brasileira, ela proíbe que o mesmo seja feito com prejuízos.

Não há, portanto, isonomia de tratamento dos fatores (positivos e negativos) que influenciam

na correta apuração da base de cálculo dos tributos brasileiros.

A consequência prática da regra de neutralização fiscal dos prejuízos incorridos no

exterior é corretamente apontada por Luis Eduardo Schoueri quando o autor afirma que

“empresas que têm prejuízos acumulados anos a fio e, de repente, têm um pequeno lucro,

pagam imposto de renda brasileiro, a despeito de o acionista brasileiro jamais ter acesso

àquele recurso”231

. Isso ocorrerá na medida em que a sócia brasileira apure lucros em

território brasileiro e as suas controladas apurem prejuízos no exterior que não poderão ser

compensados com lucros apurados.

230

Cf. GRECO, Marco Aurélio. Globalização e tributação da renda mundial. Revista Fórum de Direito

Tributário (RFDT), Belo Horizonte: Fórum, ano 1, n. 2, 2003, p. 86-90. 231

SCHOUERI, Luis Eduardo. Anotações sobre temas de direito tributário internacional. In: SANTI, Eurico

Marcos Diniz de; ZILVETI, Fernando Aurelio; MOSQUEIRA, Roberto Quiroga (Coord.). Tributação

internacional e dos mercados financeiros e de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

Page 177: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

177

4.3.1.4.2. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e as

regras de preços de transferência

O regime tributário de preços de transferência é regido, no direito brasileiro, pelos

artigos 18 a 24-B da Lei nº 9.430/96 e tem como propósito fundamental coibir que, nas

relações de mercado realizadas por partes vinculadas – seja o vínculo de natureza societária

(e.g. participação no capital social, sociedades sujeitas a controle comum, sociedades

pertencentes ao mesmo grupo societário, entre outras hipóteses), seja o vínculo de natureza

econômica normalmente decorrente de algum negócio celebrado pelas partes (e.g. contrato de

agência e distribuição) –, sejam estipulados preços artificiais – ou seja, preços que não teriam

sido fixados em transações normais de mercado entre partes independentes – com o propósito

preponderante ou exclusivo de reduzir a base de cálculo do imposto devido no Brasil e

transferir, indiretamente, lucros ao exterior. Em outras palavras, o objetivo do regime de

preços de transferência é assegurar que as transações entre partes vinculadas sigam o padrão,

defendido pela OCDE, at arm’s length para fins fiscais232

. Este regime está compreendido no

conjunto de medidas adotadas pelos países para lidar com estratégias abusivas de elisão fiscal

internacional.

As regras que estabelecem preços-parâmetro de transferência entre partes vinculadas,

sendo uma delas residente no Brasil e outra no exterior, se aplicam em relação a compra e

venda de mercadorias, prestação de serviços, tanto nas operações de importação quanto nas de

exportação, bem como na fixação da taxa de juros em contratos internacionais de mútuo. Vale

lembrar que, em diversas legislações, inclusive na brasileira, a norma dispensa o requisito de

“vinculação” quando uma das partes com a qual a outra transaciona é residente em paraíso

fiscal ou se beneficia de regime fiscal privilegiado.

Ocorre que, da aplicação conjunta dos regimes de preços de transferência e de

tributação dos lucros auferidos no exterior pela pessoa jurídica, pode resultar em uma grave

anomalia do sistema. Explicaremos esta afirmação através de um exemplo prático.

232

São vários os relatórios da OCDE em que consta o seu posicionamento em relação ao objetivo das normas de

preços de transferência em assegurar que transações entre partes vinculadas obedeçam ao padrão at arm’s length

para fins fiscais como medida de proteção da arrecadação tributária dos países contra estratégias que visem, pura

ou preponderantemente, a elisão fiscal. Entre os diversos relatórios em que a OCDE trata da questão das regras

de preços de transferência, veja-se: OECD. Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax

Administrations. Paris, 2010.

Page 178: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

178

Imagine-se que a empresa A é residente no Brasil e detenha 80% da participação

societária da empresa B, residente na Holanda. Imagine-se também que a empresa A promova

a importação de mercadorias da empresa B tendo pagado a esta última o valor de R$

500.000,00. Considerando que após a aplicação dos métodos para a correta estimativa do

valor do preço-parâmetro de importação, previstos no artigo 18 da Lei nº 9.430/96, o método

que alcançou o maior valor – o mais favorável ao contribuinte, portanto – determinou que o

preço da operação, para fins de dedução na forma de custo, tenha sido R$ 300.000,00,

tornando, consequentemente, indedutível o valor de R$ 200.000,00 na apuração da base de

cálculo do IRPJ e da CSLL.

Imagine-se que a empresa A também esteja sujeita ao pagamento de IRPJ e CSLL

sobre a sua renda mundial, ou seja, sobre os resultados positivos apurados por controladas,

coligadas, filiais e sucursais residentes no exterior, seguindo-se, para tanto, a sistemática já

tratada anteriormente à exaustão do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001. Assim, da aplicação

da sistemática resultaria que a empresa A deveria arcar com a tributação de IRPJ e CSLL

sobre R$ 400.000,00 (80% do valor do resultado positivo apurado pela controlada).

A anomalia está justamente no fato de que cada uma das operações toma, como base,

valores diferentes para determinação de consequências tributárias; enquanto o regime de

preços de transferência limita o valor da transação para efeitos de dedutibilidade na forma de

custo na apuração da base de cálculo dos tributos incidentes, o regime de tributação de lucros

auferidos no exterior determina que a fração de participação societária da integralidade do

valor da transação efetuada seja tida como base de cálculo dos tributos brasileiros, antes

ainda, diga-se de passagem, da disponibilização dos lucros aos sócios brasileiros.

A consequência disso é que o sócio brasileiro não apenas deve arcar com a tributação

incidente sobre lucros ainda não disponibilizados (400.000 x 0,34 = 136.000), como também

com a fração do valor da operação que não pôde ser deduzida na importação – e que pode ser

considerada como parcela de imposto que se pagou a mais – devido à legislação de preços de

transferência (200.000 x 0,34 = 68.000)233

. Se por um lado a legislação brasileira determina

que o fisco reajuste o preço das transações para menos entre partes vinculadas quando se

regula a extensão do direito de deduzir custos e despesas da base de cálculo do imposto

brasileiro, por outro este “reajuste” não vale quando o objetivo é tributar em bases universais.

233

Utilizando-se de exemplo semelhante, Diogo Ferraz chama atenção para o fenômeno tratado. Neste sentido,

veja-se: FERRAZ, Diogo. O possível conflito entre os preços de transferência e a legislação CFC. Revista

Dialética de Direito Tributário (RDDT), São Paulo: Dialética, n. 121, 2005, p. 22-33.

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179

Há, neste sentido, grande incoerência no fato de o sistema tributário admitir valores

distintos como base de cálculo, para dois regimes jurídicos que se aplicam aos resultados de

uma mesma transação, o que acarreta a bitributação e a consequente violação do princípio da

capacidade contributiva – orientador de todo o sistema tributário nacional – justamente da

parcela que não se permite deduzir em virtude da aplicação da legislação de preços de

transferência, mas que é tributada através do regime de tributação em bases mundiais234

.

4.3.2. 2º momento de debate da constitucionalidade do regime: a Ordem

Econômica Constitucional e a internacionalização empresarial

O debate sobre a constitucionalidade do regime brasileiro de tributação de lucros

auferidos no exterior está gradualmente migrando da discussão quanto à disponibilização da

renda e o conceito constitucional de renda para um debate maior que visa confrontar se os

efeitos do regime sobre o processo de internacionalização produtiva das empresas nacionais,

dos quais tratamos no capítulo anterior, afrontam a Ordem Econômica Constitucional, o que

levaria à sua invalidade jurídica.

A presente linha de debate não despreza o debate que caracterizou o 1º momento.

Procura, por outro lado, chamar atenção para as possíveis repercussões jurídicas, ensejadas

pelos efeitos econômicos advindos da incidência do regime brasileiro, no plano das normas e

princípios constitucionais que orientam a ordem econômica. O presente debate só vem a se

somar ao debate anterior, não a substituí-lo. O nosso objetivo, portanto, é analisar as

repercussões jurídicas do regime de tributação de lucros auferidos no exterior sob uma

perspectiva nova, até então, pouco explorada. Abaixo, demonstraremos em que medida os

efeitos do regime brasileiro sobre o processo de internacionalização produtiva de empresas

brasileiras podem afrontar a Ordem Econômica Constitucional.

234

Cf. MACIEL, Taísa Oliveira. Tributação dos Lucros das Controladas e Coligadas Estrangeiras. Rio de

Janeiro: Renovar, 2007, p. 112-118.

Page 180: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

180

4.3.2.1. Constituição, ordem econômica e desenvolvimento nacional

A Constituição Federal de 1988 seguiu a tradição de algumas das suas antecessoras e

dispôs sobre a ordem econômica. A doutrina especializada denomina a parte da Constituição

destinada a regular a ordem econômica de “constituição econômica” a qual, segundo André

Ramos Tavares, corresponde aos princípios, regras ou instituições que traduzem

juridicamente os elementos determinantes do sistema econômico235

. Para José Afonso da

Silva, a constituição econômica (formal) é “a parte da Constituição que interpreta o sistema

econômico, ou seja: que dá forma ao sistema econômico, que, em essência, é o capitalista”236

.

Não se pode incorrer no risco de se dizer que ordem econômica tem o mesmo significado que

constituição econômica ou ordem constitucional econômica uma vez que estas últimas

expressões correspondem a todas as regras e princípios constitucionais que regem a economia

como um todo, sendo que a primeira expressão corresponde ao resultado da sua incidência no

plano da economia237

.

Deve-se, entretanto, fazer a ressalva de que a pretensão de se analisar a constituição

econômica como objeto autônomo em relação ao restante do texto constitucional é criticável

do ponto de vista metodológico, sobretudo, porque leva à uma interpretação restrita do texto

constitucional. Deste modo, todas as disposições relativas à disciplina constitucional da ordem

econômica devem ser lidas em conjunto com o restante dos dispositivos constitucionais para

que delas seja extraída a melhor interpretação.

Não cabe aqui fazermos uma análise detalhada das origens históricas da constituição

econômica, mas vale a pena destacar que a sua emergência teve como pressuposto

fundamental a ideia de que a economia tem suas imperfeições e que cabe ao Estado assegurar

valores, princípios e regras que deverão delinear o seu funcionamento no plano prático, de

modo a evitar que decorram efeitos perversos de uma economia que não sofre qualquer

regulação estatal, tais como abusos concorrenciais e injustiças sociais provocadas pelas

desigualdades econômicas. Não é a toa que o fenômeno da constituição econômica tomou

235

TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2006, p. 75. 236

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 791. 237

Segundo Tavares, a ordem econômica é “a expressão de um certo arranjo econômico, dentro de um específico

sistema econômico, preordenado juridicamente.” De acordo com o autor, a ordem econômica é o resultado da

incidência de normas de caráter mais amplo do que aquelas presentes na constituição econômica na medida em

que apenas uma parte das normas que incidem sobre a ordem econômica estão previstas no conjunto de regras e

princípios formalmente previstos na constituição econômica, sendo que muitas das normas incidentes estão

previstas na legislação infraconstitucional. Neste sentido, veja-se: TAVARES, op. cit, p. 83.

Page 181: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

181

maiores proporções depois da segunda guerra mundial quando os modelos clássicos que

orientavam a economia, os quais pregavam que o mercado se autorregulava de modo a se

ajustar no futuro não obstante eventuais distorções de curto e médio prazo, foram muito

questionados devido à crise mundial de 1929 e substituídos por modelos mais

intervencionistas sob a influência da escola keynesiana.

O diagnóstico feito por Dimitri Dimoulis e Oscar Vilhena Vieira aponta que entre o

século XIX e XX as constituições passaram por um forte fogo cruzado de distintas posições

políticas, ora mais liberais ora mais intervencionistas, que erodiram o prestígio político que

elas haviam conquistado anteriormente, sendo considerada por muitos como mera

formalização e consagração de um poder de fato238

. No entanto, conforme apontam os

próprios autores, ficou claro, após a segunda guerra mundial, que “as constituições deveriam

zelar pela sua característica liberal – ou seja, protetiva de direitos – mas o desprezo pela

questão social deveria ser igualmente superado”239

. Assim, a tentativa de conciliar a

perspectiva liberal com a social deu ensejo à pretensão das constituições em transformar

radicalmente a realidade social presente. É neste contexto em que se inserem as constituições

aspiracionais, dirigentes ou transformadoras preocupadas não apenas em assegurar a realidade

existente, mas também em estabelecer um programa para o futuro240

.

Dentre os valores transformadores incorporados por essas constituições está o

desenvolvimento como sendo um objetivo fundamental a ser alcançado pelo Estado. A

Constituição Federal de 1988 está, segundo Vieira e Dimoulis, inserida neste contexto e

possui pretensões claramente transformadoras, sendo ela “típica do reencontro entre

constitucionalismo e desenvolvimento no sentido coletivo-social do termo”241

.

Em relação à ordem constitucional econômica, a Constituição Federal de 1988 prevê

princípios em sentido estrito e em sentido amplo242

. Dentre os princípios em sentido amplo

que orientam a ordem econômica – ou seja, aqueles esparsos no texto constitucional não

expressamente previstos no capítulo I do título VII que dispõe sobre “A Ordem Econômica e

238

DIMOULIS, Dimitri, VIEIRA, Oscar Vilhena. Constituição e desenvolvimento. In: RODRIGUEZ, José

Rodrigo (Org.). Fragmentos para um dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011,

p. 51. 239

Ibid., p. 51. 240

Cf. BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição

de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 31-35. 241

DIMOULIS; VIEIRA, op. cit., p. 52. 242

Adotamos, neste sentido, o mesmo critério de separação conceitual proposto por André Ramos Tavares. Neste

sentido, confira-se: TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2006, p.

125-128.

Page 182: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

182

Financeira” – encontra-se a garantia do desenvolvimento nacional previsto no inciso II do

artigo 3º como “objetivo fundamental da República Federativa do Brasil”. Os princípios em

sentido estrito que orientam a ordem econômica – expressamente previstos nos incisos do

artigo 170 – são: (i) a soberania nacional; (ii) a propriedade privada; (iii) a função social da

propriedade; (iv) a livre concorrência; (v) a defesa do consumidor; (vi) a defesa do meio

ambiente; (vii) a redução das desigualdades regionais e sociais; (viii) a busca do pleno

emprego; e (ix) o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob

as leis brasileiras e que tenham a sua sede e administração no País.

É inegável, portanto, que a Constituição Federal de 1988, transformadora em sua

essência, incorporou o desenvolvimento como objetivo fundamental da República em sentido

amplo o qual deve ser aplicado como direcionador da ordem econômica. O objetivo da

garantia do desenvolvimento deve se aplicar, sobretudo, no desempenho das funções de

fiscalização, incentivo e planejamento do Estado quando atua como agente normativo e

regulador da atividade econômica, em conformidade com o disposto no artigo 174 da

Constituição Federal.

Na visão de Gilberto Bercovici, a Constituição Federal estabeleceu as bases para um

projeto nacional de desenvolvimento e deve o Estado assumir o papel central no processo de

desenvolvimento através da sua função de planejamento – como de fato foi feito nos planos

adotados pelo Governo Federal ao longo do século XX – deixando-se de limitar a sua atuação

à fiscalização e ao incentivo dos agentes econômicos privados. Para definir os objetivos a

serem alcançados pelo plano de desenvolvimento, deve o Estado se orientar por visões

políticas e ideológicas previstas na própria Constituição243

. Eros Roberto Grau também

demonstra postura favorável à centralidade do Estado no papel de planejador do

desenvolvimento nacional ao afirmar que:

Garantir o desenvolvimento nacional é, tal qual construir uma sociedade livre, justa

e solidária, realizar políticas públicas cuja reivindicação, pela sociedade, encontra

fundamentação neste art. 3º, II. O papel que o Estado tem a desempenhar na

perseguição da realização do desenvolvimento, na aliança que sela com o setor

privado, é, de resto, primordial 244

.

243

BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de

1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 69-71. 244

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 217.

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183

Assim, o Estado deve cumprir o importante mandato constitucional de promover o

desenvolvimento através da criação de planos econômicos e da adoção de uma política

industrial clara que deve servir como parâmetro orientador para o setor privado e

determinante para o setor público, devendo ele estimular atividades econômicas que sejam do

interesse nacional tendo-se em vista o seu desenvolvimento econômico, sob pena de agressão

à ordem econômica constitucional vigente. Neste sentido, tendo-se em vista a sistemática

constitucional em vigor, podemos afirmar que uma política pública – econômica, industrial,

agrícola e até mesmo fiscal – que não favoreça o desenvolvimento nacional será

inconstitucional.

Há discussões doutrinárias quanto à densidade normativa do artigo 3º, inciso II da

Constituição Federal que podem ser traduzidas na seguinte questão: Seria o artigo 3º, II, da

Constituição uma norma de conteúdo programático (baixa densidade normativa) ou o referido

mandamento constitucional possui relevância normativa maior (norma de elevada densidade

normativa)? Dimoulis e Vieira enfrentaram esta questão e defendem a vinculatividade direta e

imediata da norma que institui o objetivo de se assegurar o desenvolvimento em dois sentidos

distintos: primeiro, enquanto indicação ideológica do constituinte que deve servir como

orientador do processo de aplicação do direito constitucional e infraconstitucional; segundo,

na condição de mandamento endereçado ao legislador que deve implementar programas

direcionados a alcançar tal objetivo sob pena de responsabilização jurídica e política245

.

Concordamos com esta visão e a adotamos como pressuposto da construção interpretativa que

se fará adiante.

Devemos fazer aqui a ressalva de que, quando se pensa em uma política de

desenvolvimento nacional, não se pode restringir o conceito de desenvolvimento ao mero

crescimento econômico, pois esta dimensão tomada em sua individualidade não poderá

ensejar o desenvolvimento do país como um todo, embora contribua substancialmente.

Segundo Amartya Sen, “desenvolvimento” deve ser um conceito analisado em uma “moldura

conceitual ampla” não se restringindo apenas à sua dimensão econômica246

. A Constituição

Federal de 1988 não restringiu, no entanto, o conceito de desenvolvimento apenas à sua

245

DIMOULIS, Dimitri, VIEIRA, Oscar Vilhena. Constituição e desenvolvimento. In: RODRIGUEZ, José

Rodrigo (Org.). Fragmentos para um dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011,

p. 56. 246

Cf. SEN, Amartya. Reforma jurídica e reforma judicial no processo de desenvolvimento. In: Direito e

Desenvolvimento: análise da ordem jurídica brasileira sob a ótica do desenvolvimento.

Page 184: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

184

acepção econômica na medida em que assegura direitos de diversas naturezas distintas (civis,

sociais, culturais, entre outros).

4.3.2.2. Internacionalização empresarial e a Ordem Econômica

Constitucional: Quais são os limites jurídicos que o Estado deve

observar ao criar uma política industrial de internacionalização

produtiva?

Ao tratar da relação do tema da internacionalização produtiva e do desenvolvimento

nacional, deve-se buscar responder a seguinte pergunta: Em que medida a internacionalização

produtiva favorece o desenvolvimento nacional? Embora a tarefa de responder essa pergunta

necessite de conhecimentos extrajurídicos, a sua resposta tem implicações claramente

jurídicas na medida em que ela determinará se a postura do Governo Federal, ao estabelecer

um regime de tributação em bases universais da pessoa jurídica com uma regra de

antidiferimento ampla, está de acordo ou não com o mandato que lhe foi atribuído pela

constituição econômica (de assegurar o desenvolvimento).

As possíveis respostas apresentadas à questão acima, deverão ser sopesadas, pelo

formulador de políticas públicas, com os possíveis limites que o ordenamento jurídico – em

especial a Constituição Federal – poderá impor na fixação da política industrial desejada.

Neste sentido, cabe perquirir a pergunta colocada no título do presente subitem: Quais são os

limites jurídicos que o Estado deve observar ao criar uma política industrial de

internacionalização produtiva?

No capítulo 3, analisamos, também, o posicionamento da literatura especializada em

relação às implicações da estratégia de internacionalização produtiva para o desenvolvimento

nacional como um todo, ocasião em que ponderamos as críticas feitas aos seus possíveis

efeitos sobre a geração de empregos, balança comercial (exportações), arrecadação tributária e

investimentos feitos no Brasil, bem como os argumentos contrários que podem ser

apresentados a essas críticas.

Demonstramos, no capítulo 3, que o Brasil ainda não assumiu uma postura clara

quanto a apoiar ou não a internacionalização produtiva das suas empresas, sendo este um tema

que carece de um posicionamento governamental claro, haja vista o contexto atual marcado

Page 185: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

185

pela importância da estratégia de internacionalização produtiva para as empresas de capital

nacional como condição para o seu crescimento e sobrevivência em um mundo globalizado.

Nas políticas industriais brasileiras, observamos que os governos da Nova República

parecem ter optado pela estratégia de internacionalização comercial através do fomento às

exportações brasileiras ao invés de incentivar a criação de unidades produtivas no exterior.

Em relação à internacionalização produtiva, os governos assumiram uma postura tímida e

pouco clara, podendo ela ser vista quando se observa que o estatuto social do BNDES,

sobretudo no artigo 9º, prevê a possibilidade de financiamento da aquisição de ativos e de

investimentos realizados por empresas de capital nacional no exterior, desde que contribuam

para o desenvolvimento econômico e social do País (inciso II) e de captação de recursos no

mercado externo para financiar a aquisição de ativos e a realização de projetos de

investimentos no exterior por empresas brasileiras, desde que tais financiamentos contribuam,

igualmente, para o desenvolvimento econômico e social do País (inciso VIII).

Apenas a título de comparação, na experiência internacional, há diversos países que

possuem agências destinadas a regular especificamente a forma com a qual se dará a

internacionalização produtiva das suas empresas para que ela se reverta em desenvolvimento

para o país exportador de capitais.

Diante de todas as evidências expostas, embora não caiba a nós, juristas, estabelecer os

critérios que deverão orientar uma política industrial de fomento à internacionalização

produtiva – tarefa esta reservada aos administradores e economistas –, é razoável concluir

que, uma vez condicionada a um determinado processo composto por diversos critérios e

condicionantes, a internacionalização produtiva contribuirá para que o Estado assegure o

desenvolvimento nacional. A regulação estatal da internacionalização produtiva cumprirá o

requisito de “promoção do desenvolvimento econômico e social” exigido no estatuto do

BNDES e, com isso, ao invés de gerar externalidades negativas para o Brasil, gerará

externalidades positivas, ensejando a criação de mais empregos no país, promovendo

acréscimo de exportações, ganhos de arrecadação tributária e maiores investimentos no

próprio país, condições que indubitavelmente compõem o conceito de desenvolvimento –

amplo, conforme afirmamos – previsto na Constituição Federal de 1988.

Conforme expusemos anteriormente neste trabalho, o BNDES tem adotado critérios

objetivos ao financiar operações de internacionalização produtiva de empresas de capital

nacional que visam assegurar que a constituição de fatores produtivos no exterior se reverta

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186

em desenvolvimento para o Brasil. Um exemplo emblemático foi o financiamento do BNDES

para a aquisição de unidades produtivas localizadas no exterior pela JBS-Friboi mediante a

condição de que a empresa brasileira aumentasse as suas exportações de origem brasileira

através da sua destinação à unidade produtiva recém-adquirida na Argentina. Este é um

exemplo claro de que a internacionalização produtiva pode claramente contribuir

positivamente para o desenvolvimento nacional.

Por outro lado, há situações em que a internacionalização produtiva de empresas

brasileiras claramente não atenderá ao objetivo de promoção de desenvolvimento nacional.

Trata-se da internacionalização que gerará impactos negativos em termos de empregos,

balança comercial, arrecadação nacional e investimentos internos. Estes casos devem ser

reprimidos pelo Estado.

Portanto, uma política industrial de incentivo (ou desincentivo) à internacionalização

produtiva deve ser sensível às hipóteses em que este fenômeno será favorável (ou não) ao

desenvolvimento nacional, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade por afronta ao

preceito constitucional que impõe ao Estado o dever de promover o desenvolvimento

nacional, sobretudo, quando atua como agente normativo e regulador da atividade econômica,

na função de planejamento.

4.3.2.3. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e a Ordem

Econômica Constitucional

Conforme vimos no capítulo 3 deste trabalho, o regime brasileiro de tributação de

lucros auferidos no exterior representa um desincentivo indireto à internacionalização

produtiva na medida em que afeta a capacidade de competição das filiais, sucursais,

controladas e coligadas de empresas brasileiras nos mercados externos onde estão localizadas

devido às diversas razões oportunamente analisadas neste trabalho.

Tendo-se em vista este pressuposto, bem como os pressupostos destacados nos

subitens anteriores, podemos concluir que o regime brasileiro de tributação de lucros

auferidos no exterior será inconstitucional caso mantenha o seu desenho atual segundo o qual

ele se aplica a todas as situações envolvendo uma empresa de capital nacional

internacionalizada. Isto porque, com o desenho amplo em vigor atualmente, o regime se

Page 187: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

187

aplica tanto às situações tidas como favoráveis ao desenvolvimento nacional e que, portanto,

não deveriam ser desestimuladas, mas sim incentivadas pelas políticas nacionais, quanto às

situações consideradas como contrárias que, estas sim, deveriam sofrer um regime tributário

mais severo com a finalidade indutora de desestimulá-las.

Defendemos que, no primeiro caso (internacionalização favorável ao

desenvolvimento), a incidência do regime será inconstitucional ao passo em que, no segundo

caso (internacionalização desfavorável ao desenvolvimento), a sua incidência será

constitucional, sob o ponto de vista estritamente da Ordem Econômica Constitucional.

O problema é que a norma jurídica não é capaz de distinguir uma situação das outras

já que em princípio ela se aplica a todas as hipóteses (favoráveis e desfavoráveis ao

desenvolvimento), o que fará com que o seu campo de incidência tributária inclua as situações

nas quais a internacionalização produtiva deveria ser estimulada pelo Estado como forma de

cumprimento da diretriz constitucional, prevista no artigo 3º, inciso II da C.F., que qualifica o

desenvolvimento nacional como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil e

princípio orientador da ordem econômica constitucional.

Sem falar que o objetivo orientador da atuação brasileira nas suas relações

internacionais previsto no parágrafo único do artigo 4º da C.F. – segundo o qual A República

Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da

América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações –, o

qual poderia também ser buscado através de uma política industrial de internacionalização

produtiva de empresas brasileiras em países sul-americanos, poderia ser igualmente frustrado

pelo atual regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior, o que também

ensejaria a sua inconstitucionalidade247

.

A inconstitucionalidade apontada aqui poderia ser facilmente evitada caso o regime

brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior fosse direcionado apenas para coibir o

abuso de determinadas operações de elisão fiscal internacional que justificassem uma postura

mais rígida por parte da jurisdição fiscal brasileira, tais como as hipóteses em que empresas

constituem filiais, sucursais, coligadas ou controladas em paraísos fiscais ou sob a incidência

de regimes fiscais privilegiados com o propósito puro ou preponderante de postergar ou

reduzir o fato gerador do imposto no seu país de residência (geralmente esta intenção está

247

Vale lembrar que o próprio Plano de Desenvolvimento Produtivo (PDP), do Governo Lula, se apresentou

favorável à consolidação de cadeias produtivas integradas envolvendo países da América Latina, África e

Caribe, conforme demonstramos no capítulo 3.

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188

atrelada aos rendimentos passivos devido à sua volatilidade elevada). Dessa forma, não se

pode defender que um regime de tributação com um desenho amplo – sem contornos

antielisivos – seja capaz de diferenciar situações de internacionalização produtiva nitidamente

desejáveis para o desenvolvimento nacional daquelas claramente indesejáveis.

Ainda que admitamos que o fato de o Brasil ainda não ter assumido uma postura clara

quanto à conveniência de se ter empresas nacionais internacionalizadas dificulte a

identificação das situações que devem ser combatidas daquelas que devem ser incentivadas

pelo Estado e pela ordem jurídica, este argumento não pode servir de substrato para justificar

que normas tributárias combatam todas e quaisquer situações de internacionalização de

fatores produtivos, provocando efeitos indesejáveis à economia nacional, pois a própria

Constituição Federal de 1988 oferece um parâmetro jurídico que pauta a atuação do Estado ao

elaborar políticas industriais (e, inclusive, fiscais); a busca pelo desenvolvimento nacional.

Tal parâmetro constitucional pode ser objetivamente aferido quando se observa, por

exemplo, que a internacionalização produtiva no caso concreto foi capaz de gerar empregos

no Brasil, diminuir a vulnerabilidade das suas empresas no mercado internacional, trazer

divisas para o país na forma de receitas de exportação, entre outras situações. Não cabe a nós

definir quando ela trará vantagens para o país, mas o fato é que, obedecidos certos requisitos,

a internacionalização produtiva contribui positivamente para o desenvolvimento nacional, o

que tornará incompatível com a ordem jurídica vigente a existência de um regime tributário

que não se respalde em um critério capaz de discriminar as situações favoráveis ao

desenvolvimento nacional daquelas desfavoráveis para que seja aplicável à sistemática de

combate ao diferimento. Assim, seguindo a lógica do presente argumento, a regra de

antiferimento deveria se aplicar somente às hipóteses de internacionalização produtiva que

não levam ao desenvolvimento nacional, pois, é através da sua aplicação, que o Estado estará

legitimamente desincentivando a internacionalização que não atende aos objetivos

fundamentais do país, previstos na Constituição Federal.

Entendemos que o juízo de adequação à ordem econômica constitucional deverá ser

sempre suscitado quando o formulador de políticas públicas tiver em mente uma alteração

legislativa no sistema tributário nacional, em especial, quando a norma pretendida possuir

nítidos efeitos econômicos sobre os operadores privados nacionais, influenciando as suas

decisões de investimento e, particularmente, a sua capacidade concorrencial em mercados

internacionais. É fundamental que as normas tributárias sejam orientadas por uma política

Page 189: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

189

industrial de promoção do desenvolvimento muito clara, o que não ocorreu em relação ao

regime ora estudado, conforme demonstramos no capítulo 2.

Acreditamos que o presente debate ganhará força nos tribunais superiores brasileiros

especialmente no tocante à discussão judicial da sistemática de tributação de lucros auferidos

no exterior248

. Não acreditamos, no entanto, que o debate que caracterizou o 1º momento será

deixado de lado. Muito pelo contrário. Ele continuará a ser debatido, mas o debate quanto à

constitucionalidade do regime brasileiro passará a se fazer presente também em novas frentes,

em especial na discutida no presente tópico (regime versus Ordem Econômica

Constitucional).

O que não mudará de um momento para o outro do debate é o fato de que, em ambos,

é possível observar uma disputa de interesses muito acirrada entre contribuintes, preocupados

com a sua capacidade competitiva e em pagar menos tributos, e o fisco, preocupado em

proteger ao máximo a arrecadação tributária através de normas eficientes e práticas. O que

poderá mudar, no entanto, é o campo de debate jurídico em que se trava a disputa de

interesses e, com isso, os argumentos e ponderações que serão apresentados.

4.4. O regime de tributação de lucros auferidos no exterior e o direito internacional

A dupla tributação internacional da renda vem se tornando um problema cada vez mais

comum na medida em que os países optam por tributar, não apenas os ativos e as transações

oriundos do seu território, como também os ativos e as transações econômicas oriundos de

248

Diante do cenário pouco favorável à declaração de inconstitucionalidade do artigo 74 da MP nº 2.158-

35/2001 e do §2º do artigo 43 do CTN – este último sem redução de texto – o STF reconheceu repercussão geral

ao Recurso Extraordinário (RE) nº 611.586, nos termos do artigo 543-A e 543-B do Código de Processo Civil

(CPC) e, portanto, a decisão que for proferida em relação a este RE será igualmente reconhecida a todos os

demais casos que versem sobre a mesma matéria de direito e que permanecerão sobrestados no Tribunal de

origem aguardando o julgamento do recurso representativo da controvérsia. A composição da turma julgadora do

STF foi sensivelmente alterada desde que os votos da ADIN nº 2.588 foram proferidos, tendo muitos dos

ministros que manifestaram entendimento a favor da constitucionalidade dos dispositivos mencionados sido

aposentados o que poderá indicar a possibilidade de recomeçar o julgamento do zero. É interessante observar o

comentário do Ministro Joaquim Barbosa (último voto que faltava para concluir o julgamento da ADIN 2.588)

ao reconhecer a repercussão geral do RE da cooperativa: “é imprescindível contextualizar a tributação quando

aos seus efeitos sobre a competitividade das empresas nacionais no cenário internacional, à luz do princípio do

fomento às atividades econômicas lucrativas geradoras de empregos e divisas”. Veja-se, neste sentido: STF pode

recomeçar do zero julgamento sobre controladas no exterior. Valor Econômico. São Paulo, Artigo publicado em

02/04/2012.

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190

outros países. O problema da dupla tributação internacional está, portanto, diretamente

associado à opção política dos países em tributar os seus contribuintes em bases universais.

Klaus Vogel diferencia, com precisão, a dupla tributação jurídica da dupla tributação

econômica. Na dupla tributação jurídica, duas ou mais jurisdições fiscais tributam um mesmo

contribuinte, em virtude de uma mesma materialidade econômica (transação econômica ou

propriedade de determinados ativos), em um determinado período de apuração. Há, neste

sentido, nítida sobreposição do exercício da competência das duas jurisdições fiscais distintas;

tanto a do Estado de residência da sociedade investidora que tributa em bases universais,

quanto à do Estado de fonte que tributa a fonte produtora no seu próprio território. Na dupla

tributação econômica, uma mesma materialidade é objeto de tributação simultânea por duas

ou mais jurisdições fiscais, porém, na pessoa de contribuintes diferentes 249

.

Para combater o fenômeno da dupla tributação, os Estados criaram mecanismos

previstos na sua legislação interna. O Brasil, por exemplo, prevê no seu ordenamento jurídico

interno o direito de crédito calculado com base no valor do imposto pago no exterior. No

entanto, conforme alerta Vogel, as medidas unilaterais destinadas a combater a dupla

tributação são insuficientes para preveni-la por completo uma vez que elas não cobrem, na

maioria das vezes, todas as situações que dão causa à dupla tributação, havendo também o

problema de tais medidas não serem harmonizadas o que poderá dar ensejo a inconsistências

na sua aplicação. Por estas razões, os Estados passaram a celebrar tratados como medida

complementar aos mecanismos previstos na sua legislação interna250

.

Segundo Vogel, os tratados internacionais celebrados para evitar a dupla tributação

pressupõem que cada jurisdição fiscal possui soberania para aplicar as suas próprias normas

internas, inclusive para alcançar materialidades econômicas que não estão apenas em seu

território. A sua função não é, neste sentido, a mesma das normas de determinação do direito

aplicável, a exemplo do que ocorre com o direito internacional privado. A abordagem correta

consiste em olhar para os tratados como instrumentos de direito internacional público por

meio dos quais os Estados, que em princípio detêm plena jurisdição tributária, acordam em

limitá-la ou restringi-la reciprocamente251

. Os tratados possuem a função de delimitar

249

VOGEL, Klaus. Double tax treaties and their interpretation. International tax & business lawier, v. 4, 1986,

p. 6. 250

Ibid., p. 9-10. 251

Ibid., p. 22-26.

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191

competências tributárias dos países através da limitação recíproca da extensão de soberanias

fiscais distintas252

.

A compatibilidade dos tratados celebrados para evitar a dupla tributação com a

legislação interna dos países de transparência fiscal internacional (ou “similares”, a exemplo

do regime brasileiro em relação ao qual parte da doutrina questiona se a sua natureza seria a

mesma do regime de transparência fiscal internacional) é uma questão muito controvertida

não apenas no Brasil como também nos demais países do mundo. Antes de tratarmos da

adequação do regime brasileiro à convenção modelo da OCDE – convenção que inspirou a

redação da maior parte dos tratados celebrados pelo Brasil bem como de outros países –,

analisaremos em que medida a própria OCDE considera a sua convenção modelo compatível

com este regime.

É importante que se faça, ainda, uma ressalva quanto às dificuldades inerentes a tal

análise. A primeira delas diz respeito à falta de uniformidade internacional plena quanto ao

desenho das normas de transparência fiscal internacional que, embora sejam semelhantes e

convergentes conforme se demonstrou no capítulo 1 deste trabalho, podem apresentar

algumas diferenças entre si (e.g. abrangência, rigor, hipóteses de exclusão, etc). A segunda

refere-se à hierarquia dos tratados nos sistemas jurídicos nacionais. Enquanto, no Brasil, os

tratados em matéria tributária têm prevalência sobre a legislação interna, revogando e

modificando a legislação preexistente e devendo ser observados pela legislação que lhe

sobrevenha termos do artigo 98 do CTN – matéria que já ensejou e ainda enseja grandes

controvérsias jurídicas na doutrina e na jurisprudência –, em outros países os tratados recebem

tratamento jurídico ora de norma inferior à lei interna, ora de norma de igual hierarquia e ora

de norma de hierarquia superior. Feitas essas ressalvas, passaremos à análise do tema.

252

A função desempenhada pelos tratados frente à soberania fiscal dos Estados pode ser perfeitamente ilustrada

através da imagem elucidativa abordada por Luis Eduardo Schoueri de uma máscara que, ao ser colocada frente

a um determinado texto escrito, permite que parcelas do texto permaneçam visíveis ao mesmo tempo em que

encobre outras partes que já não são mais visíveis. Os tratados desempenham a mesma função de modo que as

partes encobertas representam a parcela de soberania fiscal renunciada pelo Estado contratante ao passo em que

as partes visíveis representam a parcela inalterada. Confiram-se detalhes em: SCHOUERI, Luis Eduardo. Direito

Tributário. São Paulo: Saraiva. 2011, p. 109.

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192

4.4.1. A compatibilidade das normas de transparência fiscal internacional com

os tratados celebrados pelos países para evitar a dupla tributação segundo a

OCDE

Antes de iniciarmos a análise, é importante que façamos a ressalva de que a

compatibilidade do regime de transparência fiscal internacional com a convenção modelo da

OCDE depende do ponto de vista adotado quanto ao objeto sobre o qual há incidência da

norma tributária. Neste sentido, considerar que o critério material da hipótese de incidência é

o lucro, o dividendo ou outros rendimentos não tratados especificamente nos artigos da

convenção modelo poderá ensejar consequências distintas quando se faz um juízo de

adequação do regime de transparência fiscal internacional, bem como os seus similares, frente

à convenção modelo. Antes de tratarmos da opinião da OCDE a respeito do tema, faremos

uma breve exposição dos dispositivos da convenção modelo que são relevantes para a

presente análise.

O primeiro dispositivo é o parágrafo 1º do artigo 7º da convenção modelo que trata do

lucro das empresas (business profits), cuja redação é a seguinte:

Art. 7º.

§1º. Os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só são tributáveis nesse

Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro Estado Contratante

por meio de um estabelecimento permanente aí situado. Se a empresa exercer sua

atividade na forma indicada, seus lucros serão tributáveis no outro Estado, mas

unicamente na medida em que forem atribuíveis a esse estabelecimento permanente.

A partir da interpretação do dispositivo transcrito acima pode-se constatar que

compete exclusivamente ao Estado onde reside a pessoa jurídica controlada ou coligada

(investida) tributar os seus lucros, sendo proibido o exercício da competência tributária do

outro Estado onde reside a pessoa jurídica controladora ou coligada (investidora). É por esta

razão que esta é uma norma de reconhecimento de competência fiscal exclusiva. A única

exceção a esta regra é a hipótese de a pessoa possuir estabelecimento permanente no outro

Estado253

, ocasião em que o exercício da sua competência tributária deverá se limitar ao lucro

253

Conforme definido pelo artigo 5º da convenção modelo da OCDE. Vale ressaltar, no entanto, que, conforme

dispõe o parágrafo 7º do artigo 5º da convenção modelo, estabelecimentos permanentes não se confundem com

subsidiárias, dotadas de personalidade jurídica e autonomia perante a sua controladora ou coligada, por serem

entidades despersonalizadas, de modo que a exceção prevista na parte final do dispositivo não se aplica no caso

de investimentos feitos em empresas controladas ou coligadas no exterior.

Page 193: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

193

que pode ser legitimamente imputado a este estabelecimento. Assim, a legislação de

transparência fiscal internacional que desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade

coligada ou controlada com a finalidade de alcançar os seus lucros e tributá-los será, em

princípio, contrária ao parágrafo 1º, do artigo 7º, da convenção modelo.

O segundo dispositivo relevante para a análise é o artigo 10, que trata dos dividendos

das empresas (dividends), cuja redação encontra-se reproduzida abaixo:

Art. 10.

§1º. Os dividendos pagos por uma empresa residente de um Estado contratante para

um residente em outro Estado contratante podem ser tributados nesse outro Estado.

§2º. Esses dividendos podem, no entanto, ser igualmente tributados no Estado

contratante do qual é residente a empresa que paga os dividendos, de acordo com a

legislação desse Estado.

§5º. Quando uma sociedade residente de um Estado Contratante receber lucros ou

rendimentos do outro Estado Contratante, esse outro Estado Contratante não poderá

cobrar qualquer imposto sobre os dividendos pagos pela sociedade, exceto na

medida em que esses dividendos forem pagos a um residente desse outro Estado ou

na medida em que a participação geradora dos dividendos estiver efetivamente

ligada a um estabelecimento permanente situado nesse outro Estado, nem sujeitar os

lucros não distribuídos da sociedade a um imposto sobre lucros não distribuídos,

mesmo se os dividendos pagos ou os lucros não distribuídos consistirem total ou

parcialmente de lucros ou rendimento provenientes desse outro Estado.

Analisando-se o disposto nos dois primeiros parágrafos transcritos acima, conclui-se

que a convenção modelo assegura o direito de os dois países – tanto aquele em que residente a

fonte geradora dos lucros quanto aquele em que reside o seu sócio – tributarem os dividendos

desde que eles tenham sido pagos ou disponibilizados econômica ou juridicamente aos sócios

de qualquer outra forma. Trata-se de uma norma de reconhecimento de competência tributária

concorrente.

Muitos juristas defendem que este artigo daria causa à compatibilidade do regime de

transparência fiscal internacional com a convenção modelo da OCDE ao defenderem que a

tributação do Estado de residência do sócio incide sobre dividendos fictamente

disponibilizados (fictive dividend approach). Este ponto de vista, no entanto, fica

enfraquecido quando se observa que o referido dispositivo exige que os dividendos sejam

necessariamente pagos ou disponibilizados aos sócios por outros meios. Outros juristas

defendem, ainda, que o §5º do artigo 10 impede o uso de regras de transparência fiscal

internacional pelos Estados contratantes. Estes pontos serão abordados adiante.

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194

Por fim, o terceiro dispositivo relevante para a presente análise é o artigo 21 que

dispõe sobre outros rendimentos não previstos nos demais dispositivos da convenção (other

income), cujo texto é o seguinte:

Art. 21.

§1º. Os rendimentos de um residente de um Estado contratante, de onde quer que

provenham, não tratados nos artigos anteriores da presente Convenção, serão

tributáveis apenas nesse Estado.

Alguns juristas defendem que o Estado de residência do sócio tributa o acréscimo

patrimonial experimentado pelo próprio sócio residente, calculado com base no valor dos

lucros auferidos pela subsidiária residente no exterior, mas que não se confundiria com o

mesmo, de modo que o enquadramento mais adequado para o referido rendimento seria o

artigo 21, de aplicação residual nos tratados, por falta de dispositivo específico. Desse modo,

os defensores de que o dispositivo mais adequado para classificar os rendimentos tributados

pelo regime de transparência fiscal internacional (ou regime similar) é o artigo 21, concluem

pela compatibilidade do regime com a convenção modelo.

Ao longo do tempo, a OCDE veio firmando o seu posicionamento. Periodicamente, a

OCDE publica novos comentários à convenção modelo que buscam refletir, sempre da

maneira mais atualizada possível, o seu posicionamento sobre a interpretação mais adequada

de cada um dos dispositivos presentes nos tratados. Ao analisar a progressão do

posicionamento da referida organização sobre a adequação da convenção modelo com os

regimes de transparência fiscal internacional, observa-se que, até o ano de 1992, os

comentários não faziam qualquer referência a tal regime.

Entre 1992 e 2003, os comentários feitos pela organização passaram a defender que

havia compatibilidade de normas gerais antielisivas com a convenção modelo, o que abrangia

as normas de transparência fiscal internacional. Nos comentários 22 a 26 feitos ao artigo 1º da

convenção modelo, a OCDE ponderou em que medida normas que estabelecem a prevalência

da substância das operações sobre a sua forma seriam inerentes ao espírito dos tratados, ou

seja, se elas poderiam ser aplicadas a quaisquer situações ou apenas àquelas expressamente

previstas pela convenção. Havia, fundamentalmente, duas visões: a visão majoritária defendia

a sua perfeita compatibilidade e a desnecessidade de haver qualquer previsão expressa nos

tratados, ao passo em que a visão minoritária sustentava que havia o risco muito elevado de a

aplicação de regras antielisivas pelos Estados contratantes resultar na ineficácia dos

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195

mecanismos dos tratados destinados a evitar a dupla tributação. A OCDE apoiou a linha

majoritária – composta em sua maioria por países desenvolvidos preocupados em proteger a

sua arrecadação nacional – de modo a defender a desnecessidade de previsão expressa nos

tratados que autorizasse os países a aplicarem as suas normas antielisivas254

.

No entanto, a OCDE, à época, fez a ressalva importante de que as referidas normas

deveriam ser usadas em caráter de exceção, excluindo-se do seu campo de incidência algumas

hipóteses. Veja-se, abaixo, o comentário 26 ao artigo 1º da convenção modelo feito pela

OCDE em 1998:

A maioria dos países membros aceita medidas antielisivas como um meio necessário

à manutenção da equidade e da neutralidade dos ordenamentos jurídicos tributários

nacionais em um contexto internacional caracterizado por cargas tributárias muito

diferentes uma das outras, mas acreditam que tais medidas devam ser usadas tão

somente para este propósito. Seria contrário aos princípios gerais da convenção

modelo e ao espírito dos tratados destinados a evitar a dupla tributação se medidas

antielisivas fossem estendidas a atividades tais como a produção, a prestação normal

de serviços e as negociações de empresas engajadas em atividades industriais e

comerciais reais, quando elas estão claramente relacionadas com o ambiente

econômico do país onde elas residem nas hipóteses em que essas atividades são

desenvolvidas de modo que nenhuma condutiva elisiva poderia ser identificada.

Medidas antielisivas não devem ser aplicadas a países que possuem carga tributária

comparável [equivalente] àquela do país de residência do contribuinte. 255

(Tradução

livre)

Constatamos a partir da leitura do trecho acima que, até 2003, a OCDE considerava o

regime de transparência fiscal internacional compatível com os tratados apenas na medida em

que fossem preenchidos dois requisitos: (i) preservação das atividades empresariais realizadas

de maneira real e efetiva (transactional approach); e (ii) inaplicabilidade do regime em

relação aos países que possuem nível de tributação comparável ao país da residência da

sociedade investidora (jurisdictional approach). Deve-se lembrar, ainda, que em nenhuma

hipótese a aplicação do regime de transparência fiscal poderia ensejar a dupla tributação, pois,

caso o fizesse, estaria em risco o propósito central almejado pelos tratados.

254

Conforme o comentário 24 do artigo 1º da convenção modelo da OCDE. 255

OECD. Model Tax Convention on Income and on Capital: Condensed Version. Paris, 1998, p. 54-55. No

original: “The majority of Member countries accept counteracting measures as a necessary means of maintaining

equity and neutrality of national tax laws in an international environment characterized by very different tax

burdens, but believe that such measures should be used only for this purpose. It would be contrary to the general

principles underlying the Model Convention and to the spirit of tax treaties in general if counteracting measures

were to be extended to activities such as production, normal rendering of services or trading of companies

engaged in real industrial or commercial activity, when they are clearly related to the economic environment of

the country where they are resident in a situation where these activities are carried out in such a way that no tax

avoidance could be suspected. Counteracting measures should not be applied to countries in which taxation is

comparable to that of the country of residence of the taxpayer.”

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196

Em 2003, no entanto, a OCDE mudou o seu posicionamento. A organização passou a

expressar o entendimento de que o regime de transparência fiscal internacional é compatível

com a convenção modelo, em especial com o parágrafo 1º do artigo 7º (lucros) e o parágrafo

5º do artigo 10 (dividendos), a despeito das particularidades que ele poderia assumir em cada

país, destacando a desnecessidade de haver cláusula nos tratados que autorizasse a sua

previsão na legislação interna dos Estados contratantes. Confira-se, neste sentido, o

comentário 23 ao artigo 1º da convenção modelo feito pela OCDE em 2003 (comentário

mantido e de igual numeração na edição dos comentários de 2010) 256

:

Sustenta-se, por vezes, baseando-se em certas interpretações de dispositivos da

convenção tais como o parágrafo 1º do artigo 7º e o parágrafo 5º do artigo 10, que

essa característica comum da legislação de transparência fiscal internacional (CFC)

entrava em conflito com esses dispositivos. Em virtude das razões explicadas no

comentário 10.1. do artigo 7º e no comentário 37 do artigo 10, tais interpretações

não estão de acordo com o texto dos dispositivos. Elas tampouco resistem a uma

leitura dos dispositivos nos seus respectivos contextos específicos. Assim, embora

alguns países tenham achado melhor deixar expressamente consignado, nas suas

convenções, que a legislação de transparência fiscal internacional não é conflitante

com a convenção, esta ressalva não é necessária. É reconhecido que a legislação de

transparência fiscal internacional estruturada dessa forma não é contrária às

disposições da convenção.257

(Tradução livre)

Em relação à compatibilidade do regime com o parágrafo 1º do artigo 7º, a OCDE

reitera, logo nos seus primeiros comentários ao parágrafo 1º do artigo 7º da convenção

modelo, a regra de reconhecimento de competência fiscal exclusiva do Estado de residência

da sociedade produtora dos rendimentos. Salvo nas hipóteses de existência de estabelecimento

permanente, na forma apontada anteriormente, o Estado de residência do sócio da fonte

produtora dos rendimentos não pode tributar os lucros ali auferidos antes do seu pagamento,

ou qualquer outra forma de disponibilização, na forma de dividendos. Este entendimento leva

ao afastamento da “teoria do órgão” que, de acordo com Ottmar Bühler, foi consagrada por

diversos países europeus nas primeiras décadas do século XX e consistia, fundamentalmente,

na visão do grupo societário como uma unidade através da consolidação dos ganhos e das

256

Este entendimento foi mantido pela OCDE nas publicações posteriores dos seus comentários à convenção

modelo de modo que, na última edição de 2010, o seu entendimento permanece o mesmo de 2003. 257

OECD. Model Tax Convention on Income and on Capital: Condensed Version. Paris, 2003. No original: “It

has sometimes been argued, based on a certain interpretation of provisions of the Convention such as paragraph

1 of Article 7 and paragraph 5 of Article 10, that this common feature of controlled foreign companies legislation

conflicted with these provisions. For the reasons explained in paragraphs 10.1 of the Commentary on Article 7

and 37 of the Commentary on Article 10, that interpretation does not accord with the text of the provisions. It

also does not hold when these provisions are read in their context. Thus, whilst some countries have felt it useful

to expressly clarify, in their conventions, that controlled foreign companies legislation did not conflict with the

Convention, such clarification is not necessary. It is recognized that controlled foreign companies legislation

structured in this way is not contrary to the provisions of the Convention.”

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197

perdas do grupo na pessoa da controlada, em prol do princípio da separação das diversas

entidades distintas que compõem o grupo societário258

.

Entretanto, no comentário 10.1 ao referido artigo (comentário 14 na edição de 2010), a

OCDE manifesta o entendimento de que o parágrafo primeiro não limita o direito de o Estado

contratante tributar as pessoas jurídicas nele residentes, ainda que a base de cálculo do

imposto seja apurada com base na participação da empresa sobre os lucros auferidos por suas

subsidiárias residentes no outro Estado contratante. Em outras palavras, apesar de o critério de

mensuração da base de cálculo ter como referência os lucros auferidos no exterior, a OCDE

permite que os países tributem a renda produzida localmente pela sociedade controladora que

está sujeita à sua jurisdição, sem que se possa falar em qualquer incompatibilidade com a

convenção modelo.

Muitos autores se opõem a esta visão e defendem que o parágrafo 1º do artigo 7º não

admite tal mecanismo como forma de tributação já que isso seria contra o espírito da regra de

reconhecimento de competência tributária exclusiva contida no referido dispositivo259

. Tulio

Rosembuj defende que o regime vai de encontro ao parágrafo 1º do artigo 7º dos tratados na

medida em que ele desnatura a “cláusula antiórgão” representada pelo referido dispositivo ao

equiparar a subsidiária dotada de personalidade jurídica (controlada ou coligada) a um

estabelecimento permanente da sociedade matriz (filial ou sucursal), afastando-se a sua

personalidade jurídica – através da teoria da transparência – para atingir os seus lucros260

.

Quanto às repercussões da adoção do regime de transparência fiscal internacional

frente ao artigo 10 (dividendos) da convenção modelo, a OCDE reconhece, no comentário 38

ao referido artigo (comentário de igual numeração na edição de 2010), que a aplicação do

regime por países que adotam o fictive dividend approach – segundo o qual o que se tributa

não são os lucros das controladas e coligadas, mas sim os dividendos, ainda que fictamente

distribuídos – enseja dúvidas quanto à qualificação do rendimento tributado – se dividendo

sujeito ao artigo 10 ou “outros rendimentos” sujeito ao artigo 21 – colocando em xeque a sua

compatibilidade com o referido dispositivo. Isso porque, para que ele fosse compatível com o

artigo 10, o rendimento teria que ser pago ou disponibilizado de qualquer outra forma ao

sócio da fonte produtora na forma de dividendo uma vez que o dispositivo em discussão faz

258

BÜHLER, Ottmar. Princípios de derecho internacional tributário, trad. esp., Madrid, 1968, p. 133 apud

XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 379. 259

Entre eles: XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p.

383. 260

ROSEMBUJ, Tulio. Derecho Fiscal Internacional. Barcelona: Editora El Fisco, 2001, p. 180-181.

Page 198: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

198

referência expressa a “dividendos pagos”. Por esta razão, não é possível, considerar que

dividendo fictamente distribuído seja qualificado no âmbito do artigo 10 o que,

consequentemente, impede que os dois países exerçam concorrencialmente o seu poder de

tributar a mesma renda.

Apesar disso, a OCDE não vê qualquer incompatibilidade entre o regime de

transparência fiscal internacional e o parágrafo 5º do artigo 10 uma vez que o mesmo trata não

do imposto cobrado pelo Estado de residência do investidor sobre o dividendo fictamente

distribuído, mas sim sobre o rendimento, cobrado na fonte pelo Estado de residência da fonte

produtora (imposto de renda retido na fonte), o que excluiria, em princípio, questionamentos

quanto à adequação do regime de transparência com o referido dispositivo261

.

Interessante notar que o comentário 26, ao qual nos referimos anteriormente, foi

mantido na edição de 2003 e nas edições posteriores, porém sutilmente atenuado, de modo

que ele não mais prevê a recomendação de que o regime de transparência fiscal internacional

deixe de ser aplicável sobre as rendas ativas discriminadas nas versões anteriores. O

comentário manteve, no entanto, a recomendação de que o regime deve ser aplicado apenas

para a manutenção da igualdade e da neutralidade dos ordenamentos jurídicos tributários em

um mundo caracterizado por níveis distintos de cargas tributárias, não devendo ele ser

aplicado, portanto, em relação aos países com carga tributária comparável ou equivalente.

Com isso, a OCDE reconheceu ser mais relevante a adoção do jurisdictional approach.

Em breve resumo, pode-se dizer que o regime de transparência fiscal internacional

seria incompatível com o parágrafo 1º do artigo 7º, que trata de lucros das empresas, e com o

artigo 10, que trata de dividendos. No entanto, a OCDE tinha o interesse de viabilizar o uso de

medidas antielisivas como forma de proteção unilateral da arrecadação nacional dos seus

países membros, em sua maioria desenvolvidos e com elevada arrecadação tributária,

preocupados em legitimar o uso de tais instrumentos de proteção. O problema é que a

celebração de tratados destinados a evitar a dupla tributação, inspirados na convenção modelo

da OCDE, precedeu à adoção das regras de transparência fiscal internacional de modo que, no

momento em que tais regras começaram a ser adotadas em escala global, muitos tratados já

haviam sido celebrados. A solução vislumbrada foi a defesa, pela própria OCDE, da

compatibilidade dos tratados com os mecanismos de proteção das bases imponíveis nacionais

261

Veja-se, neste sentido, o comentário 37 dos comentários à convenção modelo da edição de 2003 com igual

numeração na edição de 2010.

Page 199: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

199

– dentre os quais, o regime de transparência fiscal internacional – com o nítido intuito de

legitimar a sua adoção pelos países, em especial, os economicamente mais prósperos.

Por esta razão, a organização passou a defender a compatibilidade do regime com a

convenção modelo da OCDE, através, conforme demonstramos, da tributação do acréscimo

patrimonial dos residentes calculados com base em lucros auferidos por subsidiárias

estrangeiras que poderiam ser qualificados como “outros rendimentos” no âmbito do artigo

21. Apesar disso, continuam valendo as recomendações da OCDE no sentido de que o

desenho de tais normas antielisivas deve levar à sua aplicação com a finalidade exclusiva de

coibir abusos cometidos, em especial em relação aos residentes em paraísos fiscais ou que se

aproveitem de regimes fiscais privilegiados, o que indica que regimes, com desenho mais

amplo e sem caráter antiabusivo, podem incorrer em afronta à convenção modelo262

.

4.4.2. A compatibilidade do regime brasileiro de tributação de lucros auferidos

no exterior com os tratados celebrados pelo Brasil para evitar a dupla

tributação

No Brasil, a compatibilidade do regime de tributação de lucros auferidos no exterior

com os tratados celebrados pelo Brasil para evitar a dupla tributação não é pacífica nem na

doutrina e tampouco na jurisprudência.

Na doutrina especializada, a primeira linha doutrinária apontada no início do presente

capítulo, composta pelos defensores de que o regime brasileiro é de transparência fiscal

internacional, entendem que o regime tributário brasileiro incide sobre lucros auferidos no

exterior de modo que o seu melhor enquadramento, nos tratados celebrados pelo Brasil,

inspirados pela convenção modelo da OCDE, seria no artigo 7º que dispõe justamente sobre

lucros das empresas. Esta linha defende que, em virtude de o referido dispositivo estabelecer

que somente o Estado de residência da sociedade produtora dos lucros tem jurisdição para

262

Klaus Vogel defende a existência de uma “cláusula antielisiva implícita” nos modelos de tratados destinados

a evitar a dupla tributação internacional da renda. A referida cláusula seria utilizada na medida em que os países

identificassem formas abusivas, sem propósito negocial ou mesmo fraudulenta de elisão fiscal internacional

através da sua legislação interna. No entanto, o autor faz a importante ressalva de que esta cláusula antielisiva

implícita não poderia dar ensejo à tributação, pelos países, de operações claramente não abusivas de elisão fiscal

internacional. Neste sentido, confiram-se detalhes: VOGEL, Klaus. Double tax treaties and their interpretation.

International tax & busineslawier, v. 4, 1986, p. 82-83.

Page 200: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

200

tributá-los, o Estado de residência dos seus sócios não teria jurisdição para fazê-lo, haja vista

a cláusula de competência exclusiva dos tratados. É por esta razão que, para esta linha

doutrinária, o regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior viola,

frontalmente, o parágrafo 1º do artigo 7º da convenção modelo da OCDE.

Esta linha afasta qualquer interpretação no sentido de que o regime recai sobre

dividendo uma vez que o acordo exige que ele tenha sido pago ou disponibilizado aos sócios

de qualquer outra forma, não sendo admissível que a lei interna dos países considere

disponibilizado, através de uma ficção legal, o que não está realmente disponível, pois, caso

assim fosse feito, o legislador nacional estaria afrontando o artigo 10 da convenção modelo263

.

Os defensores da segunda linha, composta por críticos de que o regime brasileiro

corresponda ao regime de transparência fiscal internacional, se posicionam no sentido de que

o enquadramento mais adequado para o objeto do regime jurídico brasileiro é o de

rendimentos previstos no artigo 21 da convenção modelo da OCDE. Isso porque, segundo esta

linha, o regime brasileiro não desconsidera a pessoa jurídica residente no exterior e alcança os

lucros por ela auferidos para tributá-los na pessoa da sua sócia. O regime determina a

tributação da mutação patrimonial positiva sofrida pela pessoa jurídica do sócio residente em

seu território.

Há, no entanto, muitos defensores da ideia de que o que se tributa são dividendos

fictamente disponibilizados e que, portanto, o seu enquadramento mais adequado seria no

artigo 10, não obstante as críticas que possam ser tecidas a tal entendimento. Conforme será

visto adiante, esta linha de entendimento se faz presente nos julgados de órgãos

administrativos.

A questão ainda está longe de ser pacificada na jurisprudência. Na esfera judicial, até o

presente momento, a questão ainda não foi enfrentada pelos tribunais superiores de modo que

ainda não existem decisões definitivas quanto ao seu mérito. Na esfera administrativa, o

Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) – órgão recursal de segunda instância

do contencioso administrativo federal – vem consolidando o seu entendimento ao apreciar

alguns poucos casos em distintas ocasiões.

263

Sobre a questão dos dividendos, veja-se, em especial: MACIEL, Taísa Oliveira. Tributação dos Lucros das

Controladas e Coligadas Estrangeiras. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 150-152; SCHOUERI, Luis Eduardo.

Anotações sobre temas de direito tributário internacional. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de; ZILVETI,

Fernando Aurelio; MOSQUEIRA, Roberto Quiroga (Coord.). Tributação internacional e dos mercados

financeiros e de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

Page 201: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

201

Embora a maior parte dos casos apreciados pelo CARF não tenha transitado em

julgado na esfera administrativa até o presente momento, analisaremos a linha de raciocínio

da referida corte administrativa em relação a três casos considerados de fundamental

importância até o presente momento. Estes casos foram escolhidos por terem sido grandes

marcos no entendimento do órgão, até o presente momento, e por demonstrarem que, muito

embora o entendimento da referida corte pareça estar convergindo para determinada direção,

o tema ainda está longe de ser pacificado na esfera administrativa.

O primeiro deles é o “caso Refratec” 264

no qual se discutiu a tributação pelo fisco

brasileiro de lucros acumulados em pessoa jurídica controlada no exterior, residente em

Portugal (Ilha da Madeira) de 1996 a 2001, supostamente disponibilizados quando da

alienação da participação societária detida pela pessoa jurídica controladora residente no

Brasil, e de lucros auferidos por sociedade controlada residente na Espanha (Barcelona) nos

anos de 2001 e 2002. Nos dois casos, o Brasil celebrou tratado para evitar a dupla tributação,

com disposição expressa, no artigo 7º, de regra de reconhecimento de competência tributária

exclusiva do país onde reside a fonte produtora dos rendimentos, afastando a soberania fiscal

do país de residência dos seus sócios para tributar os lucros.

Quanto ao primeiro período, a discussão central foi se a alienação de participação

societária configurava, sob a vigência da Lei nº 9.532/97, hipótese de disponibilização

jurídica ou econômica dos lucros acumulados em controlada residente em Portugal.

Sustentou-se que a referida lei teria revogado tacitamente a hipótese de equiparação à

disponibilização prevista na IN SRF nº 38/1996 (art. 2º, §9º), segundo a qual a alienação de

participação societária implicaria a disponibilização de lucros acumulados, ao não tê-la

previsto expressamente no seu texto legal. Esta foi a linha seguida no voto da Conselheira

Karem Dias. Entretanto, prevaleceu o entendimento de que independentemente do fato de a

Lei nº 9.532/97 não ter estabelecido a cessão de participação societária como hipótese de

disponibilização, a alienação do investimento, por si só, já configurava disponibilização real,

sendo desnecessária a previsão legal neste sentido.

Em relação ao segundo período autuado, o ponto da discussão que mais nos interessa

foi a análise feita pelos conselheiros quanto à adequação do tratado celebrado entre Brasil e

Espanha ao regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior. Sobre este tema,

264

BRASIL. Ministério da Fazenda. Acórdão nº 108-08.765, proferido pela antiga oitava câmara do primeiro

conselho de contribuintes na sessão de 23 de março de 2006, Conselheiro-relator: José Henrique Longo, PAF nº

13603.002794/2003-50.

Page 202: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

202

prevaleceu o entendimento não unânime segundo o qual, quando os artigos 25 e 26 da Lei nº

9.249/95 instituíram o regime de tributação em bases universais da pessoa jurídica, o que se

tributava era os lucros auferidos no exterior, de modo que o regime brasileiro não poderia

alcançá-los devido à aplicabilidade do artigo 7º do tratado celebrado pelo Brasil com a

Espanha. No entanto, com a vigência da Lei nº 9.532/97, os conselheiros entenderam que o

que se passou a tributar foi os dividendos creditados ou pagos.

Na sequência da evolução legislativa, mesmo com a vigência do artigo 74 da MP nº

2.158-35/2001, a maioria dos conselheiros manteve o mesmo posicionamento uma vez que

prevaleceu o entendimento de que o referido dispositivo legal apenas previu que os

rendimentos passariam a ser considerados fictamente disponibilizados265

, mas que não

deixariam de ter natureza de “dividendo”. Deste modo, concluiu-se que o dispositivo dos

tratados aplicável ao regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior seria o

artigo 10, havendo, portanto, compatibilidade do regime com os tratados celebrados pelo

Brasil que seguem o padrão da OCDE, salvo se houver previsão de isenção ou regra

excepcional.

O segundo julgado é o “caso Eagle 1” 266

no qual a discussão central era se os lucros

acumulados nos anos de 2000 e 2001 pelas sociedades controladas residentes na Espanha da

empresa Eagle, residente no Brasil, deveriam ou não ser submetidas à tributação no Brasil,

nos moldes previstos pelo parágrafo único do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001.

O voto da Conselheira-relatora Sandra Maria Faroni, que foi seguido pela maioria dos

conselheiros, estabeleceu um novo marco no entendimento do CARF sobre o tema. Em um

primeiro momento, ao analisar o regime jurídico de tributação em bases universais sob a

vigência da Lei nº 9.532/97, a conselheira demonstrou o mesmo entendimento da decisão do

caso Refratec no sentido de que a tributação incidia sobre dividendos disponibilizados nas

formas previstas pela referida lei.

265

Quanto à validade jurídica do critério de disponibilização ficta trazido pelo artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001,

o Conselheiro José Henrique Longo fez até a ressalva de que não caberia a um órgão julgador pertencente ao

Poder Executivo negar a aplicação de lei validamente introduzida no ordenamento jurídico e vigente, pois tal

tarefa é de competência exclusiva do Poder Judiciário (vide súmula nº 2 do CARF). Concordando ou não com o

critério, esta seria a interpretação que, segundo o conselheiro, deveria ser dada ao regime brasileiro. Veja-se,

neste sentido, o seguinte trecho do seu voto: “Convém observar que não há espaço para o julgador administrativo

tecer considerações acerca da inconstitucionalidade de lei nem para afastar sua aplicação, de maneira que há de

ser respeitada neste âmbito a ficção mencionada com os seus reflexos de caráter tributário.” 266

BRASIL. Ministério da Fazenda. Acórdão nº 101-95.102, proferido pela antiga primeira câmara do primeiro

conselho de contribuintes na sessão de 19 de outubro de 2006, Conselheira-relatora: Sandra Maria Faroni, PAF

nº 16327.000112/2005-31.

Page 203: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

203

A conselheira discordou, no entanto, do entendimento firmado naquele caso de que o

artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 só teria estabelecido que os dividendos passariam a ser

fictamente disponibilizados, mas que isso não teria alterado a natureza dos rendimentos

tributados, qual seja, de “dividendo”. A conselheira-relatora entendeu que, com a vigência

deste último dispositivo normativo, a tributação deixou de recair sobre dividendos e passou a

incidir sobre lucros auferidos no exterior. Isso porque, sob a égide da Lei nº 9.532/97, a lei

submetia os lucros à sua real disponibilização aos sócios, na forma de dividendos, para que

houvesse incidência tributária, enquanto que agora, com a vigência da MP, a incidência

tributária não depende mais da sua disponibilização o que desqualifica a natureza do

rendimento como sendo de dividendo, tornando-o lucro em sua essência.

Tal conclusão se reforça, segundo a conselheira, ao se observar que a norma capta

valor maior do que aquele que seria pago na forma de dividendos aos acionistas da empresa,

ou seja, a base de cálculo alcança a integralidade do valor dos lucros, não admitindo que

exclusões decorrentes de destinações específicas dadas a parcelas do lucro em virtude da

legislação societária do país da controlada ou coligada sejam feitas para fins da apuração da

base de cálculo do imposto brasileiro, o que certamente era admitido quando se permitia o

diferimento da tributação nacional. Não seria possível, portanto, considerar que lucros

disponibilizados fictamente se enquadrassem no conceito de dividendo. Veja-se, neste

sentido, importante trecho do voto da referida conselheira:

Assim, não considero possível utilizar o n° 2 do Artigo 3 da Convenção para atribuir

aos lucros apurados em balanço, antes de qualquer dedução, o significado de

dividendos. Até porque não me parece que pela legislação da Espanha o significado

do termo dividendos alcance os lucros apurados em balanço antes de sua

distribuição (em atenção ao princípio da reciprocidade). A ficção estabelecida pela

MP implicaria esvaziamento da convenção mediante alteração posterior de

"definição". Nessa linha de raciocínio, concluo que a tributação com fulcro no art.

74 da MP n° 2.158-35/2001 incide sobre o lucro das empresas, e não sobre os

dividendos. Nessa circunstância, tendo em vista o art. 7 da Convenção, não pode

haver tributação no Brasil dos lucros auferidos por intermédio da Jalua, enquanto

não disponibilizados.

Com base neste entendimento, conforme demonstrado no trecho acima, a conselheira

votou no sentido de que o regime brasileiro é incompatível com o artigo 7º do tratado

celebrado entre Brasil e Espanha, não podendo o Brasil exercer a sua competência fiscal sobre

os lucros auferidos no exterior por controlada ou coligada de pessoa jurídica residente.

Apenas a título ilustrativo, a conselheira fez um esforço argumentativo para saber quais

seriam as consequências jurídicas decorrentes da disciplina do tratado caso os rendimentos

Page 204: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

204

fossem considerados como “dividendos fictos”. Ao enfrentar a questão, a conselheira concluiu

que, mesmo assim, não haveria qualquer incidência tributária já que o referido tratado possui

cláusula especial (art. 23, § 4º) que garante isenção aos dividendos que fossem tributados pelo

Estado espanhol.

Por fim, o terceiro julgado analisado é o “caso Eagle 2” 267

em que, não obstante a

discussão sobre a natureza dos rendimentos alcançados pelo regime brasileiro de tributação

em bases universais da pessoa jurídica se faça presente, a discussão central diz respeito ao

regime tributário aplicável aos resultados auferidos por controladas indiretas268

, residentes no

exterior. A fiscalização autuou a Eagle em virtude da não adição dos lucros apurados no

exterior, no ano de 2002, pelas empresas Monthiers, residente no Uruguai, e CCBA, residente

na Argentina, à sua base de cálculo do IRPJ e da CSLL. As duas empresas apontadas possuem

participação societária detida pela empresa Jalua Spain, residente na Espanha e controlada

direta da Eagle, de modo que esta última detém o controle indireto das empresas apontadas. A

autuação também envolve a questão dos ganhos decorrentes de variação cambial não

incluídos na base de cálculo da controladora brasileira que, por não dizer respeito diretamente

à questão dos tratados, não será tratada em maiores detalhes neste trabalho.

A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) alegou que, por força do tratado

Brasil-Espanha e do regime especial das Ilhas Canárias às ETVEs (Entidads de Tenencias de

Valores Estranjeros), os lucros das controladas indiretas não estavam sendo tributados nem

no Brasil nem na Espanha. Em vista da alegação, houve a conversão do julgamento em

diligência para que a RFB pudesse investigar, junto às autoridades fiscais espanholas, se as

controladas indiretas de fato estavam sujeitas à tributação regular ou se estavam se

beneficiando de regime fiscal privilegiado. Em resposta, as autoridades fiscais espanholas

informaram que os rendimentos decorrentes da participação societária da Jalua Spain nas duas

outras empresas não gozavam de tratamento tributário favorecido, sendo eles submetidos à

tributação regular que incidia sobre as demais empresas residentes na Espanha.

A partir deste ponto, a grande questão que passou a ser debatida foi se os lucros

apurados pelas controladas indiretas poderiam ser imputados diretamente à base de cálculo do

IRPJ e da CSLL da controladora indireta residente no Brasil, através da avaliação do seu

267

BRASIL. Ministério da Fazenda. Acórdão nº 101-97.070, proferido pela antiga primeira câmara do primeiro

conselho de contribuintes na sessão de 17 de dezembro de 2008, Conselheira-relatora Sandra Maria Faroni, PAF

nº 16327.000530/2005-28. 268

Entende-se, por controlada indireta, como sendo aquela na qual a controladora detém controle apenas

indiretamente, ou seja, mediante uma sociedade controlada direta que, por sua vez, detenha participação

societária na primeira (controlada indireta).

Page 205: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

205

patrimônio pelo MEP, ou se a consolidação e a tributação dos resultados das controladas

indiretas deveriam ser feitas forçosamente através da controlada direta (Jalua Spain). As

consequências jurídicas da escolha de cada uma dessas alternativas são nítidas; no primeiro

caso, não são aplicáveis as disposições do Tratado Brasil-Espanha que impedem a tributação

dos lucros no país de residência dos sócios da controlada direta antes da sua efetiva

disponibilização, enquanto que, no segundo caso, as disposições da convenção são

plenamente aplicáveis, impedindo que o Brasil exerça a sua competência tributária até que os

lucros fossem disponibilizados, na linha de entendimento já exposta no “caso Eagle 1”

segundo a qual os rendimentos tributados a partir da vigência do artigo 74 da MP nº 2.158-

35/2001 teriam natureza de “lucro”.

A conselheira Sandra Maria Faroni manifestou o entendimento de que a imputação

não poderia ser direta, devendo os referidos lucros oriundos das controladas indiretas serem

consolidados na controlada direta, detentora do seu capital social, o que resultaria na

aplicação do tratado e, portanto, na impossibilidade de o Brasil tributar tais rendimentos até o

momento da sua disponibilização na forma de dividendos269

.

Apesar de plausível o argumento da conselheira, não foi esse o entendimento

majoritário da câmara julgadora. O conselheiro Valmir Sandri, que proferiu o voto

“vencedor” seguido pela maioria dos conselheiros no presente caso, concordou com a

conselheira Sandra Maria Faroni no tocante ao argumento de que o regime tributário após a

vigência do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 passou a recair sobre lucros e que, por esta

razão, o dispositivo dos tratados que rege a sua aplicação é o artigo 7º que é incompatível com

o regime brasileiro.

Ele discordou, no entanto, da ideia de que somente podem ser tributados, no Brasil, os

resultados das controladas indiretas através da sua consolidação nas controladas diretas.

Segundo o conselheiro, os resultados das controladas indiretas podem ser diretamente

tributados na controladora indireta brasileira (Eagle) sem a sua passagem pela controlada

direta, essencialmente, porque a legislação fiscal270

não restringiu a sua incidência tão

somente às sociedades controladas diretas, tendo adotado a expressão “controlada” de

maneira irrestrita. Ao analisar o conceito que a legislação comercial atribuiu a “sociedade

controlada”, o conselheiro concluiu que os conceitos de “sociedade controlada”, previstos no

269

É interessante notar que, mesmo crente de que os referidos rendimentos possuem natureza de lucro, a

conselheira se preocupou em demonstrar que, ainda que fossem considerados dividendos, não seriam tributados

por força da regra de isenção prevista no artigo 23, §4º do Tratado Brasil-Espanha. 270

Em especial o caput do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001.

Page 206: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

206

§2º do artigo 243 da Lei nº 6.404/76 e no inciso II do artigo 1.098 do Código Civil, são

amplos e incluem, expressamente, as hipóteses de controle indireto.

Com base nesse entendimento, o conselheiro concluiu que os lucros auferidos no

exterior por controladas indiretas poderiam ser imputados diretamente à base de cálculo do

IRPJ e da CSLL da controladora residente no Brasil (Eagle) por meio do seu controle

individualizado feito através do MEP. A consequência deste raciocínio é o reconhecimento de

que as disposições do Tratado Brasil-Espanha não são aplicáveis aos lucros auferidos pelas

sociedades controladas indiretas residentes no Uruguai e na Argentina.

Registre-se, entretanto, que esta visão foi fortemente questionada por outros

conselheiros, tais como José Sérgio Gomes que questionou a premissa de que os rendimentos

sobre os quais incide o artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 tenham natureza de lucro, ao

entender que a sua real natureza era de dividendo na linha do entendimento que prevaleceu no

Caso Refratec.

Os julgados mais recentes do CARF sobre o tema da adequação do regime brasileiro

de tributação de lucros auferidos no exterior com os tratados celebrados pelo Brasil não revela

uma alteração significativa do posicionamento que a referida corte administrativa vinha

firmando através dos casos analisados acima. De fato, optamos por analisar os três casos

acima, não apenas porque a tarefa de analisar todos os casos em que CARF se pronunciou

sobre o tema seria inviável – o que já justificaria, por si só o recorte metodológico –, como

também porque esses foram os casos mais importantes analisados pela referida corte

administrativa, até o presente momento, para a formação do seu entendimento sobre o tema.

Em relação ao entendimento de que cabe às pessoas jurídicas consolidar e

individualizar os lucros e tributos das suas controladas indiretas, devemos tecer algumas

ponderações. De fato, há um conflito entre algumas disposições da IN SRF nº 213/2002 com

disposições legais que regulam a matéria. Por um lado, o artigo 1º, §6º e o artigo 14, §6º, da

IN SRF nº 213/2002 preveem a consolidação dos resultados das controladas indiretas nas

controladas diretas para efeito de determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL da

controladora brasileira. Por outro lado, o caput do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 e o

artigo 16, inciso I, da Lei nº 9.430/96 apontam para o controle e a tributação individualizada

de cada sociedade controlada, sem delimitar a extensão do conceito que, conforme vimos,

leva à interpretação de que ele se aplica tanto às diretas quanto às indiretas. Em outros

Page 207: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

207

dispositivos, a própria instrução normativa mencionada parece apontar no mesmo sentido dos

dispositivos legais mencionados271

.

Parece haver, portanto, uma certa contradição nas disposições normativas que se

aplicam à presente temática. Enquanto algumas disposições da IN SRF nº 213/2002 pendem

mais para a consolidação dos resultados das controladas indiretas no lucro da controlada

direta, o método de tributação da MP nº 2.158-35/2001 e da Lei nº 9.430/96 pende mais para a

adição individualizada ou isolada do lucro e exclusão dos tributos pagos de cada controlada

indireta diretamente ao lucro da controladora indireta no Brasil272

.

Ao analisar os casos, podem ser tecidas duas breves conclusões. Primeiramente,

considerando tão somente o universo de casos analisados, embora pareça haver uma tendência

de se conceber que os rendimentos alcançados pela incidência do artigo 74 da MP nº 2.158-

35/2001 têm natureza de lucro, a jurisprudência administrativa está longe de ser pacificada

haja vista a existência de defensores da linha de que a norma incide sobre dividendos fictos.

Assim, é difícil dizer, com certeza, qual será o entendimento das cortes administrativas sobre

o correto enquadramento do regime brasileiro; se no artigo 7º dos tratados celebrados pelo

Brasil para evitar a dupla tributação ou no artigo 10. A segunda conclusão é no sentido de que

a jurisprudência caminhou, até o presente momento, no sentido de excluir do campo de

incidência das disposições dos tratados os resultados auferidos pelas controladas indiretas.

4.5. Conclusões da análise jurídica crítica do regime brasileiro de tributação de

lucros auferidos no exterior

Desde o princípio, os debates sobre a validade jurídica do regime brasileiro de lucros

auferidos no exterior foi caracterizado por uma forte oposição entre juristas que se

organizaram em, fundamentalmente, duas linhas de pensamento que partem de pressupostos

diametralmente opostos.

A ausência de debates mais aprofundados e técnicos sobre o regime brasileiro quando

da sua criação criou dúvidas quanto à sua real natureza, ou seja, se seria ele o da transparência

271

Veja-se o seu artigo 1º, §5º. 272

Cf. YAMASHITA, Douglas. Controladas indiretas no exterior: controvérsias de seu regime tributário. Revista

Dialética de Direito Tributário (RDDT). São Paulo: Dialética, n. 179, 2010, p. 30-34.

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208

fiscal internacional ou não. No final das contas, as grandes questões que estão por trás do

questionamento quanto à real natureza do regime brasileiro são: Qual é o objeto de tributação

do regime brasileiro? O lucro das controladas e coligadas? Ou a variação patrimonial sofrida

pela controladora brasileira? Até o momento, estas perguntas permanecem sem resposta

definitiva.

As duas linhas doutrinárias se contrapõem, sobretudo, em relação às grandes questões

jurídicas ensejadas pelo regime brasileiro. Com efeito, no que nós chamamos de “primeiro

momento do debate sobre a validade jurídica do regime”, as duas visões se colocam

claramente contrapostas. Na ADI nº 2.588, a primeira linha defende a constitucionalidade do

regime enquanto que a segunda linha sustenta ser o regime inconstitucional.

Não obstante o debate patrocinado por meio da ADI 2.588 sobre o conceito

constitucional de renda ainda aguarde um posicionamento do Poder Judiciário, temos a forte

crença de que o debate da validade jurídica do regime brasileira de tributação de lucros

auferidos no exterior está em transformação e que ele deverá se fazer presente em novas

frentes de discussão. A principal delas diz respeito ao confrontamento dos efeitos econômicos

advindos do regime brasileiro com a Ordem Econômica Constitucional. Um indício desta

constatação talvez seja o reconhecimento de repercussão geral ao RE nº 611.586 pelo STF.

Neste sentido, ao confrontar os efeitos econômicos do regime brasileiro de tributação

de lucros auferidos no exterior – identificados em nossa pesquisa empírica – com a Ordem

Econômica Constitucional, restou comprovado que, em determinadas circunstâncias, o regime

brasileiro será inconstitucional por desincentivar a internacionalização produtiva. Em outras,

será constitucional.

Em relação ao juízo de adequação do regime brasileiro com os tratados celebrados

pelo Brasil para evitar a dupla tributação, vimos que a OCDE mudou de posicionamento ao

longo do tempo quanto à adequação do regime de transparência fiscal internacional com os

tratados de modo que, em seu último comentário à convenção modelo de tratados para evitar a

dupla tributação, restou claro que o regime não é incompatível com os tratados, sendo

desnecessária cláusula que o autorize, mas recomendou-se que o seu desenho fosse voltado

apenas a combater determinadas situações onde estivesse caracterizado o abuso.

No Brasil, as cortes judiciais ainda não se posicionaram sobre o tema, mas é certo que,

na esfera administrativa, a jurisprudência do CARF está longe de ser pacificada haja vista a

existência de defensores de linhas de entendimento diversas quanto ao dispositivo dos

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209

tratados que se aplicaria quando da incidência do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001, muito

embora pareça haver uma tendência de se conceber que os rendimentos alcançados pela

incidência do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 têm natureza de lucro. A questão assume

complexidade ainda maior quando se analisa a questão das controladas indiretas, em relação

às quais as cortes administrativas não entenderam ser possível a aplicação da proteção

conferida pelos tratados.

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210

5. CONCLUSÕES FINAIS

Nesta conclusão final, elencaremos, pontual e objetivamente, as conclusões a que

chegamos em cada um dos capítulos deste trabalho e, ao final, faremos as nossas breves

considerações finais pensando em uma agenda de pesquisa para a futura reforma legislativa

das regras brasileiras de tributação em bases universais das pessoas jurídicas, em especial, da

sua regra de antidiferimento.

1. Trajetória da evolução histórica do regime de transparência fiscal internacional

1.1. O regime de transparência fiscal internacional surgiu como uma reação unilateral dos

países contra a perda das suas bases arrecadatórias advinda de práticas de elisão fiscal

envolvendo paraísos fiscais e regimes fiscais privilegiados.

1.2. As práticas de elisão fiscal internacional são uma decorrência de um fenômeno maior – a

globalização – que levou ao surgimento de um mercado global todo interligado por redes

tecnológicas que permitiu mobilidade e livre fluxo de capitais ao redor do mundo.

1.3. A globalização transformou a concepção de Estado adotada até o início do século XX, de

Estado-nação para Estado-transnacional, o que ensejou uma nova orientação nas políticas

tributárias adotadas pelos países até então, sobretudo, diante da constatação de que as

políticas implementadas pelos Estados passaram a gerar reações de outros Estados

diretamente afetados neste ambiente global. Na medida em que o capital se tornou móvel,

aumentou a concorrência fiscal entre os países pela sua atração.

1.4. A primeira reação unilateral partiu da iniciativa dos EUA, com a inserção, em 1913, do

que viriam as ser as suas CFC rules (subpart f) em 1962 (regime de transparência fiscal

internacional norte-americano).

1.5. O debate legislativo norte-americano demonstra que houve um forte embate político no

Congresso norte-americano entre a Administração Kennedy, que desejava adotar uma

norma antidiferimento ampla visando promover, sobretudo, a neutralidade na exportação

de capitais, e o empresariado que era receoso quanto aos efeitos concorrenciais que o

regime da subpart f poderia causar à competição em mercados internacionais. O desenho

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211

final do regime foi um reflexo deste embate político na medida em que a regra de

antidiferimento foi apenas parcialmente aplicada. Estas disputadas de interesse foram

claramente observadas até o começo dos anos 2000 quando o debate passou a se focar nas

check-the-box regulations.

1.6. O Congresso norte-americano, sensível aos interesses do empresariado, criou regimes

especiais que permitiam ora o diferimento ora a isenção completa das receitas de

exportação auferidas por subsidiárias estrangeiras de empresas norte-americanas como

forma de promoção das exportações nacionais. Tais regimes foram posteriormente

criticados, principalmente por países da União Europeia, por constituírem subsídios

proibidos às exportações norte-americanas, conforme disposto no Acordo GATT.

1.7. As estratégias de elisão fiscal internacional passaram a ser objeto de preocupação da

OCDE. A organização encabeçou uma luta contra a concorrência fiscal danosa,

especialmente nas duas últimas décadas do século XX. Reconhecendo que a coordenação

internacional seria um ideal difícil de ser alcançado, a organização defendeu a adoção de

medidas destinadas à defesa da arrecadação nacional dos seus países membros – em sua

maioria desenvolvidos (incluindo membros do G7) – frente à concorrência fiscal danosa

promovida por outros países. Dentre as medidas recomendadas, estão das CFC rules.

1.8. Depois do relatório de 1998, a OCDE foi fortemente criticada e o seu papel foi

consideravelmente alterado na medida em que passou a se focar na promoção da

transparência e na troca de informações entre jurisdições fiscais – através do Fórum

Global – e não na criação de critérios de discriminação de concorrência fiscal danosa.

Países em desenvolvimento ganharam maior representatividade no órgão, em especial, os

emergentes através da inserção do G20 na organização.

1.9. Apesar das críticas, a OCDE já havia legitimado o uso das CFC rules como medida de

proteção das bases imponíveis dos seus países membros, o que estimulou a sua adoção

por diversos países do mundo.

1.10. A Comunidade Econômica Europeia (atual União Europeia) se deparou com a

problemática da concorrência fiscal danosa patrocinada por países de tributação regular,

mas que possuíam regimes fiscais privilegiados para determinadas atividades e tipos de

rendimentos.

1.11. A solução europeia foi muito mais pautada na coordenação entre os países do que na

adoção de medidas unilaterais uma vez que instrumentos desprovidos de coação jurídica

possuem elevado enforcement político quando considerados no âmbito comunitário.

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212

Assim, instrumentos como o código de conduta assumiram importância muito maior na

comunidade europeia do que a adoção das CFC rules. Estas últimas eram vistas como

uma potencial ameaça às liberdades estabelecidas no Tratado da Comunidade Europeia,

haja vista a sua jurisprudência recente, devendo elas ser usadas com diversas restrições

quando aplicadas a países membros e com menos restrições quando aplicadas aos países

não membros (terceiros).

1.12. A experiência internacional tem demonstrado que, na ausência de uma política de ação

coordenada, as medidas unilaterais de proteção das bases arrecadatórias têm sido

amplamente utilizadas, dentre elas, o regime de transparência fiscal internacional.

1.13. A evolução do tema da transparência fiscal internacional revela que a sua natureza é de

norma antielisiva especial de modo que a sua incidência está orientada para combater

formas abusivas de elisão fiscal internacional. É, portanto, uma norma antiabuso.

1.14. No plano internacional, o desenho do regime de transparência fiscal internacional está

geralmente orientado para combater o diferimento de determinados rendimentos passivos

(transactional approach) auferidos por subsidiárias em países de tributação favorecida ou

beneficiárias de regimes fiscais privilegiados (jurisdictional approach), sujeitas a um

percentual mínimo de participação societária por parte da pessoa jurídica investidora.

2. Trajetória da evolução normativa do regime de tributação de lucros auferidos no

exterior no direito brasileiro

2.1. No Brasil, duas razões motivaram a adoção de um regime de tributação da pessoa jurídica

em bases universais juntamente com uma regra de combate ao diferimento da tributação

nacional: (i) a nova conjuntura macroeconômica interna do Brasil pós-Real; e (ii) a

existência de uma orientação internacional recomendando o uso da transparência fiscal

internacional como forma de proteção da arrecadação tributária interna frente ao

fenômeno da competição tributária danosa.

2.2. O desenho normativo do regime brasileiro diferiu sensivelmente da prática internacional

e da própria recomendação do modelo da OCDE na medida em que a sua regra de

antidiferimento não discriminou o rendimento nem pela sua natureza (ativo ou passivo),

nem pela sua origem (regime fiscal favorecido ou não). Assim, a regra de antidiferimento

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213

brasileira desconsidera tanto o transactional approach quanto o jurisdictional approach

geralmente adotados para definição do campo (seletivo) de aplicação do regime.

2.3. A regra de antidiferimento brasileira não possui natureza antielisiva na medida em que

ela não coíbe tão somente as práticas abusivas de elisão fiscal internacional.

2.4. No Brasil, não obstante as tentativas anteriores, o regime de tributação em bases

universais das pessoas jurídicas, vigente atualmente, foi introduzido no ordenamento

jurídico através dos artigos 25 a 27 da Lei nº 9.249/95 o qual, não apenas previu a

possibilidade de tributação de lucros, ganhos de capital e rendimentos auferidos por

controladas e coligadas brasileiras no exterior em substituição ao regime territorial até

então vigente, como também se respaldou em uma norma de antidiferimento ampla.

2.5. A possível inadequação do regime inicialmente formulado pelos artigos 25 a 27 da Lei nº

9.249/95 representou um risco que precisava ser contornado no curto prazo, o que veio a

ocorrer através da publicação da IN SRF nº 38/1996 – ilegal por apresentar inovação

incompatível com a legislação vigente – e da Lei nº 9.532/97 que atribui “status legal” às

alterações introduzidas pela referida instrução normativa.

2.6. Posteriormente, com a alteração introduzida pela Lei Complementar nº 104/2001 no

artigo 43 do CTN, o Governo Federal entendeu estarem satisfeitas as condições jurídicas

necessárias para a previsão de uma regra de antidiferimento ampla e irrestrita. Tal

intenção veio a ser concretizada através do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 e com a IN

SRF nº 213/2002 que a regulamentou.

2.7. No Brasil, o objetivo que prevaleceu não foi apenas dissuadir condutas elisivas

envolvendo paraísos fiscais, o que poderia ser feito adotando-se o modelo consagrado

pela prática internacional com ganhos mais reduzidos de arrecadação, mas sim a

combinação de duas finalidades: (i) dissuasão; e (ii) ampliação da arrecadação tributária

federal (com ganhos mais generosos advindos da relativa amplitude da norma quando

comparada à prática internacional) para que políticas de natureza diversa fossem

concretizadas.

2.8. É notável o fato de que houve um aumento significativo da arrecadação tributária no

contexto pós-Real. Esta tendência foi motivada por diferentes fatores políticos e

econômicos; ora buscava-se amenizar a perda de arrecadação federal advinda de crises

econômicas, ora procurava-se arrecadar recursos necessários ao financiamento de

políticas específicas de governo. Em todas essas situações diversas, observamos que tanto

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214

a criação de novas espécies tributárias quanto a majoração da alíquota das espécies já

existentes representavam estratégias com custo político muito elevado.

2.9. A alternativa política mais viável para aumentar a arrecadação tributária, no período

analisado, foi a instrumentalização das autoridades fiscais com medidas mais sofisticadas

de controle e fiscalização do contribuinte destinada, principalmente, ao combate às

práticas de elisão fiscal (nacional e internacional).

2.10. O debate político é pouco direcionado para a análise da adequação das alterações

tributárias à uma conjuntura econômica considerando-se uma política industrial ou de

desenvolvimento de empresas em mercados internacionais de longo prazo.

2.11. A articulação política de segmentos privados foi se aprimorando gradativamente após a

publicação da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 em virtude da importância crescente

da internacionalização produtiva para as empresas de capital nacional.

2.12. As entrevistas realizadas com ex-funcionários da RFB sobre as razões que teriam levado

o Brasil a ter um regime que diverge sensivelmente da experiência internacional revelam

que o Brasil não possuía longa experiência no debate sobre elisão fiscal e,

principalmente, em normas antielisivas especiais aplicáveis ao direito tributário

internacional quando o regime brasileiro foi inicialmente concebido. Ademais, uma regra

geral de antidiferimento foi a alternativa mais eficiente e menos custosa, para o Governo

Federal, do ponto de vista da arrecadação tributária.

2.13. É notável a ausência de debate entre fisco e contribuinte ao longo do processo de

evolução normativa da sistemática de tributação em bases universais de modo que o

regime atualmente em vigor não foi o resultado de um processo de construção em que

todos os grupos de interesse envolvidos tiveram direito à participação assegurado, mas

sim uma política tributária que surgiu no interior do Poder Executivo e que recebeu pouca

oposição política pelos grupos de interesse organizados no Congresso Nacional,

especialmente quando outras políticas pontuais – talvez de maior apelo popular, como foi

o caso do aumento do salário mínimo – estavam em jogo e dependiam de recursos para o

seu financiamento.

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215

3. Os efeitos do regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior na

internacionalização produtiva das empresas de capital nacional

3.1. Há, fundamentalmente, dois tipos de internacionalização empresarial: (i)

internacionalização comercial, promovida através das exportações; e (i)

internacionalização produtiva, na qual empresas brasileiras internacionalizam fatores de

produção.

3.2. A literatura econômica aponta para três motivações centrais da internacionalização

produtiva: (i) o acesso a novos mercados; (ii) a busca por recursos materiais; e (iii) o

desejo de se alcançar padrões de maior eficiência econômica, através da busca pela

economia de escala pautada na redução do custo médio unitário de produção de

mercadorias.

3.3. Há diversas vantagens, do ponto de vista empresarial, advindas da internacionalização

produtiva. Operar em mercados externos fortalece, sobretudo, a posição competitiva da

empresa no seu mercado nacional. A internacionalização traz, portanto, ganhos de

competitividade na medida em que leva as empresas nacionais a aprenderem a competir

no mesmo nível das empresas mais eficientes do mundo.

3.4. Há diversas estratégias que são utilizadas pelas empresas para a sua inserção produtiva

em novos mercados, tais como: (i) a aquisição de empresas ou unidades industriais já

existentes no mercado-alvo e (ii) a realização de greenfield investments (investimentos

feitos para a constituição de subsidiárias em novos mercados “partindo-se do zero”).

3.5. Do ponto de vista do desenvolvimento nacional, não há um consenso, entre os críticos,

quanto ao fato de a internacionalização produtiva favorecer o desenvolvimento do país

exportador de capitais, sendo claro que as principais críticas dizem respeito à criação de

empregos no exterior, desincentivo às exportações, diminuição dos investimentos

internos e perda de arrecadação tributária.

3.6. O Brasil está passando por um processo de internacionalização produtiva que se acentuou

muito na última década, liderado por empresas de capital nacional que atuam em

mercados de commodities agrícolas e minerais e por algumas poucas empresas de outros

setores. Mesmo assim, o Brasil ainda é um país que mais importa do que exporta capitais.

3.7. Não há, nas políticas industriais brasileiras formuladas desde o início da Nova República,

uma postura clara do Governo Federal quanto a apoiar ou não a internacionalização

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216

produtiva. O posicionamento governamental se restringe à internacionalização comercial,

em relação à qual há uma postura favorável ao estímulo das exportações brasileiras.

Embora a internacionalização produtiva não conste das políticas industriais do Governo

Federal, ela vem sendo estimulada através do BNDES, ainda que em um estágio pouco

desenvolvido. Há, certamente, muito espaço para a ampliação da política de

financiamento da internacionalização produtiva de empresas de capital nacional por parte

do BNDES.

3.8. O Governo Federal não apenas pode como deve estabelecer condições que assegurem que

a internacionalização produtiva traga benefícios para o país em termos de

desenvolvimento social e econômico – como é o caso da exigência de que haja

incremento nas exportações nacionais ou de repatriamento de lucros em determinado

período de tempo – sem os quais não há aprovação da linha de financiamento, conforme

o BNDES vem fazendo.

3.9. As entrevistas com empresas de capital nacional revelaram que, embora o regime

brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior não representa um fator de

desincentivo capaz de tornar a internacionalização produtiva custosa demais frente aos

seus respectivos benefícios a ponto de inviabilizá-la, ele gera um ônus concorrencial para

as controlada e coligadas de empresas nacionais frente aos seus competidores em

mercados internacionais.

3.10. O principal ônus ensejado pelo regime brasileiro é a vedação ao diferimento da tributação

nacional, ao passo em que as concorrentes das subsidiárias brasileiras podem contar, ou

com tributação inferior no país de residência da pessoa investidora, ou com a

possibilidade de diferimento até o momento em que os lucros são repatriados.

3.11. As entrevistas apontam que outros problemas decorrentes do regime brasileiro, tais como

a não homologação das ajudas de Estado concedidas no exterior, a insegurança jurídica

quanto à interpretação que será dada ao final pela Administração Tributária (e cortes

administrativas) aos tratados celebrados pelo Brasil para evitar a dupla tributação, a

impossibilidade de compensar prejuízos incorridos no exterior, entre outros problemas

apontados neste trabalho, reforçam a tese de que o regime brasileiro afeta a capacidade

competitiva das controladas e coligadas de empresas brasileiras no exterior,

representando, para elas, um ônus que as suas concorrentes não incorrem necessariamente

ao competirem fora do país da sua investidora.

Page 217: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

217

3.12. Não há um consenso entre os funcionários e ex-funcionários da RFB entrevistados quanto

às vantagens e desvantagens do regime de tributação em bases universais adotado pelo

ordenamento jurídico brasileiro. De modo geral, os funcionários entrevistados de escalão

médio tenderam a defender as vantagens decorrentes do regime, em especial, a sua

eficiência arrecadatória e os seus relativos baixos custos de fiscalização e controle talvez

até por uma postura mais corporativista. Por outro lado, os ex-funcionários entrevistados

de maior escalão assumiram uma postura muito mais crítica quanto o regime,

concordando com os efeitos competitivos negativos ensejados por ele.

4. Análise jurídica crítica do regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no

exterior

4.1. A ausência de debates mais aprofundados e técnicos sobre o regime brasileiro criou

dúvidas quanto à sua real natureza, ou seja, se seria ele o da transparência fiscal

internacional ou não. Dessa forma, as dúvidas quanto à real natureza do regime levaram à

criação de duas linhas doutrinárias.

4.2. A primeira linha sustenta que o regime brasileiro não é de transparência fiscal

internacional na medida em que o objeto sobre o qual recai a incidência tributária é o

acréscimo patrimonial positivo sofrido pela pessoa jurídica investidora residente no

Brasil.

4.3. A segunda linha defende que o regime brasileiro corresponde à teoria da transparência

fiscal internacional na medida em que ele desconsidera a pessoa jurídica controlada ou

coligada exclusivamente para alcançar os lucros por ela auferidos.

4.4. Defendemos que o debate sobre a validade jurídica do regime brasileiro está em

transformação, de questões jurídicas que caracterizaram um primeiro momento para

questões que demarcam um segundo momento de debate, sem, no entanto, que as

questões presentes no primeiro momento fossem descartadas.

4.5. No primeiro momento de debate, a questão central de debate é a adequação do

mecanismo legal de disponibilização automática da renda ao conceito constitucional de

renda e com o disposto no artigo 43 do CTN. A ADI nº 2.588 é caracterizada por três

visões distintas que partem de conceitos mais ou menos rígidos do que seria a

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218

disponibilização jurídica e econômica da renda. A oposição que caracteriza as duas linhas

doutrinárias apontadas acima é igualmente perceptível nos votos do Min. Nelson Jobim e

Marco Aurélio.

4.6. Por trás da defesa acadêmica das duas linhas apontadas, há um verdadeiro embate de

interesses entre fisco e contribuinte.

4.7. No primeiro momento de debate sobre a validade jurídica do regime brasileiro, outras

questões também foram criticadas. Uma das questões refere-se ao extravasamento do

âmbito regulamentar da IN SRF nº 213/2002 que, ao determinar a tributação de toda a

contrapartida positiva em conta de resultado decorrente do ajuste feito pelo MEP,

ampliou indevidamente a base de cálculo de modo a não apenas abranger os lucros,

rendimentos e ganhos de capital. Criticou-se, igualmente, a impossibilidade de

compensação de prejuízos incorridos no exterior com lucros auferidos pela pessoa

jurídica investidora e o risco de sobreposição das normas de tributação de lucros

auferidos no exterior com a sistemática vigente de preços de transferência.

4.8. Defendemos que o debate relativo à validade jurídica do regime de tributação de lucros

auferidos no exterior está assumindo um novo campo de discussão que, apesar de não

desprezar o debate realizado até então, demarca nitidamente um segundo momento de

discussão. Neste novo campo de debate, os efeitos econômicos do regime são

confrontados com a Ordem Econômica Constitucional.

4.9. A Ordem Econômica Constitucional, prevista na Constituição Federal de 1988, é

orientada por princípios em sentido amplo e estrito.

4.10. Em sentido estrito, a Ordem Econômica Constitucional – também denominada de

Constituição Econômica – é orientada por diversos princípios constitucionais previstos no

capítulo I do título VII que dispõe sobre “A Ordem Econômica e Financeira”,

especialmente aqueles previstos no artigo 170 da C.F.

4.11. Em sentido amplo, a Ordem Econômica Constitucional é orientada por outros princípios

previstos esparsamente no texto constitucional, tais como o objetivo fundamental de

garantir o desenvolvimento nacional previsto no artigo 3º, inciso II da C.F.

4.12. A Constituição Federal de 1988 é transformadora – ou dirigente – em sua essência e o

desenvolvimento nacional é um objetivo que norteia a atividade do Estado, sobretudo, no

desempenho das funções de fiscalização, incentivo e planejamento quando atua como

agente normativo e regulador da atividade econômica, em conformidade com o disposto

no artigo 174 da Constituição Federal.

Page 219: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

219

4.13. Há vinculação direta e imediata da norma que institui o objetivo de se assegurar o

desenvolvimento (elevada densidade normativa) em dois sentidos distintos: primeiro,

enquanto indicação ideológica do constituinte que deve servir como orientador do

processo de aplicação do direito constitucional e infraconstitucional; segundo, na

condição de mandamento endereçado ao legislador que deve implementar programas

direcionados a alcançar tal objetivo sob pena de responsabilização jurídica e política.

4.14. Levando-se em consideração que o regime brasileiro gera efeitos concorrenciais

negativos às subsidiárias de empresas nacionais que concorrem no exterior e que a

internacionalização produtiva, uma vez regulada através da imposição de condições e

critérios, é favorável ao desenvolvimento nacional, defendemos a tese de que o regime

brasileiro será inconstitucional, por contrariar frontalmente a Ordem Econômica

Constitucional vigente, nas hipóteses em que ele incidir sobre operações de

internacionalização produtiva favoráveis ao desenvolvimento nacional.

4.15. Apesar de não caber aos juristas a tarefa de definir quando a internacionalização

produtiva é favorável ao desenvolvimento nacional, é evidente que, mediante a regulação

estatal, é possível discriminar os casos em que a internacionalização produtiva é uma

estratégia fundamental para a promoção do desenvolvimento nacional, daqueles em que

ela não corrobora para o desenvolvimento. Uma prova disso é a previsão normativa e o

desempenho do BNDES no financiamento da internacionalização produtiva de empresas

de capital nacional. O regime brasileiro, no entanto, se aplica indiscriminadamente a

todos os casos em que há empresas nacionais internacionalizadas e daí a potencial afronta

à Ordem Econômica Constitucional.

4.16. Em relação ao juízo de adequação do regime brasileiro com os tratados celebrados pelo

Brasil para evitar a dupla tributação, a OCDE mudou de posicionamento ao longo do

tempo quanto à adequação do regime de transparência fiscal internacional com os

tratados de modo que, em seu último comentário à convenção modelo de tratados para

evitar a dupla tributação, restou claro que o regime não é incompatível com os tratados,

sendo desnecessária cláusula que o autorize, mas a organização recomendou,

expressamente, que o seu desenho fosse voltado apenas ao combate de determinadas

situações onde estivesse caracterizado o abuso, sob risco de incompatibilidade com a

convenção modelo.

4.17. No Brasil, as cortes judiciais ainda não se posicionaram definitivamente sobre o tema,

mas é certo que, na esfera administrativa, a jurisprudência do CARF está longe de ser

Page 220: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

220

pacificada haja vista a existência de defensores de linhas de entendimento diversas

quanto ao dispositivo dos tratados que se aplicaria quando da incidência do artigo 74 da

MP nº 2.158-35/2001, muito embora pareça haver uma tendência de se conceber que os

rendimentos alcançados pela incidência do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001 têm

natureza de lucro. A questão assume complexidade ainda maior quando se analisa a

questão das controladas indiretas, em relação às quais as cortes administrativas não

entenderam ser possível a aplicação da proteção conferida pelos tratados.

Considerações finais: pensando em uma agenda de pesquisa para a futura reforma

Pensar em como o direito é capaz de assegurar as bases necessárias para a promoção

do desenvolvimento foi a inquietude que esteve presente em todo o processo de elaboração

deste trabalho acadêmico. Este foi o objetivo central de um trabalho que se dedicou a estudar

a relação de causalidade do direito com o desenvolvimento.

Através do presente trabalho, esperamos ter demonstrado que o regime brasileiro de

tributação de lucros auferidos por controladas e coligadas no exterior gera efeitos econômicos

nocivos à internacionalização produtiva das nossas empresas, na medida em que afeta a sua

capacidade competitiva, e que tais efeitos ensejam repercussões jurídicas capazes de tornar o

regime inconstitucional, não pela sua inadequação ao conceito constitucional de renda, mas

pela sua afronta direta à Ordem Econômica Constitucional.

O valor do presente trabalho não se restringe ao campo estritamente jurídico. Em uma

acepção mais ampla de pesquisa jurídica (que não se resuma à mera exegese jurídica ou à

verificação da consistência interna do direito), identificamos que o processo de formulação da

política tributária que orientou o desenho do regime de tributação de lucros auferidos no

exterior foi a causa central das grandes questões jurídicas que foram levantadas na sequência

da sua introdução no ordenamento jurídico. Entender o caminho percorrido pela política

tributária – a sua “engenharia normativa” – torna possível compreender a verdadeira causa

dos problemas jurídicos ensejados pela norma. A necessidade de gerar maiores receitas para a

arrecadação nacional, a preocupação dos legisladores com políticas pontuais, a inexperiência

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221

brasileira no tema e a falta de participação do contribuinte no processo de formulação do

regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior fizeram dele um tema

juridicamente problemático, de questionável constitucionalidade e de difícil harmonização

com os tratados.

Temos a crença de que este trabalho possa servir de ponto de partida para a reforma do

sistema atualmente em vigor mediante a sua substituição por um regime que, à semelhança da

recente reforma promovida pelo governo do Reino Unido nas suas CFC rules, “melhor reflita

a forma como os negócios se operam em uma economia global e que alcance o melhor

equilíbrio possível entre tornar a tributação da renda mais competitiva e proteger a

arrecadação tributária”273

. Esperamos, verdadeiramente, que uma reforma legislativa futura

contemple a participação de todos os grupos de interesse afetados e procure encontrar o

melhor equilíbrio possível entre competitividade econômica e proteção da arrecadação

tributária. Este equilíbrio levará ao desenvolvimento nacional.

273

HM TREASURY; HM REVENUE AND CUSTOMS. Controlled Foreign Company (CFC) Reform:

response to consultation. London, 2011, p. 7-8. Disponível em: <www.hm-treasury.gov.uk>. Acesso em:

13/08/2012.

Page 222: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

222

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEM, Ana Claudia e CAVALCANTI, Carlos Eduardo. O BNDES e o apoio à

internacionalização das empresas brasileiras: algumas reflexões. Revista do BNDES, Rio de

Janeiro, v. 12, n. 24, 2005.

ALMEIDA, André L. Santos de. A relevância do investimento brasileiro direto no exterior

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do primeiro conselho de contribuintes na sessão de 19 de outubro de 2006, Conselheira-

relatora: Sandra Maria Faroni, PAF nº 16327.000112/2005-31.

Page 230: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

230

BRASIL. Ministério da Fazenda. Acórdão 101-97.070, proferido pela antiga primeira câmara

do primeiro conselho de contribuintes na sessão de 17 de dezembro de 2008, Conselheira-

relatora Sandra Maria Faroni, PAF nº 16327.000530/2005-28.

BRASIL. Ministério da Fazenda. Acórdão 108-08.765, proferido pela antiga oitava câmara do

primeiro conselho de contribuintes na sessão de 23 de março de 2006, Conselheiro-relator:

José Henrique Longo, PAF nº 13603.002794/2003-50.

JURISPRUDÊNCIA JUDICIAL:

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.588.

Autora: Confederação Nacional da Indústria. Ministra Relatora: Ellen Gracie.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário (RE) nº 172.058-1.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário (RE) nº 611.586. Recorrente:

Cooperativa Agropecuária Mourãoense Ltda. Recorrida: União. Ministro Relator: Joaquim

Barbosa.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. EDcl no AgRg nos EDcl no REsp 1232796/RS,

Ministro Relator: Humberto Martins, segunda turma, data de julgamento: 27/03/2012.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1161003/RS, Ministro Relator: Mauro Campbell

Marques, segunda turma, data de julgamento: 27/09/2011.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1222719/RS, Ministro Relator: Humberto

Martins, segunda turma, data de julgamento: 03/05/2011.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 983134/RS, Ministro Relator: Castro Meira,

segunda turma, data de julgamento: 03/04/2008.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 907404 / PR, Ministro Relator: Humberto

Martins, segunda turma, data de julgamento: 23/10/2007.

NOTÍCIAS DE JORNAL:

STF pode recomeçar do zero julgamento sobre controladas no exterior. Valor Econômico. São

Paulo, Artigo publicado em 02/04/2012.

Page 231: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

231

APÊNDICE A

ANÁLISE DETALHADA DAS ENTREVISTAS

Importância e motivações da internacionalização produtiva

Vale destacar inicialmente que, além de todas as empresas entrevistadas já possuírem

investimentos previamente realizados no exterior, todas elas manifestaram a percepção de que

este movimento sofreu um crescimento elevado nesta última década no Brasil, sobretudo no

que diz respeito aos seus próprios investimentos realizados no exterior.

De acordo com o consultor tributário da Empresa 1, além de a internacionalização

produtiva ter se tornado um fenômeno cada vez mais presente para as empresas de capital

nacional, hoje, o Brasil assumiu uma posição de liderança na América Latina, de modo que

muitos investimentos feitos na região são estruturados a partir de empresas criadas no Brasil

como estratégia de centralização das operações realizadas em outros países da região. Assim,

de acordo com o seu relato, há duas formas de internacionalização produtiva ocorrendo no

Brasil:

Mas grandes grupos têm colocado o Brasil na posição de liderança, de consolidação

e centralização na América do Sul e essa vinda para a América do Sul têm

acontecido de forma bem forte. Então você tem (i) uma internacionalização de

empresas brasileiras [de capital nacional] em que grandes grupos brasileiros foram

para o exterior e esses foram para a Europa, para os EUA e para a América do Sul

também, e você tem (ii) uma internacionalização de empresas estrangeiras que a

partir do Brasil se ramificam para outros países da América Latina.

As duas formas de internacionalização produtiva tratadas acima são: a

internacionalização das empresas de capital nacional que realizam investimentos diretos no

exterior e a internacionalização das empresas estrangeiras que desejam realizar investimentos

na América Latina, mas que criam uma sociedade no Brasil para centralizar as suas

operações, podendo elas ser meras sociedades não operacionais destinadas a deter

participações societárias – sociedades holdings – ou sociedades operacionais propriamente.

As empresas entrevistadas que comercializam bens de consumo tendem a realizar

investimentos produtivos primeiramente em países da América Latina – não restritos ao

Mercosul – em virtude da maior facilidade geográfica, linguística e de práticas e costumes

comerciais. Após a conquista desses mercados, as referidas empresas investem em outros

Page 232: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

232

países do mundo. Além da América Latina, tais investimentos se encontram mais

predominantemente alocados nos mercados da Europa e dos EUA.

A motivação adotada por essas empresas é, fundamentalmente, a busca por novos

mercados consumidores e por um melhor canal de acesso à clientela local (the market-seeking

motive). Os desafios encontrados por essas empresas ao investirem diretamente no exterior

dizem respeito às barreiras que outras empresas já previamente estabelecidas impõem à

entrada e, sobretudo, o custo – em termos de tempo e valores – necessário à consolidação da

marca empresarial no mercado-alvo. Veja-se, neste sentido, um trecho da entrevista com a

Empresa 2:

Uma empresa de bens de consumo para se internacionalizar tem uma dificuldade

muito grande por conta da concorrência local e dos importadores já consolidados

nos outros mercados locais. E nós temos ainda, uma dificuldade ainda maior - e

nisso a legislação não nos atende - que é a construção da marca e do canal de

vendas.

(...)

Gasta-se muito para construir a marca no exterior e para vender um volume

razoável, frente aos investimentos feitos, apenas depois de 10 a 15 anos.

As empresas que exploram e comercializam commodities tendem a se dirigir aos

mercados onde estão localizadas as principais fontes de recursos minerais e agrícolas, ou seja,

as suas matérias-primas. A motivação para a internacionalização produtiva deste grupo de

empresas pode parecer, em um primeiro momento, tão somente a localização das suas

matérias-primas (the resource-seeking motive), mas, na verdade, ela atende dois objetivos: a

primeira é a busca por matérias-primas e a segunda é o acesso a novos mercados

consumidores (the market-seeking motive), geralmente próximos ao local de exploração das

commodities.

Esta é uma tendência observada nas entrevistas realizadas com as Empresas 4 e 5,

ambas exploradoras de commodities. A Empresa 5 alega que “nós estamos com um

investimento muito elevado no Brasil de modo que para o exterior nós vamos para buscar

mercado, não tanto mais para a produção”. Fica claro no trecho citado que, com o sucesso das

operações no Brasil, empresas exploradoras de commodities buscam investir no exterior como

forma de escoamento do excedente de produção nacional o que fortalece a hipótese de que a

internacionalização pode apoiar as exportações brasileiras. Confira-se, neste sentido, outro

trecho da entrevista realizada com a Empresa 5:

É, na verdade, hoje, a gente possui um balanço do que a gente exporta e importa

mais ou menos equilibrado. A gente já está com um excedente de produção que o

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233

Brasil não consome e a tendência é que isso aumente para os próximos anos.

Portanto, essa busca de mercado é por conta dos excedentes que nós temos aqui.

O terceiro grupo de empresas entrevistadas é composto por empresas que atuam na

prestação de serviços de engenharia. Tal grupo de empresas afirmou que a internacionalização

de parte das suas atividades produtivas deveu-se a uma estratégia de sobrevivência em seu

respectivo mercado e como forma de diminuição da sua dependência em relação à demanda

do mercado interno.

A Empresa 6 alegou, neste sentido, que, por ela realizar diversos projetos de

engenharia juntamente com o Governo, a diversificação das suas atividades através da

realização de investimentos no exterior é uma estratégia voltada a reduzir a sua

vulnerabilidade em momentos em que o país enfrenta crises econômicas ou em que o

Governo investe menos em infraestrutura – como ocorreu durante a década de 1980 depois de

um período de forte investimento do Governo em infraestrutura nas décadas de 1950 a 1970 –

deixando parte dos seus ativos ociosos. Confira-se, neste sentido, o trecho da entrevista com a

Empresa 6 reproduzido abaixo:

Esse [internacionalização produtiva], hoje, é um caminho de todos que querem

sobreviver. Houve um período muito crítico no Brasil em que nós tínhamos 15% do

nosso faturamento aqui e 85% lá [exterior]. Então, é até uma questão de

sobrevivência. Dentro de um mundo globalizado, você não pode ficar ali limitado ao

seu país de origem. A internacionalização é condição para que a empresa seja

sustentável. É também condição para que nós não fiquemos dependentes do mercado

interno. Além disso, como nós realizamos diversos projetos para o Governo, sempre

que o Governo enfrenta alguma dificuldade, ele diminui a sua capacidade de

investir. A Empresa fica em uma situação mais confortável se ela pode

contrabalancear esta situação com o acesso a outros mercados no exterior. Mas a

nossa base geográfica é aqui no Brasil (matriz).

Em relação à percepção de que a internacionalização produtiva é uma estratégia

necessária para garantir a sobrevivência da empresa, a Empresa 5 chegou a defender que “o

negócio é, se você não sair, alguém vem e te pega”.

A advogada e consultora tributária Simone Musa Dias relatou já ter trabalhado com

empresas que buscaram a internacionalização produtiva devido a problemas de natureza

regulatória no Brasil. Segundo a referida consultora, o problema enfrentado por essas

empresas era que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) não permitia

aquisição de seus concorrentes no Brasil de modo que a única alternativa que ela possuía para

a sua expansão era investir em projetos no exterior. Tratava-se de uma operação cuja

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234

motivação central era a busca por novos mercados, a despeito de a questão regulatória ter sido

determinante na decisão de investimento no exterior.

A Empresa 2 defendeu que a sua internacionalização produtiva decorreu do

reconhecimento de que a sua internacionalização comercial, através de exportações, se

revelou ser uma estratégia insuficiente, por si só, para assegurar a inserção dos seus produtos

nos mercados externos. Veja-se, abaixo, o trecho da entrevista realizada:

Sem dúvida, nós não conseguimos, simplesmente, exportar os nossos produtos do

Brasil para o exterior. Tem que entender culturalmente esses países e trabalhar uma

estratégia específica para cada um deles. Então, para disseminar o conhecimento da

nossa marca, do nosso produto e para permitir a sua recepção no exterior, a

internacionalização se faz necessária, inclusive se adequando às culturas locais.

Vale, ainda, ressaltar que algumas empresas entrevistadas admitiram possuir

sociedades holdings no exterior não apenas para fins fiscais, mas, principalmente, para a

centralização das suas operações no exterior. Este ponto será tratado em maiores detalhes no

próximo subtópico.

Efeitos econômicos do regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior

Percepções dos contribuintes

Após a realização de todas as entrevistas junto ao setor privado, chegou-se à conclusão

de que o regime brasileiro de tributação de lucros auferidos no exterior gera efeitos

econômicos na conquista de novos mercados, mas não representa um fator de desincentivo

capaz de tornar a internacionalização produtiva custosa demais frente aos seus respectivos

benefícios a ponto de inviabilizá-la. Ou seja, a percepção da maioria dos entrevistados indica

que, se a empresa deseja investir no exterior, ela irá fazê-lo, ainda que o regime brasileiro

implique um ônus tributário maior quando comparado ao regime de tributação em bases

universais adotado por outros países.

No entanto, todas as entrevistas realizadas com as empresas apontadas no tópico

anterior demonstram nitidamente que o regime brasileiro representa um ônus concorrencial

significativo no processo de conquista de mercados externos.

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235

Do ponto de vista econômico, o regime tem repercussões concorrenciais negativas às

empresas de capital nacional que investem diretamente no exterior, pois, na prática, ele

implica a exigência de que o investidor nacional arque com os 34% correspondentes à carga

tributária brasileira incidente sobre o lucro real apurado pelas pessoas jurídicas não importa

aonde elas venham a investir, primado da neutralidade na exportação de capitais. Neste

contexto, se elas investirem em um país de tributação inferior – que possui tributação

correspondente a, por exemplo, 25% – ela terá que pagar, ao final do ano em que apurado o

lucro no exterior, 34% correspondente à tributação brasileira incidente sobre o lucro real

apurado – 25% de IRPJ e 9% de CSLL – sendo admitida a compensação do imposto pago no

exterior (25%) até o limite do valor do imposto devido no Brasil, o que implicará, na prática,

que ela arque com a tributação devida no exterior (25%) com a adição da diferença relativa

aos 9% (34% - 25%) ao fisco brasileiro.

A partir do exemplo demonstrado acima, fica claro que só há ônus concorrencial

quando uma sociedade residente no Brasil investe em países que possuem carga tributária

incidente sobre a renda das pessoas jurídicas inferior à brasileira.

O problema central é que o mesmo ônus arcado pela subsidiária brasileira não é

suportado pelas suas concorrentes nos mercados externos. Por um lado, se as suas

concorrentes forem subsidiárias de empresas localizadas em outros países, elas poderão arcar

somente com a tributação do seu mercado local (25% no exemplo acima) caso o seu país

tribute em bases territoriais ou então poderão contar com o privilégio do diferimento da

tributação do país de origem até o momento em que os lucros forem disponibilizados para os

seus acionistas na hipótese de o país de origem adotar um regime de tributação em bases

universais com regra de diferimento. Neste último caso, ainda que a vantagem tributária

decorrente do diferimento da tributação no país de origem decorra, tão somente, do critério

temporal da sua hipótese de incidência, ela não deixa de ter elevada relevância do ponto de

vista das suas repercussões econômicas na dinâmica concorrencial. Por outro lado, se o

concorrente for uma empresa local, que só esteja obrigada a arcar com a tributação local

(25%), a vantagem tributária será ainda maior, pois, em momento algum, ele deverá arcar

com qualquer tributação adicional.

Como consequência, a tributação adicional arcada pela empresa brasileira poderá ser

refletida nos preços das suas mercadorias ou serviços no exterior, o que levará os seus clientes

a deixar de consumi-los da subsidiária brasileira e a passar a consumi-los das suas

concorrentes. É claro que outros elementos influem na decisão do consumidor, tais como o

Page 236: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

236

peso da marca e a qualidade do produto a ela associada. No entanto, conforme demonstrado

anteriormente, há elevados custos de se promover o nome de marcas novas em investimentos

do tipo greenfield que vão desde os recursos despendidos até o tempo necessário para a sua

promoção. Caso a tributação adicional não se reflita nos preços, será refletida na queda da

lucratividade do negócio e, com isso, poderá reduzir sensivelmente os reinvestimentos feitos

pela subsidiária, além de tornar o negócio menos atrativo e mais arriscado ao empresário

nacional. Veja-se, neste sentido, o trecho muito elucidativo da entrevista realizado com o

consultor tributária da Empresa 1 reproduzido abaixo:

Entrevistador: De toda forma, essa norma [regime brasileiro de tributação de lucros

auferidos no exterior] é concorrencialmente negativa?

Entrevistado: Ela acaba sendo negativa porque você imagina o seguinte: eu coloco

uma subsidiária em um país onde a tributação incidente sobre a renda empresarial é

25%, não paraíso fiscal, portanto, aí eu tributo esse resultado e quando no balanço de

31 de dezembro eu preciso pagar mais 9% para chegar à alíquota brasileira. Nenhum

concorrente da subsidiária brasileira paga essa majoração de 9%, eles só pagam os

25%. Então a questão é: vou refletir esse aumento de carga tributária na minha

formação de preço no exterior? Se sim, eu tenho uma desvantagem em termos de

competição. Se não, eu estarei deixando uma parte do meu resultado para o fisco

[reduzindo o meu lucro]. Então, realmente há perdas em termos de concorrência. No

entanto, eu acho que o caminho natural de partir para o mercado tem falado mais

alto, ou seja, se você tem capacidade para atender esse mercado sob pena de você ter

até algum tipo de ociosidade ou qualquer coisa assim. Então, eu acho que ninguém

deixou de fazer por conta disso, mas que os resultados talvez pudessem ser

melhores, isso eu imagino que sim.

O trecho transcrito acima demonstra, de forma muito clara, que o adicional de carga

tributária incidente sobre a renda devida no Brasil possui repercussões concorrenciais para as

subsidiárias brasileiras nos mercados externos na medida em que implica ou a majoração do

preço praticado ou a redução da lucratividade do negócio. Confira-se o trecho da entrevista

realizada com a Empresa 3 em que este ponto é reiterado:

Entrevistador: Correto. Agora, do ponto de vista econômico, do ponto de vista

concorrencial, essa norma possui um impacto sobre as suas controladas lá fora uma

vez constituídas?

Entrevistado 2: Sem dúvida porque a Empresa não compete de maneira igual com os

seus concorrentes locais. Os seus concorrentes locais arcam apenas com a tributação

daquele país e a maioria dos países atendem as regras da OCDE e só tributam no

momento da disponibilização. (...) Isso faz com que você compita de forma desigual

com as outras empresas instaladas naquele país. Eu acho que isso as empresas levam

em consideração – essa questão tributária - na hora de tomar a decisão estratégica.

Entrevistado 1: Eu acho que esse ponto apresentado pelo Entrevistado 1 é um ponto

muito forte pois você tem uma desvantagem concorrencial da sua empresa produtiva

no exterior. E, no final das contas, a carga tributária das empresas locais acaba sendo

menor do que da empresa brasileira recém-chegada. Então, eu já tenho a

desvantagem de ser entrante tendo que enfrentar as barreiras à entrada oferecidas

Page 237: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

237

naturalmente pelo mercado já consolidado, além disso, eu ainda tenho uma

desvantagem tributária, ou seja, a saúde que você exige da empresa brasileira e o

dinheiro que ela deve gerar a mais para ser considerada minimamente competitiva

no exterior é desproporcional de modo que você tem um desincentivo ao

crescimento externo da empresa brasileira.

A partir da análise do texto em destaque, confirma-se o fato já mencionado

anteriormente de que o ônus tributário vem a se somar com as demais dificuldades inerentes à

entrada de uma empresa estrangeira em um novo mercado, tais como barreiras à entrada,

custos na conquista da clientela local, promoção da marca, adequação regulatória, entre

outros. O principal efeito econômico negativo causado pelo regime tributário brasileiro, o

qual implica o recolhimento de imposto adicional no país de origem do investimento no final

ano em que forem auferidos resultados no exterior (31 de dezembro) – regime antidiferimento

por excelência –, é o desestímulo ao investimento ou ao reinvestimento dos resultados da

subsidiária para a sua expansão. Este efeito pôde ser identificado em diversas entrevistas. A

título de exemplo, abaixo se encontra reproduzida uma parte da entrevista realizada com a

Empresa 5:

Então, se o Brasil tributa – e tributa a alíquota de 34% no momento em que você

apura o resultado lá fora – há uma distorção muito grande, pois esse resultado que o

fisco alcança lá fora é utilizado para reinvestir em outras operações, para buscar

mercados, o que também implica custos para a Empresa. Se a gente não distribuiu, o

objetivo último disso não é deixar dinheiro lá fora infinitamente, não faz sentido isso

para a gente. O lucro só está lá fora porque existe a necessidade dele estar lá fora; é

reinvestir. Se eu tributo isso à 34%, eu vou perder mais de 1/3 do que eu poderia

estar reinvestindo e vou deixar de ser competitivo em relação às outras empresas que

não possuem o mesmo ônus tributário nos seus países de origem. Esse é um

problema gravíssimo para a gente.

Fica muito claro, também, que a razão pela qual a empresa de capital nacional não

repatria (disponibiliza jurídica ou economicamente aos seus sócios brasileiros) os seus lucros

tão logo eles sejam auferido e contabilizados é a necessidade de reinvesti-los em seu próprio

negócio buscando, assim, o fortalecimento da sua posição negocial nos mercados externos.

Seguindo a lógica demonstrada no trecho em destaque, tão logo sejam feitos os investimentos,

a empresa começará a gerar resultados que serão disponibilizados jurídica ou

economicamente aos seus sócios brasileiros. Este percurso compõe a lógica que orienta a

maior parte dos investimentos privados realizados no exterior. De acordo com as entrevistas

realizadas, conclui-se que os resultados de investimentos diretos realizados no exterior só são

Page 238: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

238

disponibilizados aos sócios brasileiros quando superada a fase de investimento e consolidação

do empreendimento no mercado externo.

Em relação aos investimentos realizados em países com menor carga tributária e

geralmente com condições precárias de infraestrutura, todas as empresas entrevistadas

chamaram atenção para o fato de que é uma prática comum os governos locais concederem

benefícios fiscais para empresas estrangeiras como forma de compensação pela pouca

infraestrutura oferecida. Ressalta-se que a concessão de benefícios fiscais, nestes casos, não

implica, necessariamente, a ocorrência de uma prática de concorrência fiscal danosa. A

questão deve ser tratada como uma concessão de ajuda de Estado e enquadrada no regime

jurídico correspondente, qual seja, a submissão da sua análise à Organização Mundial do

Comércio (OMC) que seria o órgão responsável pelo juízo da sua adequação ao Acordo

GATT. Este, no entanto, é um tema que foge aos propósitos do presente trabalho.

Em relação aos referidos benefícios fiscais – espécie do gênero ajuda de Estado –, o

problema enfrentado pelas empresas entrevistadas é que, não obstante os governos dos países

destinatários dos seus investimentos aceitem conceder benefícios para a atração de

investimentos como um todo relativos a um determinado setor-alvo, a sistemática do regime

brasileiro desconsidera tal fato e impede que a subsidiária da empresa de capital nacional

possa se aproveitar de tais benefícios. Isto porque o fisco brasileiro exige, na prática, que a

empresa residente no Brasil arque com a diferença entre a carga tributária devida no Brasil e a

carga tributária devida no exterior (compensável com o imposto devido no Brasil), pouco

importando se houve a concessão de uma ajuda de Estado para a atração de tais

investimentos.

A consequência oriunda da aplicação do regime brasileiro é que ele impede a

homologação automática de ajudas de Estado concedidas por outros governos. Em outras

palavras, o regime brasileiro assegura que, mesmo em situações em que há concessão de

ajudas de Estado no exterior, as subsidiárias de empresas de capital nacional continuem

arcando com a tributação devida no Brasil. Neste sentido, caso o outro Estado não exerça a

sua soberania fiscal de forma plena, o Brasil não apenas exerce a sua parcela de soberania

fiscal como também exerce a parcela de soberania recusada pelo outro Estado. Trata-se do

combate ao tax sparring. No Brasil, a regra é que toda a homologação de ajudas de Estado

concedidas no exterior é expressa e nunca automática. Este tema será explorado em maiores

detalhes no próximo subtópico.

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239

Em termos econômicos, a opção política de não homologar automaticamente as ajudas

de Estado concedidas por outros países gera uma forte distorção concorrencial às empresas de

capital nacional caso os governos dos países de origem das suas concorrentes: (i)

homologuem-nas automaticamente ou (ii) não homologuem mas aceitem o diferimento da

tributação para o momento em que ocorrer a efetiva disponibilização econômica ou jurídica

dos referidos lucros, ganhos de capital e rendimentos. Confira-se, por oportuno, o trecho da

entrevista com a Empresa 4 em que fica muito claro o efeito concorrencial decorrente da

opção política adotada pelo Brasil:

Empresas que exploram recursos naturais, como é o caso da nossa empresa, e que

vão explorar isso em países com péssima infraestrutura local, como os países da

África, porque é interessante haver essa exploração nesses países, negociam com os

governos locais incentivos fiscais para regiões e atividades específicas desses países,

justamente porque o governo de lá reconhece que ele não está provendo

infraestrutura alguma, mas que não podem ser aproveitados pela nossa empresa

justamente porque essa regra [regime de tributação em bases universais brasileiro]

não permite o seu aproveitamento. O Brasil tributa os lucros daquela base produtiva

pela diferença e desconsidera os incentivos fiscais concedidos. Aí você vai olhar o

seu competidor, ele é uma empresa sediada na Alemanha ou em qualquer outro país

que não adota a mesma regra de tributação que o Brasil adota. Qual é o ganho de

competitividade que ele tem? Ele consegue o mesmo benefício que foi dado à

empresa brasileira, mas, no final do ano, ele não precisa pagar o diferencial de

alíquotas ao governo do seu país – no caso do Brasil, é o diferencial entre 34% e a

alíquota do país do investimento – ele só arca com a tributação local. Ele ganha em

termos de competitividade, pois ele possui mais incentivos para crescer no país de

residência do seu investimento. Ele não será onerado pelo governo do seu país sede

assim como ocorre no caso da empresa brasileira.

Note-se que a questão mais gravosa não chega nem mesmo a ser a não homologação

de forma automática de ajudas de Estado concedidas por outras jurisdições fiscais, mas sim a

questão da permissão ao diferimento da tributação do país de origem dos investimentos

diretos feitos no exterior. A maior parte das empresas, em suas entrevistas, indicou esta

questão como uma das mais prejudiciais à sua competitividade.

O que permitiria afastar a pretensão brasileira de exercer a sua soberania fiscal sobre

lucros, ganhos de capital e rendimentos auferidos no exterior seriam os tratados celebrados

pelo Brasil para evitar a dupla tributação. De fato, o Brasil possui uma rede composta por 27

tratados celebrados com os principais parceiros comerciais brasileiros – com exceção dos

EUA – que vão desde países em desenvolvimento pouco industrializados, como Angola, até

países industrializados em desenvolvimento, como China e Coréia do Sul, e desenvolvidos,

como Áustria, Holanda e Espanha.

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240

No entanto, um fator que tem representado um entrave à realização de investimentos

no exterior pelo investidor brasileiro tem sido a insegurança jurídica quanto aos critérios de

aplicação das disposições dos tratados. Conforme analisado anteriormente, a jurisprudência

das cortes administrativas tem oscilado quanto à decisão de enquadramento do regime

brasileiro nos artigos 7º (lucros das empresas), 10 (dividendos) e 21 (outros rendimentos) da

convenção-modelo da OCDE, demonstrando ora que alguns dos tratados celebrados pelo

Brasil são incompatíveis com o regime de tributação em bases universais ora que são

compatíveis. A incerteza jurídica decorrente do fato de este tema não estar devidamente

pacificado na jurisprudência das cortes administrativas e judiciais gera insegurança ao

investidor brasileiro quanto a confiar na proteção que o tratado deveria lhe assegurar. Esta

insegurança é, por sua vez, vista como um custo de transação intrinsecamente relacionado à

decisão de se investir no exterior.

Aqui, há fundamentalmente dois problemas distintos. Um primeiro problema diz

respeito à indecisão sobre qual decisão virá a ser tomada em relação à compatibilidade do

regime brasileiro de tributação em bases universais com os artigos mencionados acima dos

tratados celebrados pelo Brasil. Esta indecisão das cortes brasileiras é vista pelo operador

privado como fonte de elevada insegurança jurídica. Neste sentido, a indefinição de um

critério claro já é um custo atual que é arcado pelo empresário brasileiro ao investir

diretamente no exterior. O outro problema ocorrerá caso se reconheça a compatibilidade do

regime brasileiro com os tratados, pois, neste caso, reconhecer-se-á que os tratados não

impedem a sua aplicação e, com isso, todos os efeitos concorrencialmente negativos que estão

sendo apontados neste subtópico persistirão ainda que se invista em países com os quais o

Brasil celebrou convenção. A insegurança em que se encontra o setor privado e os custos

associados a ela podem ser claramente observados a partir da leitura do trecho abaixo extraído

da entrevista realizada com a Empresa 2:

São vários pontos que dificultam a empresa a ir para fora. (...) Você tem um bom

tratado. Tem argumentos favoráveis para defender a aplicação desse tratado. Mas a

autuação é quase certa. Nós temos uma controlada na França, que tem lucro e a

gente tributa esse lucro anualmente no Brasil. Pela aplicação do tratado, a gente não

deveria tributar esse lucro porque o tratado fala que a tributação somente poderia

ocorrer quando da distribuição de dividendos. Mas se a gente não tributar a RFB vai

autuar. Após a autuação, através do contencioso administrativo nós teríamos

argumentos para nos defendermos mas, além do gasto, teríamos que arcar com o

risco de derrota administrativa e, posteriormente, na ação judicial.

(...)

Muitas das nossas concorrentes no exterior podem dispor de tratados melhores do

que os que o Brasil possui. A postura da administração tributária onde se localiza as

suas matrizes é muito melhor do que a postura da RFB. Quando se faz uma

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241

ponderação nesta ceara fica mais difícil competir com as nossas concorrentes.

Agora, quando essas empresas estabelecem as suas subsidiárias no Brasil, acabam

passando por uma situação semelhante.

De acordo com a parte final do trecho transcrito acima, nota-se que a incerteza quanto

aos critérios aplicáveis ao regime brasileiro de tributação em bases universais se reflete,

inclusive, na postura na Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) que é o órgão

responsável pela fiscalização dos contribuintes nacionais. Veja-se outro trecho entrevista

realizada com a Empresa 5 em que esta questão da insegurança jurídica gerada pela

indefinição das regras aplicáveis fica clara:

(...) Há grande insegurança jurídica porque você não sabe qual é a regra que vale, se

o tratado vale, em que situações ele vale, se pode consolidar os resultados ou não

pode, em que momento que você vai tributar a distribuição de dividendos ainda que

tenha tratado, as diferenças de interpretação.

Após a realização das entrevistas, não houve consenso das empresas quanto ao fato de

o Brasil possuir ou não uma rede satisfatória de tratados, ou seja, uma rede grande o suficiente

a ponto de ampará-las nas principais jurisdições fiscais onde possuem investimentos diretos

de maior monta. Prevaleceu, no entanto, o consenso de que ter uma rede ampla de tratados

não possui efeito prático algum sobre o setor privado caso não haja segurança jurídica quanto

à sua aplicação com a definição prévia dos critérios que orientam os investimentos brasileiros

feitos diretamente no exterior. O trecho da entrevista com a Empresa 6 é emblemático neste

sentido:

Entrevistador: E o senhor acha que o Brasil possui hoje uma rede de tratados que é

satisfatória para as transações realizadas?

Entrevistado: Do jeito que o Brasil trata os seus tratados, pouco importa.

Outro ponto da legislação brasileira que também merece especial atenção, devido aos

seus potenciais efeitos negativos à concorrência, é a vedação que consta do artigo 25, §5º da

Lei nº 9.249/95 segundo o qual os prejuízos incorridos no exterior não podem ser

compensados com os lucros apurados no Brasil, tão somente com os lucros apurados no país

de residência da filial, sucursal, coligada ou controlada.

A questão dos prejuízos enseja uma desvantagem concorrencial muito relevante uma

vez que leva à majoração do valor do imposto devido no Brasil ao considerar que a base de

cálculo da tributação brasileira incidente sobre a renda da pessoa jurídica – lucro real – é

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242

maior do que ela deveria ser caso os prejuízos incorridos em determinadas jurisdições

pudessem ser livremente compensados com os resultados positivos apurados tanto no exterior

quanto no Brasil. Há, neste sentido, tributação de “resultados fictícios”.

Nas entrevistas, foram relatados casos em que o contribuinte brasileiro possui

investimentos localizados em diversos pontos do globo sendo alguns deles deficitários e

outros lucrativos. Na lógica da consolidação dos resultados apurados pela empresa em bases

universais não haveria nenhum tributo a pagar. Porém, na lógica do regime brasileiro – que

não é de consolidação de resultados – pode ser apurado tributo mesmo em uma situação em

que o resultado global consolidado dos investimentos brasileiros no exterior seja negativo. A

preocupação que orientou o formulador de políticas públicas a adotar esta regra foi evitar que

prejuízos fossem artificialmente criados em paraísos fiscais. No entanto, seria plenamente

possível que se permitisse a compensação de prejuízos incorridos em países de tributação

regular no exterior e se mantivesse a vedação quanto aos prejuízos oriundos de investimentos

em paraísos fiscais. Quanto à questão dos prejuízos, leia-se o trecho da entrevista realizada

com a Empresa 5 em destaque abaixo:

Umas das deficiências da norma é que o prejuízo apurado no exterior não pode ser

compensado com o resultado positivo auferido no Brasil. Se além dessa deficiência,

eu não puder compensar o prejuízo de uma empresa lá fora com os prejuízos de

outra também no exterior, haverá uma dupla deficiência. O ideal é que o Brasil

tribute efetivamente os resultados [líquidos] das operações. Só que o Brasil possui

uma série de inconsistências no sentido de que ela busca tributar resultados fictícios,

ou seja, não são resultados efetivamente auferidos pela empresa. Há resultado

fictício na medida em que o resultado de todo o grupo econômico não

necessariamente é positivo uma vez que ao se deslocar o resultado de um país para

outro cria-se renda, por um lado, mas também se criam despesas, por outro, que ao

nível de todo o grupo econômico se compensariam, mas o Brasil submete os

resultados positivos à tributação. Quando o Brasil segrega todos esses resultados e

fala que não compensará o prejuízo com os resultados positivos [ao nível de todo o

grupo econômico] o Brasil acaba tributando uma coisa que, de fato, não existe. Essa

é uma outra ineficiência que você não vê em outros países. Em outros países há o

participation exemption, segundo o qual, se o país da controladora tributar os

resultados lá fora, eles não serão tributados no país da subsidiária. Esses países não

permitem que se traga o prejuízo apurado no exterior porque se você não tributa o

resultado você também não pode trazer o prejuízo. Mas os países que não têm

participation exemption permitem que você traga o prejuízo do exterior. O Brasil

não permite trazer nada. Então, além de o Brasil não permitir a compensação, ele

também acaba tributando resultado positivo fictício.

É interessante notar que o trecho acima coloca em evidência não apenas a questão da

tributação dos “resultados fictícios”, mas também o fato de que os países que não concedem a

participation exemption – isenção dos resultados apurados por controladas e coligadas de

empresas residentes implicando, na prática, a adoção do método da isenção ou territorialidade

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243

– têm a tendência de aceitar a compensação de lucros e prejuízos incorridos no exterior ou em

seus respectivos territórios. Esta tendência, aliada ao fato de que a legislação brasileira não

permite a consolidação de todos os lucros e prejuízos apurados em bases globais, é um dos

fatores que levam empresas nacionais a estruturar sociedades holdings em países que admitem

a participation exemption e que são geralmente de baixa tributação.

De fato, as peculiaridades do regime de tributação em bases universais adotado pelo

Brasil levam empresas a criar sociedades holdings em países que admitem a participation

exemption por três motivos centrais.

O primeiro deles é diferir a tributação brasileira para o momento em que houver a

efetiva disponibilização econômica ou jurídica dos lucros, ganhos de capital e rendimentos

auferidos no exterior evitando-se a aplicação do regime brasileiro. Isso é possível através da

escolha de um país com o qual o Brasil tenha celebrado tratado destinado a evitar a dupla

tributação, não obstante haja toda a incerteza dos órgãos julgadores, conforme descrito

anteriormente, quanto à compatibilidade do regime brasileiro com as disposições dos tratados

celebrados pelo Brasil. Há, neste sentido, uma forte crença das empresas entrevistadas de que

as cortes se posicionarão no sentir de reconhecer a sua incompatibilidade. A escolha do país,

além de levar em consideração as disposições dos tratados que, em tese, impediriam a

tributação dos lucros no Brasil de fonte produtora localizada no outro Estado, também está

orientada a reduzir, senão evitar por completo, a retenção de Imposto sobre a Renda Retido na

Fonte (IRRF) no ato da distribuição dos dividendos pelo Estado onde se localiza a fonte

produtora.

O segundo motivo que leva à criação de sociedades holdings no exterior é a

consolidação de resultados, ou seja, compensar prejuízos incorridos em operações realizadas

em alguns países, nos quais a empresa possua investimentos diretos, com lucros apurados em

outros países.

O terceiro motivo é facilitar as transações realizadas dentro do grupo econômico,

operações denominadas intercompany tais como empréstimos contratados pela sociedade

holding na posição de mutuante (credora) a outras sociedades que compõem o grupo na

posição de mutuarias (devedoras).

Esta estruturação societária, segundo o relato de algumas empresas, visa tornar mais

eficientes as transações e operações realizadas dentro do grupo econômico, sendo esta uma

prática usual adotada pelo setor privado internacionalmente. Neste contexto, surge o problema

jurídico, que possui repercussões econômicas, do tratamento jurídico dado pelo Governo

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244

brasileiro às controladas e coligadas indiretas, ou seja, as pessoas jurídicas nas quais a pessoa

jurídica residente no Brasil possui investimentos relevantes (acima de 10% de participação

societária) através de uma pessoa jurídica interposta – geralmente uma sociedade holding – na

qual ela detenha, diretamente, o controle societário.

O problema do tratamento jurídico conferido às controladas indiretas consiste no fato

de que o governo brasileiro vem manifestando o entendimento de que só há direito de

compensação do imposto pago no exterior com o imposto devido no Brasil quando o imposto

devido no exterior tiver sido pago pela controlada ou coligada diretas. Ou seja, a interposição

de uma sociedade holding no exterior leva à perda do direito de compensação do imposto

pago pelas sociedades nas quais ela detém participação societária com o imposto devido no

Brasil. Aos olhos do governo brasileiro, no exemplo demonstrado acima, só haveria direito de

compensação do imposto pago pela sociedade holding no seu país de residência. No entanto,

conforme demonstrado anteriormente, como as empresas geralmente constituem holdings em

países de baixa tributação ou que admitam o participation exemption, o imposto compensado

no Brasil acaba sendo muito baixo senão nulo. Neste sentido, o governo brasileiro não

reconhece o direito de creditamento do imposto pago pelas controladas e coligadas indiretas

da empresa residente no Brasil. Vale ressaltar que esta postura não se encontra pacificada no

entendimento da jurisprudência administrativa e judicial.

Para além das suas repercussões jurídicas, este posicionamento implica repercussões

econômicas que também se refletem na competitividade das empresas de capital nacional em

mercados externos. Para ajudar na visualização de tais efeitos, imagine-se que uma empresa

residente no Brasil constituiu uma sociedade holding na Holanda e que, esta sociedade, detém

a participação societária de uma empresa no Japão (com tributação de 50% sobre a renda das

pessoas jurídicas), outra na Argentina (25%) e outra nos EUA (35%). Imagine-se que todos os

resultados positivos dessas empresas sejam consolidados na holding holandesa ao final de

cada ano-calendário. De acordo o posicionamento adotado pelo governo brasileiro, a

sociedade residente no Brasil somente poderá compensar o montante do imposto pago na

Holanda ao apurar o imposto brasileiro devido sobre os lucros auferidos pela sociedade

holandesa. Neste caso, se a Holanda adotar o participation exemption, a sociedade brasileira

deverá arcar com a integralidade dos 34% correspondentes à tributação brasileira juntamente

com o valor da tributação arcada no Japão, Argentina e EUA. No exemplo analisado, a carga

tributária efetiva arcada pela empresa brasileira foi, ao final, de 67%, 50,5% e 57,1%

respectivamente.

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245

Considerando que este tipo de estruturação societária é uma prática comum por

empresas residentes em diversos países, conclui-se que o posicionamento do governo

brasileiro possui um grande impacto econômico que pode ser refletido na competitividade das

empresas brasileiras caso os demais governos reconheçam o direito de crédito do imposto

pago por controladas e coligadas indiretas.

Percepções do Fisco

Em relação às entrevistas feitas junto ao fisco, cabe ressaltar que foram entrevistadas

com autoridades fiscais que pertenceram ou pertencem ainda ao médio e alto escalão da RFB.

As autoridades de médio escalão ocupavam a posição de delegados da RFB. As autoridades

de alto escalão entrevistadas foram o ex-secretário da Receita Federal do Brasil, Everardo

Maciel, e o ex-subsecretário da Receita Federal do Brasil, Marcos Vinícius Neder.

De forma geral, as opiniões apresentadas pelos entrevistados divergem sensivelmente.

Os funcionários pertencentes ao médio escalão se posicionaram de forma extremamente

favoráveis ao regime e ressaltaram, a todo tempo, as suas vantagens para a Fazenda Nacional.

Os ex-funcionários de elevado escalão na RFB divergiram em diversos pontos tratados

relativos às vantagens do regime brasileiro, mas, de modo geral, assumiram uma postura mais

crítica em relação a ele, de modo a tratar não apenas das suas vantagens como também das

suas falhas e ineficiências.

Neste subtópico, serão apresentados, primeiramente, os posicionamentos dos

entrevistados pertencentes ao médio escalão da RFB, ressaltando as vantagens do regime e,

posteriormente, serão apresentados os relatos dos entrevistados que pertenceram a postos do

alto escalão da RFB com um viés mais crítico.

Em relação aos entrevistados de médio escalão é importante ressaltar, primeiramente,

que, aos olhos dos entrevistados, o regime brasileiro estabelece o primado da neutralidade na

exportação de capitais. Neste sentido, do ponto de vista dos entrevistados, o regime de

tributação em bases universais adotado pelo Brasil teria surgido como uma reação

governamental ao fenômeno mais amplo da globalização – causa central da transformação do

Estado-nação no Estado-transcional – como estratégia de defesa contra a perda de base

imponível dos Estados. Um dos problemas identificados nas entrevistas que se deseja evitar é

a dupla não tributação internacional da renda que ocorre fundamentalmente quando dois

Estado deixam de exercer o seu poder de tributar uma determinada materialidade. Este

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problema foi oportunamente apontado pelas Autoridades Fiscais 2 e 3 no trecho em destaque

abaixo:

Autoridade Fiscal 2: Elas [as normas brasileiras de tributação em bases universais]

são necessárias pois, diante da globalização, o dinheiro pode ser alocado em

qualquer lugar e os lucros auferidos em qualquer lugar também, sendo necessário

que esses lucros sejam tributados. Elas são necessárias e elas estão na maioria dos

países. Nós temos normas similares de normas de tributação de bases universais

utilizadas internacionalmente.

Autoridade Fiscal 3: Isso porque o Brasil não está mais em uma economia fechada e

autárquica. Ele está, hoje, em uma economia aberta onde o investidor brasileiro pode

aplicar como residente ou como não residente, é possível investir em qualquer lugar

do mundo, tendo liberdade na movimentação de capital e isso se reflete no fisco. A

tributação em bases mundiais é anterior ao artigo 74 não é?! Ela vem sendo aplicada

desde 1996 [desde a publicação da lei 9.249/95]. O artigo 74 surgiu como uma

norma antidiferimento para completar essa legislação em bases mundiais da pessoa

jurídica. (...) E antigamente o Brasil não podia investir no exterior, era uma

economia fechada. Eram poucas as hipóteses em que um brasileiro podia investir no

exterior. O investimento estrangeiro aqui era muito escasso, eram apenas as grandes

empresas. Hoje o cenário é muito aberto tanto para a entrada de capitais quanto para

a saída de capitais. O fisco deve se adaptar a esta nova realidade senão teremos um

problema gravíssimo.

Entrevistador: E quais são as vantagens, em geral, dessa norma para a Fazenda

Nacional?

Autoridade Fiscal 3: Ela visa a neutralidade na exportação de capitais. É um

elemento necessário à garantia da efetividade da tributação em bases mundiais sem o

qual haveria uma renúncia fiscal fortíssima em uma economia onde as pessoas

podem investir lá fora através de controladas e coligadas.

Autoridade Fiscal 2: E muitas vezes o fisco não tributa nem um lugar nem o outro.

Este é o pior dos mundos para ambos os fiscos envolvidos. Este é um dos riscos. É o

risco da não tributação.

A questão da dupla não tributação fica muito clara no último parágrafo do trecho

destacado acima. O maior mérito do regime brasileiro, aos olhos dos entrevistados, é a sua

lógica de funcionamento que se reflete no seu elevado potencial arrecadatório e na maior

facilidade de fiscalização e controle do contribuinte brasileiro (pessoa jurídica controladora ou

coligada). Do ponto de vista dos entrevistados, o regime é simples, prático e menos custoso

em termos de fiscalização quando comparado ao regime de tributação em bases universais

com regra de antidiferimento adotado por outros países. Veja-se, abaixo, a percepção da

Autoridade Fiscal 1 sobre a lógica do regime brasileiro:

Eu acho que a vantagem é a lógica [da equivalência patrimonial]. (...) Eu acho que a

vantagem que tem é a lógica. Eu acho que quando o assunto chegar lá no STF e a

lógica for explorada através de um procurador bem orientado eu creio que a gente

[Fisco] tem grandes chances de emplacar que essa lógica, apoiada no direito, vingue.

Eu particularmente acredito nisso. Eu acho que não existe técnica melhor do que a

da equivalência patrimonial justamente porque esta técnica está aliada ao

comportamento da nossa sociedade, se não fosse assim, o dinheiro ficaria

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eternamente retido lá fora e isso já se confirmou no passado. Foi por isso que

mudou.

Note-se que, no trecho acima, fica muito clara a percepção do entrevistado de que sob

a égide de uma norma que permita o diferimento da tributação nacional sobre os lucros

auferidos no exterior, o contribuinte brasileiro busca postergar o momento da sua

disponibilização jurídica ou econômica para evitar a incidência tributária no Brasil. Trata-se

de uma postura com a qual as empresas entrevistadas não concordam já que a finalidade de se

manter lucros no exterior é, segundo os seus relatos, reinvestir no negócio de modo que tais

lucros são repatriados somente quando superada a fase de investimentos.

Quando questionados sobre o porquê de o regime brasileiro diferir da prática

internacional, a postura deste grupo de entrevistados foi no sentido de defender que o regime

adotado pelos outros países é facilmente contornável pelo contribuinte e é muito mais difícil

de ser fiscalizado. Quanto à facilidade de controle e fiscalização do contribuinte propiciada

pelo regime brasileiro, confira-se o trecho abaixo da entrevista feita com as Autoridades

Fiscais 2 e 3:

Autoridade fiscal 3: Agora, a nossa norma possui caráter geral, o que torna a questão

muito interessante. Mas agora tem uma coisa, a norma é aplicada sem nunca sair do

âmbito do meu residente. Através do artigo 74 [da MP 2.158-35/2001], em nenhum

momento se está tributando uma pessoa jurídica residente no exterior; tributa-se em

bases mundiais a pessoa jurídica brasileira.

(...)

Autoridade fiscal 3: Como o Brasil começou especificamente aplicando-a aos sócios

“pessoa jurídica”, foi possível essa opção pela competência e que gerou uma norma

muito melhor do que as outras. A gente comparou a norma brasileira com a norma

Argentina e nós chegamos à conclusão de que ela é um fracasso. É desanimadora.

Qualquer criança é capaz de contorná-la. É muito fácil falar que renda passiva é

renda ativa.

Autoridade fiscal 2: Até você classificar tudo aquilo e depois conferir se tudo aquilo

está mesmo certo...

Autoridade fiscal 3: Muitas vezes eles abrem um banco offshore e aí a renda passiva

de uma empresa residente no exterior, na forma de juros, acaba “virando” renda

ativa do banco.

O primeiro parágrafo do relato transcrito acima deixa muito claro que o ponto de vista

dos entrevistados situa-se na primeira linha doutrinária analisada no capítulo 5 no sentido de

que o Brasil não adotou a teoria da transparência fiscal internacional. Ademais, note-se que a

Autoridade Fiscal 3 demonstrou a clara percepção de que o regime adotado

internacionalmente – inclusive pela Argentina – é facilmente contornável devido à facilidade

de se camuflar rendimento passivo na forma de rendimento ativo de modo que o regime

Page 248: ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO …

248

brasileiro teria o mérito de evitar este tipo de fraude à lei já que ele abrange todos os tipos de

rendimentos, pouco importando a sua natureza e origem.

No tocante à questão do aproveitamento das ajudas de Estado, os entrevistados se

posicionaram no sentido de defender que o Brasil não deve homologar automaticamente as

ajudas concedidas por outros países. A decisão de homologar deve ser vista como uma

decisão de natureza política e, portanto, deve ser analisada casuisticamente pelo Governo

Federal.

Quando questionados quanto à possibilidade de o regime brasileiro de tributação em

bases universais gerar efeitos econômicos danosos ao processo de internacionalização

produtiva e à competitividade das empresas de capital nacional no exterior, as autoridades

fiscais ora tratadas negaram, em um primeiro momento, que o regime brasileiro gerasse

qualquer efeito negativo. No entanto, no decorrer das entrevistas, momento em que o tema foi

analisado em maior profundidade, a Autoridade Fiscal 3 reconheceu que o regime pode gerar

efeitos econômicos negativos. O trecho transcrito elucida este ponto:

Autoridade Fiscal 3: Essa é a dúvida: será que ela atrapalha ou é vantajosa? Do

ponto de vista da tributação em bases universais [arrecadação tributária] e da

neutralidade na exportação de capitais, ela é maravilhosa. Agora, tem o outro lado,

do ponto de vista da neutralidade na importação de capitais, pode-se alegar que a

norma prejudica o empresário. Bom, pois é, isso é outra consideração.

Entrevistador: A gente tem ouvido de muitas empresas que as normas atuais de

tributação em bases universais brasileiras que essas normas são prejudiciais para a

empresa que quer abrir a sua filial ou subsidiária no exterior fato que seria, segundo

as empresas, bom para a expansão da sua atividade produtiva e para o aumento do

seu faturamento em um contexto normal de fortalecimento da empresa nacional.

Autoridade Fiscal 3: É o “Custo Brasil”. É a taxa do nosso condomínio. Imposto,

para mim, é igual a condomínio, se outros têm condomínios mais baratos, sorte

deles. Eu acho que isso não vai, necessariamente, levar a empresa à falência ou

reduzir a sua capacidade.

Apesar de, ao final, a Autoridade Fiscal 3 ter se posicionado no sentido de que o

regime brasileiro não seria capaz de “levar a empresa à falência ou reduzir a sua capacidade”,

fica muito claro através da interpretação sistemática de todo o conteúdo da entrevista,

principalmente da fala transcrita acima, que a Autoridade Fiscal tratada reconheceu que o

regime pode possuir impactos econômicos significativos. É interessante observar o descaso do

entrevistado com os referidos efeitos ao se referir a eles como componentes do “Custo Brasil”

e ao supor que o investidor privado brasileiro teria tido o “azar” de pertencer a um país onde o

seu “condomínio” é mais caro do que dos demais países. Trata-se de uma visão lamentável

que enfoca somente os interesses fiscais na medida em que deixa de ponderá-los com outros

interesses igualmente válidos.

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249

Em relação à temática dos efeitos econômicos provocados pelo regime, Marco Aurélio

Greco, em entrevista concedida, demonstrou visão favorável à tese de que o regime não afeta,

em princípio, nem o processo de internacionalização produtiva nem a competitividade das

empresas brasileiras nos mercados externos. Ele respalda o seu argumento no fato de que a

tributação recai sobre o acréscimo que houve no patrimônio da pessoa jurídica brasileira ao

serem reconhecidos os lucros auferidos no exterior por sociedades controladas e coligadas.

Neste sentido, conforme demonstrado no capítulo precedente, o referido autor não entende

que a tributação recai sobre os lucros auferidos no exterior. Esta perspectiva afastaria, em

princípio, a tese de que o regime poderia repercutir negativamente na pessoa jurídica residente

no exterior. A única hipótese em que o regime jurídico brasileiro poderia afetar a

competitividade das empresas de capital nacional no exterior seria se houvesse um plano de

investimentos da controladora ou coligada nas suas controladas ou coligadas residentes no

exterior.

Por “plano de investimentos”, entende-se como sendo o emprego de capital da

controladora ou coligada na sua controlada ou coligada residente no exterior (e.g. através de

aporte de capital na sociedade controlada ou coligada ou através de empréstimos) para

financiar a expansão das suas atividades no exterior ou, simplesmente, para lhe prover maior

fluxo de caixa. O plano pode ser periódico ou não. O importante é que ele envolva o

investimento de capital na sociedade controlada ou coligada no exterior após a sua

constituição. O plano de investimento ficaria caracterizado se, após constituída, a sociedade

residente no exterior não tivesse condições de autofinanciar a sua expansão com o seu próprio

lucro. Veja-se, em maiores detalhes, o posicionamento de Marco Aurélio Greco acerca do

tema:

O que eu digo – e que eu acho que isso é nítido – é que o sistema brasileiro não

interfere na vida da subsidiária, ele não prejudica a subsidiária em nada, ao

contrário, a subsidiária gerou renda para o seu país e ela tem essa renda disponível

lá. E na medida em que ela tenha essa renda disponível lá, se ela precisar fazer

novos investimentos, ela vai fazer. A tributação no Brasil é absolutamente

irrelevante para a subsidiária. Portanto, para a competição no local é irrelevante. Vai

me dizer: mas o regime brasileiro, na medida em que ele obriga a brasileira a fazer

um desembolso, isso pode afetar a brasileira? Sim, em tese pode – se de fato afeta é

um exame empírico - mas em relação a novos investimentos, mas não aos

investimentos feitos na subsidiária. Quando os investimentos são feitos, o regime

brasileiro é irrelevante. Se a subsidiária tem prejuízo, o regime brasileiro é

irrelevante. Se a subsidiária tem lucro e, pela legislação de lá, neutraliza e compensa

o seu prejuízo e, portanto, está no zero, o regime brasileiro é irrelevante. Se a

subsidiária tem lucro e precisa manter esse lucro lá para manter a sua atividade, o

regime brasileiro é irrelevante porque os lucros já estão lá e o dinheiro está nas mãos

da subsidiária e ela pode crescer. Portanto, o regime brasileiro é irrelevante. O

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250

regime brasileiro só passa a ser relevante se a subsidiária precisa de mais

investimento do que ela consegue com o lucro gerado e ai a brasileira, por força do

regime brasileiro, não tem condições de suprir. Mesmo se a brasileira tiver

condições de suprir, mesmo com o regime brasileiro, aí ele não interfere. Se houver

possibilidade de crescimento com novos investimentos da subsidiária ou com outros

investimentos de outras subsidiárias em outros países, o regime não prejudica. “Mas

diminui o meu caixa!”. Muito bem, então aí você precisa de uma pesquisa empírica

dentro de cada empresa para verificar qual é o impacto. Então vamos desmistificar

este ponto. O regime brasileiro não interfere com a competição da subsidiária no seu

país. Só interferirá se, de alguma forma, ele dificultar que, em havendo necessidade

de novos investimentos a empresa brasileira se veja impedida ou dificultada de

fornecer para a subsidiária mais recursos além daqueles que ele já gerou.

(...)

Não é só o plano, o problema é de disponibilidade efetiva de caixa. Eu teria que a

brasileira não tem caixa para remeter à sua controlada porque a empresa está

comprometida com outras coisas, com outros investimentos no Brasil, com o

pagamento de tributos no Brasil e, portanto, não sobraria dinheiro para aumentar o

investimento no exterior. Este é que é o ponto.

A visão apresentada pelo referido professor de direito, apesar de plausível, não se

sustenta pois desconsidera o fato de que, muitas vezes, as empresas são obrigadas a repatriar

renda do exterior para poderem adimplir com a tributação incidente no Brasil sobre os lucros

auferidos no exterior fato que reduz a sua capacidade de reinvestimento, ensejando perda de

capacidade competitiva.

A perspectiva adotada por Marco Aurélio Greco parte de uma separação formal da

personalidade jurídica da sociedade controladora ou coligada e da sociedade controlada ou

coligada residente no exterior que leva ao equívoco de se inferir que as duas sociedades são

entidades econômicas autônomas. Adotar essa perspectiva é plausível para uma análise de

repercussões jurídicas (e.g. definição de responsabilidade civil). No entanto, adotá-la para

definir as repercussões econômicas consiste, na opinião deste autor, em um erro já que

desconsidera o fato de que um grupo societário deve ser visto como um único grupo

econômico. A compreensão mais adequada da dinâmica do sistema financeiro empresarial

deve sempre se respaldar na visão do todo, ao invés da visão segmentada das personalidades

jurídicas que o compõe.

Em relação aos entrevistados que pertenceram a cargos de elevado escalão do Poder

Executivo no que concerne à arrecadação tributária, a sua visão, apesar de divergentes em

diversos pontos, é mais crítica quanto ao regime jurídico vigente atualmente.

A entrevista realizada com Everardo Maciel revela, conforme se demonstrou no

capítulo 3, que o regime assumiu forma abrangente pois a sua criação havia precedido uma

discussão sobre elisão fiscal internacional considerada essencial para que o regime possuísse

contornos antielisivos de modo a combater somente o planejamento fiscal internacional

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251

considerado abusivo, ou seja, aqueles que envolvessem a criação de estruturas societárias em

paraísos fiscais e em regimes fiscais privilegiados. Em um primeiro momento da entrevista, o

ex-secretário da Receita Federal do Brasil, que foi o autor da proposta encaminhada à

Presidência da República do regime de tributação em bases universais, negou que o regime

poderia afetar a internacionalização produtiva ou a competitividade das empresas de capital

nacional que operam em mercados externos. No entanto, ao final da entrevista, ele reconheceu

que o regime “pode eventualmente ter” efeitos concorrenciais negativos e defende que o

regime deve ser revisto diante de um debate mais maduro sobre o tema da elisão fiscal

internacional. Leia-se o trecho da entrevista a qual é feita referência:

Entrevistador: Então, apenas para finalizar, o Senhor não acredita que hoje a norma

possua qualquer tipo de efeito sobre a internacionalização das empresas nacionais e

a sua competitividade nos mercados internacionais?

Entrevistado: Não, pode eventualmente ter. Pode e deve ser revista. Mas ser revista

também em um contexto em que se revise a nova conformação da elisão fiscal. O

propósito, como você falou aqui é antielisivo, faz sentido. Tem todo sentido o que

você está falando. Só que nós estávamos discutindo esta norma no tempo em que a

palavra elisão sequer constava no vocabulário. Eu escrevia no Word e ele censurava!

Então era neste contexto.

O ex-subsecretário da Receita Federal do Brasil, Marcos Vinícius Neder, assume uma

postura bem mais crítica frente ao regime de tributação em bases universais adotado pelo

Brasil. Segundo ele, o regime brasileiro, por possuir uma regra antidiferimento aplicável de

forma geral a qualquer tipo de rendimentos auferido em qualquer jurisdição fiscal, prejudica

concorrencialmente as subsidiárias das empresas de capital nacional na conquista de novos

mercados. Veja-se o trecho da entrevista realizada em que ele expõe de forma clara e objetiva

o seu posicionamento:

A minha avaliação é que, atualmente, essa legislação está prejudicando as empresas

nacionais. Ela obriga a tributar imediatamente na apuração do balanço enquanto que,

muitas vezes, não há planejamento de repatriação desses recursos. Eles seriam

utilizados para investimentos enquanto que, em geral, a distribuição de dividendos é

muito posterior, levando as empresas a se descapitalizarem e muitas vezes, na

concorrência internacional, os países onde se realizam as operações conseguem

incentivos fiscais às empresas para determinadas atividades. No sistema que tem

hoje, a tributação automática ao final de ano acaba capturando as isenções e

tributando-as no Brasil, diminuindo a competitividade das empresas nacionais.

Então, eu entendo que essa nossa legislação deve ser aperfeiçoada agora para que

nós reformulemos elas, podendo até mesmo adaptá-las ao modelo internacional que

quase todo mundo usa.

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Fica claro, na exposição dos resultados das entrevistas realizadas com funcionários e

ex-funcionários da RFB, que não há um consenso entre eles quanto às vantagens e

desvantagens do regime de tributação em bases universais adotado pelo ordenamento jurídico

brasileiro. De modo geral, os funcionários de escalão médio entrevistados tenderam a

defender as vantagens decorrentes do regime, em especial, a sua eficiência arrecadatória e os

seus relativos baixos custos de fiscalização e controle talvez até por uma postura mais

corporativista. Por outro lado, os funcionários de maior escalão entrevistados assumiram uma

postura muito mais crítica quanto o regime.

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ANEXO A

TABELAS E GRÁFICOS

(INTERNACIONALIZAÇÃO PRODUTIVA NO BRASIL)

Tabela 1

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Tabela 1 (Conclusão)

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Gráfico 1

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Tabela 2

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Gráfico 2274

274

FONTE (todos os gráficos deste Anexo A): HIRATUKA, Célio e SARTI, Fernando. Investimento direto e

internacionalização de empresas brasileiras no período recente. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

(IPEA). Brasília, 2011.