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GRAFISMO NA COMUNIDADE KAIOWÁ DE ITAY KA’AGUYRUSU
GILCACIA GÜNDEL SALDANHA1
Introdução
No estudo das Artes Visuais na sociedade não indígena brasileira, o tema é ignorado
ou relegado a segundo plano. Nos salões, bienais e outros eventos de promoção e difusão da
arte no Brasil, privilegiam-se os grandes artistas europeus ou os nacionais mais famosos.
Através da obra de alguns destes, como o quadro Abaporú de Tarsila de Amaral, chega-se a
algumas intuições os conceitos indígenas propostos pelo modernismo brasileiro, que
relativizou a influência eurocêntrica na arte. A falta de profissionais capazes de ensinar arte
indígena nas escolas depõe da insuficiência de se ater à expressão que autores famosos deram
para arte indígena, o objetivo é aprender e compreender a arte indígena como tal, como
proposta pelos próprios indígenas. Perde-se com isso a riqueza dessas manifestações; omissão
dessa arte, assim como de outras expressões artísticas não europeizadas.
Considerando que a arte em geral é condutora de ideias e ideologias, para os
antropólogos Rodrigo Luiz Simas de Aguiar e Levi Marques Pereira:
Os produtos artísticos expressam fortes conteúdos ideológicos, verdadeiros
discursos simbólicos materializados. [...] O suficiente entendimento da arte requer a
compreensão das relações estabelecidas entre as pessoas. É necessário investigar
como e por que produziram tais objetos ou ações, quais intenções comunicavam, em
quais contextos (festivos, rituais, religiosos, etc.) se efetivavam. (AGUIAR;
PEREIRA, 2015, p.711)
Portanto é necessário considerar a arte indígena também com esses critérios, pois ela
abrange uma gama de expressões que vão desde os elementos estéticos evidentes às bases
cosmológicas do grupo étnico, que é compartilhado pelo artista indígena e pela sua
comunidade, com certa continuidade no tempo, pois, essa arte provém de gerações anteriores
e será passada para gerações futuras. A arte, nesse sentido, é também uma forma de manter e
fortalecer determinados aspectos da identidade de cada povo, mesmo ocorrendo dispersão
territorial.
1 Acadêmica do Curso História Bacharelado da Universidade Federal da Grande Dourados- UFGD; orientada
pela Professora Dra. Cândida Graciela Chamorro- Faculdade de Ciências Humanas da UFGD; pesquisa
financiada pelo CNPQ.
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Devemos considerar ainda, como enfatiza a etnóloga Berta Ribeiro, uma autoridade
em cultura material dos povos indígenas do Brasil, as singularidades das etnias que não usam
a escrita formal, que tem a arte como uma das formas de expressão de suas culturas assim, a
arte desempenha varias funções dentro de uma cultura, demonstrando várias percepções e
peculiaridades, para uma maior concepção devem buscar uma observação mais rigorosa,
contemplando todo o contexto em que foi criada. Nas palavras de Berta Ribeiro (1999, p.16)
“(...) cabe estudar a arte tribal ou arte étnica, como elemento de cultura, cujos procedimentos
e iconicidades identificam dita cultura não apenas por sua concepção formal, mas também
pelo código de seus significados simbólicos”. Deste modo, a arte reflete e integra os
diferentes conteúdos da cultura, que vão desde a organização social, cosmologia, religião,
mitologia entre outros, que é incutido no estilo artístico.
Portanto, a arte é um dos componentes fundamentais da identidade indígena: “no
contexto tribal, mais que qualquer outro, a arte funciona como um meio de comunicação,
disso emana a força, a autenticidade e o valor da estética tribal” (VIDAL, 1992, p. 17). Essa
arte está presente também nos grafismos estampados nas peças artesanais e nas pinturas feitas
sobre vários suportes, inclusive sobre camisetas, “roupas típicas”, estandartes e o próprio
corpo. Esses padrões gráficos valorizam o tempo dos ancestrais e das tradições fundadas por
eles, transmitindo simbologias próprias de cada povo indígena.
GRAFISMO INDÍGENA
Grafismo indígena, segundo Lux Vidal (1992, p. 14) é uma linguagem visual através
da qual as diferentes sociedades índias expressam suas percepções de mundo e estabelecem
conceitos, que são transmitidos aos membros contemporâneos e a seus descendentes. Dessa
forma, os povos indígenas demarcam as suas características e grafam suas especificidades
éticas, sociais, culturais e religiosas, confeccionando seus artefatos e adereços e pintando seus
corpos.
Por conseguinte, podemos ressaltar que o grafismo é fruto de um processo intelectual
elaborado, revelando um senso construtivo e estético bem desenvolvido, não sendo somente
meros desenhos espontâneos e triviais, esse elaborado sistema de representação desempenha
importante função em cada comunidade indígena.
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Portanto o uso dos sinais no cotidiano da comunidade se caracteriza por uma
convenção já estabelecida. Se não fosse desse modo, seria apenas um mero desenho abstrato,
incompreensível e trivial. Entretanto é possível com um pouco de prática, reconhecer a qual
etnia pertence algum objeto a partir da decoração do mesmo e dos seus grafismos.
GRAFISMO KAIOWÁ
Escrever, desenhar, pintar em língua Kaiowá é mbokuatia, mbopara, significando
‘fazer (impregnar) em papel’, ‘fazer (colorir) desenho’. O termo aproximado a fazer grafismo
em Kaiowá, mborysy, se forma de modo semelhante, com o verbo mbo-, fazer, e o nome
(r)ysy, fileira, conjunto, repetição. Outro termo próximo é mba’e rasa, ‘expressão gráfica da
coisa’, sendo que ‘coisa’, mba’e, se substitui pelo nome do animal ou objeto para especificar
o grafismo. Assim, ao invés de mba’e rasa, terei mbói kuatia rasa, para dizer que se trata da
expressão gráfica correspondente à cobrambói kuatia.
Embora os Kaiowá tenham passado para a Etnologia Brasileira como um povo que
não tem (quase) nada para ser visto e muito para ser ouvido (SCHADEN, 1974), como outros
povos indígenas, eles também pintam seus corpos, decoram suas peças artesanais, pintam
faixas e camisetas, fazem placas, fazem adornos corporais usando uma sequência de motivos
peculiares. Por puro prazer de se decorar, para comunicar estado de ânimo individual ou
grupal, esses padrões gráficos certamente querem dizer mais do que à primeira vista
conseguimos perceber. Eles indicam aspectos do que o grupo entende ser o indivíduo, o
grupo, as relações com outros grupos humanos, com os outros seres naturais e sobrenaturais e
com o meio ambiente. Nesse sentido, este trabalho quer ser um pequeno aporte para futuros
estudos dessa arte entre os Kaiowá.
A etnóloga Berta Ribeiro cita em sua obra a Arte Indígena: Linguagem Visual, que
Egon Schaden colheu desenhos entre os Kaiowá, na década de 1940. Para ele, esses desenhos
ilustravam as preocupações mítico-religiosas desse povo e o estado psicológico em que se
encontrava ao ver sua terra ser dividida e entregue a agricultores beneficiados pela reforma
agrária do governo de Getúlio Vargas em plena terra indígena. O exemplo de Schaden foi
usado por Ribeiro para atestar que era impossível compreender as produções artísticas
indígenas sem um conhecimento razoável dos caracteres dominantes da sua configuração
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cultural (RIBEIRO, 1989, p. 67). Entendemos que aqui não se trata só do conhecimento da
cultura do grupo, mas também da compreensão das circunstâncias históricas vividas pela
comunidade.
Da mesma forma, entendemos que para nos aproximarmos do significado do grafismo
kaiowá, precisamos exercitar uma atenção concreta e outra abstrata; com os olhos de alguém
que observa algo físico, um desenho sobre pano, madeira, corpo humano; com os olhos de
quem atenta para além desse desenho e escuta com interesse o que os Kaiowá têm a dizer a
respeito dessas linhas, desses pontos, dessas cruzes, desses losangos, etc. Precisamos nos abrir
para o sinal e o símbolo; o objetivo e o subjetivo; o exterior e o interior; o sensorial e o
intelectual ou espiritual. Exercitar a percepção do outro por diversas vias é muito importante
para que a nossa percepção da arte indígena não seja tão fragmentada. Nesse sentido, cabe
reconhecer, desde já, que os grafismos kaiowá contidos nos desenhos, pinturas e peças
artesanais do grupo tem relação com as concepções antropológicas, cosmológicas e teológicas
dos grafistas e seu povo.
Nesse sentido, grafismos kaiowá são matrizes de expressão visuais repetidas
sistematicamente, como uma fórmula de desenho, de uma pré-escrita, estampada sobre o
corpo humano e sobre a superfície de diversos artefatos da cultura material (CHAMORRO,
comunicação pessoal, setembro 2015).
A partir dessas considerações, neste trabalho registramos os padrões gráficos kaiowá
conhecidos na comunidade de Itay Ka’aguyrusu, seus respectivos nomes na língua indígena
com tradução ao português e suas respectivas explicações, como pode ser acompanhado no
quadro a seguir. Registramos ainda os desenhos impressos nos artefatos produzidos pelo
grupo, contribuindo assim para sua compreensão, desenvolvimento e possível revitalização.
PADRÕES DE GRAFISMO KAIOWÁ
Nosso principal interlocutor e sua comunidade.
Joel Hirto nasceu em 1958, na aldeia Panambi Ka a’aguy rusu, chamada Lagoa Rica
pelos colonos, no município de Douradina. Filho de Nona Mereciana, ainda viva, e Alcides
Hirto, já falecido. Ele se considera “índio kaiowá legítimo”, parte da família Aquino, pela
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linha materna. Passou pelo ritual do kunumi pepy, iniciação dos meninos à vida adulta. Com
10 anos começou a frequentar a Escola da FUNAI, do posto indígena local. Quando esta ficou
sem professor, com cerca de 15 anos, ele passou para a escola da Indianner Pionner Mission,
mais conhecida como Missão Evangélica Unida ou “Missão Alemã”, onde começou a estudar
em Kaiowá e Português, com o missionário e médico alemão “Martin Black”, que
permaneceu na missão de 1969 a 1979. Já adulto, com aproximadamente 37 anos, o senhor
Joel frequentou o MOBRAL-Movimento Brasileiro de Alfabetização, na escola da FUNAI.
Ele conta que também aprendeu fora da escola. Os motivos gráficos kaiowá, por exemplo, ele
aprendeu de seu avô materno, Horácio Aquino Geraldo, e de outros parentes mais velhos. Na
sua avaliação, para aprender bem uma coisa, a pessoa precisa ter desejo. Considera-se
portador de um grande desejo de aprender, de conhecer as coisas. Seu exemplo: aprendeu bem
os desenhos kaiowá porque desejava aprendê-los.
Durante os anos de sua juventude, ele se ausentava temporariamente da comunidade,
por 4 meses, meio ano ou mais. Nesse tempo trabalhava em fazendas, ele aprendeu a dirigir
trator e a fazer nivelação de solo. Aprendeu a tocar violão e sanfona com um paraguaio. Mas
o vínculo com a comunidade permaneceu. Quando decidiu se afamilhar, ele começou a ficar
mais na aldeia. Casou-se aos 22 anos, com Teresinha Aquino, de 18 anos, com quem tem duas
filhas Ifigeninha e Yvinei.
Trabalhou na missão por 8 anos, fazendo cerca de aroeira, roça, capina, horta, serviços
gerais com renumeração. Ao cabo de oito anos, ele deixou de trabalhar na missão e passou a
cuidar mais de sua roça.
Além de estudar na escola da missão e ser “boia fria”2 dos missionários, o senhor Joel
também frequentou os cultos e a escola bíblica da missão, quando já tinha mais de 40 anos.
Ali ele aprendeu a melhorar sua leitura, a cantar hinos em guarani e a ler a bíblia em kaiowá.
Aprendeu a tocar sanfona com a missionária chamada carinhosamente “Jari Cristina”. Depois
de dois anos, ele parou de participar das atividades religiosas.
2 Ele ri e explica: “Não ganhava comida não, o pagamento não era livre”.
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Na época, muitos Kaiowá já frequentavam a igreja “Deus é Amor”, em Douradina, e
Joel uniu-se a eles e “aceitou Jesus”. Logo a igreja teve um local na aldeia. Joel permaneceu
nesta igreja por oito anos, sendo batizado no sétimo ano. Em 2011, saíram da igreja ele e
todas as pessoas ligadas a ele, porque era muito pesada a doutrina, porque a cultura indígena
era considerada coisa do demônio, que devia ser destruída. Ele entende que num
acampamento de luta pela terra kaiowá isso não tem sentido. Desde então, ele busca
fortalecer-se na sua própria cultura. Nesse pensamento integrou-se ao grupo Ñemongo’i,
coordenado pela sua fila Ifigeninha, para cantar e cultivar as práticas musicais e religiosas de
seu povo.
Com os missionários da Missão Alemã ele manteve amizade. Assim, quando esses
decidiram deixar o Panambi, ele ficou de caseiro. Certo Pastor Antônio João de Dourados
chegou em 2012 a lhe dizer que estava projetada construção de um grande centro de saúde e
recuperação no local. Joel liderou um movimento e pediu a interferência do Ministério
Público Federal sobre a questão. Por via das dúvidas, ele se mudou com sua família na sede
da antiga missão alemã. Chamaram o então presidente da missão, senhor Bernardo, que
retirou todos os pertences da missão. Houve pedido de reintegração de pose, mas o juiz deu
ganho de causa para os indígenas, pois a terra se encontra dentro da área demarcada em 1968
pela FUNAI. É nesse local que aconteceram as oficinas e as conversas sobre grafismo.
No que diz respeito à nossa pesquisa, Joel Hilton foi fundamental. Ele participou das
oficinas realizadas no acampamento e no Laboratório de Ensino e Pesquisa de História
Indígena, sempre propondo novos motivos, explicando-os e motivando os jovens e as crianças
a usarem estes desenhos como seus distintivos.
A comunidade de Itay Ka’aguyrusu de aproximadamente 100 pessoas vive acampada
há 7 anos e já sofreu vários ataques dos atuais proprietários das terras. Algumas famílias estão
na sede da antiga missão; outras estão sobre uma pequena área na Terra Indígena Panambi, já
identificada, mas ainda não demarcada.
Alguns padrões de grafismo identificados durante as oficinas:
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NOME EM KAIOWÁ
(Tradução literal ao
português)
CORES E MATERIAIS
TRADICIONAIS E ATUAIS
REPRESENTAÇÃO GRÁFICA
1- TAKUÁRY
(Taquara): representa a
uma fileira de takuapu.
Representa também o
yvyra’i (bastão-insígnia)
varas fixadas ao solo e
em fileira na festa do
milho.
Pode ser usada em qualquer cor.
SEU USO: no jeguaka, no guyrapa,
penacho, bordado na saia, pochito,
chiripa.
Material: Cipó guaimbê, plástico
preto, linha, pintura.
2- HYSY REÍVA
(O que está
simplesmente em
fileira). Representam
um conjunto de takuapu
encostados.
As linhas paralelas inclinadas são
pintadas de preferência em
vermelho ou preto a base de
urucum ou jenipapo. Na cestaria,
todos os traços são trançados com
cipó Guaimbê e na falta dele em
lona preta.
3- HYSY KARÊA
(O que está quebrado e
em fileira).
Representam o andar da
cobra; o zig-zag da
água; o caminho estreito
ou tape’i pe’i.
Os traços são pintados de
preferência em vermelho ou preto a
base de urucum e jenipapo. Na
cestaria, todos os traços são
trançados em cipó guaimbê e na
falta dele em lona preta. Na
tecelagem, s bordado em linha
preta.
4- HYSY KARÊA
RESA
(Olho ou enfeite dos
paus quebrados
enfileirados).
Representa caminhos
estreitos, curso d’água e
andar da cobra
enfeitado com a cruz.
Os traços inteiros são pintados de
preferência em preto à base
jenipapo; os traços quebrados em
vermelho a base de urucum; os
olhos – as cruzes – em preto. Na
cestaria, todos os traços são
trançados em cipó guaimbê e na
falta dele em lona preta. A cor
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vermelha em palha tingida com
urucum.
5- URU RESA – (Olho
de Uru) ave galiforme,
“galo do mato” no
português.
A base é o hysy karêa, com mais
linhas, acrescido do sinal de adição
+.Os traços inteiros são pintados
em tinta preta à base de jenipapo;
os traços quebrados em e vermelho:
Traços quebrados Materiais: cipó
guaimbê e Taquarina (espécie de
taquara bem fina), Urucum,
Jenipapo e Cera de Abelha (eiraity).
Na falta destes materiais: Lona
Preta, Capim colonião, Bisnaga
Xadrez e Cola industrializada.
6- MBÓI CHINI
RASA
(Representa o desenho
sobre a pele da cobra
cascavel).
A base é o hysy karêa. Os espaços
entre as linhas vão preenchidos
com pintinhas vermelhas alternadas
com pintinhas pretas.
7- KURUNDUA
Representa a parte
detrás do jeguaka,
enfeite da cabeça, e a
veste da cruz, o
Kurundaju.
É um conjunto de losangos
concêntricos, sendo preenchido de
tinta preta o menor. Um lado da
série dos losangos é enfeitado com
uma linha de hysy karêa. É um
desenho bastante usado pelos
Kaiowá.
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8- MBÓI KWATIA
(Espécie de cobra
Urutu). Representa o
desenho da pele da
cobra Mbói Kwatia ou
Urutu. Não tem cruz
Formado por quatro fileiras de
losangos pequenos que se estendem
ao longo de quatro tamõi, nome
dado à linha ou fibra horizontal,
que orienta a tecelagem ou a
pintura dos losangos. Supostamente
é mais difícil e fazer porque tem
que se saber manejar os quatro
tamõi. Usa-se no jeguaka, no
guyrapa (arco), no “penacho”,
como bordado em saias, nos
pochitos e chiripa. Material:
Guaimbê, plástico preto, linha,
tintas.
9- MBÓI KWATIA
RUSU (Grandes
desenhos da cobra
Urutu Cruzeiro).
Representa os motivos
da pele da cobra Urutu
Cruzeiro.
Os losangos inteiros são pintados
de preto claros (tinta a base de
jenipapo diluído com água de
cinza); os semilosangos externos
são pintados em cor morada (roxa,
lilás) a base de urucum e jenipapo;
as linhas entre losangos e
semilosangos são marcadas em
marrom a base de terra roxa, água e
cola. Usa-se na cesta, peneira
grande, yrupê kuatia
10- MBOI JUSU
RASA (Desenho da
cobra grande, da jiboia).
Formado por losangos inteiros
pintados de preto (tinta à base de
jenipapo) e por semilosangos
externos pintados em vermelho (à
base de urucum).
Muito utilizado sobre o corpo.
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11- MBÓI RETE
RESAUPA
A expressão se deixa
traduzir por (‘base dos
olhos do corpo da
cobra’).
Representa os desenhos
sobre a pele da cobra.
A base é como no kurundua uma
série de losangos, em cujas
intercepções entram semilosangos.
No centro de cada losango está uma
circunferência. Os xis formados
pelos losangos são pintados de
preto; os círculos, em vermelho ou
roxo. Este motivo se aplica sobre o
arco, o cesto, o enfeite da cabeça,
sobre peneiras e pulseiras.
12- MBÓI KU’A
PIRÃ
(Cobra de cintura
vermelha). Cobra coral.
Representa os motivos
da pele desta cobra
Formado por listras transversais,
que representam as listras da cobra
coral. Geralmente predomina a cor
vermelha.
13- GUAJA PIRE
RASA – (Desenho da
pele da lagartixa).
Representa o desenho
da pele da lagartixa
Na pintura, os X e os círculos são
pintados de preto (tinta a base de
jenipapo); na cestaria, eles são
feitos de cipó guaimbé. Os
tracinhos exteriores aos losangos
são pintados de vermelho (a base de
urucum) ou tecidos em fibras
avermelhadas ou taquarinhas.
14- YRYVU ATI’Y-
(Ombro de urubu).
Representa o ombro dos
urubus no momento
prontos para pegar a
presa.
Antigamente eram pintados em
tinta preta a base de jenipapo; hoje
pintam também em lilás escuro ou
roxo. Na cestaria utilizavam o cipó
guaimbé. Este motivo era tecido
sobre o arco, sobre o enfeite da
cabeça e as faixas para cintura.
Pode usar no rosto.
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15- MBOHAPY
YRYVU ATI’Y RESA
– (Olho dos ombros de
três urubus).
Os urubus antigamente eram
pintados em tinta preta à base de
jenipapo; hoje pintam também em
lilás escuro ou roxo. Os losangos
inteiros exteriores e as cruzes são
pintados em tinta preta à base de
jenipapo. Os losangos inteiros
internos e os traços exteriores
pintam em vermelho a base de
urucum. Na cestaria utilizavam o
cipó guaimbê para a cor preta e a
tacuarinha avermelhada para o
vermelho.
16- YRYVU
RESAUPA
(Ninho dos olhos de
urubus)
Os urubus antigamente eram
pintados em tinta preta à base de
jenipapo; hoje pintam também em
lilás escuro ou roxo. As metades
superiores dos losangos são
pintadas em vermelho; as metades
inferiores em amarelo. Os traços
exteriores são pintados em preto a
base de jenipapo. As cruzes em
preto, nas metades vermelham do
losango, e em vermelho, nas
metades amarelas.
17- SAPÉNY
RUGWÁI
(Rabo do tesourão ou
gavião)
Pinta-se numa única cor: preta, que
contrasta com a cor da base.
Observe-se a composição com os
losangos.
18- MBATOVI
RUGWÁI
(Rabo da tesourinha)
Pinta-se numa única cor: preta, que
contrasta com a cor da base.
Observe-se a composição com os
losangos.
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Autoria dos Desenhos: A partir dos desenhos recolhidos na comunidade Itay Ka’aguyrusu, Kayo
Henrique Brites Fernandes elaborou os mesmos no computador em colaboração com a autora.
Os suportes onde são aplicados os desenhos dos grafismos são bem diversificados são
sobrepostos em adereços, objetos de rituais religiosos e de celebrações, no armamento, nos
corpos, no vestuário, etc. Para o povo Kaiowá a utilização de seus adornos vai muito além da
concepção do não indígena, para eles fundamental para o seu aprimoramento e sua edificação.
Enfeite, adorno ou paramento (jegua) não é um acessório, algo supérfluo ou
complementar, como à primeira vista pode parecer; mas algo essencial, o coração
dos seres. Por isso o enfeitar-se é indispensável no processo de aperfeiçoamento e de
identificação com as divindades. (CHAMORRO, 2008, p.164)
19- JEGUA’I RYSY
IPUKÚVA IPINÎVA Conjunto de enfeites
próprios para aplicar
sobre o rosto mediante
um carimbo. A base do
carimbo é retangular,
por isso se chama
ipukúva
Este ipinîva ( carimbo) forma um
xadrezinho ou quadriculado.
Pinta-se na cor vermelha que
contrasta com a cor da base sobre a
qual se aplica o carimbo.
20-JEGUA’I RYSY
IJAJERÊVA
(Fileira de pequenos
enfeites)
Pinta-se na cor vermelha que
contrasta com a cor da base sobre a
qual se aplica o carimbo. Essa base
foi curiosamente pintada aqui na
cor verde.
Carimbo para enfeite facial das
mulheres, usado nas festividades.
21- JEGUA’I RYSY
IJAJERÉVA URU
RESA
Carimbo facial com
base redonda
Formado com base a losangos e
hysy karêa, que compõem o uru
resa. Conjunto de enfeites próprios
para aplicar sobre o rosto mediante
um carimbo, cuja base é redonda,
por isso se chama ijajeréva
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Averiguamos que atualmente novos objetos estão sendo incorporados como suportes
(canetas, camisetas, bolsas, entre outros) principalmente para a comercialização e também
como meio de divulgação de sua cultura, afirmando assim a sua identidade étnica perante os
demais povos indígenas e aos “brancos” (como definem o não indígena).
Na cosmologia Kaiowá, o humano é parte da natureza, não há espaço nesta concepção
para a superioridade do homem em relação à fauna e à flora. A qualidade de vida só é possível
com o equilíbrio entre os seres. Os grafismos estão relacionados intimamente com a visão de
mundo dessa etnia, correspondendo aos seus mitos, ritos, rezas, cantos e celebrações. Os
motivos representados fazem parte da memória coletiva desse povo, de sua cultura.
Essa natureza sagrada inclui uma grande quantidade de animais e plantas de origem
divina, que são objeto de especial consideração. A taxionomia mítica tem como
principal valor o de proporcionar uma “razão de ser no mundo” para os animais e as
plantas (CHAMORRO, 2008, p.167).
Como podemos constatar através do quadro de padrão de grafismo, os relacionados
com os animais são a maioria, demostrando assim, a grande reverência que os Kaiowá têm
por esses seres, como podemos verificar por uma modalidade de canto, o guahu, que muitas
vezes é realizado em benefícios dos animais, como nos relata Chamorro:
Entre os Kaiová, um tipo de canto chamado guahu ai é exemplo da profunda
reverência que os animais recebem dos indígenas. Nesses cantos, o mais importante
não é o que se canta, mas o cantar em si. Outro significado de guahu também é
“pranto”, e o canto é uma espécie de lamento ritual, um tipo de funeral pelos
animais, sua encomendação. Esses cantos são entoados geralmente antes de sair para
a caça, seja para “enamorar/atrair” o animal para a armadilha, seja para tornar
impróspera à intenção de outro caçador (CHAMORRO, 2008, p.166).
A referência nos grafismos ao reino vegetal está relacionada com o sagrado, com seus
ritos religiosos e celebrações, pois existem para essa comunidade muitas plantas que são
consideradas sagradas como o cedro, a taquara, os porongos, entre outras, com as quais
constroem apetrechos rituais e símbolos de poder. Como podemos conferir, a aplicação dos
grafismos está associada como um modo de reverenciar aquilo que está sendo transmitido
pelos seus desenhos, que remetem a sua lembrança e assim, repassando valores de fundo
religioso e mítico para a comunidade.
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A seguir alguns dados discursivos que vinculam os grafismos ao conhecimento e
cosmologia kaiowá.
a- Sapény ruguái ou syviruguái - Motiva as pessoas a relatarem sobre o pássaro evocado
nessa imagem e contam que ele vem em bandos desde o Paraná todos os anos, Paranágui ou,
e falam dele como pássaro que bebe sorve as espumas desse rio, Parana ryjúi’uha há’e.
b-Kurundua - É o cabelo do jeguaka, do enfeite da cabeça, é o enfeite desse enfeite.
O kurundua é por sua vez enfeitado, os enfeiteis são suas flores, kurundua poty.
Mas Kurundua é também um Ser, ele é “o nome original para Jakaira”, Dono-Protetor do
milho. Nas rezas, compreendidas como uma peregrinação ascendente, os pontos de chegada e
parada são denominados Kurundua.
c-Takuary - Em outra estrofe do canto evoca-se o padrão gráfico denominado takuary,
que representa o yvyra’i os bastões que marcam determinados momentos da reza de chegada
no primeiro dia da festa do milho.
d-Mbói Kuatia Rusu - Mbói, cobra, é a origem, ypy, de tudo. Do corpo da cobra [o
interlocutor desenha os losangos do grafismo correspondente] tudo pode ser feito, sai
tudo, osê opa mba’e. Ele faz referência aos demais grafismos à base de losangos e também
explica que os bichos são ex-humanos, que eles eram sabiam, okuaa teî, com os avós, guamõi
ndie. Mbói Kuatia vivia na água, de onde saiu para se mostrar aos outros. Eles saíram
enrolado, ijajere, redondo, como um yrupê.
Para os Kaiowá, estes padrões preexistem. Foram recebidas pelas pessoas mais velhas e
sabias e delas cada geração foi aprendendo, pela prática. Neste sentido, os Kaiowá são
diferentes de seus irmãos Mbyá que distinguem os padrões aprendidos daqueles que são
sonhados. Estes são mais prestigiosos que aqueles. A pessoa só é “dona” daquilo que ela
sonhou, que lhe foi concedido em sonhos.
Ocorreram grandes modificações nas matérias primas utilizadas anteriormente e na
atualidade, isso devido à falta de muitos materiais que eram coletados na natureza, que havia
em abundância para as confecções dos artefatos e hoje não se encontra mais. Sendo os
principais fatores para essa escassez, a redução dos espaços habitados pelas comunidades e o
grande desmatamento provocado pelas lavouras de monocultura e para pecuária em seu
entorno.
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É cada vez maior a utilização de materiais sintéticos pelos os indígenas, devido à maior
facilidade de obtenção e a variedade de cores disponíveis. Por exemplo, os jeguaka, cocar ou
enfeite da cabeça, que vem sendo confeccionado com linhas manufaturadas de várias cores,
onde os grafismos também são bordados com esse material. Mas, também percebemos que
existe uma preocupação em obter outros tipos de sementes coloridas para confecção de seus
artefatos, sempre que surge a oportunidade, principalmente quando entram em contato com
outras comunidades indígenas de fora do estado. Trazem essas “novidades” sempre com o
intuito de plantarem para a utilização dessa matéria prima.
Deve-se registrar, porém, que no que diz respeito a certos adornos, existe hoje uma
diferença no modo de fazer, dependendo da destinação que lhes será dada. É comum
encontrar o que são destinados ao comércio, ao lado de outros, que são realmente utilizados
nos rituais.
Enfatizando que muitas alterações em relação à cultura material dos Kaiowá ocorreram,
mas eles sempre buscam manter as características e técnicas de elaboração e uso, com os
ensinamentos deixados por seus ancestrais, tentando o máximo possível preservar a memória
cultural da sua etnia, uma das maneiras encontradas de contribuir com o fortalecimento de sua
identidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR, Rodrigo Luiz Simas de; PEREIRA, Levi Marques. A Universalidade da Arte e a
Pesquisa da Produção Artística entre Os Povos Indígenas em Mato Grosso do Sul. In
CHAMORRO, C.G.; CAMBÉS, I. Povos indígenas no Mato Grosso do Sul: História,
Cultura e Transformações Sociais. Dourados, MS: Ed UFGD, 2015.
CHAMORRO, Graciela. Terra Madura, Yvy Araguyre: Fundamento da Palavra
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GLOSSÁRIO GUARANI-PORTUGUÊS - Segundo (CHAMORRO, 2008).
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Ajaka: Balaio, cesta.
Mba’e marãngatu: Coisa santa. Pequeno e rústico altar feito de taquara ou cedro; encontra-se no
meio do pátio ou dentro da casa ritual Kaiová, situada na frente da porta voltada para o leste.
Chiripa: Saiote de algodão cru. Veste ritual dos homens.
Jeguaka: Diadema ritual feita de pena ou de pano de algodão. Era usado somente pelos homens, mas
atualmente é usado por crianças, jovens, adultos de ambos os sexos.
Kurundaju: Adorno semelhante ao pochito. É a veste ritual da cruz.
Pochito: Do espanhol “ponchito”. Poncho de algodão cru. Veste ritual dos homens.
Takua, takuapu: Bastão feito de taquara, mais grosso que o yvyra’i, É usado exclusivamente pelas
mulheres enquanto cantam e dançam nas cerimônias.
Urupê, yrupê: peneira.
Yvyra’i: Vara ou bastão de até um metro de cumprimento portado pelos homens nos rituais. Símbolo
de poder terreno. O mesmo que o popygua (o que se carrega na mão).