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Kepler e a órbita elíptica Geraldo Ávila Instituto de Matemática — UNICAMP Caixa Postal 6065 13 081 — Campinas, SP Introdução O presente artigo é uma seqüência natural ao que publicamos na RPM 13, sobre os cálculos dos períodos siderais dos planetas e de suas distâncias ao Sol. Vamos mostrar como Kepler descobriu que as órbitas dos planetas não são perfeitamente círculos, mas sim elipses. Como o leitor verá, essa descoberta está fundamentada em fatos geométricos elementares, sendo, pois, mais um episódio interessante de aplicação da Geometria à Astronomia. Preliminares Como explicamos em nosso artigo anterior, Copérnico calculou as distâncias dos planetas ao Sol no pressuposto de que eles se deslocassem com velocidades constantes em órbitas circulares centradas no Sol. Os dados de observação, entretanto, eram insuficientes p ara comprovar isso, de forma que o próprio Copérnico teve de fazer modificações em sua teoria, uma das quais consistia em supor o Sol um pouco deslocado dos centros das órbitas. Mas nem isto foi suficiente e ele teve de ir mais longe, recorrendo mesmo ao principal artifício usado por Ptolomeu e outros astrônomos da antiguidade — o epiciclo. O epiciclo é um círculo de raio r, centrado na circunferência de outro círculo de raio R maior do que r, este último chamado o círculo deferente (Fig. 1). Eudoxo (séc. IV a.C), Hiparco ( * 150 a.C), Ptolomeu ( ± 105 d.C.) e outros astrônomos da antiguidade valeram-se desse arranjo "deferente-epiciclo" para explicar o movimento errático dos planetas no meio das estrelas fixas, "incrustadas" na abóboda celeste. Assim, supondo o planeta em movimento uniforme no epiciclo, e o centro deste em movimento uniforme em volta da Terra, um ajuste conveniente das velocidades e dos raios r e R p ermitia exp licar os movimentos direto e retrógrado dos planetas (Fig. 2), como se observam nos céus desde a mais alta antiguidade. História e Histórias RPM 15 - História e histórias... file:///media/cdrom0/15/2.htm 1 of 12 06/01/2010 01:10 PM

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Kepler e a órbita elípticaGeraldo Ávila

Instituto de Matemática — UNICAMPCaixa Postal 606513 081 — Campinas, SP Introdução

O presente artigo é uma seqüência natural ao que publicamos na RPM 13, sobre oscálculos dos períodos siderais dos planetas e de suas distâncias ao Sol. Vamos mostrarcomo Kepler descobriu que as órbitas dos planetas não são perfeitamente círculos, massim elipses. Como o leitor verá, essa descoberta está fundamentada em fatos geométricoselementares, sendo, pois, mais um episódio interessante de aplicação da Geometria àAstronomia.

Preliminares

Como explicamos em nosso artigo anterior, Copérnico calculou as distâncias dos planetasao Sol no pressuposto de que eles se deslocassem com velocidades constantes em órbitascirculares centradas no Sol. Os dados de observação, entretanto, eram insuficientes paracomprovar isso, de forma que o próprio Copérnico teve de fazer modificações em suateoria, uma das quais consistia em supor o Sol um pouco deslocado dos centros dasórbitas. Mas nem isto foi suficiente e ele teve de ir mais longe, recorrendo mesmo aoprincipal artifício usado por Ptolomeu e outros astrônomos da antiguidade — o epiciclo.

O epiciclo é um círculo de raio r, centrado na circunferência de outro círculo de raio Rmaior do que r, este último chamado o círculo deferente (Fig. 1). Eudoxo (séc. IV a.C),Hiparco ( * 150 a.C), Ptolomeu ( ± 105 d.C.) e outros astrônomos da antiguidadevaleram-se desse arranjo "deferente-epiciclo" para explicar o movimento errático dosplanetas no meio das estrelas fixas, "incrustadas" na abóboda celeste. Assim, supondo oplaneta em movimento uniforme no epiciclo, e o centro deste em movimento uniforme emvolta da Terra, um ajuste conveniente das velocidades e dos raios r e R permitia explicaros movimentos direto e retrógrado dos planetas (Fig. 2), como se observam nos céusdesde a mais alta antiguidade.

História e Histórias

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Na tentativa de ajustar sua teoria aos dados de observação, Copérnico acabou incluindo 48epiciclos em seu sistema. Era demais! Descaracterizava a idéia simplificadora de umsistema heliocêntrico e representava um forte ponto de identificação com o antigo sistemade Ptolomeu, que se pretendia suplantar. E do ponto de vista de fazer previsões dosmovimentos dos planetas e construir tabelas de utilidade prática, o sistema de Copérniconão apresentava vantagens maiores do que o antigo e arraigado sistema geocêntrico dePtolomeu. Isso explica por que ele não vingou de imediato. Depois de sua publicação em1543, decorreriam cerca de 100 anos para que viesse a ser definitivamente aceito nacomunidade científica.

É importante lembrar também que os dados de observação e as tabelas astronômicasexistentes no tempo de Copérnico deixavam muito a desejar do ponto de vista da

precisão. O próprio Copérnico fez bem poucas observações durante toda sua vida1, e asque fez não tinham o grau de precisão das que se fizeram na antiguidade. Ele utilizava econfiava nos dados fornecidos pelos tratados antigos, sobretudo o Almagesto dePtolomeu. Essa insuficiência de dados precisos era uma das dificuldades maiores para sedecidir qual dos dois modelos planetários correspondia à realidade. E quem compreendeubem o problema e empenhou toda uma vida para superar essas dificuldades foi odinamarquês Tycho Brahe, de quem falaremos a seguir.

Tycho Brahe

De linhagem nobre, Tycho Brahe (1546-1601) tornou-se um apaixonado da Astronomiaaos 14 anos de idade, quando observou um eclipse do Sol. Ao que parece, o que mais oimpressionou nesse episódio não foi tanto o fenômeno em si, mas sua previsibilidade. Apossibilidade de prever o curso dos astros a partir de certas hipóteses, dados deobservação e cálculos matemáticos, exerceu tamanho fascínio sobre o jovem Tycho que, apartir de então e por toda sua vida, ele iria dedicar-se integralmente à Astronomia.

Um segundo acontecimento marcante na vida do jovem astrônomo ocorreu na noite de 17de agosto de 1563, quando ele contava 17 anos de idade. Observando os céus, ele notouque os planetas Júpiter e Saturno estavam praticamente coincidentes. Consultando,porém, as tabelas em uso na época, tanto as chamadas "tabelas Alfonsinas" quanto as deCopérnico, verificou, para sua decepção, que elas continham imprecisões grosseiras sobreesse evento. E a causa disto eram as observações imprecisas em que se baseavam. Esta foi

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a grande descoberta que fez o nobre dinamarquês: a Astronomia estava carente de dadosde observação que fossem confiáveis. E ele estava decidido a fazer o que fosse necessáriopara mudar esse estado de coisas: construir instrumentos adequados e desenvolvermétodos precisos de observação dos astros.

Dos 17 aos 26 anos de idade, Tycho estudou em várias universidades européias, viajou,conheceu astrônomos, adquiriu vários instrumentos de observação e construiu muitosoutros, maiores e cada vez mais precisos.

Um terceiro acontecimento na vida de Tycho Brahe, decisivo para espalhar sua fama degrande astrônomo, foi o aparecimento de uma nova estrela nos céus no dia 11 denovembro de 1572. Por cerca de um mês essa estrela brilhou mais do que o planeta Vênus(Estrela Dalva ou Estrela Vésper), até que, a partir de dezembro, começou a perder

gradualmente seu brilho, desaparecendo por completo em março de 15742.

Ora, nessa época era ainda generalizada a crença de que na esfera das estrelas fixas, ondeimperava a perfeição divina, tudo era imutável ad aeternum. Só na Terra, onde vivemos, eem sua proximidade, a chamada região sublunar, é que podiam ocorrer movimentos etransformações. Cumpria, pois provar que o novo fenômeno situava-se nesta região; e sóhavia uma maneira de fazê-lo: mostrando que a nova estrela se deslocava entre as estrelasfixas.

Astrônomos de toda a Europa lançaram-se avidamente na tarefa de observar o novo astroque surgira nos céus, procurando detectar seu deslocamento entre as estrelas fixas. Erachegada "a vez e a hora de Tycho Brahe". Ele acabara de construir um novo sextante,cujos braços mediam quase dois metros de comprimento! E que se articulavam comprecisão num eixo de bronze que não permitia folga. O arco do instrumento possuía umaescala graduada, não apenas em graus, mas também em minutos de graus! No dizer de um

seu biógrafo (Koestler, The Sleepwalkers3, p. 289), "era como possuir um modernocanhão, em comparação com os estilingues de seus

Tycho Brahe aparece nesse mural em meio a seusinstrumentos, na companhia de seus assistentes ede seu inseparável cão. Ele desenvolveu atécnica, ilustrada na figura e até hoje usada, deobservar a passagem (ou "trânsito") de um astropelo meridiano, medindo a altitude do astro noinstante do trânsito.

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colegas". Ninguém mais, senão Tycho, tinha condições de garantir que o novo astro estavarealmente parado em meio às estrelas fixas. E foi esse o seu veredito, implacável eirrefutável, como ele substanciou, narrando, em detalhes, seus instrumentos e suasobservações, em seu primeiro livro De Nova Stella.

Tycho Brahe sempre contou com o irrestrito apoio do rei Frederico II da Dinamarca. Masera excêntrico e arrogante, qualidades estas certamente ampliadas pelo orgulho de suafama. Em 1575 ameaçou transferir-se para a Basiléia, e o rei tudo fez para impedir queisto acontecesse. Ofereceu-lhe o castelo que quisesse para se instalar com toda suaparafernália: e ele recusou! Ofereceu-lhe então a ilha de Huen, no canal que separa aDinamarca da Suécia, para que ali construísse o observatório de seus sonhos, casa paramorar, oficinas, fábrica de papel, impressora, tudo à custa do reino! E mais ainda: comjurisdição sobre a ilha e seus moradores e direito aos lucros sobre tudo o que ali seproduzisse. Só um louco recusaria tão generosa dádiva!

Tycho Brahe era excêntrico, arrogante, autoritário e outras coisas mais. Porém não teve ainsensatez de recusar tão generosa oferta. Na ilha de Huen construiu seu "Uraniburgo", ou"Castelo dos Céus". Ali passou os próximos 20 anos de sua vida, coletando o mais ricoacervo de observações astronômicas até então conseguido.

A importância dessas observações torna-se evidente pelos seguintes fatos: eramobservações de alta precisão, o que de melhor se poderia conseguir sem auxílio deinstrumentos ópticos (que só começaram a aparecer a partir de 1609); Tycho fez umlevantamento completo das coordenadas de mais de 700 estrelas fixas; as observações dosplanetas, da Lua e do Sol, que são os corpos celestes que se deslocam entre as estrelasfixas, foram efetuadas continuamente, dia após dia, ao longo de duas décadas, o que nuncaacontecera antes.

De posse dessa riqueza de dados, Tycho Brahe podia concluir com segurança que osistema heliocêntrico, tal qual exposto por Copérnico, era insustentável. Exigiamodificações. E ele tinha uma proposta neste sentido, com os planetas, exceto a Terra,girando em torno do Sol, e este, por sua vez, girando em torno da Terra, arrastandoconsigo todos os demais planetas. Era, como se vê, um sistema híbrido, uma esdrúxulacombinação de geocentrismo e heliocentrismo. Não vingaria.

Frederico II morreu em 1588. Seu sucessor, Cristiano IV, não se mostrou tão tolerantecom o extravagante Tycho, que governava a ilha de Huen como verdadeiro tirano,maltratando seus súditos, aprisionando-os injustamente e até mesmo desobedecendodecisões judiciais. Embora indiretamente, o cerco foi-se fechando ao redor de Tycho, cujotemperamento arrogante, aliado à recusa de corrigir seus excessos, levou-o a abandonar aDinamarca em 1597. Por dois anos seguidos ele vagou por diferentes lugares da Europa,levando consigo seus manuscritos, instrumentos, familiares, criados e assistentes, até que,em junho de 1599, fixou residência no castelo de Benatek, próximo à cidade de Praga,como "matemático imperial" do imperador Rodolfo II da Boêmia. Essa mudança paraPraga aproximava Tycho Brahe da personagem principal da nossa história, de quemfalaremos a seguir.

Johannes Kepler

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Ao contrário de Tycho Brahe, Johannes Kepler (1571-1630) era pobre, de saúde precária,tímido, e teve uma infância infeliz. Nasceu no sudoeste da Alemanha, em Weil-der-Stadt,um lugarejo situado 30 km a oeste de Stiittgart, a capital de Wiirtenberg. Kepler viveunuma época em que os países da Europa se digladiavam numa série interminável dedisputas e guerras religiosas, quando massacres e perseguições, as mais cruéis, erampraticadas, tanto por católicos como por protestantes. Luteranos convertidos, os duquesde Wiirtenberg acabaram criando em seus domínios um eficiente e moderno sistemaeducacional, instrumento eficaz na formação de clérigos eruditos e competentes, tãonecessários nas controvérsias religiosas que grassavam por toda parte.

O ambiente familiar do menino Kepler era bastante adverso. Não seriam seus pais queiriam bem cuidar de seus estudos, mas o Estado, cujo sistema educacional localizava eencaminhava os meninos inteligentes. Se pobres, como era o caso de Kepler, não faltavambolsas que os dotavam dos meios necessários para se dedicarem ao trabalho escolar sempreocupações. Foi assim que Kepler, cuja brilhante inteligência revelou-se precocemente,embarcou numa carreira de estudos que o levaria da escola elementar ao seminário e desteà universidade.

Aos 23 anos de idade, quando ainda estudante de Teologia em Tiibingen, Kepler foiindicado para preencher o posto vago de Professor de Astronomia e Matemática nauniversidade protestante de Gratz, na Áustria. De início, ele hesitou: não tinha planos deser astrônomo, não se considerava matemático e não queria abandonar seus estudos deTeologia. Mas acabou aceitando a proposta, com a condição de permanecer em Gratzapenas por certo tempo, devendo logo retomar seus estudos de Teologia em Tiibingen.

Talvez por não ser bom didata, em seu segundo ano em Gratz, Kepler já não tinha maisalunos de Matemática e era obrigado a lecionar Retórica e Literatura Latina para just ificarseu salário. Mesmo no final de seu primeiro ano, já estava desesperado para retornar aTiibingen. Mas não haveria retrocessos; os acontecimentos se sucederiam por caminhosnovos e inesperados.

Kepler tornara-se adepto do sistema de Copérnico quando ainda estudante em Tiibingen.Mas o que o enveredou definitivamente para a Astronomia foi uma idéia em si semnenhuma importância, que lhe ocorreu no curso de uma de suas aulas em 1595. Osplanetas então conhecidos eram seis: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno.(Urano, Netuno e Plutão só seriam descobertos muito mais tarde.) Por que exatamente"seis" planetas?, indagava Kepler. Essa questão lhe remoía a mente, at é que naquelaaula de 1595 lhe ocorreu a

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Estátua de Kepler e casa onde ele nasceu,em Weil-der-Stadl, hoje transformada em

museu de Kepler.

"resposta", que ele sempre considerou o maior achado de sua vida. Seis planetassignificavam cinco espaços entre os possíveis pares de planetas consecutivos. Ora, cincoeram os possíveis poliedros regulares ou poliedros de Platão (veja p. 42 desta RPM).Portanto, pensava Kepler, entre as esferas de dois planetas consecutivos devia encaixar-seum poliedro regular, circunscrito a uma esfera e inscrito na outra (RPM 3, pp. 8 e 9). Foiessa ideia bizarra o tema do primeiro livro do jovem astrônomo, intitulado MysteriumCosmographicum, publicado em Tiibingen em 1596.

Tycho Brahe, como vimos, era exímio observador. Mas não tinha competênciamatemática para trabalhar os dados de suas observações. Quando recebeu e examinou olivro de Kepler, logo reconheceu em seu autor um talento matemático singular, que ele,Tycho, não possuía, e de que necessitava para ajudá-lo a aperfeiçoar sua nova teoriaplanetária. Kepler, por seu lado, nunca teria sido capaz de fazer boas observações dosastros, pois tinha visão deficiente. Ele precisava conhecer os dados precisos deobservação de Tycho para aperfeiçoar a teoria exposta em seu livro. Eles trocaramcorrespondência por cerca de dois anos, e, decerto, perceberam o quanto cada umnecessitava do outro. Foram esses interesses mútuos que acabaram fazendo de Kepler umassistente de Tycho Brahe, em Benatek, a partir de fevereiro de 1600.

Tycho Brahe morreu em outubro de 1601, sem que o sistema planetário de seus sonhospudesse ser concluído. Seus últimos dias foram de muito sofrimento, entremeados dedelírios agonizantes. Nos momentos de lucidez ele dizia sempre que esperava não tervivido em vão. E a Kepler deixou a recomendação de terminar o trabalho matemático queestabelecesse o sistema planetário tychoniano. Kepler, por sua vez, esperava servir-se dolegado de Tycho em seu próprio benefício, para aperfeiçoar sua estranha teoria cósmica.O destino, todavia, não iria permitir nem uma coisa nem outra.

Astronomia Nova

Com a morte de Tycho Brahe, Kepler foi logo nomeado seu sucessor, no posto deMatemático Imperial, onde permaneceu até a morte de Rodolfo II, em 1612. Nos seisprimeiros anos de sua permanência em Benatek, ele descobriu suas duas primeiras leisplanetárias, que aparecem no seu segundo livro, publicado em 1609, sob o título de

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Astronomia Nova. Seu trabalho foi intenso e árduo, envolvendo séries intermináveis delongos e laboriosos cálculos, procurando acertar hipóteses que freqüentemente levavam aconclusões falsas e exigiam recomeçar tudo de novo. As dificuldades vinham depreconceitos antigos. Desde Aristóteles, firmara-se a convicção de que os corpos celestes,dada sua perfeição, só podiam mover-se em círculos, pois eram estas as únicas órbitas"perfeitas"; e moviam-se com velocidade uniforme, pois uma variação na velocidade seriauma imperfeição. Presos a esses "dogmas", os astrônomos tinham de recorrer a artifíciosgeométricos para explicar os movimentos observados nos céus. O arranjo epiciclo-deferente era apenas um desses artifícios. Em seus intermináveis cálculos e tentativas deajustar teoria à realidade, Kepler foi abandonando esses artifícios e finalmente os dogmasda órbita circular e do movimento uniforme. Este último caiu primeiro quando, já numestágio avançado de seu trabalho, Kepler decidiu calcular a órbita da Terra, comoexplicaremos a seguir. As órbitas da Terra e de Marte

Desde sua chegada a Benatek, Kepler concentrou-se no planeta Marte. E por uma razãomuito simples: sendo o primeiro dos planetas exteriores, ele se move mais rapidamenteem sua órbita, retornando logo à posição inicial, o que facilita seu estudo. Ele é tambémaquele cuja órbita é mais elíptica e que, portanto, mais difere de um círculo. Isto foi, deinício, um desafio para Tycho e seu assistente Longomontanus, que acabou desistindo deMarte, entregando-o a Kepler logo que este chegou a Benatek. A dificuldade foiprovidencial para a descoberta da órbita elíptica.

Kepler calculou várias distâncias da Terra ao Sol com o engenhoso procedimento deconsiderar sucessivas posições da Terra a partir de uma oposição de Marte e nossucessivos retornos de Marte à posição inicial M (Fig. 3). Inicialmente Marte encontra-seem posição em M, a Terra em To e o Sol em S. Depois de 687 dias Marte volta à posiçãoM (veja a RPM 13, p. 8), enquanto a Terra, em T1, ainda não completou sua segundavolta. No segundo retorno de Marte a M, a Terra estará em T2; e assim sucessivamente.

Kepler podia facilmente calcular os ângulos MST1 MST2, etc, a partir do conhecimentodas posições do Sol na eclítica, ou seja, a partir das posições do Sol entre as estrelas fixasao longo do ano; e Tycho lhe havia deixado tabelasdessas posições. Igualmente, os ângulos MT1S,MT2S, etc, podiam ser calculados a partir dosdados das tabelas deixadas por Tycho. Assim,tomando-se a distância SM como unidade decomprimento, os triângulos SMT1, SMT2, etc,podiam ser resolvidos trigonomericamente, a partirdo conhecimento dos ângulos e do lado SM, o quepermitia calcular as distâncias ST1 ST2, etc, emtermos da distância SM. Dessa maneira Keplercalculou várias distâncias da Terra ao Sol,concluindo que a órbita da Terra era um círculo,com o Sol localizado um pouco fora de seu centro, como indica a Fig. 4, onde 5 representao Sol e C o centro da órbita terrestre. Para a distância CS, Kepler encontrou o valor de1/59 do raio da órbita. Isto significa que num círculo de 5,9 cm de raio, a distância CS é deapenas 1 mm! ... Kepler notou que a Terra se deslocava com velocidade não uniforme,

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mais depressa quanto mais perto estivesse do Sol e mais devagar quanto mais longe. Eleconstruiu uma tabela do movimento da Terra, com as posições diárias do planeta.

Em seguida, Kepler passou a estudar a órbita de Marte, usando agora seu conhecimentodas distâncias da Terra ao Sol. Seu procedimento aqui não é menos engenhoso que noestudo anterior da órbita da Terra. Ele resolve novamente triângulos como SMT^ (Fig. 3),mas desta vez para achar a distância SM em termos da distância ST1 da Terra do Sol. Eeste procedimento é repetido em várias oposições de Marte, SMT1 SM'T1', SM" T1", etc.(Fig. 5). Em cada uma destas situações é preciso resolver um triângulo (como SMT1

SM'Tl, SM"Tl', etc.) para encontrar as distâncias de Marte ao Sol, SM, SM', SM", etc, emtermos das distâncias conhecidas da Terra ao Sol, ST1, ST1 ", STl', etc. Tudo isso foipossível porque os dados necessários a esses cálculos estavam lá nas tabelas de TychoBrahe!

Realizados esses cálculos, Kepler pôde verificar que a órbita de Marte não podia sercircular, ela mais se parecia com uma oval. Mas que oval seria esta? Novamente aquimuitas tentativas foram feitas até que ele acabou acertando na elipse, com o Sol em umdos focos.

A Elipse

A elipse já apareceu nas páginas desta Revista pelo menos três vezes (RPM 7, DD. 43 e44; RPM 9, pp. 9 e 10; RPM 11, pp. 42 a 44). Mas é uma curva tão notável, quenovamente merece aqui um destaque especial. Ela é conhecida desde a antiguidade comoseção cônica, por ser obtida como interseçãode um plano por um cone ou cilindro circulares(Fig. 6). Em 1822, o matemático belga G. P.Dandelin deu uma linda demonstração dapropriedade focal da elipse, que assim seanuncia:

No plano da elipse existem dois pontos F e F',chamados focos, tais que é constante a somaPF + PF', onde P é um ponto genérico da

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elipse.

A demonstração de Dandelin, no caso docilindro, está ilustrada na Fig. 7. Ela pode ser facilmente compreendida e quase dispensapalavras. O cilindro é cortado por um plano ir que determina a elipse. Duas esferas dediâmetros iguais ao do cilindro são nele introduzidas de modo a tangenciar o plano ir nospontos F e F'. Observe que as esferas tangenciam o cilindro em círculos paralelos, comoilustra a Fig. 7. Seja P um ponto qualquer da elipse. A geratriz do cilindro que passa por Ptangencia as esferas nos pontos

A e B, respectivamente, localizados nos círculos mencionados. Como oscírculos são paralelos, o segmento AB tem comprimento constante, àmedida que P varia na elipse. Notemos em seguida que os segmentosPA e PF têm o mesmo comprimento, pois ambos tangenciam amesma esfera a partir do mesmo ponto P. Do mesmo modo, PB =PF'. Então,

PF + PF' = PA + PB = AB = const.,

o que conclui a demonstração de Dandelin.

O leitor não terá dificuldade de repetir a mesmademonstração no caso do cone (Fig. 8).

Consideremos uma elipse com semi-eixos a e b, sendo a >b. Seja c a distância de cada foco ao centro da elipse (Fig. 9).É fácil verificar que a, b e c estão assim relacionados:

a2 = b2 + c2. A excentricidade e da elipse, por sua vez, édefinida por e = c/a. Temos então

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A primeira destas relações mostra que a excentricidade varia entre zero e 1. Pela segundarelação, vemos que a elipse é tanto mais achatada quanto maior sua excentricidade; e tantomais parecida com um círculo quanto menor a excentricidade.

Kepler verificou que a órbita de Marte era uma elipse de excentricidade . Istonos dá, pela segunda das relações acima,

Assim, se desenharmos a órbita de Marte com semi-eixo maior igual a 10 cm, o semi-eixomenor será , ou seja, apenas 1 mm a menos que o semi-eixo maior.Isto mostra que é impossível perceber visualmente que a órbita de Marte não é circular!Não houvesse outra razão, esta já nos bastaria para admirarmos a fançanha de Kepler aodescobrir que a órbita de Marte é elíptica.

As leis de Kepler

Kepler estendeu a todos os planetas do sistema solar a lei da órbita elíptica, quedescobrira para o planeta Marte, a qual ficou conhecida como sua 1.ª lei e que assim seenuncia:

Cada planeta descreve uma órbita elíptica, da qual o Sol ocupa um dos focos.

Antes mesmo de descobrir essa lei, Kepler encontrara outra regularidade interessante nomovimento dos planetas. Como vimos atrás, ele havia constatado que a velocidade daTerra era variável e que o Sol estava afastado do centro da órbita. Depois de muitastentativas, erros e recuos, ele acabou acertando na lei correta, também generalizada paratodos os planetas. Conhecida como sua 2." lei, ela tem o seguinte enunciado:

Os raios vetores que unem um planeta ao Sol varrem áreas iguais em tempos iguais.

Com referência à Fig. 10, isto significa que se o planeta vai de A até B no mesmo tempoque vai de C até D, então as áreas SAB e SCD são iguais.

Essas duas primeiras leis de Kepler aparecem no seu livroAstronomia Nova. A terceira lei, já explicada e utilizada naRPM 9, p. 5, aparece em um outro livro de Kepler,intitulado Harmonice Mundi e publicado em 1619.

É interessante notar que por muitas décadas as três leis deKepler permaneceram como que num limbo, sem queninguém se apercebesse de sua importância. O próprioKepler, já no fim de sua vida, julgava que seu trabalho mais significativo fosse aquelaconstrução antiga do Mysterium Cosmographicum. Caberia a Isaac Newton (1642-1727)redescobrir no emaranhado dos escritos de Kepler suas três leis e nelas identificar osfundamentos da Mecânica Celeste, sintetizados em sua Lei da Gravitação Universal.

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1 Ao que parece, ele nunca observou o planeta Mercúrio, que não é mesmo fácil de ser visto, dada suaproximidade do Sol.

______________2 Estrelas com esse comportamento são hoje conhecidas como Nova (Novae no plural). Elas sãoestrelas que explodem, aumentando temporariamente seu brilho, para, em seguida, se contraírem.

______________3 Este livro acaba de ser relançado em português pela Editora Ibrasa, sob o título O Homem e o Universo.O autor, Arthur Koestler, descreve, em linguagem não técnica, as vidas e as obras de vários astrônomos,dentre eles Copérnico, Tycho Brahe e Kepler.

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