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Postal do Algarve Tiragem: 7573 País: Portugal Period.: Mensal Âmbito: Regional Pág: 4 Cores: Cor Área: 19,50 x 27,00 cm² Corte: 1 de 2 ID: 63993333 08-04-2016 | Cultura.Sul O Amante Japonês: um romance de fôlego O Amante Japonês é finalmen- te um retorno aos romances a que Isabel Allende nos tinha acostumado. Depois de algu- mas obras mais juvenis (O ca- derno de Maya) e uma estranha tentativa de incursão no thril- ler policial (O jogo de Ripper), cuja história se parecia arrastar sem qualquer chama, a auto- ra (sobre quem já se escreveu aqui) regressa às suas histórias de grande fôlego que imedia- tamente puxam o leitor para dentro do seu mundo roma- nesco muito particular, tecido numa escrita fluída, desenhan- do um universo semi histórico, semi intemporal e levando-nos a conviver com personagens ca- rismáticas e cheias de vida. A narrativa de O Amante Japo- nês (cujo título evoca esse outro romance de Marguerite Duras, O Amante) segue um plano em que alternam dois planos tem- porais, o presente e o passado, o que por outro lado traz uma oscilação entre a perspectiva de uma jovem chamada Irina Bazili e a de Alma Belasco, a elegante senhora que se instala na Lark House, o lar de idosos onde tra- balha Irina. Alma Belasco nasceu na Po- lónia, mais precisamente em Varsóvia, em 1939. Com a II Guerra Mundial a deflagrar, é enviada pelos pais, como for- ma de a manter em segurança, para a Califórnia, onde irá ser acolhida pelos tios que vivem numa opulenta mansão de São Francisco. A decisão revela-se acertada, pois como sabemos, Varsóvia foi uma cidade que acabou completamente destru- ída, como palco de guerra entre as duas grandes frentes da Ale- manha e da Rússia. Mas é com Irina que o roman- ce se inicia, talvez por ser através desta personagem que vamos passar a conhecer melhor Alma Belasco e poder descobrir a sua história, justamente no mo- mento em que esta é entrevista- da e depois admitida: «Irina Ba- zili começou a trabalhar na Lark House, nos arredores de Berke- ley, em 2010. Acabara de fazer vinte e três anos e tinha poucas ilusões, pois andava, desde os quinze anos, a saltitar de em- prego para emprego e entre uma cidade e outra.» (pág. 9). Mas conforme a intriga se adensa e Seth, o neto de Alma Belasco, mais tarde, se apai- xona por Irina, percebemos que esta jovem proveniente da Europa de Leste também tem o seu passado obscuro e esconde um segredo. O Amante Japonês é a histó- ria de uma octogenária que, ao aproximar-se dos derradeiros instantes da sua vida, recorda a amizade, que mais tarde se tor- nará no amor de uma vida, que partilhou com Ichimei Fukuda, o filho do jardineiro dos tios: «Conhecera-o no magnífico jar- dim da mansão de Sea Cliff, na primavera de 1939. Na época, ela era uma menina com me- nos apetite do que um canário, que de dia andava calada e de noite chorava, escondida nas entranhas de um armário de três espelhos no quarto que os tios tinham decorado para ela (...)» (pág. 49). Mas neste ro- mance Isabel Allende não cria espaço para o amor romântico das suas outras obras e a classe social pode falar mais forte. O humor irreverente da escri- ta de Isabel Allende sempre foi um dos seus fortes, característi- ca que se acentuou mais depois dos seus primeiros romances, como se pode comprovar em alguns dos momentos deste ro- mance: «Na opinião de Seth, no início de 2010, de repente, em cerca de duas horas, alguma coi- sa afectou a personalidade da avó. Sendo ela uma artista de êxito e um modelo no cumpri- mento dos deveres, afastou-se do mundo, da família, dos seus amigos, e refugiou-se numa residência geriátrica que nada tinha a ver com ela, passando também a vestir-se como uma refugiada tibetana (...).» (pág. 42). Ou quando a nora pergun- ta a Alma o que irão dizer às pessoas, esta responde pronta- mente: «- Digam que estou ve- lha e louca. Não estarão a faltar à verdade» (pág. 43). Outra das principais qualida- des da escrita de Isabel Allende é o seu estilo narrativo ao jeito mágico realista que, apesar de ter tido o seu expoente máximo em A Casa dos Espíritos, ainda se respira entre as páginas desta obra, conforme se pode verifi- car logo no início do romance, quando o empregador de Irina a prepara para algumas das par- ticularidades do seu trabalho na Lark House: «- Por último, meni- na Bazili, devo mencionar-lhe a questão dos fantasmas, porque certamente será a primeira coi- sa que lhe dirá o pessoal haitia- no./- Não acredito em fantas- mas, senhor Voigt./- Felicito-a por isso. Eu também não. Os de Lark House são uma mulher com um vestido de tule cor-de-rosa e um menino de três anos..» (pág. 14). A opinião de Irina sobre os fantasmas, aliás, iria mudar muito em breve... Esta obra percorre ainda diversos episódios históricos e questões significativas mas sempre num contexto muito suave, sem verdadeiramente aprofundar esses temas ou momentos da história da Hu- manidade, como a diáspora judaica, o ataque surpresa do Império Japonês a Pearl Harbor ou o racismo. Talvez pelo facto de não ser um facto histórico muito conhecido, a descrição do que se sucede nos Estados Unidos da América nos meses seguintes ao ataque a Pearl Harbor é um dos momentos mais fortes do romance, onde se descreve a forma como, por se temer um novo ataque por parte do Japão e como meio de prevenir ataques de ódio aos asiáticos pela própria popula- ção americana, todos os japo- neses que viviam na costa do Pacífico, isto é, cerca de vinte mil homens, mulheres e crian- ças, são evacuados por “razões de segurança militar” para dez campos de concentração em zo- nas isoladas do interior do país. O romance abre-se ainda numa galeria de personagens curiosas e inspiradoras, que justificam sempre uma apre- sentação detalhada, como, por exemplo, Kathy, a psicó- loga da Lark House: «Os anos de imobilidade e o esforço tremendo para sobreviver tinham reduzido o tamanho de Cathy, que parecia uma menina na volumosa cadeira elétrica, mas irradiava uma enorme força, suavizada pela bondade que sempre tivera e que o acidente multiplicara. O seu permanente sorriso e o cabelo muito curto davam- -lhe um ar travesso, que con- trastava com a sua sabedoria de monge milenar. O sofri- mento físico libertara-a dos defeitos inevitáveis da perso- nalidade e tinha-lhe lapida- do o espírito como um dia- mante. Os derrames cerebrais não afetaram o seu intelecto, mas, tal como ela dizia, tro- caram-lhe os fusíveis e em consequência disso aguçou- -se-lhe a intuição e podia ver o invisível.» (pág. 208). O romance pode até es- tar recheado de estereótipos e lugares comuns (os judeus ricos, a máfia da Europa de Leste, a serenidade dos japo- neses) mas ler Isabel Allende é um daqueles prazeres quase culposos embora perfeitamen- te justificados se considerar- mos como a voz da autora é original e criativa. Falta ainda o grande fôlego narrativo de outras obras suas, como Filha da Fortuna, mas é um livro que prende, entretém e seduz o leitor até ao fim, num tom ligeiro, mediante um humor muito próprio e um sentido prático da vida que daria para escrever alguns livros de auto- ajuda, sem nunca cair no de- licodoce daquilo que se pode entender como chic literatu- re (literatura feminina). Em suma, é impossível não nos deliciarmos com quem sabe contar uma história. Paulo Serra Investigador da UAlg associado ao CLEPUL Letras e Leituras FOTOS: D.R. A escritora chilena Isabel Allende Autora regressa às histórias de grande fôlego com 'O Amante Japonês'

O Amante Japonês: um romance de fôlego · O Amante Japonês é a histó-ria de uma octogenária que, ao aproximar-se dos derradeiros instantes da sua vida, recorda a amizade, que

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Page 1: O Amante Japonês: um romance de fôlego · O Amante Japonês é a histó-ria de uma octogenária que, ao aproximar-se dos derradeiros instantes da sua vida, recorda a amizade, que

Postal do Algarve Tiragem: 7573

País: Portugal

Period.: Mensal

Âmbito: Regional

Pág: 4

Cores: Cor

Área: 19,50 x 27,00 cm²

Corte: 1 de 2ID: 63993333 08-04-2016 | Cultura.Sul

O Amante Japonês: um romance de fôlego

O Amante Japonês é finalmen-te um retorno aos romances a que Isabel Allende nos tinha acostumado. Depois de algu-mas obras mais juvenis (O ca-derno de Maya) e uma estranha tentativa de incursão no thril-ler policial (O jogo de Ripper), cuja história se parecia arrastar sem qualquer chama, a auto-ra (sobre quem já se escreveu aqui) regressa às suas histórias de grande fôlego que imedia-tamente puxam o leitor para dentro do seu mundo roma-nesco muito particular, tecido numa escrita fluída, desenhan-do um universo semi histórico, semi intemporal e levando-nos a conviver com personagens ca-rismáticas e cheias de vida.

A narrativa de O Amante Japo-nês (cujo título evoca esse outro romance de Marguerite Duras, O Amante) segue um plano em que alternam dois planos tem-porais, o presente e o passado, o que por outro lado traz uma oscilação entre a perspectiva de uma jovem chamada Irina Bazili e a de Alma Belasco, a elegante senhora que se instala na Lark House, o lar de idosos onde tra-balha Irina.

Alma Belasco nasceu na Po-lónia, mais precisamente em Varsóvia, em 1939. Com a II Guerra Mundial a deflagrar, é enviada pelos pais, como for-ma de a manter em segurança, para a Califórnia, onde irá ser acolhida pelos tios que vivem numa opulenta mansão de São Francisco. A decisão revela-se acertada, pois como sabemos, Varsóvia foi uma cidade que acabou completamente destru-ída, como palco de guerra entre as duas grandes frentes da Ale-manha e da Rússia.

Mas é com Irina que o roman-ce se inicia, talvez por ser através desta personagem que vamos passar a conhecer melhor Alma Belasco e poder descobrir a sua história, justamente no mo-mento em que esta é entrevista-da e depois admitida: «Irina Ba-zili começou a trabalhar na Lark House, nos arredores de Berke-ley, em 2010. Acabara de fazer vinte e três anos e tinha poucas

ilusões, pois andava, desde os quinze anos, a saltitar de em-prego para emprego e entre uma cidade e outra.» (pág. 9). Mas conforme a intriga se adensa e Seth, o neto de Alma Belasco, mais tarde, se apai-xona por Irina, percebemos que esta jovem proveniente da Europa de Leste também tem o seu passado obscuro e esconde um segredo.O Amante Japonês é a histó-

ria de uma octogenária que, ao aproximar-se dos derradeiros instantes da sua vida, recorda a amizade, que mais tarde se tor-nará no amor de uma vida, que partilhou com Ichimei Fukuda, o filho do jardineiro dos tios: «Conhecera-o no magnífico jar-dim da mansão de Sea Cliff, na primavera de 1939. Na época, ela era uma menina com me-nos apetite do que um canário, que de dia andava calada e de noite chorava, escondida nas entranhas de um armário de três espelhos no quarto que os tios tinham decorado para ela (...)» (pág. 49). Mas neste ro-mance Isabel Allende não cria espaço para o amor romântico das suas outras obras e a classe social pode falar mais forte.

O humor irreverente da escri-ta de Isabel Allende sempre foi um dos seus fortes, característi-ca que se acentuou mais depois dos seus primeiros romances, como se pode comprovar em alguns dos momentos deste ro-mance: «Na opinião de Seth, no início de 2010, de repente, em cerca de duas horas, alguma coi-sa afectou a personalidade da avó. Sendo ela uma artista de êxito e um modelo no cumpri-mento dos deveres, afastou-se do mundo, da família, dos seus amigos, e refugiou-se numa residência geriátrica que nada tinha a ver com ela, passando também a vestir-se como uma refugiada tibetana (...).» (pág. 42). Ou quando a nora pergun-ta a Alma o que irão dizer às pessoas, esta responde pronta-

mente: «- Digam que estou ve-lha e louca. Não estarão a faltar à verdade» (pág. 43).

Outra das principais qualida-des da escrita de Isabel Allende é o seu estilo narrativo ao jeito mágico realista que, apesar de ter tido o seu expoente máximo em A Casa dos Espíritos, ainda se respira entre as páginas desta obra, conforme se pode verifi-car logo no início do romance, quando o empregador de Irina a prepara para algumas das par-ticularidades do seu trabalho na Lark House: «- Por último, meni-na Bazili, devo mencionar-lhe a questão dos fantasmas, porque certamente será a primeira coi-

sa que lhe dirá o pessoal haitia-no./- Não acredito em fantas-mas, senhor Voigt./- Felicito-a por isso. Eu também não. Os de Lark House são uma mulher com um vestido de tule cor-de-rosa e um menino de três anos..» (pág. 14). A opinião de Irina sobre os fantasmas, aliás, iria mudar muito em breve...

Esta obra percorre ainda diversos episódios históricos e questões significativas mas sempre num contexto muito suave, sem verdadeiramente aprofundar esses temas ou momentos da história da Hu-manidade, como a diáspora

judaica, o ataque surpresa do Império Japonês a Pearl Harbor ou o racismo. Talvez pelo facto de não ser um facto histórico muito conhecido, a descrição do que se sucede nos Estados Unidos da América nos meses seguintes ao ataque a Pearl Harbor é um dos momentos mais fortes do romance, onde se descreve a forma como, por se temer um novo ataque por parte do Japão e como meio de prevenir ataques de ódio aos asiáticos pela própria popula-ção americana, todos os japo-neses que viviam na costa do Pacífico, isto é, cerca de vinte mil homens, mulheres e crian-ças, são evacuados por “razões de segurança militar” para dez campos de concentração em zo-nas isoladas do interior do país.

O romance abre-se ainda numa galeria de personagens curiosas e inspiradoras, que justificam sempre uma apre-sentação detalhada, como, por exemplo, Kathy, a psicó-loga da Lark House: «Os anos de imobilidade e o esforço tremendo para sobreviver tinham reduzido o tamanho de Cathy, que parecia uma menina na volumosa cadeira elétrica, mas irradiava uma enorme força, suavizada pela bondade que sempre tivera e que o acidente multiplicara. O seu permanente sorriso e o cabelo muito curto davam-

-lhe um ar travesso, que con-trastava com a sua sabedoria de monge milenar. O sofri-mento físico libertara-a dos defeitos inevitáveis da perso-nalidade e tinha-lhe lapida-do o espírito como um dia-mante. Os derrames cerebrais não afetaram o seu intelecto, mas, tal como ela dizia, tro-caram-lhe os fusíveis e em consequência disso aguçou--se-lhe a intuição e podia ver o invisível.» (pág. 208).

O romance pode até es-tar recheado de estereótipos e lugares comuns (os judeus ricos, a máfia da Europa de Leste, a serenidade dos japo-neses) mas ler Isabel Allende é um daqueles prazeres quase culposos embora perfeitamen-te justificados se considerar-mos como a voz da autora é original e criativa. Falta ainda o grande fôlego narrativo de outras obras suas, como Filha da Fortuna, mas é um livro que prende, entretém e seduz o leitor até ao fim, num tom ligeiro, mediante um humor muito próprio e um sentido prático da vida que daria para escrever alguns livros de auto-ajuda, sem nunca cair no de-licodoce daquilo que se pode entender como chic literatu-re (literatura feminina). Em suma, é impossível não nos deliciarmos com quem sabe contar uma história.

Paulo SerraInvestigador da UAlgassociado ao CLEPUL

Letras e Leituras

fotos: d.r.

A escritora chilena Isabel Allende

Autora regressa às histórias de grande fôlego com 'O Amante Japonês'

Page 2: O Amante Japonês: um romance de fôlego · O Amante Japonês é a histó-ria de uma octogenária que, ao aproximar-se dos derradeiros instantes da sua vida, recorda a amizade, que

Postal do Algarve Tiragem: 7573

País: Portugal

Period.: Mensal

Âmbito: Regional

Pág: 1

Cores: Cor

Área: 19,50 x 23,66 cm²

Corte: 2 de 2ID: 63993333 08-04-2016 | Cultura.SulD

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O Amante Japonês:

Isabel Allende regressa aos romances de fôlego p. 4

D.R.