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Os contos maravilhosos de Yeshua: análise das estruturas narrativas das parábolas jesuânicas 1 Leandro Alves da SILVA 2 Resumo Este artigo propõe uma análise estética das parábolas jesuânicas, apresentando pontos de contato entre dois gêneros literários (a parábola e o conto popular) e a possibilidade de compreender as parábolas como curtas narrativas ficcionais, cujos elementos podem ser analisados do ponto de vista narratológico. Tendo como referencial teórico os postulados de Vladimir Propp e Claude Bremond, são identificados exemplos de estruturas narrativas nas parábolas, demonstrando assim sua natureza complexa. Palavras-chave: Parábola; Folk Tale; Evangelhos Sinóticos; Narratologia. Abstract This article proposes an aesthetic analysis of Jesus’ parables, presenting points of contact between two literary genres (the parable and folk tale) and the possibility to understand the parables as short fictional narratives, whose elements can be analyzed from the narratological point of view. With the postulates of Vladimir Propp and Claude Bremond as theoretical reference, examples of narrative structures are identified in the parables, thus demonstrating its complex nature. Keywords: Parable; Folk Tale; Synoptic Gospels; Narratology. 1 Com algumas alterações, este artigo foi elaborado como requisito parcial para a obtenção do grau de especialista em Literatura Contemporânea pelo Centro Universitário Barão de Mauá, (Ribeirão Preto SP). 2 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná UFPR. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Especialista em Literatura Contemporânea pelo Centro Universitário Barão de Mauá, CEP 14090-180, Ribeirão Preto - SP. E-mail do autor: [email protected].

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Os contos maravilhosos de Yeshua: análise das estruturas narrativas das

parábolas jesuânicas1

Leandro Alves da SILVA2

Resumo

Este artigo propõe uma análise estética das parábolas jesuânicas, apresentando pontos

de contato entre dois gêneros literários (a parábola e o conto popular) e a possibilidade

de compreender as parábolas como curtas narrativas ficcionais, cujos elementos podem

ser analisados do ponto de vista narratológico. Tendo como referencial teórico os

postulados de Vladimir Propp e Claude Bremond, são identificados exemplos de

estruturas narrativas nas parábolas, demonstrando assim sua natureza complexa.

Palavras-chave: Parábola; Folk Tale; Evangelhos Sinóticos; Narratologia.

Abstract

This article proposes an aesthetic analysis of Jesus’ parables, presenting points of

contact between two literary genres (the parable and folk tale) and the possibility to

understand the parables as short fictional narratives, whose elements can be analyzed

from the narratological point of view. With the postulates of Vladimir Propp and

Claude Bremond as theoretical reference, examples of narrative structures are

identified in the parables, thus demonstrating its complex nature.

Keywords: Parable; Folk Tale; Synoptic Gospels; Narratology.

1 Com algumas alterações, este artigo foi elaborado como requisito parcial para a obtenção do

grau de especialista em Literatura Contemporânea pelo Centro Universitário Barão de Mauá, (Ribeirão Preto – SP). 2 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Especialista em Direito

Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Especialista em Literatura Contemporânea pelo Centro Universitário Barão de Mauá, CEP 14090-180, Ribeirão Preto - SP. E-mail do autor: [email protected].

1. Introdução

Falar sobre parábolas é, antes de tudo, falar sobre Jesus Cristo (em hebraico,

Yeshua Hamashiach). Conforme estudo detalhado de Sant’anna (2010), as obras que

tratam do gênero literário parabólico apresentam o conjunto de narrativas jesuânicas

como seu exemplo mais paradigmático.

De fato, a Bíblia Sagrada - isto é, a coleção de textos sagrados canonizados pelo

Judaísmo, e posteriormente acrescentados pelo Cristianismo - é provavelmente o corpus

literário mais influente da sociedade ocidental. Possuindo uma expressiva

heterogeneidade de estilos (histórico, épico, biográfico, poético, epistolar, alegórico),

suas narrativas e personagens permeiam a memória do cidadão médio (SOETHE, 2009).

Disso decorre que podemos observar, em muitas obras literárias, a intertextualidade

bíblica. Exemplificando esse fenômeno de forma bastante sucinta, podemos citar o

Paraíso Perdido de John Milton, O Diário de Adão e Eva de Mark Twain, Os Irmãos

Karamazov de Fiodor Dostoievski, Esaú e Jacó de Machado de Assis, Olhai os Lírios

do Campo de Érico Veríssimo e A Hora e a Vez de Augusto Matraga de Guimarães

Rosa.

Do mesmo modo, as parábolas jesuânicas povoam a memória e o discurso

coletivos (CERQUEIRA, 2014). Utilizando como referência uma das parábolas mais

famosas, Keefer (2008) aponta que mesmo pessoas totalmente alheias ao texto de Lucas

10:25-37 compreendem intuitivamente o significado do termo “Good Samaritan”:

alguém bondoso e pronto a ajudar pessoas em apuros. A influência das parábolas

extrapola a literatura e adentra o âmbito da linguagem.

A partir do século XX, começou a ficar claro que as habilidades literárias dos

escritores do Novo Testamento foram, até então, largamente subestimadas por seus

leitores (KEEFER, 2008). E no tocante às parábolas jesuânicas, podemos afirmar que

estamos diante de

um parabolista valioso, literalmente um “poeta”, criador de relatos

icásticos, breves narrações fictícias (as ficções) de seguro charme

estético, compostas e recitadas não para simples dileção, mas como

sugestiva modalidade de comunicação verbal com a proclamação da

Boa-Nova. (BARBAGLIO, 2007, p. 25).

Assim, da importância cultural e literária das parábolas jesuânicas emerge a

relevância de efetuarmos uma análise narratológica de seu discurso, de modo a

identificar suas estruturas narrativas – o que Patte (1976) classificaria como structural

criticism. Antes disso, porém, vamos verificar a possibilidade de encará-las como curtas

narrativas ficcionais, cujas características são semelhantes aos contos populares.

2. Identificando o gênero literário “parábola”

Afinal, o que é uma parábola? Qual a sua origem? Quais são as características

que a identificam como gênero literário?

Segundo Sant’anna (2010), citando o Theological dictionary of the New

Testament, o substantivo grego parabolé é derivado do verbo parabollo, o qual é

constituído por duas partes, cujos significados são: a) para (lado a lado, ao lado de, ao

longo de), e b) ballo (jogar, trazer, colocar). Dessa combinação resulta o conceito de

colocar lado a lado ou comparar.

Massaud Moisés conceitua a parábola da seguinte maneira:

(...) narrativa curta, não raro identificada com o apólogo e a fábula, em

razão da moral, explícita ou implícita, que encerra, e da sua estrutura

dramática. Todavia, distingue-se das outras duas fôrmas literárias pelo

fato de ser protagonizada por seres humanos.

Vizinha da alegoria, comunica uma lição ética por vias indiretas ou

simbólicas: numa prosa altamente metafórica e hermenêutica, veicula-

se um saber apenas acessível aos iniciados. (MOISÉS, 2004, p. 337).

Conforme dito anteriormente, os autores são virtualmente unânimes em indicar

as parábolas jesuânicas como paradigma exemplificativo. Afirma Moisés (2004, p. 337)

que a parábola “identifica-se com o Espírito da Bíblia.”

Porém, traçar sua origem é tarefa ainda por ser concluída. Snoodgrass (2008)

explica que parábolas de vários tipos são conhecidas e encontradas em praticamente

todas as culturas. Assim, o discurso parabólico seria um elemento comum ao

pensamento humano.

Ronald Williams (1956) cita a descoberta de extenso material fabulístico na

literatura do antigo Oriente Próximo (Egípcia, Sumeriana e Acadiana), desenvolvendo a

seguir um traçado histórico da fábula mesopotâmica A serpente e a águia, datada por

volta do século 1700 a.C. Na literatura grega clássica, o gênero parabólico está presente

nos discursos de Sócrates, é similar às fábulas de Esopo e é citado na Arte Retórica de

Aristóteles. Ademais, também é mencionado na Institutio Oratoria de Quintiliano

(SANT’ANA, 2010).

No que diz respeito à produção literária mais próxima, em textos cronológicos e

geográficos, dos evangelhos sinóticos, os Mashalim do Talmude3 são a referência mais

significativa. A Jewish Encyclopedia explica que o correspondente em hebraico para

parábola é mashal, alertando que o termo é usado também para designar outras formas

retóricas, como a fábula e o provérbio (a polissemia é algo relativamente comum no

léxico hebraico). Segundo a referida fonte, o Antigo Testamento (em hebraico, Tanakh)

contém apenas cinco parábolas (II Samuel 12:1-4 e 14:6-8, I Reis 20:39-40, Isaias 5:1-6

e 28:24-28), o que contrasta com a abundância delas encontrada na literatura rabínica

(JEWISH, 1906).

Os autores do Talmude criam na importância da parábola como ferramenta

pedagógica para a correta e verdadeira compreensão da Torah (Pentateuco), sendo seu

material extraído do cotidiano familiar aos seus destinatários (JEWISH, 1906).

Giuseppe Barbaglio seleciona um excerto talmúdico confirmando essa afirmação:

“Nossos mestres nos disseram: Que o mashal não seja pouca coisa aos teus olhos

porque, graças a ele, o homem pode compreender as palavras da Torá” (BARBAGLIO,

2007, p. 32).

3 O Talmude é o conjunto de textos sagrados do judaísmo, cuja composição iniciou-se a partir do século II d.C., composto pela Mishná (registro das tradições orais em forma escrita) e Guemará (comentários exaustivos da Mishná). Dois comentários da Mishná foram produzidos: um na Palestina e um na Babilônia (DEL GIGLIO, 2000).

Importante acrescentar também que podemos verificar casos de paralelismo

entre as parábolas talmúdicas e jesuânicas. Um exemplo bastante representativo é a

Parábola do Banquete, a qual transcrevemos na versão rabínica:

Rabbi Yohanan b. Zakkai disse: Parábola de um rei que convidou seus

servidores a um banquete, mas sem fixar o tempo. Os sábios se

vestiram com todo esmero e se sentaram à porta da casa do rei

dizendo: “Falta talvez alguma coisa na casa do rei?” Os insensatos

foram trabalhar dizendo: “Dá-se talvez um banquete sem preparação?”

Improvisamente o rei convocou seus servidores. Então aqueles sábios

se apresentaram diante dele bem vestidos como estavam e também os

insensatos no estado em que se encontravam, isto é, totalmente sujos.

O rei se alegrou diante daqueles que estavam com trajes a rigor para o

banquete: “Sentai, comei e bebei. Os que não estão vestidos

apropriadamente para o banquete, fiquem de pé a olhar.

(BARBAGLIO, 2007, p. 32).

Essa relação entre parábolas rabínicas e jesuânicas é analisada por Barbaglio a

partir de uma perspectiva bastante cautelosa:

A riqueza das parábolas de Jesus (...) encontra um válido confronto

com as centenas de parábolas rabínicas presentes nos escritos

homônimos, parábolas em língua hebraica, não aramaica, todas

pertencentes ao judaísmo palestino e nem sempre atribuídas a um

autor específico. Naturalmente, a distância cronológica entre a

literatura rabínica e o tempo de Jesus torna problemática a tentativa de

confronto e frágeis as hipóteses de dependências em um ou em outro

sentido. Flusser, todavia, é muito categórico ao afirmar que as

parábolas do Nazareno pertencem ao mais vasto campo das parábolas

rabínicas, e não vice-versa (p. 19). Explica, com efeito, que se faz

necessário distinguir entre forma escrita e forma oral, e conclui que as

mais antigas parábolas rabínicas derivam da última geração antes da

destruição do templo (p. 19). Mas os estudos de Neusner, modelados

ao rigoroso método da escola da história das Formas e da Redação,

aplicado aos escritos rabínicos, convidam à prudência. Por isso,

parece-nos que não seja uma evidência histórica a presença, no

ambiente do Nazareno, de parábolas conhecidas por nós da posterior

literatura rabínica. Pode-se conjeturar de qualquer modo, com certa

plausibilidade, que ele não tenha sido aqui, como em outros aspectos

de sua pessoa, um unicum, um parabolista sine patre et sine matre.

Com efeito, são um dado irrefutável as não poucas e não marginais

semelhanças de seus relatos parabólicos com os motivos narrativos

dos relatos rabínicos — como veremos nas citações que seguem —,

sem falar das fórmulas introdutórias que as tornam comuns: “isto é

comparável a” (forma ao dativo), “parábola de” (forma ao genitivo).

Em resumo, aceitável aparece a posição cauta de Young: “Mesmo que

a evidência seja fragmentária, é muito mais provável que Jesus tenha

usado um método de ensino já praticado por outros sábios judaicos no

seu tempo”. (BARBAGLIO, 2007, p. 37).

Finalmente, quanto às características do gênero parabólico, ao retornarmos ao

conceito de Moisés (2004), podemos sistematizá-lo nos seguintes termos:

a) a parábola é uma narrativa;

b) sua extensão é curta;

c) é um gênero contíguo à fabula e ao apólogo;

d) apresenta um ensinamento ético (explícito ou implícito);

e) sua estrutura é dramática;

f) seus protagonistas são seres humanos;

g) é simbólica, ou seja, seus elementos são metafóricos.

Desse último item, podemos deduzir uma característica que é geralmente

ressaltada pelos estudiosos (BARBAGLIO, 2007; GOWLER, 2000; HEDRICK, 2004;

SCHOTTROFF, 2007; STEFANI apud SANT’ANA, 2010): a parábola é geralmente

uma narrativa ficcional, porém verossímil, imaginada por seu autor.

Somadas todas essas informações, a parábola passa a ter um conteúdo estético

que a aproxima não somente das fábulas e apólogos mas também de um dos mais

universais e antigos gêneros literários: o conto popular.

3. Interpolações entre os gêneros parábola e conto popular

O conto é um gênero literário que está atrelado à história da cultural humana,

ultrapassando os limites da tradição escrita (GOTLIB, 2006). Sua origem está na

tradição oral e no prazer de contar e ouvir histórias (PINTO, 2012), e disso decorre que

traçar o seu início é tarefa impossível, pelo simples fato de ser um fenômeno

preexistente aos textos escritos (GOTLIB, 2006).

Nesse mesmo sentido, Luzia de Maria nos dá o seguinte panorama das

reminiscências do conto:

O conto popular cristalizava-se na tradição oral dos povos, atuando

como veículo de transmissão de ensinamentos morais, valores éticos

ou concepções de mundo, sendo fortalecido na memória de

consecutivas gerações, a cada noite, a cada serão espécie de legado

passando de pais a filhos.

É difícil precisar a quantas funções deveria servir o conto na estrutura

das sociedades primitivas. Através do contar se articula uma

fundamentação religiosa, quando os mistérios divinos,

transcendentais, os "feitos dos deuses" se misturam a simples

episódios imaginativos. As noções do Bem e do Mal, o estímulo à

formação de um senso de justiça natural e humano transparecem na

maioria dos chamados contos maravilhosos ou contos de fadas, com

que a infância de vários séculos foi alimentada. E, ao lado destas

funções de ordem educativa, sobressai a sua atuação como válvula de

escape, resposta do homem à sua necessidade básica de sonho e

fantasia, evasão e retorno ao espaço idealizado de um paraíso perdido

— mundo melhor que este moldado nas leis do "ganharás o teu pão

com o suor do teu rosto".

Não é difícil, naturalmente, chegarmos a esta analogia: o clã familiar

agrupado ao redor daquele que seria o dono da fala, senhor do

discurso, repositório de lendas e estórias e possuidor de um certo

charme no narrar. (MARIA, 1984, p. 13-14).

Neste ponto, é necessário informar que há diferença entre conto popular e conto

literário. O primeiro, cujo correspondente em inglês é tale, é uma criação popular e

coletiva, não sendo propriedade de um único autor (e.g., Chapeuzinho Vermelho); o

segundo, denominado short-story, é uma criação individual com características

eminentemente artístico-literárias (e.g., A missa do Galo de Machado de Assis),

constituindo-se um prolongamento das antigas narrativas da tradição oral (MARIA,

1984).

Assim, considerando a origem folclórica do conto, podemos sistematizar

algumas das características do folk tale:

a) é uma narrativa.

b) é um gênero literário atrelado à tradição oral (contar histórias);

c) é repassado através das gerações; portanto, é da sua essência a existência de

variabilidade;

d) está relacionado à transmissão de valores éticos, religiosos, justiça natural ou

concepções de mundo, do qual decorre sua função educativa;

e) não tem um compromisso necessário com eventos reais (GOTLIB, 2006).

Assim, começa a ficar claro que há pontos de contatos entre o conto, a parábola

e também a fábula. Nesse sentido, Nádia Battella Gotlib afirma que,

(...) modernamente, sabe-se que fábula é a estória com personagens

animais, vegetais ou minerais, tem objetivo instrutivo e é muito breve.

E se a parábola tem homens como personagens, e se tem sentido

realista e moralista, tal como a fábula, o sentido não é aparente e os

detalhes de personagens podem ser simbólicos. O conto conserva

características destas duas formas: a economia do estilo e a situação e

a proposição temática resumidas. (GOTLIB, 1984, p. 15).

No caso das parábolas jesuânicas, não é difícil notar que estão presentes a

tradição oral (e.g., Lucas 14:15-164), a variabilidade – Crossan (1975) aponta três

versões da Parábola do Grande Banquete: nos evangelhos de Lucas e Mateus, bem

como no evangelho apócrifo de Tomé –, valores ético-religiosos (e.g., o perdão, o

arrependimento e a justiça), verossimilhança (estão ambientadas em situações do

cotidiano, sem necessariamente terem ocorrido), economia de estilo (sua extensão é

curta) e estrutura narrativa. Esse último ponto será tratado de forma pormenorizada nos

tópicos a seguir.

4. As estruturas da narrativa

4 “Ao ouvir isso, um dos que estavam à mesa com Jesus, disse-lhe: “Feliz será aquele que comer no banquete do Reino de Deus”. Jesus respondeu: “Certo homem estava preparando um grande banquete e convidou muitas pessoas” (BÍBLIA, 2004, p. 196).

Segundo Claude Bremond (1972, p. 90), a narrativa pode ser conceituada como

“un discurso que integra una sucesión de acontecimientos de interés humano en la

unidad de una misma acción”.

Zilberman (2008) informa que foram os formalistas russos e os estruturalistas

tchecos que colocaram a obra literária no centro da reflexão científica, analisando-a

como um objeto isolado e autônomo, dando assim um importante passo na consolidação

da Teoria da Literatura.

Partidário do formalismo russo, Vladimir Propp (2010), a partir da análise do

conto folclórico russo, propôs uma descrição dos elementos básicos da narrativa, os

quais constituem a sua estrutura. Apesar de sua obra Morfologia do Conto Maravilhoso

datar de 1928, foi apenas nos anos 1960 que ela passou a ser debatida, alavancando

então os estudos da teoria da narrativa (ZILBERMAN, 2008).

Propp (2010) afirma que o conto maravilhoso russo possui grandezas constantes

e grandezas variáveis. Elementos como o nome e os atributos dos personagens variam,

ao passo de suas ações (funções) são constantes. A função atribuída ao personagem é

conceituada pelo autor como “o procedimento de um personagem, definido do ponto de

vista de sua importância para o desenrolar da ação” (PROPP, 2010, p. 22). Na

sequência, ele sistematiza seus postulados nos seguintes termos:

I. Os elementos constantes, permanentes, do conto maravilhoso são as

funções dos personagens, independentemente da maneira pela qual

eles as executam. Essas funções formam as partes constituintes

básicas do conto.

II. O número de funções dos contos de magia conhecidos é limitado.

(PROPP, 2010, p. 22).

III. A seqüência das funções é sempre idêntica. (PROPP, 2010, p. 23).

IV. Todos os contos de magia são monotípicos quanto à construção.

(PROPP, 2010, p. 23).

A seguir, com base numa seleção de 100 contos extraídos de uma lista de

Afanássiev, Propp (2010) enumerou sua célebre lista de 31 funções, atribuídas aos

personagens a partir de uma situação inicial descrita pelo conto.

No último capítulo de sua obra, ele nos revela o que entendemos ser o Abre-te

Sésamo da morfologia do conto popular:

Do ponto de vista morfológico podemos chamar de conto de magia a

todo desenvolvimento narrativo que, partindo de um dano (A) ou uma

carência (a) e passando por funções intermediárias, termina com o

casamento (W0) ou outras funções utilizadas como desenlace. A

função final pode ser a recompensa (F), obtenção do objeto procurado

ou, de modo geral, a reparação do dano (K), o salvamento da

perseguição (Rs) etc. A este desenvolvimento damos o nome de

sequência. A cada novo dano ou prejuízo, a cada nova carência,

origina-se uma nova seqüência. Um conto pode compreender várias

seqüências e quando se analisa um texto deve-se determinar, em

primeiro lugar, de quantas seqüências esse texto se compõe. Uma

seqüência pode vir imediatamente após a outra, mas também podem

aparecer entrelaçadas, como se se detivessem para permitir que outra

seqüência se intercale. Isolar uma seqüência nem sempre é fácil, mas

sempre é possível fazê-lo e com absoluta precisão. Contudo, mesmo

tendo definido convencionalmente o conto como uma sequência, isto

não significa, ainda, que o número de seqüências corresponda

rigorosamente ao número de contos. Alguns procedimentos

particulares, paralelismos, repetições etc., fazem com que um conto

possa ser composto de várias seqüências. (PROPP, 2010, p. 90-91).

Finalmente, levando em consideração que conto pode conter várias sequências,

Propp (2010) explica que elas podem se relacionar das seguintes maneiras:

a) uma sequência segue imediatamente à outra, de modo sucessivo;

b) uma nova sequência (um episódio) começa antes que a precedente tenha a

sua conclusão;

c) o episódio também pode ser interrompido, criando uma estrutura narrativa

complexa;

d) o conto pode se iniciar com dois danos simultâneos;

e) duas sequências podem ser resolvidas através de uma mesma função final;

f) o conto pode ter dois heróis que se separam em sequências independentes.

A partir do conceito proppiano de sequência, que acabamos de mencionar, o

folclorista Alan Dundes estudou os contos indígenas norte-americanos. Ele observou

que o núcleo central de uma narrativa estaria na oposição entre as funções

desequilíbrio/equilíbrio e no movimento de passagem de uma situação para a outra

através das funções intermediárias (DUNDES apud ZILBERMAN, 2008).

Posteriormente, dando continuidade às proposições de Propp e Dundes, Claude

Bermond publicou dois artigos durante a década de 1960 (Le message narratif e La

logique des possibles narratifs), nos quais buscou construir um modelo formal de

análise da narrativa, inspirado em Propp, que fosse aplicável a outros gêneros literários

(1974). Podemos elencar algumas importantes contribuições do semiólogo francês

(1972):

1. A sequência elementar é composta por três funções: a) uma função de

abertura que estabelece a virtualidade de uma conduta ou acontecimento; b) a função

que realiza a conduta ou acontecimento esperados; c) uma função de encerramento que

corresponde ao resultado alcançado.

2. Diferentemente do pensamento de Propp, as funções não necessitam que a

conduta ou acontecimento, que ela prevê virtualmente, se concretizem na realidade

ficcional, podendo os personagens permanecer na inércia ou no impedimento e atuar; do

mesmo modo, a conduta ou acontecimento podem ou não serem exitosos em alcançar o

resultado pretendido (reparação/supressão do dano/carência).

3. As sequências elementares podem se combinar, criando sequências

complexas, cujos tipos mais comuns são os seguintes: a) encadeamento por

continuidade (um acontecimento cumpre o papel de duas funções distintas: fechamento

da primeira sequência e abertura da segunda); b) encrave (uma sequência serve de meio

para que a anterior alcance seu resultado); c) enlace (uma sequência cumpre funções

diferentes de acordo com a perspectiva de cada personagem).

Muitos outros estudiosos participaram do desenvolvimento da Narratologia

(BARTHES et al, 1972): Roland Barthes, Tzvetan Todorov, A. J. Greimas, Gerald

Genette, etc. Porém, por motivos metodológicos, fizemos referência detalhada apenas

aos autores cujos postulados serão utilizados neste estudo.

5. As estruturas narrativas nas parábolas jesuânicas

Distanciando-se intencionalmente das abordagens de John D. Crossan (1975),

Daniel Patte (apud ARMERDING, 1979) e Dan Otto Via Jr. (apud GOWLER, 2000),

que utilizam o modelo narratológico de A. J. Greimas (especialmente o modelo

actancial: sujeito-objeto, destinador-destinatário e adjuvante-oponente), vamos

descrever as estruturas narrativas de quatro parábolas jesuânicas. Nosso objetivo

principal é identificar como se apresentam as sequências das parábolas em questão,

segundo as concepções de Propp e Bremond, bem como observar a ocorrência e

variabilidade de elementos narrativos típicos.

A seguir, apresentamos as parábolas selecionadas, segundo a tradução da Nova

Versão Internacional (BÍBLIA, 2004), com pequenas adaptações para facilitar a leitura.

Após cada parábola, inserimos nossa proposta de estrutura narrativa, seguindo o modelo

de Propp na Morfologia do Conto Maravilhoso (2010), capítulo IX, item A. Não

utilizamos o esquema usual, no qual são descritas simbolicamente todas as funções do

conto, pois o objetivo é destacar os binômios carência/supressão e dano/reparação, bem

como os saltos de sequência na narrativa. Esse método tornará alguns elementos dos

relatos parabólicos muito evidentes.

5.1 A parábola dos Trabalhadores da Vinha (Mateus 20:1-16)

Pois o Reino dos céus é como um proprietário que saiu de manhã cedo

para contratar trabalhadores para a sua vinha. Ele combinou pagar-

lhes um denário pelo dia e mandou-os para a sua vinha.

Por volta das noves hora da manhã, ele saiu e viu outros que estavam

desocupados na praça, e lhes disse:

- Vão também trabalhar na vinha, e eu lhes pagarei o que for justo.

E eles foram.

Saindo outra vez, por volta do meio-dia e das três horas da tarde, fez a

mesma coisa. Saindo por volta das cinco horas da tarde, encontrou

ainda outros que estavam desocupados e lhes perguntou:

- Por que vocês estiveram aqui desocupados o dia todo?

- Porque ninguém nos contratou - responderam eles.

Ele lhes disse:

- Vão vocês também trabalhar na vinha.

Ao cair da tarde, o dono da vinha disse a seu administrador:

- Chame os trabalhadores e pague-lhes o salário, começando com os

últimos contratados e terminando nos primeiros.

Vieram os trabalhadores contratados por volta das cinco horas da

tarde, e cada um recebeu um denário. Quando vieram os que tinham

sido contratados primeiro, esperavam receber mais. Mas cada um

deles também recebeu um denário. Quando o receberam, começaram a

se queixar do proprietário da vinha, dizendo-lhe:

- Estes homens contratados por último trabalharam apenas uma hora, e

o senhor os igualou a nós, que suportamos o peso do trabalho e o calor

do dia.

Mas ele respondeu a um deles:

- Amigo, não estou sendo injusto com você. Você não concordou em

trabalhar por um denário? Receba o que é seu e vá. Eu quero dar ao

que foi contratado por último o mesmo que lhe dei. Não tenho o

direito de fazer o que quero com o meu dinheiro? Ou você está com

inveja porque sou generoso?

Assim, os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos.

(BÍBLIA, 2004, p. 54-55).

Estrutura narrativa: o proprietário da vinha carece de pessoas para trabalhar em

sua propriedade (a1). Ele sai de manhã cedo e sua a carência é suprimida pela

contratação de trabalhadores durante todo o dia (K1, K2, K3, K4, K5). Aqui o mesmo

acontecimento gera duas funções distintas: para o proprietário é uma supressão, porém

para os trabalhadores gera uma carência por remuneração do trabalho efetuado (a2). A

segunda carência é suprimida pelo pagamento de todos os trabalhadores com o mesmo

salário (K6, K7, K8, K9, K10). Essa função gera um dano aos trabalhadores que foram

recrutados no começo do dia (A). Eles se queixam ao proprietário da vinha, porém sem

sucesso. Esse dano fica sem reparação (sua virtualidade não se concretiza), pois há uma

ausência de actualização por parte do proprietário.

Diagrama:

I a1/__________/ K1 K2 K3 K4 K5 =

II a2/__________/ K6 K7 K8 K9 K10 =

III A

5.2 A parábola do Rico Insensato (Lucas 12:16-21)

A terra de certo homem rico produziu muito. Ele pensou consigo

mesmo:

- O que vou fazer? Não tenho onde armazenar minha colheita.

Então disse:

- Já sei o que vou fazer. Vou derrubar os meus celeiros e construir

outros maiores, e ali guardarei toda a minha safra e todos os meus

bens. E direi a mim mesmo: “Você tem grande quantidade de bens,

armazenados para muitos anos. Descanse, coma, beba e alegre-se”.

Contudo, Deus lhe disse:

- Insensato! Esta mesma noite a sua vida lhe será exigida. Então, quem

ficará com o que você preparou?

Assim acontece com quem guarda para si riquezas, mas não é rico

para com Deus. (BÍBLIA, 2004, p. 190-191).

Estrutura narrativa: a terra de um homem rico produziu mais do que o esperado,

o que gerou uma carência por armazenamento (a1). Em um solilóquio, o rico pensa que

a melhor forma de suprimir sua carência é derrubar seus celeiros e construir outros

maiores (K). Nesse ponto, fica aparente uma outra carência: o rico precisa acumular

bens para aplacar sua insegurança psicológica (a2), cuja supressão também será obtida

com a construção dos novos celeiros (K). Porém, o inesperado acontece: Deus lhe avisa

que essa é sua última noite na terra dos viventes, gerando-se um dano irreparável (A)

que o impedirá de aproveitar a riqueza que acumulou. A virtualidade da reparação não

se concretiza por um impedimento de atuar.

Diagrama:

I a1/__________/.................../

II a2/__________ / K A

5.3 A parábola do Grande Banquete (Lucas 14:16-24)

Certo homem estava preparando um grande banquete e convidou

muitas pessoas. Na hora de começar, enviou seu servo para dizer aos

que haviam sido convidados:

- Venham, pois tudo já está pronto.

Mas eles começaram, um por um, a apresentar desculpas. O primeiro

disse:

- Acabei de comprar uma propriedade, e preciso ir vê-la. Por favor,

desculpe-me.

Outro disse:

- Acabei de comprar cinco juntas de bois e estou indo experimentá-las.

Por favor, desculpe-me.

Ainda outro disse:

- Acabo de me casar, por isso não posso ir.

O servo voltou e relatou isso ao seu senhor. Então o dono da casa

irou-se e ordenou ao seu servo:

- Vá rapidamente para as ruas e becos da cidade e traga os pobres, os

aleijados, os cegos e os mancos.

Disse o servo:

- O que o senhor ordenou foi feito, e ainda há lugar.

Então o senhor disse ao servo:

- Vá pelos caminhos e valados e obrigue-os a entrar, para que a minha

casa fique cheia. Eu lhes digo: Nenhum daqueles que foram

convidados provará do meu banquete. (BÍBLIA, 2004, p. 196-197).

Estrutura narrativa: um homem preparou um grande banquete e convidou muitas

pessoas. Enviou seu servo a cada uma delas, para que tivessem ciência da festa e da

importância de sua presença. Há aqui uma carência (a1) cuja supressão está no virtual

comparecimento dos convidados. Porém, a cada convite efetuado, o servo recebia uma

desculpa por parte do conviva, que justificava sua ausência com motivos de ordem

pessoal. Os convidados fracassam na prova qualificativa ao recusar o convite (E1neg,

E2neg, E3neg). Do ponto de vista do dono do banquete, isso gera um dano terrível

(A1): ele é desdenhado pelos convidados e sua festa será um fracasso. Assim, ele dá

ordens sucessivas a seu servo para que recolha toda sorte de pobres, aleijados, cegos e

transeuntes, até o ponto em que sua festa fique completamente lotada. Assim, o dano

que lhe foi imposto é reparado, através do êxito em sua conduta (K). Finalmente,

anuncia que, tendo em vista o fracasso dos primeiros convidados, eles jamais provarão

do banquete preparado (A2). Mesmo que mudassem de ideia, não há mais lugar para

eles, pois o número de convidados está completo (a festa lotada significa sua exclusão).

Esse dano imposto aos primeiros convidados fica sem reparação, pois sua virtual

actualização será incapaz de atingir o resultado pretendido.

Diagrama:

I a1/________/E1neg E2neg E3neg = A1/_________/K =

II A2

5.4 A parábola do Rico e Lázaro (Lucas 16:19-31)

Havia um homem rico que se vestia de púrpura e de linho fino e vivia

no luxo todos os dias. Diante do seu portão fora deixado um mendigo

chamado Lázaro, coberto de chagas; este ansiava comer o que caía da

mesa do rico. Até os cães vinham lamber suas feridas.

Chegou o dia em que o mendigo morreu, e os anjos o levaram para

junto de Abraão. O rico também morreu e foi sepultado. No Hades,

onde estava sendo atormentado, ele olhou para cima e viu Abraão de

longe, com Lázaro ao seu lado. Então, chamou-o:

- Pai Abraão, tem misericórdia de mim e manda que Lázaro molhe a

ponta do dedo na água e refresque a minha língua, porque estou

sofrendo muito neste fogo.

Mas Abraão respondeu:

- Filho, lembre-se de que durante a sua vida você recebeu coisas boas,

enquanto que Lázaro recebeu coisas más. Agora, porém, ele está

sendo consolado aqui e você está em sofrimento. E além disso, entre

vocês e nós há um grande abismo, de forma que os que desejam passar

do nosso lado para o seu, ou do seu lado para o nosso, não conseguem.

Ele respondeu:

- Então eu te suplico, pai: manda Lázaro ir à casa de meu pai, pois

tenho cinco irmãos. Deixa que ele os avise, a fim de que eles não

venham também para este lugar de tormento.

Abraão respondeu:

- Eles têm Moisés e os Profetas; que os ouçam.

- Não, pai Abraão - disse ele - mas se alguém dentre os mortos fosse

até eles, eles se arrependeriam.

Abraão respondeu:

- Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão

convencer, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos. (BÍBLIA,

2004, p. 202-203).

Estrutura narrativa: um homem rico teve a oportunidade de minorar o sofrimento

de um mendigo chamado Lázaro (a1), o qual foi deixado em seu portão. Porém, sua

conduta foi indiferente à carência alheia, vivendo no completo luxo (A1). Ocorrendo o

falecimento dos dois personagens, a carência de Lázaro foi suprimida ao ser levado

junto a Abraão (K1), ao passo que o dano cometido pelo rico indiferente foi retribuído

com o seu envio ao Hades (K2). Num cenário literalmente dantesco, o rico é

atormentado (a2). Ele pede então a Avinu Avraham que minore seu sofrimento terrível,

porém não há condições de suprimir sua carência. O rico busca então uma forma de

alertar seus cinco irmãos a respeito de sua desdita, de modo a mudarem seu

procedimento e evitarem o mesmo destino (a3). Entretanto, Abraão responde afirmando

que eles não se convenceriam, mesmo que ressuscitasse alguém dos mortos. A parábola

se encerra com duas carências sem supressão, uma por impedimento de atuar e outra

pelo virtual fracasso da conduta. Do ponto de vista literário, estamos diante de uma

masterpiece.

Diagrama:

I a1/___________/..................../K1

II A1/__________/K2

III a2 a3

6. Algumas conclusões sobre as estruturas narrativas das parábolas

A partir das estruturas narrativas apresentadas, podemos notar uma grande

variabilidade na combinação das sequências. Temos exemplos de encadeamento (A

parábola dos Trabalhadores da Vinha), enlace (A parábola do Grande Banquete),

sequência que se inicia antes a que anterior termine (A parábola do Rico e Lázaro) e

duas sequências com final comum (A parábola do Rico Insensato). Isso demonstra a

riqueza estético-narrativa das parábolas jesuânicas.

A figura do enlace é recorrente em várias parábolas. Uma ação ou acontecimento

altera sua funcionalidade de acordo com o ponto de vista dos personagens. O que é

reparação para um, é dano para outro. Como afirma Bremond (1972), cada agente é seu

próprio herói.

Ademais, sempre há pelo menos duas sequências compondo a narrativa

parabólica, sendo que a última possui um dano/carência cuja virtualidade da

reparação/supressão não se concretiza. Isso ocorre por falta de actualização da conduta,

seja por inércia do personagem (e.g., o dono da vinha) ou por impedimento de atuar

(e.g., o rico no Hades). Também ocorrem casos de fracassos de conduta previstos pelos

personagens (o dono da vinha e Abraão). Conforme já expomos, essas possibilidades

narrativas à disposição do autor foram destacadas por Bremond (1972).

Em conexão com a tensão que permanece ao final da parábola, cuja origem está

na falta de supressão da carência ou de reparação do dano, a parábola tem a

peculiaridade de envolver o ouvinte como participante ativo, pedindo uma decisão ou

resposta (SANT’ANA, 2010). O ouvinte precisa encarar a função dano/carência, em

termos simbólicos, e ele mesmo tomar uma decisão sobre qual é a reparação/supressão

correspondente. Essa última função está relacionada com a práxis do próprio ouvinte,

não como actante da parábola, mas como actante na vida. Assim, por meio desse

artifício se estabelece a retórica moral e ética da narrativa parabólica.

De certo modo, isso está de acordo com a afirmação de Crossan (1975) de que o

mito estabelece o mundo e a parábola subverte o mundo, ou seja, o mundo criado no e

pelo mito é subvertido pela parábola.

Gowler sumariza a ideia de Crossan nos seguintes termos:

Crossan arques that the dominant narrative patterns in a culture form

the hearer’s world of expectation. This myth is in mind whenever any

other story is heard, and the hearer naturally notices what fits and

doesn’t fit between the two stories. Whereas myth establishes world,

parable subverts world. Crossan contends that all of Jesus’ parables

are world-shattering invitations to live without myth. (GOWLER,

2000, s/n).

Conforme Campbell (1997), o monomito constitui o enredo básico da jornada do

herói: separação-iniciação-retorno. Ele corresponde à sequência elementar de Bremond:

virtualização-actualização-realização (1972). Esse modelo, porém, é dissonante da

narrativa parabólica, na qual o elemento final esperado (retorno/realização) não ocorre.

Aqui está uma possibilidade de subversão da qual trata Crossan.

Não seria um grande exagero, em face dessas observações, lançar a hipótese de

que as parábolas jesuânicas, conforme constam nos evangelhos sinóticos, estão atreladas

a uma tradição oral anterior à produção dos textos escritos. A variabilidade dos relatos e

a sua riqueza estrutural sugerem uma fonte (ou fontes) preexistente aos manuscritos.

Porém, paradoxalmente, a parábola rabínica como narrativa retórica possui

material abundante somente a partir do séc. II d.C. A proximidade com as parábolas

jesuânicas é evidente; entretanto, a demonstração de que ela seria a fonte primária não

foi possível, pelo menos até o presente momento (SNOODGRASS, 2008). Do ponto de

vista dos Estudos Literários, essa é ainda uma questão pendente.

7. Considerações Finais

Por meio deste artigo, pudemos verificar que a parábola e o conto popular são

gêneros literários que se entrecruzam (embora sejam distintos). Natureza narrativa,

economia de estilo, tema ético, protagonistas humanos, simbolismo, ficcionalidade,

tradição oral e variabilidade são elementos que podem ser encontrados tanto no folk tale

quanto na parábola. Em verdade, são narrativas de importância fundamental na

construção da cultura de um povo. Suas origens confundem-se com as da sociedade e da

linguagem.

Também observamos que as parábolas podem ter uma estrutura narrativa cuja

complexidade está no mesmo patamar de outros gêneros narrativos. É o que ocorre com

muitas das parábolas jesuânicas, das quais apresentamos alguns exemplos. Assim, os

métodos de estudo desenvolvidos pela Narratologia podem ser utilizados para críticas

literárias dos relatos parabólicos. De fato, esse era o objetivo de Claude Bremond:

propor um modelo descritivo que se aplicasse independentemente do gênero sub

examine.

Apresentamos aqui uma das muitas possibilidades de abordagem literária do

texto bíblico: elas estão longe de serem esgotadas. Ademais, o retorno aos clássicos é

sempre um passo intelectual salutar e oxigenante. Como nos ensina Italo Calvino (2009,

p. 11), “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para

dizer”.

Portanto, parafraseando Heráclito, os Estudos Literários podem ser comparados

a um homem que supunha estar, pela segunda vez, desfrutando das refrescantes

correntezas de um rio; entretanto, “ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas”

(apud PLATÃO, 2009, p. 29).

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