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1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC–SP
Guilherme Tadeu Pontes Birello
Devido processo legal substancial e a função administrativa
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2014
2
Guilherme Tadeu Pontes Birello
Devido processo legal substancial e a função administrativa
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora como
exigência parcial para obtenção do título de MESTRE
em Direito, área de concentração em Direito
Administrativo, pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, sob a orientação do Prof. Doutor
Márcio Cammarosano
São Paulo
2014
3
Banca Examinadora
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
5
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradeço a minha família. Em especial, as duas mulheres
de minha vida: Julia e Leilane. Sem vocês, absolutamente nada disso faria sentido.
Agradeço também ao meu orientador, Márcio Cammarosano, pelos
conselhos, pelos ensinamentos e pelo apoio. Ao professor Pedro Estavam Serrano, pelo
estímulo contínuo, sem o qual jamais teria iniciado e aprofundado a vida acadêmica.
Aos colegas/amigos de trabalho Flávio Crocce Caetano, Mariana Naddeo
Lopes da Cruz, Gabriella Fregni e Renan Beloto, pela compreensão, pelo apoio e pela
paciência. Sem vocês, nada disso seria possível.
Outrossim, agradeço a todos aqueles que de certa forma tenham participado
deste belo processo de vida e de aprendizagem.
6
RESUMO
O presente trabalho teve como escopo a delimitação do conceito jurídico da cláusula do
Devido Processo Legal em seu sentido substancial e sua implicação no âmbito do exercício da
função administrativa. Referida cláusula é um dos institutos mais antigos e afetos ao Estado
de Direito. Em sua forma embrionária, a cláusula do Devido Processo Legal representou uma
das primeiras maneiras de controle do poder despótico. A partir daí, foi o arcabouço para o
surgimento de tantos outros institutos limitadores do Poder Estatal. Seja pelo aspecto
processual formal - ferramentas procedimentais (ampla defesa e contraditório, dever de
motivação das decisões estatais, entre outros), até chegar ao controle de mérito da decisão
(embrionariamente tido como juízo de razoabilidade), este ultimo, conhecido como Devido
Processo Legal Substancial. Ocorre que, esta gama de princípios e postulados tipicamente
atribuídos à cláusula do Devido Processo Legal substancial (razoabilidade, proporcionalidade,
motivação) possui previsão legal expressa e específica no texto normativo, relevando um
esvaziamento de seu conteúdo no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro. Ainda assim, é
obrigação do cientista do direito atribuir sentido e unicidade ao sistema jurídico. A cláusula
do Devido Processo Legal é axiologicamente ligada ao controle do mérito das decisões
estatais. No âmbito do ordenamento jurídico pátrio, tal princípio revela-se como um comando
ao aplicador da norma para que este busque a prolação da melhor decisão. Melhor decisão é
aquela que, em primeiro lugar, observa o dever de promoção do interesse público (portanto,
precedida de um juízo objetivo da “vontade” do comando normativo, e não um juízo arbitrário
subjetivo) e, diante da realidade fática, tenha se mostrado como a mais eficaz. Enquanto
proferida por uma autoridade competente, a decisão será considerada, aprioristicamente, como
a melhor decisão, salvo comprovado que outra solução seja suficientemente mais vantajosa.
Constatou-se que esta afirmação tem plena harmonia com a função administrativa e regime
jurídico-administrativo. O exercício da função administrativa é, antes de mais nada, a
promoção do bem comum, do interesse público. Isto implica em afirmar que o exercício das
prerrogativas (Poder) conferidas à administração são instrumentais e, portanto, só podem ser
exercidos para prossecução do interesse público estabelecido no próprio ordenamento jurídico
(submissão plena ao princípio da legalidade). Neste sentido, não é conferido ao operador do
direito qualquer margem de ação, na qualidade de agente público, em busca de outra
finalidade que não o interesse público. Sendo assim, é função da administração a busca plena
sempre da melhor solução para os casos concretos que lhe são apresentadas. Por meio de
descrição de elementos de Teoria Geral do Direito, buscou-se apresentar formas e
procedimentos capa de que se busque a melhor decisão (vale destacar, noções hermenêuticas
de postulados que conferem uma compreensão unitária e sistêmica do ordenamento jurídico,
relação de princípios e regras, juízo de ponderação e aplicação dos postulados da
proporcionalidade e razoabilidade).
Palavras-chave: cláusula do Devido Processo Legal substancial, função administrativa, ato
administrativo, postulado da proporcionalidade.
7
ABSTRACT
The present study had as its scope, the delimitation of the legal concept of the Due Process of
Law clause, in its substantial sense and its implication in the exercise of the administrative
function. The mentioned clause is one of the oldest and intrinsic institutes of the Rule of Law.
In its incipient form, the Due Process of Law clause represented one of the first methods to
control the despotic power. Thenceforth, it was the skeleton for the rise of many others
institutes that limits the State Power. From the formal procedural aspect – procedural
instruments (full defense and the right to appeal, motivation of the State decisions duty,
among others), up to reaching the merits of the decision control (originally accepted as
reasonableness judgment), this last one known as Substantial Due Process of Law. Occurs
that this range of principles typically assigned to the Substantial Due Process of Law clause
(reasonableness, proportionality, motivation) has express and specific legal provision in the
normative text, demonstrating an emptying of its content in the Brazilian legal order.
Nevertheless, it‟s a duty for the legal scholar to apply sense and unity to the judicial system.
Within the national legal system, the mentioned principle reveals itself as a command to the
law enforcer to seek the best ruling. The best ruling is the one, firstly, that promotes the public
interest duty (therefore, preceded by a direct judgment of the “will” of the normative
command and not by an arbitrary subjective judgment) and, in front of the actual reality, has
been shown as the most effective. As issued by a competent authority, the decision will be
considered, a priori, as the best decision, except if proved that other decision is sufficiently
more favorable. It was noted that this assertion has harmony with the administrative role and
the legal administrative regime. The exercise of the administrative role is, before anything, the
common good promotion, the public interest. This implies in the assertion that the exercise of
the prerogatives (Power) given to the administration are instrumentals and, therefore, may
only be exercised for the achievement of the public interest set forth in its own judicial order
(full submission to the principle of legality). Thereby, it is not granted to the legal scholar any
freedom of action, as a public agent, in seek for another purpose but the public interest. Thus,
the administration role is to always seek for the best solution for the concrete cases that are
presented. Throughout the General Theory of Law elements description, it was sought to
present means and procedures in order to seek the best decision (worth mentioning,
hermeneutical notions of principles that provide an unitary and systemic comprehension of
the judicial order, ratio of principles and rules, weighing judgment and enforcement of the
proportionality and reasonableness principles.
Key-words: Substantial Due Process of Law clause, administrative role, administrative act,
principle of proportionality.
8
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
Capítulo I - NOÇÕES PROPEDÊUTICAS ......................................................................... 14
1. Direito como fenômeno de linguagem .......................................................................... 14
2. Normas jurídicas ........................................................................................................... 18
3. Regras e Princípios........................................................................................................ 20
4. Postulados normativos .................................................................................................. 24
4.1 Postulados normativos hermenêuticos ...................................................................... 25
4.2 Postulados normativos aplicativos ............................................................................ 25
4.2.1 Postulado da proporcionalidade ............................................................................. 26
4.2.2 Adequação ............................................................................................................. 26
4.2.3 Necessidade ........................................................................................................... 26
4.2.4 Proporcionalidade em sentido estrito..................................................................... 27
4.2.5 Postulado da Razoabilidade ................................................................................... 28
5. Constituição e ordenamento jurídico ............................................................................ 29
Capítulo II - A FUNÇÃO ADMINISTRATIVA. ................................................................ 32
1. O caráter instrumental do Estado de Direito ................................................................. 32
2. A tripartição de funções ................................................................................................ 33
3. A função administrativa ................................................................................................ 37
3.1 Regime jurídico administrativo ................................................................................. 38
3.2 Interesse público ........................................................................................................ 40
Capítulo III – A CLÁUSULA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL EM SEU SENTIDO
SUBSTANCIAL ..................................................................................................................... 43
1. Evolução histórica da cláusula do Devido Processo Legal ........................................... 44
1.1 De Law of The Land ao Due Process of Law ............................................................ 46
1.2 Das colônias americanas à Emenda Constitucional XIV .......................................... 49
1.3 A evolução do conceito de Due Process of Law no Estados Unidos da América .... 51
9
2. A cláusula do Devido Processo Legal. .......................................................................... 53
2.1 O conceito científico de processo .............................................................................. 57
2.2 Devido Processo Legal em seu sentido formal .......................................................... 58
2.3 Devido processo legal substancial ............................................................................. 59
2.3.1 Da disparidade doutrinária ..................................................................................... 59
2.3.2 Considerações sobre a posição doutrinária pátria .................................................. 60
2.3.3 Da problemática conceitual em face do ordenamento pátrio ................................. 62
2.3.4 Um problema de segurança jurídica ....................................................................... 65
2.3.5 Cláusula do Devido Processo Legal substancial enquanto controle de conteúdo
decisório66
2.3.6 Cláusula do Devido Processo Legal em sentido substancial e a busca pela melhor
decisão. 66
2.4 A “melhor” decisão .................................................................................................... 69
Capítulo IV – O DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANCIAL E A FUNÇÃO
ADMINISTRATIVA .............................................................................................................. 73
1. Ato Administrativo ........................................................................................................ 73
1.1 Conceito ..................................................................................................................... 73
2. Procedimento de decisão administrativa ....................................................................... 74
2.1 Análise das circunstâncias fáticas .............................................................................. 75
2.2 Não subsunção das circunstâncias fáticas ao suporte fático de uma regra abstrata ... 76
2.3 Subsunção das circunstâncias fática ao suporte fático de uma regra abstrata ........... 76
2.4 Postulado da proporcionalidade e da razoabilidade ................................................... 77
2.4.1 Justiça ..................................................................................................................... 77
3. Discricionariedade e ato vinculado................................................................................ 78
3.1 Conceitos ................................................................................................................... 78
3.2 Discricionariedade e a questão da melhor decisão .................................................... 79
CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 81
10
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 83
11
INTRODUÇÃO
Como é sabido, o artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal da
República de 1988, incorporou a cláusula do Devido Processo Legal (due process of law)
como um princípio jurídico expresso no texto constitucional.
Princípio que a doutrina brasileira tem concebido como um pressuposto
formal do processo, ao qual se sujeitam as esferas administrativas e judiciais. O presente
trabalho, ao seu passo, possui como escopo a análise do princípio do Devido Processo Legal
sob sua vertente substancial e seus reflexos no exercício da função administrativa, ou seja, a
sujeição do mérito administrativo ao referido princípio constitucional.
Esta avaliação implica identificar as peculiaridades da referida cláusula e a
maneira como se conforma quando inserida no ordenamento jurídico pátrio, assim como, as
peculiaridade do exercício da função administrativa.
Sendo assim, no primeiro capítulo I, o presente trabalho preocupa-se em
apontar elementos de Teoria Geral do Direito imprescindíveis a compreensão do tema.
Aborda-se o direito enquanto fenômeno de linguagem, apresentando a diferenciação entre as
duas abordagens do direito em seu plano lógico, distinção linguística entre a ciência do direito
e o direito positivo, bem como o conceito de norma jurídica, esta imprescindível para o estudo
que ora se propõe.
Com amparo nas lições de Ricardo Marcondes Martins, Celso Antônio
Bandeira de Melo, Robert Alexy e Celso Ribeiro Bastos, será apresentada a distinção entre as
diferentes espécies de normas jurídicas, tanto no que aduz às regras e os princípios jurídicos,
quanto aos postulados normativos hermenêuticos e aplicativos, e principalmente formas de
compreensão do sistema jurídico.
O segundo capítulo é destinado ao estudo da função administrativa, tal qual
concebida pelo ordenamento jurídico pátrio. Inicia-se a análise do caráter instrumental do
estado de direito e o impasse entre a tripartição de poderes em “Poder Executivo”, “Poder
Legislativo e “Poder Judicial”– estes, na verdade, um único poder uno e indivisível – e a
12
tripartição das funções “administrativa”, “legislativa” e “judicial”, demonstrando que os
poderes estatais não se confundem com o exercício de suas funções.
Em seguida, passa-se propriamente ao estudo da função administrativa,
enquanto meio de obtenção do interesse público através do estrito cumprimento do princípio
da legalidade, e do regime jurídico administrativo.
Neste capítulo, chega-se a uma observação relevante ao estudo do direito
administrativo no que aduz ao princípio do interesse público e a bipartição doutrinária em
primário e secundário. A aqui forte ênfase a característica de que o interesse público não está
à disposição de um juízo subjetivo e arbitrário do administrador público, mas sim á solução
jurídica adequada a cada caso concreto, cuja resposta está incutida no próprio ordenamento
jurídico.
No terceiro capítulo, com fundamento nas matérias já enfrentadas nos
capítulos anteriores, o presente trabalho passa a estudar a evolução histórica do devido
processo legal, com a transição do Law of the Land ao Due process os Law - cujo marco
ocorreu com a promulgação da Carta Magna em 1215 – e as principais vicissitudes da ótica
inglesa e a norte americana sobre o mesmo instituto.
Verifica-se que por reflexos da subordinação à Cora Inglesa, enquanto
colônia, os Estados Unidos da América caminhou para a hegemonia do Poder Judiciário como
órgão capaz de solucionar de forma justa as questões constitucionais, enquanto os ingleses
conferiam tal poder ao parlamento.
Apresentado o contexto histórico, passa-se a enfrentar o devido processo
legal no ordenamento pátrio, iniciando-se com a apreciação do próprio conteúdo previsto no
texto constitucional, avaliando o significado de cada um dos signos que compõe a expressão
“devido processo legal”, principalmente com vistas a aferir se os dignos “devido” e “legal”
não constituem um pleonasmo.
Solucionada a questão, prossegue-se no estudo das vertentes formal e
substancial da cláusula do Devido Processo Legal. Evidentemente a abordagem do tema é
concentrada nas características específicas do Devido Processo Legal em seu sentido
substancial. Neste capítulo busca uma solução da problemática do conceito do Devido
Processo Legal substancial. O enfoque dado ao Devido Processo Legal substancial enquanto
13
comando normativo que determina a busca da melhor decisão traz considerações também à
este sensível tema da ciência do direito.
Por fim, no ultimo capítulo, passadas algumas notas sobre teoria geral do
direito, sistema jurídico e sua particularidades, função administrativa e a cláusula do Devido
Processo Legal Substancial, há uma proposta de aplicação prática dos conceitos. Administrar
é decidir, decidir é buscar a melhor solução, segundo ordenamento jurídico (interesse público)
ao caso prático. Aqui foi feita a proposição de um procedimento que permite a busca da
melhor decisão (da prolação do ato administrativo da melhor forma possível), além de
enfrentar seus reflexos nas questões afetas a exercício da discricionariedade administrativa.
14
Capítulo I - NOÇÕES PROPEDÊUTICAS
1. Direito como fenômeno de linguagem
Para compreender e interpretar o Direito é necessário ter em mente que este,
antes de tudo, é um fenômeno de linguagem. E, enquanto fenômeno de linguagem, o Direito é
uma das formas de construção do conhecimento e de comunicação do corpo social. Se o
Direito é uma forma de comunicação e, portanto, uma forma de linguagem, alguns
apontamentos a respeito desta temática são importantes a compreensão do sistema jurídico.
A linguagem está intimamente ligada ao processo de aprendizagem do
homem. A forma de desenvolvimento do intelecto humano se dá única e exclusivamente por
meio da linguagem. Daí a máxima de Ludwig Wittgenstein segundo a qual “os limites da
minha linguagem significam o limite do meu mundo” 1
.
A atividade cognoscitiva consiste no apontamento de premissas
identificadas sensorialmente diante da realidade circundante, de modo que a constatação da
veracidade dessas premissas possa ser aferível, servindo, assim, “de sustento para as
conclusões e permitam a extração lógica da verdade sistêmica”2. Portanto, o processo de
conhecimento do ser humano é a ordenação da realidade por meio de linguagem,
“constituindo aquilo que a filosofia chama de racionalidade”3. O processo de racionalização
do conhecimento humano é constituído em três estágios, a saber:
(i) primeiro os objetos são apreendidos na forma de ideias (representadas
linguisticamente por termos – ex: „homem‟); (ii) com as associações das
ideias surgem os juízos (representados pelas proposições – ex: „homem é
mamífero‟); e (iii) da relação entre juízos são construídos os raciocínios
(representados pelos argumentos – ex: „homem é mamífero, mamífero é
animal, então homem é animal‟).
1 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 1994, p. 111.
2 SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Região metropolitana e seu regime constitucional. 1 ed. São Paulo:
Verbatim, 2009, p. 173. 3 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico-semântico. 3.
ed. rev. e ampl. São Paulo : Noeses, 2013, p. 8.
15
Os raciocínios, por sua vez, são atos que advêm de inferências,4 são
silogismos.5 Silogismo, como bem leciona o professor Pedro Estevam Alves Pinto Serrano
“se conforma por uma premissa maior, aplicada a uma menor, gerando uma conclusão”6.
Nesse sentido, duas assertivas podem ser estabelecidas: (i) os processos de conhecimento
precisam ser racionalizados para serem aceitos como válidos e úteis na explicação de nossas
experiências; e (ii) o processo de conhecimento é obtido no campo das proposições.7 “Isto nos
autoriza dizer que todo conhecimento é proposicional.”8
Se, por um lado, o conhecimento é adquirido inicialmente pela troca de
percepções e interações (experiências) do homem com o mundo que o cerca, por outro, é
transmitido por meio de representação de um determinado significado, os símbolos,9
completando assim o ciclo de formação linguagem.
Para a Semiótica,10
a linguagem sempre poderá ser abordada em três dimensões: (i) a sintática
ou lógica, que estuda a relação entre os signos de maneira independente dos seus
4 Segundo Aurora Tomazini de Carvalho, existem dois tipos de inferência: a inferência imediata e a inferência
mediata. Naquela, a conclusão é constituída por uma premissa e pode ocorrer de duas formas, por oposição
(ex.: “todos os homens são racionais, logo nenhum homem é não racional”); ou por conversão (ex.: “todos
advogados são juristas, logo alguns juristas são advogados”). Já esta, a mediata, é a conclusão advinda de duas
premissas e se manifesta por 5 (cinco) formas, são elas: (i) a analogia -comparação entre juízos distintos
apontando-lhes uma identidade comum; (ii) a indução - transmissão do caso particular para o geral,
determinando-se o fenômeno que se aplicada a todos os casos da mesma espécie; (iii) a dedução - a construção
de “uma proposição que é a construção lógica de duas ou mais premissas”; (iv) a dialética – na qual
“constrói-se uma conclusão (síntese) resultante da contraposição de juízos conflitantes denominados tese e
antítese (ex: água é uma necessidade do organismo, mas causa afogamento, logo deve ser inserida com
moderação)” ; (v) a abdução - a adoção de hipóteses explicativas oriundas de duma proposição geral sobre a
qual, posteriormente são descartadas ou confirmadas de acordo com a conclusão (CARVALHO, Aurora
Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico-semântico. 3. ed. rev. e ampl. São
Paulo : Noeses, 2013, p. 11-12). 5 Calçados nas lições de Charles Pierce, Pedro Serrano destaca que são três os tipos de argumento silogísticos:
dedução, indução e abdução. (SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Região metropolitana e seu regime
constitucional. 1 ed. São Paulo: Verbatim, 2009, p. 174) 6 Idem, p. 173.
7 CARVALHO, Aurora Tomazini, op. cit. p.12.
8 Ibidem.
9 GUIBOURG, Ricardo A.; GIGLIANI, ALEJANDRO M.; GUARINONI, RICARDO V. Introducción al
conocimiento científico. Buenos Aires: Eudeba, 2000. Símbolo é a classe específica do signo (signo se dá
quando dois fenômenos se relacionam de forma natural, não deliberada – da relação de causa e efeito). São,
portanto, “signos artificiales, intecionales y más o menos dependientes de alguna convención tácita entre
miembros de un mismo grupo. De símbolos así están hechos los lenguajes” (p. 18). Por sua vez, significação
se refere a “la relacion entre el signo y el fenómeno cuya representación el signo trae a nuestra mente. En un
sentido amplio todo acto humano es, o puede ser, vehículo transmissor de una significación[...] pero lo que
caracteriza al lenguage es su intencionalidad; los signos que lo componen son más o menos deliberados (es
decir, símbolos), y así el lenguagem tiene por objeto la comunicación a través del significado” (p. 18). Vale
destacar que os símbolos por si só não compõem a linguagem. Para formar linguagem, os signos devem estar
preordenados, compostos por uma estrutura mais ou menos orgânica – atribuem uma função como partes da
linguagem. 10
A Semiótica é a ciência que estuda os conhecimentos gerais da linguagem.
16
significados;11
(ii) a semântica, que estuda a relação dos signos e seu objeto (significação);12
e
(iii) a pragmática, que estuda a relação entre os signos com os personagens e, entre os
personagens e os seus destinatários.13
O Direito, enquanto fenômeno da cultura humana, pode ser abordado sob as
mais diversas formas de linguagem.14
Para o presente estudo, a compreensão do Direito enseja
11
Aprofundando, a sintaxe dedica-se ao estudo da forma de combinação dos símbolos de determinada linguagem
e pode ser divida em três classes de elementos: a) conjunto de signos primitivos, que não precisam ser
descritos por outras palavras da mesma linguagem; b) regra de formação, que é a combinação das expressões
de acordo com a regra; e c) regras de derivação, em que se substitui a palavra por outras, mantendo-se o
mesmo significado. Na linguagem formal (aritmética), por exemplo, é apenas possível a análise sintática, não
subsistindo a interpretação (onde há atribuição de valor), ou seja, é vedada a semântica e a pragmática.
Assim, a sintaxe pode destinar-se tanto à análise dos significados primitivos, quanto às regras de formação (nas
linguagens naturais), “la sintaxis descriptiva o lingüística examina la estructura de los lenguajes, em forma
especial (con referência a un idioma determinado) o geral. La sintaxis pura o lógica estudia, en cambio, la
estructura de cualquier lenguaje (incluídos, e incluso côn preferência, los formales), y se halla más próxima a
la lógica y a la filosofía que a la lingüística”. GUIBOURG, Ricardo A.; GIGLIANI, ALEJANDRO M.;
GUARINONI, RICARDO V. Introducción al conocimiento científico. Buenos Aires: Eudeba, 2000, p. 30-33. 12
Conforme conceitua Guibourg, “a semántica es el estudio de los signos en relación con los objetos
designados, o, por decirlo de un modo más claro, es el estudio del significado.” Algumas considerações que o
Autor faz a respeito do tema são importantes ao presente trabalho. Quando aprendemos o nome de alguma
coisa, não aprendemos propriamente algo sobre a coisa. Na verdade, o que se aprendeu é o costume linguístico
de certo povo sobre o nome que corresponde à determinada coisa (não se pode confundir a realidade física com
a linguística). E, por outro lado, também modificamos as nominações destas coisas – assim, não existem
normas verdadeiras sobre as coisas, e sim nomes comumente aceitáveis (“libertad de estipulación”). Esta
liberdade de nomeação tem um risco (ou limite prático): dificultar nossos interlocutores em razão da dinâmica
da regra do uso comum, pois, “cuanto menor se ala aceptación común de esse significado em el médio em que
nos movemos, tanto mayor será la dificuldad de comunicación y tanto más necesaria alguna aclaración sobre
nuestro lenguaje personal”. Portanto, ainda que exista esta liberdade de nomeação, é de se reconhecer que
existe uma proximidade da linguagem, tendo em vista que “existe uma diferenciación natural entre los objetos
que sirven de base necesaria a cualquier linguaje”. É proveitosa a seguinte passagem “El lenguaje es la
herramienta de la ciencia, y, em no pocos casos (linguística, literatura, derecho, informática) integra también,
total o parcialmente, su objeto. Es provechoso, pues, que tomemos conciencia de las limitaciones del
instrumento que usamos, de modo que sepamos manejarlo eficazmente y, sobre todo, que no nos dejemos
manejar por él”( GUIBOURG, Ricardo A.; GIGLIANI, ALEJANDRO M.; GUARINONI, RICARDO V.
Introducción al conocimiento científico. Buenos Aires: Eudeba, 2000, p. 35-53). 13
A despeito da pragmática, as lições de Paulo de Barros Carvalho são pertinentes. Neste sentido, o doutrinador
bem destaca que o processo da decodificação da mensagem em grande parte está no plano pragmático,
transcrevendo Luiz Alberto Warat expõe: “analizar la problemática funcional del linguaje es en certo modo
efectuar un planeamiento de nivel pragmático, para cuya elucidación debemos incursionar indefectiblemente
em torno a las condiciones subjetivas de su uso por parte de um sujeito determinado”. (WARAT, Luiz Alberto.
Semiótica y derecho. Buenos Aires: Eikón, 1972, p. 80) 14
A palavras (símbolo) “direito” tem inúmeros significados, o que, muitas vezes dificulta sua compreensão,
Tercio Sampaio Ferraz Jr., bem descreve esta problemática. Com efeito, o uso comum da palavra direito traz
amplitude de significação nas três dimensões de linguagem: i) é sintaticamente “impreciso, pois pode ser
conectado com verbos (meus direitos não valem), com substantivos (o direito é uma ciência), com adjetivos
(este direito é injusto), podendo ele próprio ser usado como substantivo (o direito brasileiro prevê...), como
advérbio (fulano não agiu direito), como adjetivo (não se trata de um homem direito); ii) é, em termos
semânticos, “denotativamente vago”, pois possui muitos significados e “conotativamente ambíguo”, vez que “é
impossível enunciar uniformemente as propriedades que devem estar presentes em todos os casos em que a
palavra se usa” e; iii) pragmaticamente apresenta muita carga emotiva, dificultando seu emprego em uma
medida neutra (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 6. ed. 3. reimpr. São
Paulo: Atlas, 2011, p. 15 -16).
Aliás, não é possível admitir que direito possua uma significação uníssona nem mesmo quando empregado sob
uma mesma categoria - direito positivo, por exemplo, pois mesmo nesta hipótese haverá derivações, o direito
positivo tem significações distintas para Kelsen, para Hart ou Bobbio. São precisas as lições de Paulo de Barros
17
abordagem no plano lógico sob duas formas de linguagem: a ciência do direito e o direito
positivo. As lições trazidas por Aurora Tomazini de Carvalho bem destacam a distinção
funcional entre direito positivo e ciência do direito:
(i) O direito positivo é um corpo de linguagem com função prescritiva, que
se dirige ao campo das condutas intersubjetivas com a finalidade de alterá-
las. Configura-se como linguagem objeto em ralação à linguagem social. É
materializado numa linguagem do tipo técnica, que se assenta no discurso
natural, mas utiliza-se de termos próprios do discurso científico. É operado
pela Lógica Deôntica, o que significa dizer que as proposições estruturam-se
sob fórmula „H → C‟, onde a consequência prescrita „C‟ aparece modalizada
com os valores obrigatório (O), proibido (V) e permitido (P). Suas valências
são validade e não validade, o que não impede a existência de contradições
entre seus termos.15
(ii) A Ciência do Direito é um corpo de linguagem com função descritiva,
que tem como objeto o direito positivo, caracterizando-se como
metalinguagem em relação a ele. É objetivada num discurso científico, onde
os termos são precisamente colocados. Sintaticamente é operada pela Lógica
Alética, o que significa dizer que suas proposições manifestam-se sob a
fórmula „S é P‟, onde predicado „P‟ aparece modalizado com valores
necessário (N) e possível (M). Suas valências são verdade e falsidade e seu
discurso não admite existência de contradições entre os termos.16
Carvalho: “eis que a pluralidade métodos científicos instrumentalizando a aproximação do exegeta ao próprio
objeto cultural que é o sistema jurídico, decididamente, demonstra a complexidade da ontologia do direito.
Entre a camada linguística do chamado direito positivo e a realidade social, tomada na proporção das condutas
interpessoais, há uma multiplicidade de modos de aproximação, um número crescente de enfoques temáticos,
representando cada qual uma forma de corte metodológico com que o ser cognoscente trava contato com o
objeto do conhecimento”. (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 4. ed. São
Paulo: Noeses, 2011, p. 6).
André Franco Montoro bem discriminou 05 (cinco) significados distintos relevantes que podem ser conferidos
ao direito, como sinônimo de ciência, como sinônimo de justo, como sinônimo de norma ou ordenamento
jurídico, como sinônimo de direito subjetivo ou como sinônimo de fato social (MONTORO, André Franco.
Introdução à ciência do direito. 25. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 26). 15
Kelsen não admite a existência de contradição no Direito. Esta afirmação de Aurora advém da crítica de
Lourival Vilanova a Kelsen. Segundo Vilanova, “Pondera Kelsen que não podemos descrever uma ordem
normativa afirmando: A deve-ser e A dever-não-ser como normas simultaneamente válidas. Veem-se, então,
dois sistemas, o sistema S‟, do Direito Positivo, e o Sistema S‟‟, da Ciência do Direito. Suponhamos que S‟,
contenha as normas N e não-N (contraditórias). Colocamos no nível S‟‟, podemos tomar o dado-de-fato,
constitucionalmente contraditório, e descrevê-lo em proposições jurídicas, que não se contradizem por
descrever a existência de normas contraditórias do sistema-objeto. S‟‟, em relação a S‟ sistema-objeto, é um
sobre-sistema, o metassistema material de linguagem que tem por tema de conhecimento a linguagem em que
se expressa o Direito positivo. Assim, é inexato Kelsen dizer que a lei de não contradição (e de terceiro
excluído) é aplicável diretamente às proposições jurídicas, e indiretamente às normas jurídicas [...] as
proposições jurídicas não se contradizem por descreverem a existência de normas contraditórias”.
(VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, p. 281-
282). 16
CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico-semântico. 3.
ed. rev. e ampl. São Paulo : Noeses, 2013, p. 121.
18
Não seria demais destacar a lição de Lourival Vilanova no sentido de que o
Direito (como experiência e linguagem prescritiva) e a Ciência do Direito (como experiência
dogmática) “são dois sistemas: um, cognoscitivo; outro, prescritivo. Porém, o sistema de
Ciência-do-Direito é incorporado no próprio Direito, na medida que passa a ser sua fonte
material, resultando em um metassistema.17
Portanto, Ciência do Direito e Direito Positivo são duas faces de uma
mesma moeda, não obstante exerçam funções sintáticas distintas, ambas são imprescindíveis
para a compreensão e aplicação dos sistemas jurídicos, na forma que se passará a demonstrar.
2. Normas jurídicas
Se precisar o signo da palavra “direito” é uma das tarefas mais árduas do
exegético do direito, precisar o signo norma jurídica não é menos desafiador. Um objeto pode
ser abordado sob distintos cortes epistemológicos, podendo todos os resultados serem válidos.
Do mesmo modo, o objeto norma jurídica possui infindáveis enfrentamentos
doutrinários/científicos com os mais diversos apontamentos. Não é o objeto deste estudo
esgotar o tema. Porém, alguns pontos precisam ser delimitados.
Como visto no tópico supra, a linguagem normativa exerce uma função
prescritiva, estabelece o comando de condutas (desejáveis ou indesejáveis) ao corpo social,
em outras palavras, atribui um comando a um destinatário. Toda norma de comportamento
responde ao esquema lógico “H → C”, em que H é o antecedente (descrição abstrata de um
fenômeno) lidado por uma relação de imputação a C, o consequente (consequência pela ocorrência
de H)18
– “se ocorrer o antecedente, então deve se dar a consequência. A norma jurídica, na
qualidade de fenômeno linguístico comunicacional, possui o mesmo padrão, porém, detem
outras características que a distinguem das demais normas, sendo função do cientista do
direito identificar as características exclusivas que permitam a delimitação de seu conteúdo:
17
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, p. 159. 18
A afirmação de que toda norma de comportamento possui a fórmula lógica „H → C‟ é de MARTINS, Ricardo
Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo : Malheiros - Temas de Direito Administrativo
19, p. 26.
19
A ciência jurídica procura apreender o seu objeto “juridicamente”, isto é, do
ponto de vista do Direito. Apreender algo juridicamente não pode, porém,
significar senão apreender algo como Direito, o que quer dizer: como norma
jurídica ou conteúdo de norma jurídica, como determinado através de uma
norma jurídica.19
De fato, nem toda linguagem normativa pode ser classificada como jurídica.
Em primeiro lugar, normas jurídicas, diferentemente das demais normas, devem
necessariamente pertencer a uma “determinada ordem jurídica, e pertence a uma
determinada ordem jurídica quando a sua validade se funda na norma fundamental desta
ordem”.20
Por pertencerem a um determinado sistema jurídico legitimado, as normas jurídicas
autorizam o exercício do uso da força exclusiva do Estado para que, diante da ocorrência do
antecedente da norma, se execute o seu consequente. É o que Goffredo Telles Jr. classifica
como “imperativo autorizante”.2122
Ou ainda, nas palavras de Noberto Bobbio são norma
jurídicas aquelas “cuja execução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada”.23
Note-se que o consequente da norma jurídica não representa de imediato a
aplicação de uma sanção, mas apenas a possibilidade do uso da força estatal sancionatória:
trata-se do caráter coercitivo da norma jurídica, ou seja, o impacto no âmbito psicológico nos
membros do corpo social que induzem ao cumprimento da norma, face a possibilidade de
coação ou sanção. Portanto, para que uma norma seja jurídica, basta ser possível acionar o
poder estatal a fim de que se execute o seu consequente diante da ocorrência do antecedente
do mundo fenomênico.
19
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 79. 20
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 33. 21
TELLES Jr., Goffredo. Direito Quântico. 6ª ed. São Paulo, Max Limonad, 1985. 22
MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo : Malheiros - Temas de
Direito Administrativo 19, p. 26, ao lecionar sobre a questão destaca que imperativo autorizante é a
característica que distingue a norma jurídica das normas morais ou religiosas, pois ela “autoriza a obtenção de
uma tutela jurisdicional”. 23
BOBBIO, Noberto. Teoria geral do direito; tradução Denise Agostinetti; revisão da tradução Silvana Cobucci
Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 193.
20
3. Regras e Princípios
Uma classificação importante de norma jurídica para compreensão do
fenômeno Direito é a distinção entre regras e princípios jurídicos.24
Ultimamente a discussão
sobre esta classificação tem ganhado força em virtude de novos conceitos apresentados por
escolas pós-positivistas.25
Com a maestria que lhe é peculiar, Ricardo Marcondes Martins26
bem relata
a evolução do referido tema. Para tanto, adota o critério histórico-científico de classificação
entre as correntes que versaram sobre a questão dos princípios. O autor aponta a existência de
três grandes fases que tratam sobre o conceito de princípio jurídico.27
24
Segundo Jean Rivero, um marco importante para o desenvolvimento da teoria dos princípios foi o Conselho de
Estado Francês (conforme Ricardo Marcondes Martins, o berço do Direito Administrativo). Este órgão
jurisdicional possui competência para tratar das matérias vinculadas às questões de Estado, ou seja, das
matérias atualmente e pelo direito administrativo. Ocorre que, diferentemente do direito civil (cujos registros
datam desde o direito romano), o direito administrativo não tinha instituições jurídicas consolidadas, tampouco
o direito posto tinha evoluído o suficiente para regular as questões ali tratadas. Nesse sentido, a jurisprudência
do Conselho Francês foi calçada em valores que até então não vigoravam (ao menos expressamente) no
ordenamento vigente, de modo que o Tribunal possuía um amplíssimo campo de liberdade para suas decisões.
Esta vasta jurisprudência, inicialmente esparsa, foi a origem das normas hoje conhecidas como princípios.
Evidentemente que no início não havia a concepção deste tipo de norma como há atualmente, nem mesmo e
terminologia “princípio” era adotada (isso foi ocorrer apenas em 1942, sendo o Tribunal criado em 1799 pela
Constituição Francesa), mas, dali saíram os primeiros traços do instituto que, até hoje, é uma obra inacabada.
(MARTINS, Ricardo Marcondes. Arbitragem e administração pública: contribuição para o sepultamento do
tema. Interesse Público. Belo Horizonte, v. 64, p. 85-104, nov-dez, 2010). (RIVERO, Jean. Los princípios
generales del derecho en el derecho administrativo francés contemporáneo. Revista de Administración
Pública. Madri, v. 6, sept.-dic., 1951, p.289 a 299). Nesse sentido também são as lições de Celso Antoônio
Bandeira de Mello (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed. São
Paulo: Malheiros, 2013, p. 38-42). 25
Esta nomenclatura (ou classificação) é de Luís Roberto Barroso. Segundo leciona o Autor, a proposta do
positivismo jurídico em separar radicalmente a norma jurídica de deveres éticos não teve condições de atender
as expectativas na complexidade da sociedade moderna a partir da segunda metade do século XX. Sem que
fosse excluído concepções estruturais introduzidas pelo positivismo jurídico, passou-se a buscar uma
reaproximação entre ética e Direito, por meio da materialização de princípios constitucionais. (BARROSO,
Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional
transformada. 7. ed. ver. – São Paulo: Saraiva, 2009). Vale destacar que esta classificação não é precisa, seja
pela imprecisão da nomenclatura (pós-positivismo remete a uma suposta extinção do positivismo, o que não é
verdade, como dito, muitos conceitos e institutos positivistas foram incorporados por esta nova corrente) e
também uma imprecisão material, tendo em vista que são significativamente distintas as correntes que
surgiram na metade do século XX que defenderam a aproximação entre direito e ética, tornando-se imprecisa a
unificação das correntes em um só grupo. Porém, como esta nomenclatura tem sido a mais usual, foi mantida,
até mesmo por que não se tem conhecimento de uma classificação mais precisa. Outras nomenclaturas também
poderiam ser destacadas, tais quais “neoconstitucionalista” ou mesmo “discursivistas”, porém, a despeito
destas nomenclaturas, as críticas conceituais permaneceriam as mesmas. 26
MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros - Temas de
Direito Administrativo 19, p. 29-31. 27
Para embasar o quanto exposto, basta a esclarecedora lição de Virgílio Afonso da Silva: “Em geral,
classificações – desde que metodologicamente sólidas – dificilmente podem ser julgadas com base em um
maniqueísmo bom/ruim” (SILVA, Virgilio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e
eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 44). Ao se turno, Celso Antônio Bandeira de Mello, em nota de rodapé
(ob. Cit. Pág. 53-54), bem destacou a questão: “A partir da década de 70 começou a vulgarizar-se uma
21
A primeira fase é encabeçada por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello e Ruy
Cirne Lima,28
que conceituam os princípios como “fundamentos de uma dada disciplina
jurídica, seus aspectos mais importantes”. 29
Já a segunda fase, representada por Marcos Diniz de Santi e Celso Antônio
Bandeira de Mello, os princípios integram o ordenamento jurídico (portanto são normas
jurídicas) e possuem carga valorativa, de maneira que atuam como vetores informadores de
todo o sistema, ainda que não possuam estrutura lógica prescritiva implicacional da norma
jurídica.30
Vale reproduzir a definição de Celso Antônio Bandeira de Mello:31
Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema,
verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre
diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a
exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e
a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá
sentido harmônico‟. Eis porque „violar um princípio é muito mais grave que
transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas
a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de
comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade,
conforme o escalão do princípio violado, por que representa insurgência
contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia
irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.32
acepção de princípio baseada nas formulações de Alexy e Dworkin (que de resto não são idênticas, mas têm
grandes pontos de similitude). Ocorre que estes eminentes juristas não expropriaram (até mesmo por
impossível) o direito ao uso de tal expressão, de molde a tornar admissível apenas a acepção que lhe
emprestam. Então, é possível que algo seja qualificado como princípio, de acordo com uma dada acepção de
princípio, descoincidente com a que lhe irrogaram estes mencionados autores.” (BANDEIRA DE MELLO,
Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 54). 28
Este trecho da obra do referido autor conforma a proposição de Ricardo Marcondes Martins: “Forma-se
Direito Administrativo do acúmulo de regras de direito sôbre o princípio da utilidade pública. Logo, porém, é
suplantado o princípio básico pelas normas jurídicas que já sôbre êle se amontoam, relativas ao Estado, em
cuja atividade encontra a utilidade pública, por excelência, o veículo de sua realização. Deixa ver o modo de
formação do direito especial que a especialidade não lhe tira autonomia”. (CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de
direito administrativo brasileiro. 3.ed. São Paulo: José Bushatsky, 1954, p. 17.) 29
MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros Editores –
Temas de Direito Administrativo 19, p. 549. p.29-31. Referência bibliográfica sugerida pelo autor:
BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo, vol. I, 3ª Ed., 2007;
Ruy Cirne Lima, Princípio de Direito Administrativo Brasileiro, 7ª Ed., 2007. 30
SANTI, Marcos Diniz. Lançamento tributário. 2ª Ed., 2ª tir., p. 94: “Os princípios jurídicos não são normas
jurídicas naquele estrito sentido apresentado: proposições prescritivas que apresentam a forma implicacional
hipótese-tese. Princípios são fragmentos normativos, unidades de significação de enunciados prescritivos, que
integram o arcabouço de normas jurídicas, alterando, constituindo (positiva e negativamente) e delineando a
estrutura dual da regra, seja pelo seu antecedente, seja pelo seu consequente normativo” (MARTINS, Ricardo
Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros - Temas de Direito Administrativo
19, p. 28). 31
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros,
2013, p. 54. 32
MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros - Temas de
Direito Administrativo 19, p. 28.
22
A terceira fase tem como ponto de partida a teoria de Robert Alexy, a qual é
estruturada na diferença entre regras e princípios.33
De acordo com o próprio Alexy, as regras
são normas que não possuem qualquer grau de flexibilidade, ou seja, tratam do típico caso de
subsunção: ocorrido o fato, aplica-se a norma, não ocorrido o fato, não há consequente. Já
princípios são normas cujo comando representa um mandamento de otimização, ou seja, são
normas flexíveis, que determinam o cumprimento de um dever da melhor maneira possível,
relevadas as condições fáticas.34
A escolha de uma solução jurídica quando não subsumida a uma regra,
sempre ensejará a incidência de mais de um princípio, o que, por sua vez, exige a realização
de um procedimento de ponderação.35
Ponderar significa identificar (e não escolher, escolher
arbitrariamente) dentre quais dos valores/princípios colidentes sofrerá maior incidência ou
maior restrição diante dos fatos concretos.
Tanto regra quanto princípio são normas jurídicas. E, enquanto normas
obedecem a formalização “H→C”. Esta afirmação não sofre dificuldades com relação às
regras (cujo processo de imputação é tipicamente subsumido) porém, quanto à estrutura
lógica dos princípios é necessário tecer algumas explicações.
Todo princípio está carregado de um valor axiológico positivado. Por ser
positivado encontra estrutura deôntica, portanto, seu comando normativo segue a seguinte
proposição: deve ser que um determinado princípio seja cumprido da melhor maneira possível
em razão das circunstâncias fáticas.36
33
Ricardo Marcondes Martins ressalta, conforme expressão de Paulo de Barros Carvalho (Direito Tributário –
Fundamentos Jurídicos da Indiência, 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 17) que na concepção da terceira fase,
tanto norma quanto princípios “são normas jurídicas, e, nesse sentido, passíveis de aplicação direta no mundo
fenomênico, consistindo ambos em manifestações irredutíveis do deôntico”. (MARTINS, Ricardo Marcondes.
Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros - Temas de Direito Administrativo 19, p. 28). 34
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. 2 ed. rev. Porto Alegre: Livraria do advogado, 288, p. 64-65. 35
O juízo de ponderação se dá pela aplicação da regra de colisão entre princípios. Virgilio Afonso da Silva
descreve referida regra da seguinte maneira: “„(P1 P P2) C‟. Isso significa, pura e simplesmente, que nos casos
de colisão entre dois princípios – P1 e P2 – o princípio P1 prevalece sobre o princípio P2 apenas nas
condições daquele caso C. É possível – provável -, contudo, que em uma situação C‟ seja o princípio P2 que
prevaleça sobre o princípio P1, ou seja: (P2 P P1) C‟. A despeito de se tratar, nos dois casos, dos mesmos
princípios não é possível formular, em abstrato, uma relação de precedência entre eles. Essa relação é sempre
condicionada à situação concreta”. (SILVA, Virgilio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial,
restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 50.) 36
MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros - Temas de
Direito Administrativo 19, p. 173
23
Ao contrário das regras, princípios não determinam o meio, mas sim a
finalidade a ser atingida. Deste modo, princípios são normas de estrutura,37
ou seja, acarretam
a prolação de outra regra jurídica. Isto ocorre de duas formas distintas: i) incidem sobre a
edição de uma norma – em que o antecedente é a edição de uma regra e o consequente é o
dever da regra estar em conformidade com o sopesamento dos princípios colidentes e; ii)
incidem diante de um fato não regulamentado – assim, a solução do caso concreto acarretará,
diante do sopesamento de princípios, a edição de uma regra.38
Este caráter estrutural dos princípios são imprescindíveis à compreensão do
ordenamento, pois, “se uma regra sempre é a concretização de um valor, um conflito entre
regras é, sempre, um conflito entre princípios”.39
Pode ser que uma regra X, a priori, aplicável
a determinados casos, seja afastada por um questão de princípios. Pode ser que, diante da
peculiaridade do caso concreto o resultado do sopesamento entre os princípios colidentes
acarretem a prolação de uma nova regra Y. Sendo assim, “nem sempre a regra exige um
cumprimento pleno”,40
podendo ser afastada diante das circunstância do fato concreto exige a
incidência maior de um princípio que tenha sido suprimido quando da edição da regra geral
pré-existente.
Vale ressaltar que esta concepção a respeito do conceito de princípio
(terceira fase) não substitui o quanto desenvolvido pelas escolas anteriores. Na verdade, o que
se observa é a presença de abordagens distintas do objeto de estudo que ainda levam a mesma
rotulagem (signo).41
Vale a máxima, não existe melhor ou pior classificação, basta que os
critérios científicos distintivos sejam rigorosos e úteis. No caso todos conceitos
37
Normas de Estrutura advém da classificação de dicotômica de normas de comportamento – que versam sobre
um conduta específica e normas de estrutura – que versam sobre a edição de novos normas. 38
MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros - Temas de
Direito Administrativo 19, p. 31. 39
MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros - Temas de
Direito Administrativo 19, p. 31 40
MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros - Temas de
Direito Administrativo 19, p. 31 41
Esta preocupação foi bem alinhavada por Celso Antônio Bandeira de Mello: “é obvio, pois, que seria
gravíssimo erro pretender avaliar o objeto destarte identificado como princípio, para atribuir-lhe características
distintas das que lhe foram irrogadas por que dele se serviu, valendo-se de critério que estivesse assentado em
outra acepção de princípio, qual a que lhe conferem Alexy e Dworkin. Isto implicaria falar de „A‟, supondo-
se referido a „B‟. Quem cometer tal erro em obra teórica – e isto tem ocorrido ultimamente – sobre estar
incurso em séria impropriedade, induzirá terceiros incautos a incidirem no mesmo deplorável equívoco”.
(BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros,
2013, p. 54)
24
principiológicos apresentados permanecem revestidos de utilidade para a compreensão e
aplicação do sistema jurídico, são complementares entre si e não se excluem.
4. Postulados normativos
Além da distinção normativa entre princípios e regras, para a compreensão
do ordenamento jurídico é necessário fazer apontamento a um segundo tipo de norma
conhecida como postulado normativo.
Postulados normativos não são normas jurídicas, na verdade, são condições
essenciais que devem ser observadas para a interpretação e para a compreensão de um
determinado objeto sob estudo.42
No âmbito jurídico, o primeiro apontamento sobre este tipo
de norma foi de Celso Ribeiro Bastos,43
segundo o qual, postulado:
“é um comando, uma ordem mesma, dirigida a todo aquele que pretende
exercer a atividade interpretativa. Os postulados precedem à própria
interpretação, e se se quiser, à própria Constituição. Não se poderá
interpretar devidamente, sem se atentar para estes elementos. Trata-se de
condição para a interpretação”
Portanto, postulados são pressupostos hermenêuticos ao estudo de
determinado objeto, são meta-regras,44
ou na classificação de Humberto Ávila,45
são normas
de segundo grau (regra que versa sobre a constituição de uma outra regra). Sob o aspecto
jurídico, os postulados normativos independem de previsão legal e não podem ser afastados
por uma norma jurídica, pois são pressupostos à compreensão do próprio ordenamento
jurídico.
42
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15. ed. rev. atual.
e ampl. São Paulo: Malheiros. p. 164. 43
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional, São Paulo: Celso Bastos Editor, 1997,
p.95. Esta observação a despeito do pioneirismos do renomado jurista é de Ricardo Marcondes Martins, Efeitos
dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros - Temas de Direito Administrativo 19, p. 167. 44
Virgílio Afonso da Silva discorda da terminologia adotada por Humberto Ávila. Não obstante admita que os
postulados possuem estruturas diferentes da regras de condutas, posiciona-se no sentido de que ainda assim,
postulados possuem estruturas de regras. (Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, p.
169) 45
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15. ed. rev. atual.
e ampl. São Paulo: Malheiros. p. 164.
25
4.1 Postulados normativos hermenêuticos
Os postulados normativos distinguem-se entre postulados hermenêuticos e
postulados normativos aplicativos. Ambos visam a adoção de instrumentos para interpretação
e a aplicação do sistema jurídico. Postulados normativos aplicativos são destinados a soluções
na aplicação imediata casuística do direito, ou seja, já durante a execução da norma; enquanto
postulados hermenêuticos, via de regra, destinam-se a interpretação e a compreensão abstrata
do ordenamento jurídico.46
No âmbito dos postulados hermenêuticos a doutrina é significativamente
farta e abrangente. Para efeito deste estudo vale ressaltar que são sempre invocados
postulados que conferem uma concepção sistêmica e orgânica ao ordenamento jurídico, tais
quais, postulado da unidade do ordenamento jurídico,47
da supremacia da constituição e da
justiça.48
4.2 Postulados normativos aplicativos
No âmbito dos postulados normativos aplicativos, dois postulados são de
significativa relevância para o presente estudo: os postulados da proporcionalidade e o da
razoabilidade.49
Os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade têm como função
auxiliar o aplicador do direito diante de uma solução de ponderação entre princípios, aferindo
se a medida encontrada pelo operador do direito a solução de um determinado caso prático
observou, da melhor maneira possível, os valores jurídicos (princípios) incidentes.
46
Esta classificação foi adotada de Humberto Ávila. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos
princípios jurídicos. 15. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros. p. 167. 47
Humberto Ávila. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15. ed. rev. atual. e
ampl. São Paulo Malheiros. 48
Ricardo Marcondes Martins, Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros - Temas de
Direito Administrativo 19, p. 167. 49
É usual que encontremos na doutrina o tratamento dos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade
como se “princípios” fossem. Na verdade, conforme ressalta Ricardo Marcondes Martins, a classificação de
tais postulados como se princípios fossem é uma herança da fase do conceito de princípios, segundo a qual os
aproximava do conceito de fundamento de uma dada disciplina. Porém, a concepção que é empregada a estes
conceitos na forma da terceira fase principiológica já não admite qualquer aproximação conceitual, restando
apenas o rótulo por uma questão de tradição.
26
4.2.1 Postulado da proporcionalidade
O postulado da proporcionalidade consiste em um procedimento de três
fases (na qual está compreendido o postulado da razoabilidade), são eles: adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Vale destacar que o procedimento
consiste na verificação sequencial das fases, na ordem supra suscitada, passando-se a
verificação da próxima fase tão somente se for satisfeita a fase sob exame.50
4.2.2 Adequação
Todo princípio jurídico objetiva o atingimento de uma finalidade. Sendo
assim, o postulado da adequação consiste em avaliar se a medida selecionada é, em primeiro
lugar, legitimamente constitucional e, em segundo lugar, fomente a realização do objetivo
perseguido. Se o meio selecionado não for constitucionalmente legítimo ou não satisfazer a
finalidade almejada, a medida é desproporcional. Do contrário, preenchido o requisito de
adequação, passa-se análise do próximo subpostulado, qual seja, necessidade.51
4.2.3 Necessidade
O exame da necessidade é um “teste comparativo”.52
Ou seja, busca
comparar a medida selecionada com outras medidas igualmente adequadas, e a fim de
constatar se a escolha do operador do direito é de fato a que possui maior eficácia. Sempre
50
Ricardo Marcondes Martins, Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros - Temas de
Direito Administrativo 19, p. 167 51
Há um questionamento na doutrina a respeito da necessidade do medida adotada cumpra totalmente
determinado objetivo (MENDES, Gilmar Ferreira, O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal: nova leituras‟. Repertório IOB de Jurisprudência: Tributário, Constitucional e
Administrativo 14 (2000), p. 371. Virgilio Afonso da Silva rebate este posicionamento alegando para tanto que
isto seria contraproducente. (Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, p. 170). Na
verdade, nos parece que a discussão a respeito do cumprimento total de um determinado objetivo não é adstrito
a exame da fase adequação e sim da fase da necessidade. O exame de necessidade consiste na aferição da
existência de uma outra medida que satisfação igualmente determinado objetivo sem que acarrete tanto
sacrifício dos demais princípios incidentes. Ora, se há outra medida mais eficaz a medida sob análise é
desproporcional ou, se não há outra medida mais eficaz, não há como deixar de dar cumprimento ao princípio
(que determina seu cumprimento da melhor maneira possível) ainda que parcialmente, por não existir outra
medida melhor. Parece, portanto, que referida discussão é inócua no campo da adequação, satisfazendo no
campo da necessidade. 52
Virgilio Afonso da Silva. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, p. 171.
27
que uma medida é selecionada, busca a promoção de uma finalidade. Esta finalidade é
oriunda da prevalência de um princípio em detrimento dos demais princípios incidentes no
caso concreto. É mais eficaz a medida que melhor atinja a finalidade com menor sacrifício
dos demais princípios atingidos ou tenha a mesma eficácia a despeito do cumprimento de uma
finalidade, mas, sacrifique menos os princípios incidentes. A necessidade visa, portanto,
selecionar a medida que potencialize a finalidade almejada ou uma alternativa que seja menos
gravosa em termos de sacrifício de princípios.
4.2.4 Proporcionalidade em sentido estrito
Por fim, superado a aferição da adequação e da necessidade da medida
selecionada, passa-se ao exame de sua proporcionalidade em sentido estrito. Esta regra
objetiva avaliar se os níveis de valorização de um princípio e sacrifício de outros justificam a
medida apontada.
Este exame foi bem alinhavado por Robert Alexy em sua “Lei da
Ponderação”. Segundo esta Lei “quanto maior é o grau de não-satisfação ou de afetação de
um princípio, tanto maior tem que ser a importância e satisfação do outro”.53
Ora, o
sacrifício de um princípio de ser justificado, ou proporcional, à medida da promoção de outro.
Há de se ressaltar que a Lei de Ponderação ou o próprio subpostulado da
proporcionalidade não afasta, por si só, a apreciação subjetiva a despeito do juízo da
correlação de pertinência entre a supressão de um princípio e a satisfação de outro. É
inclusive por esta razão que parte da doutrina entende que o postulado da proporcionalidade
deva se restringir ao exame de adequação e de necessidade, os quais, em tese, teriam juízos
objetivos e, portanto, passíveis de controle;54
duas objeções são críveis a este entendimento. A
primeira delas é consubstancia-se no fato de que tanto o exame de adequação quanto o exame
de necessidade comportam certo nível de subjetividade. Ainda que possam parecer objetivo
na teoria, na prática comparar a adequação e necessidade de determinadas soluções jurídicas
de densa complexidade pode representar um verdadeiro desafio. A segunda objeção
53
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. 2 ed. rev. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2008. 54
MARTINS, Leonardo. Proporcionalidade como critério do controle de constitucionalidade. Cadernos de
Direito Unimep 3(2003): 16-45.
28
concentra-se no sentido de que, ainda que a proporcionalidade em sentido estrito possa
representar ainda um juízo de subjetividade, sua fórmula reduz satisfatoriamente o âmbito de
alcance do juízo subjetivo, de modo que se ampliou a possibilidade de sua fiscalização e
controle do mérito das decisões estatais – e isto é uma grande conquista do Direito que propõe
como uma solução ao arbítrio.
Ademais, o juízo de proporcionalidade em sentido estrito não é um
postulado satisfativo ao exame/controle das decisões estatais quando da aplicação da norma
ao caso concreto. Existem tantos outros postulados que, na mesma maneira, instrumentalizam
o controle objetivo das decisões estatais, entre eles, cite-se o postulado da razoabilidade.
4.2.5 Postulado da Razoabilidade
Superado o exame de proporcionalidade em sentido estrito e, portanto,
constatada que a medida selecionada pelo operador do direito é legítima, adequada, necessária
e proporcional, resta ainda aferir a sua razoabilidade. O postulado da razoabilidade tem
caráter complementar ao postulado da proporcionalidade estrita. Sua finalidade é aferir se o
juízo realizado pelo julgador não está eivado de densa subjetividade.
A doutrina sobre o tema também é infindável, o seu aprofundamento
ensejaria dissertação própria, o que implica em extrapolar os termos da presente pesquisa.
Todavia, os precisos ensinamentos de Humberto Ávila bem representam o tema. Segundo
leciona, o postulado da razoabilidade possui três dimensões distintas, dever de equidade,
dever de congruência e dever de equivalência. Enquanto dever de equidade, o postulado da
razoabilidade implica em verificar se as circunstâncias dos fatos se deram “dentro da
normalidade”, ou ainda se as peculiaridades do fato não comportam qualquer consideração
em face de uma norma abstrata.O dever de congruência, enquanto postulado da razoabilidade
implica em avaliar se a medida cumpriu os requisitos exigidos verticalmente por interpretação
específica atribuída a um princípio, afastando-se qualquer posicionamento arbitrário ou
destoando da norma ou; se a medida adotada é compatível com o critério distintivo pré-
estabelecidos pela própria norma. E, por fim, enquanto dever de equivalência, o postulado da
29
razoabilidade exige que uma relação de congruência entre “a medida adotada e o critério que
a dimensiona”, há aqui uma correspondência entre duas grandezas. 55
Não obstante seus apontamentos, Humberto Ávila não apresenta qualquer
parâmetro para apuração do que é normal, equitativo ou equivalente. A despeito do que se
compreende como princípio da razoabilidade, a adoção de tais parâmetros não compreendem
a dimensão subjetiva do agente julgador e sim as concepções atinentes compor social em que
está inserido, extraindo-se um conceito geral de bom senso.56
Em outras palavras, a
abrangência de tais parâmetros não implicam em permissão à apreciação subjetiva/arbitrária
do agente, cujo dever é a adoção de elementos críveis ao senso comum.
5. Constituição e ordenamento jurídico
Até o presente momento, este estudo compreendeu a abordagem separada de
elementos que compõem o Direito (objeto de estudo), quais sejam, forma de linguagem,
norma jurídica, princípios, regras e postulados. Estas representam parte do fenômeno Direito,
mas não são suficientes ao entendimento de sua completude, como objeto singular do estudo
científico. Para tanto, é preciso trazer à tona considerações a despeito do conceito de
ordenamento jurídico.
Como bem destaca Noberto Bobbio “o que costumamos chamar de direito é
um caráter de certos ordenamentos normativos mais que certas normas”.57
Nesse sentido,
normas jurídicas representam parte do ordenamento jurídico, mas não se pode afirmar que um
ordenamento jurídico é o coletivo de normas jurídicas, afinal, “enquanto para a teoria
tradicional um ordenamento jurídico se compõe de normas jurídicas, para a nova perspectiva
normas jurídicas são aquelas que passam a integrar um ordenamento jurídico”.
O ordenamento jurídico é sistêmico e, enquanto sistema, deve ser
considerado em sua totalidade. Desta feita, as normas jurídicas que compõem um sistema
55
Humberto Ávila. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15. ed. rev. atual. e
ampl. São Paulo: Malheiros. p. 202-203. 56
Ricardo Marcondes Martins, Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros - Temas de
Direito Administrativo 19, p. 172. 57
BOBBIO, Noberto. Teoria geral do direito; tradução Denise Agostinetti; revisão da tradução Silvana Cobucci
Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 239-240.
30
jurídico devem ser interpretadas na forma dos postulados da coerência e unidade. Como
anotou o Professor Geraldo Ataliba, sem esta compreensão sistêmica do ordenamento, as
normas nada representam além de um amontoado caótico incompreensível, são providenciais
suas lições:58
os preceitos normativos não podem ser corretamente entendidos
isoladamente, mas, pelo contrário, haverão de ser considerados à luz das
exigências globais do sistema, conspicuamente fixadas em seus princípios.
Em suma, somente a compreensão sistemática poderá conduzir a resultados
seguros. É principalmente a circunstância de muitos intérpretes desprezarem
tais postulados metodológico que gera as disparidades constantemente
registradas em matéria de propostas de interpretação.
O ordenamento jurídico em sua totalidade é coerente, de modo que não
admite a incidência de duas normas incompatíveis em um caso concreto. Pelos postulados da
coerência e da unidade compete ao operador do direito, observado o quanto exposto nos
tópicos supra - a despeito da aplicação de regras e princípios, postulados hermenêuticos e de
aplicação -, identificar a solução mais adequada em cada caso concreto. A possibilidade de
duas normas incompatíveis não causa o colapso do sistema, como dito, um conflito de regras
é sempre, em última instância um conflito de princípios, ou exclui-se uma regra em
detrimento de outra a fim de que seja potencializado o princípio mais pesado no caso
concreto, ou excluem-se ambas por meio de uma nova regra, caso as peculiaridades do caso
concreto ensejem a incidência de um princípio antes minimizado pelas regras pré-existentes.
A concepção sistêmica do ordenamento jurídico – condição que dá primazia
aos postulados unidade e da coerência – tem um ponto de partida: a Constituição. Na
qualidade de norma fundante do Estado, é a Constituição que confere unidade ao sistema
jurídico. Esta concepção foi bem desenvolvida por Kelsen, segundo a qual destacou que a
norma fundamental pressuposta é o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico.
Tal concepção foi fundamental a concatenação dos sistemas constitucionais atuais. Vale
transcrever os ensinamentos paradigmáticos do jusfilósofo:59
58
ATALIBA, Geraldo. República e constituição. 2. ed., 3 tir. atual. por Rosolea Miranda Folgosi. São Paulo:
Malheiros Editores, 2004, p. 179. 59
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 33.
31
A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas
pertencentes a uma mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade
comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem
normativa baseia-se em que o seu último fundamento de validade é a norma
fundamental desta ordem. É a norma fundamental que constitui a unidade de
uma pluridade de normas enquanto representa o fundamento da validade de
todas as normas pertencentes a essa ordem normativa.
É na Constituição que estão estipuladas implícita e explicitamente as
normas (tanto normas estruturais quanto de conduta) fundantes do Estado. Estas normas
possuem relevância hierárquica sob os demais comandos normativos jurídicos. As normas
infraconstitucionais são inferiores e devem obediência aos comandos normativos, tanto sob o
aspecto formal (estrutural e de formação de normas) quanto o aspecto material.
Estas noções gerais a despeito do conceito sistêmicos do ordenamento
jurídico, suas funcionalidades e particularidades normativas, ainda que expostas de forma
sucinta, precedem a exposição acerca da função administrativa, do regime jurídico-
administrativo e sua inter-relação com a cláusula do devido processo legal em seu sentido
substantivo. Superadas estas questões preliminares/propedêuticas, passa-se ao enfrentamento
dos temas mais específicos.
32
Capítulo II - A FUNÇÃO ADMINISTRATIVA
1. O caráter instrumental do Estado de Direito
Há muito já disse que o Estado não possui um fim em si mesmo. Apesar de
sua singeleza, essa corriqueira expressão é a síntese de todo o processo de construção do
conceito de Estado e o que ele representa hoje:60
O Estado não é senão uma ficção jurídica,
em síntese é o resultado da exteriorização de um plexo de normas do ordenamento jurídico a
começar pela Constituição. Assim sendo, não cumpre outro objetivo senão cumprir os
preceitos normatizados, servir a soberania de seu povo, promulgar a sua vontade.61
Função é o exercício de uma atividade em atendimento ao interesse alheio.
Evidentemente, para o atingimento destes interesses é necessário que o sujeito responsável
pela função que lhe foi atribuída esteja munido de poderes para tanto.
Como as complexas sociedades não possuem condições de serem
governadas pela plenitude de seus cidadãos, evidentemente, o Estado é conduzido por parte de
seus representantes. Mas, ainda assim, o dever do Estado é cumprir a vontade do povo que o
representa. Portanto, o Estado não possui vontade, age movido pela vontade do povo, pelo
interesse público e pelos comandos do ordenamento jurídico. Sendo assim, o Estado
representa interesse alheio, ou em outras palavras, exerce função.62
Sendo assim, o Estado enquanto instrumento de prospecção do interesse
coletivo, exerce função, age em nome do povo de seu interesse. Neste sentido, sua finalidade
60
Em sua origem, o Estado não representava propriamente a vontade popular, longe disso, limitava-se a um
instrumento de concentração de Poder. Esta passagem de submissão do Estado e, portanto, do Poder do Estado
ao meio social é bem representada pela síntese de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, da passagem de
Estado-Poder para o Estado-Sociedade (BANDEIRA DE MELLO, Princípios Gerais de Direito
Administrativo, vol I, p. 30), no mesmo sentido (SUNDFELD, Calor Ari. Fundamentos de Direito Público. 4.
ed. rev. aum. atual. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 22-23) 61
O Estado é um ente organizado por um povo, sobre um território delimitado, com poder para exercício
soberano de suas Leis (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política, 4. Ed. São
Paulo: Saraiva, 1999, p. 34). Dalmo de Abreu Dalari ainda identifica um elemento que parece pertinente à
visão moderna de Estado: a busca do bem comum (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral
do Estado, 19ª ed. São Paulo : Saraiva,1995, p. 101). 62
MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: as sanções
administrativas à luz da Constituição Federal de 1998. São Paulo: Malheiros Editores – Temas de direito
administrativo n. 17, p. 20.
33
não é outra que não o atingimento do interesse público na forma disciplinada pela
Constituição e do sistema jurídico como um todo.63
2. A tripartição de funções
Em inúmeras vezes, o ser humano já demonstrou que sua relação com o
poder pode ser significativamente comprometida, há uma certa aceitação (ao menos quando o
assunto é Poder e Estado) que o ser humano tem uma tendência a abusar do poder que lhe é
conferido.64
Como dito, o Estado, antes de tudo, é uma ficção jurídica e, no final, é operado
pelo homem. Muito embora já se tenha consciência que o exercício do poder estatal é
instrumentalizado, há fortes chances de que seja utilizado de maneira abusiva e arbitrária.
Formas de controle do exercício do poder estatal acompanham a construção
do conceito científico do Estado. O mecanismo mais consagrado na história moderna e
aplicado pelos estados nacionais foi aquele criado pelo Barão de Montesquieu. Trata-se da
“divisão” do “Poder” em: Poder Legislativo, Poder Judiciário e Poder Executivo.65
Cada um
dos “poderes” no exercício de suas atribuições possuem condição mútua de fiscalização, de
controle e de enfrentamento, é um mecanismo de “pesos e contrapesos” entre os poderes –
pois só o poder tem condições de combater o poder.66
Na verdade, o Poder é uno, o rótulo “separação dos poderes” em “Poder
Legislativo”, “Poder Executivo” e “Poder Judiciário” não representa fidedignamente os
institutos em discussão, estas nomenclaturas são mantidas apenas por uma tradição. A divisão
63
Ricardo Marcondes Martins, Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros - Temas de
Direito Administrativo 19, p. 35. 64
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a
divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismos. 5. ed. intr. trad. Pedro Vieira Mota. São Paulo
: Saraiva, 1998, p. 165. 65
Como bem destacar Celso Antônio Bandeira de Mello, esta distinção não é absoluta. Longe disso, cada
modelo de Estado, no exercício de poder político, pode adotar a forma de divisão que bem entender. Ocorre
que, dada a grande aceitação do sistema encabeçado por Montesquieu, ela é comumente aplicada nas estruturas
dos estados nacionais (Curso de direito administrativo, p. 32-36). 66
Como bem destacou Montesquieu: “mas é uma experiência eterna que todo homem que tem poder é levado a
abusar dele. Vai até encontrar limites. Quem diria! A própria virtude precisa de limites. Para que não possam
abusar do Poder, precisa que, pela disposição das coisas, o poder freie o próprio poder” (MONTESQUIEU,
Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes,
presidencialismo versus parlamentarismos. 5. ed. intr. trad. Pedro Vieira Mota. São Paulo : Saraiva, 1998, p.
165.
34
de “Poderes” é orgânica67
e funcional, diz respeito aos órgãos estatais (enquanto instituições)
e à natureza jurídica das atividades que exercem.
Cada órgão (“Poder Legislativo”, “Poder Executivo” e “Poder Judiciário”)
tem competência para o exercício instrumental do Poder de acordo com a organização
conferida pelo ordenamento jurídico. Em outra medida, não se pode confundir a figura destes
órgãos Estatais com a natureza jurídica do tipo de função que exercem. A função, enquanto
natureza jurídica, também é divida em três regimes e seguem nomenclatura semelhante
“função judicial”, “função legislativa” e “função administrativa”.
O exemplo seguinte é esclarecedor. A Câmara Municipal é um órgão do
Estado e exerce tipicamente a função legislativa. Portanto, promulga normas jurídicas que lhe
são competentes de acordo com a Constituição Federal e a Lei Orgânica do Município.
Porém, enquanto órgão do Estado possui outras atribuições que vão além da típica atividade
legiferante. Com efeito, é responsável pela contratação de servidores públicos, condução de
processos administrativos disciplinares de seus servidores, contratação de serviços por meio
de processos licitatórios, entre outros. Note-se, que as atividades citadas, como a licitação, por
exemplo, são atividades típicas da administração pública, portanto, são atinentes à função
administrativa. O fato de a licitação ter sido promovida pelo “Poder” Legislativo, não o torna
um ato típico da função legislativa, muito menos torna aquele órgão membro do pode
executivo. Este trânsito entre funções e poderes (enquanto órgão públicos) acontece nas três
esferas. O Poder Judiciário promove licitação, concurso público; o Presidente da República
edita Medida Provisória na forma do artigo 62, da Constituição Federal; entre tantos outros
exemplos.
A dificuldade para distinção dos conceitos supracitados ocorrem em virtude
dos rótulos. Dada a semelhança terminológica, é comum a confusão na classificação dos
conceitos da “função x poder”. Para que se tenha coerência científica e clareza didática,
chamar-se-á de “Poderes Legislativo, Executivo e Judicial” os órgão que exercem tipicamente
67
O emprego no signo “orgânico” nesse caso diz respeito apenas à divisão entre três órgão distintos: Legislativo,
Executivo e Judiciário, comumente rotulados de “poderes”. Como o Poder é uno, o rótulo é impreciso. Por sua
vez, o signo “orgânico” não foi empregado nesta frase como critério de distinção entre as funções. Como se
verá na sequência, como critério de distinção entre as funções, entende-se o mais adequado o critério formal,
na forma proposta por Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de direito administrativo, p. 32-36).
35
uma função (enquanto instituições) e de “Função” as típicas das atividades funcionais do
Estado divididas (“função legislativa, administrativa e judicial”).
Pois bem. Como os Poderes/Órgãos estatais não se confundem com o
exercício de suas funções, os critérios para diferenciação entre os Poderes e entre as funções
são distintos. No caso, a distinção entre os Poderes estatais está compreendida na forma de
organização e atribuição das competências conferidas pela Constituição. No caso da
Constituição da República do Brasil, por exemplo, o seu artigo 2º dispõe que “são poderes da
União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, a
organização dos referidos poderes se dão na forma dos capítulos I, II e III, do Título IV, da
Carta Magna.
Por sua vez, a distinção entre as formas de função exige um exercício
hermenêutico mais aprofundado. A despeito da matéria, as magníficas lições de Celso
Antônio Bandeira de Mello bem elucidam a questão. Segundo lecionada, existem três critérios
distintos para classificação das espécies de funções, a constar: (i) critério orgânico ou
subjetivo; (ii) critério objetivo, que se subdivide em (ii.a) critério objetivo material e (ii.b)
critério objetivo formal.68
O critério orgânico sugere que a classificação entre as funções deve ocorrer
em razão do Órgão que o emanou. Porém, tal critério é significativamente impreciso.
Conforme se demonstrou acima, é usual que os Poderes exerçam atividade alheias às suas
funções típicas. Assim, a despeito dos exemplos citados, seria atribuída à função legislativa
toda atividade exercida pelo Poder Legislativo. Sob esta lógica, procedimentos licitatórios,
por exemplo, seriam classificados como inerentes à função legislativa. Ocorre que, o processo
licitatório não possui proximidade com a atividade legiferante, o que torna questionável a
classificação citada.69
O critério objetivo material a distinção entre as funções teria como critério
qualificador a natureza da atividade exercida. Assim, compreenderia a função legislativa a
criação de lei, no caso, geral e abstrata inovando a ordem jurídica; a função jurisdicional
68
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros,
2013, p. 32. 69
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros,
2013, p. 33.
36
compreenderia a solução da lide de forma definitiva e; a função administrativa seria o
cumprimento do comando do ordenamento jurídico pela expedição de atos “infralegais” no
âmbito da estrutura hierárquica.70
Esta classificação também é passível de críticas. A primeira delas diz
respeito aos elementos característicos do próprio critério adotado, isto porque, as
características materiais das funções contêm elementos extrajurídicos. E, diante dos
postulados da unidade e coerência do sistema jurídico, o cientista do direito tem como objeto
de estudo o próprio ordenamento. A segunda delas diz respeito à própria imprecisão da
classificação, pois atos administrativos podem ser perfeitamente abstratos e não concretos
(como o caso dos regulamentos), e segundo esta classificação deveriam ser intitulados como
típicos da função legislativa; decisões proferidas em processos administrativos (atos
administrativos) também poderiam ser classificadas como tipicamente judiciais.71
Por fim, o critério objetivo formal busca distinguir o exercício das
atividades funcionais por meio das características que lhe são atribuídas pelo ordenamento
jurídico; portanto, identifica a peculiaridade dos regimes jurídicos de cada uma das funções.
Desde já é possível afirmar que esta forma de classificação encontra nítida consonância com
os critérios hermenêuticos de compreensão do ordenamento jurídico, ou seja, é no próprio
sistema jurídico que são identificadas as características de seus institutos.72
Pelo critério objetivo formal, o que distingue a função legislativa das
demais funções exercidas pelo Estado é a “inovação originária da ordem jurídica”73
revogando expressa, ou tacitamente, normas jurídicas em contrário, submetendo-se
hierarquicamente à Constituição.74
A função jurisdicional, por sua vez, é todo ato estatal que implique em
resolução de uma lide por meio de decisão definitiva pela proteção do trânsito em julgado. O
70
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros,
2013, p. 34. 71
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros,
2013, p. 35. 72
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros,
2013, p. 35. 73
SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto Serrano. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: FTD –
Coleção Juristas da Atualidade, coord. Hélio Bicudo, 1995, p. 14. 74
MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: as sanções
administrativas à luz da Constituição Federal de 1998. São Paulo: Malheiros Editores – Temas de direito
administrativo n. 17, p. 28.
37
trânsito em julgado de uma decisão (sentença, acórdão ou voto monocrático) pode ocorrer
pelo esgotamento das instâncias recursais ou que não tenha sido interposto recurso
intempestivo.
Pela pertinência temática, as considerações a respeito da função
administrativa exigem tópico próprio.
3. A função administrativa
Ao passo de que todo desenvolvimento dos critérios de classificação de
função foi debruçada nos ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello, cumpre
transcrever sua proposição a respeito da função administrativa:75
Função administrativa é a função que o Estado, ou quem lhe faça as
vezes, exerce na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e
que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser
desempenhada mediante comportamentos infralegais ou,
excepcionalmente, infraconstitucionais, submissos todos a controle de
legalidade pelo Poder Judiciário.
A função administrativa é infralegal porque é subordinada aos ditames
constitucionais e aos atos normativos expedidos pela função legislativa. Esta característica da
função administrativa expõe uma qualidade que lhe é notória: seu regime jurídico é
representado, em sua síntese, pelo princípio da legalidade.
A priori, levando-se em consideração tudo que foi dito acima a respeito das
características de Estado e Função, toda atividade estatal deve observância à lei e, portanto, ao
princípio da legalidade. Porém, a despeito das peculiaridades da função administrativa, o
exercício da atividade administrativa só é lícito se for autorizado por Lei. Sua manifestação se
dá de forma significativamente restrita à previsão legal.
No âmbito do direito privado, o princípio da legalidade prestigia a
autonomia da vontade, ou seja, tudo aquilo que não for proibido é permitido;76
no âmbito do
75
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros,
2013, p. 36. 76
DI PIETRO, Maria Silvia Zanella. Direito Administrativo. 20. ed. São Paulo : Atlas, 2007, p. 59.
38
exercício da função legislativa, o princípio da legalidade confere ampla liberdade de atuação
ao legislador, cuja única restrição é formal (em termos procedimentais) e de coerência para
com as normas superiores, em último caso, a constituição e; a na função administrativa a
administração só pode agir se assim for permitido pela Lei.77
Como leciona Pedro Estavam Alves Pinto Serrano, não há subjetividade na
conduta da função administrativa. Ela não se manifesta, em termos lógicos, pelo modal
deôntico do permitido e sim, “por meio de competência (modal do obrigatório) previamente
estabelecida no texto legal e que lhe imputa finalidade heterônoma a ser realizada”.78
É uma concatenação lógica do sistema. O Estado, em síntese, exerce função
e, portanto, deve dar total cumprimento ao ordenamento jurídico. À função legislativa, como
representante direto do povo seleciona os valores desejados pelo corpo social e, juntamente
aos preceitos constitucionais, inova o ordenamento jurídico a fim de delimitar os interesses
públicos. Por sua vez, compete a função administrativa a adoção de medidas necessárias à
satisfação desses interesses. Ora, se à administração compete dar cumprimento ao interesse
público e, o interesse público é, em ultima instância, instituído pelo ordenamento jurídico, não
resta outra função à administração que não cumprir o ordenamento – em outras palavras, dar
primazia ao princípio da legalidade.
3.1 Regime jurídico administrativo
O princípio da legalidade é condição necessária a conceituação da função
administrativa, mas não é autossuficiente. Para a compreensão, ao menos de maneira
satisfatória, da forma de exercício da função administrativa, é necessário compreender o seu
regime jurídico-administrativo. Regime jurídico, consiste na identificação de princípios e
regras de um determinado instituto, a fim de lhe conferir um caráter sistêmico. E, sendo
77
MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: as sanções
administrativas à luz da Constituição Federal de 1998. São Paulo: Malheiros Editores – Temas de direito
administrativo n. 17, p. 31. 78
SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Região metropolitana e seu regime constitucional. 1 ed. São Paulo:
Verbatim, 2009, p. 184.
39
sistêmico, esta determinada ramificação passa a ter uma unidade e lógica de coerência própria
que a destingue dos demais ramos existentes.79
A síntese do regime jurídico administrativo é bem representada pela feliz
expressão de Celso Antônio Bandeira de Mello: “DEVER-PODER”80
. A administração
pública, no exercício da função administrativa tem o DEVER de dar cumprimento aos
preceitos contidos no ordenamento jurídico (função). Para tanto, o próprio ordenamento
jurídico lhe confere uma série de prerrogativas – PODER -, a fim de que torne viável a
persecução do interesse público. É por isso, conforme dito no início deste trabalho, que o
Poder do Estado possui caráter instrumental, o uso do Poder só é permitido a fim de que seja
alcançado um interesse público.
Dever e Poder podem ser substituídos por dois princípios que dão entonação
ao regime jurídico-administrativo: a) supremacia do interesse público sobre o interesse
privado e b) indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos.81
O conteúdo jurídico do princípio da supremacia do interesse público sobre o
privado consiste nos seguintes princípios subordinados:82
a) posição privilegiada do órgão encarregado de zelar pelo interesse
público e de exprimi-lo, nas relações com os particulares;
b) posição de supremacia do órgão nas mesmas relações;
c) restrições ou sujeições especiais no desempenho da atividade de
natureza pública.
79
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros,
2013, p. 53. 80
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros,
2013, p. 73. Na verdade, a expressão já existia, porém sob a ótica invertida “Poder – Dever”, foi Celso Antônio
Bandeira de Mello que optou por inverter a ordem dos institutos para “Dever-Poder”. Ainda que singela, esta
modificação tem uma importância simbólica no sentido de destacar o caráter subordinado do “Poder” ou
“Dever”. Em primeiro lugar vem o “Dever”, o “Poder é instrumental. 81
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros,
2013, p. 55-56. 82
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros,
2013, p. 71-74). Na ordem suscitada pelo Autor, o princípios consistem: a) benefícios concedidos pelo próprio
ordenamento jurídico, como presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativo e concessão de
prazos em dobro; b) implica na posição de autoridade da administração em uma relação vertical (e não
horizontal) para com os atingidos pelos atos administrativos, sua prolação se dá de forma unilateral (seja para
prática ou revogação do ato) e; c) trata-se de limitações ou deveres conferidos a própria administração, por este
princípio, a administração não pode escolher seus contratantes, não pode deixar de responder as petições dos
particulares, entre outros.
40
Por outro lado, o princípio da indisponibilidade, pela Administração, dos
interesses públicos é composto pelos seguintes princípios:83
a) da legalidade, com suas implicações ou decorrências; a saber:
princípios da finalidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da
motivação e da responsabilidade do Estado;
b) da obrigatoriedade do desempenho de atividade pública e seu
cognato, o princípio de continuidade do serviço público;
c) do controle administrativo ou tutela;
d) da isonomia, ou igualdade dos administrados em face da
Administração;
e) da publicidade;
f) da inalienabilidade dos direitos concernentes a interesses públicos;
g) do controle jurisdicional dos atos administrativos
Estes são os princípios gerais que regem a lógica do regime jurídico-
administrativo. Outrossim, o núcleo da atividade administrativa, dado seu caráter
instrumental, não é outro senão a persecução do interesse público (dever) e para tanto possui
prerrogativa (dever). Resta ainda fazer breves apontamentos sobre o conceito de interesse
público.
3.2 Interesse público
Não se confunde interesse público com interesse da administração,
tampouco interesses secundários da estrutura do Estado enquanto pessoa jurídica de direito
público. O interesse público representa os interesses atinentes ao corpo social, trata-se da
dimensão geral dos interesses de cada indivíduo enquanto membro da sociedade.84
Por sua
vez, a forma de a representação do interesse da coletividade está no ordenamento jurídico.
Sendo assim, o conteúdo de interesse público não está à disposição de um
juízo subjetivo/arbitrário do administrador público. Com efeito, a adequada solução jurídica
de cada caso concreto tem sua resposta incutida no próprio regime jurídico-administrativo,
83
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros,
2013, p. 76. 84
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros,
2013, p. 61.
41
cabendo ao operador do direito, diante de um procedimento hermenêutico, dar-lhe
cumprimento.
Esta breve delimitação do conceito de interesse público é pertinente pois, já
se observou em inúmeras oportunidades, a pretexto de alcançar o interesse público, a adoção
de medidas autoritárias da administração (muitas vezes confirmadas pelo Poder Judiciário) em
detrimento do interesse privado. Como bem relata Daniel Wunder Hachem, estas situações
são resultado de uma aplicação irrefletida e desvirtuada do conceito.85
Em primeiro lugar, não há hierarquia entre interesse público e interesse
privado. O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, frise-se, é
instrumental. Isto implica em dizer que o interesse público só é sobressalente ao interesse
privado nas hipóteses devidamente justificadas nos termos do ordenamento jurídico. ]caso
contrário, inexistindo hipótese justificadora, prevalece o interesse privado – fora disso é
arbítrio ou desvio de poder do administrador público – ato ilícito que não pode ser confundido
com o conceito do regime jurídico administrativo.
A adoção de determinado ato administrativo que implique na supressão de
um interesse privado em razão do interesse público, só se justifica caso importe em benefício
à coletividade. O interesse público é a dimensão coletiva dos interesses individuais, sendo
assim, todos os indivíduos têm interesse que o Estado possua prerrogativas necessárias à
persecução do bem comum. Um exemplo elucidativo é a desapropriação.
Todos os indivíduos, enquanto membros do corpo social têm interesse que o
Estado tenha poderes expropriatórios, pois tal prerrogativa é condição necessária para
melhorias e construção de equipamentos públicos. Porém, nenhum cidadão deseja que sua
propriedade seja desapropriada, mas, diante das alternativas do caso concreto e, constatado
que referido ato é o que melhor atende aos interesses em jogo, não há o que se discutir,
desapropria-se.
Por outro lado, suponha-se que durante o processo de desapropriação a
administração tenha realizado uma avaliação do imóvel propositadamente com o valor
85
HACHEM, Wunder Daniel. Princípio constitucional da supremacia do interesse público. Belo Horizonte:
Fórum, 2011, p. 41.
42
inferior ao sabidamente devido. Poderia se dizer que o administrador teria preservado o Erário
e, portanto, atendido ao interesse público?
A resposta é negativa. Em primeiro lugar porque a processo de
desapropriação, por determinação constitucional deve conferir a justa indenização. E por justa
indenização, entende-se pagar o valor adequado no imóvel. Em segundo lugar, também é
interesse público que os administradores tomem medidas protetivas aos administrados
atingidos por seus atos, jamais permitindo que particulares tenham seus direitos mitigados em
proveito da coletividade.
Nesta segunda hipótese, o que se observa é justamente um desvirtuamento
do conceito. Presumir que o princípio da Supremacia do interesse público sobre o privado é
inadequado em virtudes como os casos citados acima é cientificamente inadequado.
É, em razão deste desvirtuamento (muitas vezes proposital), que vem a baila
a classificação de Renato Alessi de interesse público primário e interesse público
secundário.86
O interesse público primário é justamente a dimensão pública dos direitos
individuais, e o interesse público secundário representa os interesses do Estado enquanto
pessoa jurídica. Enquanto questões “particulares” da pessoa jurídica pública, o interesse
público secundário não pode prevalecer sobre o interesse primário.
86
ALESSI, Renato. Instituiciones de derecho administrativo. Tomo I, Barcelona: Bosch, 1970, p. 222.
43
Capítulo III – A CLÁUSULA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL EM SEU SENTIDO
SUBSTANCIAL
Demonstradas as principais características e as formas de interpretação e
aplicação do ordenamento jurídico, assim, as características da função administrativa, passa-
se à análise da cláusula do Devido Processo Legal. Antes de enfrentar o tema do princípio do
Devido Processo Legal no ordenamento pátrio, é necessário trazer à baila breves
considerações sobre o desenvolvimento histórico de referido instituto.
Tércio Sampaio Ferraz Júnior87 leciona que o enfrentamento das condições
históricas e sociológicas bem contribuem para a construção do processo interpretativo, a fim
de apresentar soluções para duas hipóteses: a) tornar o significado da palavra mais claro –
“controle da ambiguidade por interpretação conotativa”; ou b) decidir se um conjunto de
fatos experimentados “constitui ou não uma referência que corresponde à palavra ou à
sentença”.
A cláusula do Devido Processo Legal (due process of law) é um elemento
paradigmático na construção jurídica do conceito do próprio Estado de Direito. Se o Estado de
Direito representa a limitação do Poder do Estado à Lei, a limitação dos poderes
monárquicos88
tem sua origem no desenvolvimento da referida cláusula.
Assim, tratando-se de estudo com objetivo de delimitar o conceito do
Devido Processo Legal em seu sentido substancial, é de rigor destacar que a utilização da
interpretação histórica é imprescindível por dois motivos: A UM, para identificar e delimitar –
ao menos a priori – o sentido e o alcance de referida norma; e A DOIS, identificar se tais
conceitos possuem estrita consonância com aquele trazido pela Constituição da República do
Brasil de 1988, ou seja, identificar se o sentido teleológico do Devido Processo Legal
atualmente inserido no ordenamento jurídico pátrio possuí total consonância com aqueles
construídos historicamente.
Feita esta breve justificativa, passa-se a demonstrar a construção histórica da
cláusula do Devido Processo Legal em seu sentido substancial.
87
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. – 6. ed. –
3- reimpr. – São Paulo: Atlas, 2011. p. 264. 88
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade. – 5. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2010. p.26.
44
1. Evolução histórica da cláusula do Devido Processo Legal
Édipo, Rei de Tebas, diante das calamidades que assolavam suas terras,
enviou Creonte, seu cunhado, ao templo de Apolo para consultar o oráculo em busca de
respostas.89
Ao retornar, Creonte informa que, segundo o oráculo, Tebas estava
desgraçada, em razão do mistério que circundava o assassinato de Laio, antigo Rei de Tebas.
A purificação da cidade só seria alcançada com a punição de seus assassinos.
Aconselhado por Creonte, Édipo então consultou o sábio Tirésias, a respeito
do assassinato de Laio. Segundo Tirésias, Édipo era o responsável pelas desgraças de Tebas,
pois Édipo teria matado o próprio pai, além de ter tido quatro filhos com a própria mãe.
A resposta de Tirésias não fazia sentido. Édipo era nascido em Corinto,
filho de Políbio e de Mérope (até então vivos) e sua esposa a Jocasta (que foi casada também
com Laio) não era sua mãe. Édipo, então, não se conformou com a resposta de Tirésias:
A solução do problema não devia caber a qualquer um; tomava-se necessária
a arte divinatória. Tu provaste, então, que não sabias interpretar os pássaros,
nem os deuses. Foi em tais condições que eu aqui vim ter; eu, que de nada
sabia; eu, Édipo, impus silêncio à terrível Esfinge; e não foram as aves,
mas o raciocínio o que me deu a solução. Tentas agora afastar-me do
poder, na esperança de te sentares junto ao trono de Creonte!... Quer me
parecer que a ti, e a teu cúmplice, esta purificação de Tebas vai custar caro
[...]
Mas Júpiter e Apolo são clarividentes; eles conhecem as ações dos mortais;
que um adivinho saiba, a tal respeito, mais do que nós, isso é que nada nos
garante; só pela inteligência pode um homem sobrepujar a outro.
Enquanto não se justificar a afirmação do adivinho, não apoiarei os que
acusem Édipo. Porque foi perante todos que outrora veio contra ele a
virgem alada; vimos bem o quanto ele é inteligente, e foi mediante essa
prova magnífica que ele se tomou querido pela cidade. Assim, meu
espírito nunca o acusará de um crime!90
Édipo também se revoltou com Creonte, acusou-o de traição. Creonte
reagiu:
89
SÓFOCLES. Rei Édipo. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000024.pdf
> Acesso em: 15.02.2014. 90
SÓFOCLES. Rei Édipo. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000024.pdf
> Acesso em: 15.02.2014, p. 18.
45
Se tu provares que eu estou de concerto com o adivinho, condenar-me-ás à
morte não por um só voto, mas por dois: o teu e o meu. Não me acuses
baseado em vagas suspeitas, sem me ouvir primeiro. Não é lícito julgar
levianamente como perversos, os homens íntegros, assim como não é
justo considerar íntegros os homens desonestos.91
Édipo, irresignado com as propostas dos Oráculos, passou a investigar os
fatos. Para a tragédia de Édipo, os Oráculos estavam certos. Após ouvir testemunhas e
depoimentos de personagens que presenciaram os fatos à época, ficou comprovado que Édipo,
ainda quando criança, a mando de sua mãe Jocasta, foi enviado à gruta Citéron por um servo
para que o assassinasse. Isto porque o oráculo havia informado que Laio morreria vítima do
filho que nascesse do casamento com Jocasta.
O servo, desencorajado a cumprir a tarefa, entregou a criança (Édipo) a um
pastor, que por sua vez, lhe confiou aos reis de Corinto, Políbio e de Mérope. Édipo, também
por ter consultado o Oráculo ainda quando vivia em Corinto, foi informado que assassinaria
seu Pai. Amedrontado pelo ingrato destino, exilou-se de Corinto. E, nas encruzilhadas da vida
encontrou um grupo, entendeu que estava sendo atacado e matou seus componentes. Um dos
componentes era justamente Laio. Posteriormente, já em Tebas, casou-se com sua mãe e teve
quatro filhos.
Mas qual a relação desta história com o devido processo legal?
Toda.
Desde a antiguidade, é possível identificar aspectos e características que
compõem o conceito de devido processo legal. Note-se que Édipo se negou a aceitar a
acusação infundada do Oráculo. Só se conformou com as acusações infundadas do Oráculo
após uma investigação dos fatos calçada em elementos puramente racionais. O mesmo pode
ser observado por Creonte, o qual, diante da acusação vazia de Édipo, indignou-se, justamente
pela ausência de provas.
Durante uma determinada passagem, Édipo aguarda a chegada da
testemunha, pois ela “tudo esclarecerá”, também não se podia confirmar o assassinato de Laio
(“diziam que Laio foi morto por uns viajantes”), pois “não apareceu uma só testemunha
ocular”.
91
SÓFOCLES. Rei Édipo. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000024.pdf
> Acesso em: 15.02.2014, p. 27.
46
No final da história, Jocasta se mata e Édipo fura os olhos e passa a vagar
pela Grécia com sua filha Antígona:
Com sua morte, seus dois filhos...irmãos de Antígona, passaram a disputar o
poder político de Tebas. Numa batalha, um irmão matou o outro, e um tio
deles, Creonte, assumiu o governo. O primeiro decreto de Creonte foi proibir
que se desse sepultura a um dos irmãos mortos, Polinices, considerado
traidor da pátria. A pena pela desobediência seria a morte do infrator.
Antígona, então, após invocar as leis não escritas, que se perdiam na dos
tempos, retrucou que acima das leis do Estado, das leis escritas, existiam as
leis não escritas, de cunho universal, que deviam prevalecer sobre as leis
escritas, pois se calavam na natureza do homem.92
Já na idade antiga tinha-se consciência de alguns institutos que futuramente
dariam ensejo ao que, apenas dois mil anos depois, ficou conhecido como devido processo
legal ou due process of law.
1.1 De Law of The Land ao Due Process of Law
A construção da cláusula do Devido Processo Legal, na forma moderna, tem
como marco paradigmático a promulgação da Carta Magna – em 15 de junho do ano de 1215
- imposta pelos Barões Feudais ao Rei da Inglaterra, conhecido como JOÃO “SEM TERRA”
(John lackland).
Segundo a doutrina sobre o tema,93
a problemática tem sua origem em 1066,
período em que os normandos invadiram a Inglaterra por empreitada de Duque William da
Normandia, “O Conquistador”.
Tanto Willian quanto seus sucessores (Henry e Henry II) governaram o
Reino da Inglaterra de maneira severa, o que lhe imputaram em determinadas situações
conceder cartas de franquias aos seus súditos para manter o controle de seus reinados e evitar
rebeliões de seus vassalos.94
92
MACIEL, Adhemar Ferreira. O devido processo legal e a constituição brasileira de 1988. Revista de Processo
– Revista dos Tribunais – Ano 22 – Jan/Mar 1997 – n. 85 – pág. 175/180. Palestra proferida, em 19.11.1996,
na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Minas Gerais, a convite das Faculdades Integradas Newton
Paiva, da Seccional da OAB-MG e da Escola da Advocacia da OAB-MG. 93
Sobre o contexto que precedeu a instituição da Carta Magna, cite-se: DÓRIA, Sampaio Antônio Roberto.
Princípios constitucionais tributários e a cláusula do due process of law. São Paulo: RT, 1964. e, SILVEIRA,
Paulo Fernando. Devido processo legal. 2. ed., ver. e atual - Belo horizonte: Del Rey, 1996. 94
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. 2. ed., ver. e atual - Belo horizonte: Del Rey, 1996, p.
21.
47
Ricardo Coração de Leão (filho de Henry II), ao retornar da terceira
cruzada, é detido na Áustria e é solicitado resgate ao seu irmão, João “Sem Terra”. Nesta
oportunidade, João “Sem Terra” aproveita para tomar o trono de Ricardo Coração de Leão,
que era significativamente respeitado pela corte. Este golpe dá ensejo a inúmeras rebeliões.
Ricardo “Coração-de-Leão” retorna ao reino, porém permanece pouco tempo no trono antes
de sua morte, o que faz com que seu irmão assuma a Coroa.95
Ocorre que, a tirania do governo de João “Sem Terra” foi de tal severidade
que levou os Barões a se insurgirem contra seu posto. A transcrição abaixo bem relata as
atrocidades cometidas pelo Monarca:96
Os desastres, cincas e arbitrariedades do novo governo foram tão
assoberbantes, que a nação, sentindo-lhe os efeitos envilecedores, se indispôs,
e por seus representantes tradicionais reagiu. Foram inúteis as obsercrações.
A reação era instintiva, generalizada; e isso, por motivo de si explícito: tão
anárquico fora o reinado de João, que se lhe atribuía outrora, como ainda nos
nossos dias se repete, a decadência, então, de toda a Inglaterra. Atuou em
todas as camadas sociais; postergou regras jurídicas são de governo; descurou
dos interesses do reino; e, autuar sobre tudo, desservindo a nobres e a
humildes, ameaçava desnevar a energia nacional, que se revoltou.
Maciçamente pressionado, não restou alternativa ao João “Sem Terra” senão
assinar a Carta Magna, a qual assegurou ao baronato que não haveria qualquer violação aos
direitos “relativos à liberdade e propriedade, cuja supressão só se daria através da „lei da
terra‟ (per legem terrae ou law of land)”97
, da qual reproduz-se o famoso, § 39:
No free man shall be arrested or imprisioned, or disseized, or outlawed, or
exiled, or in any manner destroyed, nor will we proceed against him, or put
burden upon him, except by the legal judgement of his peers, or by the law of
the land”. (“nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado
dos seus direitos ou seus bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou
reduzido em seu status de qualquer outra forma, nem procederemos nem
95
Ibid. p. 22. 96
Ibid, p. 22. ao citar PONTES DE MIRANDA. História e prática do hábeas corpus. 7. ed., Rio de Janeiro:
Borsoi, 1972, p. 11. 97
DÓRIA, Sampaio Antônio Roberto. Princípios constitucionais tributários e a cláusula do due process of law.
São Paulo : RT, 1964, p. 24.
48
mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento legal pelos
seus pares ou pelo costume da terra”)98
É bem verdade que a submissão do Rei à lei da terra pouco revolucionou as
relações sociais à época. Na verdade, os institutos ali tratados ficaram restritos apenas à alta
nobreza não resultando em qualquer garantia ou prerrogativa aos demais personagens do
corpo social99
- vide o fato de a carta era redigida em latim, justamente para afastar-lhe o
conteúdo do alcance da plebe100
, mas o desenvolvimento do instituto tratou de estender tais
benefícios a todos. Fato é que a Carta Magna de 1215 é o marco inicial da concepção de que
os atos de império deveriam se submeter a um processo, a formalidade pré-estabelecida.
Em 1354, já sob reinado de Eduardo III, a expressão per legem terrae é
substituída por due process of law (não se sabe ao certo o motivo da substituição).
Tal expressão, hoje denominada como “princípio”, subsiste desde então,
com inúmeras passagens de seu aperfeiçoamento com relação ao desenvolvimento da
proteção dos direitos e garantias individuais, valendo citar o período de 1628, quando foi
promulgada a Petition of Rights (idealizada Edward Coke) em resposta à determinação de
Carlos I para o aprisionamento de cinco membros da nobreza sem o devido processo legal,
após instituir-lhes empréstimo compulsório ilegal; o Habeas Corpus Act, em 1679 e o Bill of
Rigths, em 1689.101
Sampaio Dória102
bem destaca que, inicialmente, a cláusula do devido
processo legal possuía caráter tipicamente processual. Segundo o referido autor, em sua forma
embrionária, o devido processo legal nada mais representava do que a exigência de um
processo judicial ordenado (orderly proceedings).
98
Tradução de SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. 2. ed., ver. e atual - Belo horizonte: Del
Rey, 1996, p. 22. 99
Ibid, p. 23. Até porque, como ressalta o Autor, a concepção moderna de povo era totalmente desconhecida. 100
Arturo Hoyos , bem destaca esta este caráter elitista da norma: “ Carta Magna, a la cual ya hemos hecho
alusión, y en la cual se consagran ciertos derechos en virtude de un pacto entre el Rey Juan y la nobreza, al que
posteriormente se ha considerado como el fundamento de las libertades de los británicos. Sin embargo, cabe
señalar que los derechos fundamentales previstos em la Carta, reconocidos em forma contractual y particular,
se otorgan, como titulares de ellos, sólo a aquellas personas pertenecientes a cierto estamento (la nobreza).
(HOYOS, Arturo. La garantia constitucional del debido proceso legal: (Art. 32 de La Constitución Política).
Revista de Processo. São Paulo, v. 47, p. 43-69, jul.-set., 1987. 101
DÓRIA, Sampaio Antônio Roberto. Princípios constitucionais tributários e a cláusula do due process of law.
São Paulo: RT, 1964, p. 24. 102
Ibid, p. 24.
49
Vale lembrar que o Parlamento não se submetia à cláusula do due process of
law, tendo em vista que a legalidade representava exatamente a vontade do Parlamento Inglês,
motivo pelo qual seus atos eram inquestionáveis103
- supremacia do Parlamento sobre o Poder
do Soberano.
Ainda que inicialmente a law of land tenha submetido as tomadas de
decisões do Monarca Inglês tão somente a um simples procedimento, em verdade, esta
pequena mudança representou significativa ruptura com o sistema Monárquico.
Esta pequena “labareda” foi o estopim para uma grande evolução de
prerrogativas e garantias individuais dos cidadãos frente aos poderes arbitrários do Estado.
Nestes termos, cláusula do devido processo legal representou (e ainda
representa) fator de tratamento igualitário na relação Estado x Particular – fato que se deu a
partir dos desdobramentos de princípios especiais104
advindo com conceito geral do due
process of law, tais quais, contraditório, ampla defesa, dever de motivação das decisões
estatais, duplo grau de jurisdição, entre outros.
Outrossim, a cláusula do devido processo legal tomou proporções ainda
mais relevantes no sistema judiciário estadunidense. Como se demonstrará a seguir, a
possibilidade de pronunciamento judicial sobre questões constitucionais permitiu não só o
controle da forma do processo decisório, mas também o controle do mérito dos atos estatais
(devido processo legal substancial), é o que se passa a demonstrar.
1.2 Das colônias americanas à Emenda Constitucional XIV
Inicialmente, as Colônias Inglesas localizadas na América do Norte, no
início do século XVII, aduziam pela previsão implícita da cláusula do devido processo legal,
103
DANTAS, San Tiago. Igualdade perante a lei. p. 43. 104
A despeito do conteúdo jurídico do princípio do devido processo legal adjetivo (ou formal) adota-se a tese de
MARTINS, Ricardo Marcondes. O conceito científico de processo administrativo. Revista de Direito
Administrativo (RDA), Rio de Janeiro, v. 235, p. 321-381, jan.-mar. 2004, item 4.5 e 4.6, p. 371. Segundo o
Autor, o devido processo legal adjetivo é norma de otimização que busca o processo justo. Sendo, segundo
classificação de Canotilho, um princípio geral de direito, a ser realizado por outros princípios especiais.
50
mas já em 1641 passaram a observar a previsão expressa quando da proclamação de liberdade
de algumas colônias, como Massachusetts, Nova York e Nova Jersey105
.
O que importa salientar é que, não obstante a significativa construção de
defesa de direitos e garantias individuais que passaram integrar o sistema jurídico Norte-
Americano, a previsão da cláusula do Devido Processo Legal só passou a ter previsão
expressa com a promulgação da V Emenda Constitucional em 1791, do já formado Estados
Unidos da América.
A proposta de referida Emenda Constitucional foi idealizada por Thomaz
Jefferson, Madson e Mason106
em resposta às constantes ingerências praticadas pelo Governo
Federal. A Emenda Constitucional n. V, dispôs que “No person shall...be deprived of life,
liberty or property, without due process of law”.
Com efeito, referida Emenda Constitucional subsumia-se única e
exclusivamente ao Governo Federal, de maneira que a cláusula do devido processo legal
tornou-se inquestionavelmente aplicável a todos os entes federados a partir da Emenda
XIV.107
É de ressaltar, conforme bem registraram Carlos Roberto Siqueira Castro108
e Sampaio Dória,109
que até então, mesmo após a promulgação da Emenda XIV, a cláusula do
due process of law permanecia vinculada ao conteúdo estritamente processual.
Porém, a valorização das Cortes Judiciais como entes competentes para
apreciação dos preceitos constitucionais permitiu aos Estados Unidos da América massiva
105
DÓRIA, Sampaio Antônio Roberto. Princípios constitucionais tributários e a cláusula do due process of law.
São Paulo: RT, 1964, p. 32. 106
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. 2. ed., ver. e atual - Belo horizonte: Del Rey, 1996, p.
25 107
Conteúdo da Emenda XIV, in verbis: “All persons born or naturalized in the United States, and subject to the
juristiction there of, are citizens of the United States and the States where they reside. No State Shall make or
enforce any law which shall abrigde the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any
State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within
its jurisdicion the equal protection of the laws. Em tradução: “Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos
Estados Unidos e sujeitas à sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde residam.
Nenhum Estado editará ou aplicará qualquer lei que prejudique os privilégios e imunidades dos cidadãos
americanos; também nenhum Estado privará qualquer pessoa de sua vida, liberdade ou propriedade sem o
devido processo legal, nem negará a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção da lei”. in
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira, O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade, 2010, p.25. 108
Ibid, p. 45. 109
DÓRIA, Sampaio Antônio Roberto. Princípios constitucionais tributários e a cláusula do due process of law.
São Paulo: RT, 1964, p. 33.
51
construção jurisprudencial a respeito dos direitos e garantias individuais sob a égide do due
process of law – cujo conceito permitiu que se obtivesse controle para além da forma, mas
também da substância. É o que se passa a expor.
1.3 A evolução do conceito de Due Process of Law no Estados Unidos da América
A significativa distinção entre os Estados Unidos da América e a Inglaterra,
principalmente no que diz respeito à concepção das instituições públicas (ex.: Parlamento x
Judiciário), fizeram que os conceitos sobre o devido processo legal tivessem sentidos
significativamente distinto nos dois países.
Se por um lado o Parlamento Inglês significava para o seu povo o Poder
capaz de se opor à vontade do Monarca e o responsável pela evolução da defesa dos direitos e
garantias individuais, por outro lado, o poder legiferante britânico era o símbolo da repressão
para os cidadãos estadunidenses, tendo em vista que o Parlamento Inglês foi responsável pela
adoção de inúmeras medidas nefastas em termos de exploração econômica das colônias
Britânicas.
Isto fez com que os Estados Unidos da América caminhassem para
significativa construção da hegemonia do Poder Judiciário como órgão capaz de solucionar de
forma justa (ao contrário do que havia se mostrado a experiência do parlamento inglês) as
questões constitucionais.
Nesse sentido, é de se citar o paradigmático caso Marbury x Madson¸ no
qual, em 1803, restou decidido pela competência do órgão judicial para a apreciação de
qualquer caso que tratasse de matéria constitucional.110
A partir deste momento, conforme leciona Siqueira Castro, não tardou a
Corte Norte Americana em realizar o que se chamou de controle de razoabilidade dos atos
estatais, com legitimação na cláusula do due process of law:111
110
DÓRIA, Sampaio Antônio Roberto. Princípios constitucionais tributários e a cláusula do due process of law.
São Paulo: RT, 1964, p. 39. 111
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade. – 5. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2010. p.45.
52
Estimulada pela fluidez redacional da cláusula do due process of law e
reverente aos princípios liberais e ao preconceito „antiarbritário‟ que
subjazem a ideia de contrato social (social compact) formador da federação
americana, a justiça estadunidense não teve cerimônia em passar em revista
a legislação econômica-social editada em profusão a partir da segunda
década do Século XX, resultando do conjunto de suas decisões o axioma de
que uma lei não pode ser considerada uma law of the land, ou consentânea
com due process of law, quando incorrer na falta de „razoabilidade‟ ou de „
racionalidade‟, ou seja, em suma, quando for arbitrária.
Assim, é de se consignar que a concepção, ainda embrionária, de liberdade e
igualdade que fundamentou a promulgação da Magna Carta (consubstanciada no law of the
land), foi resgatada com forma ainda maior pelo Poder Judiciário Norte Americano, agora
utilizando a cláusula do devido processo legal, como standard da justiça,112
atuando como
verdadeira cláusula de controle das ações do Estado e de suas relações travadas com os
particulares. Nascia ali, a cláusula do devido processo legal em seu sentido substancial.
A cláusula do devido processo legal em seu sentido substantivo permitiu
que as Cortes Norte-Americanas realizassem julgamentos de mérito dos atos estatais, sob o
escopo da racionalidade, da proporcionalidade e da razoabilidade.
Neste contexto, cite-se, por exemplo: i) a anulação, na década de 30, de
cerca de 200 textos legislativos da política do New Deal, a revelar notável intervenção no
domínio econômico do estado sob utilização do devido processo legal substancial; ii) o caso
Griswold v. Connecticut (1965), em que encerrou a proibição do uso de anticoncepcionais,
sob o entendimento de que violaria a privacidade e; iii) o caso Roe v. Wade, no qual Roe foi
condenada criminalmente pela prática de aborto no Estado do Texas em primeira instância,
condenação reformada para anular toda a legislação Texana a respeito da matéria, tudo sob a
argumentação da Cláusula do Devido Processo Legal em seu sentido substancial.
Assim, o que se denota é que diante da construção jurisprudencial
estadunidense, a cláusula do Due Process Of Law assumiu significado mais abrangente do
que aquele formal, inicialmente observado com a assinatura da Carta Magna na Inglaterra.
Neste ínterim, verifica-se que, inicialmente, ante a supremacia do
Parlamento inglês, a cláusula do devido processo legal primava pelo conteúdo estritamente
112
Ibid¸ p. 46
53
formal (controle da forma, submissão ao processo). Posteriormente, com a hegemonia do
Poder Judiciário americano, passou a primar, também, pelo sentido material (ou substantivo) ,
tornando-se sinônimo de justiça, equidade e razoabilidade.
Pois bem. A construção histórica, delineada acima, tem o escopo de
delimitar a cláusula do devido processo legal em seu sentido adjetivo e substantivo, ao menos
sob o ponto de vista historicista. Resta saber se no ordenamento jurídico pátrio se admitiu tal
cláusula nos exatos termos informados neste tópico.
2. A cláusula do Devido Processo Legal
O apanhado histórico do tópico anterior permitiu identificar que a
construção histórica e axiológica da cláusula do Devido Processo Legal é, em sua síntese, um
instrumento de controle do exercício do Poder por parte do Estado. Inicialmente a cláusula
surgiu por meio de mecanismos processuais com vistas a garantir uma decisão justa (devido
processo legal em seu sentido formal), vale citar, o dever de contraditório, produção de
provas, duplo grau de jurisdição, dever de motivação, entre outros. Tais mecanismos, não
obstante eficientes, não se mostraram suficientes ao efetivo controle das decisões
administrativas, pois não garantem que a decisão estatal siga a mesma coerência dos
elementos colhidos durante a instrução processual. A completude do controle das decisões
estatais dependia, portanto, do controle do mérito da decisão estatal (devido processo legal
substancial). Existe aqui, portanto, duas facetas de um mesmo princípio.
No Brasil, a cláusula do Devido Processo Legal passou a ter previsão
expressa no ordenamento jurídico a partir da Constituição Federal de 1988. Porém, antes do
advento da Carta Magna vigente, a doutrina já previa tal princípio implicitamente nos
ordenamentos jurídicos anteriores a 1988. 113
Nesse sentido, Antônio Roberto Sampaio Dória114
bem recepciona a divisão
clássica da cláusula do Devido Processo Legal em seu sentido adjetivo e substantivo. Para o
113
Nesse sentido, DÓRIA, Sampaio Antônio Roberto. Princípios constitucionais tributários e a cláusula do due
process of law. São Paulo: RT, 1964, p. 39. 114
DÓRIA, Sampaio Antônio Roberto. Princípios constitucionais tributários e a cláusula do due process of law.
São Paulo: RT, 1964, p. 39.
54
autor, devido processo legal em seu sentido formal é a garantia das regras processuais,
enquanto que em seu sentido substantivo é o controle de razoabilidade do ato impugnado.
Ocorre que o regime constitucional que passou a vigorar a partir de 1988 é
significativamente distinto do que vigia até então. A Constituição Brasileira foi peculiar com
relação à extensa gama de princípios e garantias processuais. Certamente, muitos institutos
(para não dizer a totalidade deles) que surgiram por força da aplicação cláusula do Devido
Processo Legal estão previstos agora de forma expressa e independente na Constituição. Este
fenômeno implica numa análise mais cuidadosa no trato da Cláusula do Devido Processo
Legal com relação ao ordenamento pátrio. Admiti-la na totalidade de seu conteúdo axiológico
pode implicar em uma incoerência científica, caso isto ocorra resulta em violação aos
postulados da coerência e unidade do ordenamento jurídico.
Nesse sentido, Humberto Ávila afasta a hipótese do devido processo legal
em suas dimensões adjetivas e subjetivas. Segundo o autor, os deveres de razoabilidade e
proporcionalidade são oriundos dos princípios da Igualdade e Legalidade, os quais, por sua
vez, são normas que apontam para o estado ideal de determinado objeto a ser alcançado, sem,
contudo, indicar-lhe os meios para alcançá-lo. O alcance deste objeto, por sua vez,
pressuporia a obediência aos deveres de adequação, necessidade, proporcionalidade e
razoabilidade.115
A observância dos deveres de adequação, necessidade e proporcionalidade
visam promover o princípio da liberdade; e, por seu turno, o dever de razoabilidade visa
instituir a igualdade. Desta maneira, os deveres de adequação, necessidade,
proporcionalidade e razoabilidade, são princípios que decorrem logicamente dos princípios
da igualdade e liberdade (consectários lógicos implícitos).116
Por outro lado, aduz que os princípios podem ser promovidos ou
restringidos. De maneira que o processo nada mais é do que o “instrumento de proteção dos
direitos fundamentais decorrentes da aplicação reflexiva dos princípios, especialmente os de
liberdade e de igualdade, ou da incidência de regras”, assim como os princípios de
115
ÁVILA, Humberto. O que é devido processo legal? Revista de Processo. São Paulo, ano 33, v. 163, p. 51-59,
set. 2008 p. 51-52. 116
ÁVILA, Humberto. O que é devido processo legal? Revista de Processo. São Paulo, ano 33, v. 163, p. 51-59,
set. 2008. p. 53.
55
proporcionalidade e razoabilidade (dos quais decorrem a liberdade e igualdade) exigem um
processo adequado e justo para proteção dos respectivos direitos (realização de um estado
ideal de protetividade).117
Conclui o autor pela impossibilidade de adoção do preceito de devido
processo legal em sentido substancial como sinônimo de razoabilidade e proporcionalidade,
tendo em vista que tais deveres decorrem dos princípios da legalidade e igualdade – o que o
tornaria desnecessário e redundante.
Vale esclarecer que o autor trata, para efeito de processo justo, unicamente
como pressuposto instrumental. Reconhecendo o “devido processo legal procedimental”
como o único existente:
tem função de criar elementos necessários à promoção do ideal de
protetividade (função integrativa), interpretar as regras que já preveem
elementos necessários à promoção do ideal de protetividade (função
interpretativa) e bloquear a eficácia das regras que preveem elementos que
são incompatíveis com a promoção do ideal de protetividade (função
bloqueadora). 118
Ressalva, ainda, que como a Constituição Federal traz inúmeras regras
preestabelecidas como protetivas dos direitos fundamentais (como por exemplo, juiz natural –
art. 5º, XXXVII -, juiz imparcial – art. 95-, ampla defesa e contraditório – art. 5º LV - ,
motivação – art. 93, IX - , todos da Constituição Federal) o princípio do devido processo legal
exerceria, nesses casos, “uma função rearticuladora relativamente a esses elementos já
previstos”.119
Portanto, para o renomado autor, o princípio do devido processo legal se
manifesta apenas em sua dimensão processual, tratando-se de princípio instrumental à
promoção da melhor medida protetiva dos administrados.
Em sentido contrário, as lições do Ministro Cézar Peluso admite a existência
das duas vertentes da cláusula do Devido Processo Legal. Para demonstrar seu
posicionamento, transcreve-se o conteúdo da norma legal:
117
ÁVILA, Humberto. O que é devido processo legal? Revista de Processo. São Paulo, ano 33, v. 163, p. 51-59,
set. 2008 p. 54 – 55. 118
ÁVILA, Humberto. O que é devido processo legal? Revista de Processo. São Paulo, ano 33, v. 163, p. 51-59,
set. 2008 p. 56. 119
ÁVILA, Humberto. O que é devido processo legal? Revista de Processo. São Paulo, ano 33, v. 163, p. 51-59,
set. 2008 p. 59
56
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal;
Como leciona o Ministro Cézar Peluso, não é por acaso que a referida
expressão é composta por três signos: “devido” “processo” “legal”. Com efeito, não obstante
possa parecer que os signos “devido” e “legal” sejam um pleonasmo, na verdade tratam de
dois signos distintos. O emprego da expressão “devido” implica na assunção de que a
obrigatoriedade da realização de um processo não é só devido a título de lei, para tanto,
bastaria apenas o processo legal. Além de ser legal, o processo é devido a título de justiça. E,
conclui que o processo deveria ser o “justo processo legal”.120
.
Parece que a solução encontrada pelo Ministro Cézar Peluso é efetivamente
mais adequada ao regime jurídico-constitucional pátrio. Como se sabe, não existem palavras
inúteis no âmbito constitucional. Tivesse a Constituição da República pretendido recepcionar
apenas o sentido formal do referido princípio, limitar-se-ia a ressalva do “processo legal”.
Não obstante seja magnífica a solução conferida pelo referido doutrinador,
algumas ressalvas merecem ser feitas no que diz respeito à conclusão de que o devido
processo legal é devido a título de “justiça”. Como será visto com maior profundidade no
tópico, justiça é um valor intrínseco o ordenamento jurídico independentemente da
compreensão do Devido Processo Legal. Sendo assim, não parece que seja o caso de tratar
“Devido” como sinônimo de “Justiça”.
Todavia, a interpretação conferida por Peluso é de substancial importância
para identificar que a Constituição Federal de 1988, não obstante seu extensivo rol de
garantias processuais, incorporou ao seu ordenamento tanto o princípio de devido processo
legal formal, quanto o de devido processo legal substancial.
A despeito de discorrer com mais profundidade sobre o Devido Processo
Legal em suas dimensões formal e substancial é necessário fazer breve apontamento sobre o
conteúdo de processo.
120
Esta posição do Ministro Cézar Peluso diz respeito à transcrição de gravação em áudio da 4ª aula do Curso de
Direito Processual Civil, bem registrada por Ricardo Marcondes Martins em O conceito científico de processo
administrativo. Revista de Direito Administrativo (RDA), Rio de Janeiro, v. 235, jan.-mar. 2004, p. 370.
57
2.1 O conceito científico de processo
Decidir é escolher uma opção dentre duas ou mais disponíveis. Decidir
implica, portanto, em um ato de vontade. No âmbito das manifestações estatais, decidir
significa concluir realizar uma determinada atividade funcional. Se o Estado for
totalitário/arbitrário, o agente estará livre para a tomada de decisões. Se for um regime
democrático, a liberdade de escolha é demasiadamente limitada tendo em vista que sofre
interferência de uma série de fatores. A decisão proferida no âmbito do exercício de uma das
funções do estado é ainda mais restrita pois “para o agente estatal isso se torna muito mais
complexo por força da necessidade de se garantir aos diretamente interessados a
possibilidade de interferir no processo psicológico de decisão do agente encarregado de
torná-la: essa forma é processo”.121
O exercício das funções se dá por meio de decisões,
sendo assim, todas as funções estão submetidas ao rito processual.
Em estudo admirável, Ricardo Marcondes Martins, debruçado na
experiência civilista (que muito se dedica ao tema processual) tratou de conceituar um
conceito genérico de processo que se enquadra em todas as funções, a saber:122
Processo, pois, é uma série ordenada de atos destinada a prolação do
ato final, ato conclusivo consistente numa decisão (concretização do
exercício do poder estatal), e uma relação jurídica entre o Poder
Público e os diretamente interessados na decisão, de modo que estes
detenham instituída, ao seu favor, uma série de situações jurídicas que
lhes permitam influenciar no processo psicológico de escolha das
alternativas próprio do ato de decidir.
121
Ricardo Marcondes Martins em O conceito científico de processo administrativo. Revista de Direito
Administrativo (RDA), Rio de Janeiro, v. 235, jan.-mar. 2004, p. 348. 122
Ricardo Marcondes Martins em O conceito científico de processo administrativo. Revista de Direito
Administrativo (RDA), Rio de Janeiro, v. 235, jan.-mar. 2004, p. 349.
58
2.2 Devido Processo Legal em seu sentido formal
A compreensão do Devido Processo Legal em seu sentido formal é bem
elucidada pela distinção entre processo e procedimento. Procedimento é a sucessão de atos
legalmente preordenados a fim de que o resultado enseje a prolação de uma decisão.
Procedimento e processo não são sinônimos, são conceitos que se relacionam mas não se
confundem. Para que um procedimento seja um processo, é necessário que uma relação
jurídica processual se constitua por “todas as situações jurídicas que surjam entre o
diretamente interessado na decisão e o Poder público, representado pelo agente encarregado
de tomá-la”123
.
Dois fatores aqui são fundamentais, interesse e decisão. Toda vez que o
interesse resultar uma relação jurídica, o procedimento passa a ser processo. E passa a ser
processo porque a decisão atingirá o interessado e, em razão disso, o interessado deve ter
condições que o permitam influenciar124
“no processo psicológico de escolha das alternativas
próprio do ato de decidir”.
O Devido Processo Legal em seu sentido formal visa justamente garantir
que o interessado tenha condição de intervir efetivamente no resultado do julgamento. Esta
condição embrionária interventiva com o passar dos tempos deu destaques a inúmeros
institutos. Sendo assim, o devido processo legal formal seria um princípio constitucional geral
“que é concretizado por uma série de princípios constitucionais especiais (contraditório
ampla defesa, motivação, publicidade, imparcialidade ect.)”.125
Com efeito, a explanação supracitada é suficiente ao entendimento do
conteúdo jurídico do Devido Processo Legal em seu sentido formal. Na verdade a delimitação
da cláusula do Devido Processo Legal não encontra maiores desafios, a doutrina caminha
uníssona neste sentido. Ademais, como sabido, o escopo principal deste estudo é a
delimitação do devido processo legal em seu sentido substancial.
123
Ricardo Marcondes Martins em O conceito científico de processo administrativo. Revista de Direito
Administrativo (RDA), Rio de Janeiro, v. 235, jan.-mar. 2004, p. 349. 124
Ricardo Marcondes Martins em O conceito científico de processo administrativo. Revista de Direito
Administrativo (RDA), Rio de Janeiro, v. 235, jan.-mar. 2004, p. 349. 125
Idem ibid.
59
2.3 Devido processo legal substancial
2.3.1 Da disparidade doutrinária
É de se destacar que o posicionamento do Ministro César Peluso não deixa
dúvida quanto ao fato de que o ordenamento jurídico pátrio recepcionou a cláusula do Devido
Processo Legal em seu sentido substancial. Com efeito, o emprego da expressão Devido (além
da expressão legal) apregoa um sentido que vai muito além do que a simples observância de
instrumentos legalmente previstos que permitam ao interessado da relação processual a
possibilidade de intervir no resultado do julgado.
Se por um lado o renomado Ministro bem justificou o argumento de
recepcionamento do Devido Processo Legal em seu sentido substancial, por outro lado, não
parece satisfativa a solução dada ao conceito ao princípio como sinônimo de justiça. Não há
dúvida de que qualquer processo deva ocasionar a prolação de uma decisão justa. A crítica
que se faz à aproximação extrema dos dois institutos.
Todavia, na busca por uma resposta mais satisfatória, forçoso reconhecer
que a doutrina não soluciona a questão. Na verdade, os conceitos propostos ao princípio são
diversos. Além da proposta de aproximação entre o Princípio do Devido Processo Legal em
sentido substancial e justiça, proposto pelo Ministro Cézar Peluso, é doutrina usualmente
tratar do princípio como sinônimos de juízos de proporcionalidade e razoabilidade.
Um dos precursores desta posição é o jurista Carlos Roberto Siqueira Castro
estudioso do tema, foi um dos responsáveis pela inclusão do referido instituto quando da
última constituinte. Com efeito, o renomado jurista confere ao referido instituto o mesmo
sentido empregado pela Corte de Justiça estadunidense.
No mesmo sentido, Maurício Zockun126
relaciona o princípio do Devido
Processo Legal às garantias do Estado de Direito, salienta que, na verdade, razoabilidade e
126
ZOCKUN, Maurício. Regime jurídico da obrigação tributária acessória. São Paulo: Malheiros Editores,
2005, p. 67.
60
proporcionalidade são princípios implícitos que se extraem da própria cláusula do devido
processo legal.
Por sua vez, Lúcia Valle Figueiredo,127
reconhecendo a estreita vinculação
entre o Estado Democrático de Direito e Devido Processo Legal, salienta que este passou a
figurar como igualdade na lei (e não só perante a lei), o que implicaria em asseverar que os
conceitos são idênticos àqueles aduzidos pela Corte Norte Americana, veja-se:
Não é possível pensar que no final do século, com a evolução do Direito
Americano, desde as primeiras décadas deste mesmo século, quando se
incorpora a cláusula em nossa Constituição, equiparável às melhores
Constituições do Primeiro Mundo, à Constituição Espanhola, à Constituição
Portuguesa, à Constituição Alemã, não é possível, repetimos, supor-se que o
texto constitucional empregasse a cláusula do devido processo legal apenas
com seu aspecto formal, como o aspecto do século passado.
Ainda que a renomada jurista recepcione a concepção estadunidense,
acrescente um outro sentido. Aduz que o dever de motivação integra o devido processo legal
em seu sentido material, destacando esta ser a sua pedra fundamental. Aduz que o vício de
motivação implica na impossibilidade de acesso adequado ao Controle Judicial.
Em razão disto, ainda segundo a autora, o Devido Processo Legal
substancial estaria intimamente ligado ao dever de motivação, não só o dever de motivação
judicial trazida pelo artigo 93, X, da Constituição Federal, oriundo no próprio artigo 5º, inciso
LIV, da Constituição da República,128
portanto, dever implícito por forma do devido processo
legal em seu sentido subjetivo.
2.3.2 Considerações sobre a posição doutrinária pátria
Levando-se em consideração tudo o que foi dito ao longo do presente
trabalho (principalmente nos dois primeiros capítulos) a ciência do direito tem como função
precípua ordenar e sistematizar o mundo caótico do direito, observando-se a regra, que parece
127
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Estado de direito e devido processo legal. São Paulo: Revista do Trimestral de
Direito Público, número 15, p. 37. 128
Ibid. p. 41.
61
bastante clara, de que para o exegético do direito não existem palavras inúteis na Constituição
Federal.
Destarte, a razoabilidade, a proporcionalidade, a justiça, a fundamentação, o
princípio da igualdade e o princípio da legalidade vigoram autonomamente no ordenamento
jurídico e possuem valoração própria, não existindo qualquer relação de validade ou de
conteúdo com o princípio do devido processo legal substancial. Esta aproximação de
conceitos apenas torna ambígua a exposição e esvazia o conteúdo do devido processo legal
substancial.
Já foi dito que a proporcionalidade e a razoabilidade são postulados,
portanto, estão intrinsecamente vinculadas à Constituição. Trata-se de normas procedimentais
que condicionam a ponderação de princípios, os quais sequer poderiam ser revogados, mesmo
que esta fosse a vontade do legislador.
Os princípios da igualdade, da legalidade e da fundamentação estão
previstos expressamente na Constituição Federal, com conteúdos inequivocamente próprios e
independem do princípio do devido processo legal substancial para sua efetivação.
Por sua vez, admitir que o valor de justiça tem sua razão de ser no
ordenamento jurídico, exclusivamente em virtude do princípio do devido processo legal
substancial, é reduzir o próprio sentido de justiça de Direito.
Os ordenamentos jurídicos propõem-se a uma pretensão de correção, de
modo que não se admite como “jurídico” um sistema que não se propõe aplicar a justiça
(ainda que minimamente).
Aos anseios da rígida Constituição brasileira, a qual institui nítidos valores
da República e do Estado Social Democrático de Direito, o dever de justiça é pressuposto
indissociável.
Como se pôde observar, a doutrina pátria quando trata do princípio do
devido processo legal em seu sentido substancial, via de regra, o associa a outros institutos
jurídicos, seja a proporcionalidade, a razoabilidade, ao dever de fundamentação, ao princípio
da igualdade, ao princípio da legalidade ou até mesmo à justiça.
62
Com efeito, o conteúdo axiológico do devido processo legal substancial
observado em outras experiências (como no Direito inglês e estadunidense) deve ser
adequado à racionalidade específica do ordenamento jurídico brasileiro.
Ainda que exista este esforço na tentativa de conceituar o princípio do
devido processo legal, fato é que a doutrina se limita a aproximá-lo de conceitos análogos,
sem, contudo, apresentar um conceito único, preciso, que permita distingui-lo dos demais
institutos jurídicos.
2.3.3 Da problemática conceitual em face do ordenamento pátrio
De fato, no desenrolar dos tempos, o princípio do devido processo legal foi
imprescindível para o desenvolvimento de diversas regras e princípios de Direito,
principalmente no âmbito dos direitos e garantias individuais, capazes de se opor e controlar
ao uso arbitrário do poder.
E isso só foi possível em virtude da significativa abstração do princípio do
devido processo legal substancial, do qual surgiram o princípio da razoabilidade, da
proporcionalidade, foi aplicado como regra de justiça, entre tantos outros.
O grau de denotação do referido instituto foi imprescindível para a criação
do Direito Inglês, no qual vigora o sistema da common law, em que a Constituição é material,
cujas normas são extraídas de textos normativos esparsos, tratados, jurisprudência e do
costume.129
O mesmo ocorreu no sistema norte americano, no qual o sistema
Constitucionalista conferiu ao Poder Judiciário o controle e a interpretação das normas
constitucionais - de um país notadamente conhecido por sua forma reduzida, com normas de
alto grau de denotação, conferindo ainda maior margem de atuação ao Poder Judiciário.
A experiência destes dois países permitiu a construção da cláusula do
devido processo legal substancial com extenso e riquíssimo conteúdo axiológico, conferindo
ampla margem de deliberalidade ao Poder Judiciário.
129
MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da constituição federal. São Paulo: Malheiro
– Temas de direito Administrativo 29, 2011, p. 30.
63
Para ilustrar, pode-se até fazer uma comparação com a experiência
observada no Conselho de Estado Francês, que diante da escassa (para não dizer inexistente)
regulamentação legislativa, o Conselho viu-se obrigado (e permitido) a construir
jurisprudencialmente o regime jurídico-administrativo.
Ocorre que, no caso brasileiro, a realidade é totalmente distinta. Com o
advento da Constituição Federal de 1988, muitos daqueles valores que inicialmente derivaram
da cláusula do devido processo legal substancial na experiência estadunidense e inglesa,
foram expressa e individualmente previstos na constituinte brasileira.
Em outras palavras, esses tipos de cláusulas embrionárias surgiram como
uma espécie de válvula de escape do sistema vigente à época (sistema este ainda pouco
evoluído). Como tinham pouco conteúdo semântico, admitiam o emprego de conceitos até
então inéditos. Porém, com o passar dos tempos, estes conceitos inovadores passaram a ter
significação própria e estas cláusulas retornaram a ter pouca densidade semântica.
Márcio Cammarosano identificou movimento semelhante, ao caso vertente,
com relação ao princípio da Moralidade Administrativa.130
Conforme leciona o renomado
jurista, o Direito torna jurídico os valores de acordo com determinada conduta que se pretende
regular. Por outro lado, não faz qualquer incorporação daquelas condutas que entende
irrelevante para o ordenamento jurídico. É o exemplo da mentira. Mentira e verdade
representam um valor ligado a uma virtude. Em determinados campos, o direito jurisdicizou
esta virtude, em outros não. O réu não está obrigado a falar a verdade, a testemunha sim.
Ao tratar do princípio da Moralidade, Márcio Cammarosano destaca que,
com base neste valor, a Constituição jurisdicizou o princípio da moralidade administrativa
(que não se confunde com a moral comum).
Juntamente ao princípio da moralidade administrativa, o legislador
constituinte tratou de incorporar tantos outros conceitos indeterminados próximos ao princípio
da moralidade, como por exemplo, dignidade da pessoa humana, integridade moral, decoro
parlamentar, idoneidade moral, reputação ilibada, existência digna, justiça social,
paternidade responsável. Ao que o autor conclui:
130
CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função
administrativa. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 77-83.
64
Essa permeabilidade de certos conceitos [...], faz-nos lembrar de lições de
Agustin Gordillo, a respeito da existência, especialmente no Direito Público,
de muitas palavras „que constituem uma verdadeira estrutura oca’, cuja
função histórica tem sido tanto „a de servir contra a liberdade‟, como „servir
de enlace às valorações metajurídicas‟, permitindo „introduzir variáveis
axiológicas que significassem uma adequação permanente das normas às
cambiantes realidades‟. Algumas dessas palavras, como proporcionalidade,
razoabilidade, e boa-fé, cumprem, diz o autor, e com eles concordamos, „uma
função valorativa positiva‟.131
(sem destaque no original)
Se se admite que o referido princípio equipara-se conceitualmente ao
postulado da proporcionalidade, ao postulado da razoabilidade; ao postulado da justiça, e aos
deveres de fundamentação e motivação das decisões administrativas, confirmar-se-á o caráter
“oco” da norma.
Isto se comprova pela seguinte situação hipotética. Imagine que o poder
constituinte derivado resolva aprovar emenda constitucional modificando o artigo 5º, inciso
LIV, da Constituição Federal,132
que passaria a vigorar com a seguinte redação: “ninguém
será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal formal. No estado
brasileiro não mais se aplica o princípio do devido processo legal em sua vertente
substancial”.
Ainda que o exemplo seja absurdo, ele é explicativo. Com efeito, o novo
regime em nada modificaria o ordenamento jurídico, pois não há conteúdo semântico ao
referido princípio. Os postulados da proporcionalidade, razoabilidade, da justiça, os deveres
de fundamentação e motivação das decisões continuariam vigentes.
O risco é que um princípio com significativa carga axiológica e
originariamente constituído tenha sua eficácia suprimida. E, como bem relata Lenio Luiz
Streck, hoje há um panprincipiologismo significativamente prejudicial à compreensão, a
aplicação do ordenamento jurídico e a força da própria Constituição133
:
131
CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função
administrativa. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 82. 132
Evidentemente, por se tratar de cláusula pétrea, o artigo 5º, inciso LIV, CF, jamais poderia ser objeto de
modificação. Mas, é pertinente a preposição, apenas como questão hipotética. 133
STRECK, Leino Luiz. Verdade e consenso : constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São
Paulo : Saraiva, 2011, p. 538.
65
Percebe-se, assim, uma proliferação de princípios, circunstâncias que pode
acarretar o enfraquecimento da autonomia do direito (e da força normativa da
Constituição), na medida em que parcela considerável (desses „princípios‟) é
transformada em discurso com pretensões de correção e, no limite, como no
exemplo da „efetividade‟, um álibi para decisões que ultrapassam os próprios
limites semânticos do texto constitucional. Assim, está-se diante de um
fenômeno que pode ser chamado de panpriciologismo‟, caminho perigoso
para um retorno à „completude‟ que caracterizou o velho positivismo
novecentivista, mas que adentrou o século XX.
2.3.4 Um problema de segurança jurídica
Na verdade, conforme se demonstrará mais a frente, não se pretende fazer
completo esvaziamento da norma, em absoluto. Mas não se pode corroborar, até mesmo por
uma questão de rigor científico, que o princípio do devido processo legal substancial seja
incorporado com todo seu valor axiológico histórico, sob pena de se transformar em uma
“carta branca” ao operador de direito.
É verdade que sua ampla abstração foi a pedra de torque de significativas
conquistas no campo das garantias e direitos individuais, mas a sua imprecisão pode ser a
válvula de escape também para muitas injustiças. Cláusulas “ocas”, ao mesmo tempo que não
representam nada, podem passar a representar tudo. Admirável a sensibilidade de Tércio
Sampaio Ferraz Jr. a esse respeito:
no estudo do direito é, pois, entronizar-se num mundo fantástico de piedade e
impiedade, de sublimação e de perversão, pois o direito pode ser sentido
como uma prática virtuosa que ser ao bom julgamento, mas também usado
como instrumento para propósitos ocultos inconfessáveis.134
Chega a ser dramático: um princípio emblemático, tipicamente destinado ao
controle dos méritos decisórios, passa a ser uma carta “em branco” para juízo arbitrário e
decisionismos. E pior, sob o mando da proporcionalidade e razoabilidade!
Mas nem tudo está perdido. Como já foi dito antes, não existem palavras e
conceitos inúteis no ordenamento jurídico. Cumpre ao cientista do direito encontrá-lo, é o que
se pretende expor.
134
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. – 6. ed. –
3- reimpr. – São Paulo: Atlas, 2011. p. 1.
66
2.3.5 Cláusula do Devido Processo Legal substancial enquanto controle de conteúdo
decisório
Até o presente tópico demonstrou-se que a cláusula do Devido Processo
Legal em seu sentido substancial está adequadamente incorporada ao ordenamento jurídico
pátrio. Todavia, a delimitação de seu conteúdo é medida significativamente desafiadora em
virtude da significativa redução do conceito do princípio em face do extenso rol de princípios
incorporados expressamente pelo regime jurídico da Constituição Federal de 1988. Se por um
lado princípio é “oco”, por outro encontra uma gama de “concorrentes” conceituais.
Foi exaustivamente dito neste trabalho que o conteúdo axiológico da
cláusula do Devido Processo Legal em seu sentido substancial só merece acolhida na exata
medida em que não confrontar diretamente com outras normas constitucionais.
Neste sentido, existe uma característica em comum, tanto do conteúdo
axiológico da cláusula do Devido Processo Legal em seu sentido substancial quanto os
demais institutos análogos possuem uma característica em comum não colidente: todos dizem
respeito ao controle do mérito da decisão estatal. Esta é uma característica comum a todos os
elementos até agora comparados, porém, não possuem qualquer conflito conceitual.
Identificar a cláusula do Devido Processo Legal em sentido substancial
enquanto norma atinte ao controle do mérito estatal é o ponto de partida para a identificação
de seu conteúdo.
2.3.6 Cláusula do Devido Processo Legal em sentido substancial e a busca pela melhor
decisão.
Quando instituída a law of land, ela nada mais representava do que um
simples procedimento que deveria ser observado para a tomada de decisão do Monarca.
Porém, a figura do Estado naquela oportunidade não possuía qualquer desenvolvimento no
âmbito das instituições jurídicas, vale lembrar: o Monarca era juridicamente irresponsável.
Trata-se, indiscutivelmente, do tratamento e do cuidado com a questão de
limite de poderes para proferir decisões estatais, principalmente da decisão judicial. Este
enfoque, para não dizer esta preocupação, é pertinente e tem sua razão de o ser.
67
Porém, na forma do Estado Contemporâneo, - passados 800 anos – muito se
desenvolveu de lá para cá. O Estado foi submetido à Lei e, mais do que isso, passou a exercer
função, está uma construção meramente instrumental para com a persecução com o interesse
público e o interesse coletivo.
Ao contrário do que se observa na sociedade moderna, anas primeiras
formas de Estado de Direito, principalmente no Estado de Direito Liberal, as constituições
possuíam pouca efetividade, dada a ideologia liberal, “segundo a qual a não intervenção do
Estado tinha como contrapartida a auto-regulação da esfera social”135
.
Nesta versão do Estado Liberal, o Poder Legislativo constituía órgão
prioritariamente voltado à representação da vontade popular, de modo que “subordinava ao
Executivo e ao Judiciário, favorecendo ao Legislativo que expressava a chamada vontade
geral na exposição de Rousseau”136
.
Já no Estado contemporâneo, a realidade é totalmente diversa. O Poder
Legislativo tem se mostrado significativamente deficitário no trato e na regulação da vida
social, dada a pluralidade de funções estatais e a heterogeneidade social. O moroso processo
político/legislativo não socorre, em tempo, os frenéticos anseios da sociedade contemporânea.
Pietro Alarcón, citando Prieto Sanchís, destaca que o constitucionalismo
moderno é marcado pelo “forte conteúdo normativo e garantia jurisdicional”137
. Neste
sentido, o Poder Judiciário passou a exercer papel central na democracia moderna, é o
guardião da constituição, responde com mais eficiência e rapidez na garantia e efetividade dos
direitos fundamentais e na resolução dos conflitos sociais.
E, para compreensão da importância do princípio do Devido Processo Legal
substancial face ao ordenamento jurídico moderno, é imprescindível a figura da função.
Enquanto exercício de função todo o aparelho estatal age em nome no ordenamento jurídico.
Não há campo para vontade ou caprichos do administrador, só o comando legal e o interesse
público importam.
135
LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Ciência política, Estado e direito público: uma introdução ao direito
público da contemporaneidade. São Paulo: Verbatim, 2011, p . 126. 136
LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Ciência política, Estado e direito público: uma introdução ao direito
público da contemporaneidade. São Paulo: Verbatim, 2011, p . 126. 137
LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Ciência política, Estado e direito público: uma introdução ao direito
público da contemporaneidade. São Paulo: Verbatim, 2011, p . 126.
68
O Estado, só se manifesta por meio de decisão em qualquer uma de suas
funções: a função administrativa enseja a prolação de um ato administrativo, a função judicial
prolata-se uma sentença (ou um acórdão) e a função legislativa promulga-se uma Lei.
Qualquer um dos atos proferidos devem, inexoravelmente promover da melhor maneira
possível os comandos do ordenamento jurídico.
Enquanto princípio, a cláusula do Devido Processo Legal substancial é um
mandado de otimização. Mandados de otimização determinam que algo seja proferido da
melhor maneira possível. A cláusula do Devido Processo Legal determina que as decisões
estatais sejam proferidas da melhor forma possível.
Dogmaticamente não existe qualquer problema em se admitir que as
decisões judiciais devam ser a melhor decisão possível. Se, o caráter funcional determina que
a submissão a um determinado regime, deve o agente responsável apresentar a solução
(decisão) que melhor satisfaça os princípios incidentes no caso concreto observada suas
peculiaridades.
Ora, a cláusula do Devido Processo Legal em seu sentido substancial nada
mais é que o que dever do Estado decidir para melhor forma possível. Não é em outro sentido
a lição do memorável processualista Cássio Scarpinella Bueno138
:
O “devido processo legal substancial” busca, bem diferentemente,
outras realidades, relativas à interpretação possível no caso concreto.
[...] não há como negar aqui mesmo aqui mesmo que a importância do
tema “devido processo legal substancial‟ cresce na exata medida em
que se constata a (irreversível) “abertura” que tipifica o “paradigma”
do direito dos dias atuais [...]. Como a melhor interpretação do direito
pode depender, muitas vezes, de uma maior, quiçá necessária,
interação entre o órgão competente para aplicar a norma jurídica e os
valores reinantes na sociedade civil e no próprio Estado – até mesmo
pela complexidade, técnica inclusive, que, cada vez mais, tem
caracterizado o objeto do regramento jurídico -, não há como negar que
a melhor pauta de interpretação do direito pode depender,
crescentemente, de uma mais ampla e generosa concepção do próprio
processo (devido processo legal “formal”, neste sentido) para permitir
que o magistrado possa ter acesso a estes valores que, dispersos pela
sociedade e pelo próprio Estado, mostram-se decisivos para
interpretação e aplicação da norma jurídica.
138
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil : teoria geral do direito
processual civil, 1. 3. ed. São Paulo : Saraiva, 2009. p. 109.
69
Como dito, não há dificuldade em se reconhecer dogmaticamente a cláusula
do Devido Processo Legal substancial como princípio ordenador da busca da melhor decisão
– observadas todas as características instrumentais do exercício da função estatal - resta
alguns esclarecimentos sobre o que se entende por “Melhor decisão”.
2.4 A “melhor” decisão
A discussão a respeito do tema da “melhor” decisão por vezes é tormentosa.
Em verdade, o que parece é verdadeiramente uma supervalorização daquilo que poderia ser
imaginado como melhor solução a um determinado caso concreto. Com efeito, a primeira
impressão sobre o enfrentamento do tema, quer parecer que “a fonte” da melhor decisão é
quase um instituto divino, um intangível conhecimento transcendental. Há um certo exagero
no tema.
Nunca é demais lembrar que o Direito e o Estado são concepções fictícias
criadas pelo próprio homem, e pelo homem é conduzido. Quando se espera que um ser
humano seja responsável pela “melhor” decisão, se exige que produza a “melhor” decisão
levada em consideração as fragilidades e imperfeições existentes em TODO ser humano.
As lições de Lenio Streck bem esclarecem a questão a afirmar que “a
resposta não é nem a única e nem a melhor: simplesmente trata-se da „resposta adequada a
Constituição‟, isto é, uma resposta que dever confirmada na própria Constituição, na
constituição mesma”139
.
Se, por um lado, não se exige dos homens que decidam como verdadeiras
divindades, por outro lado, não é admissível que autoridades, enquanto agentes públicos no
exercício de função, possam “dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”140
.
Já foi dito: decidir é produzir uma norma jurídica. E, enquanto norma
jurídica, o ato decisório deve obediência ao ordenamento jurídico, deve obediência ao
139
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma explosão hermenêutica da construção do
Direito. 11. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2014, p. 433. 140
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma explosão hermenêutica da construção do
Direito. 11. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2014, p. 433. A expressão é do prório
Lenio Streck.
70
interesse público. Neste sentido, antes de mais nada a decisão adequada deve ser alheias as
interjeições subjetivas do julgador. O exemplo de Dworkin é paradigmático141
:
Assim, um juiz que segue a concepção centrada nos direitos não deve decidir
um caso controverso recorrendo a qualquer princípio que seja incompatível
com o repertório legal de sua jurisdição.
O direito, antes de tudo, é linguagem142
, é comunicação. O âmbito da
decisão não é diferente. “O ato de decidir juridicamente é um ato racional, pois ele exige
fundamentação”143
“Para ser racional, o discurso decisório tem que estar aberto à
possibilidade de questionamento”.144145
.
A racionalidade146
empregada por Robert Alexy é destinada a correção dos
argumentos (enquanto calçados em argumentos de verdade147148
) . Com efeito, a adoção de
141
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo : Martins Fontes, 2006, p. 16. 142
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria da
Fundamentação Jurídica. 3.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011, p. 7. 143
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 6. ed. 3. reimpr. São Paulo: Atlas,
2011, p. 299 144
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 6. ed. 3. reimpr. São Paulo: Atlas,
2011, p. 299 145
Com efeito, Robert Alexy se dedicou a criação de uma Teoria da Argumentação específica para o campo do
direito, trata-se da Teoria da Argumentação Jurídica. Em síntese, calçado em uma Teoria do Discurso Prático
Geral, pretende o autor estabelecer normas mínimas e universais capazes de controlar a racionalidade do
discurso jurídico, tanto na prática quanto na ciência do direito Com efeito as principais normas lançadas pelo
Autor consistiram: “1) qualquer um pode tomar parte no discurso, introduzir e problematizar qualquer asserção
(uma das regras de razão de Alexy – chamada por Habermas de princípio D, princípio da concreção); 2) Se o
falante aplicar um predicado a determinado objeto, deve aplica-lo também a qualquer outro objeto semelhante
nos aspectos essenciais (uma das regras fundamentais de Alexy – chamada por Habermas de princípio U,
princípio da universalidade, expressa no Direito tanto pelo princípio da isonomia quanto pela analogia como
método de integração do ordenamento jurídico); 3 )O falante não pode se contradizer (princípio da não
contradição tanto da lógica formal – envolvendo então o princípio da identidade e do terceiro excluído –
quanto a lógica do discurso, determinando a não contradição performativa); 4) O falante só pode afirmar
aquilo em que ele mesmo acredita (pretensão de veracidade habermasiana); 5) O falante não pode usar a
mesma expressão que outros falantes com significados diferentes (pretensão de inteligibilidade formulada por
Habermas); 6) O falante deve fundamentar o que afirma se lhe for pedido (regra geral da fundamentação)”.
Vale destacar também que Alexy estipulou tantas outras regras significativas. A primeira delas é o princípio
da inércia, segundo o qual o falante não precisa justificar os argumentos já aceitos. Em caso de contra-
argumentos mais justificativas devem ser dadas. A teoria consensual da verdade submete as argumentos
valorativos a apreciação condição de validade, exceção feita aos casos em que discurso é fundamentado pelo
próprio argumento que se pretende validade (trilema de Munchhaysen – circularidade). ALEXY, Robert.
Teoria da argumentação jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria da Fundamentação Jurídica.
3.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011, p. 8 a 11). 146
A racionalidade de um discurso jurídico pode ser aferida sob dois aspectos formal ou material. O formal é
destinado a avaliação lógica do discurso e o material dedica-se ao conteúdo do discurso. (ALEXY, Robert.
Teoria da argumentação jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria da Fundamentação Jurídica.
3.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011. p.4) 147
Por estar vinculado a esta corrente, “pós-reviravolta linguístico-pragmática”, Alexy não vislumbra valores
como justiça e razão prática como aquele refrida por Kant. Justiça, para Alexy é justiça formal, nos termos de
71
regras procedimentais argumentativas torna a valoração e inibem a adoção
indiscriminadamente subjetiva de valores, isto é, “a objetivação de consensos se dá
argumentativamente, segundo regras do discurso, tornando-os corretos ou verdadeiros
porque racionalmente fundados. Sendo discursivamente racionais, são tornados universais.”
149
Portanto, não basta que o agente competente apenas aliene-se de condições
subjetivas quando do momento da decisão. Não basta que os valores almejados no processo
decisório tenho sido objetivos em consonância com o ordenamento. É necessário mais. É
necessário que o agente exteriorize não apenas sua decisão, mas deve, isto sim150
:
explicar os motivos de sua compreensão, oferecendo uma justificação
(fundamentação) de sua interpretação, na perspectiva de demonstrar como a
interpretação oferecida por ele é a melhor para a aquele caso (mais adequada
à Constituição ou, em termos dworkinianos, correta), num contexto de
unidade, integridade e coerência com relação ao Direito da Comunidade
Política.
Veja, o que torna uma decisão correta (ou a melhor decisão) não é apenas a
excelência do resultado prático de seu comando, mas também a forma e procedimento de sua
prolação. Não basta que o agente público simplemente aponte qual a medida mais adequada a
uma determinada questão, é preciso que ele demonstre os motivos de sua escolha, mais do que
isto, deve mostrar a pertinência e adequação de seus motivos.
Sendo assim, a melhor decisão não representa em absoluto uma providência
divina à questão de determinado caso concreto. Com efeito a melhor decisão, compreendida
nos termos aqui exposto, deve:
princípio da igualdade formal (derivado do princípio da universalidade). E razão prática é sinônimo de razão
comunicativa. Se, para Alexy – calçado da Filosofia da Linguagem - a verdade não é algo absoluto, a Teoria
do Discurso Geral não vislumbra controle do conteúdo dos enunciados, ela é puramente procedimental e
pautadas em critérios de correção que visam afastar os argumentos irracionais e se aproximar “ao ideal que
funciona como parâmetro para a facticidade” (ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a Teoria do
Discurso Racional como Teoria da Fundamentação Jurídica. 3.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011, p. 10). 148
Há aqui um rompimento com o conceito de verdade aristotélica. Para Alexy, reconhecer que a “verdade” é
produto do conhecimento humano, é reconhecer que a verdade é um produto cultural, sempre passível de
refutabilidade. (ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria
da Fundamentação Jurídica. 3.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011, p.7). 149
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria da
Fundamentação Jurídica. 3.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011, p. 5. 150
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma explosão hermenêutica da construção do
Direito. 11. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2014, p. 433.
72
i) Ser promulgada por razões objetivas e coerentes com os preceitos do
próprio ordenamento jurídico;
ii) Externar as razões da escolha de determinada medida, a fim de justificar
satisfatoriamente os argumentos racionais de sua opção;
iii) Observar o procedimento decisório que efetivamente permita a verificação
os dois primeiros tópicos
Se o agente público competente efetivamente cumprir todos o níveis
necessário sua decisão é a prioristicamente a melhor decisão. Ainda que novas especulações
possam surgir, permanece a decisão enquanto não se comprovar que outra medida seja mais
eficaz.
Vale dizer, a cláusula do Devido Processo Legal em seu sentido substancial
determina que se busque a melhor decisão, porém, por se tratar de um princípio não trata da
forma de se buscar a melhor decisão.
Atualmente, é forçoso reconhecer que a corrente discursiva tem
conquistados grandes avanços no que se refere a preocupação em criar instrumentos de
controle do mérito das decisões estatais. Hoje, as soluções que os discursistas apresentam são
mais avançadas nestes sentido, enquanto perdurarem aplica-se, até que soluções mais
satisfatórias surjam.
Encerrada estas considerações, passa-se a demonstrar como a função
administrativa se interaciona com a cláusula do Devido Processo Legal em sua forma
substancial.
73
Capítulo IV – O DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANCIAL E A FUNÇÃO
ADMINISTRATIVA
Devido Processo Legal em seu sentido substancial é um princípio que se
relaciona com o controle do conteúdo das decisões estatais. As três funções estatais emanam
decisões: a função judicial profere decisão, a função legislativa promulga leis e a função
administrativa prolata ato administrativo.
Nestes termos, o Devido Processo Legal substancial interage com a função
administrativa na forma de seus atos administrativos. Este capítulo é dedicado a estudo do ato
administrativo e a forma de prolação da melhor decisão, do melhor ato.
1. Ato Administrativo
1.1 Conceito
Já se falou, ato administrativo é, antes de tudo uma norma jurídica. Consiste
na forma de manifestação da função administrativa. Segue a fórmula lógica “H→C”. Por se
tratar de função administrativa, sua edição se dá por imposição do regime jurídico-
administrativo. São duas hipóteses: ou a lei exige que o ato seja expedido, ou essa exigência
decorre diretamente de um princípio constitucional”151
.
Vale transcrever o conceito de Celso Antônio Bandeira de Mello:
Declaração do Estado (ou quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um
concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas,
manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de
lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão
jurisdicional152
.
151
MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da constituição federal. São Paulo: Malheiro
– Temas de direito Administrativo 29, 2011, p. 109. 152
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros,
2013, p. 389. O Autor faz a ressalva de que “pode haver alguma hipótese excepcional na qual a Constituição
regule de maneira inteiramente vinculada um dado comportamento administrativo obrigatório. Em casos
desta ordem poderá, então, haver ato administrativo imediatamente infraconstitucional, pois a ausência de
lei, na qual o ato seria a providência jurídica de caráter complementar, não lhe obstará a expedição”.
74
Ato administrativo é o gênero das diversas normas administravas. Sendo
assim, um ato administrativo pode emitir normas individuais e gerais, individuais e concretas,
gerais e abstratas, gerais e concretas, unilaterais e bilaterais153
.
Nem todo ato praticado pela administração pública é necessariamente um
ato administrativo, pertinente distinguir atos administrativo de atos da administração. São atos
da administração os atos regidos pelo direito privado154
, atos materiais155
e atos políticos ou
de governo156
. Há também atos administrativos que não são praticados diretamente pela
Administração Pública, como o caso dos atos relativos a vida funcional servidores públicos de
outros de outros poderes.
2. Procedimento de decisão administrativa
Como dito no capítulo acima, a cláusula do Devido Processo Legal
substancial determina que o agente público profira a melhor decisão possível e, por melhor
decisão possível, entenda-se que é aquela que preenche os requisitos: i) ser promulgada por
razões objetiva e coerentes com os preceitos do próprio ordenamento jurídico; ii) externar as
razões da escolha de determinada medida, a fim de justificar ser satisfatoriamente os
argumentos racionais de sua opção e; iii) observar procedimento decisório que efetivamente
permita a verificação os dois primeiros tópicos.
O Professor Ricardo Marcondes Martins em sua primordial obra efeitos dos
vícios do ato administrativo foi responsável pela construção de um brilhante procedimento
decisório que preenche todos os requisitos citados. É o chamado procedimento de decisão
administrativa que consiste num “conjunto de trâmites que devem ser seguidos pelo agente
para a obtenção do resultado final, para a edição do ato”, este não se confunde com
153
MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da constituição federal. São Paulo: Malheiro
– Temas de direito Administrativo 29, 2011, p. 115. 154
Tratam-se de atos em que o conteúdo não é regido pelo Direito Administrativo, de modo que não possuem
natureza típica de ato administrativo (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito
administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros, 2013, p. 387). 155
Não representam atos jurídicos, como a pavimentação de uma rua, por exemplo. (BANDEIRA DE MELLO,
Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros, 2013, p. 388). 156
Atos praticados tipicamente no exercício da função política. Bandeira de Mello, vale, identifica, além das
funções administrativa, legislativa e judicial a função política. Não compartilha-se do mesmo entendimento,
porém, mantem-se a classificação exposta para não deixar incompleta a classificação do Autor. BANDEIRA
DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed., São Paulo: Malheiros, 2013, p. 388)
75
procedimento administrativo que é a “cadeia ordenada de atos tendentes a um ato
conclusivo”.
Como bem assinala o próprio Autor, a exigência do procedimento é uma
imposição do próprio Estado Democrático:157
:
O procedimento de decisão é uma imposição do Estado Democrático de
Direito: visa, em última análise, a justificar a decisão tomada pela
Administração, ou seja, à obtenção de adesão social, consenso; trata-se de um
meio de convencimento do endereçado sobre o acerto da decisão. (sem
destaque no original)
É mais uma confirmação a despeito do conceito proposto ao Devido
Processo Legal substancial neste estudo. Como destacam Sérgio Ferraz e de Adilson de Abreu
Dallari158
“Processo e democracia: binômio incindível. Claro: não qualquer processo, mas o
devido processo legal (em sentido formal), como direito humano fundamenta”.
Pois bem. Ao todo, o procedimento indica 8 (oito) estágios para prolação do
ato administrativo, a saber: i) análise das circunstâncias fáticas; ii) não subsunção das
circunstâncias fáticas ao suporte fático de uma regra abstrata; iii) subsunção das
circunstâncias fática ao suporte fático de uma regra abstrata; iv) postulado da
proporcionalidade e da razoabilidade (subdividido em seis sub estágios); iv.i) Legitimidade e
fim; iv.ii) adequação; iv.iii) necessidade; iv.iv) proporcionalidade em sentido estrito;
iv.v)razoabilidade e; iv.vi) justiça.
O início do procedimento se dá após preenchidos todos os requisitos legais
para prolação do ato administrativo e se o agente for devidamente competente para a sua
prática. Como se demonstrará
2.1 Análise das circunstâncias fáticas
157
MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da constituição federal. São Paulo: Malheiro
– Temas de direito Administrativo 29, 2011. O procedimento está descrito entre o item 4, do Capítulo VI. A
citação de p. 175 158
FERRAZ, Sérgio e DALLARI, Adilson de Abreu. Processo Administrativo. 2. ed. - São Paulo : Malheiros
Editores, 2002, p.23
76
É aqui a apreciação do mundo fenomênico. Enquanto norma jurídica o ato
administrativo obedece o padrão lógico de um antecedente ligado a um consequente por uma
relação de imputação. O antecedente diz respeito a previsão de uma situação fática que, caso
ocorra imputa-se o consequente. Nestes termos o primeiro passo é identificar se o fato real
preenche o antecedente de uma ou mais regra jurídicas.
2.2 Não subsunção das circunstâncias fáticas ao suporte fático de uma regra abstrata
Já foi dito, regras jurídicas são, em ultima instância um conflito de
princípios, sendo assim, as regras podem não incidir necessariamente no caso concreto se for
constatado que um princípio até então suprimido deva prevalecer, hipótese que a ponderação
de princípio criará uma nova regra que afastará a regra anterior.
No caso, tendo em vista que a análise do fato concreto não preencheu o
antecedente de uma regra jurídica é possível que seja editada uma norma por meio do
sopesamento entre princípios. Vale destacar que o suporte fático de um princípio é diferente,
enquanto regras jurídicas preveem fatos, princípios jurídicos são antecedidos por um
determinado fim. Se diante do processo de ponderação resultar na edição de uma norma, há no
caso do exercício da função administrativa a concretização de um ato administrativo.
2.3 Subsunção das circunstâncias fática ao suporte fático de uma regra abstrata
Verificada a ocorrência de subsunção entre o fato e uma regra (tanto a regra
pré-existente quanto a regra oriundo do processo de sopesamenteo entre princípios) verifica-
se qual o princípio que dá primazia à regra imposta, assim como, identificar os demais
princípios (supridos) que incidem no caso concreto e o princípio formal que dá primazia à
ponderação.
Faz o juízo de ponderação. Se constatado a prevalência do princípio dantes
suprimido, edita-se um novo ato administrativo dando primazia ao princípio primado. Por
outra via se prevalecer o princípio que já lhe dava primazia o agente público profere ato
concretizador da regra jurídica.
77
2.4 Postulado da proporcionalidade e da razoabilidade
Independentemente das hipóteses constatadas acima, todas acabam e certa
forma exigindo uma ponderação entre os princípios incidentes no caso concreto. Este juízo é
efeito postulado da proporcionalidade, na forma já exposta nos itens 4.2.1 a 4.2.5 do Capítulo
I. Trata-se do procedimento sequencial entre os subprincípios da adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito, além do postulado da razoabilidade. É de lembrar que o
exame é feita na sequencia exposta. Ineficaz a medida (portanto desproporcional)
desnecessário a realização do subpostulado subsequente.
2.4.1 Justiça
Segundo o Autor, superado o exame da proporcionalidade e da
razoabilidade da medida cumpre verificar ainda se a medida é justa. Vale destacar que
superadas todas as etapas, há uma razão prima facie em favor da solução adota. Isto porque
Por curiosidade vale destacar que o Autor admite o postulado da justiça em
razão do acolhimento da tese de Robert Alexy, a despeito da vinculação entre Direito e
Moral.159
. Contudo, aproximando-se do que sustenta Ronald Dworkin, não descarta o direito
posto. A diferença é que para Alexy os casos de vinculação só se dão em casos extremos de
injustiça (vinculação fraca) 160
.
159
Para Alexy, a conceituação normativa do direito se dá no campo de quatro classificações: (i) conceitos de
direito isentos de validade e conceitos de direito não isentos de validade; (ii)sistemas jurídicos como sistemas
normativos e como sistemas de procedimentos; (iii) A perspectiva do observador e a perspectiva do
participante; (iv) conexões classificadores e conexões qualificadoras. Efetivamente as variações entre a tese
da vinculação ou da separação em cada uma destas hipóteses para gerar uma significativa e ampla ramificação
de resultados de teses. (ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. org. Ernesto Garzón Valdés [et al].;
trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, p. 28-32). 160
A distinção entre a tese da separação e da vinculação pode se dar tanto pelo critério normativo quanto pelo
critério analítico. Do ponto de vista analítico ao positivista cabe afirmar pela inexistência de qualquer
vinculação entre direito e moral. Já o defensor da tese da não vinculação não está obrigado a militar pela
conexão conceitualmente necessária, pode renunciá-la – mesmo que conceitualmente não consiga justificar tal
distinção, caberia ainda a defesa da separação no plano normativo. Do ponto de vista normativo, a vinculação
ou não ao conceito se dá pela necessidade de se cumprir determinada norma. Na tese da vinculação é
necessário a presença de elementos morais para o cumprimento da norma, evitando-se a injusta legal.
Enquanto que a tese da separação “conduziria a uma clareza linguístico-conceitual ou garantiria segurança
jurídica”.
Alexy assevera que “existem tanto conexões conceitualmente necessárias quanto conexões normativamente
necessárias entre direito e moral”. (ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. org. Ernesto Garzón
Valdés [et al].; trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, p. 26- 27).
78
Dentre os argumentos mais relevantes tecidos pelo autor, vale destacar
aquele segundo o qual a vinculação entre direito e moral é uma vinculação fraca, ou seja, se
dá em casos de extremas injustiças. Via de regra, executa-se o ordenamento jurídico. Sob este
aspecto, a tese da vinculação seria mais vantajosa, pois solucionaria os casos de injustiça
advindas de normas legais com maior eficácia.
Sendo assim, a decisão do juiz tratará sobre a aplicação destes ideais morais,
“disso resulta que a pretensão à correção jurídica necessariamente vinculada à decisão
inclui uma pretensão à correção moral”.Surgiria, portanto, a ligação entre direito e moral
correta (vinculação forte). Este elo entre direito e moral correta exige não só a pretensão de
correção, mas também a pretensão de fudamentabilidade, que não se trata da moral
fundamentável, mas sim a moral correta consubstanciada no argumento da injustiça.
3. Discricionariedade e ato vinculado
3.1 Conceitos
Pois bem, inicialmente, vale destacar o conceito clássico de
discricionariedade administrativa tem origem na classificação dicotômica entre atos
vinculados e atos discricionários, cujo critério distintivo seria a liberdade de atuação/escolha
do administrador público conferido pela Lei.
Segundo a doutrina de Hely Lopes Meirelles, Poder161
vinculado é aquele
em que:
o agente público fica inteiramente preso ao enunciado da lei, em todas as
suas especificações. Nessa categoria de atos administrativos a liberdade de
161
A expressão empregada “poder” não é despropositada. Com efeito, Hely Lopes Meirelles seguindo as lições
Nunes Leal admite o empreso de “ato discricionário” apenas por tolerância. Isto porque, segundo sustentam o
caráter discricionário está ligado a prerrogativa de função do agente e não do ato propriamente dito, por tais
medidas é uma característica do Poder do Agente Público, motivo pelo qual, o emprego (ou expressão) mais
adequada seria Poder;
in MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 16. ed. atual. Pela Constituição de 1988, 2ª
Tiragem – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1991.
79
ação do administrador é mínima, pois terá que se ater à enumeração
minuciosa do Direito Positivo para realiza-los eficazmente162
.
Por sua vez, segundo mesmo doutrinador o conceito de Poder
Discricionário seria aquele:
que o Direito Concede à Administração, de modo explícito ou implícito,
para a prática de atos administrativos com liberdade de escolha de sua
conveniência, oportunidade e conteúdo163
.
Porém, foi Celso Antônio Bandeira de Mello, em sua obra
Discricionariedade Administrativa, que consolidou a questão em peculiar estudo sobre o
tema. E, com rigor científico precisou:
discricionariedade, portanto, é a margem de liberdade que remanesça ao
administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade,
um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso
concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à
satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões
da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair
objetivamente, uma solução unívoca para situação vertente164
.
Ao seu turno, em linguagem formalizada quando da aplicação de princípios,
pode-se destacar que a discricionariedade se dá quando de um processo de ponderação, uma
ou mais regras são igualmente proporcionais. Nestes casos as escolha de qualquer uma delas é
juridicamente irrelevante.
3.2 Discricionariedade e a questão da melhor decisão
Vale lembrar que discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. O
exercício do juízo discricionário não exime o administrador do dever de decidir da melhor
162
MEIRELLES, Hley Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36 ed. – São Paulo : Editora Revista dos
Tribunais, 2010. Pág. 121. 163
Ob. Cit. pág. 122. 164
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional.
80
maneira possível, conforme dispõe o mandamento da cláusula do Devido Processo Legal em
seu sentido substancial.
Como visto, discricionariedade se dá em casos em que uma determinada
solução satisfaça igualmente o interesse público, vale frisar, como prolatou Celso Antônio
Bandeira de Mello, a discricionariedade se dá “a fim de cumprir o dever de adotar a solução
mais adequada a satisfação da finalidade”.
Ora, duas são as formas de se exercer o juízo discricionário, ou por lei, ou
por interpretação do ordenamento (conceitos indeterminados) e essas formas são apriorísticas.
O fato da Lei conferir determinado juízo a despeito da escolha de uma solução, não faculta ao
agente o exercício de um juízo arbitrário. Há necessidade de seguir o procedimento de decisão
administrativa. Feito o procedimento de uma das escolhas se mostrar mais vantajosa, encerra-
se a discricionariedade mesma àquela discricionariedade legal.
O mesmo ocorre com a discricionariedade advinda da “fluidez” dos
conceitos. Conceitos indeterminados exigem interpretação. Interpretar é dar um sentido a
norma. Pode ser que determinado processo de interpretativo resulte na identificação de duas
soluções igualmente satisfatória. Se assim o for, executa-se o juízo discricionário, se assim
não o for, não se executa o juízo.
Do mais, realizado o processo de decisão administrativa e constatada a
presença de duas soluções igualmente satisfatória, a escolha de uma entre as duas é
juridicamente irrelevante. Neste caso, o dever de melhor solução já foi atendido quando as
duas soluções eficazes (portanto as duas são as melhores decisões) foram encontradas pelo
administrador.
81
CONCLUSÃO
O ordenamento jurídico é, antes de tudo um sistema. E como sistema deve
ser estudado e interpretado no contexto de sua unidade, deve-se buscar soluções que lhe
preservam a coerência. Princípios e postulados são instrumentos que maximizam o
entendimento e a aplicação do sistema jurídico. A compreensão destes elementos é
imprescindível para uma adequada abordagem científica do objetivo de estudo da ciência do
direito.
A concepção destes elementos de Teoria Geral de Direito são
imprescindíveis à leitura adequada da função e o caráter instrumental do Estado. Função
Administrativa e ordenamento jurídico são preceitos que caminham juntos. Em síntese, o
exercício da função não é senão dar cumprimento ao ordenamento jurídico. É promover o
interesse público.
Por ser função administrativa, como qualquer uma das funções estatais se
manifesta por meio de decisões. A função típica administrativa é exercida por meio de ato
administrativo.
Ao ponto de tudo que fora demonstrado nos presente caso, não parece restar
dúvidas que o ordenamento jurídico brasileiro assimilou a cláusula do Devido Processo Legal
em suas duas vertentes, quais sejam, substancial e formal. De fato, o extenso rol de princípio e
garantias processuais contidos na Constituição Federal de 1988 dificulta significativamente, a
delimitação do conceito da cláusula do Devido Processo Legal em seu sentido substancial,
chegando a aparentar tratar-se de uma cláusula “oca”.
Se, por um lado, a coerência científica não permite conceituar a cláusula do
Devido Processo Legal substancial por aproximação conceitual de outros institutos jurídicos
(dever de motivação, postulados da proporcionalidade e razoabilidade, por exemplo), por
outro lado, o Devido Processo Legal substancial tem uma significação própria, ainda que
mínima. Caso contrário sua existência é questionável. O estudo sistêmico da cláusula do
Devido Processo Legal em seu sentido substancial tornou possível identificar um núcleo
típico do princípio desde sua formação: o controle de mérito das decisões estatais.
82
E, enquanto princípio, a cláusula do Devido Processo Legal substancial é
um mandado de otimização. Mandados de otimização determinam que algo seja proferido da
melhor maneira possível. A cláusula do Devido Processo Legal determina que as decisões
estatais sejam proferidas da melhor forma possível. Levando-se em consideração a construção
realizada sobre o conceito de função e a evolução dos instrumentos de controle das decisões
estatais, chegou-se a conclusão de que o ordenamento exige sempre a prolação da melhor
decisão. Ou seja, a decisão deve promover da melhor forma possível o interesse público.
E, melhor decisão, frise-se, não é nem a única e nem a melhor decisão (no
sentido de um conhecimento divino transcendental) é apenas a adequação aos preceitos do
ordenamento jurídico. Em linhas gerais a melhor decisão deve: i) Ser promulgada por razões
objetivase coerentes com os preceitos do próprio ordenamento jurídico; ii) externar as razões
da escolha de determinada medida, a fim de justificar satisfatoriamente os argumentos
racionais de sua opção e; iii) observar procedimento decisório que efetivamente permita a
verificação dos dois primeiros itens.
A função administrativa, foi dito, é exercida por meio de atos
administrativos. Atos administrativos são normas jurídicas, são decisões. Enquanto decisões
devem cumprir os preceitos supracitados.
Ricardo Marcondes Martins, em monográfica ímpar, bem idealizou um
procedimento capaz de dar primazia a estes tópicos. Trata-se do procedimento de decisão
administrativa. É composto por (8) estágios, quais sejam: i) análise das circunstâncias
fáticas; ii) não subsunção das circunstâncias fáticas ao suporte fático de uma regra abstrata;
iii) subsunção das circunstâncias fática ao suporte fático de uma regra abstrata; iv)
postulado da proporcionalidade e da razoabilidade (subdividido em seis sub estágios); iv.i)
Legitimidade e fim; iv.ii) adequação; iv.iii) necessidade; iv.iv) proporcionalidade em sentido
estrito; iv.v)razoabilidade e; iv.vi) justiça.
Cumpridos todos os estágios, estar-se-á diante da melhor decisão
administrativa.
83
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