QUENTAL, Antero de _ Causas Da Decadência Dos Povos Peninsulares

Embed Size (px)

Citation preview

  • Edio e propriedade de Conto MartinsLisboa

    A N T E R O D E Q U E N T A L

    PROSAS !VOLUME II

    COIMBRAIMRENSA DA UNIVERSIDADE

    1926

  • C A U S A S D A D E C A D E N C I A D O S P O V O SPENINSULARES

    N O S U LT I M O S T R E S S E C U L O S

    DISCURSO PRONUNCIADO NA NOITE DE 27 DE MAIO, NA SALA DO CASINO LISBONENSE

    ADVERTENCIA

    Foi reconstruido este discurso sobre os apontamentosque serviram para o recitar, os extractos publicadospor varios jornaes, e as notas d'alguns amigos. Asideas e os factos citados so rigorosamente os mesmos: igualmente a mesma a ordena da deduco. O es-tylo que , nem podia deixar de ser, diverso: fal]a-sed'um modo e escreve-se ri'outro. O essencial que. seno a]terasse o pensamento, e a isso se attendeu es-crupulosamente. Podem agora as pessoas, que noassistiram Conferencia, e que seguindo as informa-es menos leaes d'alguns periodicos, fazem uma ideaerronea ou desfavoravel da doutrina e das intenes doorador, formar por si o seu juzo; juzo que -- simpa-thico ou hostil-- sempre respeitarei, uma vez queseja consciencioso.

    MEUS SENHORES:

    A decadencia dos povos daPeninsula nos tres ultimosseculos um dos factos mais incontestaveis, mais evi-dentes da nossa historia: pode at dizer-se que essadecadencia, seguindo-se quasi sem transio a um pe-riodo de fora gloriosa e de rica originalidade, 9unico grande facto evidente e incontestavel que ri'essahistoria apparece aos olhos do historiador philosopho,Como peninsular, sinto profundamente ter de affirmar,ri'uma assemblea de peninsulares, esta desalentadoraevidencia. Mas, se no reconhecermos e confessarmosfrancamente os nossos erros passados, como poderemosaspirar a uma emenda sincera e definitiva? O pecadorhumilha-se diante do seu Deos, n'um sentido acto decontrio, e s assim perdoado. Faamos ns taro-bem, diante do esprito de verdade, o acto de contriopelos nossos pecados historicos, por que s assim nospoderemos emendar e regenerar.

    Conheo quanto delicado este assumpto, e sei quepor isso dobrados deveres se impoem minha cririca.Para uma assemblea de estrangeiros no passra estad'uma these historica, curiosa sim para as inteliigen-cias, mas fria e indifferente para os sentimentos pes-soaes de cada um. N'um auditorio de peninsulares,no porm assim. A historia dos ultimos tres se-culos perpetua-se ainda hoje entre nos em opinies, emcrenas, em interesses, em tradies, que a represen-tam na nossa sociedade, e a tornam d'algum modoactual. Ha em ns todos uma voz intima que protestaem favor do passado, quando alguem o ataca : a razopde ondemnal-o: o corao tenta ainda absolvel-o.

  • - - 9 4 - -

    que nada ha no homem mais delicado, mais melin-droso do que as illuses : e so as nossas iUuses o quea razo critica, discutindo o passado, offende sobretudo em ns.

    No posso pois appellar para a fraternidade dasideas: conheo que as minhas palavras no devem serbem aceitas por todos. As ideas, porm, no so feliz-mente o unico lao com que se ligam entre si os espi-ritos dos homens. Independente d'ellas, seno acimad'ellas, existe para todas as consciencias rectas, since-ras, ledes, no meio da maior divergencia de opinies,uma fraternidade moral, fundada na mutua toleranciae no mutuo respeito, que une todos os espritos n'umamesma communho--o amor e a procura desinteres-sada da verdade. Que seria dos homens se, acima dosimpets da paixo e dos desvarios da intelligencia, noexistisse essa regio serena da concordia na boa f ena tolerancia reciproca! uma regio aonde os pensa-mentos mais hostis se podem encontrar, estendendo-selealmente a mo, e dizendo uns para os outros comum sentimento humano e pacfico: s uma conscienciaconvicta! para essa communho moral que eu ap-pello. E appello para dia confiadamente, por que sen-tindo-me dominado por esse sentimento de respeito ecaridade universal, no posso crer que haja aqui al-guem que duvide da minha boa f, e se recuse a acom-panhar-me n'este caminho de lealdade e tolerancia.

    J o disse ha dias, inaugurando e explicando o pen-samento d'estas Conferencias: no pretendemos imporas nossas opinies, mas simplesmente expol-as: nopedimos a adheso das pessoas que nos escutam; pe-dimos s a discusso: essa discusso longe de nosassustar, o que mais desejamos; por que, ainda que

    d'ella resultasse a condemnao das nossas ideas, comtanto que essa condemnao fosse justa e intelligente,ficaramos contentes, tendo contribudo, posto que in-directamente, para a publicao de algumas verdades.So prova da sinceridade d'este desejo aquelles lugarese aquellas mezas, destinadas particularmente aos jor-nalistas, aonde podem tomar nota das nossas palavras,tornando-lhes ns assim franca e facil a contradico.

    Meus Senhores: a Pennsula, durante os seculos t7,I8 e t9, apresenta-nos um quadro de abatimento e in-significancia, tanto mais sensvel quanto contrasta do-lorosamente com a grandeza, a importancia e a ori-ginalidade do papel que desempenhmos no primeiroperodo da Renascena, durante toda a Idade Media,e ainda nos ultimos seculos da Antiguidade. Logo naepoca romana apparecem os caracteres essenciaes daraa peninsular: esprito de independencia local, e ori-ginalidade de genio inventivo. Em parte alguma custoutanto dominao romana o estabelecer-se, nem chegoununca a ser completo esse estabelecimento. Essa per-sonalidade independente mostra-se claramente na litte-ratura, aonde os hespanhoes Lucano, Seneca, Marcial,introduzem no latim um estylo e uma feio intei-ramente peninsulars, e singularmente caractersticos.Eram os pronuncios da viva originalidade que hia appa-recer nas epocas seguintes. Na Idade Media a Penin-sula, livre de estranhas influencias, brilha na plenitudedo seu genio,,das suas qualidades naturaes. O instinctopoltico de descentralisao e federalismo patentea-sena multiplicidade de reinos e condados soberanos, emque se divide a Pennsula, como um protesto e umavictoria dos interesses e energias locaes, contra a tini-dade uniforme, esmagadora e artificial. Dentro de

  • cada uma d'essas divises, as Communas, os Foraes,localisam ainda mais os direitos, e manifestam e firmamcom um sem numero de instituies, o esprito inde-pendente e autonomico das populaes. E esse esp-rito no s independente: , quanto a epoca o com.portava, singularmente democratico. Entre todos ospovos da Europa central e occident:L1, somente os daPennsula escaparam ao jugo de ferro do feudalismo.O espectro torro do castello feudal no assombrava osnossos valles, no se inclinava, como uma ameaa,sobre a margem dos nossos rios, no entristecia osnossos horizontes com o seu perfil duro e sinistro.Existia, certamente, a nobreza, como uma ordem dis-tincta. Mas o foro nobiliario generalisra-se tanto, etornra-se de to facil access, n'aquel[es seculos he-roicos de guerra incessante, que no exagerada a ex-presso d'aque[le poeta que nos chamou, a ns hes-panhoes, um povo de nobres. Nobres e popularesuniam-se por interesses e sentimentos, e diante d'ellesa coroa dos reis era mais um symbolo brilhante do queuma realidade poderosa. Se ri'essas idades ignorantesa idea do Direito era obscura e mal definida, o instinctodo Direito agitava-se energico nas consciencias, e asaces surgiam viris como os caracteres.

    A. taes homens no convinha mais o despotismo re-ligioso do que o despotismo poltico: a oppresso espi-ritual repugnava-lhes tanto como a suieio civil. Ospovos peninsulares so naturalmente religiosos: so-noat d'uma maneira ardente, exaltada e exclusiva, e esse um dos seus caracteres mais prununciados. Masso ao mesmo tempo inventivos e independentes: ado-ram com paixo: mas s~ adoram aquillo que ellesmesmos criam, no aquillo que se lhes impe. Fazem

    a religio, no a acceitam feita. Ainda hoie duas teraspartes da populao hespanhola ignora completamenteos dogmas, a theologia e os mysterios christos: masadora fielmente os santos padroeiros das suas cidades:por que? por que os conhece, por que os fez. O nossogenio criador e individualista: precisa rever-se nassuas criaes. Isto (unto falta de coheso do maqui-nismo catholico da Idade-media, ainda mal definido epouco desciplinado pela inexoravel escola de Roma)explica suficientemente a indepeudencia das igreias pe-ninsulares, e a attitude altiva das coroas da Peninsuladiante da curta romana. Os Papas eram i muito:mas os bispos e as cortes eram ainda bastante. Paraas pretenes italianas havia um no muito franco emuito firme. E essa resistencia no saia apenas davontade e do interesse de alguns: saia do impulso in-contrastarei do genio popular. Esse genio criadorvia-se no apparecimento de rituaes indigenas, ri'umasingular liberdade de pensamento e interpretao, eem ntil originalidades de disciplina. Era o sentimentochristo, na sua expresso viva e humana, no formale inintelligente: a charidade e a tolerancia tinham umlogar mais alto do que a theologia dogmatica. Essatolerancia pelos Mouros e Judeus, raas infelizes e tomeritorias, ser sempre uma das glorias do sentimentochristo da Pennsula da Idade Media. A charidadetriumphava das repugnancias e preconceitos de raa ede crena. Por isso o seio do povo era fecundo; saiamd'elle Santos, individualidades uma ingenuas e su-blimes, symbolos vivos da alma popular, e cuias sin-gelas historias ainda hoie no podemos ler sem inter-necimento.

    No mundo da intelligencia no menos notarei a ex-roL . u 7

  • panso do espirito peninsular durante a Idade-media.O grande movimento intellectual da Europa medievalcomprehende a Philosophia escolastica e a Theologia,as creaes nacionaes dos Cyclos epicos, e a Archite-ctura, c~m nada d'isto se mostrou a Peninsula inferiors grandes naes cultas, que haviam recebido a he-rana da civilisao romana. Dmos Escola philo-sophos como Raimundo Lulio; Igreja, theologos epapas, una d'estes portuguez, Joo XXI. As escolasde Coimbra e Salamanca tinham uma celebridade eu-ropea: nas suas aulas viam-se estrangeiros de distin-co, atraidos pela fama dos seus doutores. Entre osprimeiros homens do seculo i3. est um monarca hes-panhol, Afonso o Sabio, esprito universal, philosopho,politico e legislador. Nem posso tambem deixar es-quecidos os Mouros e Judeus, porque foram uma dasglorias da Pennsula. A reforma da Escolastica, nosseculos i3. e i4., pela renovao do aristotelismo, foiobra quasi exclusiva das escolas arabes e judaicas deHespanha. Os nomes de Averroes (de Cordova) deIbn-Tophail de Sevilha) e os dos judeus Maimonidese Avicebron sero sempre contados entre os primeirosna historia da philosophia na Idade Media. Ao p daphilosophia, a poesia. Para oppor aos Cyclos epicosda Tavola redonda, de Carlos Magno e do Santo Graal,tivemos aquelle admiravel Romancero, as lendas doCid, dos Infantes de Lata, e tantas outras, que se te-fiam condensado em verdadeiras epopeas, se o espiritoclassico da Renascena no tivesse vindo dar Poesiauma outra direco. Ainda assim, grande parte, amelhor parte talvez, do Theatro hespanhol saio da minainexgotavel do Romancero. Para oppor aos trovadoresprovenaes, tivemos tambem trovadores peninsulares.

    Dos nossos reis e cavalleiros trovaram alguns com tantoprimor como Beltro de Born ou o conde de Tolosa.Quanto Architectura, basta lembrar a Batalha e aCathedral de Burgos, duas das mais bellas rozas go-thicas desabrochadas no seio da Idade Media. Emtudo isto acompanharamos a Europa, a par do movi-mento geral. N'uma coisa, porem, a excedemos, tor-nando-nos iniciadores: os estudos geographicos e asgrandes navegaes. As descobertas, que coroaramto brilhantemente o fina do seculo x5., no se fizeramao acaso. Precedeu-as um trabalho intellectual, toscientifico quanto a epocha o permittia, inauguradopelo nosso infante D. Henrique, n'essa famosa escolade Sagres, de aonde saam homens como aquelle he-roico Bartholomeu Dias, e cuja influencia, directa ouindirectamente, produzio um Magalhes e um Colombo.Foi uma onda, que levantada aqui, cresceu at ir re-bntar nas "praias do novo mundo. Viu-se de quantoera capaz a intelligencia e a energia peninsular. Porisso a Europa tinha os olhos em ns, e na Europa anossa influencia nacional era das que mais pesaram.Contava-se para tudo com Portugal e Hespanha. OSanto Imperio allemo offerece a orgulhosa coroa im-perial a um rei de Castel la, Affonso o Sabio. Noseculo 15.0, D. Joo l. arbitro em varias questesinternacionaes, geralmente considerado, em influenciae capacidade, como una dos primeiros monarcas daEuropa. Tudo isto nos prepra para desempenhar-mos, chegada a Renascena, um papel glorioso e pre-ponderante. "Desempenhamo[-o, com effeito, brilhantee ruidoso: os nossos erros, porem, no consentiramque fosse tambem duradoiro e proficuo. Como toique o movimento regenerador da Renascena, to bem

  • preparado, abortou entre ns, mostrai-o-hei logo comfactos decisivos. Esse movimento s foi entre nsrepresentado por uma gerao de homens superiores,a primeira. As seguintes, que o deviam consolidar,fanatizadas, entorpecidas, impotentes, no souberamcomprehender nem praticar aquelle esprito to altoe to livre: desconheceram-no, ou combateram-no.Houve, porem, uma primeira gerao, que respondeuao chamamento da Renascena; e em quanto essa ge-rao occupou a scena, isto , at ao meado do se-culo 16.o, a Peninsula conservou-se altura d'aquellaepoca extraordinaria de criao e liberdade de pensa-mento. A renovao dos estudos, recebeu-a nas suasuniversidades novas ou reformadas, aonde se expli-caram os grandes monumentos litterarios da antigui-dade, muitas vezes na propria lingua dos originaes.Entre as 43 Universidades estabelecidas na Europadurante o seculo 16.o, I4 foram fundadas pelos reis deHespanha. A philosophia neo-platonica, que substi-tua por toda a parte a velha e gasta Escolastica, foiadoptada pelos espiritos mais eminentes. Um estyloe uma litteratura nova surgio com Cames, com Cer-vantes, com Gil Vicente, com S de Miranda, comLope de Vega, com Ferreira. Demos s escolas daEuropa sabios como Miguel Servet, precursor de Har-vey, philosophos como Sepu[veda, um dos primeirosperipateticos do tempo, e o portuguez Sanches, mestrede Montaigne. A familia dos humanistas, verdadeira-mente caracterstica da Renascena, foi representadaentre ns por Andr de Resende, por Diogo de Teive,pelo bispo de Terragona, Antonio Augustin, por Damiode Goes, e por Cames, cuia inspirao no excluauma erudio quasi universal. Finalmente, a Arte pe-

    ninsular ergue n'essa epoca um vo poderoso, com aarchitectura chamada manuelina, creao d'uma origi-nalidade e graa surprehendentes, e com a brilhanteescola de pintura hespanhola, imorta[isada por artistascomo Murillo, Velasquez, Ribera. Fora da patria guer-reiros illustres mostraram ao mundo que o valor dospovos peninsulares no era inferior sua intelligencia.Se as causas da nossa decadencia existiam j latentes,nenhum olhar podia ainda ento descubril-as : a gloria,e uma gloria merecida, s dava logar admirao.

    D'este mundo brilhante, criado pelo genio peninsularna sua livre expanso, passmos quasi sem transiopara um mundo escuro, inerte, pobre, inintelligente emeio desconhecido. Dir-se-ha que entre una e outrose metteram dez seculos de decadencia: pois bastarampara essa total transformao 5o ou 6o annos! Emto curto perodo era impossvel caminhar mais rapi-damente no caminho da perdio.

    No princpio do seculo ~7., quando Portugal deixade ser contado entre as naes, e se desmorona portodos os lados a monarquia anomala, inconsistente edesnatural de Filippe 2.0; quando a gloria passada jno pode encubrir o ruinoso do edificio presente, e seafunde a Peninsula sob o peso dos muitos erros accu-mulados, ento apparece franca e patente por todosos lados a nossa improcrastinavel decadencia. Appa-rece em tudo; na poltica, na influencia, nos trabalhosda intelligencia, na economia social e na industria, ecorno consequencia de tudo isto, nos costumes. A pre-ponderancia, que at ento exerceramos nos negociosda Europa, desapparece para dar logar insignificanciae impotencia. Naes novas ou obscuras erguem-se,e conquistam no mundo, nossa custa, a influencia de

  • que nos mostrmos indignos. A coroa de Hespanha posta em leilo sangrento no meio das naes, eadjudicada, no fim de doze annos de guerra, a um netode Luiz 14.o Com a dynastia estrangeira comea umapoltica anti-nacional, que envilece e desacredita a mo-narchia. E esse rei estrangeiro custa Hespanha aperda de Napoles, da Siclia, do Milanez, dos PaizesBaixos! Em Portugal, a influencia ingleza, que, pormeio de cavilosos tratados, faz de ns uma especie decolonia britanica. Ao mesmo tempo as nossas propriascolonias escapam-nos gradualmente das mos: as Mo-lucas passam a ser hollandezas; na India lutam sobreos nossos despojos hollandezes, inglezes e francezes:na China e no Japo desapparece a inflencia do nomeportuguez. Portuguezes e Hespanhoes, vamos de se-culo para seculo minguando em extenso e importancia,at no sermos mais do que duas sombras, duas na-es espectros, no meio dos povos que nos rodeiam!...E que tristssimo quadro o da nossa poltica interior!s liberdades municipaes, iniciativa local das Com-munas, aos Fordes, que davam a cada populao umaphisionomia e vida proprias, succede a centralisao,uniforme e esterilisadora. A realeza, deixa ento deencontrar uma resistencia e uma fora exterior que aequilibre, e transforma se no puro absolutismo; esque-cendo a sua origem e a sua misso, cr ingenuamenteque os povos no so mais do que o patrimonio pro-videncial dos reis. O peior que os povos acostu-mam-se a crel-o tambem! Aquelle esprito de inde-pendencia, que inspirava o firme si no, nof da Idademedia, adormece e morre no seio popular. O povoemmudece; negam-lhe a palavra, fechando-lhe as Cor-tes9 no o consuham~ nem se conta j com elle. Com

    quem se conta com a aristocracia palaciana, comuma nobreza cortez, que cada vez se separa mais dopovo pelos interesses e pelos sentimentos, e que, declasses tende a transformar-se em casta. Essa aristo-cracia, como um embarao na circulao do corpo so-cial, impede a elevao natural d'um elemento novo,elemento essencialmente moderno, a classe media, econtraria assim todos os progressos ligadus a essa ele-vao. Por isso decae tambem a vida economica: aproduco decresce, a agricultura recua, estagna-se ocommercio, deperecem uma por uma as industrias na-cionaes; a riqueza, uma riqueza faustosa e esteril,concentra-se em alguns pontos excepcionaes, em quantoa miseria se alarga pelo resto do paiz" a populao,decimada pela guerra, pela emigrao, pela miseria,diminue d'uma maneira assustadora. Nunca povo al-gum absorveu tantos thesouros, ficando ao mesmo tempoto pobre! No meio d'essa pobreza e d'essa atonia, oespirito nacional desanimado e sem estimulos, deviacair naturalmente n'um estado de torpor e de indiffe-rena. o que nos mostra claramente esse saltomortal dado pela intelligencia dos povos peninsulares,passando da Renascena para os seculos I7. e 18. Auma gerao de philosophos, de sabios e de artistascriadores, succcede a tribu vulgar dos eruditos semcritica, dos academicos, dos imitadores. Saimos d'umasociedade de homens vivos, movendo-se ao ar livre:entramos n'um recinto acanhado e quasi sepulcral, comuma atmosphera turva pelo p dos livros velhos, e ha-bitado por espectros de doutores. A poesia, depois daexaltao esteril, falsa, e artificiallnente provocada doGongorismo, depois da affectao dos conceitos (queainda mais revelava a nullidade do pensamento)~ cae

  • na imitao servil e inintelligente da poesia latina,n'aquella escola classica, pesada e fradesca, que aantithese de toda a inspirao e de todo o sentimento,Um poema compe se doutoralmente, como uma dis.sert~o theologica. Traduzir o ideal: invenlar, con-sidera-se um perigo e uma inferioridade: uma obrapoetica tanto mais perfeita quanto maior numero deversos contiver traduzidos de Horacio, de Ovidio.Florescem a tragedia, a ode pindarica, e o poemaheroi-comico, isto , a affectao e a degradao dapoesia. Quanto verdade humana, ao sentimento po-pular e nacional, ninguem se preocupava com isso. Ainveno e originalidade, ri'essa epoca deploravel, con-centra-se toda na discripo cynicamente galhofeiradas miserias, das intrigas, dos expedientes da vida or-dinaria. Os Romances picarescos hespanhoes, e asComedias populares portuguezas, so os irrefutaveisactos de accusao, que, contra si mesma, nos deixouessa sociedade, cuja profunda desmoralisao tocavaos limites da ingenuidade e da inocencia no vicio. Frad'esta realidade pungente, a litteratura official e pala-ciana, expraiava-se pelas regies insipidas do discursoacademico, da orao funebre, do panegirico encom-mendado--generos artificiaes, pueris, e mais que tudosoporificos. Com um tal estado dos espiritos, o quese podia esperar da Arte? Basta erguer os olhos paraessas lugubres moles de pedra, que se chamam o Es-curial e Marra, para vermos que a mesma ausencia desentimento e inveno, que produzio o gosto pesado einspido do Classicismo, ergueu tambem as massascompactas, e friamente correctas na sua falta de ex-presso, da architectura jesutica. Que triste contrastentre ssas montanhas de marmore, com que se julgou

    atingir o grande, simplesmente por que se fez o mons-iruoso, e a construco delicada, aerea, proporcional e,por assim dizei', espiritual dos .leronymos, da Batalha,da cathedral de Burgos! O espirito sombrio e depra-vado da sociedade reflectio-o a Arte, com uma fideli-dade desesperadora, que ser sempre perante a his-toria uma incorruptvel testemunha de accusao contraaquella epoca de verdadeira morte moral. Essa mortemoral no invadira s o sentimento, a imaginao, ogosto: invadira tambem, invadh'a sobre tudo a intelli-gencia. Nos ultimos dois seculos no produzio a Pe-nnsula um unico homem superior, que se possa pr aolado dos grandes criadores" da sciencia moderna: nosaio d Pennsula uma s das grandes descobertas in-tellectuaes, que so a maior obra e a maior honra doespirito moderno. Durante 200 annos de fecunda ela-borao, reforma a Europa culta as sciencias antigas,cria seis ou sete sciencias novas, a anatomia, a phisio-logia, a chimica, a mechanica celeste, o calculo diffe-rencial, a critica historica, a geologia: apparecem osNewton, os Descartes, os Bacon, os Leibniz, os Har-vey, os Bufon, os Ducange, os Lavoisier, os Vico--onde est, entre os nomes d'estes e dos outros verda-deiros heroes da epopea do pensamento, um nome hes-panhol ou portuguez? que nome hespanhol ou portu-guez se liga descoberta d'uma grande lei scientifica,ri 'um svstema, d'um facto capital? A Europa cultaengran~]eceu-se, nobilitou-se, subiu sobre tudo pelasciencia: foi sobre tudo pela falta de sciencia que nsdescemos, que nos degradmos, que nos annullmos.A. alma moderna morr~ra dentro em ns completa-mente.

    Pelo caminho da igqorancia, da oppresso e da miseri~

  • chega-se naturalmente, chega-se fatalmente, depra-vao dos costumes. E os costumes depravaram.secom effeito. Nos grandes, a corrupo faustosa davida de corte, aonde os reis so os primeiros a daro exemplo do vic io, da brutal idade, do adulter io:Affonso VI, Joo V, Philippe V, Carlos IV. Nos pe-quenos, a corrupo hipocrita, a familia vendida p.elamiseria aos vicios dos nobres e dos poderosos. E aepoca das amasias e dos filhos bastardos. O que eraento a mulher do povo, em face das tentaes do ouroaristocratico, v~-se bem no escandaloso Processo denullidade de matrimonio de Attonso VI, e nas Memo-rias do cavalleiro de Oliveira. Ser rufio um officiogeralmente admittido, e que se pratica com aproveita-mento na propria corte. A religio deixa de ser umsentimento vivo; torna-se uma pratica inintelligente,formal, mechanica. O que eram os frades, sabemol-otodos: os costumes picarescos e ignobeis d'essa classeso ainda hoje memorados pelo Decamerone da tra-dio popular. O peor que esses histries tonsu-rados eram ao mesmo tempo sanguinarios. A. Inqui-sio pesava sobre as consciencias como a abobadad'um carcere. O esprito publico abaixava-se gradualmente sob a presso da terror, em quanto 0 vicio, cadavez mais requintado, se apossava placidamente do logarvasio que deixava nas almas a dignidade, o sentimentomoral e a energia da vontade pessoal, esmagados, des-truidos pelo medo. Os Casuistas dos seculos i7.oe 18.0 deixarannos um vergonhoso monumento de re-quinte bestial de todos os vicios, da depravao dasimaginaes, das miserias intimas da familia, da per-dio de costumes, que corria aquellas sociedades de-ploraveis. Isto por um lado: por que, pelo outro, os

    CasMstas mostram-nos tambem a que abaixamentomoral chegra o esprito do clero, cavando todos osdias esse lodo, revolvendo corn afinco, com predileco,quasi com amor, aquelle monto graveolente de abje-ces. Todas essas miserias intimas reflectem-se fiel-mente nalitteratura. O que era no seculo ~7.amoralpublica, as intrigas polticas, o nepotismo cortezo, oroubo audaz ou sobrepticio da riqueza publica, v-se(e com todo o relevo d'uma penna sarcastica e inexo-ravel) na Arte de Furtar do P. Antonio Vieira. Emquanto aos documentos para a historia da famlia e doscostumes privados, encontramo-los na Carta de Guiade Casados de D. Francisco Manuel, nas Faraspopu-lares portuguezas, e nos Romances Ficarescos hespa-nhoes. O esprito peninsular descra de degrau emdegrau, at ao ultimo termo da depravao!

    Taes temos sido nos ultimos tres seculos: sem vida,sem liberdade, sem riqueza, sem sciencia, sem inven-o, sem costumes. Erguemo-nos hoje a custo, hes-panhoes e portuguezes, d'esse tumulo onde os nossosgrandes erros nos tiveram sepultados: erguemo-nos,mas os restos da mortalha ainda nos embara~:am ospassos, e pela palidez dos nossos rostos pode bem vero mundo de que regi~es lugubres e mortaes chegamosresuscitados! Quaes as causas d'essa decadencia, tovisivel, to universal, e geralmente to pouco expti-cada? Examinemos os phenomenos, que se deram naPeninsula durante o decurso do seculo x.o, perodo detransio entre a Idade-Media e os tempos modernos,e em que apparecem os germens, bons e maus, quemais tarde, desenvolvendo-se nas sociedades modernas,deram a cada qual o seu verdadeiro caracter. Se essesphenomenos forem novos, universaes, se abrangerem

  • rodas as espheras da actividade nacional, desde a re.ligio at industria, ligando se assim intimamente aoque ha de mais vital nos povos--estarei auctorisado aempregar o argumento (n'e3te caso, rigorosamente lo-gico) post hoc, ergo laropler hoc, e a concluir que n'esses novos phenomenos que se devem buscar e en-contrar as causas da decadencia da Pennsula.

    Ora esses phenomenos capitaes so tres, e de tresespecies: um moral, outro politico, outro economico.O primeiro a transformao do Catholicismo, peloconclio de Trento. O segundo, o estabelecimento doAbsolutismo, pela runa das liberdades locaes. O ter-ceiro, o desenvolvimento das Conquistas longiquas.Estes phenomenos assim agrupados, comprehendendoos tres grandes aspectos da vida social, o pensamento,a politiea e o trabalho, indicam-nos claramente queurna profunda e universal revoluo se operou, duranteo seculo 16.o, nas sociedades peninsulares. Essa revo-luo foi funesta, funestissima. Se fosse necessariauma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporaneo muito simples: esses tres phenomenos eram "exactamente o opposto dos tres factos capitaes, que sedavam nas naes que l fora cresciam, se moralisa-varo, se faziam intelligentes, ricas, poderosas, e toma-varo a dianteira da civilisao. Aquelles tres factoscivilisadores foram a liberdade moral, conquistada pelaReforma ou pela Philosophia: a elevaco da classemedia, instrumento do progresso nas sociedades mo-dernas, e directora dos reis, at ao dia em que os des-tronou: a industria, finalmente, verdadeiro fundamentodo mundo actuai, que veio dar s naes urna conceponova do Direito, substituindo o trabalho fora, e oommercio guerra de conquista. Ora, a h'brdade

    moral, appellando para o exame e a consciencia indi-vidual, rigorosamente o opposto do Catholicismo doconclio de Trento, para quem a razo humana e opensamento livre so um crime contra Deos: a classemedia~ impondo aos reis os seus interesses, e multasvezes o seu espirito, o opposto do Absolutismo, es-teiado na aristocracia e s em proveito d'ella gover-nando: a industria, finalmente, o opposto do Espritode conquista, antipathico ao trabalho e ao commercio.

    Assim, em quanto as outras naes subiam, ns bai-xavamos. Subiam ellas pelas virtudes modernas; nsdesciamos pelos vicios antigos, concentrados, levadosao summo grau de desenvolvimento e applicao. Bai-xavamos pela industria, pela poltica. Baixavamos,sobre tudo, pela religio.

    Da decadencia moral esta a causa culminante! OCatholicismo do concilio de Trento no inaugurou cer-tamente no mundo o despotismo religioso: mas orga-nisou-o d'uma maneira completa, poderosa, formidavel,e at ento desconhecida. N'este sentido, pde dizer-seque o Catholicismo, na sua forma definitiva, immobi-lisado e intolerante, data do seculo 16. As tenden-cias, porm, para esse estado vinham j de longe; nema Reforma significa outra coisa seno o protesto dosentimento christo, livre e independente, contra essastendencias auctoritarias e formalisticas. Essas tenden-cias eram logicas, e at certo ponto legitimas, dada ainterpretao e organisao romana da religio christ:no o eram, porm, dado o sentimento-christo na suapureza virginal, fra das condies precarias da suarealisao poltica e mundana, o sentimento christo~n'uma palavra, no seu domnio natural, a conscienciareligiosa. E necessario, com effeito, estabelecermoz

  • cuidadosamente uma rigorosa distinco entre christia.nismo e catholicismo, sem o que nada comprehende-remos das evolues historicas da religio christ. Seno ba christianismo fra do gremio catholico (cornoasseveram os theologos, mas com no pode nem queraceitar a razo, a equidade e a critica) n'esse caso te-remos de recusar o ttulo de christos aos lutheranos,e a rodas as seitas saidas do movimento protestante,em quem todavia vive bem claramente o esprito evan-gelico. Digo mais, teremos de negar o nome de chris-t os aos apostotos e evangelistas, por que n'essa epocao catholicismo estava to longe do futuro, que nemainda a palavra catholico fra inventada! que real-mente o christianismo existio e p6de existir fra docatholicismo. O christianismo sobre tudo una septti-mento: o catholicismo sobre tudo uma instt'ltti,co.Um vive da f e da inspirao: o outro do dogma eda disciplina. Toda a historia religiosa, at ao meadodo seculo 16.% no mais do que a transformao dosentimento ehristo na instituio cathoh'ca. A Idade-Media d o periodo da transio: ha ainda um, e ooutro apparece j& Equilibram-se. A unidade ve-se,faz-se sentir, mas no chega ainda a suffocar a vidalocal e autonomica. Por isso d tambem esse o perododas Igrejas nacionaes. As da l'eninsula, como todasas outras, tiveram, durante a l&Me-Media, liberdadese iniciativa, conclios nacionacs, disciplina propria, euma maneira sua de sentirepraticarareligio. D'aqui,dois grandes resultados, fi:cundos ecn consequenciasbeneficas. O dogma, cru vez de ser imloosto' era aceito,e, n'um certo sentido, criado: ora, quando a base damoral o dogma, s~ pode haver boa moral deduzindo-ad'um dogma aceito, e ata certo ponto criado, e nunca

    imposto. Primeira consequencia, de incalculavel al-cance. O sentimento do dever, em vez de ser contra-dito pela religio, apoiawl-se n'ella. D'aqui a forados caracteres, a elevao dos costumes. Em segundologar, essas Igrejas nacionaes, por isso mesmo queeram independentes, no precisavam oprimir. Eramtolerantes. sombra d'ellas, muito na sombra ver-dade, mas tolerados enl todo o caso, viviam Judeus eMoiros, raas intelligentes, industriosas, a quem a in-dustria e o pensamento peninsulares tanto deveram, ecuja expulso tem quasi as propores d'uma calami-dade nacional. Segunda consequencia, de no menoralcance do que a primeira. Se a Penin~ula no eraento to catholica como o foi depois, quando quei-mava os Judeus e recebia do Geral dos Jesutas o santoe a senha da sua politica, era seguramente muito maischrist, isto , mais caridosa e moral, como estes factosO p r o v a n l ,

    Rasga-se porem o seculo t6.o, to prodigioso de re-velaes, e com elle apparece no mundo a Reforma,seguida por quasi todos os povos de raa germanica.Esta situao cria para os povos latinos, que se con-

    l . - , ' . serraram ligados a Roma, uma nccessMad instante,que era ao mesmo tempo una grande problema. Tor-nava-se necessario responder aos ataques dos protes-tantes, mostrar ao mundo que o espirito religioso nomorrera no seio das raas latinas, que debaixo da cor-rupo romana havia alma e vontade. Um grito una-nime de reforma saio do meio dos representantes daorthodoxia, oppondo-se ao desafio, que, com a mesmapalavra, haviam lanado ao mundo catholico Luthero,Zwingle, O.Sco[ampado, Melanchtho'l e Cah'ino. Reis,povos, sacerdotes clamaram todos reforma.t Mas aqui

  • apparecia o problema: que especie de reforma? Aopinio dos bispos e, em geral, das populaes catho-licas pronunciava-se no sentido d'uma reforma liberal,em harmonia com o espirito da epoca, chegando muitosat a desejar uma conciliao com os protestantes: eraa opinio episcopal, representante das Igrejas nacio-naes. Em Roma, porm, a soluo, que se dava aoproblema, tinha um bem differente caracter. O odioe a colera dominaram os coraes dos successores dosapostolos. Repelia-se com horror a ida de conci-liao, da mais pequena concesso. Pensava-se queera necessario fortificar a orthodoxia, concentrandotodas as foras, disciplinando e centralisando; impe-dernir a Igreja, para a tornar inabalavel. Era a opi-nio absolutista, representante do Papado. Esta opinio(para no dizer este partido) triumphou, e foi essetriumpho uma verdadeira calamidade para as nar~escatholicas. Nem era isso o que ellas desejaram, e oque pediram e sustentaram os seus bisps, lutandoindefesos durante 16 am~os contra a maioria esrnaga-dora das criaturas de Roma! Pediam uma verdadeirareforma, sincera, liberal, em harmonia com as exigen-cias da epcoa. O programma formulava~se em tresgrandes captulos fundamentaes. I. Independencia dosBispos, autonomia das Igrejas nacionaes, inauguraod'um parlamentarismo religioso pela convocao amiu-dada dos Conclios, esses Estados Geraes do christia-nismo, superiores ao Papa e arbitros supremos domundo espiritual. 2." O casamento para os padres,isto , a secularisao progressiva do clero, a volta sleis da humanidade d'uma classe votada durante quasimil annos a um duro ascetismo, ento talvez neces-sario, mas j no seculo x6. absurdo, perigoso, destoo-

    ralisador. 3. Restrices pluralidade dos beneficosecclesiasticos, abuso odioso, tendente a introduzir naIgreja um verdadeiro feudalismo .com todo o seu podere desregramento. D'estas reformas saa naturalmentea humanisao gradual da religio, a liberdade cres-cente das consciencias', e a capacidade para o christia-nismo de se transformar dia a dia, de progredir, deestar sempre altura do esprito humano, resultadoimmenso e capital que trouxe a Reforma aos povos quea seguiram. Os graves prelados, que ento combatiampelas reformas que acabo de apresentar, no desejaram,certamente, nem mesmo previam estas consequencias :o proprio Luthero as no previo. Mas nem por isso asconsequencias deixariam de ser aquellas. Bartholomeudos Martyres e os bispos de Cadiz e Astorga no eram,seguramente, revolucionarios: representavam no con-clio de Trento a ultima defesa e o protesto das Igrejasda Pennsula contra o Ultramontanismo invasor: masa obra d'elles que era, pelas consequencias, revolu-cionaria; e, trabalhando n'ella, estavam na corrente eno esprito do grande e emancipador seculo x6.0 Sehouvessem alcanado essa reforma, teramos ns talvez,hespanhoes e portuguezes, escapado decadencia.Quem pde hoje negar que em grande parte Re-forma que os povos reformados devem os progressosmoraes que os collocaram naturalmente frente daCivilisao? Contraste significativo, que nos apresentaboje o mundo[ As naes mais intelligentes, mais mo-ralisadas, mais pacificas e mais industriosas so exacta-mente aquellas que seguiram a revo]uo religiosa doseculo 16.: Allemanha, Ho]anda, Inglaterra, EstadosUnidos, Suissa. As mais decadentes so exactamenteas mais catholicasl Com a Reforma estariamos hoje

    8V O I . l i

  • talvez altura d'essas naes: estariamos livres, pros-peros, intelligentes, moraes.., mas Roma teria cado!

    Roma no queria cair. Por isso resistio longo tempo,illudio quanto pde os votos das naes, que reclama-varo a convocao do concilio reformador. No po-dendo resistir mais tempo, cede'por fim. Mas comoo fez? como cedeu Roma, dominada desde ento pelosJesutas? Estamos em Italia, meus senhores, no paizde Machiavello!... Eu no digo que Roma usassedeliberada e conscientemente d'uma politica machiavel-lira: no posso avaliar as intenes. Digo simples-mente que o parece; e que, perante a historia, a poli-tira romana em toda esta questo do concilio de Trentoapparece com um notarei caracter de habilidade e cal-culo.., muito pouco evangelicos! Roma, no podendoresistir mais ida do concilio, explora essa id~a emproveito proprio. D'um instrumento de paz e pro-gresso, faz uma arma de guerra e dominao ; confiscao grande impulso reformador, e fal-o convergir emproveito do Ultramontanismo. Como? D'uma ma-neira simples: l., dando s aos legados do papa odireito de propor reformas: 2., substituindo, ao antigomodo de votar por 1,aes, o voto por cabeas, que lhed com os seus cardeaes e bispos italianos, criaturassuas, uma maioria compacta e resolvida sempre a es-magar, a abafar os votos das outras naes. Bastadizer que a Frana, a Hespanha, Portugal e os Estadoscatholicos da Allemanha nunca tiveram, juntos, numerode votos superior a 6o, ena quanto os italianos conta-varo 18o, e mais! N'estas condies, o concilio dei-xava de ser universal: era simplesmente italiano; nemitaliano, romano apenas! Desde o primeiro dia se pdever que a causa da reforma liberal estava perdida.

    &

    Provocado para essa reforma, o concilio s serviocontra ella, para a sophismar e annullar!

    Composta e armada assim a maquina, vejamol-a tra-balhar. Para sujeitar na terra o homem, era neces-sario fazel-o condemnar primeiro no ceu: por isso oconcilio comea por estabelecer dogmaticamente, nasesso 5.', o peccado original, com todas as suas con-sequencias, a condemnao hereditaria da humanidade,e a incapacidade do homem se salvar por seus mereci-mentos, ,-nas s por obra e graa de J. Christo. Muitostheologos e alguns poucos synodos particulares sehaviam j occupado d'esta materia: nenhum conclioecumenico a definira ainda. Um conclio verdadeira-mente liberal deixava essa questo na sombra, no inde-finido, no prendia a liberdade e a dignidade humanascom essa algema: o Concilio de Trento fez d'essadefinio o prologo dos seus trabalhos. Convinha-lhe,logo no comeo, condemnar sem appellao a Razohumana, e dar essa base ao seu edificio. Assim o ez.D'ento para c, ficou dogmaticamente estabelecido nomundo catholico que o homem deve ser una corpo semalma, que a vontade individual uma suggesto dia-bolica, e que para nos dirigir basta o Papa em Romae o confessor cabeceira. Perinde ac cadaver, dizemos estatutos da Companhia de Jesus.

    Na sesso ,3.~ confirma-se e precisa-se o dogmada Eucharistia, j definido, ainda que vagamente, no4.o concilio de Latro, e vibra-se o anathema sobrequem no crer na presena real de Christo no po eno vinho depois da consagrao. mais um passo (eeste decisivo) pa,'a fazer entrar o christianismo no ca-minho da idolatria, para collocar o divino no absurdo.Poucos dogmas contriburam tanto como este materia-

  • lismo da presena real para embrutecer o novo povo,para fazer reviver n'elle os instinctos pagos, para lhesophismar a razo natural! Parece que era isto o queo conclio desejava!

    Na sesso i4? trata-se detidamente da Confisso.A confisso existia ha muito na Igreja, mas compara-tivamente livre e facultativa. No 4.o concilio de Latrorestringira-se j bastante essa liberdade. Na sesso 14.ade Tremo a consciencia christ definitivamente encar-cerada. Sem confisso no ha remisso de peccados!A alma incapaz de communicar com Deos, seno porintermedio do padre! Estabelece-se a obrigao dosfieis se confessarem em epocas certas, e exortam-se aque se confessem o mais que possam. Funda-se aquio poder, to temivel quanto misterioso, do confessio-nario. Apparece una typo singular: o director espiri-tual. D'ahi por diante ha sempre na familia, immovel cabeceira, invisvel mas sempre presente, um vultonegro que separa o marido da mulher, uma vontadeocculta que governa a casa, um intruso que mandamais do que o dono. Quem ha aqui, hespanhol ouportuguez, que no conhea este estado deploravel dafamilia, com um chefe secreto, em regra, hostil aochefe visivel ? quem no conhece as desordens, os escan-dalos, as miserias introduzidas no lar domestico pelaporta do confessionario? O conclio no queria isto,de certo: mas fez tudo quanto era necessario para queisto acontecesse.

    Na parte disciplinar e nas relaes da Igreja com oEstado, predomina o mesmo espirito de absolutismo,de concentrao, de invaso de todos os direitos. Nasesso 5.4, tornam-se as Ordens regulares indepen-dentes dos Bispos, e quasi exclusivamente dependentes

    de Roma. Que arma esta na mo do Papado, que jde si no era mais do que uma arma na mo do Jesui-tismo! Na sesso 13.a s o Papa, pelos seus commis-sarios, pode julgar os bispos e os padres. a impu-nidade para o clero! Na sesso4? pem-se restrices leitura da Biblia pelos seculares, restrices taes queequivalem a uma verdadeira prohibio. Ora, o que~isto seno asuspeioda Razo humana, condemnadaa pensar e a ler pelo pensamento e pelos olhos de meiaduzia de eleitos ? Nas sesses 7?, 9?, 187, 247, esta.belecem-se igualmente disposies tendentes todas asujeitar os governos, a impor aos povos a polcia ro-mana, apagando implacavelmente por toda a parte osuhimos vestigios das Igrejas nacionaes. Finalmente,a superioridade do Papa sobre os Concilios triumphanas sesses 23? e 25.~, pela bocca do jesuta Lainez,inspirador e alma do conclio.., se permittido, aindamethaforicamente, fallando d'um jesuita, empregar apalavra alma... A redaco d'um Cathecismo vemcoroar esta obra de alta poltica. Com esse Cathe-cismo, imposto por toda a parte e por todos os modosaos espiritos moos e simples, tratou-se de matar aliberdade no seu germen, de absorver as geraes nas-centes, de as deformar e torturar, comprimindo-as nosmoldes estreitos d'uma doutrina secca, formal, esco-lastica e subtilmente inintellegivel. Se se conseguioou no esse resultado funesto, respondam umas poucasde naes moribundas, enfermas da peior das enfermi-dades, a atrophia moral!

    Sim, meus senhores! essa machina temerosa de com-presso, que foi o catholicismo depois do conclio deTrento, que podia ella offerecer aos povos? A into-leranci% o embrutecimento, e depois a morte! Tomo

  • tres exemplos. Seja o primeiro a Guerra dos Trintaanhos, a mais cruel, mais friamente encarniada, maissystematicamente destruidora de quantas tem visto ostempos modernos, e que por pouco no aniquila a Alie-manha. Essa guerra, provocada pelo partido catho-lico, e por elle dirigida com uma perseverana infernal,mostrou bem ao mundo que abysmos de odio podemoccultar palavras de paz e religio. O padre no di-rigia somente, assistia execuo. Cada general traziasempre comsigo um director jesuta: e esses generaeschamavam-se Tilly, Picolomini, os mais endurecidosdos verdugos! Salvou ento a Allemanha e a Europaa firmeza indomavel d'um corao to grande quantopuro, sereno em face d'essas hordas fanaticas. O ver-dadeiro heroe (e unico tambem) d'essa guerra maldita,o verdadeiro santo d'esse perodo tenebroso, una pro-testante, Gustavo Adolpho. Em quanto ao Papa, esseapplaudia a matana! O segundo exemplo a Italia.O terror que inspirava ao Papado a criao em Italiad'um Estado forte, que lhe pozesse uma barreira ambio crescente de dia para dia, tornou-o o maiorinimigo da unidade italiana. o Papado quem semeiaa disordia entre as cidades e os principes italianos,sempre que tentam ligar-se. I~ o Papado quem con-vida os estrangeiros a descerem os Alpes, na cruzadacontra as foras nacionaes, cada vez que parecem quererorganisar-se. O Papado, diz Edgard Quinet, temsido um [erro sagrado na ferida da Italia, que a nodeixa sarar. Hoje mesmo, se essa suspirada unidadese consumou, no foi no meio das maldies e colerasdo clero e de Roma? O unico pensamento, que hojeabsorve o Papado, desmanchar aquella obra nacional,chamar sobre ella os odios do mundo, o ferro estran-

    geiro, podendo ser; assassinar a Italia resuscitada!Estes factos so por todos sabidos. O que talvez nemtodos saibam o papel que o catholicismo representouno assassinato da Polonia. tA intolerancia dos je-sutas e ultramontanos, diz Emilio de Lavelaye, foi acausa primaria do desmembramento e queda da Po-lonia. Esta nao heroica, mas pouco organisada, ouantes, pouco unificada, era uma especie de federaode pequenas nacionalidades, com costumes e religiesdiflerentes. Encravada entre monarchias poderosas eambiciosas, como a Austria, a Russia e a Turquiad'ento, a Polonia s podia viver pela liberdade poli-rica, e sobre tudo pela tolerancia religiosa, que con-servasse amigos e unidos contra o inimigo commumos grupos auIonomicos de que se compunha. A essatolerania deveu ella, com effeito, a fora e impor-tancia que teve na historia da Europa at ao seculo 17.:catholicos, gregos scismaticos, protestantes, socinianosviveram muitos tempo como irmos, n'uma sociedadeverdadeiramente christ porque era verdadeiramentetolerante. Um dia, porm, os jesuitas, la do centro deRoma, olharam para a Polonia como para uma boapreza. Aquella nao era effectivamente um escandalopara os bons padres. Tanto intrigaram, que em 157otinham jlogradointroduzir-se na Polonia: o rei EstevoBathory concede-lhes, com uma culparei imprudencia,a universidade de Wilna. Senhores do ensino, e embreve das consciencias da nobreza catholica, os jesutasso um poder: comeam as perseguies religiosas.Em 1648, Joo Casimiro, que antes de ser rei fracardeal e jesuta, quer obrigar os camponezes ruthe-nios, sectarios do schisma grego, a converterem-se aocatholicismo. Estes levantam-se, unem-se aos cossa-

  • cos, tambem do rito grego, e comea uma guerra for-midavel, cujo resultado foi separarem-se cossacos eruthenios da federao polaca, dando se Russia, emcujas mos se tornaram uma arma terrvel sempreapontada ao corao da Polonia. Nunca esta naoteve inimigos to encarniados como os cossacos! Semelles, a Polonia, enfraquecida entre visinhos formida-veia, devia cair, e caio effectivamente. A partilha ex-poliadora de 1772 no fez mais do que confirmar umfacto j antigo, a nullidade da nao polaca.

    Assim pois, meus senhores, o catholicismo dos nl-timos 3 seculos, pelo seu princpio, pela sua disciplina,pela sua poltica, tem sido no mundo o maior inimigodas naes, e verdadeiramente o tumulo das naciona-lidades. O antro da Esphinge, disse d:elle um poetaphilosopho, reconhece-se logo entrada pelos ossosdos povos devorados.

    E a ns, hespanhoes e portuguezes, como foi queo catholicismo nos annullou? O catholicismo pesousobre ns por todos os lados, com todo o seu peso.Com a Inquisio, um terror invisvel paira sobre asociedade: a hipocrisia torna-se um vicio nacional enecessario: a delao uma virtude religiosa: a ex-pulso dos Judeus e Moiros empobrece as duas naes,paralisa o commercio e a industria, e d um golpemortal na agricultura em todo o Sul da Hespanha: aperseguio dos chrislos novos faz desapparecer oscapitaes: a Inquisio passa os mares, e, tornando noshostis os ndios, impedindo a fuso dos conquistadorese dos conquistados, torna impossvel o estabelecimentod'uma colonisao solida e duradoira: na America des-povoa as Antilhas, apavora as populaes indgenas, efaz do nome de christo um symbolo de morte ; o terror

    religioso, finalmente, corrompe o caracter nacional, efaz de duas naes generosa-', hordas de fanaticos en-durecidos, o horror da civilisao. Com o Jesuitismodesapparece o sentimento christo, para dar logar aossophismas mais deploraveis a que jmais desceu aconsciencia religiosa: methodos de ensino, ao mesmotempo brutaes e requintados, esterilisam as intelligen-cias, dirigindo-se mellmria, com o fim de matarem opensamento inventivo, e alcanam alhear o espiritopeninsular do grande movimento da sciencia moderna,essencialmente livre e creadora: a educao jesuticafaz das classes elevadas machinas inintelligentes e pas-sivas; do povo, fanaticos corruptos e crueis: a funestamoral jesutica, explicada (e praticada) pelos .seus ca-suistas, com as suas restrices mentaes, as suas sub-tilezas, os seus equvocos, as suas condescendencias,infiltra-se por toda a parte, como um veneno lento,desorganisa moralmente a sociedade, desfaz o espritode famlia, corrompe as consciencias com a oscilaocontinua da noo do dever, e aniquila os caracteres,sophismando-os, amolecendo-os: o ideal da educaojesutica um povo de crianas mudas, obedientes eimbecis; realisou-o nas famosas Misses do Paraguay;o Paraguay foi o reino dos celts da Companhia deJesus; perfeita ordem, perfeita devoo; uma coisa sfaltava, a alma, isto d, a dignidade e a vontade, o quedistingue o. homem da animalidade! Eram estes osbeneficios que levavamos s raas selvagens da Ame-rica, pelas mos civilisadoras dos padres da Com-panhia! Por isso o genio livre popular decao, ador-meceu por toda a parte: na arre, na litteratura, nareligio. Os santos da epoca j no tem aquelle cara-ter simples, ingenuo dos verdadeiros santos popu-

  • lares: so frades beatos, so jesutas habeis. Os ser-monarios e mais livros de devoo, no sei porque ladoseiam mais vergonhosos; se pela nullidade das idas,pela baixeza do sentimento, ou pela puerilidade rid-cula do estylo. Em quanto arte e litteratura, mos-trava-se bem clara a decadencia n'aquellas massas es-tupidas de pedra da architectura jesuitica, e na poesiaconvencional das academias, ou nas odes ao divino ejaculatorias fradescas. O genio popular, esse morrras mos do clero, como com tanta evidencia o deixoudemonstrado nos seus recentes livros, to cheios denovidades, sobre a Litteratura portugueza, o snr. Theo-philo Braga. Os costumes sados d'esta escola sabe-mos ns o que foram. J citei a Arre de Furtar, osRomances picarescos, as Faras populares, o Theatrohespanhol, os escriptos de D. Francisco Manoel e doCavalleiro de Oliveira. Na falta d'estes documentos,bastava nos a tradio, que ainda hoje reza dos escan-dalos d'essa sociedade aristocratica e clerical! Essafunesta influencia da direco catholica no menosvisvel no mundo politico. Como que o absolutismoespiritual podia deixar de reagir sobre o espirito dopoder civil? O exemplo do despotismo vinha de toalto! os reis eram to religiosos! Eram por excel-lencia os reis catholicos, fidelissimos. Nada forneceupelo exemplo, pela auctoridade, pela doutrina, pelainstigao, um tamanho ponto de apoio ao poder abso-luto como o esprito catholico e a influencia jesuitica.N'esses tempos santos, os verdadeiros ministros eranaos confessores dos reis. A escolha do confessor erauma questo de Estado. A paixo de dominar, e oorgulho criminoso de um homem, apoiava-se na palavradivina. A theocracia dava a mo ao despotismo. Essa

    direco via-se claramente na poltica externa. A po-ltica, em vez de curar dos interesses verdadeiros dopovo, de se inspirar d'um pensamento nacional, traia asua misso, fazendo-se instrumento da poltica catho-fica romana, isto , dos interesses, das ambies d'umestrangeiro. D. Sebastio, o discpulo dos iesuitas,vai morrer nos areaes de Africa pela [ catholica,n pela nao portugueza. Carlos 50, Eilippe 2.poeta o mundo a ferro e fogo, por que? pelos in-teresses hespanhoes? pela grandeza de Hespanha?No: pela grandeza e pelos interesses de Roma!Durante mais de 7o annos, a Hespanha, dominadapor estes dois inquizidores coroados, d o melhordo seu sangue, da sua riqueza, da sua actividade,para que o Papa dsse outra vez leis Inglaterra e AIlemanha. Era essa a politica nacional d'essesreis famosos: eu chamo a isto simplesmente trair asnaes.

    Tal uma das causas, seno a principal, da deca-dencia dos povos pninsulares. Das influencias dele-terras nenhuma foi to universal, nenhuma lanou tofundas ralzes. Ferio o homem no que ha de mais in-timo, nos pontos mais essenciaes da vida moral, nocrer, no sentir--no ser: envenenou a vida nas suasfontes mais secretas. Essa transformao da alma pe-ninsular fez-se la em to intimas profundidades, quetem escapado s maioras revolues; passam por cimad'essa regio quasi inaccessivel, superficialmente, edeixam-na na sua inercia secular. Ha em todos ns,por mais modernos que queiramos ser, ha la occulto,dissimulado, mas no inteiramente morto, um beato,um fanatico ou um jesuta! b;sse moribundo que seergue dentro em ns o inimigo, o passado. E pre-

  • ciso enlerral-o por uma vez, e com elle o espirito si-nistro do catholicismo de Trento.

    Esta causa actuou principalmente sobre a vida moral:a segunda, o Absolutismo, apezar de se reflectir noestado dos espiritos, actuou principalmente na vidapolitica e social. A historia da transformao das mo-narchias peninsulares longa, e, para a minha poucasciencia, obscura e at certo ponto desconhecida: noa poderia eu lazer aqui. Basta dizer que o caracterd'essas monarchias durante a Idade-Media contrastasingularmente com o que lhes encontramos no se-culo ~6. e nos seguintes. Os reis ento no eramabsolutos: e no o eram, porque a vida poltica local,forte e vivaz, no s no lhes deixava um grande cr-culo de acfio, mas ainda, dentro d'esse mesmo crculo,lhes oppunha expanso da auctoridade embaraos euma continua vigilancia. Os privilegios da nobresa edo clero, por um lado, e, pelo outro, as instituiespopulares, os municipios, as communas, equilibraramcom mais ou menos oscilaes o peso da coroa. Paraas questes summas, para os momentos de crise, lestavam as Crtes, aonde todas as classes sociaes tinhamrepresentantes e voto. A liberdade era ento o estadonormal da Peninsula.

    No seculo ~6.o, tudo isto mudou. O poder abso-luto assenta-se sobre a ruina das instituies locaes.Abaixou a nobreza, verdade, mas s em proveitoseu: o povo pouco lucrou com essa revoluo. O que certo que perdeu a liberdade. A vida municipalafrouxa gradualmente: as communas hespanholas, de-pois d'um sangrento protesto, caem exanimes, aos psd'um rei, que nem sequer era inteiramente hespanhol.As instituies locaes, cerceadas por todos os lados,

    sentem faltar-lhes em volta o ar, e o cho debaixo desi. Quem poder jamais contar essas inva~es surdas,insensiveis do poder real no terreno do povo, essaslutas subterraneas, as abdicaes successivas da von-tade nacional nas mos d'um homem, as resistenciasinfelizes, a longa e cruel historia do desapparecimentodos fros populares? uma historia to triste quantoobscura, que ninguem fez nem far jamais[ V-se odesfeixo do drama: os incidentes escapam-nos. Masao lado d'essa luta surda, houve outra manifesta, cujahistoria se erguer sempre como um espectro vingador,para accusar a realeza. Essa luta a grande guerracommunera das cidades hespanholas. Vencidas, esma-gadas pela fora, as cidades hespanholas encontraramum heroe, de cujo peito saio ardente um protesto, queser eterno como a condemnao de quem o provocou.Eis aqui o que D. Juan de Padilla, chefe dos commu-netos, escrevia sua cidade de Toledo, horas antesde ser decapitado. A ti, cidade de Toledo, que s acoroa de Hespanha, e a luz do mundo, que j no tempodos Godos eras livre, e que prodigalisaste o teu sanguepara assegurar a tua liberdade e a das cidades tuasirmans, Juan de Padilla, teu filho legitimo, te faz saberque pelo sangue do seu corpo mais uma vez vo serrenovadas as tuas antigas victorias... A cabea dePadilla rolou, e com elle, decapitada tambem, cao aantiga liberdade municipal. A centralisao monar-chica, pesada, uniforme, caio sobre a Pennsula comoa pedra d'um tumulo. A respirao de milhares dehomens suspendeu-se, para se concentrar toda no peitode um homem excepcional, de quem o acaso do nasci-mento razia um deos. Se, ao menos, esse deos fossepropicio, bom, providencial! Mas a centralisao do

  • absolutismo, prostrando o povo, corrompia ao mesmotem?o o rei. D..loo 3.o, esse rei/anatico e de ruimcondio, Filippe 2.o, o demonio do Meio-dia, inqui-sidor e verdugo das na~es, Filippe 3., Carlos 4.0,Joo 5.0, Afonso 6., devassos uns, outros desordeiros,outros ignorantes e vis, so bons exemplos da realezaabsoluta, infatuada at ao vicio, at~ ao crime, do or-gulho do proprio poder, possessa d'aquella loucuracesariana, com que a natureza faz expiar aos despotasa desigualdade monstruosa, que os pe como que frada humanidade. A taes homens, sem garantias, seminspeco, confiaram as naes cegamente os seus des-tinost Se Filippe 2.0 no fosse absoluto, jamais teriapodido tentar o seu absurdo projecto de conquistar aInglaterra, no teria feito sepultar nas agoas do oceano,com a im,encu,el armada, milhares de vidas e um ca-pilal prodigioso inteiramente perdido. Se D. Sebastiono fos~e absoluto, no teria ido enterrar em AlcacerKebir a nao portugueza, as ultimas esperancas dapatria.

    Outras monarchias, a franceza por exemplo, sujei-tavam o povo, mas ajudaram por outro lado o seu pro-gresso. Aristocraticas pelas razes, tinham pelos frutosmuito de populares. A burguesia, a quem estava des-tinado o futuro, erguia-se, comeava a ter voz. Asnossas monarchias, porm, tiveram um caracter exclu-sivamente aristocratico: eram-no pelo princpio, eeram-no pelos resultados. Goveruava-se ento pelanobreza e para a nobreza. As consequencias sabe-mol.as ns todos. Pelos morgados, vincu[ou-se a terra,criaram-se immensas propriedades. Com isto, annul-lou-se a classe dos pequenos proprietarios; a grandecultura sendo ento impossvel, e desapparecendo gra.

    dualmente a pequena, a agricultura caio; metade daPennsula transformou-se n'uma charneca: a populaodecresceu, sem que por isso se aliviasse a miseria.Por outro lado, o esprito aristocratico da monarchia,oppondo se naturalmente aos progressos da classe me-dia, impedio o desenvolvimento da burguesia, a classemoderna por excellencia, civilisadora e iniciadora, jana industria, ja nas sciencias, ja no commercio. Semella, o que podamos ns ser nos grandes ]irabalhoscom que o esprito moderno tem transformado a socie-dade, a intelligencia e a natureza? O que realmentefomos; nullos, graas monarchia aristocratica! Essamonarchia, acostumando o povo a servir, habituando-o inercia de quem espera tudo de cima, obliterou osentimento instinctivo da liberdade, quebrou a energiadas vontades, adormeceu a iniciativa; quando maistarde lhe dram a liberdade, no a comprehendeu;ainda hoje a no comprehende, nem sabe usar d'ella.As revolues podem chamar por elle, sacudil-o comfora: contina dormindo sempre o seu somno secular!A estas influencias deletereas,, a estas duas causas prin-cipaes de decadencia, uma moral e outra poltica, jun-ta-se uma terceira, de caracter sobre tudo economico:as Conquistas. Ha dois seculos que os livros, as tra-dies e a memoria dos homens, andam cheios d'essaepopeia guerreira, que os povos peninsulares, atraves-sando oceanos desconhecidos, deixaram escrita porrodas as partes do mundo. Embalarnnos com essashistorias: atacai-as quasi um sacrilegio. E todaviaesse brilhante poema em aco foi uma das maiorescausas da nossa decadencia. necessarlo dizei-o, emque peze aos nossos sentimentos mais cros de patrio-tismo tradicional. Tanto mais que um erro econo,

  • mico no necessariamente uma vergonha nacional.No ponto de vista heroico, quem pde negai-o? foiesse movimento das conquistas hespanholas e portu-guezas um relampago brilhante, e por certos lados su-blime, da ahna intrepida peninsular. A moralidadesubjectiva d'csse movimento indiscutvel perante ahistoria: so do domnio da poesia, e sei-o-ho sempre,acontecimentos que puderam inspirar a grande alma deCames. A desgra~.a que esse esprito guerreiroestava deslocado nos tempos modernos: as naes mo-dernas esto condemnadas a no fazerem poesia, massciencia. Quem domina no j a musa heroica daepopea: a Economia Poltica, Caliope d'um mundonovo, seno to bllo, pelo menos mais justo e logicodo que o antigo. Ora, luz da Economia Politicaque eu condemno as Conquistas e o esprito guerreiro.Quizemos refazer os tempos heroicos da edade mo-derna:, enganmo-nos; no era possvel; calmos. Quale, com effeiio, o esprito da idade moderna? o espi-rito de trabalho e de industria : a riqueza e a vida dasnaes teem de se rifar da actividade productora, eno ja da guerra esterilisadora. O que sae da guerrano s acaba cedo, mas alem d'isso urn capital morto,consumido sem resultado. necessario que o traba-lho, sobre tudo a industria agrcola, o fecunde, lhe dvida. Domina todo este assumpto uma lei economica,formulada por Ado Smith, um dos paes da sciencia,nas seguintes palavras: o capital adquirido pelo com-mercio e pela guerra s se torna real e productivoquando se fixa na cultura da terra e nas outras indus-trias. Vejamos o que tem leito a Inglaterra com aIndia, com a Australia, e com o commercio do mundo.Explora, combate: lhas a riqueza adquirida fixa-a no

    seu solo, pela sua poderosa industria, e pela sua agri-cultura, talvez a mais florescente do mundo. Por issoa prosperidade da Inglaterra ba dois seculos tem sidoa admirao e quasi a inveja das naes. Pelo con-trario, ns, portuguezes e hespanhoes, que destinodmos s prodigiosas riquezas extorquidas aos povosestrangeiros? Respondam a nossa industria perdida,o commercio arruinado, a populao diminuida, a agri-cultura decadente, e esses desertos da Beira, do Alem-rejo, da Estremadura hespanhola, das Castetlas, aondese no encontra uma arvore, um animal domestico, umaface humana !

    Um exemplo, o da agricultura portugueza antes edepois do seculo l.o por em evidencia, com factossignificativos, essa influencia perniciosa do espirito deconquista no mundo economico. Esses factos so ex-trahidos de tres obras, ruja auctoridade incontestavel:a MemoT-ia historica de Alexandre de Gusmo sobre aAgricultura portugueza; o livro de Camillo PallaviciniLa eco~tomia agraria del Portogallo; e a Historia daAg~"icultuva em Portugal, pelo snr. Rebello da Silva.Uma coisa que impressiona quem estuda os primeirosseculos da monarchia portugueza o caracter essencial-mente agricola d'essa sociedade. Os cognomes dosreis, o loovoador, o lavrador, j por si so altamentesignificativos. No meio das guerras, e apezar da im-perfeio das instituies, a populao crescia, e aabundancia generalisava-se. A arborisac, o do paizdesenvolvia-se~ a charneca recuava diante do trabalho.As armadas, que mais tarde dominaram os mares~sairamdasmatassemeadas por D. Diniz. No reinadode D. Fernando era Portugal uni dos paizes que maisexportavam. A Castella, a Galliza, a Flandres, a Alie-

    vo t . . u 9

  • manha forneciam-se quasi exclusivamente de azeite por-tuguez: a nossa pr,_,speridade agricola era suficientepara abastecer to rastos mercados. O con]merciodoscereaes era consideravel. [No secu]o xvvinhamosnavios venezianos a Lisboa e aos portos do Algarve,trazendo as mercadorias do Oriente, e levando emtroca cereaes, peixe salgado, e frutas secas, que es-palhavam depois pela Dalmacia e por toda a halia.Sustentavamos tambem um activo commercio com aInglaterra. As classes populares desenvvlviam-se pelaabundancia e o trabalho, a populao crescia. Notempo de D. Joo 22 chegra a populao a muitoperto de tres milhes de habitantes... Basta com-parar este algarismo com o da popula em 164o,que escassamente excedia um milho, para se co-nhecer que uma grande decadencia se operou duranteeste intervalo!

    Dra-se, com effeito, durante o seculo i.o, uma de-plorarei revoluo nas condies economicas da socie-dade portugueza, revoluo sobre tudo devida ao novoestado de coisas criado pelas conquistas. O proprie-tario, o agricultor deixam a charrua e fazem-se sol-dados, aventureiros: atravessam o oceano, procurade gloria, de posio mais brilhan.te ou mais rendosa.Atrahida pelas riquezas acumuladas nos grandes cen-tros, a populao rural afflue para ali, abandona o$campos, e vem augmentar nas capitaes o contingenteda miseria, da domesticidade ou do vicio. A cultura di-minue gradualmente. Com essa dminuio, e com ade-preciao relativa dos metaes preciosos pela affluenciados thesouros do Oriente e America, os cereaes chegama preos fabulosos. O trigo, que em I40o valia ~o reispor alqueire, tem subido, em 152o, a 20 reis, 30 e 35!

    Por isso o preo nos mercados estrangeiros, nem siquerpOde cobrir o custo originario: a concorrencia d'outrasnaes, que produziam mais barato, esmaga-nos. Nos~ deixamos de exportar, mas passmos a importar:do reinado de D. Manoel em diante, diz Alex. deGusmo, somos sustentados pelos estrangeiros. Essesustento podiam-no pagar os grandes, que a India e oBrazil enriqueciam. A muhido, porm, morria defome. A miseria popular era grande. A esmola portaria dos conventos e casas fidalgas passou a seruma instituio. Mendigavam aos bandos pelas es-tradas. A tradio, ri 'um symbol terrivelmente ex-pressivo, apresenta-nos Cames, o cantor d'essas glo-rias que nos empobreciam, mendigando para susteutara velhice triste e desalentada. E uma imagem da na-o. As chronicas fallam-nos de grandes fomes. Portudo isto, decrescia a olhos vistos a populao. Queremedio se procura a este mal? um mal incomparavel-mente maior: a escravido! Tenta-se introduzir o tra-balho servil nas culturas, com escravos vindos daAfrica l Felizmente no passou de tentativa. Era atransformao d'um paiz livre e civilisado, n'uma coisamonstruosa, uma oligarchia de senhores de roa! abarbaridade dos desvastadores da America, transpor-tada para o meio da Europa! Com estes elementos oque se podia esperar da industria? urna decadenciatotal. No se fabrica, no se cria: basta o ouro doOriente para pagar a industria dos outros, enrique-cendo-os, instigando-os ao trabalho productivo, e ficandons cada vez mais pobres, com as mos cheias de the-souros! Importavamos tudo: de halia, sedas, veludos,brocados, massas: de Alemanh, vidro: de Frana,panos: de Inglaterra e Hollanda, cereaes, lans, tecidos,

  • Havia ento uma unica industria nacional.., a India!Vae-se India buscar um nome e uma fortuna, e vol-ta-se para gozar, dissipar esterilmente. A vida con-centra-se na capital. Os nobres deixam os campos,os solares dos seus maiores, aonde viviam em certacommunho com o povo, e veem para a crte brilhar,ostentar.., e mendigar nobre,'nente. O fidalgo faz-secortezo: o homem do povo, no podendo j ser tra-balhador, faz-se lacaio: a libr o sello da sua deca-dencla. A criadagem d'uma casa nobre era um ver-dadeiro estado. O luxo da nobreza tinha alguma coisade oriental. Do luxo desenfreado, ao vicio, corru-po, mal dista um passo. A paixo do jogo esten-deu-se terrivelmente: jogava-se nas tavolagens, e joga-va-se nos palacios. O ocio, acendendo as imaginaes,levava pelo galanteio s intrigas amorosas. s aven-rufas, ao adulterio, e arruinava a familia. Lisboa erauma capilal de fidalgos ociosos, de plebeus mendigos,e de rufies.

    Ao longe, f,Sra do paiz, foram outras as consequen-tias do espirito de conquista, mas igualmente funestasA escravatura (alem de rodas as suas deplorareis con-sequencias moraes) esterilisou pelo trabalho servil. So trabalho livre fecundo: s os resultados do tra-balho livre so duradoiros. Das colonias, que os Eu-ropeus fundaram no Novo Mundo, quaes prosperaram?quaes ficaram estacionarias? Prosperaram na razodirecta do trabalho livre: o Norte dos Estados-Unidosmais do que o Sul: os Estados-Unidos mais do que oBrazil. E essa joven Australia, cuja populao duplicatodos os Io annos, que j exporta para a Europa osseus productos, cujas instituies so ja hoje modelo einveja para os povos civilisados, e que ser antes de

    um seculo uma das maiores naes do mundo, a quedeve ella essa prosperidade phenomenal, seno ao in-fluxo maravilhoso do trabalho livre, ~fuma terra queainda no pisou o p ri'um homem, que se no dissesselivre? A Australia tem feito em menos de ioo annosde liberdade o que o Brazil no alcanou com mais detres seculos de escravatura[ Fomos ns, foram os re-sultados do nosso espiritoguerreiro, quem condemnou oBrazil ao estacionamento, quem condemnou nullidadetoda essa costa de Africa, em queoutras mos podiam tertalhado larga uns poucos de imperios! Esse espjritoguerreiro, com os olhos fitos na luz de uma falsa gloria,desdenha, desacredita, envilece o trabalho manual--otrabalho manual, aforadas sociedadesmodernas, asal-vao e a gloria das futuras... Mas um fantastico idea-lismo perturba a alma do guerreiro: no distingue entreinteresse honroso e interesse vil: s as grandes acesde esforo heroico so bellas a seus olhos: para elle aindustria pacfica s propria de mos servis. A tra-dio, que nos apresenta D. Juo de Castro, depoisd'uma campanha em Africa, retirando se sua quintade Cintra, aonde se dava quella extralzha e nol:a agri-cultura de cortar as arvores de fruto, e plantar em lugard'ellas arvores silvestres, essa tradio deu nos um per-feitosymbolo do esprito guerreiro no seu desprezo pelaindustria. Portugal, o Portugal das conquistas, esseguerreiro altivo, nobre e fantastico, que voluntariamentearruina as suas propriedades, para maior gloria do seuabsurdo idealismo. E j~ que fatiei em 1). Juo deCastro, direi que poucos livros teem feito tanto mal aoesprito portuguez, como aquella biographia do heroeescripta por Jacintho Freire. J. Freire, que era padre,que nunca vira a India, e que gnorava to profunda-

  • mente a politica como a economia poltica, fez da vida. je feitos de D. J. ae (.astro, no um estudo de sciencia

    social, mas um discurso academico, ]itterario e muitoeloquente, seguramente, mas emphatico, sem critica, eanimado por um talso ideal de gloria ~ antiga, ~loriaclassica, atravez do qual nos faz ver continuamente asacesdoseuheroe. Ha dois seculos que lemos todoso D. Joo de Castro de Jacintho Freire, e acostummo-nos a tomar aquella fantasia de rethorico pelo tipo doverdadeiro heroe nacional. Falsemos com istoonossojuzo, e a critica d'uma epoca importante. precisoque se saiba que a verdadeira gToria moderna no aquella: " exactamente o contrario d'aquella. Uma scoisa ha ali a aproveitar como exemplo: a nobrezad'alma d'aquelle homem magnanimo: mas essa nob.rezad'alma deve ser aplicada pelos homens modernos aoutros commetimentos, e d'um modo muito diverso.Foi aquelle genero de heroismo, to apregoado porJ. Freire, que nos arruinou!

    Como era possvel, com as mos cheias de sangue,e os coraes cheios de orgulho, iniciar na civilisaoaquelles povos atrazados, unir por interesses e senti-mentos os vencedores e os vencidos, cruzar as raas~ fundar assim, depois do &)rninio momentaneo da vio-lencia, o domnio duradoiro e justo da superioridademoral e do progresso? As conquistas sobre as naesatrazadas, por via de regra, no so justas nem injuslas.Justificam-nas ou c,_,ndmnannas os resultados, o usoque mais tarde se faz do domnio estabelecido pelafora. As conquistasromanassohoiejustificadaspelaphilosophia da historia, porque criaram uma civilisaosuperior quella de que viviam os povos conquistados.A. conquista da India pelos inglezes justa, porque

    civilisadora. A conquista da India pelus pormguezes,da America pelos hespanhoes, foi injusta, porque nocivilisou. Ainda quando fossem sempre victoriosas asnossas armas, a India ter-nos-hia escapado, porque sis-tematicamente alheavamos os espritos, aterravamosas populaes, cavavamos pelo espirilo religioso e aris-tocratico um abysmo entre a minoria dos conquista-dores e a maioria dos vencidos. Um dos primeirosbelzeficios, que levmos quelles povos, foi a Inquisio:os hespanhoes fizeram o mesmo na America. As reli-gies indigenas no eram s escarnecidas, vilipendia-das: eram atrozmente perseguidas. O effeito moraldos trabalhos dos missionarios (tantos d'elles santa-mente heroicos!) era completamente annullado poraquella ameaa constante do terror religioso: ninguemse deixa converter por uma charidade, que tem a trazde si uma fogueira! A ferocidade dos hespanhoes naAmerica uma coisa sem nome, sem parallelo nosannaes da bestialidade humana. Dois imperios flores-centes desapparecem em menos de 60 anos! em menosde 60 anhos so destrudos dez milh.es de homens!dez milhes! Estes algarismos so tragicos: no pre-cisam de commentarios. E todavia, poucas raas setem apresentado aos conquistadores to brandas, inge-nuas, doceis, promptas a receberem com o corao acivilisao que se lhes impunha com as armas! Bar-tholomeu de las Casas, bispo de Chiapa, um verda-deiro santo, protestou em vo contra aquellas atrocida-des: consagrou a sua vida evangelica causa d'aquellesmilhes de infelizes: por duas veses passou Europa,para advogar solemnemente a causa d'elles peranteCarlos 5.0 Tudo em vo! a obra da destruio erafatal: tinha de se consumar, e consumou-se.

  • Ha. com effeito, nos actos condemnaveis dos povospeninsulares, nos erros da sua politica, e na decadenciaque os colheu, alguma coisa de fatal: a lei de evo-luo historica, que inflexvel e impassivelmente tiraas consequencias dos princpios uma vez introduzidosna sociedade. Dado o catholicismo absoluto, era im-possivel que se lhe no seguisse, deduzindo-se d'elle, oabsolutismo monarchico. Dado o absolutismo, vinhanecessariamente o esprito aristocratico, com o seucortejo de privilegios, de injustias, com o predomniodas tendencias guerreiras sobre as industriaes. Oserros polticos e economicos saam d'aqui natural-mente; e de tudo isto, pela transgresso das leis davida social, saia naturalmante tambem a decadenciasob rodas as formas.

    E essas falsas condies sociaes no produziram s-mente os effeitos que apontei. Produziram um outro,que por ser invisivel e insensvel, nem por isso deixade ser o mais fatal. E o abatimento, a prostrao doesprito nacional, pervertido e atrophiado por unspoucos de seculos da mais nociva educao. As cau-sas, que indiquei, ceosaram em grande parte: mas oseffeitus moraes persistem, e ~. a elles que devemosattribuir a incerteza, o desan}mo, o mal estar da nossasociedade contemporanea. A influencia do esprito ca-tholico, no seu pesado dogmatismo, deve ser attribuidaesta indifferena universal pela philosophia, pela scien-cia, pelo movimento moral e social moderno, este ador-mecimemo somnambulesco em face da revoluco doseculo i9., que quasi a nossa feio caracterstica enacional entre os povos da Europa. J no cremos,certamente, com o ardor apaixonado e cego de llOSSOSavs, nos dogmas catholicos: mas continumos a fechar

    os olhos s verdades descobertas pelo pensamentolivre.

    Se a Igreja nos incommda com as suas exigencias,n deixa por isso tambem de nos incommodar a Revo-luo com as suas lutas. Foi-nos os portuguezes intol-lerantes e fanaticos dos seculos 16., 17., e 18.: somosagora os portuguezes indifferentes do seculo 19. Poroutro lado, se o poder absoluto da monarchia acabou,persiste a inercia politica das populaes, a necessidade(e o gosto talvez) de que as governem, persiste a cen-tralisao e o militarismo, que annullam, que reduzemao absurdo as liberdades constitucionaes. Entre osenhor rei d'ento, e os senhores b~uentes de hoje, noba to grande differena: para o povo sempre amesma a servido. Eramos mandados, somos agoragovernados: os dois termos quasi que se equivalem.Se a velha monarchia desappareceu, conservou-se ovelho esprito monarchico: quanto basta para noestarm'os muito melhor do que nossos avs. Final-mente, do esprito guerreiro da nao conquistadora,herdmos um invencivclhorror ao trabalho e um intimodesprezo pela industria. Os netos dos conquistadoresde dois mundos podem, sem deshonra, consun'r noocio o tempo e a fortuna, ou mendigar pelas secreta-rias um emprego: o que no podem, sem indignidade, trabalhart. uma fabrica, uma officina, uma exploraoagrcola ou mineira, so coisas improprias da nossafidalguia. Por isso as melhores industrias nacionaesesto nas mos dos estrangeiros, que com ellas se en-riquecem, e se riem das nossas pretenes. Contra otrabalho manual, sobre ti,do, que universal o pre-conceito: parece-nos um symbolo servil! Por ellesobem as classes democraticas em todo o mundo, e se

  • engrandecem as naes; ns preferimos ser uma aris-tocracia de pobres ociosos, a ser uma democracia pros-peta de trabalhadores. o fruto que colhemos d'umaeducao secular de t radices guerre i ras e enlpha-ticas !

    D'essa educao, que a ns mesmos dmos durantetres seculos, provem todos os nossos males presentes.As raizes do passado rebentam por todos as lados nonosso solo: rebentam sob forma de sent imentos, dehabi tos, de preconcei tos. Gememos sob o peso doser ros h i s to r i cos . A nossa fa ta l i dade a nossa h i s -toria.

    Que pois necessario para readquirirmos o nossologar na civilisa,;o? para entrarmos outra vez na com-munho da Europa cul ta? necessar io um esforoviri l , um esforo supremo: quebrar resolutamente como passado. Respeitemos a memoria dos nossos avs:memoremos piedosamente os actos d'elles: mas no osimi temos. No sejamos, luz do seculo 19. , espe-c t ros a que d uma v ida empres tada o esp r i t o doseculo t6. A esse espr i to morta l opponhamos f ran-camente o esprito moderno. Opponhamos ao calho-l icismo, no a indifterena ou uma fria negao, masa ardente afl]rmao da alma nova, a consciencia livre,a contemplao directa do divino pelo humano, (isto , afuzo do divino e do humano), a philosophia, a sciencia,e a crena no progresso, na renovao incessante dahumanidade pelos recursos inexgotaveis do seu pensa-mento, sempre inspirado. Opponhamos momwcll iacentralisada, uniforme e impotente, a federao repu-blicana de todos os grupos atonomicos, de rodas asvontades soberanas, alargando e renovando a vida mu-nicipal, dando.lhe um caracter radicalmente democra-

    ! ~ 139

    rico, por que s ella a base e o instrumento natura[de todas as reformas praticas, populares, niveladoras.Finalmente, '

  • Chamou-se a isto o Christianismo.!Pois bem, meus senhores: o Christianismo foi a Revoluo do mundo antigo: a Revoluo no mais do que o Christianismo do mundo moderno (I).

    (l) Reedio do opsculo: CONFERENCIAS DEMOCRATICAS - Causas da decadencia dos povos peninsulares nos tres ultimos ,eculos. Discurso pronunciado na noite de 27de maio, na sala do Casino Lisbonense por Anthero do Quental. Porto, na typ. Commercial. 187h In-8o., de 48 pags. sendo Uma de advertencia.!(Nota do editor.)