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Sob a face neutra Marco Catalão Sob a face neutra

Sob a face neutra - funarte.gov.br · a palavra amora seria talvez menos doce e um pouco menos vermelha se não trouxesse em seu corpo (como um velado esplendor) a memória da palavra

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na palavra flechapodemos ouviro arco que se fletea corda que ruflao ar que freme e chia

é flecha a palavramas como preverseu voo inflamávelseu trajeto flébilo alvo onde se crava?

Marco Catalão é mestre em Teoria e História Literária (Unicamp). Poeta, dramaturgo eficcionista, é autor dos livros O cânone acidental, No cravo e na ferradura, Videoteipe e Agro negócio, este último editado pela Funarte em 2012. Em 2008, obteve o primeiro lugar no Concurso Nacional de Contos Luiz Vilela, com “Kenji”. Atualmente desenvolve uma tese de doutorado sobre a obra do poeta argentino Roberto Juarroz.

Sob a face neutra

Marc

o Cat

alão

Sob a face neutra, de Marco Catalão, foi contemplado com a Bolsa Funarte de Criação Literária, em sua quarta edição.

O autor foi novamente selecionado, quando a comissão responsável pela análise dos projetos inscritos voltou a se reunir para avaliar o resultado e escolher as melhores obras para publicação.

O livro é uma seleção de poemas que exploram as múltiplas facetas de palavras que se desdobram em vários significados. Os poemas são colocados em sequência alfabética, como num dicionário de subjetividades. O resultado é uma obra que explora a riqueza dos vocábulos em seus múltiplos sentidos e sonoridades.

A Funarte concede a Bolsa de Criação Literária desde 2007, com o objetivo de permitir a autores iniciantes a dedicação integral ao desenvolvimento de suas carreiras.

A publicação de Sob a face neutra confirma a intenção da Funarte e revela para o público um jovem e talentoso poeta com uma carreira promissora.

Antonio GrassiPresidente da Funarte

Sob a face neutraMarco Catalão

Sob a Face Neutra.indd 1 26/07/2012 17:01:21

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SOB A FACE NEUTRA

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Presidenta da República Dilma Rousseff

Ministra da Cultura Ana de Hollanda

FUNDAÇÃO NACIONAL DE ARTES – FUNARTE

Presidente da Funarte Antonio Grassi

Diretora Executiva Myriam Lewin

Diretora do Centro de Programas Integrados Ana Claudia Souza

Gerente de Edições

Oswaldo Carvalho

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SOB A FACE NEUTRA

MARCO CATALÃO

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Copyright©Marco CatalãoTodos os direitos reservados

Fundação Nacional de Artes – FunarteRua da Imprensa, 16 – Centro – Cep: 20030-120Rio de Janeiro – RJ – Tel.: (21) [email protected] – funarte.gov.br

Coordenação da Bolsa Funarte de Criação LiteráriaAna Vasconcelos

Edição Oswaldo Carvalho

Produção Editorial Jaqueline Lavor Ronca

Produção Gráfica João Carlos Guimarães

Produção Executiva Suelen Teixeira

Projeto Gráfico Fernanda Lemos Gilvan Francisco

Capa Livio Avelino

Revisão Obra Completa Comunicação

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)FUNARTE / Coordenação de Documentação e Informação

Catalão, Marco. Sob a face neutra / Marco Catalão. – Rio de Janeiro : FUNARTE, 2012. 128 p. ; 21 cm .

ISBN 978-85-7507-144-1

1. Poesia brasileira. I. Título. CDD B869.1

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Chega mais perto e contempla as palavras.Cada umatem mil faces secretas sob a face neutrae te pergunta, sem interesse pela resposta,pobre ou terrível, que lhe deres:Trouxeste a chave?

(Carlos Drummond de Andrade, Procura da poesia)

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Mas tornando a lo que decía, quede esto por cierto: que todos los nombres que se ponen por orden de Dios, traen consigo significación de algún particular secreto que la cosa nombrada en sí tiene, y que en esta significación se asemejan a ella; que es la primera de las tres cosas en que, como dijimos, esta semejanza se atiende. Y sea la segunda lo que toca al sonido: esto es, que sea el nombre que se pone de tal cualidad, que cuando se pronunciare suene como suele sonar aquello que significa, o cuando habla, si es cosa que habla, o en algún otro accidente que le acontezca. Y la tercera es la figura, que es la que tienen las letras con que los nombres se escriben, así en el número como en la disposición de sí mismas, y la que cuando las pronunciamos suelen poner en nosotros. Y de estas dos maneras postreras, en la lengua original de los libros divinos y en esos mismos libros hay infinitos ejemplos; porque del sonido, casi no hay palabra de las que significan alguna cosa, que, o se haga con voz o que envíe son alguno de sí, que, pronunciada bien, no nos ponga en los oídos o el mismo sonido o algún otro muy semejante de él.

(Fray Luis de León, De los nombres de Cristo)

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paraa mais cara

a mais claraa mais rara

paraa Lara

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Agradeço a Érico Nogueira, Marco Polli e Ricardo Domeneck por seus valiosos comentários e sugestões, e especialmente a Caio Gagliardi, cuja leitura atenta e generosa foi fundamental para dar forma final a este livro.

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aranzel

quem jamais se sentiuenredado em palavrascomo o peixe no anzolcomo o inseto na teia?

quem jamais se prendeuno aranzel de um discursoe azoinado zanzouqual teseu sem ariadne?

quem jamais se perdeunas voltas de uma arengaque se estende e se alongaem mole lenga-lenga?

quem jamais se extraviouentregue às entrelinhaszaranzando ao azar à deriva da língua?

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amora

a palavra amoraseria talvez menos docee um pouco menos vermelhase não trouxesse em seu corpo(como um velado esplendor)a memória da palavra amor

a palavra amargoseria talvez mais docee um pouco menos acerbase não trouxesse em seu corpo(como uma sombra a espreitar)a memória da palavra amar

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antanho

antanho:época em que se usava o termo antanho

antanho:desdenhado arcaísmodesdentado avantesma andando a esmoadvérbio tresmalhado do rebanhovocábulo antonímicometade familiarmetade estranho

antanho:castiço castiçalantes brilhantehoje(coberto pela pátina do tempo)rotogastocastanho

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barata

porque é vil e ordinária?porque é malfeita e chata?

porque vive de rastose de restos, nos ralos,e é reles, repulsiva?

ou porque malbaratalivros, roupas, comidas?

porque é praga non grata?ou porque é democrata

anda por toda partee ninguém a embaraça?

ou o signo é arbitráriocomo o ser da barata?

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barganha

barganha:negociação sem-vergonhatransação escusa e incertafeita num bar às escurase com a barguilha aberta

barganha:ardil, tramoia, artimanhaquando uma mão suja a outraconluio em que, sem embargo,o mais baixo é o que mais ganha

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bígamo

bígamo:bípede velhacoque pula de ramo em ramonão com a leveza do gamo:com a destreza do macaco

bígamo:bípede ambíguoperdulário pendularoscilanteindivíduo divididomeio maridomeio amantemeio gorilameio galante

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bochechas

pensar que essas bochechas rechonchudasum dia estarão secas, chochas, murchas,que essas recém-desabrochadas rosasterão manchas e rugas carunchosas,que babujentos bichos sob o chãoum dia as beijarão, indiferentes,enche de horror minha imaginação,que ao vê-las chora, antecipadamente

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carapaça

impossível penetrarna palavra carapaça:cerradaespessamuradacom sua fila de asela permanece intacta

não tem a abertura esconsada palavra carapuçanem tampouco o oblíquo sol da palavra caracolou sequer o brilho ambíguoda palavra carabina

nenhuma luznenhum brilhona sua cara fechada:

impossível penetrarna palavra carapaça

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cardume

cardume:sombra imprecisa

cárdeanegra

ou azulmovimento unânimesobressalto sob a água

espessaesquivadensa

cardume:feixe de peixes

corso de dorsosduros e lisos

deslizando em bandoesquivas escamas

sob a escuma brandaleve

brevebranca

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cardume:massa compacta

constelação sem lumefluxo sob o flumebeleza anônima

inúmerasob a água vária

vivaverde

ou cárdea

cardume

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cimo

um ponto solitário pairando sobre o mundo ali nós dois subimos

(que importa se depois caímos?)

dali do pico da montanha

num átimo nós vimos

(que vale se depois descremos?)

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ali perto das nuvensno cume sublime

anônimosnós fomos

um ponto solitário imóvel sobre o abismo o

cimo

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cintilar

a lua não cintilao sol tampouco

uma estrelase é tácita e tranquila

(se é uma centelhaintermitente e

trêmula)sim

uma estrela às vezessim

se a noiteé límpida

uma estrelasim

cintila

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cinza

entre as numerosas brancasamarelas e vermelhasé rara uma rosa rosa

a laranja só é laranjadepois de ter sido verdepor muito tempo, e amarela

mas a cinza é sempre cinza

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cônjuge

jugo conjuntotédios enjauladosenjoo ungidoódios jugulados

concha sem pérolasalgemas gêmeasarranjo incôngruocangas engajadas

conchavo acochambradomútuo amuojejum jungidotermo inconjugável

beijo sem gostogozo sem desejodislate tácitoque se desata

não com um barracomas com um bocejo

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crepúsculo

com sua músicalaranja e púrpuraa palavra crepúsculose dissolve lentamenteno escuro do céu da boca

mas uma centelha místicaum fogo-fátuo minúsculocrepita ainda sob a línguacomo uma fogueira absurdaardendo no lusco-fusco

crepúsculo

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enseada

enseada:descanso côncavocalma espraiada

reentrânciaensolaradaágua sinuosaareia clara

cenografia ensimesmada

enseada: oceanomansoimensidão concentrada

paz ansiadaensejo suave de não sernada

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escândalo

o que há numa palavrapara causar escândalo?um cacófato esdrúxulo?um acento que clama?

quem reputa meu léxicodesaforado ou cândido?a palavra escandidanão nos revela nada

há sílabas lascivas?vocábulos imáculos?há verbos pervertidos?palavras pudibundas?

ou o móbil do escândalonão está no vocábulomas na língua que o libanos olhos que o devassam?

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escarro

nem sempre o escarro é escárnionem sempre o muco é mocao catarro que escorreo pigarro que chocapode ser tanta coisahábito charroritual bizarropuro esconjuroefeito do cigarro

a afrontao sarronem sempre está na bocade onde ele escapaàs vezes à socapaa ofensa infensaàs vezes a provocao excessivo escrúpuloque encontra insulto onde há somente insulsaescuma

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nem toda cusparada é ríspidanem sempre o escarro é escrachoàs vezesele é sósalivasecreção inofensivaou no máximouma ou duasconsoantes rascantes

e o escarcéué todo seu

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espelho

não há escolha que nos valha:desprezado com sarcasmoou espiado de esguelhanão há espelho sem espasmo

plano, côncavo ou convexoé impossível evitarseu impassível olharseu perturbador reflexo

especiosamente fácilcom nada de especialsó o espetáculo espectralda fuga de nossas faces

espatifado, espanadoou esquecido num cantopor mais que seja polidonão há espelho sem espanto

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fiel ou deformadorlisonjeador ou cruelele espicaça e espezinhatodo incauto que o esquadrinha

senão agora, mais tardesem ênfase, sem alardeo espelho espera, serenocom seu límpido veneno

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etimologia

toda etimologia é uma mitologiaquem busca a verdade na origemsó encontraa vertigem

toda etimologia é uma nostalgiador de retornoa uma conchavazia

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filigrana

ninhariano início

fio insignificantetraço

mínimofino

depois trama obsedantegrão de graça sutil

que entrelaçao olhar

refinada minúciaagrado gradual

transparência que enganasurpreendida alegria

poesia:filigrana

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finado

mortonão: finado

virado do avesso

nado enfim de novopara outro começo

purovirgem

noivoainda que só

para o verme e o pó

finado:eufemismo

para o absenteísmode si mesmo

(abismo verbal absoluto)

termo perfunctóriousado em lugar

do vulgarpresunto

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defuntofinado

muda voz passivafato perfilado

para a última fotocada vez mais fino

mais longínquoabsortofinadoisto é: morto

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fio

quemse fiaem

um fio?quem

não tremese depende

de umcordel

tãotênuede umcordão

tãosutil?

quemporém

não percebeque

sua vidase equilibra

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sempreassimnumafibra

estendidano vazio

desdeo umbigo

atéo fim?

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flecha

na palavra flechapodemos ouviro arco que se fletea corda que ruflao ar que freme e chia

é flecha a palavramas como preverseu voo inflamávelseu trajeto flébilo alvo onde se crava?

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frágua

frágua:palavra que faíscalugar onde se chocama pedra, o ferro, o fogoo molde, o malho, o fole

frágua:palavra quase líquidalugar onde o metalse torna dócil dúctile frágil como a água

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insídia

quem ensina a insídia?em que enciclopédiase deslinda a ciênciasutil da malícia?

é talento inato?dádiva divina(ou antes: diabólica)que um dia germina

espontânea e lhana?ou é habilidadelábil, sinuosa,sábia disciplina,

sigiloso ofícioque só se dominacom muito exercício?quando se insinua?

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nasce inopinada?surge repentina?lenta se desdobra,cavilosa cobra

que se estende, imensa,da infância à velhice,praga que, remota,remonta a caim,

insofreável vício?como lhe dar fimse ninguém descobreseu incerto início?

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jogral

há jogograçaalegriaenlaçados

há juventuderisadas

há música e poesianas tuas sílabasguardadas

há saltos de saltimbancosrostos pintados de brancomalucos malabarismossátirasmágicasmímicas

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há serestas de segréissegredos de menestréissaltérioalaúdegaita

há um saltoalegrejocosopronto para se lançar

há um insuspeitado circoum arco-íris guardadohá um grão de loucura e risonas sílabas de jogral

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labirinto

nada mais fácildo que entrarna palavra labirinto:nada mais lábildo que as suas ilusóriasprimeiras sílabas

só depoiso atritoo ressaibo do limite

só depoisas arestasa rigidez do recintoestreitoconstrito

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lacre

se a própria palavra lacrenum estralo já se abree se entrega com estrépitocomo acreditar em lacrese em segredos inquebráveis?

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laia

quem se conluia com gente de outra laiaquem não receia imiscuir o joio à joiaquem se bandeia para a aldeia alheiaquem ensaia a insolência de ser outrotalvez não traia a si e aos seus mais do que a arraiaque se arrasta indolente rente à lamamas para dar à luz às vezes voa

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larápio

algo terá sido levadolevado não: surrupiadocom dedos leves, ágeis, lépidosnum movimento vivo erápidoantes que você tenha tempode usar a palavralarápio

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lasciva

a palavra lascivafalada lentamentecom os dentes tocando os lábiose a língua roçando os dentesé líquidaindecente

sua música lúbricapenetra o ouvidoa cada sílabadesperta a salivainflama a mentecomo uma lavadeslavadaviva e incandescente

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lástima

que lástima que a lágrima ilegítimaseja tão transparente quanto a autêntica!que lástima que baste uma palavralímpida e elástica o suficientepara falsificar-se impunementeo que não se lastima nem se sente!que uma ginástica verbal, um pontode exclamação, um pouco de água clarae sal nos mistifique assim! que lástima!

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manicômio

um manicômio é sempre tragicômico:tantos rostos gentis mancomunadosem disfarçar, manipulando encômios,o que há de inóspito, feroz e incômodoem todo hospício – enquanto, indiferente, assobiando ou babando, pura e franca,a loucura passeia à nossa frente,com roupas impecavelmente brancas

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mantra

como uma sílaba obsessivacomo um silêncio que sibila

como um uníssono incessantecomo um sussurro que penetra

como um murmúrio que se orquestracomo um vazio que se ministra

como um mistério entremostradocomo um acorde encantatóriocomo um alento que se entoacomo uma luz que se recita

como um rumor que se concentracomo uma voz que se decantacomo uma paz que se soletracomo uma fala que não cala

como uma reza sempre acesacomo uma prece que se tececomo uma tela que se vela

como um sentido que se alastracomo um incêndio que se infiltra

como uma trama entrelaçadacomo uma cítara entranhada

como este mantra que me adentra

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como uma música centrípetarito

ritmo que me imanta

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marfim

mansa lua minguanteou arma de elefante?mármore em osso e carnematéria branca e adunca

gravado no teu cerneteu ambíguo destino:o duro e o curvilíneoo mais firme e o mais finoo imarcescível e o efêmeromarfim

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marulho

marulho:arrulho do marquando as ondas são pombas

murmúrio líquido a ecoarquando o som das ondasvaga no ar

marulho:fluido ruídobarulho arrefecidoaragem a embalardevagarmeu ouvido

mergulhodo somno sentido

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mínimo

um títere de músculos minúsculosdo íntimo úteroà síncope cardíaca

mínimo acúmulo de despropósitosdo ínfimo óvuloao último diagnóstico

esdrúxulo espetáculo grandíloquodo átomo anônimo ao túmulo unânime

cúmulo de ridículos – homúnculo

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não

quando o nãonão é mais que conveniênciacovarde conivênciaconvenção

quando o nãonão é mais que encenaçãosubserviência alardeando subversão

não basta inutilmente dizer não

tampouco é suficientedizer simsimplória negação da negação

quando o nãonão é mais que um eco inócuovácuounânimeubíquopusilânime

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não basta puramentese calare esperar que algo fale em seu lugar

lerão o seu silêncio(quando nãocomo desídia)como deserção

não:

quando o nãosatura o arcom sua podridão

é preciso encontrar não uma palavra puraum verso virgem

masuma voz(apenas uma voz)para exprimir pela primeira vezseu singulare inalienávelnão

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onda

não a onda redonda(mentira de uma rima)

mas a onda genuínaindócil

insubmissavolúvel

femininaa que não se conforma

a qualquer formaou norma

a sempre quebradiçaonda que se transforma

antes mesmo de seralgo além de um enlevo

móvel perpétuo impulso

a esmo que se lança

sempre além de si mesmoum arrebatamentoque se alça e cai e

se alçacontínuo movimento

sem fim nem objetivo

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fortuitoplenovivo

aquandoinquieta ronda

não a onda redondarisívelrasa

brandamas a onda redundante

compulsiva e tenazque traz de volta à praia

o que ficou pra tráso insepulto e o enjeitado

as algas e os cadáveresa onda

que ainda ecoadepois de ter quebradoa sombra incontornável

o som da onda

o bradoque insiste em ressoar

na praiano ar

no mara música profunda

que importuna retumbaestala

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estouraestruge

o som da ondaecoando

depois que a ondaestronda

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paixão

tóxica oxítonanóxio axiomatosse do léxicodicção cafona

cacofoniainfecciosa

verbo oxidadoimpronunciáveldesleixo estético

frouxoirreflexo

roxo vocábulovoz chulaesdrúxula

lixo prolixo coceira oxiúrica

oximorosarosa

capciosatermo que não se encaixa

baixovil chavão

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engaste de mau gostogasto palavrão

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pássaro

alvo alaridoum voo vivo e rápido

se alça da árvorealvoroça a frondee fende o espaço

antes que alguém possadizer do vulto súbito que passa

algo além disso:era

(foi)(é)um

pássaro

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pátria

pátria sem nome, sem pendão, precária,pátria dispersa, errática, aleatória,indefinidamente provisória,pátria da afronta consuetudinária,

pútrida pátria, esfacelada e vária,dos sem rosto, sem voz e sem memória,pátria ancestral da milenar escória,suja, andrajosa, multitudinária,

pétrea prisão portátil, migratória,pregada à pele, sem escapatória,ingrata, inglória pátria involuntária

dos sem papel, sem paz, sem pai, sem pão,pátria da puta que o pariu, do pária– por essa sim, por outra pátria não

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pelica

pelica:palavra delicadausadaapenasnas raras circunstânciasem que é viávelapelar à violênciasem perder a elegância

pelica:palavra finadestinadaapenasàs ocasiões peregrinasem que é possíveldar um tapaà socapaou um bofetãosem contaminar a mão

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pelica:palavra puraguardadaa muitas chavespara a conjunturaem que é estritamente inevitávelalgum grau de torturamas sem perder a ternura

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quebra-cabeça

à palavra quebra-cabeçaparece que falta uma peça:dividida em dois pedaçosseparados por um traçoparece que falta um fechouma juntura, um encaixe

na palavra quebra-cabeçahá algo que abre e não fecha:uma cedilha cediçaum hífen enferrujadoum arranjo conjugalde mútuo ódio algemado

um casal que não se falamas caminha lado a lado

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rês

rês:sílaba solitáriaisoladatresmalhadado rebanho

rês:palavra incompletainsuladaextraviadada mesnada

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saco

essa palavra solta é quase nadasó na tua boca saco ofende e assacasacada assim abrupta à queima-roupacomo um arroto saco fica escrotoum soco seco na boca do saco

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se

se não existis-se a todo instante esempre a hipóte-se ainda que implausívelse não ressoas-se a voz abstrata desereia o cantosedutor mesmosem fundamentose em qualquersituação terrível ouserena não se abrisse asenda equívoca do silogismo erístico ousimplóriose por umsegundo apenasse quebras-se a pos-sibilidade mínima dose

algum de nós suportariaser?

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suicídio

suicídio:palavra segredada sussurradaabsurdo solilóquio sobre o abismosom decíduosilêncio encapsulado inacessível

surdo gritoresoluto dissídio inconciliávelresíduo pertinaz irredutívelsombra assíduaressoando acusando insone sino

solitáriadecisão pessoal indecifrávelcisão deliberada irreversívelautoexíliodemissão voluntária do sentido

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susto

algo:a algazarra

depois:aha

arara

primeiro o pasmodepois o pássaroprimeiro o azuldepois as asas

primeiro o sustodepois (a custo)

detrás do arbustoo aquiloou o isto

o noto / o visto

primeiro o incertoo ser concreto

depois o objetoou seu conceito

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primeiro a araradesamparadasem a palavraque a aclara

e exaraa arara puradesararada

primeiro a ave impremeditável

mais tarde (sempretarde) a palavraprimeiro o vooinvocalizável

livre do léxicoe da sintaxedepois o zoo

o claro o lógicodepois o verbodepois o verso

primeiro a coisa(nem sequer coisa)primeiro o corpo

(nem mesmo corpo)o inopinadoinominado

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o sobressaltorápidosúbito

o assombro obscuroo sustoabrupto

insuscetívelde forma ou nome

o espanto purocandente

vivoimprevisível

antes do alíviodo conhecido

(a arara pálidaque jaz na página

ave empalhadasem cor

nem penasa arara apenas

palavra abstratasem voz

nem cantosem susto

ou espanto)

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urubu

palavra monocromáticaurucubaca encarnadamau agouro nu e cruazar com asa: urubu

bico duro corpo escuroinfame indecente impuroimune à crendice humanaplana plácido no azul

à caça de uma carcaçasem o ouro falso do ouróborosem a imponência do abutreou o condão do condor

sem nojo pelo que o nutreengolindo o inglório entulhosem engulho sem orgulhoà espera paira o urubu

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verso

esta é só tua versão(dirão:tua malversação)dos dias que se sucedemavessos à tua razão

esta é só tua inversão(dirão:tua perversão)dos fatos que te perseguemmalgrado tua aversão

esta é só tua subversão(dirão:tua diversãotua tergiversação)da conversa que te embebeinsossainsalubreestúpida

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este é só teu versomudoimpotente incontroversoque passará inadvertidocomo o restocomo tudo(nada dirãonão te iludo)

esta é só tuainvenção

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vespa

vespa:palavra que espicaçaespinhoesporaespadaque espeta quem a toca

vespa:palavra que abespinhasem a doçura da abelhavergasta para os ouvidosásperarápidaríspida

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xepa

menos que resto menos que sobramais ralo que rapa mais chocho que sopa

xepa

pechincha achincalhadapapa que ninguém topajoça que engulha a tripachiclete recicladotroço que ninguém chupazurrapa de má cepa

xepa

mas quando a fome aperta no pega-pra-capar do fim de feira mas quando a boca aberta dos filhos dos chegados e dos chapas mas quando a noite chega

longe do shopping à margem da opulência na choldra chula quando a noite chega

xepa

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zen

menos que um:zeromenos que zero:zen

menos que algo:nadamenos que nada:sem

sem casa sem coisa sem loisasem

sentado na terrasem eira nem beirasem meta nemsendasem

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nem sábio nem louconem muito nem pouconem pleno nem oconem

sentado sem tinosem prumo nem rumosem fé nemsentidosem

sem homemsem nomesem numesem lumesem

menos que um:zeromenos que zero:meroalento isento:zen

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Este livro foi produzidona cidade do Rio de Janeiro

pela Fundação Nacional de Artes – Funartee impresso na gráfica Walprint em 2012com arquivos fornecidos pela Funarte.

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na palavra flechapodemos ouviro arco que se fletea corda que ruflao ar que freme e chia

é flecha a palavramas como preverseu voo inflamávelseu trajeto flébilo alvo onde se crava?

Marco Catalão é mestre em Teoria e História Literária (Unicamp). Poeta, dramaturgo eficcionista, é autor dos livros O cânone acidental, No cravo e na ferradura, Videoteipe e Agro negócio, este último editado pela Funarte em 2012. Em 2008, obteve o primeiro lugar no Concurso Nacional de Contos Luiz Vilela, com “Kenji”. Atualmente desenvolve uma tese de doutorado sobre a obra do poeta argentino Roberto Juarroz.

Sob a face neutra

Marc

o Cat

alão

Sob a face neutra, de Marco Catalão, foi contemplado com a Bolsa Funarte de Criação Literária, em sua quarta edição.

O autor foi novamente selecionado, quando a comissão responsável pela análise dos projetos inscritos voltou a se reunir para avaliar o resultado e escolher as melhores obras para publicação.

O livro é uma seleção de poemas que exploram as múltiplas facetas de palavras que se desdobram em vários significados. Os poemas são colocados em sequência alfabética, como num dicionário de subjetividades. O resultado é uma obra que explora a riqueza dos vocábulos em seus múltiplos sentidos e sonoridades.

A Funarte concede a Bolsa de Criação Literária desde 2007, com o objetivo de permitir a autores iniciantes a dedicação integral ao desenvolvimento de suas carreiras.

A publicação de Sob a face neutra confirma a intenção da Funarte e revela para o público um jovem e talentoso poeta com uma carreira promissora.

Antonio GrassiPresidente da Funarte

Sob a face neutraMarco Catalão

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