Walter Ong - Oralidade e Cultura Escrita

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traduoEnid Abreu Dobrnszky

ORALIDADE

E CULTURA ESCRITA DA PALAVRA

A TECNOLOGlZAO

Ttulo original em ingls: Orali/y & literacy:The technologizingo(

the word

Methuen & Co. Ltd, 1982 reeditado pela Routledge, 1988Traduo: Enid Abreu Dobrnszky Capa: Femando Comacchia Copidesque: Mnica Saddy Marlins Reviso: Liliane Moreira Santos

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cimara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ong, Walter J. Oralidade e cultura escrita: A tecnologizao da palavra I Walter Ong ; traduo Enid Abreu Dobrnszky. - Campinas, SP : Papirus, 1998.

CDD-302.224 Indices para catlogo sistemtico:

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DIREITOS RESERVADOS PARA A LNGUA PORTUGUESA: M.R. Comacchia Livraria e Editora LIda. - Papirus Editora Matriz - Fones: (019) 272-4500 e 272-4534 - Fax: (019) 272-7578 Email: [email protected] - C.P. 736 - CEP 13001-970 Campinas - Filial- Fone: (011) 570-2877 - So Paulo - Brasil.

AGRADECIMENTOS Anthony C. Da/y e Claude Pavur foram amveis o bastante para ler e comentar os rascunhos deste livro e por esse trabalho o autor lhes agradece.

INTRODUO 1. A ORALIDADE DA LINGUAGEM 2. A DESCOBERTA MODERNA DAS CULTURAS ORAIS PRIMRIAs

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3. SOBRE A PSICODINMICA DA ORALIDADE4. A ESCRITA REESTRUTURA A CONSCINCIA 5. IMPRESSO, ESPAO E FECHAMENTO

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6. MEMRIA ORAL, ENREDO E CARACTERIZAO7. ALGUNS TEOREMAS BIBLIOGRAFIA NDICE ONOMSTICO

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Nos ltimos anos, tm-se descoberto certas diferenas bsicas entre as maneiras de lidar com o conhecimento e a verbalizao em culturas orais primrias (culturas que ignoram completamente a escrita) e em culturas profundamente afetadas pelo uso da escrita. As implicaes das novas descobertas tm sido surpreendentes. Muitos dos aspectos do pensamento e da expresso na literatura, na ftlosofia e na cincia - e at mesmo do discurso oral entre pessoas pertencentes cultura escrita -, que eram dados como certos, no so inteiramente inerentes existncia humana como tal, eles surgiram em virtude dos recursos que a tecnologia da escrita proporciona conscincia humana. Tivemos de proceder a uma reviso do nosso entendimento da identidade humana. O tema deste livro so as diferenas entre oralidade e cultura escrita. Ou, antes, uma vez que os leitores deste ou de qualquer livro, por definio, esto intimamente familiarizados com a cultura escrita, o tema , em primeiro lugar, o pensamento e sua expresso verbal na cultura oral - estranha e por vezes extravagante para ns - e, em segundo, o pensamento e a expresso na cultura escrita no que diz respeito a seu nascimento na oralidade e a sua relao com ela.

o tema deste livro no nenhuma "escola" de interpretao. Noh "escola" de oralidade e cultura escrita, ou algo equivalente ao formalismo, nova crtica, ao estruturalismo ou ao desconstrucionismo, embora a conscincia da relao entre oralidade e cultura escrita possa afetar o que feito tanto nestas quanto em muitas outras "escolas" ou "movimentos", em todas as cincias humanas e sociais. O conhecimento dos contrastes e das relaes entre oralidade e cultura escrita normalmente no gera lealdades fervorosas a teorias; em vez disso, estimula a reflexo sobre aspectos da condio humana que so numerosos demais para permitir algum dia um arrolamento completo. Este livro se ocupar de um nmero razovel desses aspectos. Um tratamento exaustivo demandaria muitos volumes. til abordar a oralidade e a cultura escrita de modo sincrnico, pela comparao entre culturas orais e culturas quirogrficas (ou seja, escritas) que coexistem num dado perodo. Mas absolutamente essencial abord-Ias tambm diacrnica ou historicamente, pela comparao entre perodos sucessivos. A sociedade humana primeiramente se formou com a ajuda do discurso oral, tornando-se letrada muito mais tarde em sua histria, e inicialmente apenas em certos grupos. O Roma sapiens existe h cerca de 30.000-50.000 anos. O mais antigo registro escrito data de apenas 6.000 anos atrs. O estudo dia crnico da oralidade e da cultura escrita e dos vrios estgios na evoluo de uma para outra estabelece um quadro de referncia no qual possvel entender melhor no apenas a primitiva cultura oral e a subseqente cultura escrita, mas tambm a cultura impressa, que leva a escrita a um novo patamar, e a cultura eletrnica, que se apia tanto na escrita como na impresso. Nesse quadro diacrnico, passado e presente, Homero e televiso podem se esclarecer mutuamente. Porm, o esclarecimento no ocorre facilmente. Compreender as relaes entre oralidade e cultura escrita e as implicaes dessas relaes no uma questo de psico-histria ou de fenomenologia presentes. Isso requer conhecimento amplo - vasto mesmo -, reflexo rdua e afirmaes cautelosas. As questes no so apenas profundas e complexas, elas tambm envolvem nossos prprios preconceitos. Ns - leitores de livros como este - estamos to imersos na cultura escrita que encontramos muita dificuldade em conceber um universo oral de comunicao ou de pensamento, salvo como uma variante de um universo letrado. Este livro

tentar superar um pouco nossos preconceitos para a compreenso.

e abrir novos caminhos

Ele se concentra nas relaes entre oralidade e escrita. Foi com esta ltima que se iniciou a cultura escrita, mas, em um estgio posterior, claro, ela tambm envolve a impresso. Portanto, este livro cobre tanto a impresso quanto a escrita e contm igualmente algumas men?~s ao processamento eletrnico da palavra e do pensamento, como o rad~o e a televiso via satlite. Nossa compreenso das diferenas entre orahdade e cultura escrita no pde se desenvolver antes da era eletrnica. Os contrastes entre a mdia eletrnica e a impresso aguaram nossa percepo do contraste anterior entre escrita e oralidade. A era eletrnica tambm uma era de "oralidade secundria", a oralidade dos telefones, do rdio e da televiso, cuja existncia depende da escrita e da impresso. A mudana da oralidade para a cultura escrita e, depois, para o processamento eletrnico envolve estruturas sociais, econmicas, polticas, religiosas entre outras. Estas, contudo, apenas indiretamente dizem respeito a este livro, que trata preferencialmente das diferenas de "mentalidade" entre culturas orais e escritas. Quase todo o trabalho de comparao entre culturas orais e culturas quirogrficas realizado at agora concentrou-se mais nas diferenas entre oralidade e escrita alfabtica do que entre oralidade e outros sistemas de escrita (cuneiforme, caracteres chineses, silabrio japons, registro maia e assim por diante) e ocupou-se do alfabeto tal como usado no Ocidente (o alfabeto tambm conhecido no Oriente, como na ndia, no Sudeste Asitico ou na Coria). Aqui a discusso seguir as principais linhas do conhecimento acadmico existente, embora tambm seja dada alguma ateno, em questes relevantes, a outros registros alm do alfabeto e a outras culturas alm da ocidental.

Wj.o.

Universidade de Saint Louis

1 A ORALIDADE DA LINGUAGEM

H algumas dcadas, surgiu entre os estudiosos uma nova perspectiva acerca do carter 2@1 da linguagem e de algumas implicaes mais profundas dos contrastes entre oralidade e escrita. Antroplogos, socilogos e psiclogos relataram trabalhos de campo em sociedades orais. Historiadores culturais mergulharam cada vez mais na pr-histria, isto , na existncia humana antes que a escrita permitisse registros verbais. Ferdinand de Saussure 0857-1913), o pai da lingstica moderna, chamara a ateno para a primazia do discurso oral, que sustenta toda comunicao verbal, assim como para a tendncia predominante, at mesmo entre estudiosos, a pensar na escrita como a forma bsica da linguagem. A escrita, observou, possui ao mesmo tempo "C ..) utilidade, C.,) defeitos e perigos" 0975, p. 33). Ele ainda a considerava como uma espcie de complemento do discurso oral, e no como transformadora da verbalizao (ibidem). Desde Saussure, a lingstica desenvolveu estudos extremamente complexos sobre fonmica, o modo como a linguagem est enraizada no

som. Um contemporneo de Saussure, o ingls Hemy Sweet 0845-1912), enfatizara anteriormente que as palavras so feitas no de letras, mas de unidades sonoras funcionais ou fonemas. Porm, no obstante toda a ateno dada aos sons da fala, as escolas de lingstica modernas at muito recentemente apenas de passagem, se tanto, abordaram os modos como a oralidade primria, a oralidade de culturas no afetadas pela cultura escrita, diferenciam-se da cultura escrita (Sampson 1980). Os estruturalistas analisaram detalhadamente a tradio oral, mas, na maioria das vezes, sem contrast-Ia explicitamente com textos escritos (Maranda e Maranda 1971). Existe uma grande quantidade de obras acerca das diferenas entre a linguagem escrita e a falada, que comparam a linguagem escrita e a linguagem falada de pessoas que sabem ler e escrever (Gumperz, Kaltmann e O'Connor 1982 ou 1983, bibliografia). No so essas as diferenas de que o presente estudo se ocupa. A oralidade abordada prioritariamente aqui a oralidade primria, a das pessoas que desconhecem inteiramente a escrita. Todavia, recentemente, a lingstica aplicada e a sacio lingstica tm se ocupado cada vez mais da comparao entre a dinmica da verbalizao oral primria e a da verbalizao escrita. O livro de Jack Goody, 7be domestication qf the savage mind [A domesticao da mente selvagem] (977) - assim como a coletnea organizada anteriormente por ele de estudos seus e de outros autores, Literacy in 'fraditional societies [Cultura escrita em sociedades tradicionais] (968) -, fornece preciosas descries e anlises de mudanas em estruturas mentais e sociais caractersticas do uso da escrita. Chaytor, j muito antes (945), Ong 0958b, 1967b), McLuhan (962), Haugen (966), Chafe (982), Tannen 0980a) e outros fornecem ainda outros dados e outras anlises lingsticas e culturais. O levantamento altamente especializado de Foley 0980b) inclui uma bibliografia extensa. O maior alerta para o contraste entre modos orais e modos escritos de pensamento e expresso ocorreu no na lingstica, descritiva ou cultural, mas nos estudos literrios, iniciados inquestionavelmente com o estudo de Milman Parry 0902-1935) sobre o texto da llada e da Odissia - concludo por Albert B. Lord depois da morte prematura de Parry - e complementados pelo estudo posterior de Eric A. Havelock e outros. Publicaes em lingstica aplicada e sociolingstica que tratam dos contrastes entre oralidade e cultura escrita, em seus aspectos tericos ou

em estudos de campo, citam regularmente essas obras e outras relacionadas a elas (Parry 1971; Lord 1960; Havelock 1963; McLuhan 1962; Okpewho 1979 etc.). Antes de abordar pormenorizadamente as descobertas de Parry, onvm estabelecer aqui o quadro da questo, perguntando por que os c d ' estudiosos adquiriram uma percepo nova acerca do problema o cara ter oral da linguagem. Ver a linguagem como um fenmeno oral parece ser inevitvel e bvio. Os seres humanos comunicam-se de inmeras maneiras, fazendo uso de todos os seus sentidos: tato, paladar, olfato e especialmente viso, assim como audio (Ong 1967b, pp.1-9). Algumas comunicaes no-orais so extremamente ricas - a gestual, por exemplo). Contudo, num sentido profundo, a linguagem, o som articulado, tem importncia capital. No apenas a comunicao, mas o prprio pensamento esto relacionados de forma absolutamente especial ao som. Todos ns ouvimos dizer que uma imagem vale mil palavras. No entanto, se essa afirmao verdadeira, por que ela feita com palavras? Porque uma imagem vale mil palavras apenas em certas condies especiais - que comumente incluem um contexto de palavras em que est situada a imagem. Onde quer que existam seres humanos, eles tm uma linguagem, e sempre uma linguagem que existe basicamente por ser falada e ouvida, no mundo sonoro (Siertsema 1955). Por mais rica que seja a linguagem gestual, as linguagens de sinais sofisticadas constituem substitutos da fala e so dependentes de sistemas de discurso oral, at mesmo quando usadas por surdos de nascena (Kroeber 1972; Mallery 1972; Stokoe 1972). Na realidade, a linguagem to esmagadoramente oral que, de todas as milhares de lnguas - talvez dezenas de milhares - faladas no curso da histria humana, somente cerca de 106 estiveram submetidas escrita num grau suficiente para produzir literatura - e a maioria jamais foi escrita. Das cerca de 3 mil lnguas faladas hoje existentes, apenas aproximadamente 78 tm literatura (Edmonson 1971, pp. 323, 332). No existem, por enquanto, meios de calcular quantas lnguas desapareceram ou se transformaram em outras antes que a escrita surgisse. Ainda hoje, centenas de lnguas ativas nunca so escritas: ningum criou um modo eficaz de escrev-Ias. A oralidade bsica da linguagem constante. No nos ocupamos aqui das chamadas "linguagens" de computador, que, em certos aspectos, assemelham-se s lnguas humanas (ingls,

snscrito, malaio, mandarim, mina, shoshone etc.), porm delas diferem total e irrevogavelmente pelo fato de que no se originam do inconsciente, mas diretamente da conscincia. As regras da linguagem de computador ("gramtica") so estabelecidas antes e usadas depois. As "regras" de gramtica nas lnguas humanas so usadas antes, e apenas com dificuldade e nunca de modo integral, podem ser abstradas do uso e estabelecidas explicitamente em palavras. A escrita, a espacializao da palavra, amplia quase ilimitadamente a potencialidade da linguagem, reestrutura o pensamento e, nesse processo, converte determinados dialetos em "grafoletos" (Haugen 1966; Hirsh 1977, pp. 43-48). Um grafoleto uma lngua transdialtica formada por uma prtica acentuada da escrita. Esta confere a um grafoleto um poder muito maior do que o possudo por um dialeto puramente oral. O grafoleto conhecido como ingls padro coloca disposio do usurio um vocabulrio registrado de pelo menos um milho e meio de pala~''Tas, das quais se conhecem no apenas os significados presentes, mas tambm centenas de milhares de significados passados. Um dialeto simplesmente oral ter comumente recursos de apenas alguns milhares de palavras, e seus usurios no tero virtualmente nenhum conhecimento da histria semntica real de qualquer uma dessas palavras. Porm, a despeito dos mundos maravilhosos que a escrita abre, a palavra falada ainda subsiste e vive. Todos os textos escritos devem, de algum modo, estar direta ou indiretamente relacionados ao mundo sonoro, hbitat natural da linguagem, para comunicar seus significados. "Ler" um texto significa convert-Io em som, em voz alta ou na imaginao, slaba por slaba na leitura lenta ou de modo superficial na leitura rpida, comum a culturas de alta tecnologia. A escrita nunca pode prescindir da oralidade. Adaptando um termo usado com finalidades um tanto diferentes por Jurij Lotman (1977, pp. 21, 48-61; ver tambm Champagne 1977-1978), podemos denominar a escrita um "sistema modelar secundrio", dependente de um sistema primrio anterior, a linguagem falada. A expresso oral pode existir - e na maioria das vezes existiu - sem qualquer escrita; mas nunca a escrita sem a oralidade. No entanto, apesar das razes orais de toda verbalizao, o estudo cientfico e literrio da linguagem e da literatura, durante sculos e at pocas muito recentes, rejeitou a oralidade. Os textos exigiram ateno

de um modo to ditatorial que as criaes orais tenderam a ser consideradas geralmente como variantes de produes escritas ou, quando muito, sob um rigoroso escrutnio acadmico. Apenas recentemente fomos tomados de impacincia diante de nossa insensibilidade nessa questo (Finnegan 1977, pp. 1-7). O estudo da linguagem, a no ser nas ltimas dcadas, concentrou-se mais nos textos escritos do que na oralidade por um motivo facilmente identificvel: a relao do prprio estudo com a escrita. Todo pensamento, inclusive nas culturas orais primrias, de certo modo analtico: ele divide seu material em vrios componentes. Mas o exame abstratamente seqencial, classificatrio e explicativo dos fenmenos ou de verdades estabelecidas impossvel sem a escrita e a leitura. Os seres humanos, nas culturas orais primrias, no afetadas por qualquer tipo de escrita, aprendem muito, possuem e praticam uma grande sabedoria, porm no "estudam". Eles aprendem pela prtica - caando com caadores experientes, por exemplo -, pelo tirocnio, que constitui um tipo de aprendizado; aprendem ouvindo, repetindo o que ouvem, dominando profundamente provrbios e modos de combin-Ios e recombin-Ios, assimilando outros materiais formulares, participando de um tipo de retrospeco coletiva no pelo estudo no sentido restrito. Quando o estudo, no sentido estrito de anlise seqencial ampla, se torna possvel com a interiorizao da escrita, uma das primeiras coisas que os letrados freqentemente estudam a prpria linguagem e seus usos. A fala inseparvel da nossa conscincia e tem fascinado os seres humanos, alm de trazer tona reflexes importantes sobre si mesma, desde os mais antigos estgios da conscincia, muito tempo antes do surgimento da escrita. Nos quatro cantos do mundo, os provrbios so ricos de observaes acerca desse espantoso fenmeno humano do discurso na sua forma original oral, acerca de seus poderes, sua beleza, seus perigos. A mesma fascinao pelo discurso oral continua inalterada sculos depois de a escrita ter sido posta em uso. No Ocidente, entre os antigos gregos, a fascinao apresentou-se na formao da vasta e rigorosamente elaborada arte da retrica, o mais abrangente tema de estudos em toda a cultura ocidental por 2 mil anos. No grego original, a palavra techne rhetorike, "arte do discurso" (comumente abreviada como rhetorike) referia-se fundamentalmente ao ato de

falar, muito embora, como "arte" ou cincia refletida, organizada - por exemplo, na Arte retrica de Aristteles -, a retrica fosse e devesse "ser um produto da escrita. Rhetorike~ ou retrica, significava basicamente ato de falar em pblico" ou "oratria", o que durante sculos, at mesmo nas culturas escritas e tipogrficas, permaneceu, no fundo, praticamente como o paradigma de todo discurso, at mesmo o da escrita (Ong 1967b, pp. 58-63; Ong 1971, pp. 27-28). Desse modo, a escrita, desde o incio, no levou a oralidade a um encolhimento, mas consagrou-a, possibilitando a organizao dos "princpios" ou constituintes da oratria em uma "arte" cientfica, um corpo seqencialmente ordenado de explicaes que mostrava como e por que a oratria produzia seus vrios efeitos especficos e poderia tornar-se capaz de faz-Io. Porm, os discursos - ou quaisquer outras apresentaes orais que eram estudados como parte da retrica dificilmente poderiam ser idnticos aos que eram apresentados oralmente. Proferido o discurso, no permanecia nada sobre o que se pudesse trabalhar. O que se usava para "estudar" era necessariamente os textos dos discursos que haviam sido escritos - geralmente depois de proferidos e muitas vezes muito tempo depois (na Antiguidade no era comum, a no ser no caso de oradores excepcionalmente incompetentes, discursar seguindo um texto integral preparado antecipadamente - Ong 1967b, pp. 56-58). Desse modo, at mesmo os discursos compostos oralmente eram estudados no como discursos, mas como textos escritos. Acresce que, alm da transcrio de apresentaes orais tais como os discursos, a escrita acabava produzindo composies somente escritas, destinadas recepo direta da superfcie grafada. Essas composies escritas obrigavam a uma ateno ainda maior aos textos, pois as composies verdadeiramente escritas surgiram como textos apenas, embora muitas delas fossem mais comumente ouvidas do que lidas silenciosamente, das histrias de Lvio Divina comdia de Dante e muito depois disso (Nelson 1976-1977; Bauml1980; Goldin 1973; Cormier 1974; Ahern 1982).

vezes passaram a presumir, com freqncia irrefletidamente, que a verbalizao oral era essencialmente idntica escrita com a qual normalmente lidavam, e que as formas artsticas orais eram, para todos os efeitos, simplesmente textos, salvo o fato de no terem sido registradas por escrito. Criou-se a impresso de que, distintas do discurso (governado por regras retricas escritas), as formas artsticas orais eram fundamentalmente desajeitadas e indignas de estudo srio. Nem todos, contudo, adotaram essas suposies. Desde a metade do sculo XVI, adensou-se uma percepo das relaes complexas entre escrita e fala (Cohen 1977). Porm, o domnio inabalvel da textualidade sobre o pensamento erudito evidencia-se no fato de que at hoje no se formularam conceitos que permitam uma compreenso satisfatria - para no dizer menos desfavorvel - da arte oral como tal, sem referncia, consciente ou inconsciente, escrita. Isso no obstante o fato de no terem tido as formas artsticas orais desenvolvidas durante as dezenas de milhares de anos antes da escrita absolutamente nenhuma relao com ela. Possumos o termo "literatura", que essencialmente significa "escritos" (latim literatura, de litera, letra do alfabeto), para abranger um -dado corpo de materiais escritos - literatura inglesa, literatura infantil -, mas nenhum termo ou conceito comparavelmente satisfatrio, referente a uma herana puramente oral, como as histrias orais tradicionais, os provrbios, as preces, as expresses formulares (Chadwick 1932-1940, passim), ou outras produes orais, como por exemplo as dos lakota simlX na Amrica do Norte ou dos mandes na frica Ocidental ou as dos gregos homricos. Como observado anteriormente, designo como "oralidade primria" a ora lida de de uma cultura totalmente desprovida de qualquer conhecimento da escrita ou da impresso. "primria" por oposio "oralidade secundria" da atual cultura de alta tecnologia, na qual uma nova oralidade alimentada pelo telefone, pelo rdio, pela televiso ou por outros dispositivos eletrnicos, cuja existncia e funcionamento dependem da escrita e da impresso. Atualmente, a cultura oral primria, no sentido restrito, praticamente no existe, uma vez que todas as culturas C . . em conheClmento da escnta e sofreram alguns de seus efeitos. Contudo, em diferentes graus, muitas culturas e subculturas, at mesmo num meio de alta tecnologia, preservam muito da estrutura mental da oralidade primria.

A concentrao do saber em textos teve conseqnCias ideolgicas. Em virtude de sua ateno dirigida aos textos, os estudiosos muitas

No fcil imaginar a tradio puramente oral ou a oralidade primria de forma exata e significativa. A escrita faz com que as "palavras" paream semelhantes s coisas porque pensamos nas palavras como as marcas visveis que comunicam as palavras aos decodificadores: podemos ver e tocar tais "palavras" inscritas em textos e livros. As palavras escritas so resduos. A tradio oral no tem tais resduos ou depsitos. Quando uma histria oral contada e recontada no est sendo narrada, tudo que dela subsiste seu potencial de ser narrada por certos seres humanos. Estamos, quase todos ns (aqueles que lem textos como este), to impregnados da cultura escrita que raramente nos sentimos vontade numa situao em que a verbalizao to pouco semelhante a alguma coisa, como ocorre na tradio oral. Conseqentemente - embora com uma freqncia menor hoje -, a erudio produziu no passado conceitos monstruosos como "literatura oral". Esse termo decididamente absurdo permanece em circulao hoje, at mesmo entre estudiosos cada vez mais plenamente conscientes de quo constrangedora se mostra nossa inabilidade para imaginar uma herana de materiais verbalmente organizados, exceto como alguma variante da escrita, mesmo quando nada tm a ver com ela. O ttulo da grande Milman Parry Collection of Oral Literature [Coleo Milman Pany de Literatura Oral] da Universidade de Harvard constitui antes um monumento do tipo de percepo de uma gerao anterior de estudiosos do que a viso de seus cura dores atuais. Poder-se-ia argumentar (como Finnegan 1977, p. 16) que o termo "literatura", embora destinado originalmente a obras escritas, foi simplesmente ampliado para abranger fenmenos afins como a narrativa oral tradicional em culturas desprovidas de contato com a escrita. Muitos termos originalmente especficos foram generalizados dessa forma. Porm, os conceitos habitualmente carregam consigo suas etimologias. Os elementos com os quais um termo originalmente construdo comumente - e provavelmente sempre - subsistem de algum modo nos significados subseqentes, talvez de forma obscura, mas sempre acentuada e at mesmo irrevogvel. A escrita, alm disso - como veremos detalhada mente mais adiante - constitui uma atividade particularmente preponderante e imperialista, que tende a absorver outras, mesmo sem qualquer concurso das etimologias. Embora as palavras estejam fundadas na linguagem falada, a escrita tiranicamente as encerra para sempre num campo visual. Uma pessoa

pertencente cultura escrita, quando instada a pensar na palavra "contudo", normalmente (e tenho uma forte suspeita de que isso sempre ocorre), ter alguma imagem, ao menos vaga, da palavra grafada e dificilmente seria capaz at mesmo de pensar na palavra "contudo" por, digamos, 60 segundos, sem se reportar a alguma inscrio, mas to somente ao som. Isso significa que essa pessoa no capaz de recuperar inteiramente a percepo do que seja a palavra para os povos exclusivamente orais. Em virtude dessa primazia da cultura escrita, parece no haver nenhuma possibilidade de usar o termo "literatura" para abranger a tradio e a apresentao orais, sem que estas sejam sutil mas irremediavelmente reduzidas a variantes da escrita. Pensar na tradio oral ou numa herana de apresentaes, gneros e estilos orais como "literatura oral" pensar em cavalos como automveis sem rodas. claro que se pode tentar fazer isso. Imaginemos um tratado escrito sobre cavalos (para pessoas que nunca viram um cavalo) que inicie pelo conceito no de cavalo, mas de "automvel", apoiado na experincia direta que os leitores tm de automveis. Ele discorrer sobre cavalos, mas sempre se referindo a eles como "automveis sem rodas", explicando a leitores altamente motorizados, que nunca viram um cavalo, todos os pontos em que diferem, tentando eliminar do conceito "automvel sem rodas" qualquer idia de "automvel", de modo a revestir o termo de um significado puramente eqino. Em vez de rodas, os automveis sem rodas possuem grandes unhas chamadas cascos; em vez de faris ou talvez espelhos retrovisores, olhos; em vez de uma cobertura de tinta, algo chamado plo; em vez de gasolina como fonte de energia, feno, e assim por diante. No fim, os cavalos sero apenas o que no so. Por mais exata e completa que fosse essa descrio apoftia, os leitores motoristas que nunca viram um cavalo e que ouvem falar apenas de "automveis sem rodas" certamente acabariam com um estranho conceito de cavalo. O mesmo vale para aqueles que falam em termos de "literatura oral", isto , "escrita oral". No possvel, sem causar uma distoro desastrosa, descrever um fenmeno primrio comeando por um fenmeno subseqente secundrio e comparando as diferenas. Na verdade, a comear assim, de trs para diante - pondo o carro na frente dos bois -, nunca se pode ter uma idia clara das diferenas reais. Embora o termo "pr-cultura escrita" em si seja til e por vezes necessrio, quando usado inadvertidamente tambm causa problemas

iguais, ainda que no to evidentes, aos provocados pelo termo "literatura oral". "Pr-cultura escrita" apresenta a oralidade - o "sistema modelar primrio" - como m desvio anacrnico do "sistema modelar secundrio" que o sucedeu. Juntamente com os termos "literatura oral" e "pr-cultura escrita", ouvimos tambm menes ao "texto" de uma enunciao oral. "Texto", cuja raiz significa "tecer", , em termos absolutos, mais compa.tvel etimologicamente com a enunciao oral do que "literatura", que etlmologicamente se refere a letras (literae) do alfabeto. O discurso oral tem sido geralmente considerado, at mesmo em ambientes orais, como tecer ou alinhavar - rbapsoidein, "fazer rapsdias" significa basicamente em grego "alinhavar canes". Mas, na verdade, quando na cultura escrita se usa hoje o termo "texto" para fazer referncia apresentao oral, est-se pensando em termos de uma analogia com a escrita. No vocabulrio de quem pertence cultura escrita, o "texto" de uma narrativa apresentada por quem pertence a uma cultura oral primria representa um suporte anterior: o cavalo como um automvel sem rodas, novamente. Admitida a enorme diferena entre fala e escrita, o que se pode fazer para construir uma alternativa ao termo anacrnico e contraditrio "liter~tura oral"? Adaptando uma proposta feita por Northrop Frye para a poesia pica em Ibe anatomy of criticism [Anatomia da crtica] 0957, pp. 248-250, 293-303), poderamos nos referir a toda arte puramente oral como epos, que tem a mesma raiz proto-indo-europia, wekw-, como a palavra latina vox e seu equivalente em portugus "voz", e portanto est firmemente apoiada no vocal, no oral. As apresentaes orais seriam, assim, sentidas como "vocalizaes", o que elas efetivamente so. Porm, o sentido mais comum do termo epos, poesia pica (oral) (ver Bynum 1967), iria de certa forma interferir num significado genrico atribudo a todas as criaes orais. "Vocalizaes" parece possuir muitas associaes concorrentes, embora, caso algum julgue o termo leve o bastante para ser lanado ao mar, eu certamente me esforarei por mant-Io tona. Porm, ainda assim, careceramos de um termo mais genrico que abrangesse tanto a arte puramente oral quanto a literatura. Neste livro, manterei um procedimento comum entre pessoas informadas e recorrerei, quando necessrio, a perfrases explicativas - "formas artsticas puramente orais", "formas artsticas verbais" (que incluiriam tanto as formas orais quanto as compostas por escrito, assim como tudo o que se situa entre ambas) e outras expresses semelhantes.

Hoje, felizmente, o termo "literatura oral" est perdendo terreno, mas bastante provvel que elimin-Io por completo seja uma batalha nunca inteiramente vencida. Para a maioria daqueles que pertencem a uma cultura escrita, pensar nas palavras como totalmente desvinculadas da escrita uma tarefa simplesmente rdua demais, at mesmo quando estudos lingsticos ou antropolgicos especializados possam exigi-Io. As palavras continuam vindo mente na sua forma escrita, por mais que se tente o contrrio. Alm disso, desvincular as palavras da escrita psicologicamente ameaador, pois a sensao de controle sobre a linguagem que se tem na cultura escrita est estreitamente ligada s transformaes visuais da lngua: sem dicionrios, regras gramaticais escritas, pontuao e todo o aparato restante que transforma as palavras em algo que se pode percorrer com os olhos, como se pode viver? Os usurios de um grafoleto como o ingls padro tm acesso a vocabulrios centenas de vezes maiores do que aqueles com que uma lngua oral capaz de lidar. Em um mundo lingstico desse tipo, os dicionrios so fundamentais. desconcertante lembrar que no existe dicionrio na mente, que o aparato lexicogrfico constitui um acrscimo muito tardio s lnguas, que todas elas possuem gramticas complexas e as desenvolveram sem nenhuma ajuda da escrita e que, fora das culturas com tecnologia relativamente sofisticada, a maioria dos usurios das lnguas sempre se arranjaram muito bem sem quaisquer transformaes visuais do som vocal. Na realidade, as culturas orais produzem realizaes verbais impressionantes e belas, de alto valor artstico e humano, que j no so sequer possveis quando a escrita se apodera da psique. Contudo, sem a escrita, a conscincia humana no pode atingir o pice de suas potencialidades, no capaz de outras criaes belas e impressionantes. Nesse sentido, a oralidade precisa e est destinada a produzir a escrita. A cultura escrita, como veremos, imprescindvel ao desenvolvimento no apenas da cincia, mas tambm da histria, da filosofia, ao entendimento analtico da literatura e de qualquer arte e, na verdade, explicao da prpria linguagem (incluindo a falada). Dificilmente haver uma cultura oral ou uma cultura predominantemente oral no mundo, hoje, que no esteja ciente da enorme pletora de capacidades absolutamente inacessveis sem a cultura escrita. Essa conscincia angustiante para pessoas enraizadas na oralidade primria, que desejam ardentemente a cultura escrita, mas que esto igualmente conscientes de que entrar no mundo

cheio de atrativos da cultura escrita significa deixar atrs de si boa parte do que fascinante e profundamente amado no mundo oral anterior. Devemos morrer para continuar a viver. Felizmente, a cultura escrita - no obstante devore seus prprios antecedentes orais e, a menos que seja cuidadosamente monitorada, at mesmo destrua sua memria - tambm infinitamente adaptvel. Ela pode tambm resgatar sua memria. Podemos usar a cultura escrita para reconstruir a conscincia humana primitiva que no possua nenhuma cultura escrita - pelo menos reconstruir essa conscincia da melhor forma possvel, embora imperfeita (nunca podemos esquecer o presente que nos familiar demais para permitir que nossas mentes reconstituam qualquer passado em sua total integridade). Essa reconstruo pode gerar uma compreenso melhor do que significou a cultura escrita para a conformao da conscincia do homem em direo s culturas de alta tecnologia e no interior delas. Essa compreenso tanto da oralidade quanto da cultura escrita o que este livro - forosamente um estudo letrado, e no uma apresentao oral- busca, at certo ponto, atingir.

2 A DESCOBERTAMODERNA DAS CULTURASORAIS PRIMRIAs

A nova perspectiva dos ltimos tempos acerca da oralidade da linguagem teve antecedentes. Muitos sculos antes de Cristo, o autor pseudnimo do livro do Velho Testamento, que aparece sob seu nom de plume hebreu Qoheleth ("orador de assemblia"), ou seu equivalente grego Eclesiastes, aponta claramente para a tradio oral da qual provm seu escrito: "Alm de ser sbio, Qoheleth transmitiu conhecimento a seu povo e examinou cuidadosamente, verificou e combinou muitos provrbios. Qoheleth procurou encontrar ditos agradveis e registrar por escrito com exatido os ditos verdadeiros" (Eclesiastes 12:9-10). "Registrar por escrito ... ditos." Pessoas de cultura escrita, dos compiladores de florilgios medievais a Erasmo 0466-1536) ou Vicesimus Knox (1752-1821) e mesmo depois deles, continuaram a registrar por escrito ditos da tradio oral, embora seja significativo que, no mnimo, da Idade Mdia e da poca de Erasmo em diante, na cultura oCidental pelo menos, a maioria dos compiladores selecionasse os "ditos" no diretamente de sua enunciao oral, mas de outros escritos.

O movimento romntico foi marcado pela preocupao com o passado distante e com a cultura popular. Desde ento, centenas de colecionadores, a comear por James Mcpherson (1736-1796) na Esccia, Thomas Percy 0729-1811) na Inglaterra, os irmos Grimm, Jacob 0785-1863) e Wilhelm 0786-1859) na Alemanha, ou Francis James Child 0825-1896) nos Estados Unidos, trabalharam com partes da tradio oral, ou quase oral, ou semelhante oral, de forma mais ou menos direta, dando-lhe nova dignidade. No incio do nosso sculo agora j perto do fim, o erudito escocs Andrew Lang (1844-1912) e outros j haviam desacreditado consideravelmente a viso de que o folclore oral seria simplesmente escombros remanescentes de uma mitologia literria "mais elevada" - uma viso gerada muito naturalmente pelo vis quirogrfico e tipogrfico discutido no captulo anterior. Lingistas anteriores haviam resistido idia da distino entre linguagem falada e escrita. A despeito de suas novas concepes sobre a oralidade, ou talvez por causa delas, Saussure mantm a opinio de que a escrita simplesmente representa a linguagem falada na forma visvel 0975, p. 34), como fazem Edward Sapir, C. Hockett e Leonard Bloornfield. O Crculo Lingstica de Praga - especialmente J. Vachek e Ernst Pulgram - notou certa diferena entre a linguagem escrita e a falada, embora, ao se concentrar antes nos universais lingsticas do que nos fatores de desenvolvimento, tenha feito pouco uso dessa distino (Goody 1977, p. 77).

nehhuma outra parte, os contrastes entre oralidade e cultura escrita ou os pontos cegos da mente inadvertidamente quirogrfica ou tipogrfica se mostram em um contexto to rico. A "questo homrica" como tal surgiu da crtica erudita de Homero no sculo XIX, que alcanara sua maturidade juntamente com a crtica erudita da Bblia, mas suas razes se encontram j na Antiguidade Clssica. (Ver Adam Parry 1971, do qual nos valemos para a maior parte das pginas seguintes.) Os homens de letras, na Antiguidade Clssica ocidental, haviam manifestado vez por outra certa percepo de que a llada e a Odissia diferiam de outros poemas gregos e de que suas origens eram obscuras. Ccero sugeriu que o texto subsistente dos dois poemas homricos era uma reviso feita por Pisstrato da obra de Homero (a qual, no entanto, Ccero considerava como sendo ela prpria um texto), e Josefo at mesmo insinuou que Homero no sabia escrever, mas o fez para argumentar que a cultura hebraica era superior prpria cultura grega antiga, porque conhecia a escrita, e no para tecer consideraes sobre o estilo ou outros aspectos das obras homricas. Desde o incio, inibies profundas interferiram no nosso modo de ver os poemas homricos como aquilo que realmente so. A llada e a Odissia tm sido geralmente consideradas, da Antiguidade at o presente, como os mais exemplares, as mais verdadeiros e os mais inspirados poemas seculares da herana ocidental. Para explicar sua admitida superioridade, cada poca tendeu a interpret-Ias como tendo realizado melhor o que julgava estarem seus poetas fazendo ou aspirando a fazer. At mesmo quando o movimento romntico reinterpretou o "primitivo" como um estgio de cultura satisfatrio, e no lastimvel, estudiosos e leitores geralmente ainda se inclinavam a imputar poesia primitiva qualidades que sua prpria poca julgava fundamentalmente apropriadas. Mais do que qualquer estudioso anterior, o classicista americano Milman Parry 0902-1935) conseguiu superar esse chauvinismo cultural de modo a penetrar na poesia homrica "primitiva" nos prprios termos dela, at mesmo quando eles contrariavam a viso estabelecida do que a poesia ou os poetas deveriam ser. Estudos anteriores haviam esboado vagamente os de Parry pelo fato de que a adulao geral dos poemas homricos muitas vezes fora acompanhada de alguma inquietao. Freqentemente, fazia-se presente

Admitida uma j antiga perspectiva acerca da tradio oral entre pertencentes cultura escrita, e a demonstrao, feita por Lang e outros, de que culturas puramente orais podiam gerar formas artsticas verbais sofisticadas, o que haveria de novo no nosso entendimento acerca da oralidade? O novo entendimento desenvolveu-se por diferentes caminhos, mas talvez possamos segui-Io melhor na histria da "questo homrica". Durante mais de dois milnios, indivduos pertencentes cultura escrita dedicaram-se ao estudo de Homero, com diversas misturas de vises fecundas, desinformao e preconceito, consciente ou inconsciente. Em

uma sensao de que havia algo de estranho nos poemas. No sculo XVII, Franois Hdelin, Abade de Aubignac e de Meimac (1604-1676), em um sentido mais de polmica retrica do que de verdadeiro conhecimento, atacou a Ilada e a Odissia como deficientes quanto ao enredo, pobres quanto caracterizao e tica e teologicamente indignas, argumentando, alm disso, que nunca houvera um Homero e que os poemas picos atribudos a ele nada mais eram do que colees ou rapsdias escritas por outros. O erudito clssico Richard Bentley 0662-1742), famoso por provar que as chamadas Epstolas de Flaris eram esprias e por indiretamente ocasionar a stira antitipogrfica de Swift, 1be battle ofthe books [A batalha dos livros), julgava que existira realmente um homem chamado Homero, mas que os vrios cantos que ele "escrevera" no haviam sido reunidos nos poemas picos seno cerca de 500 anos depois, no tempo de Pisstrato. O filsofo da histria italiano Giambattista Vico (1668-1744) acreditava que no houvera nenhum Homero, mas que os poemas picos homricos constituam, de certa forma, criaes de todo um povo. Robert Wood (c. 1717-1771), diplomata e arquelogo ingls, que cuidadosamente identificou alguns dos stios mencionados na Ilada e na Odissia, foi aparentemente o primeiro cujas conjecturas mais se aproximaram daquilo que Parry finalmente demonstrou. Wood acreditava que Homero no era letrado e que o que lhe permitiu criar sua poesia foi o poder da memria. Surpreendentemente, Wood sugere que a memria exercia um papel muito diferente na cultura oral daquele que exercia na cultura escrita. Embora Wood no pudesse explicar exatamente como a mnemnica de Homero funcionava, ele efetivamente sugere que o ethos do verso homrico era antes popular do que culto. Jean-Jacques Rousseau (1821, pp. 163-164), citando o padre Hardouin (Adam Parry no menciona nenhum dos dois), acreditava ser muito provvel que Homero e seus contemporneos entre os gregos no possussem escrita. Rousseau, contudo, considera um problema a mensagem numa tbula que, no Livro VI da Ilada, Belerofonte leva para o rei da Lcia. Mas no h provas de que os "sinais" da tbula que ordenavam a execuo do prprio Belerofonte fossem realmente um manuscrito (ver adiante, pp. 99-101). Com efeito, na narrativa homrica eles mais parecem uma espcie de ideogramas toscos. O sculo XIX presenciou o desenvolvimento das teorias homricas dos chamados analistas, iniciadas por Friedrich August Wolf (1759-1824),

em leu Prolegomena, de 1795. Os analistas viam o texto da Ilada e o da Odissia como combinaes de poemas ou fragmentos mais antigos e puseram-se a determinar mediante anlise o que os segmentos eram e como haviam sido reunidos. Porm, como observa Adam Parry 0971, pp. xiv-xvii), os analistas pressupunham que os segmentos reunidos fossem simplesmente textos, sem que nenhuma outra alternativa lhes ocorresse. Eles foram seguidos, inevitavelmente, pelos unitaristas, muitas vezes literatos bem-intencionados, devotos inseguros que lutavam com dificuldades, que sustentavam serem a Ilada e a Odissia to bem estruturadas, to coerentes em sua caracterizao e em geral to bem-sucedidas como arte que no poderiam ser a obra de uma sucesso desorganizada de redatores, mas necessariamente a criao de um s homem. Essa opinio era mais ou menos predominante quando Parry, ainda estudante, comeou a formar suas prprias opinies.

Como a maior parte dos trabalhos intelectuais inovadores, o de Milman Parry nasceu de intuies to profundas e seguras quanto difceis de ser expressas. O filho de Parry, o falecido Adam Parry 0971, pp. ix-lxii) , esboou de modo esplndido o fascinante desenvolvimento do pensamento de seu pai, da dissertao de mestrado na Universidade da Califrnia em Berkeley, no incio dos anos 20, at sua morte prematura em 1935. Nem todos os elementos da viso total de Parry eram inteiramente novos. O axioma fundamental que dirige seu pensamento, dos anos 20 em diante, "a subordinao da escolha dos vocbulos e das formas vocabulares forma do verso hexmetro [oralmente composto)" nos poemas homricos (Adam Parry 1971, p. xix), fora antecipada na obra de ].E. Ellendt e H. Dntzer. Outros elementos na intuio originria de Parry tambm haviam tido precursores. Arnold van Gennep chamara a ateno para uma estruturao formular na poesia de culturas orais da poca atual, e M. Murko reconhecera a ausncia de memria exata, palavra por palavra, na poesia oral de tais culturas. Mais importante, Marcel Jousse, padre jesuta e erudito, educado num meio campons de resduo oral na Frana e que passara a maior parte de sua vida adulta no Oriente Mdio

absorvendo sua cultura oral, estabelecera diferenas ntidas entre a composio oral dessas culturas e toda composio escrita. As culturas orais e as estruturas especficas que elas produziam, Jousse (1925) intitulara-as verbomotrices ("verbomotoras" - lamentavelmente, a obra de Jousse ainda no foi traduzida para o ingls; ver Ong 1967b, pp. 30, 147-148, 335-336). A viso de Milman Parry incluiu e fundiu todas essas percepes e outras mais, a fim de estabelecer uma explicao provvel do que era a poesia homrica e de como as condies nas quais ela foi produzida a tornaram aquilo que veio a ser. A viso de Parry, todavia, at mesmo no que fora antecipado por esses estudiosos anteriores, era toda sua, pois quando ela inicialmente lhe surgiu, no comeo dos anos 20, ele aparentemente nem sequer tinha conhecimento da existncia de qualquer dos estudiosos mencionados (Adam Parry 1971, p. xxii). Indubitavelmente, sugestes que pairavam no ar nessa poca, que haviam influenciado estudiosos anteriores, tambm o estavam influenciando. Em sua forma aperfeioada, apresentada em sua tese de doutorado em Paris (Milman Parry 1928), a descoberta de Parry poderia ser resumida da seguinte maneira: virtualmente, todo trao distintivo da poesia homrica deve-se economia imposta pelos mtodos orais de composio. Estes podem ser reconstrudos por um estudo detalhado do prprio verso quando nos desvencilhamos dos pressupostos sobre os processos de expresso e de pensamento arraigados na psique por geraes de cultura escrita. Essa descoberta era revolucionria nos crculos literrios e teria imensas repercusses em toda parte na histria cultura e psquica. Quais so algumas das implicaes mais profundas dessa descoberta e particularmente do uso que faz Parry do axioma anteriormente apontado, "a subordinao da escolha dos vocbulos e das formas vocabulares forma do verso hexmetro"? Dntzer havia observado que os eptetos homricos usados para "vinho" eram todos metricamente diferentes e que o uso de um dado epteto era determinado no tanto por seu significado preciso quanto pelas necessidades mtricas da passagem na qual ele aparecia (Adam Parry 1971, p. xx). A adequao do epteto homrico havia sido devota e flagrantemente exagerada. O poeta oral possua um repertrio abundante de eptetos diversificados o bastante para fornecer um epteto para qualquer exigncia mtrica que pudesse

sur# medida que ele costurava sua histria - diferentemente em cada narrao, pois, como veremos, os poetas orais no trabalham normalmente com base na memorizao palavra por palavra de seu poema. Ora, bvio que as necessidades mtricas, de um modo ou de outro, determinam a seleo de vocbulos por qualquer poeta que componha segundo a mtrica. Porm, o pressuposto geral fora que os termos mtricos apropriados de alguma forma apresentavam-se espontaneamente imaginao potica de modo fluido e grandemente imprevisvel, relacionado apenas ao "gnio" (isto , a uma habilidade essencialmente inexplicveD. Os poetas, tal como so idealizados pelas culturas quirogrficas e mais ainda por culturas tipogrficas, no deveriam usar materiais pr-fabricados. Se um poeta ecoasse fragmentos de poemas anteriores, deveria, pensava-s~, mold-Ios a sua prpria "natureza". Certas prticas, verdade, contrariavam esse pressuposto, particularmente o uso de dicionrios de expresses que forneciam modos padronizados de dizer coisas para os que escreviam poesia latina ps-clssica. Os dicionrios de expresses latinas atingiram seu apogeu principalmente depois que a inveno da impresso tornou as compilaes facilmente multiplicveis, e continuaram a prosperar at o sculo XIX quando o Gradus ad Parnassum era muito utilizado por estudantes (Ong 1967b, pp. 85-86; 1971, pp. 77, 261-263; 1977, pp. 166, 178). O Gradus fornecia frases ~pitticas, assim como outras, dos poetas latinos clssicos, juntamente coms slabas longas e curtas, todas convenientemente marcadas para a adequao mtrica, a fim de que o aspirante a poeta pudesse montar um poema com base no Gradus assim como crianas podem montar uma estrutura com blocos. A estrutura geral poderia ser sua, mas as peas j existiam. Esse tipo de procedimento, no entanto, era visto como tolervel apenas em iniciantes. O poeta competente deveria gerar suas prprias frases metricamente ajustadas. Lugares-comuns poderiam ser tolerados quanto s idias, mas no quanto s expresses. Em An essay on criticism [Um ensaio sobre a crtica] (1711), Alexander Pope exigia que o "engenho" do poeta garantisse que, quando tratasse do "que foi muitas vezes pensado", o poeta o fizesse de tal modo que os leitores achassem a idia "nunca to bem expressa". O modo de exprimir a verdade aceita devia ser original. Pouco depois de Pope, a era romntica exigia uma originalidade ainda maior. Para o romntico radical, o poeta perfeito deveria ser

como o prprio Deus, criando ex nihilo: quanto melhor ele fosse, menos previsvel era tudo o que houvesse no poema. Apenas iniciantes ou poetas irremediavelmente medocres utilizavam material pr-fabricado. Homero, segundo o consenso de sculos, no era um poeta iniciante nem medocre. Talvez fosse at mesmo um "gnio" nato, que nunca fora inexperiente, que podia voar apenas sado da casca - como o precoce Mwindo, poeta pico nyanga, o "Pequenino-Recm-NascidoQue-Andava". De qualquer modo, na llada e na Odissia, Homero foi normalmente considerado perfeito, rematadamente hbil. No entanto, agora comeava a se revelar possvel que ele tivesse um dicionrio de expresses em sua cabea. Um estudo detalhado do tipo do que Milman Pany estava fazendo mostrou que ele repetia frmula aps frmula. O significado do termo grego "recitar", rhapsoidein, "costurar cantos" (rhaptein, costurar; oide, canto), tornou-se ameaador: Homero costurava partes pr-fabricadas. Em vez de um criador, tinha-se um operrio de linha de montagem. Essa idia era particularmente ameaadora para letrados convictos. Pois os letrados so educados, em princpio, para nunca utilizar clichs. Como conviver com o fato de que os poemas homricos, cada vez mais, pareciam ser feitos de clichs, ou elementos muito semelhantes a eles? Sobretudo quando o trabalho de Parry progrediu e foi continuado por estudiosos posteriores, tornou-se evidente que apenas uma frao mnima das palavras na llada e na Odissia no constitua parte de frmulas e, at certo ponto, frmulas devastadoramente predizveis. Alm disso, as frmulas padronizadas eram agrupadas em torno de temas igualmente padronizados, tais como a assemblia, a reunio do exrcito, o desafio, a espoliao dos vencidos, o escudo do heri e assim por diante (Lord 1960, pp. 68-98). Um repertrio de temas semelhantes encontrado na narrativa oral e em outros discursos orais em todo o mundo. (A narrativa escrita e outros discursos escritos tambm utilizam temas, necessariamente, mas os temas so infinitamente mais variados e menos impeditivos.) A linguagem toda dos poemas homricos, com sua curiosa mistura de peculiaridades elias e jnicas antigas e tardias, foi mais bem explicada no como uma superposio de vrios textos, mas como uma linguagem gerada atravs dos anos por poetas picos que utilizavam antigas expres-

sesiprontas que preservaram e/ou reelaboraram, em boa medida com finalidades mtricas. Aps terem sido modelados e remodelados nos sculos anteriores, os dois poemas picos foram transpostos para o novo alfabeto grego, por volta de 700-650 a.c., as primeiras composies longas a serem postas nesse alfabeto (Havelock 1963, p. 115). Sua linguagem no era um grego que jamais tivesse sido falado na vida cotidiana, mas um grego especialmente construdo pela prtica, que os .poetas transmitiam de um para outro, gerao aps gerao. (Traos de uma linguagem especial semelhante so reconhecveis ainda hoje, por exemplo, nas frmulas caractersticas encontrveis no ingls usado nos contos de fadas.) Como poderia qualquer poesia to imperturbavelmente formular, em sua maioria constituda de partes pr-fabricadas, ser ainda to boa? Milman Pany lidou com essa questo de modo direto e aberto. Era intil negar o faio, agora conhecido, de que os poemas homricos valorizaram e de algum modo tiraram proveito daquilo que os leitores posteriores haviam sido treh-;.adosteoricamente para desvalorizar, a saber, a frase pronta, a frmula, o qualificativo previsvel - ou, mais simplesmente, o clich. Algumas dessas implicaes mais amplas tiveram de esperar pelo t;'abalho bastante minucioso feito posteriormente por Eric Havelock (1963). Os gregos homricos valorizavam os clichs porque no apenas os poetas, mas o mundo no tico oral ou o mundo do pensamento apoiava-se na constituio formular do pensamento. Na cultura oral, o conhecimento, uma vez adquirido, devia ser constantemente repetido ou se perderia: padres de pensamento fixos, formulares, eram essenciais sabedoria e administrao eficiente. Mas, por volta da poca de Plato (427?-347 a.c.), uma mudana se iniciara: os gregos finalmente haviam interiorizado a escrita - algo que levou muitos sculos aps o desenvolvimento do alfabeto grego, por volta de 720-700 a.c. (Rhys Carpenter, apud Havelock 1963, p. 49). A nova maneira de estocar conhecimento no estava em frmulas mnemnicas, mas no texto escrito. Este libertava a mente para um pensamento mais original, mais abstrato. Havelock mostra que Piato excluiu os poetas de sua repblica ideal, fundamentalmente (se no de modo totalmente consciente) porque se encontrava num novo mundo notico de feitio quirogrfico, no qual a frmula ou o clich, amados por todos os poetas tradicionais, eram obsoletos e contraproducentes.

Todas essas concluses so perturbadoras para uma cultura ocidental que se identificara estreitamente com Homero como parte de uma Antiguidade grega idealizada. Elas mostram a Grcia homrica cultivando como virtude potica e notica aquilo que temos considerado um vcio l e evidenciam que as relaes entre a Grcia homrica e tudo o que ; filosofia depois de Plato defendeu era, embora superficialmente amistoso e ininterrupto, na verdade profundamente antagnico, ainda que, no mais das vezes, no nvel inconsciente e no no consciente. O conflito corroeu o prprio inconsciente de Plato, pois ele exprime srias reservas ~o Pedra e em sua Stima carta sobre a escrita, como um modo mecnico, mumano de processar o conhecimento, indiferente a perguntas e destruidor da memria - embora, como agora sabemos, o pensamento filosfico propugnado por Plato dependesse inteiramente da escrita. No admira que as implicaes neste caso resistissem a vir tona durante muito tempo. A importncia da antiga civilizao grega para o mundo todo estava comeando a se mostrar sob uma luz inteiramente nova: ela assinalava o ponto, na histria humana, em que a cultura escrita alfabtica, profundamente interiorizada, pela primeira se chocava diretamente com a oralidade. E, a despeito da inquietao de Plato, na poca nem ele nem qualquer outra pessoa estava ou poderia estar explicitamente consciente de que era isso que estava ocorrendo. O conceito da frmula, em Parry, resultou do estudo do verso hexmetro grego. medida que outros trataram do conceito e o desenvolveram, inevitavelmente surgiram vrias discusses sobre como cercar expandir ou adaptar a definio (ver Adam Parry 1971, p. xxviii, n. 1). U~ dos motivos para isso que, no conceito de Parry, existe um estrato mais profundo de significado no imediatamente visvel em sua definio da frmula "um grupo de palavras que regularmente empregado sob as mesmas condies mtricas para exprimir uma determinada idia essencial" (Adam Parry 1971, p. 272). Esse estrato foi explorado de forma mais intensa por David E. Bynum, em 1be daemon in the wood [O demnio na florestal (1978, pp. 11-18, e passim). Bynum observa que "as 'idias fundamentais' de Parry muito raramente constituem as unidades que a c~nciso da definio de Parry, ou a brevidade usual das prprias formulas, a convencionalidade do estilo pico, ou a banalidade da maioria das referncias lexicais das frmulas podem sugerir" (1978, p. 13). ~ Bynum faz uma distino entre elementos "formulares" e "expresses

esu.hmente formulares (repetidas com exatido)" (cf. Adam Parry 1971, p. xxxiii, n. 1). Embora estas ltimas caracterizem a poesia oral (Lord 1960, pp. 33-65), elas aparecem e reaparecem em grupos (em um dos exemplos de Bynum, altas roores assistem comoo de uma aproximao de um guerreiro terrvel - 1978, p. 18). Os grupos constituem os princpios organizadores das frmulas, de modo que a "idia fundamental" no passvel de uma formulao clara, direta, mas, sim, uma espcie de complexo ficcional reunido inteiramente no inconsciente. O livro notvel de Bynum concentra-se em grande parte na fico elementar que ele intitula "padro duas rvores" e que identifica na narrativa oral e na iconografia a ela associada em todo o mundo, da Antiguidade mesopotmica e mediterrnea at a narrativa oral na moderna Iugoslvia, na frica Central e em outros lugares. Por toda parte, "as noes de separao, gratuidade e perigo inesperado" agrupam-se em torno de uma rvore (a rvore verdejante) e "as idias de unificao, recompensa, reciprocidade" agrupam-se em torno de outra (a rvore seca, a madeira rachada - 1978, p. 145). A ateno de Bynum para essas e outras "fices elementares" distintivamente orais ajuda-nos a estabelecer distines mais claras entre a organizao da narrativa oral e a organizao da narrativa quirotipogrfica do que fora possvel anteriormente. Tais distines estaro presentes neste livro por motivos diferentes porm no distantes dos de Bynum. Foley (1980a) demonstrou que aquilo que uma frmula oral , exatamente, e como ela funciona depende da tradio na qual ela usada, mas que existe uma ampla base comum em todas as tradies que torna vlido o conceito. A menos que indique claramente o contrrio, tomarei "frmula" e "formular" aqui como referentes, de modo inteiramente genrico, a frases ou expresses (tais como provrbios) prontas, repetidas de modo mais ou menos exato em verso ou prosa, as quais, como veremos, realmente possuem uma funo na cultura oral mais crucial e difusa do que qualquer outra que ela possa ter em uma cultura escrita, eletrnica ou de impresso. (Cf. Adam Parry 1971, p. XXXiii, . 1.) n O pensamento e a expresso formular orais percorrem as profundeza~ da conscincia e do inconsciente e no desaparecem assim que alguem que a eles se habituou pega em uma caneta. Finnegan (1977, p. 70) relata, aparentemente um tanto surpreso, a observao de Opland de

que, quando os poetas xhosas aprendem a escrever, sua poesia escrita tambm caracterizada por um estilo formular. Na verdade, seria totalmente surpreendente se eles pudessem fazer uso de qualquer outro estilo, especialmente porque o estilo formular caracteriza no apenas a poesia como tambm mais ou menos todo pensamento e expresso na cultura oral primria. A primeira poesia escrita, em toda parte, parece ser de incio, necessariamente, uma mimetizao em manuscrito da atuao oral. A mente no tem inicialmente recursos propriamente quirogrficos. _ Rabiscam-se em uma superfcie palavras que se imagina dizer em voz alta em uma situao oral imaginvel. Apenas muito gradativamente a escrita torna-se composio escrita, um tipo de discurso - potico ou no - que construdo sem uma sensao de que quem est escrevendo est realmente falando em voz alta (como os primeiros escritores podem bem ter feito ao compor). Como se ver mais adiante, Clanchy relata como, ainda no sculo XI, Eadmer de Canterbury parece pensar em compor por escrito como "ditar a si prprio" (1979, p. 218). Os hbitos orais de pensamento e de expresso, incluindo o uso predominante de elementos formulares, mantidos em uso em larga medida pelo ensino da velha retrica clssica, ainda caracterizavam o estilo de quase todos os gneros de prosa na Inglaterra dos Tudor, cerca de 2 mil anos depois da campanha de Plato contra os poetas orais (Ong 1971, pp. 23-47). Eles foram efetivamente eliminados do ingls, em sua grande maioria, somente com o movimento romntico, dois sculos mais tarde. Muitas culturas modernas que conheceram a escrita durante sculos, mas nunca a interiorizaram completamente, tais como a cultura rabe e algumas outras culturas mediterrneas (por exemplo, o grego - Tannen 1980a), ainda se apiam grandemente no pensamento e na expresso formulares. Kahlil Gibran tornou-se um profissional de xito ao fornecer produtos formulares orais impressos a americanos de cultura escrita, que vem como originais ditos proverbiais que, segundo um de meus amigos libaneses, os habitantes de Beirute consideram lugares-comuns.

Stolti' e Shannon 1976), porm sua mensagem central sobre a oralidade e suas implicaes para as estruturas poticas e para a esttica causaram uma revoluo benfica nos estudos homricos e tambm em outros, da antropologia histria literria. Adam parry (1971, pp. xliv-lxxx) descr~veu alguns dos efeitos imediatos da revoluo provocada por seu paI. Holoka (1973) e Haymes (1973) mencionaram muitas outras em s~as preciosas pesquisas bibliogrficas. Embora o trabalho de Parry ..tenha s1d~ ,atacado e revisto quanto a alguns pormenores, as poucas reaoes contrarias a ele foram, em sua grande maioria, atualmente postas de lado como produtos da mentalidade quirotipogrfica inadvertida, .que inicialmente bloqueou toda compreenso real do que Parry estava d1zendo e que sua prpria obra tornou agora obsoletos. Os estudiosos ainda esto elaborando e especificando as implicaes mais amplas das descobertas e inties de Parry. Whitman (1~58) logo as complementou quando audaciosamente apresentou .a Ilta~a como um poema estruturado pela tendncia formular de repetlf no f1m de um episdio elementos do seu incio; o poema pico construdo como um quebra-cabea chins, caixas dentro de caixas, segundo a anlise de Whitman. Para entender a oralidade como oposta cultura escrita contudo os mais significativos desenvolvimentos baseados em Parry ;m sido p~oduZidos por Albert B. Lord e Eric A. Havelock. Em rbe singeroftales [O cantor de histrias) (1960), Lord levou adiante e ampliou o trabalho de Parry com uma argcia convincente, relatando extensos trabalhos de campo e uma grande quantidade de gravaes de atuaes orais por cantores picos servo-croatas e de longas entrevistas com esses cantores. Anteriormente, Francis Magoun e os que estudaram com ele e com Lord em Harvard, principalmente Robert Creed e Jess Bessinger, j estavam aplicando as idias de Parry ao estudo da antiga poesia inglesa (Foley 1980b, p. 490).

Preface to Plato (1%3), de Havelock, estendeu as descobertas de Parry e Lord sobre a oralidade na narrativa pica oral a toda a cultura grega antiga oral e demonstrou de modo convincente, como os incios da fllosofia grega esta~am estreitame~te ligados reestruturao do pensamento produzida pela escrita. Ao excluir os poetas de sua Repblica, PIaro estava, na

Muitas das concluses e nfases de Milman Parry evidentemente foram um tanto modificadas por estudos subseqentes (ver, por exemplo,

verdade, rejeitando o primitivo estilo de pensar oral agregativo e parattico perpetuado em Homero, em favor da anlise incisiva ou dissecao do mundo e do prprio pensamento permitida pela interiorizao do alfabeto na psique grega. Numa obra mais recente, Origins of western literacy [Origens da cultura escrita ocidental] (976), Havelock atribui a ascendncia do pensamento analtico grego introduo de vogais no alfabeto pelos gregos. O alfabeto original, inventado pelos povos semticos, consistia somente em consoantes e algumas semivogais. Ao introduzir vogais, os gregos atingiram um novo patamar de codificao abstrata, analtica e visual do impalpvel mundo dos sons. Essa conquista prenunciou e implementou suas conquistas intelectuais abstratas posteriores. A linha de estudos iniciada por Parry ainda est para ser associada a outros campos com os quais ela pode facilmente se ligar. Porm, umas poucas conexes importantes j foram feitas. Por exemplo, em sua obra magistral e judiciosa, lbe epic in Africa [O poema pico na frica] (979), Isidore Okpewho utiliza as intuies e anlises de Parry (seguindo as elaboraes efetuadas pelos estudos de Lord) para estudar as formas artsticas orais de culturas muito diferentes da europia, fazendo com que os poemas picos africanos e gregos se iluminem mutuamente. Joseph c. Miller (1980) estuda a tradio e a histria orais africanas. Eugene Eoyang (977) mostrou corno o fato de negligenciar a psicodinmica da oralidade levou a concepes equivocadas sobre a narrativa chinesa primitiva, e outros autores coletados por Plaks (977) examinaram antecedentes formulares da narrativa chinesa literria. Zwettler tratou da poesia rabe clssica (977). Bruce Rosenberg (970) estudou a sobrevivncia da antiga oralidade nos pregadores populares americanos. Em uma edio comemorativa em homenagem a Lord, John Miles Foley (1981) compilou novos estudos sobre a oralidade, dos B1cs Nigria e ao Novo Mxico, e da Antiguidade aos dias atuais. E outros estudos especializados esto agora surgindo. Os antroplogos foram ao mago da questo da oralidade de modo mais direto. Recorrendo no somente a Parry, Lord e Havelock, mas tambm a outros, incluindo um de meus estudos iniciais a respeito do efeito da impresso sobre operaes mentais no sculo XVI (Ong 1958b - citado por Goodya partir de uma reedio de 1974), Jack Goody (977) mostrou, de modo convincente, de que maneira mudanas at ento rotuladas como mudanas da magia para a cincia, ou do chamado estado de conscincia "pr-Igico" para um outro cada vez mais "racional", ou da mente "selvagem" de

Lvi~~trauSSpara o pensamento domesticado, podem ser explicadas de maneira mais econmica e convincente como mudanas da oralidade para vrios estdios de cultura escrita. Eu havia anteriormente sugerido (1967b, p. 189) que muitos dos contrastes freqentemente feitos entre as vises "ocidentais" e as outras parecem estar resumidos a contrastes entre cultura escrita profundamente interiorizada e estados de conscincia mais ou menos residualmente orais. Os bem conhecidos estudos de Marshall McLuhan 0962, 1964) enfatizaram bastante as oposies audio-viso, oral-textual, chamando a ateno para a percepo precocemente aguda de James Joyce da polaridade audio-viso e relacionando a essa polaridade uma enorme quantidade de estudos acadmicos - que, do contrrio, seriam extremamente dspares - reunidos pela vasta e ecltica erudio de McLuhan e suas impressionantes intuies. McLuhan atraiu a ateno no apenas de estudiosos (Eisenstein 1979, pp. x-xi, xv), mas tambm de pessoas que trabalhavam nos meios de comunicao de massa, de executivos e do pblico informado de um modo geral, em boa parte por causa do fascnio exercido por suas numerosas afirmaes gnmicas ou oraculares, demasiado loquazes para alguns leitores, mas que muitas vezes exibiam uma profunda perspiccia. A estas ele denominou "sondagens". Ele geralmente se movia rapidamente de uma "sondagem" para outra, raramente - quando muito - fornecia qualquer explicao direta de tipo "linear" (isto , analtico). Sua afirmao gnmica fundamental, "O meio a mensagem", exprimiu sua conscincia aguda da importncia da mudana da oralidade, por meio da cultura escrita e da impresso, para a mdia eletrnica. Poucos provocaram um efeito to estimulante quanto Marshall McLuhan sobre tantas mentes diversas, incluindo aqueles que discordaram dele ou acreditavam faz-Io. Todavia, se a ateno a oposies refinadas entre oralidade e cultura escrita est crescendo em alguns crculos, ainda relativamente rara em muitos campos nos quais ela poderia ser til. Por exemplo, os estgios iniciais e tardios da conscincia queJulianJaynes (977) descreve e relaciona a mudanas neurofisiolgicas na mente bicameral poderiam tambm se prestar em boa medida a uma descrio mais simples e mais comprovvel da mudana da oralidade para a cultura escrita. Jaynes distingue um estgio primitivo de conscincia no qual o crebro era fortemente "bicameral", com o hemisfrio direito produzindo "vozes" incontrolveis atribudas aos deuses, vozes que o hemisfrio esquerdo

processava em fala. Essas "vozes" comearam a perder sua eficcia entre 2000 e 1000 a.c. Esse perodo, como veremos, dividido em duas partes bem distintas, pela inveno do alfabeto por volta de 1500 a.c., e ]aynes, com efeito, acredita que a escrita contribuiu para a eliminao da bicameralidade original. A llada oferece a ele exemplos de bicameralidade em seus personagens desprovidos de autoconscincia. ]aynes data a Odissia de 100 anos depois da Ilada e cr que o astuto Ulisses marca um avano na mente autoconsciente moderna, j no submetida ao domnio das "vozes". Seja qual for a aplicao que se faa das teorias de ]aynes, no deixa de causar espanto a semelhana entre as caractersticas da psique primitiva, ou "bicameral" como ]aynes a descreve - falta de introspeco, de audcia analtica, de preocupao com a vontade como tal, de uma percepo de diferena entre passado e futuro - e as caractersticas da psique nas culturas orais no apenas do passado, mas at mesmo nos dias de hoje. Os efeitos dos estados de conscincia orais so bizarros para a mente letrada e podem sugerir explicaes complexas que possivelmente se revelaro inteis. A bicameralidade pode significar simplesmente oralidade. A questo da oralidade e da bicameralidade talvez requeira maiores investigaes.

3SOBRE A PSICODINMICA DA ORALIDADE

Como resultado do estudo que acabamos de passar em revista, e de outros que sero mencionados, possvel fazer algumas generalizaes sobre a psicodinmica das culturas orais primrias, isto , das culturas orais intocadas pela escrita. Para ser breve, quando o contexto assegurar um significado inequvoco, referir-me-ei s culturas orais primrias simplesmente como culturas orais. As pessoas imersas na cultura escrita apenas com grande esforo conseguem imaginar como urna cultura oral primria, ou seja, urna cultura sem qualquer conhecimento da escrita ou sequer da possibilidad~ dela. Tente-se imaginar uma cultura na qual ningum jamais "pr~curou" algo. Em uma cultura oral primria, a expresso "procurar algo" vazia: no No original, look up, literalmente "procurar com os olhos", o que certamente traz implicaes maiores para o leitor, como quer o autor, do que a traduo "procurar" evidencia. (N.T.) Look up something. (N.T.)

teria nenhum significado concebvel. Sem a escrita, as palavras em si no possuem uma presena visual, mesmo que os objetos que elas representam sejam visuais. Elas so sons. Poder-se-ia "evoc-Ias" - "reevoc-Ias"*. Porm no esto em lugar algum onde poderiam ser "procuradas"". No tm sede, nem rastro (uma metfora visual, que mostra a subordinao escrita), nem mesmo uma trajetria. So ocorrncias, eventos. Para saber o que uma cultura oral primria e qual a natureza de nosso problema em relao a uma cultura semelhante, convm refletir sobre a natureza do prprio som como tal (Ong 1967b, pp. 111-138). Toda sensao ocorre no tempo, mas o som possui uma relao especial com ele, diferente da que existe em outros campos registrados na sensao humana. O som existe apenas quando est deixando de existir. Ele no apenas perecvel, mas essencialmente evanescente e percebido como evanescente. Quando pronuncio a palavra "permanncia", no momento em que chego a "-nncia", "perma-" desapareceu e tem de desaparecer. No h como deter e possuir o som. Posso deter uma cmera cinematogrfica e fixar um quadro na tela. Se detiver o movimento do som, no tenho nada - apenas silncio, ausncia absoluta de som. Toda sensao ocorre no tempo, mas nenhum outro campo sensorial resiste completamente a uma imobilizao, a uma estabilizao idntica do som. A viso pode registrar o movimento, mas pode tambm registrar a imobilidade. Na realidade, ela favorece a imobilidade, pois, para examinar algo atentamente por meio da viso, preferimos mant-Io imvel. Muitas vezes, reduzimos o movimento a uma srie de instantneos a fim de ver melhor o que o movimento. No existe o equivalente de um instantneo para o som. Um oscilograma silencioso. Ele existe fora do mundo sonoro. A qualquer pessoa com uma noo do que sejam as palavras em uma cultura oral primria, ou uma cultura no muito distante da oralidade primria, no surpreende que o termo hebraico dabar signifique "palavra" e "evento". Malinowski 0923, pp. 451, 470-481) salientou que, entre os povos "primitivos" (orais), geralmente a linguagem um modo de ao e no simplesmente uma confirmao do pensamento, embora tenha tido dificuldade em explicar a que estava se referindo (Sampson 1980, pp.

223-126), uma vez que a compreenso da psicodinmica da oralidade era virtualmente inexistente em 1923. Tambm no ca~sa surpresa que povos . mumente - e talvez universalmente - conSiderem que as palavras oraiS co so dotadas de grande poder. O som sempre exerce u~ poder. Um caador pode ver um bfalo, cheirar, sentir seu gosto e toca-Io quando o bfalo est completamente inerte, at mesmo morto, mas, se ouve .um 'f I melhor tomar cuidado: algo est acontecendo. Nesse sentido, b u ao, d todo som - especialmente a enunciao oral, que vem de dentro os organismos vivos - "dinmico". O fato de os povos orais comumente - e muito provavelmente em todo o mundo - julgarem as palavras dotadas de uma potencialidade mgica est estreitamente ligado, pelo menos inconscien~emente, a sua percepo da palavra como necessariamente fala~a, pr~fenda e, portanto, dotada de um poder. Os povos profundamente tipograficos esquecem-se de pensar nas palavras como primariamente orais, como eventos e, logo, necessariamente portadoras de poder: para eles, as palavras tendem antes a ser assimiladas a coisas, "l", em uma superfcie plana. Essas "coisas" no so to prontamente associadas magia, pois no constituem a~~s, mas, num sentido radical, esto mortas, embora passveis de ressurreiao dinmica (Ong 1977, pp. 230-271). Os povos orais comumente pensam que os nomes (um gnero. de palavras) so capazes de transmitir poder para outras coisas. As exphcaes sobre os nomes dados por Ado aos animais no Gnesis 2:20 geralmente atraem uma ateno condescendente para essa antiga crena presumivelmente extica. Essa crena , na verdade, muito menos extica do que parece primeira vista s naes quirogrficas e tipogrficas. Antes de mais nada os nomes realmente do aos seres humanos um poder sobre aquilo ~ue nomeiam: sem aprender um vasto suprimento de nomes, somos simplesmente incapazes de compreender, por exemplo, a qumica e pr em prtica a engenharia qumica. O mesmo ocorre com qualquer outro conhecimento intelectual. Em segundo lugar, as naes quirogrficas e tipogrficas tendem a pensar nos nomes como rtulos, etiquetas escritas ou impressas coladas imaginariamente no objeto nomeado. As naes orais no percebem um nome como uma etiqueta, pois no fazem idia de um nome como algo que possa ser visto. Representaes escritas ou impressas de palavras podem ser rtulos; as palavras reais, faladas, no.

* Cal! them back; recal! them.**

(N.T.)

To lookfor them. (N.T.)

Numa cultura oral, a reduo das palavras a sons determina no apenas os modos de expresso, mas tambm os processos mentais. Sabemos o que podemos recordar. Quando dizemos que sabemos geometria euclidiana, no queremos dizer que temos na mente, nesse momento, cada uma de suas proposies e provas, mas, sim, que podemos rapidamente traz-Ias mente. Podemos record-Ias. O teorema "sabemos o que podemos recordar" aplica-se tambm a uma cultura oral. Mas como as pessoas recordam numa cultura oral? O conhecimento organizado que os indivduos pertencentes cultura escrita atualmente estudam, a fim de que "saibam", isto , possam recordar, com muito poucas excees - quando muito -, foi reunido e colocado a sua disposio pela escrita. Esse o caso no apenas da geometria euclidiana, mas tambm da histria da Revoluo Americana, ou at mesmo da mdia de pontos no beisebol ou das leis de trnsito. Uma cultura oral no possui textos. Como ela rene o material organizado para fins de recordao? o mesmo que perguntar: "O que ela faz ou pode saber de uma forma organizada?" Suponhamos que uma pessoa, em uma cultura oral, tentasse se concentrar em um problema particularmente complexo e finalmente conseguisse articular uma soluo que, por sua vez, fosse relativamente complexa, consistindo, digamos, em umas poucas centenas de palavras. Como ela retm, para posterior recordao, a verbalizao to arduamente elaborada? Na ausncia total de qualquer escrita, no h nada fora do pensador, nenhum texto que lhe permita produzir a mesma linha de pensamento novamente ou at mesmo verificar se ele fez isso ou no. Aides-mmoire tais como varas marcadas ou uma srie de objetos cuidadosamente ordenados no iro, por si ss, recuperar uma complicada srie de asseres. Antes de mais nada, de que modo, realmente, poderia uma soluo longa, analtica, ser montada? essencial que haja um interlocutor virtual: difcil falar consigo mesmo durante horas consecutivas. O pensamento apoiado em uma cultura oral est preso.... comunicao. Mas at mesmo com um ouvinte que estimule o pensamento e d apoio, a miscelnea de idias no pode ser preservada em notas rabisca-

t se poderia trazer de novo mente o que foi elaborado com das. como , . tanta dificuldade? A nica resposta : pensar p~nsamentos memoravelS. Numa cultura oral primria, para resolver efetIvamente o pro~lema d~ - e da recuperao do pensamento cuidadosamente artIculado, e retenao preciso exerc-Io segundo padres mnemnicos, moldados para uma pronta repetio oral. O pensamento deve surgir em padres. fortel~ente rtmicos, equilibrados, em repeties ou antteses, em altteraoes e assonncias, em expresses epitticas ou outras expresses formulares, em conjuntos temticos padronizados (a assemblia, a re~ei~o, o duel_o, o "ajudante" do heri e assim por diante), em p~overblos que sao constantemente ouvidos por todos, de forma a VIr prontamente ao esprito, e que so eles prprios modelados para a reteno e a :pida recordao - ou em outra forma mnemnica. As reflexes e os ~etodo~ de memorizao esto entrelaados. A mnemnica deve determmar ate mesmo a sintaxe (Havelock 1963, pp. 87-96, 131-132,294-296).O pensamento prolongado, quando fundado na oralidade, at mesmo nos casos em que no se apresente na forma de versos, tende ~ ser altamente rtmico, pois o ritmo auxilia na recordao, at mesmo p;icologicamente. Jousse (978) demonstrou a ntima ligao entre padres rtmicos orais, processo de respirao, gesticulao e simetria bilateral do corpo humano nos targums aramaicos e helnicos, e portanto tambm no hebraico antigo. Entre os antigos gregos, Hesodo, que ocupou uma posio intermediria entre a Grcia homrica oral e a cultura escrita grega totalmente desenvolvida, exprimiu um material semifilosfico nas formas poticas formulares que o organizavam no interior da cultura oral da qual ele emergiu (Havelock 1963, pp. 97-98,

294-301).As frmulas ajudam a implementar o discurso rtmico, assim como funcionam, por si ss, como apoios mnemnicos, como expresses fixas que circulam pelas bocas e pelos ouvidos de todos. "Vermelho pela manh, o alerta do marinheiro; vermelha noite, a delcia do marinheiro." "Dividir para conquistar." "Errar humano, perdoar divino." "A tristeza melhor do que o riso, porque quando o rosto est triste o corao se torna mais sbio" (Eclesiastes 7:3). "A videira aderente." "O robusto carvalho." "Expulsai a natureza e ela voltar a galope." Fixas, muitas vezes ritmicamente equilibradas, expresses desse e de outros tipos podem ser ocasionalmente encontradas impres-

sas; na realidade, podem ser "procuradas"- em livros de adgios, mas nas culturas orais no so eventuais, so constantes. Elas formam a substncia do prprio pensamento. Sem elas, este impossvel em qualquer forma extensa, pois nelas que consiste. Quanto mais complexo o pensamento oralmente padronizado, maior a probabilidade de que seja caracterizado por expresses fixas utilizadas com habilidade. Isso vale para as culturas orais em geral, da Grcia homrica s existentes atualmente em toda parte do planeta. Preface to Plato (1963), de Havelock, e obras de fico como o romance de Chinua Achebe, No longer at ease [Tranqilidade perdida) (1961), baseado diretamente na tradio oral ibo, na frica Ocidental, fornecem exemplos abundantes de padres de pensamento de personagens educados oralmente que se movem mnemonicamente nesses sulcos instrumentalizados, orais, quando os falantes refletem, com grande inteligncia e requinte, sobre as situaes nas quais se acham envolvidos. Nas culturas orais, a prpria lei est encerrada em adgios formulares, provrbios, que no constituem meros adornos jurdicos, mas so, em si mesmos, a lei. Numa cultura orall, um juiz muitas vezes chamado a articular conjuntos de provrbios relevantes dos quais ele pode obter decises justas nos processos de litgios formais que deve julgar (Ong 1978, p. 5). Numa cultura oral, refletir atentamente sobre algo em termos noformulares, no-padronizados, no-mnemnicos, ainda que isso fosse possvel, seria uma perda de tempo, pois esse pensamento, uma vez terminado, nunca poderia ser recuperado com alguma eficcia, tal como o seria com o auxlio da escrita. No seria um conhecimento confivel, mas simplesmente um pensamento momentneo, embora complexo. As frmulas fixas altamente padronizadas e comunais das culturas orais cumprem algumas das finalidades da escrita em culturas quirogrficas. Porm, ao faz-Io, determinam evidentemente o tipo de pensamento que pode ser realizado, o modo como a experincia intelectualmente organizada. Em uma cultura 9~,~EP~!:!~tlcia intelectualizada mnemonicamente. Esse um dos motivos por que, para um santo Agostinho de Hipona (354-430 d.e.), assim como para outros sbios que viviam numa cultura com algum conhecimento da escrita, mas que ainda conservava um resduo oral espantosamente

slido{ a memria tem uma importncia to grande quando tratam dos poderes do esprito. Obviamente, toda expresso e todo pensamento so at certo ponto formulares, no sentido de que cada palavra e cada conceito expresso numa palavra constituem uma espcie de frmula, um modo fixo de processar os dados da experincia, determinando o modo como .a experincia e a reflexo so intelectualmente organizadas e atuando como dispositivo mnemnico de algum tipo. A verbalizao da experincia (o que implica pelo menos alguma transformao - o que no equivale falsificao) pode efetivar sua recordao. Contudo, as frmulas que caracterizam a oralidade so mais elaboradas do que as palavras individualmente, embora algumas possam ser relativamente simples: o "caminho da baleia" do poeta do Beowulf uma frmula (metafrica) para o mar em um sentido diferente do termo "mar".

O conhecimento da base mnemnica do pensamento e da expresso em culturas orais primrias abre caminho para a compreenso de algumas outras caractersticas do pensamento e da expresso fundados na oralidade, alm de sua estilizao formular. As caractersticas mencionadas aqui so algumas das que tornam o pensamento e a expresso fundados no oral diferentes daqueles que so fundados no quirogrfico e no tipogrfico - isto , as caractersticas que devem parecer mais surpreendentes queles que foram criados em culturas baseadas na escrita e na tipografia. Esse inventrio de caractersticas no se apresenta como exclusivo ou conclusivo, mas ilustrativo, pois o aprofundamento da compreenso do pensamento fundado na oralidade (e, conseqentemente, a compreenso do pensamento baseado no quirogrfico, no tipogrfico e no eletrnico) requer mais estudos. Numa cultura oral primria, o pensamento a ser dos seguintes tipos: e a expresso tendem

Um exemplo conhecido de estilo aditivo oral a narrativa da criao no Gnesis 1:1-5, que, na verdade, um texto, porm preserva

uma visvel padronizao oral. A verso Douay (1610), produzida em uma cultura com um resduo oral ainda forte, segue de perto, em muitos aspectos, o original hebraico aditivo Cintermediado pela verso latina com base na qual Douay fez a sua):

existen~iais que circundam o discurso oral e ajudam a determinar significado, de certa forma independentemente da gramtica.

o

No comeo, Deus criou o cu e a terra. E a terra era erma e vazia, e as trevas cobriam a superfcie das profundezas; e o esprito de Deus se movia sobre as guas. E Deus disse: Faa-se a luz. E a luz se fez. E Deus viu que a luz era boa; e ele dividiu a luz das trevas. E ele chamou Luz Dia, e s trevas, Noite; e houve noite e manh um dia.

Seria um erro pensar que a verso Douay est simplesmente "mais prxima" do original hoje do que a New American. Ela est mais prxima pelo fato de que traduz we ou wa sempre pela mesma palavra, mas choca a sensibilidade atual pela sua aparncia remota, arcaica, e at mesmo extica. Em culturas orais ou com um alto resduo oral, incluindo a que produziu a Bblia, as pessoas no sentem esse tipo de expresso como to arcaico ou extico. Ele lhes parece natural e normal, do mesmo modo que a verso New American nos parece natural e normal. Em todo o mundo, podemos encontrar na narrativa oral primria exemplos de estrutura aditiva, dos quais possumos um enorme estoque de fitas gravadas (ver Foley, 1980b, para a relao de algumas fitas).

Nove "e" introdutrios. Adaptada a sensibilidades mais moldadas pela escrita e pela tipografia, a New American Bible (1970) faz a seguinte traduo:

No incio, quando Deus criou os cus e a terra, a terra era um vasto deserto informe, e as trevas cobriam o abismo, enquanto um forte vento varria as guas. Ento Deus disse: "Seja feita a luz", e houve luz. Deus viu como era boa a luz. Deus ento separou a luz das trevas. Deus chamou luz "dia" e s trevas ele chamou "noite". Assim chegou a noite, e a ela sucedeu a manh - o primeiro dia.

Dois "e" introdutrios, ambos mergulhados num perodo composto. A verso Douay traduz o hebraico we ou wa ("e") simplesmente por "e". A New American o traduz por "e", "quando", "ento", "assim" ou "enquanto", para proporcionar um fluxo narrativo com a subordinao analtica e racional que caracteriza a escrita (Chafe 1982) e que parece mais natural em textos do sculo XX. As estruturas orais muitas vezes consideram a pragmtica (a convenincia do falante - Sherzer 1974 relata longas apresentaes pblicas orais entre os CImas, incompreensveis para os ouvintes). As estruturas quirogrficas levam mais em conta a sintaxe (organizao do prprio discurso), como sugeriu Givn (1979). O discurso escrito desenvolve uma gramtica mais elaborada e fixa do que o discurso oral, porque nele o significado depende mais da estrutura lingstica, uma vez que carece dos contextos normais inteiramente

Essa caracterstica est intimamente ligada s frmulas como meio de aparelhar a memria. As bases do pensamento e da expresso fundados na oralidade tendem a ser no tanto meras totalidades, mas agrupamentos de totalidades, tais como termos, frases ou oraes paralelos, termos, frases ou oraes antitticos, eptetos. As naes orais preferem, especialmente no discurso formal, no o soldado, mas o soldado valente; no a princesa, mas a bela princesa; no o carvalho, mas o carvalho robusto. Assim, a expresso oral est carregada de uma quantidade de eptetos e outras bagagens formulares que a cultura altamente escrita rejeita como pesados e tediosamente redundantes em virtude de seu peso agregativo (Ong 1977, pp. 188-212). Em muitas das culturas de baixa tecnologia, em desenvolvimento, os clichs nas acusaes polticas - inimigo do povo, capitalistas fomentadores da guerra -, que chocam os pertencentes a uma cultura altamente escrita por serem imponderados, constituem fundamentos formulares residuais dos processos orais de pensamento. Um dos muitos indcios de um alto - ainda que em vias de desaparecimento - resduo oral na cultura da Unio Sovitica (ou era, uns anos atrs, quando a visitei) a insistncia em falar da "Gloriosa Revoluo de Outubro de 17" - essa frmula epittica constitui uma estabilizao obrigatria, como eram as frmulas

homricas epitticas "sbio Nestor" ou "esperto Ulisses", ou como costumava ser "o glorioso Quatro de Julho" no resduo oral comum at mesmo nos Estados Unidos do incio do sculo XX. A Unio Sovitica ainda apresenta todo ano os eptetos oficiais para vrios toei classiei da histria sovitica. Uma cultura oral pode, com efeito, perguntar num enigma por que os carvalhos so robustos, mas o faz para demonstrar que eles o so, para manter intacto o agregativo, e de modo algum para questionar o atributo ou lanar dvidas sobre ele. (Para exemplos extrados diretamente da cultura oral dos tubas, no Zaire, ver Faik-Nzuji 1970.) Nas culturas orais, as expresses tradicionais no devem ser desmontadas: foi trabalhoso mant-Ias juntas por geraes e no existe nenhum lugar fora da mente onde se possa armazen-Ias. Portanto, soldados so sempre valentes, princesas so sempre belas e carvalhos so sempre robustos. Isso no significa que no possa haver outros eptetos para soldados, princesas ou carvalhos, at mesmo eptetos opostos, mas tambm estes so padronizados: o soldado fanfarro, a princesa infeliz podem tambm fazer parte do equipamento. O que prevalece para eptetos prevalece igualmente para outras frmulas. Uma expresso formular, uma vez cristalizada, deve permanecer intacta. Sem um sistema de escrita, o pensamento fragmentado - isto , a anlise - constitui um procedimento altamente arriscado. Como sintetizou muito bem Lvi-Strauss, "a mente selvagem (isto , oral] totaliza" (1966, p. 245).

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perto ~o foco de ateno muito daquilo com que j se deparou. A redundncia, a repetio do j dito, mantm tanto o falante quanto o ouvinte na pista certa. Uma vez que a redundncia caracteriza o pensamento e a fala orais, ela em um sentido profundo mais natural ao pensamento e fala do que a linearidade parcimoniosa. O pensamento e a fala parcimoniosamente lineares ou analticos constituem uma criao artificial, construda pela tecnologia da escrita. Eliminar a redundncia numa escala significativa requer uma tecnologia que sirva de obstculo ao tempo, requer a escrita, que impe algum tipo de tenso psique ao impedir que a expresso recaia em seus padres mais naturais. A psique pode controlar a tenso, em parte porque a escrita mo , fisicamente, um processo muito lento - em mdia, cerca de um dcimo da velocidade do discurso oral (Chafe 1982). Com a escrita, a mente forada a seguir um padro mais lento, que lhe d a oportunidade de alterar e reorganizar seus processos mais normais, redundantes. A redundncia igualmente propiciada pelas condies fsicas da expresso oral diante de um pblico vasto, situao na qual ela na verdade mais marcada do que na maioria das conversas face a face. Nem todo mundo, dentre uma mul