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QUASE ACASO

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André Tressoldi

S ã o P a u l o 2012

COLEÇÃO NOVOS TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

QUASE ACASO

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PARTE I

Reinaldo Fiorentini tinha vinte anos de idade e resolveu sair de casa. Cansou de ter a vida de sempre. Seus pais pobres e de pouca instrução nunca o incentivaram aos estudos. Para eles, bastava que Reinaldo trabalhasse e fosse honesto. “O resto é resto”, diziam. Porém Reinaldo, jovem sonhador, esperava sair daquela vida de algum jeito. Em razão do histórico de pouco estudo da família, nunca se influenciou por qualquer curso superior e tentou da maneira mais difícil: trabalhando honestamente.

Precisava sair dali. Era-lhe penoso permanecer em um lugar com poucas oportunidades e sem incentivo moral. Será que se daria bem na cidade grande? Queria provar a todos que podia alguma coisa. Imaginava-se voltando anos mais tarde montado num baita conversível vermelho. Queria ver a cara embasbacada do pessoalmodopasmado.

Então partiu para a cidade grande e lá começou a trabalhar como garçom. Não tinha nenhuma qualificação. A garçons de restaurantes meia-boca não se exigia experiência. Morava com uma tia aposentada, no apartamento dela e de favor. Porém, a situação gradualmente começou a lhe irritar. O serviço exte-nuante, os clientes, as piadinhas e a correria da cidade grande fizeram Reinaldo pensar em voltar para sua pequena cidade. O principal motivo de pensar em voltar era o holerite. Ah, hole-rite miserável... Pouco mais de um salário mínimo. O coitado economizava, nem saía e procurava fugir das garotas para não

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gastar. Ademais, Reinaldo, orgulhoso, achava uma vergonha um homem não ter dinheiro para se divertir com uma garota e, por isso, tempos atrás decidido não namorar ninguém. Às vezes sentia necessidade de sexo, mas sua razão era mais forte, se virava sozinho.

Reinaldo começou a entender que trabalhar de empre-gado, a não ser por poucas exceções, era uma furada, não levava a nada. Se economizasse a vida inteira, talvez pudesse comprar uma casa e um carro, isso depois de estar quase aposentado. Ainda pode-se dizer que Reinaldo era pavio curto e não gostava de receber ordens porque achava que ordens são para crianças. “Adultos não precisam de ordens, pois já sabem o que fazer”, dizia ele.

Apesar de suas parcas instruções, tinha uma inteligência razoavelmente admirável, seu raciocínio era rápido e possuía um viés filosófico. Era por demais questionador do sistema, isso lhe era nato, talvez por essa razão fosse tão difícil aceitar a mediocridade. Para ele, isso não tinha sentido. Imagine, viver dentro de um sistema que não havia sido projetado por ele e ainda por cima em situação de pobreza. Nunca iria se con-formar, era o fim para ele. Porassim lutava com muito afinco; pensava que no mundo capitalista só pode ser livre quem tem capital, como de fato é.

Ficou dois anos na cidade grande. Nesse tempo, começou a ler cartazes de propostas de emprego, notou que para quem possuísse pouco estudo só sobravam ocupações de baixa remu-neração. Ele até não se incomodava com serviços braçais, o que o incomodava eram os salários baixos.

Um colega de serviço sempre comentava que deveriam estudar, pois era o jeito de sair daquela merda de vida.

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– Não aguento mais trabalhar aqui e não sobrar nada. Acho que vou voltar pro interior – disse Reinaldo enquanto limpava o restaurante após o término do período de almoço. O moço passava um pano molhado com álcool nas mesas enquanto seu colega varria o chão e as cozinheiras lavavam os pratos que emi-tiam um som misturado de água e “plac plac” sem cessar. Essa cena havia se tornado um eterno déjà-vu durante dois anos já.

– Semana que vem vou me matricular em um curso téc-nico de eletricista, dentro de dois anos saio daqui – disse Diego.

– Mas isso tem futuro?– O Zé Peteca, morador lá da vila, tira mais de cinco

salários só com biquinhos, e olha que o serviço dele não é tão bom assim.

Esse diálogo fez a cabeça de Reinaldo girar em pensamen-tos: “Puxa! Cinco salários mínimos! Isso sim seria um salário digno. Acho que tá na hora de mudar o disco. Vou começar pesquisar sobre os estudos”.

Assim, o moço pesquisou todos os tipos de estudo que podia, perguntou para pessoas, frequentou bibliotecas... Sem alternativa, descobriu que precisava enfrentar um tal de ves-tibular. Até tentou o vestibular para Direito, mas nem passou perto, ficou deveras decepcionado com o resultado. Foi quando pensou em fazer cursinho.

Já no cursinho, ficou conhecendo um pouco melhor a vida de acadêmico. Fez um teste vocacional e constatou que sua vocação era trabalhar com Letras e Literatura. Sentia-se atraído por romances e gostava de estudar as regras da língua portu-guesa. A aula de português sempre era a de que mais gostava. Não sabia ao certo o motivo, talvez fosse o som das palavras; o certo é que gostava das letras.

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Durante o cursinho, analisava qual seria o melhor local para prestar o vestibular. Avaliando sua situação, concluiu que uma instituição no interior seria a melhor opção, pois havia uma Universidade Estadual a cerca de cinquenta quilômetros de sua cidade. “Se eu passar no vestibular na capital, terei que ficar aqui e na casa da tia por, no mínimo, mais quatro anos. Isso não é legal. Por outro lado, se eu for embora, posso ficar na casa dos meus pais. Só vou ter de pagar o ônibus; moradia e comida terei. Já estou cansado mesmo da correria deste lugar.”

No final do segundo semestre do ano, Reinaldo contou à mãe:

– Mãe, vou voltar.– Graças a Deus, meu filho, você nem deveria ter ido

embora – disse dona Gema.– Mas agora vai ser diferente mãe. Eu vou é pra estu-

dar. Vou fazer o vestibular no final do ano. Vestibular de Letras-Literatura.

Para dona Gema não importava se Reinaldo iria estudar ou não; o que importava é que estaria perto de novo. A notícia foi recebida com alegria por seu Darci, o pai de Reinaldo, afinal não era fácil viver longe do único filho. Darci era pedreiro e sempre teve a ajuda de Reinaldo até o dia em que ele resol-veu ir embora. Agora poderia voltar à vida de sempre. Só que Reinaldo não estava pensando em trabalhar com o pai.

– O quê? Você não vai mais me ajudar? – perguntou seu Darci.– Com minhas economias, vou ficar estudando até passar

no vestibular e, depois que passar, vou fazer estágio em alguma escola. Assim dá pra ganhar um troquinho até que me forme.

– Tá bom, filho, já que quer assim... – respondeu seu Darci resignado. Não era bem o que ele queria, mas estava contente

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de ter o filho de volta. Os benefícios do estudo não eram claros na opinião de seu Darci. Afinal de contas, ele tinha conseguido tudo com as próprias mãos. Eram pobres, mas tinham casa pró-pria e ele nunca deixava faltar nada. O mais importante, nunca pediu nada a ninguém, motivo de grande orgulho na concep-ção de Darci.

Eles moravam no meio de uma quadra, em uma casa azul com umbrais de janela brancos. Havia uma varanda e um pequeno quintal com algumas flores. A decoração da casa era bem retrô, mas bem cuidada e de bom gosto: móveis antigos bem lustrados, cortinas e vários quadros. O quarto de Reinaldo era médio. Havia uma cama, um guarda-roupa, uma cômoda, alguns enfeites e, agora, uma escrivaninha e os livros de estudo.

Quando ele voltou, faltava um mês para o vestibular de dezembro. Reinaldo se trancava dentro de casa, passava o dia todo estudando e parava só para comer. Quando estava muito cansado, saía para dar uma voltinha na quadra, ou assistia a um filme, e logo retornava aos estudos. Conforme verificou, o vestibular de Letras-Literatura estava com uma concorrência de dez pessoas para cada vaga.

Finalmente chegou o domingo do vestibular, Reinaldo acordou cedo e foi para o local onde faria os exames. Mentalizava o seguinte: “Vou ficar calmo, vou ficar calmo. Estudei bastante. Começo a fazer as questões mais fáceis; as difíceis deixo por último. Não posso gastar mais de três minutos por questão”.

Só que, ao chegar ao local, a calma de Reinaldo foi embora, dando lugar à ansiedade ou medo disfarçado. Ele olhava as pes-soas ao redor e as imaginava tão inteligentes, aliás, mais inteli-gentes do que ele. Era impossível não fazer essas comparações, pareciam ser instintivas. Os seus pensamentos também o levaram

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a questionar: “Por que vestibular? E as pessoas que não passam vão ter de se resignar somente porque não alcançaram nota nessas provas que não provam nada?”. Por fim, adentrou no local de realização das provas e aguardou o momento determinado para o início do teste. O vestibular durou parte da manhã e da tarde. Ao final, estava com a impressão de ter ido muito mal. O resultado saiu trinta dias depois. Ficou contente ao ver seu nome na lista dos aprovados, mas não comemorou porque pensava naqueles que não passaram. Em sua opinião, o vestibular era injusto, um sistema de catracas, no qual alguém sempre fica de fora.

As aulas começariam depois do Carnaval, então ele foi pro-videnciar o que precisava, inclusive o transporte. Iria se locomo-ver até a faculdade todas as noites com o ônibus da Associação dos Estudantes, que era mantido pela mensalidade dos alunos. Era um ônibus velho, que várias vezes apresentava problemas.

Todas as noites, Reinaldo empenhava-se nas aulas. Ele não era muito de conversa, estava levando a faculdade a sério mesmo, ao contrário de alguns alunos e professores. Nos inter-valos entre as aulas, sempre ia à biblioteca, ficava analisando os títulos e pegava alguns romances para ler.

Quase não se misturava com os outros alunos, seu negócio era estudar, não entrou na faculdade por brincadeira. Logo na pri-meira semana de aula, elaborou alguns currículos e os entregou a várias escolas de sua cidade. Foi na Escola Nascente do Sol que ele conseguiu o estágio; tinha levado o currículo para a diretora Cássia.

– Tudo bem, diretora? Meu nome é Reinaldo. Estou cur-sando Letras-Literatura, e gostaria de fazer estágio aqui na escola. Se a senhora puder me ajudar, ficaria muito grato.

– Bom, existe um sistema de bolsas na escola, mas não posso te inserir de imediato. Tenho uma proposta: você fica três

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meses estagiando como voluntário, sem receber bolsa. Nesse período, eu te avalio e se você se der bem e se enquadrar nos objetivos da escola, requisito uma bolsa para você. O que me diz, sim ou não? – indagou Cássia.

– Sim, sim, é claro que aceito. Não posso me dar ao luxo de perder essa oportunidade. Muito obrigado, diretora. Então, quando eu começo?

– Venha na segunda-feira. Você auxiliará nas aulas de quinta a oitava série.

– Eu tenho que estudar algum material para poder exercer minha função, algum manual ou algo assim?

– Não se preocupe com isso agora. A professora Vera será sua coordenadora e explicará tudo a você na segunda-feira, logo que chegar.

– Está bem, diretora. Muito obrigado pela atenção e pela oportunidade.

– Não tem de quê. Afinal de contas, se o seu trabalho for bom, é a escola que sairá ganhando. Até logo.

Pontualmente na segunda-feira, Reinaldo começou o está-gio. Demorou um pouco para se soltar e pegar confiança com os demais estagiandos e professores. Já os alunos... Os alunos se ofereciam, é claro, apenas aqueles mais saidinhos a conhecer gente nova. Aliás, era necessário algumas vezes dar um breque em determinados alunos, senão virava bagunça mesmo.

A professora Vera lhe passou a tarefa. Notou logo de pronto o quanto era prestativo. Ele se empenhava para realizar tudo da melhor forma possível.

– Nossa, professora, que coisa, que bagunça! Como é pos-sível dar aulas desse jeito? – disse Reinaldo logo após o primeiro dia de estágio.

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– Você não viu nada, menino. Tem que ser de ferro para dar aula nos dias de hoje. Os alunos são muito imperativos e o professor perdeu aquela autoridade de antes.

– Mas não dá para conversar com os pais daqueles alunos? Os pais devem entender e ajudar na educação de seus filhos.

– É aí que você se engana. Os pais não dão ouvidos aos professores. Ai se o professor corrigir seu precioso filhinho. Adivinha contra quem eles se voltam. Contra o trouxa do professor – disse Vera.

– Nossa, que absurdo. Os pais apoiam os filhos em coisas erradas?

– Muitas vezes. E o pior, a situação está tão perdida que os pais chegaram ao ponto de ter de fazer cursos para saber educar seus filhos. Não sei onde isso vai parar.

– Mas qual a razão disso?– Um sinal dos tempos, talvez. – As mentalidades mudaram muito, não é?– Mas a mentalidade do ensino não mudou nada.– Não há como mudar isso?– Isso pode até ser tema de tese. Quem der uma solução

plausível para isso, vai ser considerado um verdadeiro herói. Tá aí, é um bom tema para seu TCC, Reinaldo.

– Será? Mas eu acabei de entrar na faculdade. Será que não é muito cedo para pensar na monografia?

– Quanto antes melhor. Assim suas ideias amadurecem e você poderá apresentar um belo trabalho.

Reinaldo foi para casa e contou apenas algumas coisas para seus pais. O que não era conveniente, omitia; não gostava de falar muito com os pais sobre seus planos devido à diferença de pensamentos. Sua mente arrazoava no sentido de que o desafio

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seria grande e mal tinha começado: “Nossa, pensei que fazer um curso superior seria a solução dos meus problemas, mas o que vejo é que será um enorme desafio, principalmente se eu quiser ser professor. Não sei se quero isso não. Já no primeiro dia, a impressão que tive não foi das melhores. Bom, a vanta-gem é que se eu concluir o curso superior e não quiser ser pro-fessor, posso tentar algum tipo de concurso. Aliás, não é difícil encontrar profissões que paguem melhor do que a de professor. Isso não pode estar certo, por isso a Educação não vai mesmo. Que absurdo!”

Durante o estágio, fez amizade com Valdir, rapaz muito legal e sempre disposto a ajudar. Ele não era tagarela e sabia intervir nas horas certas. Era um tanto afeminado, mas não escandaloso; foi a companhia mais presente durante os interva-los de trabalho de Reinaldo.

Um dia, quando Reinaldo estava bem calmo, uns seis meses depois que fizera amizade com Valdir, este lhe proferiu estas palavras:

– Reinaldo, eu preciso lhe falar uma coisa... Sabe, você é muito atencioso comigo, e nesses meses todos, desde que nos tornamos amigos, você sempre foi tão gentil...

– Ué, os amigos todos não são gentis? – interrompeu Reinaldo que já previa o que lhe seria dito e já estava sem graça. Não queria ser mal interpretado e, pelo jeito, tinha sido.

– Você sabe que sou gay. Estou muito apaixonado por você, gostaria de ficar com você, eu...

– Olha, não confunda as coisas. Eu não tenho precon-ceito, mas não sou gay e não quero ficar com você e nem com nenhum outro homem.

– Mas me dê uma chance. Você pode até gostar.

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– Para com isso, Valdir. Se quiser continuar a ser meu colega, pare com isso. Eu já disse que não sou gay. Se você é gay, o problema é seu. Agora, só porque é gay eu preciso ser gay também? – falou Reinaldo asperamente.

– Desculpe. Eu perdi o controle, prometo que não toco mais no assunto.

Reinaldo foi para casa extremamente sem graça. Realmente não esperava que o amigo estivesse apaixonado por ele. Achava que a amizade poderia ficar prejudicada. No fundo, não que-ria isso porque Valdir era um bom amigo. No entanto, a ami-zade entre os dois continuou, embora um tanto amarela, já que ambos ficaram meio constrangidos.

Na faculdade, as coisas iam como sempre. Reinaldo tirava boas notas. Muito aplicado, era sempre requisitado pelos cole-gas de classe para fazer os trabalhos e sempre ficava responsável por fazer os trabalhos porque pensava que ele mesmo é quem saía ganhando. No decorrer de dois anos, ainda explorava as possibilidades de seu curso. Incentivado por uma professora, pensou seriamente em seguir na carreira de educador.

– Reinaldo, tenho lido seus trabalhos e vejo que você escreve bem, tem um bom raciocínio, além de ser bem dedi-cado naquilo que faz. Eu sugiro a você seguir a carreira de pes-quisador, fazendo o mestrado e depois o doutorado.

– Mas como é isso? O que posso fazer com esses títulos?– Isso vai depender de você. O certo é que você tem inegá-

vel aptidão para a pesquisa.– Por que a senhora está falando isso para mim? Existem

tantos alunos tão bons ou até melhores do que eu.– Porque eu sei que você tem talento e que o quanto antes

for incentivado, melhor. Demorei para fazer meu mestrado e

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doutorado porque não acreditava que tinha capacidade para isso, e o mais difícil na realização das coisas é quando você pensa que algo não é para você. A mim, a vida ensinou, mas você é uma boa pessoa e não precisa dar as cabeçadas que dei. Pense nisso, estou falando tudo isso porque sempre que se encontra uma pessoa de valor não se pode deixar de incentivá--la; eu, como professora, se não o fizesse, estaria cometendo um ato de omissão que, por minha negligência, poderia impedir você de conseguir melhorar na vida, bem como de revelar à sociedade alguns talentos que só precisam da lapidação certa. Não se esqueça das minhas palavras. Se estiver disposto, vou lhe fornecer algumas revistas e livros que servirão para colocá-lo a par dos mestrados e das bolsas existentes. Você está disposto?

– Estou sim, e muito agradecido pela sua consideração. Até agora na faculdade não tive melhor incentivo que este. – Reinaldo animou-se com o convite à pesquisa e com os elogios e imaginou que talvez a professora Márcia realmente tivesse razão.

Daquele momento em diante, Reinaldo dedicou-se ainda mais aos estudos e pesquisou o que pôde sobre mestrados e dou-torados. Porém, antes, ele não podia se esquecer de sua mono-grafia, por isso, já procurava um tema para o TCC. Conforme tinha visto no trabalho e empurrado pelas circunstâncias, pen-sava na questão da atual Educação, mas o tema ainda era vago. Em sua mente, só havia os indícios do problema. A solução, portanto, ainda era nebulosa.

Passaram-se dois anos desde a matrícula de Reinaldo no curso. Determinado dia, quando estava ocorrendo na faculdade uma semana de palestras e eventos sobre Educação, Reinaldo dirigiu-se ao auditório e sentou-se. Ao olhar para o lado, avis-

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tou uma linda e discreta moça, muito bela, de cabelos casta-nho-escuros, pele clara, olhos negros, corpo bem distribuído e aparentemente meiga. Durante a palestra, os olhos de Reinaldo volta e meia se atinham à linda. Em dado momento do dis-curso, a moça também prestou atenção a Reinaldo, bem disfar-çadamente, de forma quase imperceptível.

A exposição estava chata. De repente, a caneta azul que a moça segurava caiu ao lado de Reinaldo, que muito gentil pegou-a prontamente e a entregou. Neste momento, os olha-res dos dois se tocaram e o moço foi deslumbrado pelo sorriso espontâneo daquela linda mulher. Seu coração deu pulo em êxtase e frenesi contido, tudo em uma fração de segundo, de forma quase imperceptível às pessoas que estavam ao redor.

Voltando os olhos ao palestrante, Reinaldo pensava em como o sorriso daquela garota o havia cativado e sabia que o sorriso que tinha recebido era a prova de que de, alguma forma, a moça tinha cedido aos seus encantos. Fiava-se na atra-ção mútua.

A palestra ficou em segundo plano, já não estava tão inte-ressante mesmo. Era um palestrante que, apesar de não ter graça, tentava se fazer de engraçado através de piadinhas fora de contexto e com uma interpretação que causava risos meio for-çados. O tal palestrante conduzia suas apresentações em vários estados e, segundo alguns que já o haviam escutado, repetia sempre o mesmo discurso e as mesmas piadas. Não havia nada de espontâneo em sua palestra.

Reinaldo ficara com os pensamentos nitidamente obceca-dos por aquela garota. Em dois anos de faculdade nunca se inte-ressara por nenhuma outra mulher, “mas essa aí, hum, essa valia a pena”, pensava. Era o seu tipo e o pensamento que sempre o

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seguira, “de primeiro ter condições financeiras adequadas para depois ter garotas”, agora parecia sem sentido. Além disso, a vida havia se tornado tão bela nos olhares daquela universitária sentada ao seu lado.

Reinaldo tinha vontade de roçar seus braços nos dela, mas o pudor o impedia. Era a primeira vez que a via, e já pensava “bem que ela podia estar afim”. Em um momento da palestra, Reinaldo tentou uma conversa:

– Oi. Não me leve a mal, mas tenho de perguntar uma coisa... – Ela demonstrou curiosidade. – Você estuda aqui? Eu nunca te vi, pelo menos não tive a sorte antes. – Reinaldo falou em tom de cochicho.

– Estudo sim. Consegui transferência este ano, mas nunca tinha te visto também – falou cochichando e inclinando a cabeça para Reinaldo.

– Você não faz o curso de Letras, faz?– Não. Estou cursando Biologia, Letras não é comigo.– Mas a palestra de hoje não tem nada a ver com seu curso.

Por que veio assistir? Não que eu esteja reclamando.– Acontece que o tema é muito interessante. Aliás, o tema

é mais interessante do que a palestra em si...– Chiu! – exclamou alguém da plateia que se sentiu inco-

modado com o cochicho.Os dois se olharam e ambos esboçaram aquela careta de

vergonha, susto e graça, num tom de leve comicidade; pararam no seco a conversa e riram um para o outro, voltando a prestar atenção ao discurso.

Agora Reinaldo estava percebendo que a moça, de tem-pos em tempos, dava uma olhadela para ele. A sua confiança aumentava, até pensava: “Que moça linda e atraente. Tomara

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que não tenha namorado. Acredito que chegou a hora de come-çar a namorar. Ai, se fosse com ela, seria ótimo. Um presente de Deus”.

O palestrante anunciou um intervalo de quinze minu-tos, na verdade, de vinte. As pessoas se retiraram do recinto e Reinaldo, já inclinado a conversar com a jovem, esperou que ela se levantasse e, já fora do lugar, perguntou o nome da linda, que respondeu imediatamente e com simpatia:

– Vânia, e o seu?– Reinaldo. A propósito, o que vai fazer agora no intervalo?– Primeiro vou ao banheiro e depois vou dar uma passadi-

nha na cantina para comer alguma coisa.– Também tô com fome. Você se incomoda se eu te

acompanhar?– Ao banheiro? – falou com certa malícia.– Desculpe. Isso não, à cantina – respondeu um tanto sur-

preso com a sagaz inteligência de Vânia.Então cada um se dirigiu ao respectivo toalete. O pensa-

mento de Reinaldo viajava e cada vez mais se enamorava por Vânia. Fazia muito tempo não se interessava por alguém e agora sentia que algo estava prestes a florescer.

Saíram do banheiro e se dirigiram à cantina. A moça pediu uma empadinha e um suco de laranja. Ele pensou um pouco e também pediu uma empadinha e um suco de laranja. Em seguida, sentaram-se à mesa e, enquanto comiam, Reinaldo parecia ansioso com o tempo.

– Já se passaram quinze minutos. Acho que a palestra já vai recomeçar.

– Eu acho que demora um pouco mais que isso. Nunca é o horário certo. Lembre-se de que não estamos na Inglaterra.

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Vânia, apesar de mais nova que Reinaldo, parecia mais astuta, principalmente em relação a questões práticas, e ele sen-tiu isso desde o início. É de se supor que ele também era inte-ligente, porquanto percebeu isso, mas nas questões cotidianas, Vânia era bem mais versátil.

Após terem comido o lanche, voltaram ao auditório e se sentaram. O palestrante já estava se dirigindo à mesa e logo retomou a palavra. Verificando as anotações de Reinaldo, via--se o branco no papel. O rapaz já nem se recordava muito do que o palestrante estava falando. O restante da palestra passou enquanto o rapaz e a moça flertavam discretamente; ele, bem menos discreto, como é natural a quase todos os homens, que não se prendem a sutilezas desse tipo.

Esse foi o primeiro encontro do que seria uma série de outros. Quando Reinaldo foi embora, pensou no quanto tinham sido maravilhosos aqueles momentos com Vânia. Isso tudo aconteceu em uma sexta-feira. Na primeira noite, dormiu pensando na moça. Era estranho, mas a imagem daquela prendinha lhe vinha ao pensamento. Pode-se dizer que Vânia também estava pensando em Reinaldo, mas não com a mesma intensidade.

Reinaldo começou a arquitetar planos coloridos, com inúmeras idealizações, e imaginava uma maneira de ficar com a moça. Ele sonhava acordado com o beijo dela. Um tanto tímido, não era daqueles que “chegam chegando”. Reinaldo é bem mais cauteloso. O que ele não sabia é que isso nem sempre é bom. É uma questão de sorte, porque há aquelas que gostam desse tipo de caráter, como aquelas que gostam dos mais atira-dinhos. Ele estava com sorte, pois Vânia gostava mais da suti-leza de ser pouco a pouco conquistada. Não demonstrava, mas

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era um tanto romântica, porém nem um pouco melosa. Sua simpatia lhe era nata e seu sorriso era realmente algo à parte.

Naquele final de semana, o tempo passou bem devagar. Reinaldo não via a hora de encontrá-la de novo. De qualquer forma, o garoto passou o final de semana estudando e pensando em Vânia, na verdade, bem mais na última opção. No domingo, sua mãe, após voltar da missa, preparou um típico almoço de domingo, ou seja, arroz, macarronada, frango assado, maionese e salada. É claro que o pai de Reinaldo não dispensava uma cer-vejinha aos domingos, mas tomava bem pouquinho, era só para molhar o bico mesmo. Já a mãe, adorava Coca-Cola. Reinaldo não gostava de Coca e, além de não gostar, considerava a Coca- -Cola um dos ícones do capitalismo e não achava que a bebida era tão gostosa assim. “Enquanto os americanos tomam nosso suco de laranja, nós tomamos esse veneno calórico. Que despau-tério!” pensava. Já à mesa, iniciou-se um diálogo entre família.

– Reinaldo, tô achando que você está muito avoado estes dias. O que aconteceu, por acaso está apaixonado? – perguntou sua intuitiva mãe.

– Que bobagem, mãe. Estou normal, a senhora que está inventando moda.

– Olha, olha, Reinaldo. Se for arranjar namorada, vê bem com quem vai se enfiar. Lembre-se de que uma mulher pode ser a felicidade ou a ruína de um homem. Por isso, escolha bem.

– Puxa vida! É só começarem a supor que eu estou apai-xonado e já vem essa avalanche de indagações. Assim não dá. É por isso que não namoro mesmo. Imagine se eu trouxer alguém aqui, vai ser constrangedor, vocês dois não têm desconfiômetro.

Reinaldo respondeu assim, mas na verdade bem que estava pensando em namorar e trazer Vânia para casa. Só res-

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pondeu assim porque não tinha uma profunda intimidade com seus pais.

Passou o dia seguinte todo no trabalho contando as horas para ir à faculdade. Precisava ver Vânia. Quando chegou à ins-tituição, foi direto passar perto do pavilhão de Biologia numa tentativa de ver a garota. Estava muito ansioso, não a havia visto ainda e não sabia qual seria a reação dela, que de repente apareceu e lhe deu “oi”, mas logo se foi para a sala de aula. Durante a semana, não teve muito sucesso, porém espreitava e reparava na garota. Percebeu que ela ficava sempre na dela, não tinha muitas amigas e também não apresentava as futilidades usuais. Isso o atraía ainda mais.

No começo foi meio difícil ganhar a confiança da jovem, mas depois de um mês de perseguição, o resultado era este: todos os dias, antes de começar a aula, conversava com ela por uns quinze minutos; também conversavam durante o intervalo e, na saída, ele ficava com ela até que o ônibus dela chegasse.

Os “busões”, como diziam, saíam quase no mesmo horá-rio, com uma pequena diferença de dez minutos. O dela saía mais cedo. Ela morava em uma cidade trinta quilômetros à frente da dele. Portanto, em tese, o ônibus dela percorria o mesmo caminho que o dele e mais trinta quilômetros.

Durante mais dois meses eles tiveram todos os dias essas conversas, e a cada dia os dois ganhavam mais confiança um no outro. Ele, apesar de desejá-la muito, não falava nada a respeito de seus sentimentos, apesar de que seus olhos falassem por si. A situação estava ficando insustentável para Reinaldo, encontrava--se a ponto de surtar de desejo, tamanha era a vontade de tê-la.

Houve um dia em que faltaram quase todos os alunos e até alguns professores, parecia combinação. O resultado foi a facul-

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dade quase vazia. Reinaldo conversou com Vânia e descobriu que ela não teria aula naquele dia.

– E agora, o que você vai ficar fazendo até dar o horário de ir embora?

– Acho que vou ficar na biblioteca e aproveitar pra ler um pouquinho.

Soou o sinal e Reinaldo se dirigiu à sala de aula. Por um momento, sua ansiedade aumentara grandemente, pensava nela sozinha naquela biblioteca. Uma vez começada a aula, sua atenção ficou prejudicada, a ansiedade dos pensamen-tos não lhe deixava tranquilo. Repentinamente, pegou seu material e saiu da sala, nem quis responder chamada. Pensava em finalmente se declarar a Vânia; saiu às pressas. Passou no banheiro e olhou a aparência no espelho, arranjou um pouco os cabelos e se analisou. Como não se achava bonito, não ficou muito satisfeito com seu aspecto. Enquanto caminhava para a biblioteca, seu coração se acelerava com a crescente ansie-dade. O tempo estava fresco e chovia torrencialmente. Nem o barulho calmante da água diminuiu a ansiedade de Reinaldo. Continuou caminhando com passadas largas e apressadas, até que entrou na biblioteca. Reparou ao fundo da sala, sentada lendo um livro que não pôde identificar, Vânia. Ela não havia percebido a presença de Reinaldo até que ele chegou e deu um leve toque no seu ombro, ao que ela olhou para trás e deu um pulo de susto.

– Nossa, que susto! – exclamou Vânia com aquele susto de quem fora surpreendida em pensamentos proibidos. O susto fez com que o trabalho dos pulmões dela pudesse ser percebido por Reinaldo, que rapidamente imaginou que tivesse sido um susto de paixão.