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U N I E S P – F I T
F A C U L D A D E D E I T A P E C E R I C A D A S E R R A
CURSO DE LETRAS
ALEXANDRE MÁRCIO DA SILVA GOUVEIA
ARTE POÉTICA:
UM ESTUDO BIOGRÁFICO ENTRE EMINENTES POETAS BRASILEIROS
DO ROMANTISMO AO MODERNISMO UNINDO
REFLEXÕES SOBRE A LINGUAGEM
ITAPECERICA DA SERRA
2013
ALEXANDRE MÁRCIO DA SILVA GOUVEIA
ARTE POÉTICA:
UM ESTUDO BIOGRÁFICO ENTRE EMINENTES POETAS BRASILEIROS
DO ROMANTISMO AO MODERNISMO UNINDO
REFLEXÕES SOBRE A LINGUAGEM
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado a Faculdade de Itapecerica da Serra como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciatura Plena em Letras, Língua Portuguesa / Língua Inglesa e suas respectivas literaturas, sob a orientação da Profª Drª Margarida Cecília Corrêa Nogueira Rocha.
ITAPECERICA DA SERRA
2013
Bibliotecária responsável: Fernanda Scachetti CRB8 – 8/8754
469 Gouveia, Alexandre Márcio da Silva G124a Arte poética: um estudo biográfico entre eminentes poetas brasileiros do romantismo ao modernismo unindo reflexões sobre a linguagem / Alexandre Márcio da Silva Gouveia. Itapecerica da Serra: Faculdade FIT, 2013. 65 p. Monografia de conclusão do curso de Letras da Faculdade da FIT Orientadora: Prof. Margarida Cecília Nogueira Rocha 1. Arte 2. Poesia 3. Linguagem I. Título. II. Rocha, Margarida Cecília Corrêa Nogueira (Orient.)
CDD 469
GOUVEIA, Alexandre Márcio da Silva
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado a Faculdade de Itapecerica da Serra como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciatura Plena em Letras, Língua Portuguesa / Língua Inglesa e suas respectivas literaturas.
COMISSÃO EXAMINADORA
Assinatura : _______________________________________________________
Prof. Dr. : _______________________________________________________
Assinatura : _______________________________________________________
Prof. Dr. : _______________________________________________________
Assinatura : _______________________________________________________
Prof. Dr. : _______________________________________________________
DEDICATÓRIA
... a todos os poetas & poetisas
despertos ou por despertar ...
AGRADECIMENTOS
Dirigimos nossa auspiciosa gratidão a Margarida Cecília Corrêa Nogueira Rocha, pela orientação prestada ao final da pesquisa,
e que tanto nos sustentou uma grande relação de respeito e estima.
Agradecemos a Márcia Regina Fogaça, pelas incomensuráveis diretrizes fornecidas ao pré-projeto,
com as quais pudemos dar partida às investigações.
Sinceros agradecimentos ao Antonio Carlos Silva de Carvalho, pela rigorosa revisão do texto, trazendo-nos um critério apurado da língua.
Finalmente, a nossa gratidão se dirige a todo o corpo docente da FIT,
modelo reconhecedor do que a linguagem é capaz.
A sabedoria búdica nunca foi uma árvore O espelho da mente não está em parte alguma
Se, desde o princípio, nada existe Onde irá se acumular o pó ?
Huineng
RESUMO
O conteúdo desta pesquisa consiste – pressupondo à poesia a expressão
culminante na arte da palavra – numa investigação dos pontos semelhantes que
estão contidos nos poetas brasileiros de prestígio, cujas literaturas tornaram-se
valorizadas e preservadas ao longo da história. Sinaliza uma análise teórica sobre a
relação que há entre a perspectiva psicolinguística propiciada pela linguagem e o
meio ambiente sociointerativo no qual se encontra o indivíduo. Por tal motivo, o
sujeito, a linguagem e a literatura poética formam o objeto conjunto de estudo em
questão. O desenvolvimento do trabalho apresenta diversos pontos de vista de
autores renomados vinculados à psicologia, filosofia e poesia que contribuem
sobremaneira para o endereçamento do estudo, dentre os mais significativos: Ezra
Pound, Lev Vygotsky, Freud, Rousseau, Schopenhauer, Amit Gotswami e Rudolf
Steiner, sendo tomados como instrumentos norteadores da pesquisa os
pensamentos de Guy Claxton, Gary Snyder, e Carl Gustav Jung. Em nosso
embasamento teórico, destacamos a importância da poesia como matéria sumária
de conhecimento altamente competente: a reflexão sobre o poder que a linguagem
pode exercer no interrelacionamento do sujeito com seus mundos. Tendo em vista
os procedimentos teórico-metodológicos adotados pela sondagem biográfica e a
análise estatística resultante da coleta de dados, não hesitamos em afirmar que os
potenciais desta monografia são ígneos projéteis à construção de insólitos saberes,
bem como ao aprimoramento das sensibilidades humanas.
Palavras-chave: arte; poesia; linguagem.
ABSTRACT
The content of this research consists – presupposing to the poetry the
culminating expression in the word’s art – in an investigation of the similar points that
are contained in the Brazilian prestige poets, whose literatures were valued and
preserved along the history. It signals a theoretical analysis about the relationship
that there is among the perspective psycholinguistic propitiated by the language and
the environment partner-interactive in which is living the individual being. For such a
reason, the subject, the language and the poetic literature form the studying object
here. The work’s development presents several point of view of renowned authors
linked to the psychology, poetry and philosophy that contribute significantly to the
address of the study, among the most significant: Ezra Pound, Lev Vygotsky, Freud,
Rousseau, Schopenhauer, Amit Gotswami and Rudolf Steiner, and as orienting
instruments of the research were taken Guy Claxton's thoughts, as well as Gary
Snyder, and Carl Gustav Jung ones. In our theoretical base, we detached the
importance of the poetry as summary matter of highly qualified knowledge: the
reflection about the power that the language can exercise in the interrelationship of
the subject with their worlds. Due the theoretical-methodological procedures adopted
by the biographical survey and the statistical analysis resulting from the collection of
data, we didn't hesitate in affirming that the potentials of this monograph are igneous
projectiles to the construction of unusual knowledge, as well as to the improvement
of the human sensibilities.
Keywords: art; poetry; language.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................
1. ARTE E POESIA NA HISTÓRIA .............................................................
1.1 Sociedade e indivíduo: dois cursos paralelos ................................
1.2 O curso do pensar poético .............................................................
2. O EIXO: INDIVÍDUO, LINGUAGEM, MUNDO .........................................
2.1 O entorno inerentemente humano .................................................
2.1.1 Portadora de signos ....................................................................
2.1.2 A complexidade do agregado linguístico ....................................
2.1.3 Organizadora de processos cognitivos .......................................
2.2 O paradoxo da linguagem .............................................................
2.2.1 Da linguagem não vernácula aos impulsos do corpo .................
3. A RETÓRICA POÉTICA ..........................................................................
3.1 Harmonia sígnica e musicalidade ..................................................
3.2 A transcendência ideológica ..........................................................
3.3 Ensina-se poética? ........................................................................
3.4 Anonimato como recurso ...............................................................
4. O PROCESSO DA PESQUISA ...............................................................
4.1 A discussão da problemática .........................................................
4.2 Objetivo ..........................................................................................
4.3 Escolha das variáveis ....................................................................
4.4 Hipóteses .......................................................................................
4.5 Análise estatística dos dados ........................................................
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................
7. APÊNDICE ..............................................................................................
7.1 Notas .............................................................................................
7.2 Análise biológica de Ricardo Reis .................................................
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63
INTRODUÇÃO
O momento mais significativo no curso do desenvolvimento intelectual, que dá à luz as formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata, ocorre quando a fala e a atividade prática, duas linhas de desenvolvimento que antes eram completamente independentes, convergem.
L.S. Vygotsky 1
As origens deste estudo surgiram da reflexão e da observação no vasto
território da literatura. Inicialmente, refletimos a respeito dos escritores de renome no
âmbito nacional, pois alguns se inclinavam à poética desde tenra idade, enquanto
outros chegaram mesmo a evitá-la por toda a vida ou afloraram-na em idade
avançada. De uma espontânea auto-observação, indagamos sobre o real papel da
linguagem para a compreensão dos mundos. Paralelamente, o nosso candente
interesse nasceu ao depararmo-nos com a abrangência da tessitura poética no
parâmetro global, e, então, contemplamos as possíveis associações entre o
potencial da linguagem e o meio-ambiente do artista.
Há tempos, havíamos despertado a arte poética. Ainda assim, perguntávamos
que tipos de similitudes poderiam vigorar entre os poetas de destaque. Para tanto,
centramo-nos na avaliação do modus vivendi de certas personalidades literárias por
meio da metodologia de cunho biográfico.
Devido a nossa larga fé na riqueza e envergadura do assunto, fez-se
inevitável atravessar o referencial da arte literária pelo ramo da psicologia,
antropologia e sócio-linguística. Acreditamos em se tratar de uma temática
inerentemente ontológica porque essas vertentes disciplinares foram aparecendo ao
longo dos estudos, vestimentas que moldaram diversas reflexões a respeito da
linguagem.
Soubemos que a informação não poderia substituir o verdadeiro
conhecimento, pois o artista não é aquele que detém os dados, mas aquele que se
posiciona na diacronia do tempo. A arte de poetar, sendo um campo de qualidade
ontológico, a que porventura se propicie à existência humana o despertar para as
criações de novas linguagens e saberes, sustentamos a hipótese de que este
material pode enobrecer a educação das sensibilidades na formação da espécie
humana.
1 Citado por CLAXTON, 1995, p. 81.
Descartamos a investigação dos valores ou medição da ordem de engenharia
quanto à poiesis: se ela é, ou não, boa para o sujeito ou, ainda, o que pode ser feito
para despertar essa arte. Na prática, tais módulos são imperscrutáveis porque a
pluralidade de fatores sócio-econômicos que estruturam o criador do texto apresenta
variáveis interminavelmente infinitas. Apenas gostaríamos de incentivar as
possibilidades fecundas que estão localizadas no terreno da poética para o plantio e
cultivo dos novos saberes, averiguando o poder de transformação que a linguagem
pode abranger na formação de um ser humano.
Na tentativa de elucidar até onde se pode chegar com o reino das palavras,
enveredamo-nos por coordenadas insólitas, e descobrimos que muito do que
pensávamos a respeito do que a linguagem podia propiciar, não era bem assim.
Esse achado nos colocou na posição de superior cautela. O que torcíamos ser
totalmente favorável a essa autonomia nos atirou num ponto de interseção com
novas reflexões sobre a dialética conceitual. Os conceitos estão inextricavelmente
tão próximos à nossa constituição biológica quanto imaginávamos.
Nossa rota de fundamentação teórica alterna-se em três pilares principais.
Primeiro, por meio dos estudos de Claxton, fez-se uma investigação psicolonguística
e antropológica da linguagem, tecendo a mente-cérebro com o mundo. Em seguida,
as referências literárias de Pound, e Snyder, propiciam argumentos seguros em
relação à poética. Finalmente, defendemos a linha de raciocínio segundo a
psicologia jungiana, motivo pelo qual suas análises abarcam uma ampla perspectiva
psicológica das etnias ao longo do planeta. Outros autores, tais como Vygotsky,
Rousseau, Freud, e Schopenhauer mantêm a trajetória de pensamento aqui vigente.
Após justificar nesta introdução os caminhos que nos levaram às origens e
cursos da pesquisa, informamos que os dados estatísticos referentes à mesma
serão publicados no quarto capítulo. Falaremos a seguir sobre os tópicos a serem
estudados nos capítulos pertinentes.
O primeiro Capítulo será dedicado à arte e à poesia ao longo da história.
Refletiremos sobre o papel da poética na história da civilização; abordaremos o
pensamento das artes segundo algumas teorias, anexando esse fundamento à
prática didática. O objetivo fulcral deste capítulo é procurar delinear a autonomia da
poesia, no sentido sincrônico ou diacrônico que se pode conceber na história.
O Capítulo seguinte associará três substantivos específicos: o indivíduo, a
linguagem e o mundo. Mencionaremos os aspectos fundamentais da linguagem com
o objetivo de orientar até onde podemos chegar com ela. Com isso, atentaremos
tanto às luzes que produzem a linguagem, como também às possíveis sombras
inconscientes; os conceitos que jazem entre o indivíduo e o mundo, bem como o que
pode acontecer quando se sabe, ou não se sabe, um idioma não vernáculo.
No terceiro Capítulo escolhemos alguns aspectos fundamentais que,
porventura, possam favorecer à classificação de uma boa literatura poética. O
principal objetivo é apresentar essa referência para a construção de melhores
sensibilidades artísticas.
O último Capítulo é reservado à análise de dados biográficos e à exposição
dos resultados segundo cada agrupamento.
Ao fim de nosso trabalho refletimos sobre os percursos atingidos e as
plataformas de pensamento que podem ser contempladas, para que, em nossa
busca como professores engajados na permanente linha da linguagem, possamos
seguir com as melhores e mais sábias escolhas.
_ I _
ARTE E POESIA NA HISTÓRIA
Algumas pessoas fazem história e outras constroem uma casinha no subúrbio.
Carl Jung
Nos primórdios do que conhecemos historicamente por civilização, a língua e
seus signos têm sido uma ferramenta comum aos integrantes de cada comunidade
aglomerada – a arte e a linguagem sempre estiveram aliadas à existência humana
como meios de significar a realidade.
Nesse panorama, é impraticável falarmos sobre o curso da arte poética sem
que se faça uma breve análise antropológica da civilização. Se quiséssemos
mencionar algo sobre evolução hominídea, teríamos de voltar à casa dos quatro
milhões de anos, e, nessa escala, as evidências culturais se perdem no tempo.
A citar uma perda recente, Moisés (1982, p. 22) nos diz que as cantigas
portuguesas, arte de poetar exacerbada na complexidade de imagens líricas, eram
memorizadas pelos trovadores para fins de declamação e raramente foram
transcritas em registros. Decerto houve, antes das cantigas, considerável
criatividade lírica, infelizmente desaparecida.
Assim sendo, de que forma a cultura poética, tal como a conhecemos hoje,
deve ser pensada? Há quarenta mil anos, toda a capacidade cognitiva humana já se
encontrava desenvolvida. Provavelmente éramos mais inteligentes, já que as
dimensões do cérebro diminuíram um pouco, daquele ponto do Cro-Magnon.
Ninguém sabe por que o atrofiamento cerebral ocorreu; talvez o processo de
civilização do indivíduo tenha sido a causa, argumenta Snyder:
A maior parte do seu interessante curso de vida, o ser humano passou em culturas “primárias”, como caçador e coletor. Há aproximadamente 12 mil anos, a agricultura começou a desempenhar um pequeno papel em alguns cantos do mundo; mas só nos últimos três mil anos é que a agricultura foi, de fato, difundida mais amplamente. A civilização representa uma parte muito pequena da existência humana – e a alfabetização representa uma parte ainda menor, uma vez que foi só nos dois últimos séculos que alguma proporção considerável de qualquer região civilizada a experimentou. Portanto, a literatura oral – a balada, a lenda popular, o mito, as canções (temas da etnopoética) – foi a maior experiência literária da humanidade. Quando compreendemos isso, torna-se ainda mais pungente o fato de que essa riqueza está sendo dissipada. (SNYDER, 2005, p. 221)
Deste modo, é necessária exímia cautela no questionamento da linguagem
em pauta na poética humana. A literatura etnopoética da história, que gira entre
oralidade, semiótica e textualidade, sofreu novas marcas, em especial, com o
surgimento do sistema pedagógico. No Brasil, embora os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN, 1997) tenham estabelecido diretrizes teóricas, os resultados
educacionais ainda não foram, de fato, atingidos, mesmo após 15 anos de sua
implantação. A população acabou por vislumbrar um cenário de discentes
concluindo o Ensino Médio da rede pública com baixíssimo aproveitamento efetivo.2
Sob essa ampla perspectiva, para trazer o tema da linguagem em termos
qualitativos requer que se avalie a interdisciplinaridade no processo pedagógico,
requer que se revejam os efeitos a curto e longo prazos que são edificados pelos
veículos de comunicação de uma sociedade, bem como a análise do entrelaçamento
das línguas, abarcando a relação interdependente de toda a humanidade: o uso de
termos que ultrapassam fronteiras geopolíticas.
É impossível conceber qualquer mundo de modo isolado, sem código de
comunicação, seja em termos de seu funcionamento, ou em termos de seu
aglomerado estrutural. Cada mundo possui suas próprias linguagens, suas próprias
matemáticas, eles são totalmente diferentes em suas especificidades, porém
absolutamente complementares. Talvez a verdade fundamental da interdependência
sintetize uma resposta satisfatória – metafísica ou ontológica – para a complexidade
do mundo. Sherrington diz:
A vida, como sistema de energia, está tão embutida no tecido da superfície da Terra que supor, mesmo brevemente, uma vida isolada do resto do mundo terrestre, produz uma imagem distorcida demais para se parecer com a vida. Tudo se ajusta simultaneamente. (1963, p. 79, citado por CLAXTON, 1995, p. 38)
Snyder (2005, p. 253) identifica essa visão multifacetada do ecossistema
comparando-o a um tipo de mandala. Cada figura tem um papel hierárquico a
representar, mas todos os participantes são iguais em relação ao conjunto. Doguen
(Ibid., p. 275) ensinou “Impor sua própria experiência sobre o mundo dos fenômenos
2 O quadro do Ensino Fundamental Público no País agravou-se com a sanção da Lei da Progressão Continuada (1996), assim desencadeando o descaso à seriedade das avaliações e o crescente número de analfabetos funcionais. A solução deste imbróglio é, em sua maior grandeza, de ordem Política Federativa, cuja celeuma dispensa comentários, aqui.
é ilusão. Quando o mundo dos fenômenos aparece e experimenta a si mesmo, é
Iluminação”. A linguagem modula, por si mesma, esse entrelaçamento dos mundos.
Esta condição reforça que a privação da intercomunicação exclui, de
imediato, os caminhos à sobrevivência estrutural e psíquica3 de qualquer ser vivente.
Em tese, a vida só é possível devido a essa arte, e esta, no meio humano, só é
possível através de uma mentalidade sociointeracionista. Tal como o sistema
nervoso de um animal (POUND, 1973, p. 36), a linguagem transmite os estímulos e
respostas; e pode atrofiar-se caso a literatura de uma nação entre em declínio.
Igualmente, na ótica de Claxton (1995, p. 57), assim como está registrado em
nossos nervos que somos sistemas biológicos inextricavelmente entrelaçados, a
linguagem binária de nossos corações nos leva a participar. Nesse caso, a matéria-
prima do cérebro se estende à sociabilidade humana. A compreensão adequada do
funcionamento do comitê mente-cérebro4 e da linguagem nos seres humanos será
diretamente proporcional à abrangência da percepção multifatorial; a considerar
sistemas no conjunto de sistemas.
Por conseguinte, a habilidade linguística em sua expressão artística está,
principalmente no território etnopoético, intimamente relacionada a fatores culturais.
Ora, se considerarmos que somente a partir do século XIX a civilização passou a
difundir o emprego do sistema educacional, o tratamento da linguagem parece ter
ingressado numa etapa de insólito aprendizado da humanidade. Nesse fim, a
história nos fez indagar: quais relações existem entre letramento e qualidade da
linguagem, ou casta social e nível de linguagem?
A possibilidade de a qualidade poética ser diretamente associada às camadas
privilegiadas não foge à realidade. A arte é inacessível às massas desprovidas de
meios educacionais, pois se acham empenhadas ao trabalho extremo (FREUD,
2003, p. 6). A arte poética, como nenhuma outra, propicia satisfações substitutivas
sentidas no rol das abstinências culturais; experiências emocionais de alto valor no
eixo de sua identificação.
3 Se entendermos como psique, em sua ampla acepção linguística, como a qualidade de estar vivo, amebas e protozoários, por exemplo, são dotados de tanta psique quanto os seres humanos. E nesse sentido, é natural que a sobrevivência de qualquer ser vivo dependa de algum código mediador das comunicações entre os universos, interno e externo. 4 No subcapítulo O cérebro sem o eu, diz: “Na colônia de polvos [referente às redes neurais, grifo nosso], não existe grupo privilegiado com status especial ou poderes especiais.” O sistema como um todo – cérebro, corpo e mundo – deriva da conexão do conjunto de situações e prioridades envolvidas nas atividades do ser humano.
Conforme a visão de Lévi-Strauss (TERWILLIGER, 1974, p. 103), as origens
da escrita podem estar ligadas ao desejo de poder social. O acesso à escrita está
vinculado a um modo diferenciado de status social, e o artista, indiferente à sua
casta social, ocupa alguma posição privilegiada de poder de leitura da linguagem.
Pound (1973, p. 45) nos orienta dizendo que a sabedoria poética está
vinculada a uma noção de espaço multicultural, e nem todos se lançam para além
de sua terra natal, quando comenta “Quando se trata de poesia, há uma porção de
gente que nem mesmo sabe que o seu país não ocupa TODA a superfície útil do
planeta. A simples ideia disso parece um insulto a tais pessoas”.
1.1 Sociedade e indivíduo: dois cursos paralelos
Segundo os moldes de interatividade sócio-construtivistas dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN, 1998), toda abordagem artística depende da avaliação
do docente em relação à situação, sumariamente específica. A modulação da prática
didática à arte da poesia abrange ponderações ininterruptas quanto à realidade do
nível de ensino-aprendizado e aos recursos pedagógicos disponíveis.
No horizonte de dois hemisférios, língua e linguagem, a orientação do ensino-
aprendizagem navega em função das necessidades vigentes de cada grupo social,
frequentemente encontrada somente durante a intervenção didática. Não há uma
tabela que se deva seguir. Em nossa prática de docência, constatamos níveis
díspares de linguagem, tanto entre indivíduos da mesma escola quanto do mesmo
bairro. O melhor emprego didático solicita uma análise do ambiente específico. Os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) fornecem diretrizes:
Há um aspecto positivo na simples veiculação das diferentes formas de pensar e agir sobre o mundo para o reconhecimento da existência de outras possibilidades de relações humanas, de organização social, no que se refere a valores, símbolos, linguagens, representações sociais, relacionamentos, assim como a interação com o ambiente, mediada por diferentes técnicas e segundo outros valores. (PCN, 1998, p. 218)
O homem constrói a história da arte entrelaçando os valores sociais com o
meio-ambiente, mas a arte não depende impreterivelmente da plataforma
humanoide para se manifestar, já que a natureza prova sua ininterrupta criação
artística nas montanhas e nos rios. Em que medida os elixires artísticos devem ser
postos à comercialização? 5
Essa reflexão nos levou à indagação: a poesia é dispensável? Segundo a
contradição de Jean Cocteau (FISCHER, 1979, p. 11), a poesia é-nos inseparável,
mas uma parcela de nós, ainda que por um certo período indefinido, não sabe qual a
sua utilidade. O indivíduo é capturado por um paradoxo ou niilismo à poética o qual
ele deve solucionar por si mesmo.
Fischer (1979) esclarece que a arte é um terreno de ressignificação da
realidade em que se busca o equilíbrio perfeito entre o mundo externo e interno, fato
e fábula, mito e realidade objetiva; a cristalização dos signos que expressa algo
além do tempo. Verificamos (Ibid., p. 16) a profunda razão de ser da arte na história,
com suas aspirações político-sociais particulares de cada época. Enquanto os
fenômenos naturais exalam arte no ritmo de suas leis, o ser humano procura
transcender o tempo com a modulação de suas estruturas físicas e psíquicas:
Para conseguir ser um artista, é necessário dominar, controlar e transformar a experiência em memória, a memória em expressão, a matéria em forma. A emoção para um artista não é tudo; ele precisa também saber tratá-la, transmiti-la, precisa conhecer todas as regras, técnicas, recursos, formas e convenções com que a natureza – esta provocadora – pode ser dominada e sujeitada à concentração da arte. A paixão que consome o diletante serve ao verdadeiro artista; o artista não é possuído pela besta-fera, mas doma-a. (FISCHER, 1979, p. 14)
Acrescentemos, pois, que há, na humanidade, um consenso quanto à
qualidade artística em seu funcionalismo. Schopenhauer (2001, L.III, p. 67) delega
que o exclusivamente raro, grande e verdadeiro poeta, não é o fazedor de rimas e
inventor de histórias. Pound (1973, p. 42) classifica a competência dos escritores em
seis grupos.6 As alusões poéticas de um eu lírico, no plano textual, expõem
características vívidas que possibilitam separar os bons dos maus artistas
(LEIRNER, 1983, p. 313). Outrossim, Pirsig (1984, p. 2) refere-se à qualidade como
um aspecto essencial da experiência: “A Metafísica da Qualidade [...] é a primaz
5 UNESCO, 1976: a carta do Índio Chefe Seattle, da tribo Suquamish, Estado de Washington, intitulada O Manifesto da Terra-Mãe, exemplifica os potenciais expressivos da linguagem que, em prosa, se estendem bem próximos aos padrões da cultura letrada. 6 Inventores (a descoberta de novos processos); Mestres (o domínio dos processos); Bons escritores sem qualidades salientes (a sorte de nascer numa era de ouro dos processos literários); Beletristas, (a especialização dos processos); Diluidores (a incapacidade de dominar os processos); e, Lançadores de moda.
realidade empírica do mundo... Mas presenciar isso, claro, requereu um enorme
trabalho...”.
Diante da arte, Bosi (1986, p. 8) aponta que o ser humano tem se inclinado,
desde a pré-história, a um estado de perplexidade e contemplação profundo. Essa
atividade primitiva, ao criar objetos e provocar certos estados psicológicos numa
coletividade, deixa sempre uma parcela de sentido ainda por animar sua existência
nas ações.
Destarte, enorme entrelaçamento há entre arte e o anseio humano em
posicionar-se no curso da história. As reflexões advindas do impacto de uma obra
fazem com que o homem avance ou recue no tempo: sua perplexidade diante da
capacidade de imitar o natural ou de superar limites. Disso se pode refletir que a
elasticidade e abrangência do tempo é o potencial latente que a arte exala. Muito
embora o artista possa estar cercado de crises sociais, a precocidade o cerca.
O mundo está sujeito a crises, a arte não (LEIRNER, 1991, p. 84). O que há
de contemporaneidade em arte é a previsão do que virá ao mundo. Obras
renascentistas apontam que, após um período de transição de valores estéticos
ainda em luta pela concretização, podemos dizer que a arte de hoje se resume num
novo mundo. Provavelmente o mundo não tenha progredido devido aos sistemas de
crença, mas, indubitavelmente, um mundo distinto.
O cenário moderno, todavia, passou a ser caracterizado pelo excesso de
informações, resultado do efeito cumulativo dos conhecimentos na medida que a
história avança. Proporcionalmente, a quantidade de bits de informação infiéis
também se elevou. Inferimos, nessa instância, que o conhecimento perdeu lugar
para a dispersão de informações. Ao convivermos com a arte, também há uma
gigantesca avalanche de informações, mas a exímia qualidade dos bits de
informação nunca obscurece nosso senso perceptível. Ao contrário, provoca um
estado progressivo de sofisticação metaexistencial; Leirner diz:
Afinal, a história da arte – e aqui cabe um parêntese para lembrar o trabalho brilhante de Suzi Gablik no seu discutidíssimo Progress in Art – pode realmente ser examinada à luz do modelo cognitivo piagetiano, segundo o qual essa história seria não apenas um agregado de estilos individuais ou tendências que simplesmente se acumularam e acumulam, mas um sistema integrado que manifesta uma estrutura ordenada de acontecimentos. A arte, assim como a ciência, segue um caminho evolucionário, que, como Gablik prova, sempre parte de um estágio de desenvolvimento para outro, senão
mais alto, pelo menos mais sofisticado de integração perspectiva. (LEIRNER, 1991, p. 89)
O embasamento supracitado nos levou a ponderar sobre uma pesquisa
histórica e cultural que atesta alterações de um indivíduo nos modos de percepção
sobre a abrangência do seu tempo ou a perda de noção da riqueza deste. A linguista
Norberg-Hodge (CLAXTON, 1995, p. 222) mostrou os efeitos da intromissão da
civilização na sociedade Ladakh, isolada próximo ao Himalaia. Até a década de
1960, essas pessoas não distinguiam trabalho de lazer: eram pobres, porém felizes,
e tinham tempo para fazer uma festa durar duas semanas. A mudança de atitude
causada pela cobiça do excesso ou riqueza, que tomou lugar da meta do suficiente,
levou-os ao mito de desfrutar de um lazer prometido na raia do consumismo,
resultando em festas de um dia ou menos: a perda da noção dos valores
fundamentais, antes cultivados.
Observando esses dados históricos pensamos que, enquanto o ícone da arte
permanece puro e intocável no modus vivendi simples ou na tradicional transmissão
dos mitos e fábulas, a célere era moderna, porém, forneceu ao homo sapiens novos
paradigmas, jamais testemunhados. As pressões da sociedade consumista
tornearam o padrão de vida, e, consequentemente, a depressão, segundo a
Organização Mundial de Saúde (OMS), apresenta-se como a segunda maior
patologia mundial. Nas reflexões de Santos (2001, p. 18), se as facilidades
tecnológicas aumentaram, viver se tornou progressivemente complicado. Freud
argumenta que tal desconforto advém de um estado de insatisfação minuciosamente
subjetivo:
Parece certo que não nos sentimos confortáveis na civilização atual, mas é muito difícil formar uma opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes, e sobre o papel que suas condições culturais desempenharam nessa questão. Sempre tendemos a considerar objetivamente a aflição das pessoas – isto é, nos colocarmos, com nossas próprias necessidades e sensibilidades, nas condições delas, e então examinar quais as ocasiões que nelas encontraríamos para experimentar felicidade ou infelicidade. [...] A felicidade, contudo, é algo essencialmente subjetivo. (FREUD, 2004, p. 17)
Destarte, a causa não está, precisamente, na civilização. Há um mal-estar
natural da espécie humana, seu sofrimento por simplesmente existir diante do
incerto. Freud (Ibid., p. 14) espantou-se diante da hipótese sustentada no abandono
do modo de vida civilizado para regressar às condições primitivas, responsabilizando
a civilização pela desgraça pessoal; pois todas as coisas que procuramos com o
intuito de proteger-nos das ameaças do sofrimento fazem parte dessa mesma
civilização.
Snyder (2005, p. 221) observa que a expansão demográfica da sociedade
forneceu proteção ao indivíduo das demandas de velocidade, habilidade e
conhecimento que eram comuns no Paleolítico Superior. O modus vivendi daquela
época exigia uma agilidade arcaica devido ao contato corporal direto com o mundo
natural que o ser humano tinha de enfrentar. Atualmente temos a mesma matéria-
prima da mente e do corpo de outrora para adaptarmo-nos em um mundo num ritmo
de mudanças quase inexorável.
Na época de Goethe uma paixão arrebatadora pela natureza grassava, pela
paisagem primitiva e por tudo que é selvagem em qualquer rol das artes, mas ele
nutria uma afiada antipatia por tudo isso. Ao mesmo tempo em que reconhecia a
verdade nas manifestações da natureza, ele catapultava o antropoide acima dela
quando dizia “nada fala mais alto do que as marcas deixadas por um homem bom e
inteligente, do que a verdadeira arte, que é tão coerente quanto a natureza”.
(BAKHTIN, 2010, p. 242)
Rousseau reverenciava os elementos naturais em sua época. Durante sua
peregrinação a Turim, deliciou-se com as paisagens do campo e a povoou com a
fertilidade da imaginação. Em Confissões, imaginava “banquetes nas cabanas
rurais, [...] vasos com leite e creme de leite nas montanhas, uma ociosidade
encantadora paz, simplicidade, prazer de perambular sem saber para onde”. (Ibid. p.
255).
Amalgamados aos elementos naturais, suspeitamos, aqui, que a ausência de
certas provas físicas na natureza podem ter diminuído as referências psicológicas
que traziam o homem ao estado de percepção saudável, e primitiva, sobre a
abrangência do tempo. Na pós-modernidade, raríssimas são as chances de
presenciarmos uma árvore com mais de 1500 anos7. Esses registros milenares – tal
como se emana, em algum nível diferenciado, nos patrimônios históricos ou
artísticos – não mais abundam como outrora, e o resultado é, sugerimos, a
7 No Parque Estadual do Vassununga, Estado de São Paulo, encontra-se a mais idosa árvore do Brasil, um jequitibá-rosa com idade estimada em 3.050 anos. Mede 49 metros de altura.
inconsciência a essa linguagem simbólica e não verbal, a qual Jung (2005, p. 224)
tanto se refere.
Esta perspectiva ecológica e ‘selvagem’, que pode propiciar ao homem uma
percepção primitiva do tempo, não significa, contudo, o desligamento do seu
temperamento agressivo. Os povos primitivos também são condicionados a
determinados padrões proporcionais àqueles de uma civilização que é usuária da
linguagem literária. Observamos os sistemas de manipulação presentes em toda
parte, quando Sargant sugere:
O problema fisiológico complica−se ainda mais com o conhecimento de que os tipos temperamentais tanto do homem como do animal irracional raramente são puros. Pavlov descobriu que muitos de seus cães eram misturas de quatro temperamentos básicos; e o mesmo parece aplicar−se aos seres humanos. Em culturas primitivas, onde a vida é dura e o condicionamento rigoroso, é provável que os sobreviventes sejam mais temperamentalmente padronizados do que em sociedades mais civilizadas e assim disciplinados por métodos menos variados. Pode−se mesmo sugerir que, quanto mais elevada a civilização, tanto maior o número de indivíduos “normais” cronicamente ansiosos, obsessos, histéricos, esquizóides e depressivos que a comunidade pode dar−se ao luxo de suportar. (SARGANT, 2002, p. 111)
Por conseguinte, a espécie humana comporta-se, em suas estratégias físicas
e psicológicas, de forma duvidosa quanto ao valor que dá à história de sua
comunidade local. Claxton (1995, p. 72) menciona a respeito do grau de egoísmo ou
altruísmo que o membro deve ter em períodos de escassez: quando “nós” somos
ameaçados, o indivíduo questiona suas lealdades. Quem quer ficar na mão?
Contanto, demanda-se um tipo de organização social, e até de hierarquia: o
desenvolvimento de formas mais complexas de comunicação. Resolvemos frisar a
poética como uma delas.
À medida que a população de uma comunidade aumenta, a pertinência da
sofisticação da linguagem torna-se mais evidente. Dunbar (Ibid., p. 77) sugeriu, com
base em evidências arqueológicas, que as primeiras sociedades primitivas se
reuniam em torno de 120 a 150 pessoas.8 Quando este número é excedido, as
hierarquias se tornam mais formais e os sistemas legislativos e penais tornam-se
indispensáveis. Disso verifica-se que o trajeto da exigência da qualidade da
linguagem é diretamente proporcional à densidade demográfica. Freud (2004, p. 16)
8 Segundo os huteristas, fundamentalistas religiosos dos EUA, se um grupo ultrapassa esse número não consegue manter a comunidade harmoniosa e isenta de crimes em virtude da própria pressão individual.
explica sustentando que os benefícios advindos do avanço científico da civilização
impõem condições proporcionalmente difíceis a cada um deles.
Jung (2005, p. 224), de modo excepcionalmente poético, argumenta que o
mundo tornou-se desumanizado por meio do entendimento sumariamente científico
e afastou o homem de sua condição selvagem, da simbologia basilar que emana na
experiência emocional com os eventos naturais: “Nenhum rio contém um espírito,
nenhuma árvore simboliza a vida de um homem [...] A sua comunicação imediata
com a Natureza desapareceu para sempre”. Coloca-nos diante de um sentimento
elevado à essência empírica imediata dos fenômenos, tal como as árvores milenares
são portadoras do poder de transmitir; percepções pouco usuais ao senso comum.
Embasada nessa forma, uma sociedade demasiadamente afastada dos
domínios naturais tende a levar, com mais facilidade, qualquer indivíduo a padrões
de condicionamentos atípicos. Jung, em reunião com o chefe Ochwiay, dos índios
pueblos, encontrou indícios do ponto vulnerável da civilização. Perguntou-lhe porque
pensava que todos os brancos eram loucos. E o diálogo prosseguiu:
–– Eles dizem que pensam com suas cabeças. –– Mas naturalmente! Com o que pensa você? – perguntei admirado. –– Nós pensamos aqui – disse ele, apontando o coração. “Esse índio pusera o dedo naquilo em que somos cegos”.
(JUNG, 2006, p. 293)
É difícil definir em que grau ou modo alguém pode se encontrar condicionado
por seu ambiente – agrário ou metropolitano – ao menos que os aspectos subjetivos
o levem a questionar sobre as formas de manipulação de que essa pessoa participa.
Igualmente à arte, sugerimos que o modo empírico a que nos submetemos e somos
submetidos está sob controle do sujeito. Drummond, numa crítica literária dirigida a
Margarida Botafogo, endossa que toda vez que lhe pediam opinião sobre a poética
de alguém, entrava em pânico; não sentia autoridade para julgar o que é ou deve
ser; alva essência de uma individualidade tal como se manifesta: “Os juízos
pessoais são tão precários! Os poetas não obedecem à orientação alheia. Não
podem obedecer. A mágica brota do fundo do ser. Pouco importa que seja ignorada
de uns, mal vista de outras.”9. Tecendo os harmônicos pontos de vista entre Jung e
9 ANDRADE, Carlos Drummond, www.antoniomiranda.com.br – poetas do Rio de Janeiro: Margarida Botafogo – acesso em 01/04/2013.
Drummond, em que espírito e sujeito são o foco do pensamento em questão, os
estudos mostram o quão individual pode se concentrar a arte e sua linguagem.
Para tanto, Moisés (1982, p. 20) nos direciona embasando que o simples
enquadramento do artista na história não significa que ele seja obrigado a viver a
tendência de estilo, colocada em primeiro plano. A arte está condicionada por seu
tempo (FISCHER, 1979, p. 17); representa a humanidade nas aspirações que estão
na história. Mas a arte transcende também às condições históricas, porque diz
respeito a algo muito além do que aquelas representam.
Pois Aristóteles (2003, p. 43) registra que não cabe ao poeta descrever
minuciosamente a sucessão dos acontecimentos, e sim o que poderia ter sucedido,
valendo-se do grau representação mímica ou necessidade. Poeta e historiador não
se distinguem, já que este escreve em prosa e aquele em verso. Reviver os
processos religiosos e espirituais por meio dos escritos dos historiadores e poetas
abre um espaço de compreensão fora de possibilidade da vida real (BODEI, 2000, p.
87). Porém, a poesia é de caráter mais filosófico e elevado que a história; enquanto
a poética jaz no universal, o leito da história é particular.
Schopenhauer (2001, p. 75) diz que o poeta apreende a ideia e a essência da
humanidade e a objetividade da coisa-em-si em seu grau mais elevado do que o
historiador, uma vez que o cerne de todos os invólucros relativos aos fenômenos
nunca se perde inteiramente, e o verdadeiro desdobramento da essência pode ser
encontrado por quem está em sua busca, por muito mais clareza na poesia do que
na história, por mais paradoxal que aquela possa parecer.
O poeta transcende a história cronológica, e recria a linguagem para significar
um mundo mutante, e, para isso, ele/ela precisa transpor sua própria praia, ir além
dos conceitos moldados por uma sociedade, expondo, em alguns casos, o absurdo.
Segundo Jung (2005, p. 156), o grande ser humano é aquele que faz a história, e
não meramente o que se contenta com sua pequena casa, o mundo de poucas
possibilidades de seu Eu, construída nos recantos de um lugar estagnado no tempo.
1.2 O curso do pensar poético
Tomamos, cronologicamente, o escopo de partida com bases em pensamento
da Grécia antiga, segundo o qual a imitação, advinda da natureza humana, é a
tendência instintiva que nos captura desde a infância. Por meio da imitação adquire-
se o conhecimento de uma representação simbólica que não é facilmente
contemplada no mundo real, como bestas-feras ou cadáveres. Há três modos de
imitação poética: representar os personagens ou as imagens melhores ao que são
na realidade;10 piores do que são; ou iguais (ARISTÓTELES, 2003, p. 26).
Mas o pensamento artístico como modo imitativo do mundo das formas foi
contra-argumentado. Platão impôs restrições severas à dialética de Sócrates quanto
à função das artes, considerando-as, do ponto de vista metafísico, como
frequentemente corruptoras, tentando mesmo excluí-las por inteiro, justificando que
elas são mera cópia da autêntica realidade constituída pelas Formas.
Argumenta Sócrates (ROUSSEAU, 2002, p. 27) que os artistas, poetas,
oradores – ele próprio – não sabem o que é o verdadeiro, o bom e o belo. Há
apenas diferença daqueles que nada sabem e julgam saber e os que nada sabem,
porém não têm dúvida. E tal como sua ótica “De sorte que toda essa superioridade
de sabedoria que me foi concedida pelo oráculo se reduz apenas a estar bem
convencido de que ignoro o que não sei”; podemos atentar-nos ao modo de se
pensar a arte poética como um modo de saber ser.
A dialética a respeito do pensamento poético refere-se a uma perspectiva
mais ampla do que o pessoal. Schelling, discípulo de Fichte e criador do idealismo
absoluto, considerava a história do homem inerte numa escalada progressiva em
direção à consciência de si mesmo, do Absoluto, sendo que a arte estaria como
estágio essencial na revelação desse ideal absolutista (Ibid., p. 224).
Nesse universo, o processo de imitação, ou reinvenção artística, não deve
desviar o poeta para coordenadas das conceituações. Os imitadores e maneiristas
apreendem a essência de realizações exemplares alheias pelo conceito; e conceitos
não propiciam uma obra legítima, sorvida diretamente da natureza
10 Analogamente, essa modalidade é encontrada no estilo milenar de arte marcial Kung-fu por meio dos quais, durante o treinamento diário, os monges procuram imitar alguns animais, melhores do que são na realidade.
(SCHOPENHAUER, 2001, L.III, p. 66). Na poesia, o conceitual é o material que dá
lugar ao intuitivo, às alegorias surpreendentes (Ibid., p. 71).
Steiner (2011, p. 102) menciona uma esfera de pensamento superior, em que
o seu conteúdo, na base de um sistema ideal, é determinado pela intuição. Seu
preenchimento não possui referência alguma quando influenciado pelo ramo da
perceptibilidade ou das ideias. A fonte desse pensamento a priori é oriunda de uma
razão prática, intuitiva, e aplicada à apreensão. Schopenhauer (2001) complementa
que a intuição é o estado não conceitual básico para a apreensão da poiesis,
quando diz:
Assim como o químico, partindo de líquidos completamente claros e transparentes, obtém por sua mistura precipitados compactos, assim o poeta, partindo da generalidade abstrata e transparente dos conceitos, pelo modo de combiná-los, sabe conduzir ao concreto, ao individual, à representação intuitiva. Pois a idéia é conhecida somente intuitivamente; e o conhecimento da idéia é o objetivo de toda arte. A maestria na poesia, como na química, toma capaz de obter sempre o precipitado almejado. A este fim servem os muitos epítetos na poesia, com que se restringe a generalidade de todo conceito, até tomá-lo apto de apreensão intuitiva. Homero acompanha quase todo substantivo de um adjetivo, cujo conceito corta a esfera do conceito daquele, diminuindo-o consideravelmente, com o que já de muito se aproxima da intuição. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 74)
Desse panorama, o pensamento da arte imanente na natureza retorna à
esfera ontológica. Gotswami11 (2002, p. 247) refere-se a um nível de consciência em
que o ego não mais se separa do meio, e pode chegar a um máximo de identidade
em que transcende a forma humana. Em caráter ilustrativo, traz à tona trechos de
poetas, tais como Wallace Stevens, T.S. Eliot, ou Rabindranath Tagore (Ibid., p. 230-
232-290), e, repetidas vezes, atenta-se ao processo de criatividade interior. Essa
consciência empírica e subjetiva diz respeito à superação da dualidade
discriminadora imposta pela ditadura do ego. Tal processo de interatividade do
indivíduo com uma consciência cósmica se intensifica com a prática meditativa, na
base da qual tudo o que somos é resultado do que temos pensado. Sustenta,
todavia, que esse nível de conhecimento é adquirido por meio ilógico, o que é,
senão, pura intuição:
11 Amit Gotswami agrega o cientificismo da física quântica à espiritualidade. Esta ciência depara-se com o sujeito (a consciência / o observador), responsável por alterar os dados de medição da velocidade de uma partícula fundamental no momento que afere a localização da mesma, não sendo possível – pelo menos ainda – aferir as duas informações simultaneamente.
O antropólogo Gregory Bateson notou a semelhança entre a técnica do koan12 e o dilema. O dilema neutraliza o ego, ao paralisá-lo. O ego-self não pode lidar com a oscilação nenhum vencedor de uma opção a outra em uma situação como a seguinte: se você diz que este cachorro é Buda, eu lhe darei um soco. Se disser que este cachorro não é Buda, eu lhe darei um soco, e se não disser coisa alguma, eu lhe darei um soco. (Ibid., p. 279)
Steiner (2011), outrossim, lança uma linha de pensamento além da lógica, e
de natureza antroposófica. O poeta utiliza o material linguístico num plano sujeito a
mudanças diacrônicas para expressar-se na plataforma dos signos. A qualidade da
arte, nesse caso, estará tanto mais intensificada quanto maior for a espiritualidade,
deslocando-se para além da esfera científica. Steiner diz:
O artista busca incorporar no material dele as ideias que são seu Self, em que ele pode reconciliar o espírito que vive dentro de si e o mundo exterior. Ele, também, sente-se insatisfeito com o mundo de meras aparências, e busca moldar na obra algo mais que seu Self provê e que transcende aparecimentos. O pensador pesquisa as leis dos fenômenos. Ele se esforça para dominar através do pensamento o que ele experimenta através de observação. Só quando nós transformamos o mundo-conteúdo em nosso pensamento-conteúdo é que recapturamos a conexão a qual tínhamos rompido. Veremos depois que esta meta só pode ser alcançada se penetrarmos muito mais profundamente do que é frequentemente empregado na natureza do problema do cientista. (STEINER, 2011, p. 27-28, tradução nossa)
No universo da poiesis, o valor da ciência consiste na capacidade de expor as
falhas de nosso bom senso, permitindo à sua cultura observar e aperfeiçoar a
linguagem de seus mitos. Nesse aspecto, os filósofos, xamãs, místicos e poetas são
os tradicionais cientistas da mente (CLAXTON, 1995, p. 23). Essas premissas nos
libertam das limitações no momento em que tanto o pesquisador quanto o poeta
podem fazer perguntas que o bom senso jamais ousaria, e, se ousasse, as
descartaria por parecerem ridículas ou absurdas. Todavia, com frequência, as
respostas àquelas perguntas desafiam a sabedoria e conduzem ao pensar.
O pensamento poético se difere peculiarmente das demais expressões
artísticas, as quais a desorganização ainda emite algum significado. E porque a
análise poética exige uma descrição biológica e científica das palavras (POUND,
1973, p. 23), cada sintagma é dotado de um poder simbólico que transmite, em
níveis microscópicos, a solução de um enigma.
Pound, assim como Mourão (2000), nos conduz à finalidade fundamental da
arte literária: a beleza da verdade, e, como eles, reconhecemos que a poesia 12 Verificar “Nota sobre o Koan” no Apêndice.
compõe a magia mensageira incompreensível numa lógica que não nos ensina nem
se ensina. Ela apenas revela, e isto é tudo. Mourão, referindo-se à advertência de
Lautréamont, reforça o eixo aristotélico quando argumenta:
A missão da poesia é difícil. Ela não se mete nos acontecimentos da política, na maneira pela qual se governa um povo, não faz sequer alusão aos períodos históricos, aos golpes de Estado, aos regicídios, às intrigas da corte. Não trata nem mesmo das lutas que excepcionalmente o homem trava consigo próprio, com suas paixões. O que ela faz é descobrir as leis que dão corpo e vida à política teórica, à paz universal, às refutações de Maquiavel, aos corneteiros da obra de Proudhon, à psicologia da humanidade.13
Verificamos nas palavras de Greene (2006, p. 112) que essa amplitude
insondável da poética equivale mesmo, em síntese e dimensão maiores, ao
simbolismo que emana da natureza. A elegância, a complexidade e a pluralidade
dos fenômenos que formam um conjunto simples de leis universais integram o que
os cientistas costumam dizer quando se referem ao termo “beleza”. Assim, o pensar
em poesia só existe enquanto ordenada no modo de se ser, a integração de corpo e
alma com um todo muito maior.
Alencar (2002, p. 74) conclui que a observância à natureza em sua linguagem
primitiva constitui a fonte primordial que deve beber o poeta brasileiro: “O
conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a nacionalidade da
literatura. Ele nos dá não só o verdadeiro estilo, como as imagens poéticas do
selvagem [...]”. Somente através do sentido epistêmico dessas imagens arcaicas e
naturais – seus modos de pensamento, tendências de espírito, e particularidades
vitais – jaz a garrida poética banhada na originalidade.
13 MOURÃO, Geraldo Mello, Revista E, São Paulo: SESC, 2000. Disponível em http://www.biografia.inf.br/gerardo-mello-mourao-poeta.html - acesso em 11/11/ 2011.
_ II _
O EIXO: INDIVÍDUO, LINGUAGEM, MUNDO
Não é exagero dizer que um chimpanzé mantido na solidão não é um chimpanzé de verdade.
Wolfgang Kohler
O fulcro da investigação deste eixo nos coloca numa tabula rasa para o
levantamento das reflexões. Imediatamente, encontramos, talvez, o maior de todos
os paradoxos, pois a ausência de dados absolutos nos levaria à ausência da própria
tabula rasa. Mas a literatura não é suspensa no vácuo (POUND, 1973, p. 36). Para
Pound, o escrito é a matéria-prima para análise fiel de competência da linguagem do
poeta.
De acordo com Heidegger (BODEI, 2000), a linguagem é para o homem, mais
do que um veículo de comunicação; nela temos um caminho pelo qual precisamos
trilhar, cuja essência reflete algo além do mundo materialmente presente – o
universo pelo qual criamos referências de significados vitais, em que se contém
exacerbada mensagem ontológica:
A linguagem é o recinto (templum), ou seja, a casa do ser. A essência da linguagem não se esgota na significação, nem é algo conectado exclusivamente a signos e a cifras. Sendo a linguagem a casa do ser, podemos aceder ao ente apenas passando constantemente por esta casa. Se vamos à uma fonte, se atravessamos um bosque, atravessamos já sempre a palavra “fonte”, a palavra “bosque”, ainda que não pronunciemos estas palavras e não nos refiramos a nada de linguístico [...]. No caso de algum lugar, é unicamente nesta região que poderá acontecer aquele revolvimento da dominação dos objetos e da sua representação no mais interior do coração. (BODEI, 2000, p. 179)
Contudo, não podemos delinear, ainda, em que grau ou modo a linguagem e
o pensamento estão entrelaçados. Os progressos da linguagem e pensamento não
seguem linhas totalmente emparelhadas; conquanto se confundam. Ambos passam
por muitas alterações e suas trajetórias não são paralelas. O curso do intelecto
segue, ora aliado, ora indiferente à linguagem (VYGOTSKY, 2002, p. 26). A curva de
seus desenvolvimentos – filogenético ou ontogenético – se cruza repetidas vezes, e
se afasta novamente.
Vygotsky (Ibid., p. 83) salva que não há interdependência específica entre as
raízes genéticas do pensamento e da palavra. Os dois elementos não são
independentes e estabelecem uma mútua e próxima influência praticamente
confundível. Ele frisa um trecho do poema de Mandelstham, que diz “Esqueci a
palavra que pretendia dizer e o meu pensamento, desencarnado, volta ao reino das
sombras”. E segue:
Qualquer evolução do significado de uma palavra é impossível e inexplicável – consequência esta que constitui um handicap tanto para os linguistas como para os psicólogos. A partir da altura em que se comprometeu com a teoria da associação, a semântica persistiu em considerar o significado da palavra como uma associação entre o som e o conteúdo. Todas as palavras, desde as mais concretas às mais abstratas, surgiam como sendo formadas da mesma maneira, relativamente ao seu significado, parecendo não conter nenhum elemento característico da fala enquanto tal; uma palavra fazia-nos recordar o seu significado tal como um objeto nos recordava outro objeto. (VYGOTSKY, p. 84)
Nem a escola de Psicologia Gestalt logrou quaisquer progressos na
associação entre pensamento e linguagem. A mesma buscou comparações com as
operações intelectuais dos chimpanzés nas experiências de Koehler, em que o pau
se torna parte da estrutura de obtenção do fruto e adquire o significado funcional de
instrumento. Já não se estabelece a conexão entre palavra e significado como uma
mera associação, mas como questão de estrutura (Ibid., p. 86). Representou um
progresso, mas, ainda assim, um avanço ilusório que permanece no mesmo sítio.
Tal como o curso da água que passa pelos prados, evapora-se e congela, a
linguagem adquire nome e forma, é classificadora e generalizadora de mundos,
recorta a realidade; possui autonomia própria num movimento que é, em parte,
determinado pelo homem. Assim como a lua refletida num lago, a linguagem está no
mundo, mas não pode ser confundida com o mundo. Ou será que a linguagem,
sobretudo a poética, poderá desvendar as origens do incompreensível? Talvez
jamais saibamos, ou até já saibamos em algum nível, com a condição de que não
possamos, jamais, codificar.
2.1 O entorno inerentemente humano
Instrumento de comunicação entre dois ou mais interlocutores e de
reinvenção dos mundos, a existência da linguagem foi questionada no seio de outras
espécies animais.
O comportamento das abelhas foi mapeado por Von Frisch para determinar o
uso da linguagem na localização do néctar. De acordo com o critério de Terwilliger
(1974, p. 18), pelo fato de as abelhas nunca cometerem erros na dança e porque
suas comunicações transmitidas nunca são enganosas, conclui-se que elas não
dispõem de linguagem. Completa que a ineficiência da linguagem em certos animais
se torna evidente, por exemplo, quando se toma o percurso da fala de um papagaio
(Ibid., p. 19).
Claxton (1995, p. 76) aponta que antes do aparecimento da linguagem verbal,
a percepção das intenções dos outros indivíduos – e as de irradiar ou ocultar as
suas próprias – por meio de variações da postura, comportamento e da direção do
olhar, já se encontrava bastante avançada. Com efeito, muitos desses sinais, e suas
reações, foram desenvolvidos ao longo do tempo, e incorporados ao código
genético.14 Os primatas, por exemplo, conseguem utilizar a linguagem não verbal
para enganar e desorientar, assim como para informar.
A língua e a linguagem estão localizadas em um grupo social, que os controla
por meio de padrões de escrita e da fala, enquanto que, simultaneamente, tal
controle não é absoluto, visto que os indivíduos e as mídias de comunicação globais
se entrelaçam com contínuos embates de imagens e valores de época.
Segundo Vygotsky (2001), o plano filogenético da espécie humana determina
que uma pessoa é capaz de ser portadora da linguagem, e ser maleável ao meio
ambiente; e o plano ontogenético determina a sequência de acontecimentos da
espécie, do nascer ao morrer. O discurso interior se interage com a qualidade do
fluxo da linguagem que a pessoa assimila ao longo do desenvolvimento
sociogenético:
A relação entre o homem e o mundo passa pela mediação do discurso, pela formação de ideias e pensamentos através dos quais o homem apreende o mundo e atua sobre ele, recebe a palavra do mundo sobre si mesmo e sobre ele-homem, e funda a sua própria palavra sobre esse mundo (VYGOTSKY, 2001, p. 12).
Para Bahktin, o dialogismo é constitutivo da linguagem. A palavra é o produto
da reciprocidade entre dois interlocutores. Cada léxico expressa a unidade do
indivíduo em relação ao outro. A pessoa verbaliza-se a partir da ótica da
14 O etólogo John Krebs descreve a evolução de sistemas de sinalização bastante complexos entre as aves, dentro de seu contexto evolutivo. KREBS, J., The evolution of animal signs, Blakemore e Greenfield, p.163.
comunidade a que ela pertence. O eu é construído com a constituição do eu
presente no outro e por ele é constituído (KOCH, 2005, p. 64).
O propósito último da linguagem é o intercâmbio social; não há possibilidade
lógica de uma linguagem verdadeiramente privada (TERWILLIGER,1974, p. 31).
Essa dedução é generalizada e aceita de forma universal. A frase categórica de J.
Hughlings Jackson (CLAXTON, 1995, p. 70) sintetiza a indispensável função salutar
da linguagem quando argumenta “Falamos não apenas para dizer aos outros o que
pensamos, mas para dizer-nos o que pensamos”.
2.1.1 Portadora de signos
Terwilliger (1974, p. 23) sustenta ser pertinente estudar a linguagem porque
ela pode mostrar indícios de ser mediadora de comportamentos extremamente sutis.
Por meio dos códigos, a linguagem exerce um papel de transmissão e classificação,
tanto de um objeto, quanto dos fenômenos perceptíveis pelos sentidos.
Quando nascemos, a língua está pronta no ambiente na forma de códigos
que podem ser oralizados, de fonemas a sintagmas complexos; e apropriamos-nos
dessa linguagem mediadora ao longo de nosso desenvolvimento. Por volta dos três
anos de idade, a criança utiliza a fala egocêntrica, que é um ponto de
desenvolvimento para a assimilação da língua (para Piaget, a fala sai do sujeito, e
para Vygotsky, a fala ingressa no sujeito). O ponto mais desenvolvido da língua se
dá no discurso interior, quando incorporamos o sistema simbólico ao pensamento,
sem que seja necessário uma oralização verbal dos códigos.
Nessa instância, os códigos isolados não trazem significado algum, e só
fazem sentido quando são incorporados ao mundo dos signos. Vygostky (2002, p.
107) diz “Uma palavra que não representa uma idéia é uma coisa morta, da mesma
forma que uma idéia não incorporada em palavras não passa de uma sombra”.
Na escola psicológica de Vigotsky (Ibid., p. 9), constata-se que, na ausência
de um sistema de signos, linguísticos ou não, somente um tipo primitivo e imediato
de comunicação é acionado, tal como observa-se nos gansos quando, sob ameaça
de perigo, alertam o bando com grasnidos.
A linguagem é portadora de signos, que diz respeito à classificação,
generalização e convenção de um significado. As funções psicológicas de elevado
grau são mediadas pelos signos, tanto para dominar ou orientar (Ibid., p. 42). Na
gênese da formação de um conceito, o signo é a palavra que desempenha o papel
mediador, transformando-se, ulteriormente, em símbolo.
Os fenômenos, entre um ser humano e o universo, não podem ser explicados
ou compreendidos numa esfera que não seja sígnica; e o acesso ao mundo dos
signos só pode ser adquirido por meio dos textos, isto é, da linguagem implantada
nas Ciências Humanas. Bakhtin diz “Não há possibilidade de chegar ao homem e
sua vida, senão através de textos sígnicos criados ou por criar” (FREITAS, 1994, p.
17). Esta posição confirma o pensamento de Vygotsky em relação aos sistemas
primitivos de comunicação, que entram em ação na ausência de signos: a residência
da linguagem na moldura do ser vivente é uma representação fenomênica da
realidade, exercida no expediente totalitário das Ciências Naturais. Para Bakhtin, só
há dialogismo nas Ciências Humanas porque outro sujeito que dialoga se posiciona
numa forma heterológica de conhecimento (Ibid., p. 18).
Luria destaca que o desenvolvimento posterior do processo de alfabetização
abarca a assimilação dos sistemas simbólicos da escrita elaborada em uma cultura
específica, associado à utilização de símbolos para exemplificar e apressar o
fenômeno de recordação. Isto enuncia a respeito do laço de desenvolvimento entre
língua/linguagem e mediação simbólica (CASTORINA; et alii, p. 67).
Piaget observou que, para a criança, a palavra é parte do objeto ou, pelo
menos, na mente dela, não se distingue do objeto que tem como referente. Para a
mente de um adulto, geralmente, a palavra se distingue de um objeto
(TERWILLIGER, 1974, p. 92). Acentuando esse fato, Vygotsky (2002, p. 34) registra
que a criança aprende a função simbólica das palavras por meio das perguntas, ela
procura aprender os signos associando as palavras aos objetos. Esse é o ponto de
encontro da trajetória do desenvolvimento da linguagem e do pensamento.
2.1.2 A complexidade do agregado linguístico
É uma presunção estabelecer que a complexidade de um agregado linguístico
se constitui da soma de conexões simples. Terwilliger (1974, p. 21) diz “Essa
presunção é manifestamente errônea, pois o ‘somar’ não leva em conta a ordem
necessária das partes”. Há numerosos processos sequencialmente ordenados sobre
os quais ignoramos todos.
Um dos aforismos de Bacon exemplifica que a natureza é o habitat da
linguagem, e sua complexidade é diretamente proporcional ao seu tamanho (2001,
p. 7). Sustenta: “A natureza supera em muito, em complexidade, os sentidos e o
intelecto. Todas aquelas belas meditações e especulações humanas, todas as
controvérsias são coisas malsãs. E ninguém disso se apercebe”.
A complexidade da linguagem existe em função do entrelaçamento dos
pacotes de agregados que nelas coexistem. O funcionamento da mente na
linguagem do senso comum demonstra palavras que traduzem experiências,
esperanças, medos e anseios; entendimento aparentemente simples a partir do bom
senso, seja ele decodificado ou criptografado. Por outro lado, o funcionamento do
cérebro sob o vocábulo dos cientistas retrata a linguagem dos neurônios, enzimas e
axônios, e eles não servem para a compreensão de outros módulos subjacentes.
Claxton diz:
Os seres humanos são sistemas, e uma das coisas que isso implica é terem propriedades em níveis ‘superiores’ de organização não previsíveis ou explicáveis em termos das propriedades dos níveis ‘inferiores’. Em cada nível de discurso precisamos de uma nova linguagem para falar de ‘totalidades’, uma linguagem fundamentada na linguagem das ‘partes’, mas apta a dizer coisas que a linguagem das ‘partes’ não é capaz de dizer. (CLAXTON, 1995, p. 50)
De acordo com os princípios de Croft & Cruse (FIT, 2010, p. 78) “a linguagem
não é faculdade cognitiva autônoma”, o que a expõe como um agregado complexo,
dependente e interdependente de vários corpos de sistemas, bem como os seus
subsistemas adjacentes. A linguagem é uma excêntrica habilidade cognitiva
entrelaçada às percepções sensoriais, psicológicas e motoras, não havendo uma
linha divisória onde se diga que a atuação da linguagem aqui começa, e, de um
ponto em diante, as atuações humanas tomam conta da situação, pois, tal como foi
apresentado por Sherrington (1963) “tudo se ajusta simultaneamente”.
2.1.3 Organizadora de processos cognitivos
Terwilliger (1974, p. 23) argumenta que a autonomia da linguagem para levar
o homem à compreensão de mundos, devido a sua capacidade organizadora dos
processos cognitivos, sugere algo de longo alcance. Nessa amplitude, a natureza da
linguagem aplicada por uma pessoa determina todo o seu modo de vida, o modo de
pensar e todas as formas de atividade cognitiva.
Lima (2009, p. 108) diz que o trabalho com a dimensão cognitiva e
metacognitiva da linguagem visa contemplar “a autonomia e o uso de estratégias
como objeto principal do ensino”; prevê a compreensão, pelo discente em exercício
escolar ou acadêmico, da capacidade de controle sobre seu pensamento e
aprendizagem.
Koch (2005, p. 31) sustenta que a produção textual, dentro da concepção de
língua e linguagem, é uma atividade interindividual, e deve ser vista como um
processo de caráter sóciocognitivo.
Segundo Vygotsky (2002, p. 3), todas as atividades cognitivas fundamentais
do indivíduo ocorrem de acordo com sua história social e acabam se constituindo no
produto do desenvolvimento histórico-social de sua comunidade. Essa história
favorece melhores percepções do mundo na medida que sua estrutura se organiza:
“A estrutura da língua que uma pessoa fala influencia a maneira com que esta
pessoa percebe o universo” (Ibid., p. 2). Isso sugere que a linguagem não seja,
necessariamente, a causa da cognição de um indivíduo, e sim um instrumento de
organização dos códigos simbólicos.
2.2 O paradoxo da linguagem
Mas a linguagem, seja qual for a sua natureza, tal como a matéria e a psique,
possui uma luz indissociável da sombra. Com efeito, suas funções tanto favorecem a
constituição do indivíduo e da sociedade, quanto podem, segundo o funcionamento
da biologia mente-cérebro, traçar caminhos de formação de conceitos, manipulando,
assim, o seu próprio usuário.
Claxton (1995, pp. 86-87) explica que a linguagem, projetada puramente
como ferramenta social e baseada em subdivisões, revela-se como a chave para a
solução do problema de comunicação interna do cérebro. Cada palavra ativa um
conjunto antes que o indivíduo receba a informação – para salvar sua vida, caso
você veja um tubarão, por exemplo: esse é o estabelecimento firme do centro do
conceito, organizados em categorias. Contudo, a natureza da linguagem faz com
que o sistema mente-cérebro produza tendências, nem sempre melhores, tais como
os estereótipos. Croft & Cruse (in: FIT, 2010, p. 78) ressalta que a Linguística
Cognitiva vale-se dos conceitos para estudar a linguagem: “gramática é
conceptualização”. É da natureza da linguagem representar enganosamente o
mundo, e se recordarmos que precisa ser assim para ter alguma utilidade, então ela
torna-se uma boa aliada, mas se ignorarmos, será uma inimiga encrenqueira.
Os conceitos que a linguagem encerra em sua matéria-prima foram extraídos
das mentes-cérebro dos ancestrais, cujo modo de vida era geralmente mais simples
do que dos homens da atualidade; fazem com que vislumbremos uma percepção
ultrapassada da realidade. Edward De Bono comenta sobre o lado sombrio de nossa
constituição:
A linguagem é um museu da ignorância. Cada palavra e conceito entraram na linguagem em um estágio de relativa ignorância com relação a nossa maior experiência atual. Mas as palavras e conceitos ficaram permanentemente congelados, e devemos usar as palavras e conceitos que tratam da realidade atual. Isto significa que podemos ser forçados a avaliar as coisas de maneira bastante inadequada. (Apud CLAXTON, 1995, p. 95)
Snyder (2005, p. 269) alude que, no Ocidente, ficou definido popularmente
que a linguagem é a ferramenta organizadora de caos, acreditando-se que quanto
mais objetividade e racionalidade houver em seu uso, mais acurado será o exercício
de conferir ordem ao mundo. Mas o mundo, agrupado conforme suas normas
infreáveis, é tão vasto em suas escalas macro ou micro cósmicas que parece ser
compreensível somente através de níveis transcendentais de consciência. Assim
como De Bono (in: CLAXTON, 1995, p. 95), e Huxley (Ibid. p. 107), ele denota que o
mundo natural, inclusive o das línguas humanas, é padronizado de acordo com seus
próprios mecanismos selvagens. Ao passo que a linguagem parece nos orientar
numa direção linear para o alcance dos objetivos, ela restringe, estreita, limita a
nossa visão da realidade e, possivelmente, nos desorienta: “O cardápio não é a
refeição”. O melhor caminho consiste em considerá-la como veículo livre, sem
vínculos, para a introspecção autotranscendente, que pode reconduzir a uma
experiência direta e sem mediadores.
A linguagem fragmenta o mundo, embora este não tenha remendo algum e
seja um sistema inteiro e inseparável; ela metamorfoseia o mundo repleto de
tonalidades e matizes infinitos em uma janela retangular em preto em branco.
Enquanto o mundo é constituído apenas de mudanças, a linguagem fixa em alto
relevo a estrutura e a perseverança. A linguagem exige convenções indescritíveis no
mundo sensorial. Ela exige um operador identificado, quando há somente interações
recíprocas contidas em um sistema muito maior. Aldous Huxley constata que a
linguagem é, no tocante ao funcionamento interno da mente-cérebro, uma bênção
ambígua:
Todo indivíduo é, ao mesmo tempo, o beneficiário e a vítima da tradição linguística em que foi educado – beneficiário, pois a linguagem dá acesso aos registros acumulados da experiência dos outros, e vítima, pois ela o confirma na crença de que a percepção reduzida é a única percepção, e perturba seu senso de realidade, tornando-o ávido por aceitar como dados os seus conceitos, suas palavras como coisas reais. Aquilo que é chamado de... ‘este mundo’ é o universo da percepção reduzida, como se tivesse sido petrificado pela linguagem. (Apud CLAXTON, 1995, p. 107)
Uma das evidências da dificuldade de se mudarem os conceitos se encontra
em fatos históricos. Fenollosa e seus estudos sobre os caracteres gráficos chineses,
como veículo útil à poesia, somente apareceram na Europa em 1920, e foram
republicados em 1936 por Pound (1973, p. 24) com gigantesca dificuldade. Porém,
até que ponto a aceitação e convencimento de uma nova ideia por um grupo social
significa que este também não seja um novo conceito?
A maior parte de nossa compreensão de mundo pode estar,
inconscientemente, equivocada; moldada ou manipulada por um conceito ou pré-
conceito linguístico. A citar, a física quântica demonstra de modo inequívoco que
diversos conceitos essenciais para o nosso entendimento do mundo cotidiano, que
são baseados na física clássica, perdem o absoluto sentido nos domínios
microscópicos (GREENE, 2006, p. 62). Há uma percepção obscura advinda da
língua/linguagem, conquanto esta não seja, de todo, pessimista. É incrível sabermos
que a presença física do indivíduo modifica, instantaneamente, o campo de
percepção da realidade no mundo dos quarks. O poeta, constituído de átomos e
objeto direto do universo lírico, com suas manifestações de amor ou racionalidade,
encerra a realidade em si mesmo. Montaigne (2000, p. 189), rememorando Tasso
sobre a agitação pós-factual provocada pela experiência com Eros, disse que a
poesia chega a encerrar algo mais vívido do que a realidade, mais amoroso do que
o próprio amor.
2.2.1 Da linguagem não vernácula aos impulsos do corpo
Do mesmo modo que é impraticável tomar conhecimento da noção do
tamanho do oceano ao peixe que nunca saiu do leito de um rio, é impossível
conhecer a si mesmo a quem nunca se atreve a pensar nos outros, com empatia, e,
mais ainda, a quem evita ultrapassar as fronteiras de sua língua vernácula. Esse
raciocínio é igualmente aplicável ao espírito de empreendimento do ofício da
linguagem. Goethe (in: VYGOTSKY, 2001, p. 354) afirma “Quem não conhece
nenhuma língua estrangeira não conhece integralmente a sua própria língua”.
Seguindo as pressuposições de Thompson (FIT, 2010, p. 54), a sociedade
está tão constituída por crenças, valores, e seus veículos de comunicação – sendo a
língua o principal instrumento de sua identidade – que o espetáculo da existência
capital forja a ideia de que vale mais ter do que ser. Nessa sociedade produtora de
espetáculos, refletimos sobre as influências internacionais; linguagens entrelaçadas
entre fronteiras. Em determinado ponto de prática linguística estrangeira, não será
esse sistema a impor a que nos comportemos segundo os padrões culturais do
idoma que domina o mercado mundial? Caetano Veloso argumenta:
Hoje, há muito inglês em tudo; acho que já chegou longe demais. Não é apenas Shakespeare, que obrigatoriamente tem de ser reconhecido como o “maior” poeta que a humanidade já viu. Talvez seja um dos maiores poetas, talvez seja o maior; eu não sei, também não tenho cultura para julgar. Mas o modo como isso nos é entregue não é aceitável. (FRANCA, 1999, 28’15’’)
Essa ótica nos fez ponderar sobre o que significa a língua ou linguagem em
suas autonomias particulares. Para Ruy Guerra (FRANCA, 1999, 05’50’’), os outros
idiomas não têm o sabor da palavra como na sua língua, a portuguesa. Arnaldo
Antunes considera-se muito ligado organicamente à língua materna e não se vê
criando em outro idioma; para ele, só faz sentido ser cidadão do mundo falando
português – endereçando língua e linguagem aos seus lugares, conclui ele a enorme
liberdade e elasticidade artística que se pode alcançar no âmbito literário:
Essa questão de se fazer rock ou qualquer outro gênero é muito mais uma questão de linguagem do que uma questão de língua. Não é o código que vai determinar e sim o uso dele. Se você quer fazer rock em português isso é totalmente possível. Pode-se até subverter a natureza de um código, se você tem um código mais... inadequado você tem como até subverter isso através do uso que se faz. A língua você sempre pode “torcer” ela, como você quiser, e essa torção é um trabalho artístico. (FRANCA, 1999, 30’40’’)
A última frase desta citação ilustra bem de perto a proposta de Snyder (2005)
em sua prática pedagógica, mostrando que os poderes da linguagem são, de longe,
muito mais abrangentes do que os ensinados na educação formal. A nossa visão do
significado familiar pode ser subvertida em melhores entendimentos, naturais ou
selvagens, que não são propriamente explícitos aos padrões habituais do sistema
pedagógico comum. Com ideias análogas a Bagno (1999), Pound (1973) e
Sherrington (1963), ele subverte a ordem do significado dos seguintes atributos ao
dizer que:
1. A linguagem não é exclusivamente humana; e sim, biológica e semicultural.
2. A inteligência não é desenvolvida pela linguagem; e sim, por meio de todos os meios de interações humanas com o mundo.
3. Não é a linguagem que organiza o mundo; e sim, o mundo (e a mente) é ordenado segundo seus próprios códigos e a estrutura linguística reflete e condensa essa ordem.
4. O domínio da norma culta não delega a nossa capacidade para domesticar o mundo da natureza e dos sentidos; e sim, quanto mais permitirmos ao mundo revelar a si, sem interferências de um ego ditador, melhor reconheceremos nosso lugar interconectado com a natureza; e,
5. A boa escritura não é linguagem ‘civilizada’; e sim, linguagem ‘selvagem’.
(SNYDER, op. cit., p. 274-275)
Conforme o embasamento anteriormente citado, melhores entendimentos do
mundo podem ser atingidos com a subversão de uma linguagem condicionada, para
outra modalidade que escapa ao senso comum.
Para Schopenhauer (2001), a relação homem-natureza, tendo como elemento
basilar a vontade, atinge na libido a sugestão de ser o primaz impulso de
preservação biológica, predominante em relação a qualquer outro. Este impulso, que
norteia o ciclo desejoso e instintivo, apresenta-se como uma linguagem
generalizada, cujo domínio absoluto está reservado ao campo da espiritualidade.
Somos guiados por este impulso de satisfação das necessidades básicas, e, por
isso, na fila de prioridades, qualquer outra linguagem descritível em termos teóricos
tem pouco sentido em relação à sobrevivência imediata e sua perpetuação:
Também a natureza, da qual é essência íntima o querer-viver, atira com todas as suas forças, tanto o homem quanto o animal, à reprodução. Depois do que, quando obteve do indivíduo o resultado que dele esperava, torna-se absolutamente indiferente à sua destruição; porquanto na sua qualidade de querer-viver, interessa-se unicamente pela conservação da espécie, e nunca pelo indivíduo. Justamente porque a essência íntima da natureza, a vontade de viver, se pronuncia com força maior no instinto sexual, os poetas e os filósofos antigos — Hesíodo e Parmênides — diziam com muito acerto que Eros era o princípio primário, o princípio criador donde veio tudo. (SCHOPENHAUER, Ibid., p. 43)
Jung (citado por CLAXTON, op. cit., p. 37) conduz essa questão das
inquietações do Eros, na qual somos subordinados, em que se prioriza a vida no
nível todo instintivo – linguagem invisível e manifestada universalmente pelo
inconsciente coletivo. Embasa que todo ser humano, seja qual for o seu nível de
desenvolvimento consciente, é ainda um ser vivente arcaico nos abissais de sua
psique, na qual as origens arcaicas são inumeráveis. Nesse âmbito, talvez a poesia
seja, com suas inspirações imediatas, mormente um requintado acessório linguístico
integrante nessa região primitiva dos desejos, ainda assim necessária e inseparável,
conforme defende Cocteau (FISCHER, 1979, p. 11), ainda que não saibamos qual a
sua utilidade.
A linguagem dos instintos e desejos, conquanto, desponta como uma força
inata que pode ser treinada e educada. Claxton (1995, p. 24) explica que,
isoladamente, o conhecimento científico, por mais racional que seja, não resolve as
falhas subjacentes de nossa visão interior. Apenas pode facilitar a aceitação do
diagnóstico, incentivando a busca de uma cura dotada de maior potencial. Pouco
vale uma compreensão intelectual do problema. São necessários métodos radicais
para purificar nossas percepções, já incrustadas no corpo e condicionadas pelo
apego aos conceitos, e, para isso, é mister solicitar conselhos seguros dos mestres
espirituais.
_ III _
A RETÓRICA POÉTICA
Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
Carlos Drummond de Andrade
Abordemos o fulcro da questão sobre o vocábulo poesia, que, do grego
poiésis, significa criar, mais precisamente, a arte da expressão por meio de palavras.
A palavra estesia, do grego aisthesía, frisa a capacidade de percepção da beleza
estética. Poesia, no sentido proposto aqui, se refere à capacidade humana de
transcrever, ou recriar, com a exuberância das palavras, um estado de percepção
sobre a manifestação fenomênica do cosmo, seja ela melhor, pior, ou igual a como
se apresenta em seu senso (ARISTÓTELES, 2003, p. 26).
Moisés (1982, p. 12), solicita que se evitem os dissabores de uma análise
isolada, de modo que um autor seja, do ângulo gramatical, superior a outrem,
porque, do ângulo literário assim não sucede. A análise crítica do leitor, e da própria
crítica geral, bem como da autocrítica, está sempre sujeita às interpretações, e, por
isso mesmo, torna-se interminavelmente discutível.
Evitando uma interpretação vaga e diáfana, o plano do conteúdo poético e
sua retórica foi perpetrado numa avaliação lacônica. Assim, escolhemos quatro tipos
de especificidades para qualificar a competência da enunciação textual, conforme
seguem:
3.1 Harmonia sígnica e musicalidade
Como diz Huizinga (1999, p. 148-149), não podemos separar linguagem,
palavra e poesia. A faina da linguagem poética é o jogo com as palavras, de maneira
ordenada e harmoniosa, injetando mistério em cada um dos enunciados. Esse
processo criativo transforma cada imagem na solução de um enigma. Alude-nos que
a poesia, apesar de poder ser também impulsionada pela intuição, segue alguma
lógica, e que os vocábulos ordenados nalgum nível de linguagem são modos
inerentes dessa harmonia.
Para Pound (1982, p. 63), poesia é a linguagem elevada ao seu mais alto
grau de significação, havendo três modos de identificá-la: a fanopeia, que consiste
em projetar o objeto em imagens; a melopeia, que produz correlações emocionais
por intermédio do som oralizado; e a logopeia, que mistura ambos os efeitos
anteriores estimulando a emoção e o intelecto simultaneamente. Finalmente (Ibid., p.
61), o autor conclui “A música apodrece quando se afasta muito da dança. A poesia
se atrofia quando se afasta muito da música”. A musicalidade nas palavras, melhor
ainda se acrescidas de uma forte imagética, eleva a qualidade poética. Ainda que a
poesia esteja numa atmosfera árdua de se classificar, tomamos partido dessa visão
de que poesia é, essencialmente, música.
3.2 A transcendência ideológica
Sugerimos que a máxima significação lírica tende a transcender valores
doutrinários, ou correntes sectaristas. O plano revolucionário de enunciação literária
é audaz, e subverte valores sociais conservadores em um segmento ideológico
particular e inflexível. Mourão, extremamente católico, transcende a noção do
pecado na fanopeia Eva:
Adormecera à beira do riacho e o sonho e a flor dessa maçã da primeira saudade – do primeiro desejo do mundo habitavam seu sono. Despertara – e dela despertaram um tato uns olhos um perfume [...] – aflição e festa de estrelas na pupila.15
3.3 Ensina-se poética?
A arte poética une a sonoridade dos morfemas ou sintagmas para expor a
zona logicamente incompreensível da intuição, e, paralelamente, obedece à ordem
de significantes e significados. Ainda assim, ela não pode ser ensinada em sua
origem mais refinada da ontologia humana.
15 Geraldo Mello Mourão (2000, Op. cit.).
Concordamos com Mourão (2000), segundo quem as afirmações sublinham
engano aos poetas que querem ensinar, de modo técnico e sistemático, a que se
assimile a veia lírica “João Cabral redigia breves versos didáticos, mas ele mesmo
reconhecia que não era um poeta”. A poesia pode ser pedagodicamente estimulada,
e sua plataforma exposta, mas nunca despertada por meios técnicos, já que este
processo não obedece a uma sequência estritamente lógica.
Tal afirmação é reforçada nas palavras de Schopenhauer (2001, p. 72)
mostrando que, assim como as conferências sobre moral não poderão jamais
produzir um ser humano virtuoso, todos os tratados de estética, desde o de
Aristóteles, não lograrão sucesso na criação de um poeta.
Todavia, com base nos argumentos de Pound (1973), os quais trazem
segurança à poética, é sensato incentivar, no trabalho pedagógico, a importância
sobre os atributos desse território. O processo criativo, mostrando as possíveis
saídas não gramaticais que brotam neste gênero, constitui-se numa forte ferramenta
para quebrar paradigmas e despertar o mar de explorações textuais que podem ser
contemplados em diferentes perspectivas da linguagem.
Muito embora a percepção lírica não possa ser ensinada de um emissor para
um receptor, Drummond (2010, p. 247), em Procura da Poesia, mostra pistas fieis à
sua revelação: a que perpetremos surdamente no reino das palavras. É lá, nessa
zona de silêncio, que se encontra a chave de abertura para a textualização.
Livre em sua ontologia, a plena manifestação lírica promove uma catarse à
realidade, transformando-a em múltiplas possibilidades àquela apresentada no plano
da matéria. Nesse cunho, Bandeira16, no mesmo passo que protesta contra a
formalidade lírica no Brasil e no mundo, exige absoluta prudência em sua postura,
deixando uma lacuna livre para o leitor catalisar. A compreensão de tal catarse está
entregue em absoluto à qualidade de interpretação do sujeito mediador da arte, o
leitor. Em Poética, verificamos:
Estou farto do lirismo comedido [...] Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare
16 Jornal de Poesia, http://www.revista.agulha.nom.br/poesia.html - acesso em 28/12/ 2009.
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
De acordo com as palavras de Alfaya17, a modernidade tecnológica
democratizou o ensino, mas o interesse pela poesia não acompanhou esse
processo, principalmente no Brasil. Ocorre um ciclo vicioso de os grandes escritores
produzirem obras a serem disseminadas à elite, não aos demais. Ele verifica como é
ofuscante para o iniciado, cercado que se vê diante da necessidade de se ter
noções sobre centenas de disciplinas, movimentos literários, e seus respectivos
autores, mortos ou vivos. Poetas redigem para poetas, e para mais ninguém.
Naturalmente, “Pretender escrever poesia hoje é aceitar o desafio de tentar ser um
sol num mundo de sóis”.
3.4 Anonimato como recurso
Na expiração poética a autoria pode ser desconhecida, tal como na epopeia
anônima Beowulf, o que resultou, cerca de 1300 anos depois, em produção de
complexas imagens por meio de computação cinematográfica, ou omitida
propositadamente, como se nota no haikai, literatura com signos voltados aos
elementos da natureza. A potência lírica também se exalta no romance Tristão e
Isolda, originalmente em poesia, de autoria desconhecida. Todos evocam
peculiaridades à solução de enigmas. No tocante à irrelevância ou omissão da
autoria, Jolles diz:
A poesia é aquilo que passa em estado de pureza e sem alterações do coração para as palavras; por conseguinte, é algo que brota incessantemente de um impulso natural e é captado por uma faculdade inata; a poesia popular sai do coração do Todo; o que entendo por poesia artística sai da alma individual. Por isso que a poesia moderna assinala seus autores, ao passo que a antiga não sabe nome algum; ela não é produzida por um, dois ou três, é a soma do Todo, já disse que não sei explicar como essas coisas foram arranjadas e feitas, mas, para mim, não é mais misterioso do que as águas que confluem num rio para correr juntas. Não seria capaz de conceber a existência de Homero nem que os Nibelungenlied tivessem um autor. (JOLLES, 1976, p. 184)
Essas palavras nos fazem refletir a respeito da preocupação excessiva em
registrar um nome na história, o que pode obscurecer a nossa integração maior com
17 ALFAYA, Ricardo Ingenito, entrevista à Editora Protexto, por Tânia Gabrielli-Pohlmann, http://www.protexto.com.br/swfobject.js - acesso em 01/04/2013.
a experiência imediata, emanada do corpo da natureza; esse todo íntegro onde tudo
habita, e que, se observarmos atentamente, a mesma não deixa registros ou rótulos
perenes em seu mundo de fenômenos. Segundo Drummond (2010, p. 247), há uma
neutralidade que se aspira da poesia, ela “não aquece nem ilumina”.
A omissão da autoria é um recurso de grande valia, há tempos conhecido na
literatura. Mas o eu lírico, carregado de conceitos, só pode mentir a si mesmo. Nele,
na multiplicidade de sua linguagem, residem traços peculiares do que se passou da
essência do autor – desejos e intenções. Pessoa (2006, p. 15), afastava-se de seu
nome pessoal e, de tanto criar heterônimos, não mais soube situar um divisor de
águas no oceano dos vários “Eus” que criara: “Como um vento na floresta. / Minha
emoção não tem fim. / Nada sou, nada me resta. / Não sei quem sou para mim”.
_ IV _
O PROCESSO DA PESQUISA
Uma escrita é uma escuta
feita voz mar de mármore
ou de papel lançado a esmo...
Secchin18
A idéia inicial desta pesquisa se formou logo que nos deparamos com a
disciplina Metodologia do Trabalho Científico, no primeiro semestre do curso.
Enquanto a nossa curiosidade intensificava-se na tentativa de resolver um emblema
polêmico que surgira espontaneamente, a responsabilidade galgava em grau
equivalente.
No semestre seguinte, findas as ilusões naturais próprias dos pesquisadores
iniciantes, eliminamos a pesquisa de campo e sofisticamos a teórica. Apesar disso,
na medida em que pesquisávamos, havíamos permeado em um labirinto quase
infinito de talentos pelo País. Tal percepção mostrou um desafio, mas também uma
solução. Ficamos ainda mais motivados pelo fato de a poiesis ser uma grande
possibilidade de prática, individual ou pedagógica.
Uma vez que a justificativa e a metodologia da pesquisa foi mencionada
previamente na Introdução deste trabalho, os subcapítulos seguintes ilustram a
sequência dos tópicos restantes.
4.1 A discussão da problemática
Um dos disparates mais evidentes, decorrente da desigualdade social, nos
leva aos indícios de que o letramento é diretamente proporcional à casta de um
indivíduo, subentendendo que a camada proletária está a ermo da cultura letrada.
Porém, desmitifiquemos que a disponibilidade de tempo favorece esta cultura, pois,
se assim fosse, índios e aposentados seriam os mais veneráveis Mestres da
Humanidade.
18 SECCHIN, Antonio Carlos, da obra Todos os ventos, que, em 2002, lhe rendeu o prêmio da ABL – fonte: Wikipédia.
O ranking educacional das sociedades ao longo do planeta aponta que a
qualidade de ensino tende a ser liderada pelos países desenvolvidos, a despeito da
especificidade cultural. Está difundida a imagem de que a elitização, baseada em
valores consumistas modernos, se sobrepõe à habilidade linguística. Teoricamente,
segundo as normas dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1997), há duas
evidências que se entrelaçam na fusão do conhecimento com a elitização:
• crianças provenientes de famílias mais favorecidas têm maiores oportunidades de participação em atividades sociais mediadas pela escrita, e possuem muito mais experiências significativas com a escrita do que as crianças de classes menos favorecidas; e
• a responsabilidade da instituição educacional é tanto maior quanto menor for o grau de letramento das comunidades em que vivem os alunos. (PCN, 1997, p. 20)
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), contudo, não deixam
eximiamente claros os processos de desmitificação linguística. Na Antiguidade
grega, berço de alguns dos mais importantes textos produzidos pela humanidade, o
autor não letrado era quem compunha e ditava para ser redigido pelo escriba. O Rei
Ptolomeu foi um desses autores em Alexandria. Bagno (1999) desconstrói oito mitos
acerca da Língua Portuguesa, entre os quais “O domínio da norma culta é
instrumento de ascensão social” ou “As pessoas sem instrução falam tudo errado”.
O autor acrescenta:
Parece haver cada vez mais, nos dias de hoje, uma forte tendência a lutar contra as mais variadas formas de preconceito, a mostrar que eles não têm nenhum fundamento racional, nenhuma justificativa, e que são apenas o resultado da ignorância, da intolerância ou da manipulação ideológica. Infelizmente, porém, essa tendência não tem atingido um tipo de preconceito muito comum na sociedade brasileira: o preconceito linguístico. Muito pelo contrário, o que vemos é esse preconceito ser alimentado diariamente em programas de televisão e de rádio, em colunas de jornal e revista, em livros e manuais que pretendem ensinar o que é “certo” e o que é “errado”, sem falar, é claro, nos instrumentos tradicionais de ensino da língua: a gramática normativa e os livros didáticos. (BAGNO, 1999, p. 13)
A partir desse pensamento basilar, verificamos que o mesmo tem ocorrido na
maneira como se lida com a poesia em alguns segmentos sociais, que, errônea ou
inconscientemente, pensam “poesia não dá dinheiro”, “isso é poesia, e não a
realidade” ou “poesia não serve pra nada”. Infelizmente, a cultura oral, massacrada
pelo preconceito de que não possui textualidade, criou uma vox populi esmorecida
sobre a arte da expressão poética, que, em suma, é a verve do pensamento lírico,
berço de grandes obras artísticas das civilizações precursoras.
Essa reflexão a respeito dos diferentes valores dados à linguagem advindos,
principalmente, das castas sociais, com efeito, nos fez formular três problemas
norteadores da investigação, sendo o primeiro deles o guia primordial:
• Há alguma característica preponderante, ou em comum, entre os
poetas brasileiros que obtiveram prestígio nacional ou internacional?
• Até que ponto a aceitação e convencimento de uma nova ideia por um
grupo social significa que este também não seja um novo conceito?
• A linguagem, sobretudo a poética, poderá desvendar as origens do
incompreensível?
4.2 Objetivo
O objetivo desta pesquisa é aferir o potencial em comum das principais
características de poetas/poetisas brasileiros que construíram renome no âmbito
nacional ou internacional, do Romantismo ao Modernismo, trazendo reflexões sobre
o território da linguagem.
4.3 Escolha das variáveis
Com vistas a solucionar o problema, estas perguntas favoreceram à
formulação e distribuição das variáveis:
• Com que tipo de pessoas os renomados poetas conviviam no dia-a-
dia?
• Esses poetas sofreram influências de outras culturas além daquelas em
seus habitats? Se sim, qual ou quais culturas?
• O nascimento em uma determinada classe social foi a força motriz
desses poetas? Caso positivo, qual classe social?
Para o levantamento dos dados, escolhemos e organizamos sete variáveis
associáveis entre si: ser dotado de outro dom artístico; conferir apoio à arte; alto
grau de letramento; habilidade em idiomas; atividade político-institucional;
perspectiva multicultural; e, ativismo ecológico.
4.4 Hipóteses
Com base nas variáveis anteriores, formulamos as seguintes soluções
hipotéticas:
1. São dotados de outro dom artístico além da habilidade literária;
2. Deixam obras artísticas, ou prestaram apoio à arte;
3. Gozam de alto letramento;
4. Têm habilidade em outro idioma não vernáculo;
5. Evolvem-se com causas políticas;
6. Viveram em pátria diversa e têm ampla perspectiva multicultural;
7. Inclinam-se às causas ecológicas; ou,
8. NDA. As causas são relativas para o sucesso lírico.
4.5 Análise estatística dos dados
As informações biográficas foram adquiridas, em sua grande maioria, por
meios virtuais. O banco de dados está gravado em mídia DVD, anexo à monografia.
Cada autor foi conferido, geralmente, em duas ou mais fontes confiáveis de
informação. Disciplinamos o estudo das biografias segundo o agrupamento:
PRIMEIRO GRUPO:
Prêmio Jabuti Poesia .............................................................. 63
Prêmio Camões ...................................................................... 23
Poetas do Século XIX ............................................................. 45
Poetas do Século XX .............................................................. 40
SEGUNDO GRUPO:
Poetas do Estado do Rio de Janeiro ....................................... 212
Poetas do Estado de São Paulo ..............................................189
Biografias Incompletas (RJ e SP) ............................................ 87
Escritores (22) + Lusófonos ..................................................... 29
TOTAL ..................................................................................... 688
A primeira análise nos trouxe decisões importantes. Havia enorme dificuldade
de encontrar provas a respeito de inclinações às causas ambientais. Quantificamos
em menos de 3% no primeiro grupo, nos levando a anular esta variável das coletas
seguintes. Na Tabela 1, os grupos foram distribuídos segundo a ordem supracitada:
Tabela 1 – distribuição de dados entre as variáveis de cada grupo
A tabela acima forneceu o Gráfico 1. A variável “domínio de idiomas” supera
as demais, tanto na primeira média, em 69%, como na média geral, em 49%:
Gráfico 1 . Número de poetas e amplitudes nas variáveis
Ainda com base na Tabela 1, os poetas do eixo Rio de Janeiro e São Paulo
foram formatados no Gráfico 2, apontando a porcentagem média do primeiro grupo.
O resultado indica predominância de habilidade em outro idioma:
Gráfico 2 . Amplitude do segundo grupo e a média geral (%) com o primeiro grupo
Em seguida, analisamos as mais relevantes associações entre as variáveis,
conforme demonstrado na Tabela 2.
Tabela 2 – combinações entre as variáveis de cada grupo
A partir da Tabela 2, esquematizamos o Gráfico 3. Ele indica que quanto
maior é a dedicação à arte, menor há envolvimento do poeta com atividades político-
-institucionais ou militâncias na sociedade. Ainda no Gráfico 3, no prêmio Camões, o
índice de “outro dom artístico” é 0%, e a associação entre as variáveis “perspectiva
multicultural” e “atividade política” apresenta porcentagem elevada em relação aos
demais grupos: 35%. Isso sugere alto nível de interatividade social presente no perfil
dos que ganham o título:
Gráfico 3 . Associação entre variáveis (%)
No tocante ao quesito gênero, os dados colhidos entre os poetas
demonstram, em todos os casos, um índice minoritário de mulheres. A presença do
gênero feminino oscila entre 05% a 38%, dependendo do grupo. Os resultados mais
recentes apontam um aumento deste gênero, passando a oscilar na faixa entre 20%
a 40%, seja qual for o local determinado no Brasil. O levantamento do primeiro grupo
deu origem ao Gráfico 4, e no segundo grupo houve um acréscimo de outros
integrantes, perfilando o Gráfico 5:
DEMAIS INTEGRANTES:
Concurso Literário Asabeça Poesia 2011 ................................ 375
Concurso Literário Asabeça Poesia 2012 ................................ 525
TOTAL ..................................................................................... 1559
No Gráfico 4, segundo o perfil do século XIX, nota-se um índice
demasiadamente baixo de mulheres, fato determinado pelas poetisas Gilka
Machado e Cora Coralina. No século XX, há o privilégio das poetas Cecília Meireles,
Clarisse Lispector, Lya Luft e Maria Ângela Alvim, as que determinaram a posição do
gênero:
Gráfico 4 . Primeiro grupo
Gráfico 5 . Amplitude de todos os grupos
No Gráfico 5, conforme o somatório de todos os grupos, totalizando um pouco
mais de 1550 poetas nacionais, ainda que tenha aumentado a atuação das mulheres
nas áreas de liderança no mundo, fica fácil perceber a maioria do gênero masculino
no ramo da literatura poética, a que marcou os dois últimos séculos antecedentes ao
fim do segundo milênio. Esta análise desconsiderou ‘29 Escritores e Lusófonos’.
No quesito sobre o baixo grau de escolaridade, ou escolha de alfabetização
por meios pessoais, notamos uma minoria de 2% dos poetas:
PRÊMIO CAMÕES:
• José Saramago (1922~2010): formação técnica.
SÉCULO XIX:
• Ascenso Ferreira (1895~1965): não se formou.
• Casimiro de Abreu (1839~1860): instrução primária.
• Cora Coralina (1889~1985): cursou as primeiras quatro séries.
• Lima Barreto (1881~1922): Escola Politécnica.
• Luíz Gama (1830~1882): alfabetizou-se com 17 anos e se formou em
Direito.
• Lúcio de Mendonça (1854~1909): alfabetizou-se lendo recortes de
jornais; idealizador da ABL.
• Orestes Barbosa (1863~1966): alfabetizou-se lendo cabeçalhos de
jornais.
• Machado de Assis (1839~1908): baixa frequência escolar, autodidata.
SÉCULO XX:
• Adalgisa Nery (1905~1980): instrução Fundamental, nível 1.
• Érico Veríssimo (1905~1975): instrução Fundamental em seminário.
• Nelson Rodrigues (1901~1975): abandonou o Ensino Médio.
Quanto à confiabilidade nos resultados tirados, o primeiro grupo foi apurado
com maior abundância de informações, logrando maior ciência, enquanto no
segundo deve haver uma leve margem erro para menos. Uma análise mais precisa
requereria tempo e apoio, por meio de um inquérito estritamente individual.
Os dados apontam, no Estado do Rio de Janeiro, maior número de poetas
com outro dom artístico, enquanto no prêmio Camões não há nenhum deles com
esta capacidade. A habilidade em idiomas aparece como a característica
ligeiramente superior às demais e, pois, merece cuidadosa observação.
Finalmente, em nossa sondagem desconsideramos o aspecto inerente à
casta social a título de medição, delegada apenas como objeto de observação de
cada autor. Preferimos aferir a pontuação no tocante ao número de requisitos
preenchidos nas variáveis, como seguem:
7 AUTORES PREENCHEM OS CINCO REQUISITOS
• Aluísio Azevedo
• Antonio Miranda
• Clarice Lispector
• Gilberto Freyre
• Herman Lima
• Jorge de Lima
• Pascoal Carlos Magno
( 1 % do TOTAL )
85 AUTORES PREENCHEM TRÊS REQUISITOS
(referentes a: idiomas, políticas, e vivência internacional)
( 12 % do TOTAL )
_ V _
CONSIDERAÇÕES FINAIS
[ ... ] Se eu digo
“B” é uma nova bomba na batalha do homem.
Maiakovski
O percurso da pesquisa nos levou a refletir que o desabamento da poesia, e a
lida com a linguagem, descortinaram em nós, na sua zona de catarse, múltiplas
visões, vividez e concisão, harmonia de uma desarmonia, fórmula que não tem
fórmula, definição de uma esfera inexorável nos arranjos da arte. Nessa tessitura, o
enunciado compõe-se de um teor verossímil e intraduzível sem que se altere sua
origem, uma qualidade a ser assimilada somente com espírito equivalente, sopro
reflexivo; latência à espera de sua amplitude. Tal como a linguagem dos sonhos, a
poética fiel é sempre uma lavoura de impactos, expõe um alarme mítico para uns,
ou, aos demais, batalhas normais sem lustres possíveis. Adiantados no tempo,
acolhem os poetas um novo paradigma, ainda que contundente e repudiado
socialmente; um pequeno sentido “A” poderá ser sacrificado em detrimento de um
módulo muito maior, o “B”. Mas quantos se sentem capazes de se desfazer dos
arraigados conceitos, no corpo ou na mente?
Assim, o nosso estudo sobre a poiesis e a linguagem acentuou que somos
totalmente responsáveis por nossas escolhas, e, na medida que assumimos o papel
de observadores mais atentos, quiçá, podemos radiografar as origens de nossa
missão, perfilando uma das mais importantes, a de decodificar um falso e potente
conceito, a convencer a massa; tudo fruto de religiosa reclusão. Bosi (2006, p. 269)
comenta que “o poeta, inserindo-se cada vez menos na teia da vida social, faz do
exercício da arte sua única missão e, no limite, um sacerdócio”. A mais proeminente
prova de eficiência da poética deveria nos livrar da área dos conceitos.
Imersos nessa vasta constelação de enunciados líricos, contemplamos as
peculiaridades mensuradas a partir da vitalidade dos autores, sendo inevitável a que
nos deparássemos com doses infinitesimais de preconceito linguístico. Gênio no
mesmo patamar de grandes literatos, Lima Barreto (BOSI, 2006, p. 322),
enclausurado em sua linguagem lírica, porém sincera, não estava no apogeu da
insanidade. Vendo-se obrigado a varrer o pátio do manicômio, expressou o horror à
sociedade, a vontade plena de desaparecer sem rastros na memória da Terra; um
tipo de vergonha da existência, antecipando um sentimento de condenação à morte.
“Me acenaram tanta grandeza e, agora, de uma hora para outra, sem ter perdido de
fato a minha situação, vejo cair tão baixo, que quase me pus a chorar como uma
criança”, uma leitura que faz lembrar as Recordações da casa dos mortos, de
Dostoievski. O seu espírito indagador revela a procura do essencial, apesar das
tentações dispersivas e do grande preconceito racial que outrora sobejava.
Quanto às observações delegadas ao século XIX, apontando em menos de
5% o volume de mulheres a contemplar prestígio social, imaginamos o quão
sufocante pode ter sido a sociedade antecedente ao Romantismo, apesar da grande
qualidade literária. Machado (1991) redigiu versos que foram julgados escandalosos
no início do século XX, em lustroso erotismo. Integrante dessa minoria esmagadora
na época, ela representou a maior figura feminina de nosso Simbolismo, precursora
na luta pela libertação erótica da mulher brasileira. A ousadia de sua lira amorosa e
espiritualizada resultou em um atormentado cautério, poderosamente salutar, que
rebateu contra ela própria:
Ser mulher, calcular todo o infinito curto para a larga expansão do desejado surto, no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...
Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza! ficar na vida qual uma águia inerte, presa nos pesados grilhões dos preceitos sociais! 19
Na medida que avaliávamos, nos deparamos com quatro casos de suicídio,
gerando 0,6% do total. Ao anotar os nomes – Ana Cristina César, Torquato Neto,
Francisca Júlia da Silva, e Raul Pompéia –, emergiram ponderações sobre o
problema dos limites da linguagem. Ela, sobretudo a poética, poderia desvendar as
origens do incompreensível e auxiliar na autoestima? Em que medida a retórica
poderia ter mudado o curso da história? Pouco, ou nada, sabemos. Em que grau as
mensagens subliminares inconscientes exercem influência sobre uma pessoa,
automatizando-a e/ou robotizando-a, é tarefa da metafísica, espiritualidade, ou da
psicologia. Certificamos mormente que tais poetas eram bem letrados e com boa
19 In: MACHADO, 1991, p.106: tercetos finais do soneto “Ser mulher...”.
perspectiva multicultural. Se a sublimação produzida pela arquitetura poética pode
ou não sobrepujar grandes perdas, nada creditamos. Parafraseando as premissas
de Schopenhauer (2001, p. 72), circulamos a conclusão segundo a qual da mesma
forma que “todos os tratados de estética, desde o de Aristóteles, não lograrão
sucesso na criação de um poeta”, todas as poesias do mundo jamais poderão alterar
a natureza humana, pois esta última é a gênese que antecede a sua conduta.
A sondagem dos dados mostrou que o domínio de outro idioma não vernáculo
é uma marca saliente no caminho dos autores. Não atribuímos esta característica
em comum, por si só, a que determine o sucesso lírico. É um dado considerável,
uma vez que a desenvoltura da linguagem pode se ampliar para o campo da própria
língua vernácula. Na concepção de Goethe (VYGOTSKY, 2001, p. 354) “Quem não
conhece nenhuma língua estrangeira não conhece integralmente a sua própria
língua”. Na práxis, ser proficiente em outro idioma significa identificar-se
culturalmente com a nação de sua origem; traduz-se em assimilar uma perspectiva
importada. Todavia, devido à menção de Croft & Cruse (FIT, 2010), “a linguagem
não é faculdade cognitiva autônoma”, não creditamos que, isoladamente, tal
capacidade sintetize-se no êxito poético, já que se encontra vinculada a outras
variáveis propostas ou as não coletadas.
Ao final de nosso estudo, estávamos bem mais agraciados quanto à
qualidade dos prados na literatura poética brasileira, e, embora nossa ígnea
preocupação não fosse a de infiltrar no oceano de interpretações das líricas
construídas, atravessamos uma fúlgida plataforma no império da linguagem e
pudemos, ao menos, cogitar ao lado dela. Esperamos que esta pesquisa possa
esclarecer um pouco mais sobre os incisivos problemas a que garridamente nos
sujeitamos.
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APÊNDICE
Nota sobre a Epígrafe
HUINENG, Dajian [638~713]: réplica ao poema de Jinshu (Yequan
Shenxiu), o discípulo veterano da congregação do mestre Daman Hongren.
O mestre solicitou aos discípulos um poema, cuja análise levaria à escolha
do sucessor ao cargo de 6o Patriarca na China – linhagem oriunda do sábio
Gautama Shakyamuni (465 a.C., Índia). Ao contrário do letrado Jinshu,
Huineng era analfabeto e trabalhava como serviçal do monastério. Uma
disputa gravíssima se desencadeou na sucessão porque um grupo de
monges recusava-se a aceitá-lo. Ameaçado, Huineng foi obrigado a fugir
para um templo no sul da China; no final, respaldado pela maioria, ficou
reconhecido como o autêntico Patriarca. Eis o poema inicial:
O corpo é a Árvore da Sabedoria Búdica
A mente é como um espelho É preciso poli-la constantemente
Para mantê-la sempre pura.
Nota sobre o Koan
Na verdade, este modo de tratamento foi empregado pelo mestre Tokuzan
Senkan [(Deshan Xuanjian) 780~865], que era discípulo de Ruytan, da
linhagem escolástica Rinzai Zen. Numa noite, após uma fabulosa
experiência de súbita iluminação com seu mestre Ryutan, ele resolveu
queimar todos seus sutras. Tokuzan desafiava seus discípulos com o
seguinte koan: “se responderes minhas perguntas, levareis 30 pauladas, se
não responderes, também levareis 30 pauladas”. Na presente citação há –
não sabemos se é intencional ou acidental – uma mistura de ideias com o
koan surgido por intermédio do mestre Huineng [638~713], da Escola Soto
Zen. O mestre Huineng foi indagado, em duas ocasiões distintas, se o
cachorro tinha natureza búdica: na primeira vez ele disse “U” (sim), e numa
segunda ocasião disse “Mu” (não). A solução a esse paradoxo tornou-se
rápida e largamente conhecida.20
20 Informações científicas a respeito da prática meditativa no Brasil e no mundo encontram-se em: GOUVEIA, Koguen, Portais Búdicos – o caminho na natureza da mente, LP-Books, 2010, p.253.
Análise biológica de Ricardo Reis
Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio
Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e não estamos de mão enlaçadas. (Enlacemos as mãos) Depois pensemos, crianças adultas, que a vida Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado, Mais longe que os deuses. Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassossegos grandes.
Sem amor, nem ódios, nem paixões que levantam a voz, Nem invejas que dão movimento demais aos olhos, Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro Ouvindo correr o rio e vendo-o, Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as No colo, e que o seu perfume suavize o momento – Este momento em que sossegadamente não cremos em nada, Pagãos inocentes da decadência. Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova, Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio, Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti. Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira-rio, Pagã triste e com flores no regaço.
PROSÓDIA
Tipologia: Versos Livres em 8 quadras
Modalidade: Logopeia (segundo Ezra Pound)
Sequência de rimas / Métrica: ausente / ausente
Aliteração: concentra-se em (M – N) em todas as estrofes
Assonância: nenhuma saliente
Rítmica: cadência decrescente; quebra de continuidade do sintagma versal
SEMÂNTICA
Número da narração / Gênero dominante: 1a do plural / Masculino
Anáfora / Catáfora: em torno do “rio” / o “rio” se humaniza no regaço.
Personificação: ausente
Apóstrofe: “crianças adultas”
Neologismos / Polissemia: não / não
Diácope / Epizeuxe / Quiasmo: diácope: “te arda ou te fira ou te mova”
Figuras de linguagem:
Antítese: “crianças adultas”
Hipérbole: “mais longe que os deuses”
Metáfora: “pé do Fado” (por beira)
Eufemismo: “levar óbolo ao barqueiro sombrio” (por morrer)
ANÁLISE RETÓRICA
1a estrofe: súplica de uma companhia junto ao pitoresco da Natureza.
2a estrofe: observância do poder do curso dos fenômenos que passam.
3a estrofe: sumária conclusão de que os laços entre matérias não existem.
4a estrofe: reafirmação da rota da vida, que corre em direção ao imensurável.
5a estrofe: exaltação de um amor alvo e telepático, onde o que importa é a
proximidade junto à fluência do momento.
6a estrofe: momento de contradição. Não há crença, exceto a crença de que
não há crença em nada. “Pagãos inocentes da decadência” sugere um estado de
contemplação serena às quedas das civilizações.
7a estrofe: jogo com a elasticidade do tempo. Por um lado saúda as
lembranças (“sombra antes” = antecipação da luz / “fomos crianças” = antecipação
da fase do corpo) e por outro vaticina o feedback no futuro (“lembrar-te-ás”).
Última estrofe: cogitação da morte. Porém, a catáfora poética traz a região
pélvica (regaço) de Lídia diante do cenário que flui. O humanismo, ou seja, o retorno
aos clássicos greco-romanos está presente na brevidade do último verso.
Comentário:
A infinitude e sensibilidade desses versos desmascaram a dupla
personalidade do poeta Ricardo Reis, genialmente expressos por Fernando Pessoa.
Por um lado, voltava-se para a filosofia do carpe diem, e, ao mesmo tempo, adotava
uma postura estoicista pouco resolvida. Um homem completamente incerto nas
dimensões sensoriais, cuja ataraxia não se mostra alcançada, expondo sua avidez
pelo sossego, repetido por 3 estrofes em modos adverbiais. Passa por uma
transição diagonal entre o sagrado e o mundano: uma luta entre o fim da estagnação
e a imóvel imperturbabilidade, que oscilava entre o fluxo do rio geográfico e o fluxo
do rio nas artérias humanas. No fluxo dessa corrente incerta, todavia – ainda que
perigosamente manipulada pela racionalidade da mente –, sua alma amálgama e
alva, por fim, ora humanamente por uma “pagã triste com flores no regaço”.
Em síntese, tudo se inicia com verves ultrarromânticas de um casal num
cenário junto à plácida Natureza, sendo que, em breve, o verniz inquietante do
cotidiano vem à tona. A potência poética se exala com a liberdade da catáfora,
preparando o leitor para determinar qual elemento universal – se a Natureza ou a
natureza humana, ou ambos – pode ser extraído como inspiração corrente no
caminho.