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FICHA TÉCNICA
Projeto de investigação para intervenção museológica As culturas do trabalho no Barroso
ENTIDADE RESPONSÁVEL PELO ESTUDO
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
Centro de Estudos Transdisciplinares para o Desenvolvimento
Coordenação geral e científica de Xerardo Pereiro
Textos e fotografias de Daniela Araújo
Design de Dina Fernandes e Paulo Reis Santos
PARCEIROS DO PROJETO — CÂMARA MUNICIPAL DE MONTALEGRE E ECOMUSEU DE BARROSO
FINANCIAMENTO — ON2, CCDR-N E CÂMARA MUNICIPAL DE MONTALEGRE
Montalegre 2012
O Ecomuseu de Barroso
A faculdade da memória é a mais valiosa herança com
que Deus dotou o ser humano. Será possível imaginarmo-
nos a viver sem ela? Como seria viver sem lembranças?
O que aconteceria?
Toda a nossa força intrínseca, toda a nossa vida consciente
deixaria de existir; perdíamos parte da dimensão humana,
ou seja, milhões de anos de experiência feita. Aqui se
alicerça o conceito de património, na sua dimensão
agregadora e de responsabilidade de preservação e
valorização. Como se diz em Barroso: “O que recebemos,
temos obrigação de deixar igual ou melhor…” Neste
sentido, foi criado o Ecomuseu de Barroso que se
caracteriza como um espaço aberto, um espaço da
povoação, do ordenamento do território, da identidade da
população, tendo em atenção os valores do presente, do
passado e do futuro. Neste espaço, o visitante converte-
se em ator-participante.
O Ecomuseu situa objetos no seu contexto, preserva
conhecimentos técnicos e saberes locais, consciencializa
e educa acerca dos valores do património cultural.
Implica interpretar os diferentes espaços que compõem
uma paisagem; permite desenvolver programas de
participação popular e contribui para o desenvolvimento
da comunidade.
Este projeto de desenvolvimento sustentável tem dado
continuidade ao trabalho de pesquisa sistemática, tarefa
que permite inventariar a globalidade de património
construído do território de Montalegre e Boticas, tendo em
5� | As culturas do trabalho no�Barroso
vista a posterior salvaguarda e valorização dos espécimes
selecionados pelo seu particular interesse patrimonial e
divulgados nos pólos de Salto, Pitões, Tourém, Paredes
do Rio e Vilar de Perdizes.
A análise das construções associadas à conservação
e à transformação dos produtos tem permitido um
melhor conhecimento da arquitetura popular da região,
nomeadamente dos canastros, dos moinhos, dos fornos,
das fontes, dos pisões e dos lagares, entre outros
edifícios de produção agrícola que contribuirão para o
reencontro com a identidade cultural local. O Ecomuseu
de Barroso é um espaço de memória vocacionado para
o desenvolvimento, dando particular destaque ao
Património Imaterial de que é prova este trabalho.
Nenhum desenvolvimento poderá ser sustentável, num
concelho com mais de oitocentos quilómetros quadrados,
se a população local não reconhecer as riquezas do local
onde vive, e se não começar a ter dividendos da valorização
desses sítios a que alguns chamam património, enquanto
outros apenas aí vêem “patrimonos”. Esta nova visão terá
implicação no modo de vida da população e na sua forma
de encarar o futuro.
David Teixeira, Director do Ecomuseu de Barroso.
O projeto de investigação para intervenção museológica
As culturas do trabalho no Barroso, foi desenvolvido
pelo Ecomuseu de Barroso em colaboração com a UTAD,
através do CETRAD (www.cetrad.info), o Pólo da UTAD em
Chaves e a antropóloga Daniela Araújo. A investigação,
que se iniciou no mês de junho de 2011 e se prolongou
até ao final do mês de março de 2012, teve a orientação
científica do antropólogo Xerardo Pereiro – investigador
efetivo do CETRAD e docente da UTAD em Chaves.
Os objetivos da investigação centraram-se na análise
das culturas do trabalho sobre o Barroso, articulando-se
com as linhas de actuação do Ecomuseu de Barroso, uma
instituição que tem contribuído, decisivamente, não
apenas para “colocar o Barroso no mapa”, mas também
para reverter, simbolicamente, a imagem e a realidade
desta região “raiana” do Norte de Portugal. Mais
importante, ainda, tem sido o papel do Ecomuseu de
Barroso na reorganização e articulação das comunidades
afirmando a sua cultura como um capital sociocultural
importante e útil para viver e criar planos de vida nestas
terras do interior.
Entendemos por culturas de trabalho as que se geram
nos diferentes processos de trabalho, nomeadamente
aquelas que resultam da ocupação de diferentes posições
nas relações sociais de produção. E o trabalho de Daniela
Araújo tem sido minucioso, rigoroso e extremamente
reflexivo e cuidado, fruto não de recolhas, mas de uma
etnografia reflexiva de um intenso conviver humano com
os seus protagonistas, nos seus quotidianos vivenciais
7� | As culturas do trabalho no�Barroso
mais familiares. É na observação dos e com os outros
que Daniela Araújo tem construído teorias antropológicas
vividas pelos agentes sociais do Barroso. Desta forma,
a investigação e os seus resultados ajudam-nos a a
construir novos olhares sobre as novas ruralidades .
Longe de ser um exercício de exotização ou
primitivização, o trabalho de Daniela Araújo mostra o
velho e o novo, as permanências e as transformações,
as tradições e as inovações, as localidades e as
globalidades, as pluriatividades e as especializações
nas formas de trabalhar e produzir no Barroso. Aí reside
a sua mais-valia, isto é, a rejeição de um ruralismo
exoticista para posicionar-se na compreensão das
lógicas, conhecimentos e saberes nativos, e o seu
valor universalista e global. Pensamos que, com esta
investigação e as suas aplicações, o visitante e o
residente poderão criar mais facilmente quadros de
referência interpretativos e de tradução intercultural
que nos ajudem a compreender melhor os sentidos do
viver humano.
Xerardo Pereiro, Coordenação geral e científica.
9� | As culturas do trabalho no�Barroso
A�manteigaA boa manteiga faz-se com o leite das vacas
alinheiras. O leite de alinheiro é o primeiro leite
que a vaca dá depois de lhe serem retirados os
vitelos. E, na aldeia da Reboreda, a manteiga
fazia-se com o leite das vacas barrosãs, um lei-
te mais espesso, capaz de dar uma manteiga
mais saborosa (figura 1).
D. Rosinha aprendeu a fazer manteiga com a
mãe. Lá em casa havia quinze vacas, o sufi-
ciente para se fazer manteiga para a família e
para oferecer e vender a outras casas. A mãe
fazia, a irmã mais velha também fazia, mas
D. Rosinha, em casa da mãe, nunca chegou a
preparar manteiga. Apenas via fazer. Mas foi o
suficiente para, após o casamento, decidir co-
meçar a fazer manteiga em casa da sogra.
Para mungir as vacas, havia que as sossegar
primeiro. Um cesto de erva fresca no verão, ou
de feno no inverno, permitia um nível de dis-
tração suficiente para lhes extrair o leite. De-
pois, havia que as afagar:
A gente encostava a cabeça à vaca. Elas gostam muito. Começava a esfregá-las primeiro na anca, para as habituar e depois no úbere, para as amansar. (Rosinha, 19-8-2011)
Antes de mungir as vacas, havia que lhes la-
var os úberes com o auxílio de panelos de barro
cheios de água.
E, depois, era necessário saber gerir a gestu-
alidade necessária para extrair o leite com os
ataques das moscas que picavam nos animais
e nas pessoas e o rabo das vacas que batia na
cara de quem ordenhava:
Ai, eu apanhei assim muitas batedelas. (Rosi-nha, 19-8-2011)
A gestualidade para mungir as vacas treinava-
se desde a infância, na partilha dos trabalhos
caseiros entre as mulheres da casa. O truque
para extrair todo o leite dos úberes das vacas
está na pressão crescente que se faz com o
13� | As culturas do trabalho no�Barroso
dedo mindinho no fim do movimento descen-
dente exercido na teta. Em cada ordenha, o pri-
meiro leite retirado é mais aguado e o último
mais rocinho, mais rico e espesso.
Os úberes tinham que ser mungidos de forma a
extrair todo o leite existente, caso contrário, a
vaca assocava, isto é, ganhava mamites. Aliás,
quando os vitelos não mamavam, as mulheres
da casa tinham de ir tirar os restos do leite às
vacas mesmo que esse leite não fosse depois
usado para consumo da unidade doméstica.
Nos primeiros dias após terem as crias, as va-
cas produziam um leite amarelo que não se
aproveitava e se deitava aos porcos.
Preferiu sempre a D. Rosinha usar o leite do
gado barrosão para fazer manteiga:
O leite é muito melhor. Dão menos. Mas é mui-to melhor a manteiga. Experimentei vacas turi-nas, fazem o úbere muito grande, dão mais leite, mas muito mais fininho, nem a manteiga tem tão bom paladar, nem o leite tem tão bom pala-dar. (Rosinha, 19-8-2011)
Hoje, o cenário da ordenha manual das vacas bar-
rosãs constitui uma memória cada vez mais vaga
e cada vez mais estranha às gerações mais novas:
Na freguesia há vacas mas não há mulheres que as queiram mungir. Aquilo dá muito trabalho. Mas agora ninguém quer. Agora esta gente nova pensa que se pegam a isso? E é uma pena. (Ro-sinha, 19-8-2011)
No passado, o leite utilizado para fazer a man-
teiga era utilizado cru:
Depois, comecei a ferver quando começaram a dizer que o leite tinha de ser fervido. (Rosinha, 19-8-2011).
O leite fervido permitia uma maior produção
de natas. O processo de obtenção das natas
em quantidade suficiente para se fazer a man-
teiga podia durar até três dias. Tudo dependia
do leite que se conseguisse ordenhar. Coado e
fervido, o leite ordenhado nesse dia tinha de
ser deixado em repouso até ao dia seguinte.
De seguida, com o coador, retiravam-se as na-
tas que vinham à coroa do leite. As natas iam
sendo guardadas em vasilhas nos armários
inferiores do escano. Por vezes, para acelerar
o processo de coagulação do leite e conseguir
extrair maior quantidade de natas, colocavam-
se as vasilhas junto do lume.
15� | As culturas do trabalho no�Barroso
Obtida a quantidade necessária de natas, ini-
ciava-se o processo de confeção da manteiga,
que basicamente consiste em bater as natas
até que a gordura se separe do soro. A tem-
peratura ambiente e da água necessária para
completar o processo era e é a variável mais
difícil de controlar e aquela que mais influên-
cia tem: pode atrasar as operações ou mesmo
inviabilizá-las.
Na casa da mãe, a manteiga fazia-se pela
fresca, de manhãzinha, na varanda. É essa a
altura do dia que D. Rosinha continua a pre-
ferir para a fazer. De verão, D. Rosinha tem
de bater as natas antes que o sol aqueça a
cozinha, ou recorrer à água da fonte para fa-
zer baixar a temperatura. Uma temperatura
muito elevada não permite a separação do
soro da gordura. Até as mãos excessivamente
quentes podem inviabilizar todo o processo.
No inverno, com as temperaturas excessiva-
mente baixas e, por vezes, com o fogão e a
lareira acesos, há que procurar locais especí-
ficos na cozinha para que o soro se aparte da
gordura sem mais dificuldade.
No passado as natas eram batidas à mão em
bilhas de barro preto (figuras 2 e 3). Uma mão
era colocada dentro da bilha e a outra per-
manecia na boca da bilha para impedir que
as natas viessem para fora, como D. Rosinha
gosta de mostrar, agora que usa outros equi-
pamentos (figura 4):
A minha mãe fazia numa bilha, batia com a mão, punha-se uma mão por cima, para não acertar a nata para cima. A minha mãe batia sempre à mão e eu também. (Rosinha, 19-8-2011)
figuras�2�e�3
Havia, também, quem usasse uma vara den-
tro da bilha para bater (figura 3), ou um bate-
dor manual (figuras 5 e 6) mas em casa da fa-
mília de D. Rosinha nunca se utilizaram estes
equipamentos.
Bater as natas à mão, até que se procedesse à
separação do soro da gordura, podia demorar
mais de uma hora. Dependia do jeito de quem
batia as natas, assim como da temperatura
ambiente:
De inverno tenho alturas em que me vejo para a fazer. Tenho de procurar os locais mais pró-prios porque ela tem uma certa temperatura. De inverno tenho de a meter dentro de uma bacia. Em vez de a pôr no balcão, que o balcão também é frio, e às vezes estou ali três horas e não a bato, aqueço a água e ponho-a à tem-peratura de nos lavarmos e meto a bacia com as natas dentro da água e está pronta a juntar, depois tiro a bacia para fora, e depois tem de se bater até apartar a manteiga. (Rosinha, 19-8-2011)
Atualmente, D. Rosinha utiliza o batedor elé-
trico para fazer a manteiga, e a bilha de bar-
ro foi substituída por um alguidar de plástico
(figura 7):
figura�7
19� | As culturas do trabalho no�Barroso
É mais limpo bater com o batedor. É mais fácil mas como a bilha é de barro não convém porque desfaz, então arranjei uma bacia mais altinha e bato-a na bacia. (Rosinha, 19-8-2011)
À medida que se vão batendo as natas com
a varinha mágica vão-se formando partículas
sólidas de gordura, que vão ficando cada vez
maiores, até se formar uma massa de mantei-
ga que se separa do soro. Essa bola de man-
teiga deve, ainda dentro da bilha ou da bacia,
ser depois apertada à mão, juntando-se água
fria nesse processo. Prefere D. Rosinha juntar
água da fonte e não da torneira por a conside-
rar mais pura e de temperatura mais adequa-
da. Esta operação deve ser repetida as vezes
suficientes até que a água saia limpa. De se-
guida, ainda se bate algumas vezes a bola de
manteiga dentro do alguidar, sempre regada
com alguma água fresca (figuras 8, 9, 10 e 11):
Batia à mão, começava a juntar, ia o leite para um lado e a manteiga para o outro. E ainda apertava, fazia assim uma bolinha, dentro do pote, apertava toda e ficava o leite massado, que era de se bater. E depois deitava-se o leite fora e deitava-se água e apertava-se, dentro da bilha. Apertava-se até deitar água branca, duas, três águas fica bem, é suficiente. Depois fica aquela
figuras�8,�9,�10�e�11
bolinha, a gente se quiser põe num recipiente. (Rosinha, 19-8-2011)
A introdução do batedor elétrico e da bacia de
plástico não são as únicas inovações na mantei-
ga feita em casa. Na impossibilidade de arranjar
leite de vacas barrosãs para poder colher a nata,
D. Rosinha optou por usar natas compradas.
Várias marcas de natas foram testadas e exis-
te apenas um tipo que foi aprovado por mais se
aproximar das natas caseiras (figura 12):
figura�12
21� | As culturas do trabalho no�Barroso
A Agros não é tão boa e fica mais branca, não fica tão gostosa. A Mimosa não junta tão bem. A Longa Vida fica amarelinha como a das vacas, quase como a caseira e as natas são quase natu-rais. (Rosinha, 19-8-2011)
O processo de produção caseira da manteiga
não fica completo quando termina de se formar
a bola dentro da bilha ou alguidar. As bicas de
manteiga, assim chamadas por terem a forma
de pães designados por esse nome, obtêm-se
batendo a bola de manteiga num prato de ma-
deira (hoje de vidro ou loiça) repetidas vezes:
Com a bica tem a gente de a bater. A minha mãe fazia manteiga e era muito mais fácil nessa al-tura, sabe porquê? Porque as águas eram natu-rais e de inverno eram mais quentes e de verão mais frias. Agora como as águas vêm de longe, vem quente nesta altura e de inverno vem gela-da. Ao outro dia estive para fazer por esta hora, duas bicas de manteiga e a primeira ainda a fiz bem porque estava fresco, mas depois começou a aquecer, a entrar-me aqui o sol, tive de ir por uma caneca de água pela fonte ali abaixo, fres-ca, para poder fazer a bica. A minha mãe tinha um prato como há ali na Casa do Capitão, de madeira, (figura 13) mas tenho aqui uns pratos que são maiorzinhos e quando as bicas são gran-
des, até faço às vezes nestes de vidro. Deito aqui a bola e depois bato de lado, bato do outro, bato do outro. (Rosinha, 19-8-2011)
A bica é batida com preciosismos até formar
quatro lados. Depois, aguçam-se as duas pon-
tas com os dedos e sempre com a ajuda de
água fresca da fonte (figuras 14 e 15)
No passado, a marcação das bicas de manteiga
com as formas (também chamadas de moldes
ou cornas) era obrigatória quer as bicas fos-
sem para consumo da casa, quer para ofertar
ou vender. A marcação fazia-se com as formas,
também chamadas de moldes ou cornas. Es-figuras�14�e�15
figura�13
23� | As culturas do trabalho no�Barroso
tas formas, habitualmente feitas de madeira
de carvalho pelos homens da casa ou adqui-
ridas a artesãos habilidosos, eram decoradas
com motivos vegetalistas e geométricos (figu-
ras 16, 17 e 18).
�figuras�16�e�17
Marcar as bicas de manteiga com as formas
tem uma gestualidade própria. A forma tem
de ser molhada para que não se cole à bica.
Também não se pode enterrar demasiado a
forma na bica pois pode ficar agarrada (figuras
19, 20 e 21).
D. Rosinha não possui nenhuma das duas for-
mas das que existiam em casa da mãe. Herdou,
sim, uma forma de uma irmã da sua sogra e é
essa que usa para marcar as bicas de manteiga
que oferece às amigas (figuras 16, 17 e 18). A
sua mãe vendia e oferecia a algumas pesso-
as. D. Rosinha perpetuou a prática de ofertar
as bicas de manteiga, agora feitas com natas
compradas no supermercado, reforçando redes
de amizade e de vizinhança e reatualizando o
saber fazer materno:
A minha falecida mãe vendia a algumas senho-ras, mas eram poucas. Vendia a uma senhora que trazia umas cestinhas pequeninas e depois a minha mãe punha um paninho de linho por baixo e depois punha a bica de manteiga e de-pois o linho por cima. E essa senhora levava para outra senhora e eu agora ofereço à filha dela. Eu nunca fiz para vender. Só para casa e oferecia a amigos, vizinhos. (Rosinha, 19-8-2011)
figura�19