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Conditionals, For Tntth in Semantics, Necessary Questions, e In My Fathers

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CHARLES TAYLOR

K. ANTHONY A!'PIAH

JURGEN HADERMAS

STEVEN C. ROCKEFELLER

MICHAEL WALZER

SUSAN WOLF

MULTICULTURALISMOEXAMINANDO A pOLiTICA

DERECONHECIMENTO

INSTITUTOPIAGET

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Titulo original: MulticulturalismAutor: Charles Taylor© Princeton University Press, 1994Colec~ao: Epistemologia e SOciedade, sob a dlreclVao de Antonio Oliveira CruzTradw;ao: Marta Machado, para Textos e LetrasRevlsao clentifica: Pedro Duarte, para Textos e LetrasCapa:DorindoCar~

Dlreitos reservados para a lingua portuguesa:INSTITUTO PLAGET-Av. Joao Paulo II, lote 544, 2.° - 1900 LiSBOATel.: 837 17 25E-mail: [email protected]

Fotocomposl\;ao: Instituto PiagetMontagem, impressao e acabamento: MlnigrMcaDeposito legal: 126541/98ISBN: 972-771-016-6

Nenhwna parle desta publicai;a.o pode sec reproduzlda ou ltansmitida porqualquer proc:esso electronico, meco\nico ou lologr:iflco, incluindo fOI0c6pia,xeroc6pia ou grava<;ao, sem autoriza<;ao previa e escrita do editor.

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Para Laurance S. Rockefeller

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PREFAcIO (1994)

Desde a sua publiea(iio, em 1992, que Multiculturalism and«The Politics of Recognition» eonheeeu ja versoes em italiano, fran­ces e alemiio. Esta ll/tima inclui um eomenttirio alargado da autoria dofilosofo polftieo Jiirgen Habermas, que da um eontributo importante adiseussiio, actualmente de dimensiio multinaeional, sabre a rela(iioentre democracia eonstitucional e uma polftiea que reeonheee diversasidentidades eulturais. Convidamos K. Anthony Appiah, professor eate­dratieo de Estudos Afro-Amerieanos e de Filosofia, de Harvard, a apre­sen tar as suas reflexoes sabre a po/{tiea do reeonhecimento. Appiahesereveu um ensaio brilhante sabre a rela(iio problematiea entre a reco­nhecimento de identidades eoleetivas, a ideal da autenticidade indivi­dual e a sobreviveneia das eulturas. Ecom prazer que incluimos ambosas ensaios na presente edi(iio alargada.

Habermas, que se aproxima de uma perspectiva kantiana, defendeque a protee(iio igual ao abrigo da lei niio e suficiente para eonstruiruma demoeracia eonstitueional. E que niio basta sermos iguaisperante a lei: tambem temos de nos eompreender como autores das leisque nos vineulam. «Depois de eompreendermos verdadeiramente estaliga(iio interna entre a democracia e a estado constitucional», escreveHabermas, «tornar-se-a claro que a sistema de direitos niio ignoranem as condi(oes sociais desiguais, nem as diferen(as culturais.»o que e eonsiderado como direitos iguais para as mulheres au para asminorias etnicas e eulturais nem sequer pode ser correetamente enten-

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dido ate os membros desses grupos «articularem e justificarem, emdiscussao publica, 0 que e importante para 0 tratamento igual ou desi­gual em casos tipicos». As discussoes democrtiticas tambem proporcio­nam aos cidadaos a oportunidade de esclarecerem «quais as tradiroesque querem perpetuar e quais as que querem abandonar, como e quequerem relacionar-se com a sua histaria, entre si, com a natureza,etc.» A democracia constitucional pode medrar no conflito suscitadopor estas discussoes e conviver com as suas resoluroes democrtiticas,sugere Habermas, desde que os cidadaos se unam atraves do respeitomutuo pelos direitos dos outros.

Habermas dislingue entre cullura, no sentido lato, que niio precisade ser partilhada por todos os cidadiios, e uma cultura polfticacomum caracterizada pelo respeilo mUtuo dos direilos. A democraciaconslitucional dedica-se a esta dislinriio ao garantir aos membros dasculluras minoriltirias «direilos iguais de coexistencia» com as cullu­ras maiorittirias. Tratar-se-ti de direilos de grupo ou de direilos indivi­duais? Habermas sustenta que sao direitos individuais de associaraolivre e de nao-discrimina~ao, direitos esses que, por isso, niio garantema sobrevivencia para nenhuma cullura. 0 projecto polflico de conser­var as culturas como se de especies em vias de exlin~iio se tratassepriva-as da sua vitalidade e aos individuos da sua liberdade para revere ate mesmo rejeitar as idenlidades cullurais herdadas. As democra­cias constitucionais respeitam um vasto leque de idenlidades cullu­rais, mas nao asseguram a sobrevivencia a nenhuma delas.

o ensaio de Appiah apresenta ainda outras razoes para a reflexiiosobre a necessidade de sobrevivencia cullural entendida como umagaranlia politica de que qualquer cullura continua a exislir atraves degera~oes futuras indefinidas. Appiah partilha da opiniiio de Taylor aoafirmar que existem «objeclivos colectivos legitimos cuja concretiza­~iio exigirti dedica~iio a um mero processualismo», mas a sobrevivenciacultural indefinida niio consta desses objectivos. Ao explicar porque,Appiah expressa 0 ideal da autonomia individual ao explorar a dificilrela~ao com a identidade colectiva.

Appiah pede-nos para medilarmos sobre 0 facto de as idenlidadescolectivas - a identificariio das pessoas como membros de um determi­nado sexo, rara, etnia, nacionalidade ou sexualidade - <<implicarem ano~ao de como uma pessoa concreta se comporta segundo a sua identi­dade: niio euma questiio de existir s6 uma maneira de os homossexuaisou os negros se comportarem, mas sim de haver vtirias maneiras decada grupo se comportar.» As dimensoes pessoais de idenlidade - ser-se

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espirituoso, prudente e atencioso - niio se manifestam tipicamente damesma maneira que as dimensDes colectivas. Estas, escreve Appiah,<jornecem aquilo a que poderfamos chamar de guiDes: narrativas queas pessoas podem usar para planearem as suas vidas e contarem assuas hist6rias. Na nossa sociedade (mas talvez niio na Inglaterra deAddison e Steele), ser-se espirituoso niio tem aver, assim, com 0 guiiiorelativo a "espirituosidade"».

No que respeita as mulheres, aos homossexuais, aos negros, aoscat6licos, aos judeus e a outras identidades colectivas, os guiDes temsido frequentemente negativos, criando obslticulos, em vez de oportu­nidades, a uma vida socialmente dignificada e de tratamento igual emrela~iio a outros membros da sociedade. A necessidade de reconheci­mento poUtico pode ser vista como uma forma de rever a importanciasocial herdada das suas identidades, de construir guiDes positivosonde antes existiam guiDes negativos. «Pode ser inclusive necessarioem termos hist6ricos, estrategicos,» especula Appiah, «que as hist6riassigam esse rumo.» Mas, acrescenta este autor logo a seguir, quemoptar conscientemente peIa autonomia niio deveria ficar satisfeito se asua hist6ria terminasse desta maneira, pois niio se trataria nesse casode «substituirmos um tipo de tirania por outro»? Niio sera a eficienciaestrategica de uma poUtica de reconhecimento tambem um mal, naperspectiva da autonomia individual? Appiah rejeita 0 reconheci­mento de grupo como um ideal, porque prende demasiado os indivf­duos aos guiDes sobre os quais tem muito pouco controlo criativo.«A po[{tica de reconhecimento», Appiah insiste, «exige que a cor dapele, 0 corpo, sejam reconhecidos politicamente de forma a impedir quesejam tratados como dimensoes pessoais do ser. Pessoal niio significasecreto, mas sim niio demasiado conformado a um guiiio.»

Sera que pode existir uma poUtica de reconhecimento que respeite apluralidade de identidades culturais e que niio restrinja demasiado avida de uma pessoa a um guiiio? Tanto Appiah como Habermas apre­sentam respostas complexas a esta questiio, apontando para a possi­bilidade de haver uma especie de democracia constitucional queproporcione essa poUtica, baseada, niio na classe, na ra~a, na etnia, nosexo, ou na nacionalidade, mas sim numa cidadania democratica deliberdades, oportunidades e responsabilidades iguais para os indivfduos.

AMY GUTMANN

25 de Marro de 1994

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PREFAcIO E AGRADECIMENTOS

A presente obra foi concebida primeiramente com vista a inau­gurariio do Centro Universitiirio para os Valores Humanos, naUniversidade de Princeton. Fundado em 1990, 0 Centro promove 0

ensino, a pesquisa e a discussao publica sobre questoes fundamentaisrelacionadas com valores morais que transpi'iem os estudos academicostradicionais. A questiio essencial e saber que comunidades podem sercriadas com justira e conservadas independentemente da diversidadehumana. Novos poderes de criarao e de destntirao estao adisposiraode sociedades cada vez mais interdependentes, com culturas, governose religii'ies verdadeiramente diversificados. Os estabelecimentos deensino superior, como e 0 caso de Princeton, tornaram-se eles pr6prioscomunidades cada vez mais pluralistas. A par deste pluralismo, existeum cepticismo generalizado sobre a defensabilidade de quaisquer prin­dpios ou perspectivas morais. Sao muitos os problemas morais quenos atingem e sao muitos os que questionam a nossa capacidade de osresolver com bom-senso.

As questi'ies eticas do nosso tempo constituem um desafio paraqualquer universidade empenhada numa missiio pedag6gica queengloba mais do que 0 desenvolvimento e divulgarao do conhecimentoempfrico e das tecnicas. Poderiio as pessoas com diferentes perspecti­vas morais ainda assim reflectir em conjunto, de forma a conseguiremuma melhor compreensao etica? 0 Centro Universitario dedica-se aeste desafio, promovendo a educariio superior centrada na analise dos

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valores etieos, ou seja, 05 diversos eriterios atraves dos quais 05 indivf­duos e grupos fazem op~oes importantes e avaliam 05 seus pr6priosmodos de vida, assim como 05 dos outros. Atraves do seu apoio aoensino, Ii pesquisa e Ii diseussiio publica, 0 Centro Universiltirioineentiva a estudo sistematico dos valores itieos e das influencias reef­procas da eduea~iio, da filosofia, da religiiio, da politiea, das profissoes,das artes, da literatura, da ciencia e da teenologia, e da vida etiea. Nitamenos importante e 0 facto de a esperan~a de eompreensiio etiea resi­dir na sua pr6pria pratiea pedag6giea. Se as universidades niio seempenharem em exercitar ao maximo a nossa reflexiio individual eeoleetiva sobre 05 valores humanos, entiio quem a fara?

Foram muitas, mais do que eu posso mencionar aqui, as pessoaseuja dediea~iio eontribuiu para a eria~iio do Centro Universiltirio.Algumas delas, porem, mereeem um agradecimento especial. QuandoHarold T. Shapiro proferiu, em 1988, a seu diseurso inaugutal naqualidade de 18.0 presidente da Universidade de Princeton, ele salien­tou a importilncia do pape! da universidade no ineentivo Ii problemati­za~iio etiea, <miio para anunciar um eonjunto de dou trinas destinadasIi sociedade, mas sim para assegurar que as estudantes e a pessoal aca­demieo ehamem sempre a nossa aten~iio para 05 problemas importantesda humanidade - e para que deem eontinuidade Ii busca de alternati­vas.» 0 Presidente Harold T. Shapiro transpos para a pratiea as suaspalavras, ao dar a seu apoio ao Centro Universitario.

Foi com grande prazer que trabalhei com um grupo de exeelentesacademieos e doeentes das mais diversas cadeiras que eontribuframdireetamente para a forma~iio do Centro Universitario e indireeta­mente na elabora~iio da presente obra. De entre eles des taco JohnCooper, George Kateb, Alexander Nehamas, Albert Raboteau, AlanRyan, Jeffrey Stout, Robert Wuthnow, todos eles membros do eomitiexeeutivo do Centro Universiltirio e cuja eolabora~iio se traduziuem inumeras horas dedieadas a eria~iio desta institui~iio. HelenNissenbaum, Direetora-Adjunta, eome~ou a trabalhar neste centromesmo a tempo de supervisionar a planifiea~iio para a ConferenciaInaugural. Alem disso, as suas inestimaveis eontribui~oes ajudaram aproduzir este livro do prindpio ate ao fim. Valerie Kanka, ProfessoraAssistente no Centro, eontribuiu com inumeros pormenores, trabalhoque levou a cabo com grande entusiasmo e empenhamento.

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Em nome de todos as que contribuiram para a criarilo do CentroUniversitario e de todos aqueles que irilo beneficiar desse facto, euagradero a Laurance S. Rockefeller, licenciado em Princeton, em 1932,cuja generosidade e visilo tornaram possivel a existencia do Centro.Dedicamos-lhe a presente obra inaugural.

AMY GUTMANN

Directora do Celltro Universitdriopara as Valores Humallos

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PRIMEIRA PARTE

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INTRODU<::Ao

AMY GUTMANN

As institui~6es ptiblicas, incluindo a administra~ao central,as escolas e as estabelecimentos de ensino superior dedicadosaos estudos humanfsticos, tem sido ultimamente objecto deduras crfticas par nao reconhecerem au respeitarem as diversasidentidades culturais dos cidadaos. Nos Estados Unidos, apolemica centra-se com mais frequencia nas necessidades dosamericanos de ascendencia africana e asiatica, dos nativos edas mulheres. Poder-se-ia acrescentar mais grupos a esta lista,que iria mudando 11 medida que se cobrisse a planeta. Mas ediffcil encontrar, hoje em dia, uma sociedade democratica audemocratizante que nao seja palco de alguma polemica sabre aquestao de se saber se e como as suas institui~6es ptiblicasdeveriam melhorar a capacidade de reconhecerem as identida­des das minorias culturais e sociais. a que significa para nos,cidadaos com diferentes identidades culturais, muitas vezesfundamentadas na etnia, na ra~a, no sexo, au na religiao, reco­nhecermo-nos como iguais na maneira como somas tratadosem politica? E na maneira como as nossos filhos sao educadosnas escolas oficiais? Enos cursos e politicas sociais dos estabe­lecimentos de ensino superior?

A presente obra debru~a-se sabre a desafio do multicultura­lismo e sabre a politica de reconhecimento tal como se manifes­tam nas actuais sociedades democraticas, em particular nos

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Estados Unidos e no Canada, embora os aspectos morais basi­cos se assemelhem a muitas outras democracias. Trata-se de umdesafio proprio das democracias liberais, porque estas estao,por principio, empenhadas na representa~ao igualitaria detodos. Sera que uma democracia esta a deixar ficar mal os seuscidadaos atraves da exc1usao ou da discrimina~ao,de umaforma moralmente inquietante, quando as grandes institui~6es

nao conseguem tomar em considera~aoas nossas iderrtidades?as cidadaos com diversas identidades podem ser representa­dos como iguais se as institui~6es publicas nao reconheceremas identidades de cada um, mas somente os nossos interessesmais comuns relativamente as liberdades civil e poHtica, rendi­mentos, cuidados de saude e educa~ao? Alem de garantirem atodos os mesmos direitos, 0 que e que 0 respeito igualitariopelas pessoas implica? Ate que ponto e que as nossas identida­des como homens e mulheres, americanos de ascendencia afri­cana ou asiatica, ou americanos nativos, cristaos, judeus oumu~ulmanos, canadianos franceses ou ingleses tem importan­cia publica?

Uma reac~ao sensata a quest6es sobre como reconhecer asidentidades culturais distintas dos membros de uma sociedadepluralista consiste na defini~ao incorrecta do proprio objectivode representar ou respeitar as diferen~as no ambito das institui­~6es publicas. Uma importante componente do liberalismocontemporaneo defende a seguinte reac~ao: 0 facto de asinstitui~6es que servem os objectivos publicos ignorarem asidentifica~6es, levando a sua propria despersonaliza~ao,e 0

pre~o que os cidadaos deveriam estar dispostos a pagar porviverem numa sociedade que os trata como iguais, independen­temente das suas proprias identidades etnicas, religiosas, raciaisou sexuais. Ea neutralidade da esfera publica, que inclui nao soa administra~ao central, mas tambem institui~6es como aUniversidade de Princeton e outras universidades liberais, queprotege a nossa liberdade e igualdade como cidadaos. Nestaperspectiva, a nossa liberdade e igualdade como cidadaosrefere-se apenas as nossas caracteristicas comuns - as nossasnecessidades universais, independentemente das nossas identi­dades culturais proprias, de «bens primarios» como 0 rendi-

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mento, os cuidados de saude, a educa,ao, a liberdade religiosa,a liberdade de consciencia, de expressao, de imprensa e de asso­cia,ao, 0 direito a defesa legal, 0 direito de voto e 0 direito deexercer urn cargo publico. Sao interesses comuns a maioria daspessoas, nao obstante a ra,a, a religiao, a etnia ou 0 sexo. Daf asinstitui,oes publicas nao precisarem - nem deveriam, na ver­dade - de se esfor,ar para reconhecerem as nossas identidadesculturais, tratando-nos como cidadaos livres e iguais.

Poderemos, entao, conc1uir que todas as reivindica,oes dedeterminados grupos no sentido do reconhecimento, feitas emnome do nacionalismo ou do multiculturalismo, sao reivindica­,oes iliberais? Esta e, certamente, uma conclusao demasiadoprecipitada. Enecessario que nos interroguemos mais sobre osrequisitos para que as pessoas sejam tratadas como cidadaoslivres e iguais. Sera que as pessoas tern necessidade de urn con­texto cultural seguro que lhes permita dar significado e orienta­,ao para as suas op,oes na vida? Se assim e, entao esse tipo decontexto tambem devera constar dos bens primarios essenciaispara que as pessoas satisfa,am 0 seu desejo de uma vida boa.E os estados democraticos liberais sao obrigados a ajudar os gru­pos com problemas sociais a preservarem as suas culturas con­tra intrusoes por parte das culturas maioritarias ou «de massa».Reconhecer e tratar os membros de alguns grupos como iguaisparece exigir, hoje, das institui,6es publicas que admitam, emvez de ignorarem, as especificidades culturais, pelo menos emrela,ao aquelas pessoas cuja capacidade de compreensaodepende da vitalidade da respectiva cultura. Esta exigencia dereconhecimento politico das especificidades culturais - alar­gada a todos os indivfduos - e compatfvel com uma forma deuniversalismo que considera a cultura e 0 contexto culturalvalorizado pelos indivfduos como fazendo parte dos seus inte­resses fundamentais.

No entanto, deparamo-nos com problemas quando observa­mos 0 conteudo das diversas culturas valorizadas. Sera que umasociedade democr<\tica liberal deve respeitar essas culturascujas atitudes de superioridade etnica ou racial antagonizamcom outras culturas? E, em caso afirmativo, como e que se podereconciliar 0 respeito por uma cultura de superioridade etnica

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ou racial com 0 objectivo do tratamento igualihirio para todos?5e uma democracia liberal nao precisa ou nao deveria respeitaresse tipo de culturas «supremacistas», mesmo que sejam tidasem grande conta por muitos dos grupos com problemas sociais,quais sao os limites morais relativamente a necessidade legi­tima de reconhecimento politico das culturas especificas?

Quest6es sobre a eventualidade e 0 modo de reconheci­mento politico dos grupos culturais figuram entre as mais proe­minentes e desagradaveis dos programas governamentais demuitas das actuais sociedades democraticas e democratizantes.Charles Taylor apresenta uma perspectiva original em relac;;ao aestes problemas em «The Politics of Recognition», que tevecomo ponto de partida a sua conferencia inaugural no CentroUniversitario para os Valores Humanos, da Universidade dePrinceton.

Taylor remonta as controversias politicas que se alimentamdo nacionalismo, do feminismo e do multiculturalismo, paranos dar a conhecer uma perspectiva filos6fica, historicamenteconcebida, sobre 0 que esta em jogo quanta a reivindicac;;ao,feita por muitas pessoas, de reconhecimento das suas identida­des especificas por parte das instituiC;;6es publicas. No antigoregime, quando uma minoria podia esperar 0 tratamento dehonra (atraves dos titulos de «Lady» e «Lord»), e a maioria naopodia, em termos realistas, aspirar ao reconhecimento publico,esta exigencia era desnecessaria para alguns e escusada paramuitos. 56 com 0 fim das hierarquias sociais estaveis e que areivindicac;;ao de reconhecimento publico se tornou um lugarcomum, juntamente com a noc;;ao de dignidade de cada indivi­duo. Todos sao iguais - independentemente do tratamentosocial - e todos n6s esperamos ser reconhecidos como tal. Ateaqui, tudo bern.

Mas as reivindicac;;6es de igualdade entre cidadaos na esferapublica sao mais problematicas e conflituosas do que 0 desapa­recimento da honra aristocratica nos poderia levar a pensar.Taylor chama a atenc;;ao para os problemas numa brilhante ten­tativa, de Jean-Jacques Rousseau e seus seguidores, de satisfaze­rem a necessidade universalmente sentida de reconhecimentopublico, transformando a igualdade humana em identidade.

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Segundo Taylor, a politica de Rousseau sobre 0 reconhecimentodesconfia de toda a diferencia~ao social e e, simultaneamente,receptiva as tendencias homogeneizantes - e ate mesmo totali­tarizantes - de uma politica da bondade comum, em que abondade reflecte a identidade universal de todos os cidadaos.A necessidade de reconhecimento pode ser satisfeita nestes ter­mos, mas s6 depois de ter sido objecto de uma disciplina sociale politica, para que as pessoas se orgulhem de serem um poucomais do que meros cidadaos iguais e, assim, esperem ser reco­nhecidas publicamente apenas como tal. Taylor argumenta, ecom razao, dizendo que se trata de um pre~o demasiado altoa pagar pela politica de reconhecimento.

As democracias liberais, pace Rousseau, nao podem conside­rar a cidadania como uma identidade universal englobante,porque (1) as pessoas sao individuos unicos, auto-formantes ecriativos, segundo as celebres posi~6es de John Stuart Mill eRalph Waldo Emerson, e (2) as pessoas sao tambem «portado­ras de cultura» e as culturas de cada uma diferem consoante assuas identifica~6espassadas e presentes. A concep~ao dos sereshumanos como seres unicos, auto-formantes e criativos naodeve ser confundida com uma perspectiva «atomistica» dosindividuos que criam as suas identidades de novo e procuramalcan~ar os seus fins de forma aut6noma. Uma parte da unici­dade dos individuos resulta dos modos como integram, medi­tam e modificam a sua pr6pria heran~a cultural e a daquelescom quem contactam. Segundo Taylor, a identidade humana ecriada dialogicamente, como reac~ao as nossas rela~6es, incIuindoos pr6prios diaIogos com os outros. Assim, a dicotomia, apre­sentada por alguns te6ricos politicos, entre individuos forma­dos atomisticamente e individuos formados socialmente, e falsa.Se a identidade humana e dialogicamente criada e constituida,entao 0 reconhecimento da nossa identidade exige uma politicaque nos de espa~o para decidirmos publicamente sobre todosaqueles aspectos da nossa identidade que partilhamos ou, pelomenos, potencialmente, com outros cidadaos. Uma sociedadeque reconhece a identidade individual e uma sociedade demo­cratica, deliberativa, porque a identidade individual e, emparte, constituida por dialogos colectivos.

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Perante a tendencia totalitarizante de Rousseau para conce­ber uma poHtica que reconhe~a,de forma englobante, a identi­dade dos cidadaos, Taylor afirma que as institui~6es publicasnao devem - e, de facto, nao podem - pura e simplesmenteignorar a necessidade de reconhecimento por parte dos cida­daos. A reivindica~ao anti-rousseauniana de reconhecimentopublico da especificidade de cada individuo e tao compreensivelcomo e problemMica e polemica. Discordamos, por exemplo,do facto de, em nome da igualdade humana e do tratamentoigualihlrio, a sociedade dever tratar as mulheres da mesmamaneira que trata os homens, tendo em conta a gravidez comouma outra forma de incapacidade fisica, ou de maneira dife­rente, se pensarmos em todos os aspectos distintos da nossaidentidade inerentes ao sexo, como acontece com a maioria dasmulheres americanas, cuja identidade social se traduz no esta­tuto de maes e educadoras dos filhos nos primeiros anos devida. Discordamos sobre a possibilidade de os estudante afro­-americanos verem a sua educa~ao melhorada atraves da cria­~ao de cursos especialmente destinados a dar enfase a culturaafro-americana, em vez de cursos comuns a todos os estudan­tes. Esta necessidade de reconhecimento, inspirada na no~ao dedignidade humana, aponta para, pelo menos, duas direc~6es:

para a protec~ao dos direitos fundamentais dos individuoscomo seres humanos, e para 0 reconhecimento de que os indi­viduos, com as suas necessidades espedficas, sao membros degrupos culturais espedficos. Precisamente por Taylor conside­rar, numa base racional, ambos os lados da polemica, e que elenao assume qualquer posi~ao politica vigente, nem apresentasolu~6es simples quando nao existe nenhuma.

Esta atitude e partilhada por Susan Wolf, Steven C. Rocke­feller e Michael Walzer, que, nos seus comenhirios sobre 0

ensaio de Taylor, dao a conhecer novas maneiras de conceber arela~ao entre as nossas identidades pessoais e as nossas pnlticaspoliticas. Wolf centra a sua aten~ao nos desafios proporciona­dos pelo feminismo e pela educa~ao multicultural. Embora asitua~ao das mulheres seja comparada amiude com a dasminorias culturais com problemas sociais, Wolf e de opiniaoque existe uma distin~ao fundamental entre os dois casos.

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Enquanto 0 reconhecimento polftico das contribui~6ese quali­dades pr6prias das culturas minorWirias e, na maioria dasvezes, visto como uma forma de tratar os respectivos membroscomo iguais, em rela~ao as mulheres 0 reconhecimento polfticoda sua especificidade como mulheres leva tradicionalmente aconsidenHas como desiguais, e a pressupor (ou ate a exigir)que continuem a desempenhar os seus papeis especificamente«femininos» e de subordina~aona sociedade. E, contudo, areivindica~ao, por parte das mulheres, de reconhecimentopublico assemelha-se de forma significativa a que e feita pelasdiversas minorias. 0 pleno reconhecimento publico da igual­dade dos cidadaos eXigiria, assim, duas formas de respeito:(1) em rela~ao ao canicter unico das identidades dos indivi­duos, independentemente do sexo, da ra~a ou da etnia, e (2) emrela~ao aquelas actividades, pniticas e modos de perspectivar 0

mundo que sao particularmente valorizadas por, ou associadasa, membros dos grupos minorihlrios, onde se incluem asmulheres, os americanos de ascendencia asi<itica e africana, osamericanos nativos e toda uma multiplicidade de outros gru­pos existentes nos Estados Unidos.

Steven C. Rockefeller reflecte, e com razao, sobre a interpre­ta~ao incorrecta do segundo tipo de respeito: em rela~ao aosindividuos que se identificam com grupos culturais espedficos.Se os membros se identificam publicamente com as caracterfsti­cas, as prilticas e os valores dominantes do respectivo grupo,poder-se-ia perguntar se as nossas identidades espedficas ­como canadianos ingleses ou franceses, homens ou mulheres,americanos de ascendencia asiatica ou africana, americanosnativos, cristaos, judeus au mu~ulmanos - passarao a sobre­por-se a nossa identidade universal como pessoas, que mere­cern respeito mutua e que gozam do direito as liberdadespolftica e civil, e a oportunidade de uma vida digna, devidosimplesmente a dignidade humana. 0 reconhecimento da uni­cidade e humanidade de cada individuo constitui a pedraangular da democracia liberal entendida como urn modo devida polftico e pessoal. Deste modo, a diversidade, como valordemocratico liberal que e, nao pode ser sustentada pela necessi­dade de conservar no tempo as culturas distintas e unicas, a

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que iria proporcionar a cada grupo de pessoas uma cultura eidentidade seguras para elas pr6prias e para as futuras gera­~6es. Rockefeller partilha da opiniao de John Dewey, ao escolhero valor democnitico liberal da diversidade e ao relaciona-lo com 0

valor de alargamento de horizontes culturais, intelectuais e espi­rituais.

Sera que esta perspectiva democratica liberal minimiza anecessidade humana de identidades culturais aut6nomas eseguras? Considerando as relativamente poucas democraciasevoluidas que existem no mundo, e provavelmente impossivelresponder a esta pergunta com seguran~a.Assim, para desafiaresta visao democratica, poderiamos supor que 0 ideal de pros­peridade individual numa sociedade (ou no mundo) mul­ticultural, dinamica, implica, de facto, a subestima~ao danecessidade que as pessoas sentem como membros de determi­nados grupos culturais, etnicos, linguisticos ou outros, de re­conhecimento publico e preserva~ao das suas identidadesculturais especfficas. Mesmo i\ luz deste desejo, a perspectivademocratica liberal proporciona um antidoto moral significa­tivo e politicamente util para a reivindica~ao de reconheci­mento cultural, como e agora expressa em nome de algunsgrupos especfficos. A democracia liberal questiona a exigenciade envolver a politica na preserva~ao das identidades de cadagrupo ou na sobrevivencia de subculturas que, de outro modo,nao poderiam progredir atraves da livre associa~ao de cida­daos. E, no entanto, as institui~6es democraticas, mais do quequaisquer outras, levam geralmente os cidadaos a confronta­rem-se com um conjunto diversificado de valores culturais. Dafque a democracia liberal enrique~a as nossas oportunidades,nos permita reconhecer 0 valor das diversas culturas e, por con­seguinte, nos ensine a valorizar a diversidade, nao pelo meritoque dai advem, mas sim por possibilitar a melhoria da quali­dade de vida e da educa~ao.Ao advogar a diversidade, a demo­cracia liberal esta a adoptar, nao uma perspectiva particularista,mas sim universalista.

Em que e que consiste exactamente a perspectiva universa­lista, atraves da qual a democracia liberal considera e valoriza 0

multiculturalismo? Baseando-se na analise feita por Taylor,

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Michael Walzer afirma que podeni haver nao uma, mas duasperspectivas universalistas que orientam as democracias libe­rais em diferentes direc~5es polfticas. Ou, mais precisamente,existe um principio universalista que e aceite geralmente pelaspessoas que acreditam sem reservas na igualdade humana, eque se encontra institucionalizado, de forma incompleta, nassociedades democraticas liberais: «As pessoas devem ser trata­das como seres livres e iguais.» Todavia, sobre este principioexistem duas interpreta~5es aceitaveis e com consequenciashist6ricas. Uma delas pressup5e neutralidade polftica entre asdiversas e muitas vezes conflituosas concep~5es de uma vidaboa existentes na sociedade pluralista. Como paradigma destaperspectiva, temos a doutrina norte-americana de separa~ao

entre Igreja e Estado, segundo a qual 0 Estado nao s6 protege aliberdade religiosa de todos os cidadaos, como tambemimpede, na medida do possivel, que qualquer das suas institui­~5es se identifique com uma determinada confissao religiosa.

A segunda interpreta~aonao p5e a t6nica na neutralidade,devido as consequencias ou para justificar polfticas governa­mentais, mas permite, isso sim, que as institui~5es publicasestimulem alguns valores culturais especificos sob tres condi­~5es: (1) os direitos fundamentais de todos os cidadaos - in­cluindo as liberdades de expressao, pensamento, religiao eassocia~ao - devem ser protegidos; (2) ninguem deve ser mani­pulado (e muito menos coagido) a aceitar valores culturais queas institui~5es representam; e (3) os funcionarios e institui~5es

publicas que fazem op~5es culturais sao democraticamente res­ponsaveis por essas op~5es, nao s6 em principio, mas tambemna priitica. 0 paradigma desta perspectiva traduz-se no apoio,e controlo, democriitico a educa~ao nos Estados Unidos. A parda exigencia de separa~ao entre Igreja e Estado, a Constitui~ao

norte-americana garante aos Estados federados um vastocampo de ac~ao para definirem 0 conteudo cultural da educa­~ao das gera~5es novas. Longe de exigir neutralidade, a polfticaeducacional norte-americana encoraja cada comunidade local aorganizar 0 seu sistema de ensino, em parte de acordo com asua pr6pria imagem cultural, desde que nao viole os direitosfundamentais, tais como a liberdade de consciencia ou a sepa­ra~ao entre Igreja e Estado.

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Walzer ve estas duas perspectivas universalistas como defi­nic;oes de duas concepc;oes diferentes de liberalismo, sendo asegunda mais democnitica que a primeira. Senao, vejamos.o «Liberalismo 2», como Walzer the chama, ja que permite ascomunidades democraticas definirem as suas politicas dentrodos limites gerais do respeito pelos direitos do indivfduo, tam­bem lhes permite escolher politicas que sao mais ou menosneutras no que toca a identidades culturais especfficas dos gru­pos. Mas, precisamente porque 0 Liberalismo 2 I" democratico,I" que se pode tambE'm optar pelo Liberalismo 1, 0 da neutrali­dade estatal, atraves do consenso democratico. Para Walzer,esta foi exactamente a opc;ao democratica dos Estados Unidos.E seria igualmente 0 Liberalismo 1 integrado no Liberalismo 2que Walzer escolheria, porque 0 importante I" os EstadosUnidos evolufrem, a par da compreensao social dominante,como sociedade de imigrantes, onde cada grupo cultural I" livrede lutar pela sua sobrevivencia, e nao 0 apoio ou reconheci­mento dos projectos culturais especfficos por parte de cadaEstado federado.

Quando, em recentes debates sobre multiculturalismo, oic;oas vozes discordantes, penso que se torna dificil dizer qual aopc;ao por nos tomada como sociedade, pelo menos a este nivelda abstracc;ao. Alem do diffcil, e talvez inescapavel, problemade tentar descobrir qual tera sido a nossa escolha, talvez 0 factode pensarmos que optamos, ou precisamos de optar, por umdos dois tipos de liberalismo em relac;ao a todas as nossas poli­ticas e instituic;oes publicas constitua um erro. Talvez os doisuniversalismos possam ser melhor interpretados, se nao foremconsiderados como duas concepc;oes de liberalismo distintas epoliticamente englobantes, mas sim como duas componentesde uma unica concepc;ao de democracia liberal que recomenda- e, em certos casos, poden\ mesmo exigir - neutralidade esta­tal para certos domfnios, como 0 da religiao, mas nao paraoutros, como 0 da educac;ao, onde as instituic;oes com responsa­bilidade democratica sao livres de reflectir os valores de umaou mais comunidades culturais, desde que respeitem tambemos direitos fundamentais de todos os cidadaos. A dignidadedos seres livres e iguais exige das instituic;oes democraticas

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liberais atitudes de nao-repressao, de nao-discrimina~aoe dedelibera~ao. Estas repress6es, com canlcter de principios, dei­xam espa~o para que as institui~6es reconhe~amas identidadesculturais especificas daqueles que representam. Esta conclusaoidentifica a democracia liberal, no seu melhor, com ambas asperspectivas universalistas sobre a protec~ao dos direitos univer­sais e 0 reconhecimento publico de culturas especificas, emborapor raz6es significativamente diferentes das apresentadas porTaylor. E sao os resultados das decis6es democrMicas que respei­tam os direitos dos individuos (liberdade de expressao, de reli­giao, de imprensa, de associa~ao,etc), e nao a sobrevivencia dassubculturas, que vern em defesa do multiculturalismo.

Juntamente com 0 ensaio de Charles Taylor, os comenhlriosde Susan Wolf, Steven C. Rockefeller e Michael Walzer visamestimular discuss6es mais construtivas sobre quest6es a voltado multiculturalismo do que aquelas que actualmente domi­nam 0 debate publico. Igualmente sob este espirito, podemosconsiderar aqui 0 debate sobre 0 multiculturalismo mais pro­ximo dos interesses pessoais, ou seja, a controversia publicasobre 0 multiculturalismo que chega as universidades, ondeassistimos a algumas discuss6es acerrimas. Apesar de nao seruma questao de vida ou de morte, sempre sao a identidadepolitica dos norte-americanos, a qualidade da nossa vida inte­lectual colectiva e a natureza e valor de uma educa~ao superiorque estao no centro da polemica. Assim, nao e sem razao que aparada e bern alta. Vamos considerar as primeiras linhas de urnartigo de «op-ed» do Wall Street Journal, alvo da controversiaque atingiu a Universidade de Stanford, a proposito dos cursosobrigatorios: «A heran~a intelectual do Ocidente esta sob julga­mento. Muitos sao os que preveem uma senten~a desfavora­vel.» A polemica mencionada pelo articulista, Isaac Barchas,urn estudante de Stanford a especializar-se em estudos classi­cos, centrava-se no facto de, naquela universidade, 0 curso de«Cultura Ocidentah> ter a dura~ao obrigatoria de apenas urnano. Nesse curso, os estudantes deveriam escolher uma cadeirade entre as oito existentes, que tinham em comum uma biblio­grafia obrigatoria de quinze obras de pensadores classicos, taiscomo Piatao, Romero, Dante e Darwin.

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A fazer fe no relato de Barchas, a heran~a intelectual doOcidente perdeu ha tres anos, em Stanford, tendo sido a oposi­~ao, por parte do pessoal academico, surpreendentementepequena: 39 contra 4 a favor da substitui~ao do mencionadocurso por outro designado por «Cultura, Ideias e Valores», queacrescentava obras de alguns autores nao europeus e obras deautores femininos, afro-americanos, hispanicos, asiaticos e nati­vos a urn grupo obrigatorio e restringido de classicos. Nestenovo grupo, manteve-se 0 Velho e 0 Novo Testamentos, Piatao,Santo Agostinho, Maquiavel, Rousseau e Marx.

No debate publico que se seguiu sobre se se devia, ou nao,mudar 0 conteudo desse tipo de cadeiras obrigatorias, uma daspartes - que designaremos por «essencialistas» - afirmou queacrescentar a lista obrigatoria obras novas, so para incluir auto­res desconhecidos ate entao, significaria esquecer os valores daciviliza~ao ocidental a favor de urn relativismo caracterizadopela falta de criterios, tirania das ciencias sociais, tendenciasefemeras e futeis e toda uma serie de males intelectuais e politi­cos. A outra parte, diametralmente oposta - a que chamaremos«desconstrucionistas» - argumenta que manter a bibliografiaobrigatoria e excluir as contribui~6es para a civiliza~ao porparte de autores femininos, afro-americanos, asiaticos e ameri­canos nativos, como se 0 canone classico fosse sagrado, eterno eimutavel, significaria menosprezar as identidades dos mem­bros de grupos com urn passado historico de exclusao e vedar aciviliza~ao ocidental a possibilidade de conhecer as influenciasde ideias nao convencionais e que comportam em si urn desa­fio, com 0 objectivo de perpetuar a discrimina<;ao sexual, 0

racismo, 0 eurocentrismo, a estreiteza de espfrito, a tirania daVerdade (com «v» maiusculo) e toda uma serie de males inte­lectuais e politicos.

Ha, porem, muito mais coisas envolvidas, e de valor, do queaquelas que se deduzem deste debate publico entre essencialis­tas e desconstrucionistas. E que se a heran~a intelectual doOcidente foi levada a julgamento em Stanford e noutras univer­sidades que tencionavam mudar os cursos obrigatorios, entaoessa heran~a perdeu muito antes de 0 julgamento ter come­~ado. Isto, porque nao e uma decisao, que exige, ou nao, de

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cada estudante universitario a aprova<;ao em cadeiras combibliografias de quinze, trinta ou cem grandes obras, que vaiajudar a preservar a heran<;a intelectual do Ocidente ou 0 idealdemocratico liberal de educa<;ao superior. Nem a heran<;a podeser erradicada atraves de uma decisao de redu<;ao do numerode obras can6nicas para dar lugar a obras novas, menos con­vencionais, menos apreciadas pelo publico em geral ou menosduradouras, mas que falam mais explicitamente das vivencias,ou expressam melhor 0 sentimento de exclusao social vividapelas mulheres e pelas minorias. 0 motivo nao reside no factode a civiliza<;ao ocidental perder a sua importancia ou serobjecto deste tipo de decisoes menores. 0 que acontece, issosim, e que uma sucessao de abusos pode criar uma granderevolu<;ao, como n6s, norte-americanos, mais do que qualqueroutro povo, deveriamos saber.

Existe um outro motivo, que acabou por se perder no meiodeste debate publico. A educa<;ao liberal, concebida para serutil na vida de um cidadao livre e com 0 direito it igualdade emqualquer democracia moderna, pressupoe muito mais do que aleitura de grandes obras, se bem que estas sejam uma ajudaindispensavel. Tambem precisamos de ler e pensar sobre oslivros e, consequentemente, de ensinar sobre eles, com um espi­rito de analise, livre e aberto, espfrito esse que caracteriza oscidadaos democrMicos e a liberdade individual. Para cultivaresse espirito, e necessaria uma leitura dedicada de obras pro­fundas e influentes, como e 0 caso de A ReplJblica de PIatao, quenos leva a confrontar com visoes de uma vida e sociedade boas,visoes essas que nos sao desconhecidas, intimidantes, de umaoriginalidade eloquente e fruto da 16gica sistematica. Mas aeduca<;ao liberal falha 0 seu prop6sito se a intimida<;ao conduzirit aceita<;ao inconsciente de todas as visoes, ou se 0 desconheci­mento levar it rejei<;ao total.

Estes dois sinais de fracasso sao, com demasiada frequencia,reflectidos no debate publico, realizado nos estabelecimentosde ensino superior, sobre multiculturalismo. Ao resistirem itsubstitui<;ao das obras antigas por obras novas, os essencialistasdefendem que as reflexoes e as verdades presentes nas obrasantigas se perderao, mesmo que a substitui<;ao seja parcial, 0

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que traduz precisamente aquilo que esta em jogo em polemicascomo a de Stanford. Mas a preserva~ao de verdades comprova­das nao constitui uma das melhores razoes a favor da inc1usaodos cLissicos em qualquer lista de bibliografia obrigat6ria, anivel universitiirio. Por que nao dizer que as grandes obras,como A Republica de Platao ou A Politica de Arist6teles, consti­tuem urn dos maiores desafios para quem quiser pensar de umaforma cuidada, sistematica e critica sobre a polftica? Ea idolatriaintelectual, e nao a abertura filos6fica ou a perspicacia, que servede fundamento it ideia frequentemente articulada, mas rara­mente advogada, de que as grandes obras filos6ficas - segundocriterios como a originalidade e a eloquencia, 0 raciocinio siste­matico, a profundeza moral, ou a compreensao psicol6gica oupolftica e a influencia sobre a nossa compreensao social herdada- contem os maiores exemplos de sabedoria sobre todas as ques­toes importantes, e que estao agora ao nosso alcance.

Sera que a perspectiva de Arist6teles sobre a escravatura emais esc1arecedora do que a de Frederick Douglass? E a argu­menta~ao de S. Tomas de Aquino consegue ser melhor defen­dida do que a de Martin Luther King ou a de John Rawls?Se nao sao, por que nao encarregar os estudantes de leremA Autobiografia de Frederick Douglass, «Carta da Prisao da Cidadede Birmingham» e Uma Teoria da Iustira, juntamente comA Politica e Summa Theologiae? Embora a perspectiva de Rousseauconstitua urn desafio para 0 feminismo da epoca, torna-se muitomenos credivel ou convincente, em termos intelectuais, quandocomparada com as reflexoes de Virginia Woolf, Simone deBeauvoir ou Toni Morrison sobre as mulheres. Do mesmo modo,Hannah Arendt da a conhecer uma perspectiva sobre 0 mal polf­tico que transcende qualquer fil6sofo polftico convencional. Seos essencialistas considerassem explicitamente a possibilidadede os c1assicos nao conterem verdades intemporais e universaissobre todas as questoes importantes, poderiam ser mais modera­dos nas suas criticas e admitir a sensatez de algumas das refor­mas propostas para a cria~ao de cursos multiculturais.

No entanto, existe urn importante obstaculo interno queimpede uma atitude de modera~ao: a convic~ao, mantida sobreserva por parte de alguns essencialistas, de que os c1assicos,

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e, em especial, as obras de Platao e Arist6teles, constituem achave para as verdades morais e politicas de todos os tempos,para as verdades sobre a natureza humana. Seguindo RobertMaynard Hutchins, os essencialistas invocam frequentementePiatao, Arist6teles e a «natureza» como modelos criticos.o argumento, concebido explicitamente por Hutchins, mas s6apresentado ao publico por Allan Bloom e outros criticos con­temporiineos, consiste aproximadamente no seguinte: a formasuperior de natureza humana tanto existe nos Estados Unidoscomo em Atenas, tal como deveria acontecer com os programasde educa~ao superior, se se considerar que esta deve correspon­der ao que ha de superior na natureza humana - as virtudesintelectuais cultivadas ate amaxima perfei~ao.Eis a formula~ao

sucinta de Hutchins: «A educa~ao pressup6e ensino. 0 ensinopressup6e conhecimento. 0 conhecimento e a verdade. A ver­dade e a mesma em qualquer parte. Entao, a educa~ao deve sera mesma em qualquer parte. Nao estou a ignorar as possiviesdiferen~as em termos de organiza~ao, administra~ao,habitos ecostumes locais. Sao pormenores, apenas!.» Os essencialistasprezam e invocam as grandes obras como modelos criticos parajulgarem, quer as obras <<inferiores», quer as sociedades, que aca­bam por nao ficar a altura dos criterios plat6nico ou aristotelico.

Nao e, de modo algum, necessario menosprezar as grandesobras ou advogar um relativismo destituido de modelos, parareflectir sobre a forma de idolatria intelectual que a criticaessencialista do multiculturalismo assume. Comparemos adefesa essencialista do canone com a abordagem que RalphWaldo Emerson faz sobre os livros, apresentada em «TheAmerican Scholar». A perspectiva deste autor constitui umimportante desafio ao essencialismo e, todavia, nenhum criticocontemporiineo aceita assumir esse desafio. «A teoria dos livrose nobre... Mas nao existem livros completamente perfeitos.Assim como nao se consegue 0 vacuo total com uma bomba dear, tambem nenhum escritor consegue excluir todo e qualqueraspecto convencional, local ou efemero da sua obra, nem escre-

1 Robert Maynard Hutchins, The Hig1ler Learning ill America (New Haven:Yale University Press, 1936), p. 66

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ver um livro sobre 0 pensamento puro, que se revele eficiente,em todos os seus aspectos, para os leitores contemporaneos,para as segundas gera~oesou para os leitores da posteridade2.»

Ao afirmar que ate a melhor obra e, ate certo ponto, convencio­nal e que se baseia num contexto social concreto, Emerson naoquer dizer que deve ser lida por aquilo que reflecte do tempoem que foi escrita, em vez de por aquilo que nos pode dizersobre 0 nosso tempo. Ainda temos muito que aprender sobre acondi~ao humana atraves da leitura de A Republica de Piatao,ou sobre as nossas obriga~oes para com 0 Estado, lendoo Critol1. Mas nao podemos aprender todas as questoes profun­das sobre as obriga~oes, e muito menos tudo 0 que deve serconhecido sobre a condi~ao humana, atraves da leitura dePiatao, Arist6teles ou de toda a colec~ao de obras can6nicas.

«Cada epoca», conclui Emerson, «deve escrever as suas pr6­prias obras3». Porque? Porque as pessoas de espfrito aberto,com boa educa~ao e cidadas das democracias liberais devempensar pelas suas pr6prias cabe~as. Nas democracias liberais,um dos grandes objectivos das universidades de tradi~ao

humanfstica nao e criar «ratos de biblioteca», mas sim cultivarnas pessoas a vontade e a capacidade de serem aut6nomas,tanto na vida polftica, como na vida pessoal. «Os livros sao amelhor coisa que ha, quando bem utilizados», afirma Emerson,«quando utilizados incorrectamente, passam a estar entre aspiores. Em que consiste a sua utiliza~aocorrecta? .. Nao servempara outra coisa, senao para inspirarem4».

Considerar as palavras de Emerson como um evangelhoconstitui igualmente uma forma de idolatria intelectual. Oslivros fazem mais do que servir de inspira~ao. Eles tambemunem as pessoas em uma ou varias comunidades de aprendiza­gem. Ensinam-nos sobre a nossa heran~a intelectual, a nossacultura, assim como sobre as culturas estrangeiras. As universi­dades estrangeiras podem aspirar a um estatuto de maior inter-

2 Ralph Waldo Emerson, «The American Scholar», in Selected Essays, ed.Larzer Ziff (Nova Iorque: Viking Penguin, 1982), p. 87

3 Ibid.4 Ibid., p. 88

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nacionalismo, mas tendo em conta que os cursos humanfsticose a c1asse estudantil sao, acima de tudo, de nacionalidade ame­ricana, e fundamental, como Susan Wolf declara no seu comen­tario, que as universidades reconhe~am quem somos «nos»quando preconizam programas obrigatorios que digam algumacoisa sobre as «nossas» circunstancias, cultura e heran~a inte­lectual. Nao porque os estudantes so conseguem identificar-secom obras de autores da mesma ra~a, etnia ou sexo, masporque existem obras escritas por e sobre mulheres, afro­-americanos, americanos de ascendencia asiatica e americanosnativos, que exploram algumas partes ignoradas da nossaheran~a e condi~ao humana e de uma forma mais realista doque algumas das obras canonicas. Embora as injusti~as sociaisdigam respeito a todos nos, 0 ignorar a literatura nao convencio­nal e sentido de uma forma mais marcada por aqueles que seidentificam com os esquecidos. E a exclusao desse tipo de obrasnao pode deixar de suscitar urn sentimento de falta de respeitopara com os membros dos grupos em questao, ou de desconsi­dera~ao por uma parte das suas identidades culturais. A criticado canone, por si so, nao deveria ser comparada ao tribalismoou ao particularismo. Nao se pode acusar Emerson nem deuma coisa, nem de outra, quando ele afirma que cada epocadeve escrever, e, presume-se, deve ler, as suas proprias obras.

Radicalmente opostos ao essencialismo estao os desconstru­cionistas, que tambem levantam urn obstaculo it educa~aodemocratica liberal ao recusarem a preferencia pelos modelosintelectuais comuns, que os docentes e estudantes das maisdiversas proveniencias culturais poderiam usar para avaliar anossa educa~ao comum. Apesar de nao negarem a possibili­dade de haver modelos comuns, consideram estes como masca­ras para aceder ao poder politico dos grupos hegem6nicos,dominantes. Trata-se de urn argumento reducionista muitasvezes apresentado em nome dos grupos subrepresentados nasuniversidades e das minorias sociais, mas dificilmente se podecompreender como e que os vai ajudar. II urn argumento auto­destrutivo, quer em termos 16gicos, quer em termos praticos.Pela sua 16gica interna, 0 desconstrucionismo nao vai acrescen­tar mais nada ao argumento das mascaras, a nao ser 0 facto de

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reflectir igualmente a vontade de poder por parte dos pr6priosdesconstrucionistas. Mas porque incomodarem-se com a vidaintelectual, que nao e a via mais rapida, nem a mais certa ou amais satisfat6ria com vista ao poder politico, quando e precisa­mente este que ambicionam?

o desconstrucionismo e tambem impraticavel. Se os mode­los intelectuais sao politicos no sentido de reflectirem os inte­resses antag6nicos e a vontade de poder por parte de gruposespedficos, entao os grupos com problemas sociais nao temoutro remedio senao aceitarem os modelos hegem6nicos que asociedade imp6e ao meio academico e este, por seu turno,imp6e it sociedade. Os menos poderosos nao podem esperarque os seus modelos vinguem, sobretudo se os respectivosporta-vozes academicos derem a conhecer ao publico 0 pontode vista segundo 0 qual os modelos intelectuais nao passam dedeclara<;6es ou reflexos de vontade de poder.

A perspectiva desconstrucionista sobre 0 meio academiconao s6 se desconstr6i, como 0 faz de um modo perigoso. Osdesconstrucionistas nao agem como se acreditassem na impossi­bilidade de existirem modelos comuns. Agem, e falam frequen­temente, como se acreditassem que os cursos universitariosdeveriam incluir obras da autoria das e sobre as minorias.Algumas vers6es desta posi<;ao podem ser, como ja vimos,defendidas em termos universalistas. Mas 0 mesmo nao sepode dizer quando se trata de reduzir todas as disc6rdias inte­lectuais a conflitos entre interesses de grupo. Euma atitude quenao se aguentaria perante qualquer evidencia ou argumento16gico. Quem duvidar desta conclusao pode tentar demonstrar,de uma forma nao tautol6gica, que os argumentos mais fortes afavor e contra a legaliza<;ao do aborto, nao aqueles que saoapresentados pelos politicos, mas os argumentos filos6ficosmais convincentes e mais bem concebidos, reflectem pura esimplesmente a vontade de poder e os interesses de sexo e declasse dos seus defensores.

o reducionismo do intelecto e 0 argumento a favor do inte­resse politico amea<;am politizar a universidade de um modomais profundo e destrutivo do que nunca. Digo «amea<;am»,porque 0 desconstrucionismo nao domina realmente 0 meio

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academico, como alguns criticos querem fazer crer. Todavia, aamea<;a anti-intelectual, politizante, que representa nao deixade ser uma realidade. Uma boa parte da vida intelectual, prin­cipalmente no dominio das humanidades e das ciencias sociaisque recorrem a «soft data», depende do dhl.logo entre pessoasracionais que nao concordam com as respostas encontradaspara algumas questoes fundamentais sobre 0 valor das variasperspectivas e realiza<;oes literarias, politicas, educacionais,cientificas e esteticas. as estabelecimentos de ensino superiorsao as unicas grandes institui<;oes sociais que se dedicam a pro­mover 0 conhecimento, a compreensao, 0 dialogo intelectual eo trabalho de argumenta<;ao racional nas mais diversas direc­<;oes. A amea<;a que 0 desconstrucionismo representa em rela­<;ao a vida intelectual do meio universitario apresenta duasfacetas: (1) nega a priori a existencia de quaisquer respostas racio­nais as questoes fundamentais e (2) reduz todas as respostas aurn exerdcio de poder politico.

Se pensarmos bern, verificaremos que, nos seus pr6prios ter­mos, a defesa desconstrucionista de cursos mais multiculturaisse revela como uma afirma<;ao de poder politico em nome dosexplorados e dos oprimidos, e nao uma reforma intelectual­mente defensavel. Alem disso, 0 desconstrucionismo apresenta,ainda que de uma forma racional, os criticos e as atitudes de cri­tica contra 0 multiculturalismo como politicamente retr6gradose indignos de respeito intelectual. Enquanto os essencialistasreagem a incerteza racional e a discordiincia invocando, em vezde defenderem, as verdades intemporais, os desconstrucionistasminimizam os nossos diferentes pontos de vista, pressupondoque tambem nao podem ser defendidos intelectualmente.A vida intelectual e, assim, desconstruida ao ponto de se tornarnum campo de batalha politico, onde se contrapoem os interessesde classe, de sexo e de ra<;a - uma analogia que nao faz justi<;a apolitica democratica, no seu melhor, que esta longe de sel' umamera competi<;ao entre interesses rivais. Mas a imagem divul­gada sobre a vida academica, que e 0 verdadeiro palco da acti­vidade desconstrucionista, e ainda mais perigosa, porque podecriar a sua pr6pria realidade, transformando as universidadesem campos de batalha politicos, em vez de comunidades onde

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impera 0 respeito mutuo, nao obstante as divergencias intelec­tuais que podem assumir, por vezes, proporc;6es consideraveis,mas que podem ser fundamentais.

Ambas as partes estao em desacordo quanta ao valor e aoconteudo de um curso multiculturaL Este desacordo e exacer­bado pela natureza proporcional da escolha entre obras can6ni­cas e obras mais recentes. 0 motivo reside no facto de algunscursos obrigat6rios se terem tornado 0 centro das discuss6esacademicas e publicas sobre os requisitos necessarios a umaboa educaC;ao. Mas a diversidade de opini6es sobre quais asobras que devem ser obrigat6rias e sobre como devem ser lidasnao e, em si, tao inquietante. Eimpossivel um curso multicultu­ral incluir todas as obras ou representar todas as culturas dig­nas de reconhecimento num sistema educativo democraticoliberal. Nem uma sociedade livre, e muito menos as universida­des com professores independentes, pode esperar que hajaacordo sobre escolhas dificeis entre bens competitivos.o motivo de preocupaC;ao suscitado pelas recentes polemicassobre 0 multiculturalismo e os cursos superiores reside, antes,no facto de, por um lado, a maioria das partes que se manifes­tam nestas disputas nao parecerem dispostas a defender osseus pontos de vista perante aqueles de quem discordam, ede, por outro, considerarem seriamente a possibilidade demudanc;a perante criticas bem fundamentadas. Em vez disso, ereagindo de forma semelhante e oposta, os essencialistas e osdesconstrucionistas manifestam um desprezo mutuo e desres­peito pelas diferenc;as de cada parte. E assim se criam no meioacademico duas culturas intelectuais que se excluem e se des­respeitam mutuamente, evidenciando uma atitude de faltade vontade de aprender 0 que quer que seja ou de reconhecerqualquer valor em relac;ao a outra parte. Na vida politica, enuma escala mais alargada, existe um problema paralelo dedesrespeito e ausencia de comunicaC;ao construtiva entre osporta-vozes dos grupos etnicos, religiosos ou raciais, problemaesse que frequentemente conduz aviolencia.

A sobrevivencia de muitas culturas que se excluem e se des­respeitam mutuamente nao constitui um objectivo moral do mul­ticulturalismo, nem no dominio da politica, nem no da educaC;ao.

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Trata-se de uma visao que nem sequer e realista: nem as uni­versidades, nem as organiza~oespodem efectivamente alcan~ar

os seus ambicionados fins sem haver respeito mutuo entre asvarias culturas que as integram. Mas nem todos os aspectos dadiversidade cultural sao dignos de respeito. Existem algumasdiferen~as - 0 racismo e 0 anti-semitismo sao disso exemplosclaros - que nao devem ser respeitadas, ainda que se tenha detolerar manifesta~oes de indole racista e anti-semitica.

A polemica que teve lugar nas universidades sobre 0 dis­curso racista, etnico, sexista, homof6bico, alem de outras for­mas ofensivas, dirigido a membros de grupos minoritarios eurn born exemplo da necessidade de se criar urn vocabulariomoral comum, mais rico que 0 nosso direito a liberdade deexpressao. Vamos supor que os membros de uma comunidadeuniversitaria passariam a ter 0 direito de exprimirem opinioesracistas, anti-semfticas, sexistas e homof6bicas, desde que naoamea~assemninguem. 0 que falta ainda dizer sobre as obser­va~oes racistas, anti-semiticas, sexistas e homof6bicas que setornaram cada vez mais comuns nas universidades? Nada, se 0

nosso vocabulario moral comum esta limitado ao direito deliberdade de expressao. A nao ser que alguem ouse fazer afir­ma~oes racistas ou anti-semiticas, alegando 0 direito a liber­dade de expressao.

E, no entanto, fica tudo por dizer quando somos capazes dedistinguir entre tolerar e respeitar as diferen~as. A toleranciaabarca uma maior quantidade de opinioes, desde que se ponhaimediatamente cobro as amea~as e a outro tipo de danos direc­tos especfficos contra indivfduos. 0 respeito pressupoe umamaior discrimina~ao.Apesar de nao ser necessario concordarcom uma opiniao para respeita-la, temos de compreende-lacomo urn reflexo do ponto de vista moral. Urn defensor doaborto, por exemplo, deve ser capaz de compreender como eque outra pessoa, com consciencia moral e sem outros motivos,possa estar contra a legaliza~ao do aborto. Existem argumentosde consciencia moral contra a legaliza~ao e vice-versa. 0 maiscerto e uma sociedade multicultural incluir uma grande diver­sidade de divergencias morais respeitaveis, 0 que nos da umaoportunidade de defendermos os nossos pontos de vista

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perante pessoas cuja consciencia moral nos leva a discordardelas e, assim, de aprendermos com as nossas diferen<;as. Destaforma, podemos tirar uma li<;ao sobre a necessidade das nossasdiscordiincias morais.

A misogenia, 0 6dio racial ou etnico ou as racionaliza<;6esem nome do interesse pr6prio e dos interesses de grupo disfar­<;ados de conhecimentos hist6ricos ou cientfficos nao proporcio­nam qualquer compensa<;ao. Indignas de respeito sao aquelasatitudes de menosprezo not6rio para com os interesses dosoutros e que, por isso, nao assumem qualquer posi<;ao moralgenuina, ou as atitudes de alega<;ao empirica e totalmenteimplausiveis (de inferioridade racial, por exemplo) que nao sebaseiam em criterios de evidencia acessiveis ou publicamentepartilhados. as casos de discurso xen6fobo ocorridos nos esta­belecimentos de ensino superior fazem parte desta categoria dediscurso desrespeitavel. As palavras de ordem de teor racistaou anti-semitico nao sao defensaveis em termos morais e empi­ricas, alem de nao acrescentarem nada de valioso a delibera<;aodemocratica ou a vida intelectual. Reflectem uma recusa deigual tratamento e uma falta de vontade ou incapacidade dedenunciar publicamente a presun<;ao de que outros grupos saoinferiores por natureza. a discurso xen6fobo viola uma dasregras morais mais elementares sobre 0 respeito da dignidadede todos os seres humanos, limitando-se a presumir da natu­reza inferior dos outros.

Como comunidades que se dedicam ao trabalho intelectual,as universidades deveriam agir como as defensoras da liber­dade de expressao. Mas, uma vez protegido 0 direito de todosse exprimirem, as universidades nao precisam, nem devem,calar as suas vozes em caso de manifesta<;6es racistas, anti­-semiticas ou de outro tipo de discurso desrespeitavel. Pelo con­trario, os membros dos meios academicos - funcionarios,docentes, estudantes, dirigentes - podem usar do nosso direitoa liberdade de expressao para denunciarem essas manifesta­<;6es, revelando exactamente 0 que elas sao: uma desconsi­dera<;ao not6ria para com os interesses dos outros, umaracionaliza<;ao dos interesses pr6prios ou do grupo, precon­ceito, ou puro 6dio contra a humanidade. A mensagem deste

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tipo de discurso nao beneficia em nada a nossa capacidade decompreensao. Mesmo assim, pode-se dizer que as suas manifes­ta<;oes desafiam os membros das comunidades democraticasliberais a articularem os pressupostos morais mais basicos quenos unem. Se nao reagirmos a este fenomeno de desrespeito,muitas vezes irracional, por vezes exacerbado, contra os padroesmais elementares da dignidade humana, sairemos derrotados,nos e aqueles que sao alvo do discurso xenofobo.

As divergencias morais respeitaveis requerem, por outrolado, capacidade de delibera<;ao, e nao de acusa<;ao. E os estabe-­lecimentos de ensino superior podem funcionar como modelosdessa capacidade, ao encorajarem discussoes intelectuais aber­tas, honestas, serias, tanto dentro como fora das aulas. A dispo­nibilidade para decidir sobre as nossas diferen<;as respeitaveistambem faz parte do ideal polftico democratico. As sociedades ecomunidades multiculturais que defendem a liberdade e aigualdade para todos baseiam-se no respeito mutuo pelas dife­ren<;as culturais, polfticas e intelectuais que nao ultrapassem oslirnites do bom-senso. 0 respeito mutuo implica, por sua vez, avontade e capacidade generalizadas de conciliar os nossosdesentendimentos, de defende-los perante aqueles de quem dis­cordamos, de discernirmos entre divergencia respeitavel e des­respeitavel, e de nos abrirmos e sermos receptivos a mudan<;aquando precedida de crftica bem fundamentada.

A garantia moral do multiculturalismo depende da praticadestes meritos de delibera<;ao.

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A POLlTICA DE RECONHECIMENTO

CHARLES TAYLOR

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Alguns aspectos da politica actual estimulam a necessidade,ou, por vezes, a exigencia, de reconhecimento. Pode-se dizerque a necessidade e, no ambito da politica, uma das for~as

motrizes dos movimentos nacionalistas. E a exigencia faz-sesentir, na politica de hoje, de deterrninadas formas, em nomedos grupos rninorit;~rios ou «subalternos», em algumas mani­festa~6es de feminismo e naquilo que agora, na politica, sedesigna por «multiculturalismo».

A exigencia de reconhecimento nestes ultimos casos adquireuma certa premencia devido asuposta rela~ao entre reconheci­mento e identidade, significando este ultimo termo qualquercoisa como a maneira como uma pessoa se define, como eque as suas caracterfsticas fundamentais fazem dela um serhumano. A tese consiste no facto de a nossa identidade ser for­mada, em parte, pela existencia ou inexistencia de reconheci­mento e, muitas vezes, pelo reconhecimento incorreeto dosoutros, podendo uma pessoa ou grupo de pessoas serem real­mente prejudicadas, serem alvo de uma verdadeira distor~ao,

se aqueles que os rodeiam reflectirem uma imagem lirnitativa,de inferioridade ou de desprezo por eles mesmos. 0 nao reco­nhecimento ou 0 reconhecimento incorrecto podem afectarnegativamente, podem ser uma forma de agressao, reduzindo apessoa a uma maneira de ser falsa, distorcida, que a restringe.

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Assim, algumas feministas afirmaram que, nas sociedadespatriarcais, as mulheres eram induzidas a adoptar uma opiniaodepreciativa delas pr6prias. Interiorizavam uma imagem dasua inferioridade, de tal maneira que, quando determinadosobshiculos reais 11 sua prosperidade desapareciam, elas chega­Yam a demonstrar uma incapacidade de aproveitarem as novasoportunidades. E, alem disso, estavam condenadas a sofrerpela sua debilitada auto-estima. Tambem surgiram argumentossemelhantes em rela~ao aos negros: que a sociedade brancaprojectou durante gera~oes uma imagem de inferioridade dara~a negra, imagem essa que alguns dos seus membros acaba­ram por adoptar. Nesta perspectiva, a sua auto-deprecia~ao

toma-se um dos instrumentos mais poderosos da sua pr6priaopressao. A primeira coisa que deveriam fazer era expiaremessa identidade imposta e destrutiva. Recentemente, afirmou-seo mesmo sobre os indigenas e os povos colonizados, em geral.Pensa-se que desde 1492 os europeus tem vindo a projectardesses povos uma imagem de seres um tanto inferiores, <dncivi­lizados», e que, atraves da conquista e da for~a, conseguiramimpo-la aos povos colonizados. E, para ilustrar 0 desprezo des­truidor em rela~ao aos indigenas do Novo Mundo, elegeu-se apersonagem de Caliban.

Perante estas considera~oes, 0 reconhecimento incorrectonao implica s6 uma falta do respeito devido. Pode tambemmarcar as suas vitimas de forma cruel, subjugando-as atravesde um sentimento incapacitante de 6dio contra elas mesmas.Por isso, 0 respeito devido nao e um acto de gentileza para comos outros. Euma necessidade humana vital.

Para analisar algumas questoes que foram aqui levantadas,gostaria de recuar um pouco, de criar uma certa distancia~ao, edebru~ar-me, em primeiro lugar, sobre como e que 0 discursodo reconhecimento e da identidade passou a fazer parte dasnossas vidas ou, pelo menos, a ser facilmente inteligivel. Isto,porque a realidade nao foi sempre assim e, ha alguns seculos,os nossos antepassados encarar-nos-iam com espanto, semcompreenderem se 0 significado que estas palavras tem hojeseria 0 mesmo que no tempo deles.

Como e que tudo isto come~ou?

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A primeira coisa que vem a lembran~a e Hegel e a suafamosa dialectica do senhor e do escravo. Trata-se de umaetapa importante, mas temos de recuar um pouco mais paracompreendermos essa importancia. Quais as mudan~as ocorri­das que contribufram para 0 significado que este tipo de dis­curso tem hoje para nos?

Podemos distinguir entre duas mudan~as que, conjugadas,tornaram inevitavel esta preocupa~aomoderna pela identidadee pelo reconhecimento. A primeira e 0 desaparecimento dashierarquias sociais, que constitufam 0 fundamento da no~ao dehonra. Refiro-me a honra com 0 mesmo sentido que existia notempo do antigo regime, e que estava intrinsecamente relacio­nado com desigualdades. Para que alguns disfrutem da honraneste sentido, e essencial que nem todos 0 fa~am. E esta acep­~ao que Montesquieu aplica ao descrever a monarquia. A honrae uma questao intrinseca de «preferences»!. E tambem nestaacep~ao que usamos 0 termo quando nos referimos ao facto dealguem ser oficialmente galardoado com, por exemplo, aOrdem do Canada. Eobvio que, se, amanha, este galardao forconcedido a todos os canadianos adultos, ele deixa de ter qual­quer valor.

Contra esta no~ao de honra temos a no~ao moderna de dig­nidade, que hoje possui um sentido universalista e igualitario.Daf falarmos em «dignidade dos seres humanos» ou dignidadede cidadao. Baseia-se na premissa de que e comum a todas aspessoas2. Naturalmente, este conceito de dignidade e 0 unicoque e compativel com a sociedade democratica, e era inevitavelque pusesse de lado 0 velho conceito de honra. Um exemplodisso e 0 tratamento generalizado de «Mr.», «Mrs.» ou «Miss»,em vez de «Lord» ou «Lady», ou, entao, pelos apelidos - ou,ainda mais baixo, pelos nomes cristaos -, considerado essencial

1 «La nature de l'honneur est de demander des preferences et des distinctions...».

Montesquieu, De resprit des lois, Bk. 3, chap. 7.2 A importancia desta mudanc;a de «honra» para «dignidade» ediscutida de

uma forma interessante por Peter Berger em «On the Obsolescence of theConcept of Honour», in Revisions: Changing Perspectives ill Moral Philosophy,ed. Stanley Hauerwas and Alasdair MacIntyre (Notre Dame, Ind.: Universityof Notre Dame Press, !983), pp. 172-181.

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para algumas sociedades democraticas, como e 0 caso dosEstados Unidos. Recentemente, e por raz6es semelhantes,«Mrs.» e «Miss» deram lugar a «Ms.» A democracia introduziua polftica de reconhecimento igualitario, que tern assumidovarias formas ao longo dos anos, e que regressou agora sob aforma de exigencias de urn estatuto igual para as diversas cul­turas e para os sexos.

Mas a importancia do reconhecimento foi-se modificando eaumentando com a nova compreensao da identidade individualque surgiu no final do seculo XVIIf. Podemos falar de uma identi­dade individualizada, ou seja, aquela que e especificamenteminha, aquela que eu descubro em mim. Esta no~ao surge junta­mente com urn ideal: 0 de ser verdadeiro para comigo mesmo epara com a minha maneira pr6pria de ser. Com base na lingua­gem que Lionel Trilling usa no seu brilhante estudo, designareieste ideal como 0 da «autenticidade»3. Ajudara na descri~ao

daquilo em que consiste e como surgiu.Uma maneira de descrever 0 seu desenvolvimento e consi­

derar 0 seu ponto de partida de acordo com a no~ao vigente noseculo XVIII de que os seres humanos saO dotados de urn sen­tido moral, de urn sentido intuitivo sobre 0 bern e 0 mal.o objectivo inicial desta doutrina era combater urn ponto devista rival, segundo 0 qual conhecer 0 bern e 0 mal era umaquestao de consequencias calculadas, sobretudo das quediziam respeito a recompensa e ao castigo divinos. A ideia eraa de que compreender 0 bern e 0 mal nao era uma questao deraciocinio frio, mas urn acto enraizado nos nossos sentimentos4 .

A moralidade tern, em certo sentido, a sua importancia naquestao.

A no~ao de autenticidade desenvolveu-se a partir de umamudan~a da enfase moral para esta ideia. Na perspectiva origi-

3 Lionel Trilling, Sincerity and Allt/len/icity (Nova Jorque: Norton, 1969).4 Ja antes havia analisado, com mais profundidade, 0 desenvolvimento ciesta

doutrina, primeiro na obra de Francis Hutcheson, tendo como fante asescritos do Conde de Shaftesbury, e a sua rela~ao adversaria com a teoriade Locke em SOl/rees of the Self (Cambridge, Mass.: Harvard UniversityPress, 1989), chap. 15.

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nal, a voz interior era importante porque nos dizia 0 que devia­mos fazer. Dar aten<;iio aos nossos sentimentos morais tem asua importancia aqui, como um meio que visa 0 comporta­mento correcto. 0 que eu chamo de mudan<;a da enfase moralsurge quando a aten<;iio que damos aos nossos sentimentosassume uma importancia moral independente e essenciaJ.Acaba por ser aquilo a que temos de nos agarrar se quisermosassumir-nos como seres humanos verdadeiros e de direito.

Para perceber 0 que ha aqui de novo, temos de fazer a com­para<;iio com as perspectivas morais do passado, segundo asquais estabelecer contacto com uma especie de fonte - Deus oua Ideia do bem, por exemplo - era considerado essencial parase atingir a plenitude do ser. Mas, agora, a fonte encontra-sebem no fundo do nosso ser. Este facto faz parte da viragemsubjectiva maci<;a que teve lugar na cultura moderna e que setraduziu numa nova forma de introspec<;iio, atraves da qualpassamos a ver-nos como sujeitos dotados de uma profundi­dade interior. Trata-se de uma ideia que niio exclui a nossarela<;iio com Deus ou com as Ideias. Pelo contrario, pode sermesmo considerada a maneira certa de estabelecer essa rela<;iio.De certo modo, pode ser vista como apenas uma continua<;iio eintensifica<;iio do desenvolvimento iniciado por Santo Agostinho,que considerava a nossa autoconsciencia como a via para che­gar a Deus. As primeiras variantes desta nova perspectiva eramteistas e panteistas.

o filosofo mais importante que contribuiu para esta mudan<;afoi Jean-Jacques Rousseau. Penso que a sua importancia nao sedeve ao facto de ter dado inicio 11 mudan<;a. Eu diria, antes, que asua grande popularidade se deve, em parte, 11 articula<;iio quefez sobre algo que, de certa forma, ja estava a acontecer nodominio cultural. Rousseau apresenta frequentemente a ques­tiio da moralidade como tratando-se de uma voz da naturezadentro de nos e por nos seguida. Essa voz e, muitas vezes, aba­fada pelas nossas paix6es suscitadas pela nossa dependenciados outros, das quais se destaca 0 amour propre, ou orgulho.A nossa salva<;iio moral esta na recupera<;iio do contacto moralautentico connosco mesmos. Rousseau ate da um nome a estetipo de contacto intimo, mais fundamental do que qualquer

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Nota
Considerei muito importante a forma com que o autor demonstra sobre a formação da identidade e do reconhecimento, que para na busca de ambos percorrem caminhos antagonicos, e ao mesmo tempo que se excluem eles se complementam, como ele demonstra com o caso sobre as mulheres. E o que é importante focar é a importancia da construção do individuo dentro do espaço social, o autor condena a dependencia da formação de opinião e da consciencia sobre si e sobre o envolve o individuo, devendo haver um equilibrio entre a independencia do individuo e ao mesmo tempo a importancia que ele deve ter no reconhecer o "outro importante" Página 42 (paragrafo final) e pg 43.

Ioutro conceito moral, e que e Fonte de tanta alegria e satisfa~ao:

«Ie sentiment de I'existence»5.o ideal de autenticidade toma-se decisivo com 0 desenvolvi­

mento que ocone depois de Rousseau, e que eu associo ao nomede Herder - mais uma vez, como 0 seu primeiro grande articu­lador, e nao como seu autor. Herder afirma que cada urn de nostern a sua maneira original de ser humano: cada pessoa possui asua propria «medida»6. Trata-se de uma ideia que ganhou raizesprofundas na consciencia modema. Ii uma ideia nova. Antes dofinal do seculo XVTIl, ninguem havia pensado que as diferen~as

entre seres humanos pudessem assumir este tipo de importiln­cia moral. Existe uma determinada maneira de ser humano quee a minha maneira. Sou obrigado a viver a minha vida de acordocom essa maneira, e nao imitando a vida de outra pessoa. Senao 0 fizer, deixo de compreender 0 significado da minha vida:ser humano deixa de ter significado para mim.

Este e 0 ideal de uma enorme for~a moral que chegou atenos. Faz a concilia~ao entre importiincia moral e urn tipo decontacto comigo mesmo, com a minha propria natureza inte­rior, que e vista como estando em perigo de se perder, em parte,devido as press6es que obrigam uma pessoa a virar-se para 0

exterior, mas tambem devido a uma possivel perda da capaci­dade de ouvir essa voz interior quando assumo uma atitudeinstrumental em rela~ao a mim mesmo.

5 «Le sentiment de l'existence depouille de taute autre affection est par lui­-meme un sentiment precieux de contentement et de paix qui suffiroit seulpour rendre cette existence chere et douce aqui sauroit ecarter de soi toutesles impressions sensuelles et terrestres qui viennent sans cesse nous en dis­traire et en troubler ici bas la douceuf. Mais la pluspart des hommes agitesde passions continuelles connoissent peu eet etat et ne l'ayant gouteqU'irnparfaitement durant peu d'instans n/en conservent qu'une idee obs­cure et confuse qui ne leur en fait pas sentir Ie charme»), len-JacquesRousseau, Les Reveries dll pro11leneur solitaire, «Cinquieme Promenade), inOellvres complNes (Paris: Gallimard, 1959), 1:1047.

6 «Jeder Mensch hat ein eigencs Maass, gleichsam eine eigne Stimmung allerseiner sinnlichen Gefuehle zu einanden>. JOhaIUl Gottlob Herder, Idem, cap. 7,sec. 1, in Herders Saemtlic1le Werke, ed. Bernard Suphan (Berlim: Weidmann,1877-1913), 13:291.

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IE um ideal que aumenta consideravelmente a importiincia

desse autocontacto, ao introduzir 0 principio da originalidade:cada uma das nossas vozes tem algo de Unico para nos dizer. Naos6 nao deveria moldar a minha vida as exigencias da realidadeexterior, como nem sequer posso encontrar 0 modelo que me per­mite viver fora de mim. S6 posso encontra-lo dentro de mim7•

Ser verdadeiro para comigo mesmo significa ser verdadeiropara com a minha originalidade, que e algo que s6 eu possodescobrir e articular. Ao articula-la, estou tambem a definir-mea mim mesmo. Estou a actualizar uma potencialidade que epr6pria de mim. Eassim que se deve entender 0 ideal modernode autenticidade e os objectivos de auto-realiza~aoe de auto­-satisfa~ao que normalmente acolhem este ideal. Epreciso quese note que Herder aplicou esta concep~aode originalidade emdois niveis: 0 individuo rodeado de outros individuos e os povosdetentores de cultura rodeados de outros povos. Tal como osindividuos, um Yolk deve ser verdadeiro para consigo mesmo,isto e, para com a sua pr6pria cultura. as alemaes nao deve­riam relegar-se ao estatuto de franceses de (inevitavelmente)segunda categoria, tal como a atitude paternalista de Frederico,o Grande, parece te-los incentivado a fazer. as povos eslavostiveram que descobrir 0 seu pr6prio rumo. E 0 colonialismoeuropeu deveria ser abolido para proporcionar aos povos doque agora chamamos Terceiro Mundo a sua oportunidade deprogredirem sem entraves. Podemos reconhecer, aqui, a sementedo nacionalismo moderno, tanto na sua forma benigna, comomaligna.

7 John Stuart Mill revela ter sido influenciado por esta corrente do pensa­mento rama-ntico, aD fazer de alga como 0 ideal de autenticidade 0 funda­mento para uma das suas argumenta«;6es mais impressionantes em OnLiberty. Veja-s€, sobretudo, 0 capitulo 3, cnde ele afirma que precisamos maisdo que de uma capacidade para a «imita«;ao medinica»: «Aquele que possuidesejos e impulsos pr6prios - que sao a expressao cia sua pr6pria natureza,tal como se desenvolveu e se modificou na sua propria cultura - possuicaracter». «Se uma pessoa possuir uma dose toleravel de born-sensa e deexperiencia, a sua propria maneira de encarar a sua vida sera melhor, naopar ser melhor em si, mas por ser a sua propria maneira». John Stuart MiltThree Essays (Oxford: Oxford University Press, 1975), pp. 73, 74, 83.

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Este novo ideal de autenticidade tambem era, asemelhanc;a danoc;ao de dignidade, fruto do declinio da sociedade hierarquica.Nessas sociedades, aquilo que hoje designamos por identidadeera, em grande parte, determinado pela posic;ao social. Quer istodizer que a proveniencia social, que explica aquilo que as pessoasconsideravam ser importante para elas, era, em boa parte, deter­minado pelo lugar que ocupavam na sociedade e pelos papeis ouactividades inerentes. 0 nascimento de uma sociedade democra­tica nao poe, por si, cobro a este fen6meno, ja que as pessoasainda podem definir-se pelos papeis sociais que desempenham.Mas 0 que fragiliza decisivamente esta identificac;ao de carizsocial e 0 pr6prio ideal de autenticidade. Dotado do sentido queHerder the da, e urn ideal que me leva a descobrir a minha formaoriginal de ser. Por definic;ao, esta nao pode ser fruto da influen­cia social. Deve, isso sim, gerar-se no interior do ser.

Mas, tal como 0 caracter, gestac;ao interior e coisa que naoexiste, entendido monologicamente. Para se compreender aestreita relac;ao entre identidade e reconhecimento, temos de tomarem considerac;ao urn aspeeto definitivo da condic;ao humana, pra­ticamente invislvel por culpa da tendencia esmagadoramentemonol6gica que tern caraeterizado a filosofia modema dominante.

Refiro-me ao seu caracter fundamentalmente dial6gico.Tornamo-nos em verdadeiros agentes humanos, capazes de nosentendermos e, assim, de definirmos as nossas identidades,quando adquirimos linguagens humanas de expressao, ricas designificado.

Tendo em atenc;ao os objectivos a que me propus com estetrabalho, defino linguagem no sentido lato, abarcando nao s6 aspalavras que proferimos, mas tambem outros modos de expres­sao, atraves dos quais nos definimos, incluindo as «linguagens»da arte, do gesto, do amor, e outras do genero. As pessoas naoaprendem sozinhas as linguagens necessarias a autodefinic;ao.Pelo contrario, elas sao-nos dadas a conhecer atraves da inter­acc;ao com aqueles que sao importantes para n6s - os «outros­-importantes», como George Herbert Mead lhes chamous.

8 George Herbert Mead, Mind, Self, and Society (Chicago: University of ChicagoPress, 1934).

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A forma~ao da mente humana e, neste sentido, nao monol6­gica, nao algo que se consiga sozinho, mas dial6gica.

Alem disso, nao se trata apenas de um facto sobre !orma,iio,que pode ser ignorado mais tarde. Nao nos limitamos a aprenderas linguagens em dhilogo para, depois, continuarmos a usa-laspara os nossos pr6prios fins. E claro que temos de desenvolveras nossas pr6prias opinioes, atitudes, posi~oes em rela~ao as coi­sas, 0 que implica uma boa dose de reflexao solitaria. Mas nao eassim que se passa com as questoes importantes, como a defini­~ao da nossa identidade. Definimo-Ia sempre em dialogo sobre,e, pOl' vezes, contra, as coisas que os nossos outros-importantesquerem vel' assumidas em n6s. Mesmo depois de deixarmospara tras alguns desses outros-importantes - os nossos pais, pOl'exemplo - e de eles desaparecerem das nossas vidas, 0 dialogocom eles continua para 0 resIn das nossas vidas.9

Deste modo, a contribui~ao dos outros-importantes, mesmoque comece quando nascemos, prolonga-se durante anos.Algumas pessoas podem querer continual' apegadas a qualquerforma de ideal monol6gico. Everdade que jamais nos libertare­mos completamente daqueles cujo amor e aten~ao contribui­ram para a nossa forma~ao desde os primeiros momentos dasnossas vidas, mas deveriamos esfor~ar-nospOl' nos definirmos,sozinhos e 0 mais possivel, para compreendermos 0 melhorque pudermos e, assim, controlarmos a influencia recebida dosnossos pais, e para nos impedir de cairmos de novo em depen­dencias semelhantes. Precisamos das rela~oespara nos realizar­mos, mas nao para nos definirmos.

o ideal monol6gico subestima gravemente 0 lugar do idealdial6gico na vida. Visa limita-Io, tanto quanta possivel, a for­ma~ao. Nao tem em conta 0 modo como a nossa no~ao das coi­sas boas da vida pode ser transformada pelo usufruto emcomum com aqueles que amamos; como alguns bens se tornam

9 Esta dialogicalidade interior foi explorada por M. M. Bakhtin e por aquelesque se inspiraram na sua obra. Deste autor veja-se, em especial, Problems ofDostoyevsky's Poetics, trad. Caryl Emerson (Minneapolis: University ofMinnesota Press, 1984). Veja-se tambem Michael Holquist e Katerina Clark,Mikhail Bakhtin (Cambridge. Mass.; Harvard University Press, 1991).

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acessiveis somente atraves desse usufruto em comum. Por essemotivo, seria necessario um grande esfor~o e, provavelmente,muitos rompimentos violentos, para impedir que aqueles queamamos formem a nossa identidade. Consideremos 0 signifi­cado de identidade: e aquilo que n6s somos, «de onde n6s provi­mos». Assim definido, e 0 ambiente no qual os nossos gostos,desejos, opini6es e aspira~6es fazem sentido. Se algumas dascoisas a que eu dou mais valor estao ao meu alcance apenas porcausa da pessoa que eu amo, entao ela passa a fazer parte danUnha identidade.

Para alguns, esta defini~ao pode parecer limitativa, levandouma pessoa a desejar libertar-se. Esta e uma maneira de enten­der 0 que levou 0 eremita a escolher esse tipo de vida ou, paramencionar um exemplo mais pr6ximo da nossa cultura, 0

artista a ser solitario. Mas, noutra perspectiva, ate podemosconsiderar estes modos de vida como aspira~6es a um certotipo de dialogicalidade. No caso do eremita, 0 interlocutor seraDeus. No caso do artista solitario, a pr6pria obra destina-se aum publico posterior, publico esse que a obra ira talvez aindacriar. Eprecisamente a forma que uma obra de arte assume querevela 0 seu caracter de «objecto visado»10. Mas, independente­mente do que uma pessoa possa sentir sobre 0 assunto, a for­ma~ao e a manuten~ao da nossa identidade, na falta de umesfor~o her6ico de romper com a existencia normal, continua aser dial6gica pelas nossas vidas fora.

Assim, a descoberta da minha identidade nao significa queeu me dedique a ela sozinho, mas, sim, que eu a negoceie, emparte, abertamente, em parte, interiormente, com os outros.E por isso que 0 desenvolvimento de um ideal de identidadegerada interiormente atribui uma nova importancia ao reco­nhecimento. A minha pr6pria identidade depende, decisiva­mente, das minhas reac~6esdial6gicas com os outros.

10 Sabre este conceito de urn «super-visado)), para I<i dos nossos interlocuto­res presentes, veja-se Bakhtin, «The Problem of the Text in Linguistics,Philology and the Human Sciences», in Speech, Genres and Other LateEssays, ed. Caryl Emerson e Michael Holquist (Austin: University of TexasPress, 1986), p. 126

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E6bvio que a questao nao reside no facto de essa dependenciados outros ter surgido na era da autenticidade. Existiu sempreuma forma de dependencia. A identidade de origem socialdependia, pela sua pr6pria natureza, da sociedade. Mas, antiga­mente, a reconhecimento nunca havia constituido urn problema.o reconhecimento geral era associado II identidade de origemsocial precisamente pelo facto de se basear em categorias sociaisque ninguem punha em causa. Se bem que resulte de um pro­cesso interior, a identidade original, pessoal, nao e alva deste reco­nhecimento a priori. Teni de se conseguir atraves da troca, a que euma tentativa passivel de falhar. 0 que a idade moderna tem denovo nao e a necessidade de reconhecimento, mas sim as condi­~6es que podem levar uma tentativa de reconhecimento ao fra­casso. No periodo pre-moderno, nao se falava em ,<identidade»,nem em «reconhecimento» - nao porque as pessoas fossem desti­tuidas de (aquila a que chamamos) identidades, au porque estasnao dependiam do reconhecimento, mas, sim, porque nao eramsuficientemente problematicas para serem discutidas como tal.

Nao nos surpreende encontrar algumas das ideias pioneirassabre a dignidade de cidadao e sabre a reconhecimento univer­sal, ainda que nao nestes termos concretos, em Rousseau, queeu pretendi identificar como um dos marcos na origem do dis­curso moderno de autenticidade. Este autor e um critico acer­rima da honra hierarquica, das «preferences». Num importanteexcerto do Discurso sabre a Desigualdade, ele destaca a momentafatidico em que a sociedade se vira para a corrup~ao e para ainjusti~a, em que as pessoas come~am a desejar um tratamentopreferenciaj11. Em contraposi~ao, a sociedade republicana, naqual todos merecem a mesma aten~ao publica, e par ele vistacomo uma fonte de saude sociaj12. Mas e com Hegel que a

11 Neste excerto, Rousseau descreve as primeiros ajuntamentos: «Chacuncommenc;a a regarder les autres et vouloir etre regarde soi-meme, etl'estime publique eut un prix. Celui qui chantait au dansait Ie mieux; Ieplus beau, Ie plus fort, Ie plus adroit au Ie plus eloquent devint Ie plus con~

sidere, et ce fut la Ie premier pas vers l'inegalite, et vers Ie vice en memetemps». Discours slIr l'originc et les fondements de l'inegalite parmi les l1017lmeS(Paris: Granier-Flammarion, 1971), p. 120.

12 Veja-se, por exempla, 0 excerto de Considerations sur Ie gOllvemcmenl dePologne, onde 0 autor descreve 0 antigo festival publico, em que todas as

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questao do reconhecimento come<;a a ser tratada de maneiramais influente13.

A importancia do reconhecimento e, agora, universalmenteadmitida, de uma forma ou de outra: no plano intimo, estamostodos conscientes de como a identidade pode ser formada oudeformada no decurso da nossa rela<;ao com os outros-impor­tantes; no plano social, temos uma poiftica permanente de reco­nhecimento igualitario. Ambos os pianos sofreram a influenciado ideal de autenticidade, 11 medida que este foi amadure­cendo, e 0 reconhecimento joga um papel essencial na culturaque surgiu 11 volta desse ideal.

No nivel intimo, e faci! verificar ate que ponto uma identi­dade original necessita e e vulneravel ao reconhecimento con­cedido, ou nao, pelos outros-importantes. Nao e de admirarque, na cultura de autenticidade, as rela<;6es sejam entendidascomo pontos centrais da autodescoberta e da auto-afirma<;ao.As rela<;6es de amor nao sao s6 importantes devido 11 enfasegeral que a cultura moderna atribui 11 realiza<;ao das necessida­des normais. Sao tambem decisivas por constituirem 0 cadinhoda identidade formada interiormente.

No plano social, a no<;ao de que as identidades se formamatraves do diaIogo aberto, que elas sao imperfeitas quando ava­liadas 11 luz de um guiao social predefinido, tem contribuidopara tornar a politica do reconhecimento mais central e mar­cante. Na verdade, aumentou consideravelmente a jogada.o reconhecimento igualitario nao e apenas a situa<;ao adequadapara uma sociedade democrMica saudavel. A sua recusa podeprejudicar as pessoas visadas, segundo uma perspectivamoderna generalizada, como eu ja referi no inicio. A projec<;ao

pessoas participavam, em DII cmltmt social (Paris: Garnier, 1962), p. 345; veja­-se tambern a excerto paralelo em Lettre aD'Alembert SHr les spectacles, em DIlcontral social, pp. 224-225. Decisivo e 0 principia de que nao deveria existirqualquer distinc;ao entre adores e espectadores, mas sim uma fusao. «Maisquels seront enHn les objets de ces spectacles? Qu'y montrera-t-on? Rien, sil'on veuL.. Donnez les spectateurs en spectacles; rendez-Ies acteurs eux­memes; faites que chacun se voie et s'aime dans les autres, que tOllS en soi­ent mieux unis».

13 Vej.-se Hegel, The Phenomenology of Spirit, trad. A. V. Miller (Oxford:Oxford University Press, 1977), cap. 4.

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de uma imagem do outro como ser inferior e desprezivel pode,realmente, tel' um efeito de distor~iioe de opressiio, ao ponto deessa imagem ser interiorizada. Niio e so 0 feminismo contem­pOl'aneo, mas tambem as rela~oes raciais e as discussoes sobre 0

multiculturalismo, que se fundamentam na premissa de que arecusa de reconhecimento pode ser uma forma de opressiio.Poderiamos discutir se este factor e, ou niio, objecto de exagero,mas niio deixa de ser claro que a no~iio de identidade e deautenticidade introduziu uma nova dimensiio na polftica dereconhecimento igualitario, que agora funciona com algo pare­cido a um conceito proprio de autenticidade, pelo menos noque respeita a denuncia de distor~oesprovocadas pelos oulros.

II

E e desta forma que 0 discurso do reconhecimento chega atenos, a dois niveis: primeiro, na esfera intima, onde a forma~iio

da identidade e do ser e entendida como fazendo parte de umdialogo e luta permanentes com os outros-importantes; e,depois, na esfera publica, onde a polftica de reconhecimentoigualitario passou a desempenhar um papel cada vez maior.Algumas teorias feministas tentaram demonstrar a rela~iio

entre estas duas esferas14•

Nesta segunda parte, tenciono concentrar-me sobre a esferapublica e tentar explorar 0 significado passado e possivel deuma polftica de reconhecimento igualitario.

Na realidade, esta polftica passou a significar duas coisasbastante diferentes, relacionadas, respectivamente, com as duasgrandes mudan~as que descrevi atras. Da mudan~a da honra

14 Existe urn numero de componentes que estabelecem a rela\3o entre estesdais niveis, mas 0 feminismo de orienta~ao psico-analitica, que atribui ascausas das desigualdades sociais ao tipo de educa<;ao que antigamente seclava aos homens e as mulheres, tern sido objecto de especial destaque nostiltimos an05. Veja-se, por exemplo, Nancy Chodorow, Feminism andPsychoanalytic Theory (New Haven: Yale University Press, 1989); e JessicaBenjamin, Bonds of Love: Psychoanalysis, Feminism and the Problem ofDomillatioll (Nova Iorque: Pantheon, 1988).

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Ipara a dignidade surgiu uma politica de universalismo, que daenfase a dignidade igual para todos os cidadaos. E 0 conteudodesta politica visa a igualdade dos direitos e privilegios. 0 quese deve evitar a todo 0 custo e a existencia de cidadaos de «pri­meira classe» e de «segunda classe». E6bvio que as verdadeirasmedidas especificadas, e justificadas por este principio, variamconsideravelmente e tern side frequentemente alvo de polemi­cas. Para algumas pessoas, a igualdade diz respeito s6 aosdireitos civis e de voto; para outras, alarga-se aesfera socioeco­n6mica. De acordo com este ponto de vista, aqueles que,devido apobreza, se veem sistematicamente impedidos de usu­fruirem ao maximo dos seus direitos de cidadania tern sidorelegados para urn estatuto de segunda categoria e necessitamde uma ac~ao de compensa~ao atraves da igualdade. Mas,mesmo tendo conhecido interpreta~6esdiferentes, 0 principio daigual cidadania passou a ser universalmente aceite. Qualquerponto de vista, independentemente do seu grau de reacciona­rismo, e defendido a luz deste principio. A sua maior e maisrecente vit6ria cabe ao movimento dos direitos civis dos anos60, nos Estados Unidos. Digno de nota e 0 facto de, nos Estadossulistas, ate os opositores a concessao do direito de voto apopula~ao negra arranjarem desculpas conformes ao principiouniversalista, como, por exemplo, a submissao dos potenciaiseleitores a «testes», por alturas do recenseamento.

Em contraposi~ao, a segunda mudan~a referente ao desen­volvimento da no~ao moderna de identidade deu origem auma politica de diferen~a.Eclaro que esta politica tambem ternuma base universalista, 0 que contribui para a confusao oucoincidencia entre as duas politicas. Todas as pessoas devem serreconhecidas pelas suas identidades unicas. Aqui, porem, 0

reconhecimento tern outro significado. Em rela~ao apolitica deigual dignidade, aquilo que se estabelece visa a igualdade uni­versal, urn cabaz identico de direitos e imunidades; quanta apolitica de diferen~a, exige-se 0 reconhecimento da identidadeunica deste ou daquele individuo ou grupo, do caracter Bingu­lar de cada urn. Quer isto dizer, por outras palavras, que e preci­samente esta singularidade que tern sido ignorada, disfar~ada,

assimilada a uma identidade dominante ou de maioria. E e esta

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assimila~ao que constitui 0 pecado cardeal contra 0 ideal deautenticidade1S.

a que agora subjaz a exigencia de reconhecimento e urnprincipio de igualdade universal. A politica da diferen~a

implica inumeras denuncias de discrimina~aoe recusa da cida­dania de segunda categoria. Eaqui que 0 principio da igualdadeuniversal coincide com a politica de dignidade. Todavia, as exi­gencias daquela dificilmente sao assimiladas nesta, pois talimplica que reconhe~amosa importancia e 0 estatuto de algoque nao euniversalmente comum. au, dito de outra maneira, s6reconhecemos aquilo que existe universalmente - todos pos­suem uma identidade -, aquilo que epeculiar a cada urn. A exi­gencia universal estimula urn reconhecimento da especificidade.

As polfticas de diferen~a e de dignidade universal deixam deconstituir urn todo quando ocorre aquele tipo de altera~6es, quenos sao familiares ha. muito, em que uma nova no~ao da condi­~ao social humana atribui urn novo significado a urn velho prin­cipio. Assim como uma perspectiva sobre seres humanoscondicionados pela sua pobreza socioecon6mica contribuiu paramodificar a no~ao de cidadania de segunda classe, a ponto deeste estatuto passar a incluir, por exemplo, pessoas com umavida de pobreza herdada, tambem a no~ao de identidade for­mada, ou possivelmente deformada, a partir da interac~ao,

introduz uma nova forma de estatuto de segunda classe nonosso campo de compreensao. Tal como agora, a redefini~ao

socioecon6mica justificou a elabora~ao de programas sociais quederam azo a grandes polemicas. 1sto, porque, para aqueles quenao concordaram com esta defini~ao alterada de estatuto igual,os diversos programas de compensa~aosocial e as oportunida­des especiais concedidas a determinadas popula~6eseram consi­derados como uma forma de favoritismo nao merecido.

15 Numa perspectiva feminista, urn exemplo lapidar desta acusa~ao e a cri­tira de Carol Gilligan ateoria de Lawrence Kohlberg sobre 0 desenvolvi­mento moral, por este autor apresentar urn ponto de vista sobre 0

desenvolvimento humano que privilegia apenas uma faceta da 16gicamoral: precisamente aquela que predomina geralmente nos rapazes, emdetrimento das raparigas. Veja-se Gilligan, ItI a Different Voice (Cambridge,Mass.: Harvard University Press, 1982).

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o mesmo tipo de conflitos e, hoje, suscitado a volta dapolftica de diferen<;a. Enquanto a polftica de dignidade univer­sal lutava por formas de nao-discrimina<;ao que <dgnoravam»consideravelmente as diferen<;as dos cidadaos, a polftica dediferen<;a redefine frequentemente a nao-discrimina<;ao comouma exigencia que nos leva a fazer dessas distin<;6es a base dotratamento diferencial. Assim, os membros de grupos indfge­nas terao certos direitos e poderes diferentes dos outros canadia­nos, se se chegar finalmente a acordo sobre as reivindica<;6es deauto-administra<;ao para as popula<;6es nativas. E algumasminorias terao 0 Clireito de excluir outras pessoas, para preser­varem a sua integridade cultural, e por af fora.

Para os defensores da original polftica de dignidade, estasitua<;ao assume-se como um reves, uma trai<;ao, a pura nega­<;ao do principio que tanto prezam. Oaf que se tenha levado acabo tentativas no sentido de se chegar a um meio-termo, quepretendem demonstrar como e que algumas das medidas desti­nadas a melhorar a situa<;ao das minorias podem, ao fim e aocabo, ser justificadas originalmente com base na dignidade.Trata-se de argumentos que podem vingar ate certo ponto. Porexemplo, alguns dos casos (aparentemente) mais not6rios de<dgnorancia da diferen<;a» sao as medidas de discrimina<;aopositiva, que possibilitam as pessoas oriundas de grupos antesdesfavorecidos uma vantagem competitiva no que toca aempregos e vagas nas universidades. Esta pri\tica e justificadapelo facto de a discrimina<;ao hist6rica ter criado um padrao, noseio do qual os desfavorecidos estao em desvantagem paralutar. Edefendida como uma medida temporaria que ira nive­lar, mais tarde, 0 campo de batalha e permitir as velhas regrasde «ignorancia» 0 regresso em for<;a, de uma forma que naodeixara ninguem em desvantagem. Este argumento parece sersuficientemente convincente - onde quer que a sua base factualse revele s6lida. Mas de maneira nenhuma justifica algumasdas medidas agora preconizadas com base na diferen<;a e quevisam repor, mais tarde, um espa<;o social «que ignora a dife­ren<;a». Visam, muito pelo contrario, manter e acalentar as dife­ren<;as agora e no futuro. Afinal, se nos preocupamos com a

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identidade, 0 que e que M de mais legitimo do que 0 desejo denunca a perdermos16?

Assim, mesmo que uma politica resulte de outra, atraves dasaltera~5es na defini~ao de termos-chave e que nos sao familia­res, as duas divergem sensivelmente. Essa divergencia assentanuma base que se torna ainda mais evidente quando deixamospara tfils a exigencia que cada pessoa faz sobre 0 tipo de reco­nhecimento desejado - certos direitos universais, num caso, euma identidade especffica, no outro -, e atentamos sobre asintui~5esde valor subjacentes

A politica de igual dignidade baseia-se na ideia de que todasas pessoas sao igualmente dignas de respeito. Fundamenta-senuma no~ao sobre 0 que leva os seres humanos a sentirem res­peito, por mais que tentemos escapar a este background «metaff­sico». Para Kant, cujo usa que deu it palavra dignidade foi umadas primeiras evoca~5es influentes desta ideia, 0 que provocanos seres humanos 0 sentido de respeito era 0 nosso estatuto deagentes racionais, capaz de orientar as nossas vidas atraves de

16 No seu livro Liberalism, Comnwl1ity and Culture (Oxford: ClarendonPress,1989), extremamente interessante e de uma argumenta~aos6lida,Will Kymlicka tenta defender uma especie de politica de diferen~a, sobre­tudo, relacionada com as direitos dos indigenas do Canada mas baseando­-se firmemente numa teoria de neutralidade liberal. Ele pretende fazer asua argumentac;ao a partir de certas necessidades culturais - mais especifi­camente, a necessidade de uma linguagem cultural, preservada na suatotalidade e incolume, e atraves cia qual urn individuo pode definir-se eaplicar a sua concepc;ao de uma vida boa. Em certas circunstancias, no querespeita a populac;6es desfavorecidas, a integridade cultural pode pressu­por a concessao de mais recursos ou direitos do que a outros. Eurn argu­mento analogo ao que foi feita sabre as desigualdades socioecon6micas eque eu mencionei atras. No entanto, aa exprimir as verdadeiras reivindica­c;6es dos grupas em questao - sejam eles grupos de fndios do Canada aude canadianos franc6fonos -, a interessante argumento de Kymlicka falhaquanta ao objectivo deles de sabreviver. a raciadnio deste autor evalida(talvez) para aqueles que, presentemente, se encontram encurraladas numacultura sob pressao, e que padem progredir dentro dela, au que nunca acanseguirao. Naa justifica, contuda, as medidas destinadas a garantir, portempo indefinido, a sobrevivencia de gerac;6es futuras. Mas, para as popu­lac;6es em questaa, e isto que esta em jago. Basta pensarmos nas ressonan­cias hist6ricas de «la survivance» entre os canadianos franceses.

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principios17. Algo de semelhante constituiu, desde entao, a basedas nossas intui~6es sobre a igual dignidade, embora a defini­~ao pormenorizada possa ter sofrido alguma altera~ao.

Assim, 0 que de importante se consegue distinguir aqui e umpotencial humano universal, uma capacidade comum a todos osseres humanos. Este potencial, mais do que qualquer outra coisaque se tenha entendido sobre 0 assunto, e que garante a cadapessoa 0 facto de merecer respeito. Realmente, 0 nosso sentidoda importancia da potencialidade e tao grande que alargamosesta protec~ao ate a pessoas que, devido a certas circunstancias,sao incapazes de realizar normalmente os seus potenciais - osdeficientes ou os doentes em coma, por exemplo.

No caso da polftica de diferen~a, podemos tambem afirmarque se baseia num potencial universal, nomeadamente, 0

potencial para formar e definir a pr6pria identidade de cadapessoa, como indivfduo e como uma cultura. Esta potenciali­dade deve ser igualmente respeitada em todas as pessoas. Mas,pelo menos no contexto intercultural, uma exigencia mais fortesurgiu recentemente: que cada indivfduo respeite as culturasverdadeiramente evolufdas. as crfticos do domfnio europeu oubranco, tendo em conta que os europeus ou os brancos nao s6suprirniram mas tambem nao conseguiram valorizar as outrasculturas, consideram estes jufzos de valor depreciativos comosendo factualmente incorrectos e tambem, de algum modo,moralmente errados. A celebre cita~ao de Saul Bellow, dogenero «no dia em que surgir um Tolstoy zulu, ele passara afazer parte dos nossos habitos literarios»18, e considerada comoa quintessencia da manifesta~aoeuropeia de arrogancia, nao s6porque Bellow e, alegadamente, insensfvel de facto ao valor dacultura zulu, mas tambem, e frequentemente, por ser um exem­plo que se julga reflectir uma recusa do principio da igualdadehumana. A possibilidade de os zulus, dotados do mesmo

17 Veja-se Kant, Grlllld/egllllg der Melaphysik der Siltell (Bedim: Gruyter, 1968;reeditado pela Academia de Berlim), p. 434.

18 Desconhe~o de todo se Saul Bellow proferiu realrnente a frase desta maneira.Menciono-a 56 para captar uma atitude generalizada que, obviamente,explica, em primeiro lugar, 0 motivo por que este episodio se divulgou.

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potencial que os outros povos para formarem uma cultura, pos­sufrem uma cultura menos valiosa do que as outras e, apartida,eliminada. Ate 0 tomar em considera~aoesta possibilidade signi­fica negar a igualdade humana. Nesse caso, 0 erro de Bellow,aqui, nao teria sido um (possivelmente insensfvel) erro especificode avalia~ao,mas, sim, a nega~ao de um principio fundamental.

Tendo em conta a dimensao desta crftica, a exigencia de reco­nhecimento igual estende-se para 1<\ da capacidade de admitir 0

valor potencialmente igual de todos os seres humanos, para incluiro valor igual daquilo que pensam, de facto, sobre este potencial.Aqui, surge um problema grave, como veremos adiante.

as dois tipos de politica que se baseiam na no~ao de res­peito igual entram em conflito. Em primeiro lugar, 0 principiodo respeito igual exige que as pessoas sejam tratadas de umaforma que ignore a diferen~a. A intui~ao fundamental de queeste respeito depende das pessoas centra-se naquilo que ecomum a todas elas. Em segundo lugar, temos de reconhecer eate mesmo encorajar a particularidade. A crftica que a primeirafaz asegunda consiste na viola~aoque esta comete do principiode nao-discrimina~ao.Inversamente, a primeira e criticada pelofacto de negar a identidade, for~ando as pessoas a ajustarem-sea um molde que nao lhes e verdadeiro. Ia seria suficientementemau se se tratasse de um molde neutro - ou seja, que nao per­tencesse a ninguem, em particular. Mas, geralmente, as pessoaslevam a reclama~ao mais longe. Queixam-se do facto de 0 con­junto, supostamente neutro, de principios que ignoram a dife­ren~a e que regem a politica de igual dignidade ser, na verdade,um reflexo de uma cultura hegem6nica. Se assim e, entao s6 aminoria ou as culturas subjugadas sao for~adas a alienarem-se.Consequentemente, a suposta sociedade justa e ignorante dasdiferen~as e, nao s6 inumana (porque subjuga identidades),mas tambem ela pr6pria extremamente discriminat6ria, deuma maneira subtil e inconsciente19•

19 as dais tipos de critica sao recorrentes, hoje em dia. No contexto de algu­mas modas feministas e multiculturalistas, prevalece a reclamac;ao maisforte: a de que a cultura hegemonica pratica a discrimina<;ao. Na UnHioSoviEWca, porem, a par de uma crHica semelhante dirigida contra a culturahegem6nica da Grande Russia, tambem se afirma que 0 Marxismo-

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Este ultimo ataque revela-se como 0 mais cruel e inquietantede todos ate agora feitos. Parece que 0 liberalismo da igual digni­dade tern de pressupor que existem alguns prindpios universaisque ignoram a diferen~a. Embora nao os tivessemos ainda defi­nido, e urn projecto que continua vivo e a ser essencial. Pode-sepropor diferentes teorias e contesta-las - e nao sao poucas as queja foram propostas nos nossos dias20 - mas 0 que elas tern emcomum e a presun~ao de que uma dessas teorias e que esta certa.

o que se critica nas formas mais radicais de politica de dife­ren~a e 0 facto de os liberalismos «ignorantes» serem eles pro­prios reflexos de culturas espedficas. E 0 que torna esta questaoinquietante e a probabilidade de esse reflexo nao ser uma merafraqueza circunstancial de todas as teorias ate agora propostas,mas sim a propria ideia de que esse tipo de liberalismo possaser uma especie de contradi~ao pragm<itica, urn particularismodisfar~adode universalismo.

Tenciono, agora, dedicar-me, com calma e com cuidado, aeste grupo de quest6es, passando por algumas etapas impor­tantes do aparecimento das duas politicas nas sociedades oci­dentais. Analisarei, primeiro, a politica de igual dignidade.

III

A politica de igual dignidade surgiu na civiliza~aoocidentalsob a forma de dois modelos, que poderiamos associar aosnomes de duas referencias: Rousseau e Kant. Nao quer istodizer que a influencia destes dois mestres se fez sentir em toda

-Leninisrno e uma imposillao estrangeira sabre tacias por iguat ate sobre apr6pria Russia. De acordo com este ponto de vistar 0 molde comunista naopertence verdadeiramente a ninguem. Solzhenitsyn foi 0 autor ciesta critica,mas, hoje, encontrou eeD nos russos de muitas e diferentes confiss6es, e terna ver com 0 extraordinario fen6meno de urn imperio que quase se desmoro­nOll devido ao quase isolamento da sua sociedade metropolitana.

20Veja-se John Rawls, A Theory of Justice (Cambridge, Mass.: HarvardUniversity Press, 1971); Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously (Londres:Duckworth, 1977 e A Matter of Principle (Cambridge, Mass.: HarvardUniversity Press, 1985); e Jiirgen Habermas, T1leorie des kommllnikativenHandelns (Frankfurt: Suhrkamp, 1981).

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a extensao de cada modelo (se bern que tal possa ser afirmadono caso da vertente rousseauiana), mas somente que ambos saoos primeiros e mais antigos expoentes desses modelos. Atentarsobre estes deveria permitir-nos determinar ate que ponto saoresponsll.veis por imporem uma falsa homogeneidade.

Afirmei, no fim da primeira secc;ao, que Rousseau podia serconsiderado urn dos pais do discurso do reconhecimento. Digoisto, nao so porque ele faz usa deste termo, mas porque e eleque produz as primeiras reflexoes sobre a importancia do res­peito igual e de, na verdade, 0 julgar como factor imprescin­divel para a liberdade. Como e bern sabido, Rousseau fazgeralmente a contraposic;ao entre uma situac;ao de liberdade­em-igualdade e uma situac;ao caracterizada pela hierarquia epela dependencia dos outros, nao so porque estes detem 0

poder polftico, ou porque sao necessll.rios a sobrevivencia ou aoexito dos projectos acalentados pelo individuo, mas, acima detudo, porque este anseia pela estima dos outros. Aquele quedepende dos outros eurn escravo da «opiniao».

Esta e uma das ideias-chave sobre a relac;ao que Rousseauestabelece entre a dependencia dos outros e a hierarquia. Numaperspectiva logica, estes dois aspectos poderiam parecer distin­tos. Por que razao nao pode existir uma dependencia dosoutros em situac;ao de igualdade? Parece que, para Rousseau,tal nao era possivel, jll. que ele associa 0 aspecto da dependenciaa necessidade de uma boa opiniao por parte dos outros, 0 que,por sua vez, se enquadra na concepc;ao tradicional de honra,isto e, a honra como algo intrinsecamente ligado as «preferen­ces». A estima que procuramos na situac;ao de igualdade eintrinsecamente diferente. Eurn bern posicional.

Precisamente por causa do lugar decisivo que a honraocupa e que 0 estado de corrupc;ao em que a humanidade seencontra apresenta uma combinac;ao paradoxal de qualidadestais que explica a nossa desigualdade em termos de poder, naoobstante a dependencia de todos nos dos outros - nao e so do.escravo em relac;ao ao senhor, mas tambem deste em relac;aoao escravo. Trata-se de uma explicac;ao que e, muitas vezes,apresentada. A famosa frase de 0 Contrato Social, que diz queos homens nascem livres, mas vivem acorrentados em toda aparte, segue-se aquela que diz: «Tel se croit Ie maitre des autres,

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qui ne laisse pas d'etre plus esclave qu'eux [Cada um julga-sesenhor dos outros e, no entanto, e mais escravo do que eles]21».E, em Emilio, Rousseau diz-nos que, na situa<;ao de dependen­cia, «maitre et esclave se depravent mutuellement [0 senhor eo escravo corrompem-se mutuamente]»22. Se a questao se resu­misse ao poder puro e simples, poder-se-ia pensar que 0

senhor e livre a custa do escravo, mas, num sistema de honrahierarquica, a deferencia por parte das classes mais baixas eessencial.

As posi<;6es deste fil6sofo frances assemelham-se, muitasvezes, as dos Est6icos, que, sem duvida, 0 influenciaram. Eleidentifica 0 orgulho (amour propre) como uma das grandesfontes do mal. Mas Rousseau nao se fica por aqui, ao contrariodos Est6icos. Ha muito que existe um discurso, tanto est6ico,como cristao, sobre 0 orgulho e que nos recomenda que supere­mos a preocupa<;ao pela boa opiniao por parte dos outros.E-nos pedido que saiamos dessa dimensao da vida humana emque as reputa<;6es sao procuradas, conquistadas e desfeitas; naonos deviamos preocupar com a maneira como uma pessoa seapresenta no espa<;o publico. Por vezes, parece que Rousseauesta a subscrever este ponto de vista. Como parte da sua pr6­pria autodramatiza<;ao, deveriamos, em particular, manter anossa integridade perante as hostilidades e calunias imerecidaspor parte dos outros. Mas, quando consideramos as descri<;6esdeste autor sobre a sociedade potencialmente boa, podemosconstatar que a estima ainda desempenha 0 seu pape!, que aspessoas vivem a merce do publico, do que os outros pensam.Num excerto de Considera<;6es sobre 0 Governo da Pol6nia,Rousseau descreve 0 modo como os antigos legisladores se preo­cupavam em unir os cidadaos a sua pi3.tria. Um dos meios usa­dos para conseguir essa uniao eram os jogos publicos. Rousseaurefere-se aos premios:

Aux acclamations de toute la Grece, on couronnoit lesvainqueurs dans leurs jeux qui, les embrasant continuellement

21 The Social Contract and Discourses, trad. G. D. H. Cole (Nova Iarque; E. P.Dutton, 1950), pp. 3-4.

22 Emile (Paris: Garnier, 1964), vol. 2, p. 70.

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d'emulation et de gloire, porterent leur courage et leurs vertusii ee degre d'energie dont rien aujourd'hui ne nous donne/'idee, et qu'il n'appartient pas meme aux modernes de eraire.

[Os vencedores dos jogos gregos eram coroados eaclamados por todos os seus conterraneos - sao estas coi­sas que, devido ao constante estimulo dado ao espfrito decompeti,ao e ao amor agl6ria, engrandeciam a coragem eas virtudes gregas ate atingirem um estado de vigor que,se compararmos ao que existe hoje, nao conseguimosobter uma pequena ideia -, 0 que, na verdade, intriga 0

homem moderno como algo de inacreditavel]»23.

A gl6ria e 0 reconhecimento publico eram muito importantesneste caso. Alem disso, os efeitos dessa importancia eram consi­deravelmente beneficos. Por que razao assim era, quando a honra,na sua acep,ao moderna, se revela como uma for,a negativa?

A resposta parece residir na igualdade, ou, mais precisa­mente, na reciprocidade equilibrada em que se apoia a igual­dade. Pode-se dizer (embora Rousseau nao 0 tenha feito) que,neste tipo de contextos republicanos ideais, todas as pessoasdependiam umas das outras, mas faziam-no de forma igual.Rousseau afirma que a caracterfstica-chave destes eventos,jogos, festivais e recita,nes, que os tornava em fontes de patrio­tismo e de virtude, era a total ausencia de diferencia,ao ou dis­tin,ao entre as diferentes classes de cidadaos. Tinham lugar aoar livre e envolviam todos: as pessoas tanto eram as espectado­ras, como eram 0 espectaculo. A partir do referido excerto, 0

contraste que se faz e com os servi,os religiosos modernos, emigrejas fechadas, e, sobretudo, com 0 teatro moderno, que fun­ciona num ediffcio fechado, onde se paga para entrar, e queconsiste na representa,ao, a cargo de uma classe especial deprofissionais, destinada aos outros.

Este eo tema central de Carta a D'Alembert, onde, mais umavez, Rousseau contrasta 0 teatm moderno e os festivais publicos

23 Considerations sur Ie gOl/vernement de P%gne, p. 345; Considerations on theGovernment ofPoland, trad. Wilmoore Kendall (Indianapolis: Babbs-Merrill,1972), p. 8.

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de uma verdadeira republica, que tem lugar ao ar livre. Aqui, 0

autor deixa claro que a rela<;ao de identidade espectador-actorconstitui a chave para este genero de reuni6es beneficas:

Mais quels seront les objets de ces spectacles? Qu'y mon­trerat-on? Rien, si I'on veut. Avec la liberte, partout 011 regnel'affluence, Ie bien-etre y regne aussi. Plantez au milieu d'uneplace un piquet couronne de fleurs, rassemblez-y Ie peuple, etvous aurez une fete. Faftes mieux encore: donnez les specta­teurs en spectacle; rendez-Ies actues eux-memes; faftes quechacun se voie et s'aime dans les autres, afin que tous en soi­ent mieux unis.

[Mas em que e que consistem os objectos destasdivers6es? a que e que e representado? Nada, vejam laoHavendo liberdade, onde quer que a riqueza reine, reinatambem 0 bem-estar. Plantem uma estaca carregada deflores no meio de uma pra<;a, juntem as pessoas it suavolta e eis um festival. au melhor: deixem os espectado­res tornarem-se eles pr6prios uma diversao; que elessejam os pr6prios actores; fa<;am-no, para que cada umse veja e se ame nos outros, de maneira a que a uniaoentre todos seja maior24•

Apesar de nao 0 mencionar explicitamente, parece que 0

argumento subjacente de Rousseau consiste no seguinte: umareciprocidade perfeitamente equilibrada remove 0 espinho danossa dependencia da opiniao dos outros e torna-a compativelcom a liberdade. Isto, porque a reciprocidade completa, junta­mente com a unidade de objectivo dai resultante, assegura que,ao seguir a opiniao dos outros, nao estou a ser, de modo algum,for<;ado a sair de mim mesmo. Continuo a «obedecer-me» comourn membro deste projecto comum ou «vontade gera!». Nestecontexto, dar importancia it estima e compativel com a liber­dade e com a unidade social, porque a sociedade e urn espa<;o

24 Lettre ii D'Alembert, p. 225; Letter to M. D'Alembert all the Theatre, in Jean­-Jacques Rousseau, Politics and the Arts, trad. Allan Bloom (Ithaca, N. I.:Cornell University Press, 1968), p. 126.

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uno, onde todos OS virtuosos serao incentivados de igual modoe pelas mesmas raz6es (certas). Em contraposi~ao,num sistemade honra hierarquica, estamos em competi~ao uns com osoutros: a gl6ria de uns tem de ser 0 opr6brio de outros, ou, pelomenos, tem de implicar a sua insignificancia. Aqui, a unidadede prop6sito ve-se desintegrada e, neste contexto, tentar cairnas gra~as dos outros, que, por hip6tese, tem objectivos dife­rentes dos meus, deve ter 0 efeito contrario. Paradoxalmente, adependencia negativa dos outros esta de acordo com a separa­~ao e 0 isolament025; a dependencia positiva dos outros, queRousseau se recusa simplesmente a designar por dependenciados outros, implica a unidade de um projecto comum, atemesmo de um «ser-se comum»26.

Assim, Rousseau esta na origem de um novo discurso sobrea honra e a dignidade. As tradicionais formas de pensar sobre ahonra e 0 orgulho, ele acrescenta uma terceira, completamentediferente. Havia um discurso contra 0 orgulho, como referiatras, que nos levava a sair de toda esta dimensao da vidahumana e a nao nos preocuparmos, de todo, com a estima. Ehavia uma etica de honra, que, realmente, nada tinha de uni­versalista ou de igualitario, e que considerava a preocupa~ao

com a honra a primeira caracteristica do homem respeitavel.Aquele que nao pensasse na reputa~ao, que nao estivesse dis­posta a defende-la, seria necessariamente um cobarde e, porisso, desprezivel.

Rousseau vai buscar 0 tom acusat6rio ao primeiro discurso,mas nao acaba por preconizar a renuncia a todas as preocupa­~6es sobre a estima. Pelo contrario, ao retratar 0 modelo repu-

25 Em rela\ao ao excerto de Considerafoes sabre 0 Governo da Pol6nia, atras rnen­cionacio, 1.\ousseau descreve, mais adiante, as ajuntarnentos na nossamoderna sociedade corrompida como senda «des cohues licencieuses)~,

code as pessoas aparecem «pour s'y faire des liaisons secretes, pour y cher­cher les plaisirs qui separent, isolent Ie plus des hommes, et qui relachent Ieplus des coeurs», Considerations sur Ie gOllvernement de Pologne, p. 346.

26 Du contrat social, p. 244. Neste dominio, as discussoes com Natalie Omanajudaram-me bastante. Desta autora, veja-se «Forms of Common Space inthe Work of Jean-Jacques Rousseaw> (Trabalho de Mestrado, McGillUniversity, Julho de 1991).

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blicano, dar importancia a estima e um factor central. 0 que hade errado com 0 orgulho ou a honra e a ansia do tratamentopreferencial, resultando dai a divisao, a verdadeira dependen­cia dos outros e, por isso, a perda da voz da natureza, e, conse­quentemente, a corrup~ao, 0 esquecimento dos limites e aefemina~ao. A solu~ao nao consiste em rejeitar a importanciada estima, mas, sim, em participar num sistema completamentediferente, caracterizado pela igualdade, reciprocidade e pelaunidade de proposito. Esob a egide da vontade geral que todosos cidadaos virtuosos serao honrados de forma igual. Assimnasce a era da dignidade.

E esta nova critica do orgulho, que conduz, nao a solidaomortificante, mas a uma politica de igual dignidade, que Hegeladoptou e celebrizou na sua dialectica do senhor e do escravo.Contra 0 velho discurso sobre os maleficios do orgulho, estefilosofo considera fundamental 0 facto de podermos progredirso ate ao ponto de sermos reconhecidos. Cada consciencia pro­cura 0 reconhecimento noutra e isto nao constitui um sinal defalta de virtude. Todavia, 0 conceito normal de honra comosendo hierarquica fica decisivamente marcado. 0 motivo resideno facto de nao poder corresponder 11 necessidade que leva aspessoas a procurarem 0 reconhecimento, em primeiro lugar.Aqueles que nao conseguem triunfar no jogo da honra conti­nuam a nao ser reconhecidos. Mas ate os que triunfam conhe­cem uma forma mais subtil de frustra~ao por conseguirem 0

reconhecimento daqueles que perderam e que, por hipotese,nao tem verdadeiramente valor, ja que deixaram de ser pessoaslivres, auto-subsistentes e de estar ao mesmo nivel dos vence­dores. A luta pelo reconhecimento so pode encontrar uma solu­<;ao satisfatoria, que e um sistema de reconhecimento entreiguais. Hegel segue, assim, Rousseau, ao encontrar este sistemanuma sociedade com um objectivo comum, onde existe urn«'nos' que sao urn 'eu'» e urn «'eu' que eurn 'nos\>27.

Mas, se consideramos Rousseau 0 pai da nova politica deigual dignidade, podemos afirmar que a solu~ao por ele apre­sentada e decisivamente imperfeita. Relativamente 11 questao

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27 Hegel, PltenomellOlogy of Spiril, p. 110.

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apresentada no inicio desta sec~ao, a igualdade de estima exigeuma unidade coesa de objectivo que parece ser incompativelcom qualquer tipo de diferencia~ao.Para Rousseau, parece quea solu~ao para criar um organismo livre reside na exclusao rigo­rosa de qualquer diferencia~aodos papeis. 0 princfpio destefilosofo parece ser 0 seguinte: em termos de uma qualquer rela­~ao R, de dois termos, que implique poder, a condi~ao para umasociedade livre e a de que os dois termos unidos por uma rela­~ao sejam identicos. xRy e compativel com uma sociedade livresomente quando x=y. A verdade deste princfpio verifica-sequando a rela~ao pressup6e que os x's se apresentem no espa~o

publico dos y's, verdade essa que se consolida quando a rela~ao

e «0 fim dos exercfcios de soberania». No estado social, as pes­soas devem ser, simultaneamente, soberanas e subditas.

Em Rousseau, ha tres coisas que parecem inseparaveis: liber­dade (nao-domina~ao),ausencia de papeis diferenciados e umobjectivo comum muito coeso. Todos nos devemos dependerda vontade geral para que nao surjam formas bilaterais dedependencia28. E esta tem side a formula usada para os maisterriveis generos de tirania homogeneizante, que teve iniciocom os Jacobinos e se prolongou ate aos regimes totalitarios donosso seculo. Mas, mesmo pondo de lado 0 terceiro elementoda trindade, a combina~ao da liberdade igualitaria e da ausen­cia de diferencia~ao continuou a ser um genero tentador depensamento. Onde quer que domine, seja sob a forma de pen­samento feminista ou de politica liberal, a margem para reco­nhecer a diferen~a e extremamente pequena.

IV

Podiamos manifestar 0 nosso acordo sobre a analise feitaatras e criar alguma distancia~ao relativamente ao modelo

28 Ao justificar as suas famosas (au infames) palavras de ordem sabre 0 indi­viduo fon;ado a obedecer alei de ser «fon;ado a ser livre», Rousseau pros­segue: «car telle est la condition qui donnant chaque citoyen it. la Patrie Iegarantit de toute dependance personelle .. ,». DIl c01ltrat socia( p. 246.

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rousseauiano de dignidade de cidadao. No entanto, tambempoderiamos desejar saber se qualquer politica de igual digni­dade, baseada no reconhecimento das capacidades universais,esta destinada a ser igualmente homogeneizante. II verdadeque esses modelos - que eu registei atras de uma forma talvezmuito arbitraria, sob a referencia de Kant - estabelecem umaseparac;aoentre liberdade igualitaria e os dois outros elementosda trindade rousseauiana? Estes modelos nao s6 nao tem nadaa ver com uma vontade geral, como tambem se abstraem dequalquer aspecto da diferenciac;ao dos papeis. Limitam-se, sim,a confiar numa igualdade de direitos concedidos aos cidadaos.Esta forma de liberalismo, porem, tem side alvo de ataques porparte dos defensores da politica de diferenc;a, manifestandouma incapacidade de admitir devidamente a distinc;ao. Seraque os crfticos estao certos?

A verdade e que existem formas deste liberalismo e de direi­tos igualiMrios que, nas mentes dos seus pr6prios defensores,s6 permitem que se admita, de forma muito restrita, as identi­dades culturais distintas. A noc;ao de que qualquer !ista dedireitos poderia ter uma aplicac;ao diferente consoante os con­textos culturais, de que as suas aplicac;5es poderiam ter deconsiderar diferentes objectivos colectivos, e tida como total­mente inaceitavel. Portanto, a questao e saber se esta visaorestritiva sobre os direitos igualitarios e a unica interpretac;aopossive!. Se e, entao parece que a acusac;ao de homogeneizac;aotem um bom fundamento. Mas talvez nao seja. Penso que nao ea melhor maneira de examinar a questao sera, talvez, consi­dera-la no contexte canadiano, onde desempenha um papel naruptura que impende sobre 0 pais. De facto, duas concepc;5esde direitos-libera!ismo entraram em conf!ito, ainda que deforma confusa, atraves de longos e inconcludentes debates cons­titucionais, que tiveram lugar nestes ultimos anos.

. A questao ganhou proeminencia por causa da Carta dosDireitos do Canada, adoptada em 1982, e que ajusta 0 sistemapolitico canadiano relativamente a estes direitos ao sistemaamericano, apresentando uma lista de direitos que proporcionauma base para a revisao juridica da legislac;ao a todos os niveisgovernamentais. E 0 problema levantado foi 0 de saber como

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relacionar este programa com as exigencias de distin~ao apre­sentadas, por urn lado, pelos canadianos franceses, e, em parti­cular, pelos quebequenses, e, por outro lado, pelos povosindigenas. 0 que estava aqui em jogo era 0 desejo de sobrevi­vencia por parte destes grupos, e a consequente exigencia decertas formas de autonomia, bern como a capacidade de adap­tar certos generos de legisla~ao considerados necessarios asobrevivencia.

o Quebeque, por exemplo, aprovou muitas leis referentes alingua: uma delas regulamenta sobre quem pode mandar osseus filhos para escolas inglesas (nao permitido a franc6fonos,nem a imigrantes); outra exige que os neg6cios que envolvammais de cinquenta empregados sejam realizados em frances;uma terceira proibe a linguagem comercial numa outra linguaque nao seja 0 frances. Por outras palavras, 0 governo doQuebeque impos restri~5es sobre os seus habitantes, em nomedo objectivo colectivo da sobrevivencia, 0 que noutras comuni­dades canadianas poderia ser facilmente rejeitado com base naCarta29. Eis a questao fundamental que se punha entao: estavaria~aoe aceitavel, ou nao?

A questao foi finalmente levantada por causa da defesa deuma emenda constitucional, baptizada com 0 nome do local daconferencia onde foi pela primeira vez redigida: Meech Lake.A emenda Meech defendia 0 reconhecimento do Quebeque

29 0 Tribunal Supremo do Canada declarou, na verdade, uma destas disposi­c;6es como senda ilegal: a que dizia respeito alinguagem comercial proibidanoutras linguas que nao 0 frances. Mas, na sua apreciac;ao, as juizes acorda­ram que teria sido perfeitamente sensata exigir que todos as sinais fassemem frances, embora devessem ser acompanhados de tradw;ao numa cutralingua. Ou seja, era permissfveI. do ponto de vista deste organismo, que 0

Quebeque banisse sinais ingleses unilingues. A necessidade de proteger epromover a lingua francesa no contexto quebequiano te-lo-ia justificado. Talsignificaria, presumivelmente, que as restric;6es legislativas sobre a lingua­gem dos sinais numa outra provincia poderiam ser igualmente alvo do naoreconhecimento legal, mas por Dutra razao completamente diferente.A proposUo, as disposit;oes sobre a sinalizat;ao ainda estao em vigor noQuebeque, devido a uma disposit;ao da Carta que permite, em certoscasos, que as legisladores anulem, por um pedodo restrito, as decisoes dostribunais.

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como uma «sociedade distinta», e queria fazer deste reconheci­mento uma das bases para a interpreta<;ao juridica do resto daconstitui<;ao, incluindo a Carta. Tal parecia abrir a possibilidadeda varia<;ao na interpreta<;ao consoante as diferentes partes dopais. Mas, para muitos, essa varia<;ao era fundamentalmente ina­ceit<ivel. A sua analise leva-nos ao ceme da questao sobre como eque se estabelece a rela<;ao entre direitos-liberdade e diversidade.

A Carta do Canada segue a tendencia da ultima metade doseculo xx e constitui uma base para a revisao juridica quanto adois aspectos essenciais. Em primeiro lugar, este documentodefine um conjunto de direitos individuais muito semelhantes aosque sao objecto de protec<;ao noutras cartas e declara<;6es de direi­tos, nas democracias ocidentais, como e 0 caso dos Estados Unidose da Europa. Em segundo lugar, garante igual tratamento para oscidadaos sob a forma de diversos tipos de respeito ou, posta deoutro modo, protege-os contra 0 tratamento discriminat6rio porinumeros e irrelevantes motivos, tais como a ra<;a ou 0 sexo. Existemuito mais na Carta, incluindo disposi<;6es relativamente aosdireitos linguisticos e aos direitos dos indigenas, que poderiam serentendidos como poderes para as colectividades. Mas os doisassuntos que eu destaquei dominam a consciencia publica.

Nao e por acaso que tal acontece. Estes dois tipos de disposi­<;6es sao agora uma prMica comum em listas de direitos conso­lidados que servem de base a revis6es jurfdicas. Neste sentido, 0

mundo ocidental, talvez 0 mundo inteiro, esta a seguir 0 exem­plo norte-americano. Os Estados Unidos foram 0 primeiro paisa redigir e a consolidar uma declara<;ao de direitos, aquando daratifica<;ao da Constitui<;ao, e como uma condi<;ao para 0 seuexito. Poder-se-ia argumentar que nao foram muito clarosquanto it revisao juridica como metodo para assegurar essesdireitos, mas depressa se tornou prMica comum. As primeirasemendas protegiam os individuos e, por vezes, os governosestatais30, contra a ingerencia do novo governo federal.

30 A Primeira Emenda, por exemplo, que proibiu a Congresso de determinarqualquer religiao, nao foi feita inicialmente a pensar na separac;ao entre aIgreja e 0 Estado como tais. Foi, sim, aprovada numa altura em que muitosEstados tinham a sua Igreja e destinava-se, simplesment€, a impedir que 0

novo governo federal interferisse au anulasse as decis5es locais. S6 mais

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Foi a seguir it Guerra Civil, no periodo glorioso da Reconstru~ao,

e, em particular, com a 14: Emenda, que exigia «igual protec~ao»para todos os cidadaos ao abrigo das leis, que 0 tema da nao-dis­crimina~ao se tornou central it revisao juridica. Mas este temaencontra-se agora em pede igualdade com a regra mais antigasobre a defesa dos direitos dos individuos, e, na conscienciapublica, talvez esteja mesmo numa posi~aomais acima.

Para muitas pessoas do «Canada ingles», 0 facto de umasociedade politica abra~ar determinados objectivos colectivosamea~a colidir com ambas as disposi~6es fundamentais daCarta canadiana ou, mesmo, com qualquer declara~aode direi­tos aceitavel. Em primeiro lugar, os objectivos colectivos podemimplicar restri~6es ao comportamento dos individuos, restri­~6es essas que violam os seus direitos. Para muitos canadianosfrancofonos, fora e dentro do Quebeque, 0 receio de que talpossa acontecer ja se concretizou sob a forma de legisla~ao que­bequiana sobre a lingua. Por exemplo, a legisla~ao determina,como ja foi mencionado, 0 tipo de escola para onde os paispodem mandar os seus filhos e, no seu texto rnais famoso,proibe certos tipos de sinaliza~aocomercial. Esta ultima dispo­si~ao foi, na verdade, anulada pelo Supremo Tribunal comosendo contraria it Declara~ao do Quebeque e it Carta, e voltou aser aprovada atraves da invoca~aode uma c1ausula pertencenteit Carta, que permite aos poderes legislativos anular, em certoscasos, as decis6es dos tribunais relativamente it Carta, por urnperiodo limitado de tempo (a chamada c1ausula de excep~ao).

Mas, em segundo lugar, mesmo que nao fosse possivel anu­lar os direitos individuais, adoptar objectivos colectivos emnome de um grupo nacional pode ser visto como inerente­mente discriminatorio. No mundo moderno, sera sempre umaquestao que nem todos os cidadaos que vivem sob determinadajurisdi~ao perten~amnecessariamente ao grupo nacional con­templado por essa jurisdi~ao. A ideia em si pode ser conside­rada como desencadeadora de discrimina~ao.Contudo, para la

tarde, depois cia 14.a Emenda, elaborada a partir da chamada doutrina deIncorpora<;ao, eque se considerou definitivamente 0 alargamento destas res­tric;6es sabre 0 govemo federal a todos as governos, fasse a que nivel fosse.

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deste aspecto, a concretiza<;ao do objectivo colectivo ira, prova­velmente, implicar urn tratamento diferente para os habitanteslocais e para os forasteiros. Desta forma, as disposi¢es educacio­nais da Lei n.o 101 profbem (por assim dizer) que os canadianosfranc6fonos e os imigrantes enviem os seus filhos para escolasinglesas, mas permitem que os canadianos angl6fonos 0 fa<;am.

o facto de a Carta estar em conflito com a polftica quebe­quiana constitui uma das raz6es que levaram 0 resto do Canadaa opor-se ao acordo de Meech Lake. A justificar essa oposi<;aoestava a clausula sobre a sociedade distinta, e a reivindica<;aogeral de se proceder a emendas baseava-se na necessidade de aCarta ser «protegida» contra esta clausula ou de ter prioridadesobre esta. Sem duvida que esta atitude estava marcada por umacerta dose de antigo preconceito anti-Quebeque, mas apresen­tava tambem urn aspecto filos6fico importante, que deve ser arti­culado aqui.

Aqueles que pensam que os direito dos individuos devemestar em primeiro lugar e que, juntamente com as disposi<;6es denao-discrimina<;ao, devem ter prioridade sobre os objectivoscolectivos, exprimem-se frequentemente do ponto de vista libe­ral que se generalizou cada vez mais na sociedade anglo-ameri­cana. A fonte e, claro, os Estados Unidos, e foi recentementeelaborada e defendida por algumas das melhores mentes filos6­ficas e juridicas da referida sociedade, incluindo John Rawls,Ronald Dworkin, Bruce Ackerman, e outros31. Sao varias formu­la<;6es da mesma ideia principal, mas talvez aquela que exprime,de forma clara, a questao mais importante para n6s seja a deRonald Dworkin, no seu ensaio entitulado «Liberalism»32.

Dworkin distingue entre dois tipos de empenhamento moral.Todos n6s temos opini6es sobre 0 fim da vida, sobre 0 que cons­titui uma vida boa, pela qual n6s e os outros devemos lutar.

31 Rawls, A Theory ofJustice e «Justice as Fairness: Political not Metaphysical»,Philosophy & Public Affairs 14 (1985): 223-51; Dworkin, Takil1g Rights Seriouslye «Liberalism», in Public and Private Morality, ed. Stuart Hampshire(Cambridge: Cambridge University Press, 1978); Bruce Ackerman, SocialJustice ill the Liberal State (New Haven: Yale University Press, 1980).

32 Dworkin, «Liberalism».

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Mas tambem admitimos um esfon;o no sentido de nos tratar­mos de forma igual e justa, independentemente do modo comoconcebemos os nossos objectivos. Podemos designar este tipode esfon;o por «processual», enquanto 0 esfor~o que diz res­peito ao fim da vida sera «substantivo». Este autor defende queuma sociedade liberal e aquela que nao adopta nenhuma visaosubstantiva em particular sobre 0 fim da vida. Pelo contrario, euma sociedade que consegue a uniao 11 volta de um esfor~o

processual forte, tratando as pessoas com igual respeito.A razao por que os organismos de uma sociedade deste tipo naopodem adoptar uma visao substantiva, ou, por exemplo, per­mitir que um dos objectivos da legisla~aoseja tomar as pessoasvirtuosas de acordo com um dos dois significados do termo,reside na probabilidade de tal implicar uma viola~ao da suaregra processual. Isto, porque, dada a diversidade das socieda­des modemas, seria impossivel evitar que algumas pessoas, emdetrimento de outras, se entregassem 11 concep~ao preferida devirtude. Podem constituir uma maioria e, de facto, e muitocapaz de assim ser, pois, de outra maneira, nenhuma sociedadedemocratica iria provavelmente seguir a escolha dessa maioria.No entanto, esta visao nao seria de todos, e, ao adoptar estavisao substantiva, a sociedade estaria a tratar a minoria dissi­dente com igual respeito. Com efeito, seria 0 mesmo que dizer­-!he: «a vossa visao nao e valida, aos o!hos dos nossos organismos,como aquela que a maioria dos vossos compatriotas parti!ha».

Subjacentes a esta perspectiva do liberalismo, enraizada nopensamento de Immanuel Kant, existem posi<;6es filosoficasmuito profundas. Entre outras caracteristicas, a referida visaoentende a dignidade humana como tratando-se, principalmente,de autonomia, isto e, a capacidade de cada pessoa determinarpara si propria uma visao de uma vida boa. A dignidade asso­cia-se menos a qualquer no~ao particular de vida boa, de talforma que, se alguem se afastasse da vida boa, iria ficar pri­vado da sua propria dignidade, do que ao poder de cada umpara considerar e adoptar para si mesmo uma determinadaperspectiva. Nao estamos a respeitar esse poder de igual modopara todos os sujeitos, assim se argumenta, se sobrepusermos 0

resultado das delibera~6es de algumas pessoas sobre 0 resul-

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tado das delibera~6es de outras. Uma sociedade liberal devepermanecer neutra quanta a no~ao de boa vida e coibir-se de,nao obstante 0 modo como veem as coisas, assegurar que arela~ao entre os cidadaos seja justa e que 0 Estado trate todosde igual modo.

A popularidade desta visao sobre 0 agente humane como,primeiramente, um sujeito de escolhas auto-determinante ouauto-expressivo, ajuda a explicar a razao por que este modelode Iiberalismo e tao forte. Mas tambem devemos ter em aten­~ao que foram os pensadores Iiberais norte-americanos queincutiram neste modelo uma grande for~a e inteligencia, e queo contexto era precisamente 0 das doutrinas constitucionais darevisao juridica33. Por isso, nao e de admirar que a ideia deque uma sociedade liberal nao pode tomar em considera~ao

no~6es do bem adoptadas publicamente se tenha generali­zado, muito mais do que aquelas que se poderiam atribuir auma filosofia kantiana especffica. Esta e uma concep~ao, talcomo Michael Sandel observou, da «republica processual»,que ocupa um lugar de destaque na agenda polftica dosgovernos norte-americanos e que ajudou a dar mais enfase arevisao juridica, com base em textos constitucionais acusta doprocesso politico normal de construir maiorias com vista aac~ao legislativa34.

Mas uma sociedade com objectivos colectivos como a doQuebeque infringe este modelo. Emais do que evidente para osgovernos do Quebeque que a sobrevivencia e a prosperidadecultural francesa no seu espa~o constituem um bem. A socie­dade polftica nao se mostra neutra entre aqueles que prezampermapecer verdadeiros a cultura dos seus antepassados eaqueles que desejam afastar-se em nome de um objectivo indi­vidual de autodesenvolvimento. Pode-se dizer que, afinal, epossivel ir buscar um objectivo como 0 da survivance para umasociedade liberal processualista. Poder-se-ia considerar a lingua

33 Veja-se, por exemplo, as argumentos usados par Lawrence Tribe na suaobra Abortioll: The Clash ofAbsoilltes (Nova Iorque: Norton, 1990).

34 Michael Sandel, «The Procedural Republic and the Unencumbered Selh,Political Theory 12 (1984): 81-96.

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francesa, por exemplo, como um recurso colectivo a disposi<;aodos individuos e agir no sentido da sua preserva<;ao, tal comose faz quando se limpa 0 ar ou os espa<;os verdes. Mas nao eassim que se consegue apreender 0 verdadeiro incentivo daspolfticas que se destinam a sobrevivencia cultural. Nao se tratas6 de uma questao de a lingua francesa estar a disposi<;aodaqueles que queiram optar por ela. Pode ate parecer um dosobjectivos de algumas das medidas do bilinguismo federal queexistem nos ultimos vinte anos. Mas tambem implica 0 certifi­car-se de que existini uma comunidade de pessoas aqui, nofuturo, que desejara aproveitar a oportunidade de falar 0 fran­ces. As polfticas com vista a sobrevivencia procuram activa­mente criar membros da comunidade, por exemplo, aoassegurar-lhes que as gera<;6es futuras continuarao a identificar­-se como falantes franceses. De modo algum e possivel ver estaspolfticas como algo que serve apenas para facilitar as coisa asgera<;6es de hoje.

Por isso, os quebequenses e aqueles que dao igual impor­tiincia a este tipo de objectivo colectivo optam geralmente porum modelo bastante diferente de sociedade liberal. Segundo asua perspectiva, a sociedade pode ser organizada a volta deuma defini<;ao de vida boa, sem que tal seja considerado umadeprecia<;ao daqueles que, pessoalmente, nao partilham dessadefini<;ao. A razao por que se trata de uma questao de polfticapublica reside no facto de ser a natureza do bem a determinar,onde quer que 0 bem seja procurado em comum. De acordocom esta concep<;ao, uma sociedade liberal distingue-se comotal pela forma como trata as suas minorias, incluindo aquelasque nao partilham das defini<;6es publicas do bem e, acima detudo, pelos direitos que concede a todos os seus membros. Mas,agora, os direitos em questao sao concedidos como direitosfundamentais e decisivos que foram reconhecidos como taldesde 0 primeiro momenta da tradi<;ao liberal: direito avida, arepresenta<;ao legal, a liberdade de expressao, a liberdade reli­giosa, e por ai fora. Relativamente a este modelo, denota-seuma perigosa desaten<;ao quanta a uma fronteira essencial,quando se fala de direitos fundamentais sobre coisas como asinaliza<;ao comercial na lingua de escolha do individuo.

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Ha que distinguir, por urn lado, as liberdades fundamentais,aquelas que nunca devem ser violadas e que, por isso, devemser consolidadas de modo inexpugnavel, dos privi1E~gios eimunidades, por outro lado, que sao importantes, mas quepodem ser anulados ou limitados por raz5es de polfticapublica - embora fosse necessario haver uma razao forte parao fazer.

Vma sociedade com objectivos colectivos fortes pode serliberal, segundo esta perspectiva, desde que seja capaz de res­peitar a diversidade, em especial, quando considera aquelesque nao partilham dos objectivos comuns, e desde que possaproporcionar garantias adequadas para os direitos funda­mentais. Concretizar todos estes objectivos ira provocar, semduvida, tens5es e dificuldades, mas nao e nada de impossivel, eos problemas nao sao, em principio, maiores do que aquelesquequalquer sociedade liberal encontra quando tern de combi­nar, por exemplo, liberdade com igualdade ou prosperidadecom justi~a.

Trata-se de duas perspectivas incompativeis da sociedadeliberal. Vma das grandes fontes da nossa actual dasarmoniaconsiste no facto de as duas perspectivas se terem confrontadona ultima decada. A resistencia a «sociedade distinta», que exi­gia que fosse dada prioridade a Carta, resultou, em parte, deurn descuido processual, a alastrar por uma parte do Canadade expressao angl6fona. Deste ponto de vista, atribuir a urngoverno 0 objectivo de promover a sociedade distinta doQuebeque significa adrnitir que se trata de urn objectivo colec­tivo, 0 que teria de ser neutralizado atraves da subrnissao aCarta existente. Do ponto de vista do Quebeque, esta tentativade impor urn modelo processual de liberalismo nao s6 priva aclausula da sociedade distinta de alguma da sua for~a comouma regra de interpreta~ao,como tambem iria significar umarejei~ao do modelo do liberalismo, no qual a sociedade estavafundada. As sociedades nao conseguiram discernir-se umas emrela~ao as outras durante todo 0 debate de Meech Lake. Mas,aqui, fizeram-no com cuidado - e nao gostaram dos resultados.o resto do pais percebeu que a clausula da sociedade distintalegitimava os objectivos colectivos. E 0 Quebeque percebeu que

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a mudan~a no sentido de dar prioridade a Carta impunha umaforma de sociedade liberal que !he era estranha e a qual 0 Quebequejamais poderia ajustar-se sem abdicar da sua identidade35.

Procedi a urna pesquisa profunda sobre este assunto, por meparecer ilustrativo das quest6es fundamentais. Existe urna formade polftica de igual respeito, guardada religiosamente nurn libera­lismo de direitos, que ehostil a diferen~a, porque (a) insiste naaplica~ao, sem qualquer excep~ao, uniforme das regras que defi­nem esses direitos, e porque (h) desconfia dos objectivos colectivos.Eevidente que isto nao significa que este modelo procure abolir asdiferen~as culturais. Afirma-lo seria uma acusa~ao absurda. Masdigo que e hostil a diferen~a, porque nao pode ajustar-se aquiloque os membros das sociedades distintas aspiram realmente: asobrevivencia. Trata-se de (h) urn objectivo colectivo, que (a) ira, equase inevitavel, necessitar de algumas varia~oes nos tipos de leisque consideramos admissiveis de urn contexto cultural para outro,como 0 caso do Quebeque demonstra de forma clara.

Na minha opiniao, os defensores da politica de diferen~a ternrazao ao acusarem esta forma de liberalismo. Mas, felizmente,existem outros modelos de sociedade liberal que encaram (a) e(b) de uma maneira diferente. Esses modelos pressupoem adefesa permanente de certos direitos, como e6bvio. Nao haveriaqualquer possibilidade de as diferen~as culturais determinarema aplica~ao do habeas corpus, por exemplo. Mas estabelecemuma distin~ao entre estes direitos fundamentais e urn leque alar­gada de imunidades e pressupostos de tratamento uniforme quesurgiram de repente nas culturas modemas de revisao juridica.Sao modelos que se dispoem a dar mais relevancia a certas for­mas de tratamento uniforme em detrimento da sobrevivenciacultural, e a optar, por vezes, a favor desta. Assim, acabam porser, nao modelos processuais de liberalismo, mas modelos que sefundamentam bastante em juizos de valor sobre 0 que constituiuma vida boa - juizos esses em que a integridade das culturasocupa urn lugar importante.

35 Veja~se Guy Laforest, «L'esprit de 1982», in Le Quebec et la restrllcturationdu Canada, 1980-1992, ed. Louis Balthasar, Guy Laforest, and VincentLemieux (Quebeque: Septentrion, 1991).

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Embora nao me seja possivel apresentar os meus argumen­tos, e, obviamente, este tipo de modelo que eu subscreveria. Noentanto, nao ha duvida de que sao cada vez mais as sociedadesque se estao a tomar multiculturais, no sentido de incluiremmais do que uma comunidade cultural que pretende sobrevi­ver. Eque os rigores do liberalismo processual podem tomar-serapidamente impraticaveis no mundo de amanha.

vAssim, a politica do igual respeito pode, ao menos na vari­

ante rnais hospitaleira, ser ilibada da acusa~ao de pretenderhomogeneizar a diferen~a. Existe, porem, uma outra maneirade formular a acusa~ao e que e mais dificil de contestar. Mastalvez nao se deva faze-Io, ou, pelo menos, assim 0 julgo.

A acusa~ao em que estou a pensar e originada pelo desejo,as vezes expresso em nome do liberalismo «que ignora a dife­ren~a», de que a politica em questao possa proporcionar urn ter­reno neutro onde as pessoas de todas as culturas se podemencontrar e coexistir. Nesta perspectiva, e necessario fazer algu­mas distin~6es - entre 0 que e publico e 0 que e privado, porexemplo, ou entre a politica e a religiao - e, s6 entao, e quepoderemos relegar as diferen~as antag6nicas para uma esferaque nao tenha efeitos politicos.

Mas uma polemica como a que envolve a obra de SalmanRushdie, Versiculos Satiinicos, revela ate que ponto esta perspec­tiva esta errada.

Para 0 Islamismo dominante, nao se trata de separar apolitica da religiao, como se espera na sociedade liberal doOcidente. a liberalismo nao e urn ponto de encontro possivelpara todas as culturas, mas e, por urn lado, a expressao politicade uma serie de culturas e, por outro, e extremamente incom­pativel com outras. Alem do mais, como muitos mu~ulmanos

sabem perfeitamente, 0 liberalismo ocidental nao e tanto umaexpressao da visao secular, p6s-religiosa, que acabou por sepopularizar entre os intelectuais liberais como mais urn sistemaresultante do Cristianismo - pelo menos, do ponto de vista

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altemativo do Islamismo. A divisao entre Igreja e Estado remontaaos primeiros tempos da civiliza<;ao crista. As formas mais anti­gas que a separa<;ao assumiu diferiam em muito das nossas, masconstituiram a base para 0 desenvolvimento modemo. 0 pr6priotermo secular fazia, inicialmente, parte do vocabulario crista036.

Tudo isto, para dizer que 0 liberalismo nao pode, nem deve,pretender uma neutralidade cultural completa. 0 liberalismotambem e um credo de luta. A variante hospitaleira que eusubscrevo, assim como a maior parte das formas rigidas, temde definir os limites, visto que surgirao variantes quando setrata de aplicar a lista de direitos, mas nao quando ha incentivopara 0 assassinio. Contudo, nao se deveria ver, aqui, uma con­tradi<;ao. Na politica, nao se podem evitar as distin<;6es subs­tantivas deste tipo e, pelo menos, 0 liberalismo nao processual,que eu descrevia, esta totalmente disposto a aceita-Io.

Mas a polemica nao deixa de ser inquietante. 0 motivo, ja eumencionei: todas as sociedades estao a tornar-se cada vez maismulticulturais e, ao mesmo tempo, mais permeaveis. Na ver­dade, sao duas tendencias que se desenvolvem em conjunto.A permeabilidade significa que as sociedades estao mais recepti­vas Ii migra<;ao multinacional: sao mais os mernbros cujo centrose situa noutra parte qualquer, que passam a conhecer uma vidade diaspora. Nestas circunstancias, ha qualquer coisa de estra­nho, quando se responde simplesmente que «e assim que faze­mos as coisas aqui». Euma resposta que deve ser dada em casossemelhantes ao da polemica de Rushdie, em que a «maneira defazer as coisas» cobre aspectos como 0 direito Ii vida e Ii liber­dade de expressao. A estranheza resulta do facto de haver umnumero consideravel de pessoas que sao cidadas e que tambempertencem Ii cultura que questiona as nossas fronteiras filos6fi­cas. 0 desafio consiste em lidar com 0 seu sentido de marginali­za<;ao sem comprometer os nossos principios politicos basicos.

Tudo isto conduz-nos Ii questao do multiculturalismo, comoe hoje frequentemente discutido e que tem muito a ver com a

36 Este aspecto esta bern argumentado por Larry Siedentop, «Liberalism: TheChristian Connection», Times Literary Supplement, 24-30 de Man;o de 1989,p. 308. Tambem ja discuti estas questoes em «The Rushdie Controversy»,in P"blic C"lt"re 2, n.o 1 (Oulono-1989): 118-22.

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imposi<;ao de algumas culturas sobre outras da pressupostasuperioridade que desencadeia essa imposi<;ao. Considera-seque, neste aspecto, as sociedades liberais do Ocidente sao extre­mamente culpadas, em parte devido ao seu passado colonial,em parte devido a marginaliza<;ao de segmentos da sua popu­la<;ao oriundos de outras culturas. E neste contexto que a res­posta «E assim que nos fazemos as coisas, aqui» pode parecercruel e insensive!. Mesmo que, pela natureza das coisas, sejaquase impossivel chegar, aqui, a um compromisso - que profbaou permita 0 assassinio -, a resposta denota uma atitude consi­derada como de desprezo. E, muitas vezes, e, de facto. Destemodo, chegamos novamente aquestao do reconhecimento.

o que estava em jogo, pelo menos, de uma maneira intensa,na ultima sec<;ao, nao era 0 reconhecimento do valor igua!. Ai,tratava-se da questao de saber se a sobrevivencia cultural seraadmitida como objectivo legitimo, ou nao, se os objectivoscolectivos serao aceites como considera<;5es legitimas para arevisao juridica, ou para outros fins de poHtica social de alcancegera!. A exigencia que se fazia era no sentido de as culturasverem consagrada a oportunidade de se defenderem, dentro delimites convenientes. Mas a outra exigencia que estamos agoraa considerar e a de que todos reconhe<;am 0 valor igual dasdiferentes culturas: que as deixemos, nao so sobreviver, mastambem admitamos 0 seu merito.

Que sentido e que se pode extrair desta exigencia? De certaforma, existe ha ja algum tempo, mas sem formula<;ao expHcita.Durante mais de um seculo, a poHtica do nacionalismo temsido estimulada, em parte, pelo sentido que as pessoas pos­suiam de serem desprezadas ou respeitadas pelos outros a suavolta. A possibilidade de ruptura nas sociedades multinacio­nais existe, devido, em grande medida, a ausencia, entre osgrupos, de reconhecimento (apreendido) do igual valor. Pensoque e 0 que esta a acontecer actualmente no Canada - nao obs­tante 0 meu diagnostico vir a ser, com certeza, alvo de contesta­<;ao, por parte de algumas pessoas. Na cena internacional, aextrema sensibilidade de certas sociedades supostamentefechadas a opiniao publica mundial - tal como ficou patentenas suas reac<;5es sobre os resultados de, digamos, uma enti-

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dade como a Amnistia Intemacional, ou nas suas tentativas de,atraves da UNESCO, instituir uma nova ordem mundial de infor­ma~ao - confirma a importancia do reconhecimento exterior.

Mas, para usar a giria hegeliana, tudo isto e ainda muito ansich e, nao, fUr sich. Os pr6prios actores sao, frequentemente, osprimeiros a negar que considera~6esdesse tipo estao na base dasua luta e alegam outros factores: desigualdade, explora~ao einjusti~a. Muito poucos independentistas quebequianos, porexemplo, conseguem aceitar 0 facto de ser a ausencia de reconhe­cimento por parte da popula~aoangl6fona que esta a impedi-losde vencerem a sua luta.

Assim, a novidade reside na formula~aoexplfcita que agorae feita da exigencia de reconhecimento. E 0 que tem contribufdopara esse caracter explfcito, da forma que eu indiquei atras, ea divulga~ao da ideia de que 0 reconhecimento e essencial paraa nossa forma~ao. Podfamos afirmar que, gra~as a esta ideia, 0

nao reconhecimento ou 0 reconhecimento incorrecto foram pro­movidos ao estatuto de ofensa que pode ser, de forma pratica,enumerada juntamente com as outras mencionadas no para­grafo anterior.

Um dos autores responsaveis por esta transi~ao e, sem duvidaalguma, 0 falecido Frantz Fanon, cuja obra marcante Les Darnnesde la Terre (Os Condenados da Terra)37 defendia que a principalarma dos colonizadores era a imposi~ao da imagem que elesconcebiam dos colonizados sobre os povos subjugados. Estes,para se libertarem, deveriam, primeiro, expurgar-se dessasimagens autodepreciativas. Este autor recomendava a violenciacomo forma de alcan~ar esta liberdade, e que ia ao encontro daviolencia original por parte do dominador estrangeiro. Nemtodos os que se inspiraram em Fanon 0 seguiram nesta linha depensamento, mas a no~ao de que a mudan~a da imagem adop­tada implica uma luta, que tem lugar dentro do indivfduo subju­gado e contra 0 dominador, tem conhecido uma aceita~ao

generalizada. A ideia tomou-se decisiva para certas componen­tes do feminismo e assume-se tambem como um elemento muitoimportante para 0 actual debate sobre 0 multiculturalismo.

37 (Paris: Maspero, 1961).

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o principal alvo das aten~6es deste debate e 0 mundo daeduca~ao, no sentido lato. Um ponto central importante sao osdepartamentos de estudos humanisticos das universidades,onde se fazemexigencias para se alterar, alargar ou abandonaro «canone» dos autores-referencia, sob 0 pretexto de que 0 queexiste, hoje, e constituido preferencialmente, e na sua quasetotalidade, por «homens brancos, falecidos». Dever-se-ia darmais espa~o as mulheres e aos autores de origens e culturas naoeuropeias. Um segundo ponto central diz respeito as escolas doensino secundario, onde se esta a tentar, por exemplo, elaborarcursos centrados na cultura africana para escolas onde os alu­nos sao maioritariamente negros.

A razao para se defenderem estas mudan~as nao reside, ou,pelo menos, principalmente, na possibilidade de todos os estu­dantes perderem algo de importante atraves da exclusao deautores de determinado sexo, ra~a ou cultura, mas, sim, na pos­sibilidade de os estudantes do sexo feminino e os que pertencema grupos excluidos apreenderem, directamente ou por omissao,uma imagem depreciativa deles mesmos, como se toda a criati­vidade e merito fossem inerentes aos homens de origem euro­peia. Alargar e alterar 0 curso revela-se, por isso, uma medidaessencial, nao tanto em nome de uma cultura mais vasta paratodos, que ira conceder 0 devido reconhecimento aos que, ateentao, eram vitimas de exclusao. A premissa que esta por detrasdestas exigencias e a de que 0 reconhecimento forja a identi­dade, em particular, na perspectiva de Fanon: geralmente, osgrupos dominantes consolidam a sua hegemonia, inculcandouma imagem de inferioridade nos grupos subjugados. A lutapela liberdade e pela igualdade deve, por conseguinte, passarpor uma reformula~aodessa imagem. Os cursos multiculturaisvisam ajudar nesse processo.

Embora nao seja frequentemente explicitado, a 16gica queesta por detras destas exigencias parece depender da premissade que devemos igual respeito a todas as culturas. E uma pre­missa que resulta da natureza da acusa~ao feita pelos autoresdos cursos tradicionais. 0 argumento consiste no facto de osjuizos de valor em rela~ao a estes cursos e que estiveram supos­tamente na base da sua concep~ao, estarem, na verdade, cor-

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rompidos, deturpados pela estreiteza de espirito ou pela faltade tacto, ou, pior ainda, de exprimirem a desejo de menospre­zar as vitimas de exclusao. A implica~ao parece ser a de que,sem este tipo de distor~6es, os verdadeiros juizos de valor deobras diferentes contribuem para posicionar todas as culturas,mais ou menos, ao mesmo nivel. E claro que a crftica podiaser muito mais radical, baseando-se numa perspectiva neo­nietzscheana, que questiona os proprios juizos de valor. Mas,na falta deste passo extremo (cuja coerencia ponho em causa), apresun~ao parece ser de igual valor.

Gostaria de afirmar que ha qualquer coisa de valido nestapresun~ao, mas isso nao a impede de estar isenta de aspectosproblematicos, e que envolve algo semelhante a urn acto de fe.Como presun~ao, alega que todas as culturas humanas quedinamizaram sociedades inteiras, durante urn consideravelespa~o de tempo, tern algo de importante a dizer sobre todos osseres humanos. Exprimo-me desta maneira para excluir contex­tos culturais parciais no seio de uma sociedade, assim comopequenas fases de uma grande cultura. Nao ha raz6es para acre­ditar que, por exemplo, as diferentes formas de arte de umadada cultura deveriam ter todas igual, ou ate muito, valor. Alemdisso, qualquer cultura pode ter as suas fases de decadencia.

Mas, quando me refiro a esta exigencia como sendo uma«presun~ao», quero dizer que se trata de uma hipotese queserve de ponto de partida para abordarmos 0 estudo dequalquer outra cultura. A validade desta exigencia deve serdemonstrada de forma coerente no verdadeiro estudo da cul­tura. Com efeito, em rela~ao a uma cultura suficientementediferente da nossa, podemos ter apenas uma ideia confusaex ante sobre 0 modo como a sua valiosa contribui~ao sera pres­tada. Isto, porque, para uma cultura suficientemente diferente, apropria no~ao do que deve ser valorizado sera, para nos, estra­nha. Por exemplo, presumir na «raga» 0 mesmo valor atribuidoa urn cravo bern afinado significaria que nao se compreendeuabsolutamente nada sobre 0 assunto. 0 que tern de acontecer eaquilo a que Gadamer chamou de uma <dusao de horizontes»38.

38 Wahrheit lind Methode (Tuebingen: Mohr, 1975), pp. 289-290.

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Aprendemos a movimentar-nos num horizonte mais alargado,dentro do qual partimos ja do principio de que aquilo que servede base 11 valoriza<;ao pode ser considerado como uma pos­sibilidade a par do background da cultura que antes nos eradesconhecida. A «fusao de horizontes» funciona atraves dodesenvolvimento de novos vocabularios de compara<;ao, atravesdos quais poderemos articular estes contrastes39. A tal ponto que,se e quando acabarmos por encontrar uma base firme para anossa pressuposi<;ao, sera em termos de uma no<;ao do que consti­tui 0 valor que jamais poderiamos ter no inicio. Atingimos 0 juizode valor, em parte, porque transformamos os nossos criterios.

Podemos argumentar que devemos a todas as culturas urnpressuposto deste tipo. Mais adiante darei a minha explica<;aosobre este pressuposto. Deste ponto de vista, nao formular 0

pressuposto podera parecer simplesmente a consequencia dopreconceito ou da ma-vontade. Pode ate ser equiparado 11 nega­<;ao de urn estatuto igual. Algo semelhante a isto podera estarsubjacente 11 acusa<;ao feita pelos apoiantes do multicultura­lismo contra os defensores do dinone tradicional. Partindo doprincipio de que a relutiincia destes em alargar 0 ciinone resultade uma combina<;ao de preconceitos e ma-vontade, os multicultu­ralistas acusam-nos de terem assumido com arrogiincia a suapr6pria superioridade sobre povos antigamente subjugados.

Este pressuposto ajudaria a explicar por que e que as exigen­cias do multiculturalismo se baseiam em principios ja estabele­cidos de igual respeito. Se a nao formula<;ao do pressuposto eidentica a uma nega<;ao da igualdade, e se da inexistencia dereconhecimento advem consequencias importantes para a iden­tidade das pessoas, entao pode-se dizer que existem motivos depeso para persistir na universaliza<;ao do pressuposto comouma extensao l6gica da politica de dignidade. Da mesmamaneira que todos devem possuir os mesmos direitos civis e de

39 Ja tive a oportunidade de analisar em pormenor os aspectos aqui irnplicitosem «Comparison, History, Truth», in Myth and Philosophy, ed. FrankReynolds e David Tracy (Albany: State University of New York Press, 1990);e em «(Understanding and Ethnocentricity», in Philosophy and the HumanSciences (Cambridge University Press, 1985).

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voto, independentemente da ra~a ou da cultura, assim devemtodos usufruir do pressuposto de que as respectivas culturas tra­dicionais tem valor. Esta extensao, por mais l6gica que possaparecer a sua proveniencia das regras aceites sobre a igual digni­dade, nao se adapta tao bem a essas culturas, como foi descritona Sec~ao II, porque poe em causa a «ignorancia da diferen~a»,

que ocupava uma posi~ao central nelas. E, no entanto, pareceraque provem delas, de facto, ainda que de uma forma nao linear.

Nao estou certo quanta a validade de se exigir este pressu­posto como direito. Mas e um aspecto que podemos deixar departe, porque a exigencia feita parece ter muito mais for~a: rei­vindica-se que urn respeito adequado aigualdade implica maisdo que 0 pressuposto de que posteriores estudos nos farao veras coisas desta maneira; implica, isso sim, verdadeiros juizos devalor sobre os habitos e cria~oes das diferentes culturas. Essesjuizos parecem estar implicitos na reivindica~aode que certasobras sejam incluidas no canone e de que s6 nao 0 foram antes,devido ao preconceito, ama-vontade ou ao desejo de subjugar.(E claro que a exigencia de inclusao e logicamente distinta daexigencia de valor igual. A exigencia poderia ser a seguinte:incluam estas obras, porque sao nossas, ainda que possammuito bem ser inferiores. Mas nao e assim que as pessoas quefazem a exigencia se exprimem).

Contudo, ha qualquer coisa de errado na maneira como aexigencia e feita. Faz sentido exigir, como objecto de um direito,que abordemos 0 estudo de certas culturas, partindo do pressu­posta do seu valor, como se mencionou atras. Mas, exigir comoobjecto de direito que apresentemos como conclusao definitivaque 0 seu valor e grande ou igual aos dos outros, ja nao faz sen­tido. au seja, se julgar um valor significa compreende-lo comoalgo independente dos nossos pr6prios desejos e vontades,entao nao pode ser ditado por um principio de etica. Se proce­dermos a uma analise, encontraremos algo de grande valor nacultura C, ou nao. Mas exigir que fa~amos assim nao faz maissentido do que exigir que julguemos a Terra redonda ou plana,ou a temperatura do ar quente ou fria.

a modo como expus estas ideias foi deveras simplista,quando todos sabem que existe uma forte polemica sobre a«objectividade» do juizo, neste dominio, e sobre a possibilidade

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de aqui existir, ou nao, uma «verdade dos faetos», como pareceexistir no ambito das ciencias naturais, ou se, de facto, ate nasciencias naturais a «objectividade» nao passa de uma miragem.Nao disponho aqui de espa~o para discutir sobre estes aspec­tos. Alem do mais, ja 0 fiz, de certa maneira, noutro sftio40. Naosimpatizo muito com estas formas de subjeetivismo, que, a meuver, sao alvo de confus6es. Todavia, invoca-las neste contextoparece suscitar especial confusao. A essencia moral e polftica daexigencia diz respeito aos jufzos referentes ao estatuto inferior,injustificados e alegadamente feitos sobre as culturas nao hege­m6nicas. Mas, se esses jufzos acabam por ser uma questao devontade humana, entao 0 aspecto da justifica~ao deixa de terimportancia. Para falar a verdade, ninguem faz jufzos quepodem estar certos ou errados. Os jufzos fazem-se para expri­mir agrado ou desagrado, para apoiar ou rejeitar outra cultura.Nesse caso, porem, a exigencia deve mudar, no sentido de passarde recusa para apoio, e a validade ou nao validade dos jufzos,aqui, nada tem a ver com 0 assunto.

E, contudo, 0 acto de declarar as cria~6es de outra culturacomo possuindo 0 mesmo valor e 0 acto de se declarar a favordessas cria~6es, mesmo que nao sejam assim tao impressionan­tes, tornam-se indistintos. A diferen~a esta s6 na embalagem.No entanto, 0 primeiro aeto e normalmente entendido comouma expressao genufna de respeito, ao passo que 0 segundo evisto como um aeto de paternalismo intoleravel. Os supostosbeneficiarios da polftica de reconhecimento, ou seja, as pessoasque poderiam realmente beneficiar com a aceita~ao, fazem umadistin~aocrucial entre os dois aetos. Elas sabem que 0 que dese­jam e respeito, nao a condescendencia. Qualquer teoria que eli­mine essa distin~ao parece, pelo menos prima facie, distorceraspectos decisivos da realidade que pretende consagrar.

De facto, as teorias subjectivistas, pseudo-neo-nietzscheanas,sao constantemente invocadas neste debate. Inspiradas, muitasvezes, em Foucault e Derrida, afirmam que todos os jufzos devalor se baseiam em criterios que acabam por ser impostos e,posteriormente, consolidam as estruturas do poder. Devia ser

40 Veja-se a primeira parte de Sources of the Self.

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clara a razao por que estas teorias proliferam neste caso: umjuizo favonivel por encomenda e um disparate, a nao ser quealgumas dessas teorias sejam validas. Alem disso, emitir umjuizo desse tipo por encomenda constitui um acto de uma con­descendencia gritante. Eimpossivel considerar esse acto de res­peito como genuino. E, antes, um acto fingido de respeitoconcedido em troca da insistencia por parte do seu supostobeneficiario. Em termos objectivos, e um acto que implicadesprezo pela inteligencia desse beneficiario. E ser 0 destinata­rio de tal acto e humilhante. Os defensores das teorias neo­-nietzscheanas esperam escapar a todo este nexo de hipocrisia,transformando tudo isto numa questao de poder e contrapoder.Assim, em vez de respeito, passa a ser uma questao de tomarpartido, de solidariedade. Mas esta esta longe de ser uma solu­~ao satisfatoria, porque, ao tomarem partido, os defensores per­dem a for~a motriz deste tipo de polftica e que e, precisamente,a procura de reconhecimento e de respeito.

Por outro lado, mesmo que fosse possivel exigir isso deles, aultima coisa que se deseja, nesta altura, dos intelectuais viradospara a Europa sao juizos de valor positivos sobre culturas queeles nao estudaram a fundo. E que os verdadeiros juizos devalor pressupoem um horizonte fundido de criterios, como jativemos ocasiao de ver; pressupoe que ja fomos transformadospelo estudo sobre 0 outro, de forma que nao estamos so a julgaratraves dos nossos criterios originais. Fazer um julgamentofavoravel antes do tempo seria, nao so condescendente, mastambem etnocentrico: idamos louvar 0 outro por ser como nos.

Aqui temos outro problema grave relativamente a umagrande parte da politica de multiculturalismo: a exigenciaperemptoria de juizos de valor favoraveis e paradoxalmente - etalvez se devesse dizer tragicamente - homogeneizante, porqueimplica que tenhamos ja criterios para fazer tais juizos. Os crite­rios que possuimos, porem, sao os da civiliza~ao do Norte doAtlantico. Consequentemente, os juizos irao, implicita e incons­cientemente, enfiar os outros nas nossas categorias ate estasabarrotarem. Por exemplo: vamos pensar dos «artistas» dosoutros como criadores de «obras» que, entao, incluiremos nonosso canone. Ao invocar os nossos criterios para julgar todas

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as civiliza~5es e culturas, a politica de diferen~a poden\. acabarpor tomar todas as pessoas iguais41.

Desta forma, a exigencia de reconhecimento igual e inaceita­vel. Mas a hist6ria nao acaba, pura e simplesmente, aqui. asadversarios do multiculturalismo no meio academico norte­-americano aperceberam-se desta fraqueza e serviram-se delacomo uma desculpa para virarem as costa ao problema. Masisso e que nao pode ser. Uma reac~ao semelhante 11 que foi atri­buida a Saul Bellow, que citei atras, segundo a qual terfamosmuito gosto em ler 0 Tolstoy zulu quando ele aparecesse,demonstra a profundeza do etnocentrismo. Em primeiro lugar,existe 0 pressuposto de que a excelencia tem de assumir formasque nos sao conhecidas: os zulus deveriam apresentar umTolstoy. Em segundo lugar, partimos do principio que a contri­bui~ao deste povo ainda esta para chegar (quando os zulusapresentarem um Tolstoy...). E6bvio que estes dois pressupostosandam de maos dadas. Se tem de apresentar 0 nosso genero deexcelencia, entao e natural que a esperan~a do povo zulu residano futuro. Roger Kimball exprime esta ideia de uma forma maiscruel: «Exceptuando os multiculturalistas, a escolha que temosde encarar nos nossos dias nao e entre uma cultura ocidental'repressiva' e um paraiso multicultural, mas, sim, entre a cul­tura e a barbarie. A civiliza~ao nao e um dom, e uma conquista- uma fragi! conquista que precisa de ser constantementeescorada e defendida dos importunos, vindos de dentro e defora42.»

41 Os mesmos pressupostos homogeneizantes subjazem areacc;ao negativapor parte de muitas pessoas em rela<;ao as reivindicac;6es de superioridadeem terrnos definitivos1 em nome da civiliza<;ao ocidental, no que toca,digamosr as cH~ncias naturais. Mas, em principio, eabsurdo objectar a essasreivindica<;6es, sem mais nem menos. Se todas as cuHuras fizeram umacontribuic;ao de valor, naD foi por serem identicas au ate por terem incor­porado 0 mesma tipo de valor. Esperar que assim fasse seria subestimarimenso as diferen<;as. No fim, 0 pressuposto do merito concebe urn uni­verSo no qual culturas diferentes se complementam umas as Dutras atravesde diferentes tipos de contribuiC;6es. Esta imagem nao s6 e compatfvelcom, mas tambem exige juizos de, superioridade-em-certa-medida.

42 «Temured Radicals», New Criterion,]aneiro-1991, p.13.

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Deve haver alguma coisa entre, por urn lado, a exigencia naogenuina e homogeneizante de reconhecimento do valor igual e,por outro lado, 0 auto-enc1ausuramento nos crirerios etnocentri­cos. Existem outras culturas e a necessidade de vivermos juntos,tanto em harmonia numa sociedade, como a escala mundial, ecada vez maior.

a que existe e 0 pressuposto do valor igual, como descreviatras: uma posi,ao que assumimos quando nos dedicamos aoestudo do outro. Talvez nao seja preciso perguntarmos se setrata de uma coisa que os outros possam exigir de n6s naqualidade de direito. Poderfamos, simplesmente, perguntarse e esta a maneira que devemos usar para abordarmos osoutros.

Sera? Como e que se pode fundamentar este pressuposto?Urn dos fundamentos defendidos e a religiao. Herder, porexemplo, tinha uma visao da divina providencia, segundo aqual toda esta diversidade de culturas nao constituia urn meroacaso, mas, antes, urn designio com vista a uma maior harmo­nia. Nao posso desdenhar esta posi,ao. Mas, a urn nivel sim­plesmente humano, poder-se-ia afirmar que e sensato suporque as culturas que conceberam urn horizonte de significadopara muitos seres humanos, com os mais diversos caracteres etemperamentos, durante urn longo periodo de tempo - poroutras palavras, que articularam 0 sentido de bern, de sagrado,de excelente -, possuem, e quase certo, algo que merece anossa admira,ao e respeito, mesmo que possuam, simultanea­mente, urn lado que condenamos e rejeitamos. Talvez .sejapossivel exprimi-lo de outra maneira: era preciso ser extrema­mente arrogante para, a priori, deixar de parte esta possibi­lidade.

E provavel que, afinal, haja aqui urn aspecto moral a ter emconsidera,ao. Precisamos, apenas, de extrair urn sentido danossa pr6pria quota-parte em toda a hist6ria humana para acei­tar 0 pressuposto. S6 a arrogancia, ou outra falha moral seme­lhante, nos pode privar desse sentido. Mas 0 que 0 pressupostoexige de n6s nao sao juizos de valor perempt6rios e falsos, masuma disposi,ao para nos abrirmos ao estudo comparativo dasculturas do tipo de nos obrigar a deslocar os nossos horizontes

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nas fus6es resultantes. Acima de tudo, exige que admitamosestarmos muito aquem desse ultimo horizonte que poden' tomarevidente 0 valor relativo das diferentes culturas. Tal significariadesfazer uma ilusao que ainda domina muitos «multiculturalis­tas» - assim como os seus mais acerrimos opositores43,

43 Existe uma crftica muito interessante sabre ambos os ladas extremos, e queeu aproveitei nesta discussao. Veja-se Benjamin Lee, Towards a CriticalInternationalism.

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COMENTARIO

SUSAN WOLF

Dos muitos problemas que as extraordinariamente ricos e esti­mulantes ensaios de Charles Taylor levantam, escolhi por em evi­dencia aquele que ele discute par Ultimo, e explorar, como Taylorexplora, as modos em que a politica do reconhecimento admite aproblema da educa,ao multicultural. Todavia, antes de me dedi­car a este t6pico, sinto a necessidade de fazer uma observa,aoacerca de urn dos caminhos nao escolhidos, nomeadamenteaquele que evidenciaria especialmente questoes feministas.o Professor Taylor nota correctamente as raizes hist6ricas e te6ri­cas comuns da exigencia pelo reconhecimento e de uma aprecia­,ao da sua importancia que sao evidentes tanto na politicafeminista como na multicultural. Mas existem tambem diferen,as,quer nas injusti,as sofridas quer nas solu,oes para as corrigir.Seria uma vergonha se, ao reconhecer a importancia do reconheci­mento, e especialmente a importancia do reconhecimento da dife­ren,a, falhassemos em reconhecer as diferen,as entre as diferenteserros do reconhecimento e entre as injusti,as que dai advem.

Os erros do reconhecimento focados primeiramente pelaProfessor Taylor sao, primeiro, a erro literal·em reconhecer queas membros de uma au de outra minoria au que urn grupo des­privilegiado tem uma identidade cultural com urn grupo dis­tinto de tradi,oes e praticas e uma hist6ria intelectual e esteticadistinta, e, segundo, urn erro em reconhecer que esta iden­tidade cultural e de uma importancia e valor profundos.

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As injusti<;as mais 6bvias neste contexto sao, pelo menos, queos membros das culturas nao reconhecidas se iraQ sentir dester­rados e vazios, faltando-Ihes as fontes para urn sentimento decomunidade e uma base para a auto-estima, e, no pior doscasos, sentirem-se amea<;ados com 0 risco de aniquila<;ao cultu­ral. As solu<;6es mais 6bvias incluem a publicidade, a admira<;aoe a preserva<;ao explicita das tradi<;6es culturais e dos feitos des­tes grupos, compreendidos como tradi<;6es e feitos pertencentesespecificamente aos descendentes das culturas relevantes.

No entanto, a situa<;ao das mulheres nao e totalmente para­lela com ados membros das culturas depreciadas. Enquanto aexigencia predominante pelo reconhecimento em contextosmulticulturais e a exigencia de se ter a nossa cultura e a nossaidentidade cultural reconhecida como tal, ter a nossa identi­dade enquanto afro-americano, asio-americano ou americanonativo apreciada e respeitada, a questao de quao significativa­mente e com que significado queremos ser reconhecidos comomulheres e urn assunto de profunda conten<;ao. Pois ha clara­mente urn sentido em que as mulheres foram reconhecidascomo mulheres - realmente, «como mulheres de facto» - hamuito tempo, e a questao de como passar para alem desse tipoespedfico e distorcido de reconhecimento e problematica emparte porque nao ha uma heran<;a cultural clara, ou claramentedesejavel, separada atraves da qual possamos redefinir e rein­terpretar 0 que e ter uma identidade como mulher.

Ao contrario dos canadianos franceses, ou a urn nivel maisbaixo, os mormons, os amish, ou, os judeus ortodoxos quevivem nos EVA, as mulheres enquanto grupo nao estao remo­tamente amea<;adas com 0 risco de aniquila<;ao enquanto gruposexual distinto. Apesar dos avan<;os na biotecnologia que tor­nam a op<;ao biologicamente possivel, esta justi<;a em particularnao deve preocupar as mulheres. 0 problema predominantepara as mulheres enquanto mulheres nao e que 0 sector maislargo ou mais poderoso da comunidade falhe em reparar ou emestar interessado em preservar a identidade sexual das mulhe­res, mas que esta identidade seja posta ao servi<;o da opressaoe da explora<;ao. Os erros mais evidentes do reconhecimentoneste contexto sao, em primeiro lugar, 0 erro em reconhecer as

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mulheres como individuos com espirito, interesses e talentospr6prios, que podem ser mais ou menos constrangedoras ouindiferentes aos papeis que 0 seu sexo lhes confinou, e, emsegundo lugar, 0 erro em reconhecer os valores e capacidadesinvolvidos nas actividades tradicionalmente associadas asmulheres e os modos em que a experiencia e a aten~ao podemdesenvolver e nao limitar as nossas habilidades intelectuais,artisticas e profissionais noutros contextos.

Possivelmente apenas urn ensaio nao pode esclarecer todosos problemas que podem correctamente ser levantados sob 0

titulo «as politicas do reconhecimento.» De facto, e notavelquanta complexidade hist6rica, intelectual e politica Taylortransmitiu num espa~o tao curto. Contudo, esperamos que alongo prazo seja dada uma aten~aomais pormenorizada as dife­ren~as entre os problemas mais evidentes do reconhecimentopara as mulheres e aos problemas mais evidentes do reconheci­mento das culturas, e que uma aten~ao as diferen~as dentro des­tas categorias que variam da classe, rac;a, religiao ate outrosfactos empiricos mais singulares esteja apta a informar mutua­mente as conclusoes te6ricas e praticas que tiramos quandoconsideramos qualquer destes problemas. as problemas dasmulheres que se constrangeram pelo seu papel enquanto mulhe­res pode lembrar-nos que os afro-americanos tambem se podemconstranger com a exigencia intolerante ao darem a identidadecultural urn lugar central nas suas vidas. E os problemas daque­les que foram incitados a ignorar, suprimir ou a remover as suasdiferenc;as dos brancos heterossexuais cristaos pode lembrar-nosdos perigos de se tentar ignorar 0 significado das diferenc;as desexo que podem ser bastante profundas.

Em qualquer dos casos, a reflexao num grupo de problemaspode moldar a nossa perspectiva quando nos dedicamos a outrogmpo de problemas. E pode muito bern acontecer que a minharecente ocupac;ao com os problemas de genero sexual ajudem aexplicar a minha perspectiva do assunto ao qual me you dedicar.

Quero considerar especificamente, como Taylor faz, a exi­gencia pelo reconhecimento da diversidade de culturas, e parti­cularmente 0 modo como esta exigencia se expressa na esferada educac;ao. Como nota 0 Professor Taylor, a exigencia de

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respeito igual pelas diferentes culturas, ou pelos membros edescendentes de diferentes culturas, conduziu a exigencia deque as contribui<;6es destas culturas sejam reconhecidas - ereconhecidas imediatamente - como igualmente validas e valio­sas. Como Taylor tambem nota, esta e uma exigencia que, pelomenos nas suas formula<;6es mais frequentes, e internamenteinconsistente e assim impossivel de satisfazer. Pois a exigenciaque todas as culturas e os trabalhos por elas efectuados sejamavaliados como igualmente bons esta entrela<;ado com 0 repu­dio de todos os padr6es possiveis para a avalia<;ao, que iriamenfraquecer os juizos de valor inferior. Taylor argumenta cor­rectamente que a linha subjectivista nestes argumentos e afinaldestrutiva para os objectivos que estes argumentos suposta­mente deveriam apoiar. Ele afirma correctamente que, emborao subjectivismo proponha uma resposta rapida e facil as exi­gencias para a justifica<;ao de uma revisao do ciinone, e umaresposta que, no final de contas, acaba em desrespeito pelapr<'itica da justifica<;ao, pelo vocabulario da aprecia<;ao critica, epor tudo 0 que possa servir de base ao respeito autentico.Consequentemente, ele defende (outra vez correctamente) quee urn erro exigir que obras de todas as culturas sejam avaliadas,anteriormente a inspec<;ao e a aprecia<;ao, como obras igual­mente boas, que igualmente manifestam 0 talento humano, eque fazem contribui<;6es iguais para 0 armazem mundial dabeleza e da magnificencia.

Contudo, encontro algo de estranho a perturbar a propriavisao de Taylor sobre 0 que daqui deriva, e na sua propria pro­posta sobre 0 que, se nao formos subjectivistas, 0 direito aoreconhecimento deve requerer. Taylor sugere que 0 reconheci­mento exige que demos a todas as culturas a presun,iio de que«(ja que) vitalizaram sociedades completas durante um periodoconsideravel de tempo, elas tem algo de importante a dizer atodos os seres humanos.» Isto comprometer-nos-ia a estudarestas culturas, a expandir a nossa imagina<;ao e a abrir os nos­sos espiritos, de modo a nos colocarmos na posi<;ao para ver­mos 0 que, se existe alguma coisa, e tao distintivamente valiosonelas. Com 0 tempo, quando a presun<;ao se esgotar, podemosmudar a nossa justifica<;ao para um valor igual ou distintivo,

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pois nessa altura e s6 nessa altura estaremos na posi~ao decompreender e articular os valores especificos e distintivos quecada cultura tern para propor.

Parece-me que esta linha de pensamento nos leva para umadire~ao infeliz, que nos desvia de urn dos problemas cmciais quea politica do reconhecimento urge em nos endere~ar. Pois pelomenos uma das graves injusti~as que urn erro do reconhecimentoperpetua pouco tern a ver com a questao de seuma pessoa ouuma cultura que nao sao reconhecidas tern algo de importante adizer a todos os seres humanos. A necessidade de corrigir essasinjusti~as, por conseguinte, nao depende da presun~ao ou daconfirma~ao da presun~ao de que uma determinada cultura edistintivamente valiosa para as pessoas exteriores acultura.

Uma maneira de explicar 0 que tenho em mente e imaginar,apesar de quao irreal possa ser, que hipoteticamente SaulBellow presta aten~ao a Taylor e apreende profundamente assuas observa~6es. Presumivelmente, quando Bellow alegada­mente fez a observa~ao sobre Tolstoy e os zulus, 0 seu pensa­mento subjacente era que 0 canone que inclufa Tolstoy e todosos outros brancos mortos representava simplesmente 0 melhorque a cultura mundial tern para propor, as obras-primas daciviliza~ao humana. Ora, e-lhe salientado que ele nao esta naposi~ao de fazer esta reivindica~ao - pois ele esta muito malinformado sobre os feitos da civiliza~ao asiatica, africana eamericana nao-branca, e, mesmo que esteja informado sobreelas, ele e bastante incompetente para as defender.

Se Bellow aceitasse a acusa~ao contra si, iria compreender queesta observa~ao revelou uma arrogancia de enormes propor~6es,

e que reflectia urn erro de reconhecimento excessivo. Pois, aoidentificar impensadamente as obras-primas da cultura europeiacom as obras-primas da civiliza~ao humana, ele estava a falharem reconhecer - falhava mesmo em ver - toda a civiliza~ao

humana que nao era europeia.Imaginemos que Bellow aceita a acusa~ao, que ele agora cor­

rige a sua compreensao do canone enquanto representante, naodas grandes obras da civiliza~ao, mas das grandes obras daciviliza~ao europeia. Que efeito e que isto teria? A minha supo­si~ao e que Bellow, ou, se nao Bellow, muitos dos seus colegas,

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renunciaria a este ponto sem alterar as suas opini6es sobre 0

que 0 curriculo deveria ser. Imagino-o a responder, «Bern, tal­vez eu estivesse fora de mim ao descrever 0 canone enquantorepresentante dos feitos do mundo. Mas se nao representa osfeilos do mundo, pelo menos representa os feitos do nossomundo, da nossa cultura, e isso e suficiente para 0 justificarcomo a pe~a central do /IOSSO curriculo.»

Mas esta resposta revela urn segundo erro de reconheci­mento, pelo menos tao intoleravel quanta 0 primeiro. Poistemos que imaginar Bellow a dirigir estas observa~6esaos seuscolegas e alunos da Universidade de Chicago. E, sendo a insti­tui~ao considerada como uma elite, sabemos que 0 grupo incluimuitos que nao sao europeus. Referindo-se a cultura europeiabranca, ele diz que «Esta e a nossa cultura.» Mas 0 publico naoe todo branco, e nao e todo descendente de europeus. 0 que eque ele faz de todas as outras pessoas presentes na sala?

Nao e claro - talvez nao esteja determinado - se 0 tipo deerro do reconhecimento aqui descrito e melhor interpretadoenquanto uma exclusao literal dos afro-americanos e de outrosdo que dizer, «Quando falo da nossa cultura, obviamente quenao me refiro a vossa,» ou se devemos ve-Ia como uma disposi­~ao protectora para aceitar esses membros externos da comuni­dade da Universidade de Chicago como brancos honorarios,europeus honorarios (e provavelmente homens honorarios).Em qualquer dos casos, este tipo de erro do reconhecimentoesta extremamente difundido nas nossas institui~6es educacio­nais, e constitui urn nivel de insulto e de prejuizo que necessitade remedio imediato.

o insulto aqui descrito e urn insulto fundamentalmente diri­gido aos individuos e nao as culturas. Consiste em, ou ignorara presen~a destes individuos na nossa comunidade, ou emnegligenciar ou depreciar a importancia das suas identidadesculturais. Ao falhar em respeitar a existencia ou a importanciadas suas hist6rias, artes e tradi~6es distintas, falhamos em res­peita-los como iguais, cujos interesses e valores tem uma posi­~ao igual na nossa comunidade.

Todas as vezes que you a uma biblioteca com os meus filhos,deparo-me com uma ilustra~ao de como as gera~6es passadasfalharam em reconhecer 0 grau ate onde a nossa comunidade e

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multicultural, e de como as polfticas do reconhecimento podemconduzir, e conduzem realmente, a um tipo de progresso social.as meus filhos tendem a dirigir-se a sec~ao das his toriaspopulares e dos contos maravilhosos. Eles gostam de muitasdas historias que eu gostava quando era crian~a - «Rapunzel»,«0 Principe Sapo», «as Musicos de Bremen» - mas as suasfavoritas tambem incluem hist6rias de Africa, da Europa de Lestee da America Latina que nao estavam a minha disposi~aoquandoeu estava a crescer.

Sera que a minha mae falhou em reconhecer que eu possi­velmente poderia gostar destes livros? Sera que ela os escondeuatras dos outros, quase como um reflexo, quando viu as ilustra­~oes de estilos estrangeiros ou os olhos rasgados ou a peleescura dos personagens? Provavelmente sim, caso estes livrosse encontrassem na biblioteca. Mas antes de testarmos os pode­res do reconhecimento da minha mae, suspeito que outros limi­taram a selec~ao. Pois os bibliotecarios falharam provavelmenteem reconhecer estes livros quando leram as listas e os catiilogospara decidirem quais os que deveriam encomendar. E os proprioscatalogos reflectiam provavelmente as decisoes dos editores epublicadores que, num estiidio anterior, falharam em reconhecero potencial interesse, gosto, e genericamente a gratifica~ao que 0

recontar destas historias possui, nos manuscritos que lhes eramenviados enos autores que escolhiam cultivar e encorajar.

Penso que foi feito um progresso notavel nesta area comresultados excepcionais. Obviamente, um resultado importantee que as crian~as afro-americanas e asio-americanas e outraspodem encontrar na biblioteca tradi~oes e lendas descritas eilustradas as quais estao mais estreitamente ligadas, e livrosnos quais os personagens se assemelham e falam como elas,como os seus pais e avos. Outro resultado e que as pessoas quecontam e ilustram as historias que expressam as tradi~oes e avida destas culturas reconhecem que tem estas coisas para pro­por e que ha um publico para as acolher. Outro ainda e quetodas as crian~as americanas tem agora disponivel uma diversi­dade de estilos literarios e artisticos - e, simplesmente, umadiversidade de hist6rias - que podem constituir 0 inicio deuma heran~a multicultural verdadeira. Quando uma crian~a,

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que se encontra exposta a este tipo de diversidade, encontraoutra, nao espera que esta seja como ela nem a ve como umaestranha ou estrangeira.

De facto, os livros de hist6rias destes outros paises e destasoutras culturas sao tao gratificantes para mim e para os meusfilhos como os contos alemaes e franceses que enchiam as biblio­tecas para as crian~as da minha gera~ao - deleitavam os nossosouvidos e os nossos olhos, e inspiravam completamente anossa imagina~ao.Mas 0 valor que quero focar ao aplaudir estaexpansao multicultural de hist6rias multiculturais disponiveisnao esta directa ou primeiramente relacionada com a contribui­~ao comparativa do valor literario destas hist6rias. A injusti~a

mais significativa para a qual contribuiram os erros do reconhe­cimento anterior nas nossas bibliotecas nao foi 0 estarmos pri­vados do acesso a algumas grandes hist6rias, tao grandes oumaiores do que as representadas nas prateleiras. Pois nuncahouve uma diminui~ao de grandes hist6rias para as crian~as

lerem ou uma que determinasse qual a melhor hist6ria. 0 bemmais significativo, ou pelo menos aquele a que eu quero darenfase, nao e que 0 nosso stock de lendas e agora melhor oumais compreensivo do que outrora. E, ao contrario, que, ao terestes livros e ao Ie-los, acabemos por nos reconhecer como umacomunidade multicultural e assim reconhecer e respeitar osmembros dessa comunidade em toda a sua diversidade.

Como e que estas considera~oes admitem 0 assunto da edu­ca~ao universitaria - e, mais especificamente, 0 assunto da revi­sao do canone - e uma questao complexa, pois os objectivos deuma educa~ao universitaria, os metodos apropriados paraalcan~ar esses objectivos, as responsabilidades das institui~oes

publicas que se opoem as privadas, sao tudo questoes de con­troversia em rela~ao as quais as discussoes do valor do multi­culturalismo devem ser postas. Seguramente, urn objectivo daeduca~aouniversitaria e informar os alunos e ensina-los a apre­ciar boa literatura, boa arte, boa filosofia, e 0 me/hor da teoria e dometodo cientificos. Relativamente a este objectivo, 0 juizo deque uma obra de arte ou uma ideia ou uma teoria e objectiva­mente melhor do que outra, na medida em que tais juizospodem ser feitos inteligente e sensivelmente, serao relevantes

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para as decisoes do curriculo independentemente de qualquerconsidera~aoadvinda destas obras e pensamentos. Evidentementeque foi com este objectivo em mente que Bellow alegadamentefez esta observa~ao ofensiva, e com este mesmo objectivo emmente que a resposta de Taylor 0 condena.

o meu proposito nao foi disputar a adequa~ao deste objec­tivo na educa~ao ou das observa~oesde Taylor sobre as impli­ca~oes que 0 nosso novo e desenvolvido reconhecimento dasculturas nao-ocidentais, nao-europeias e nao-brancas tern paraas nossas ideias de como 0 obter. Em vez disso, foi salientar queeste nao e, nem nunca foi, 0 unico objectivo legftimo da educa­~ao. Aprender a pensar correctamente e criativamente, a olhar ea ouvir sensivelmente e com urn espfrito aberto, tern sido sem­pre objectivos educacionais que sao procurados atraves de umavariedade de metodos dos quais a exposi~ao perante grandesobras e apena urn. Mais especificamente, aprender a nos com­preendermos a nos proprios, a nossa historia, ao nosso ambiente,a nossa linguagem, ao nosso sistema politico (e a historia, cul­tura, lingua e politica das sociedades de particular interesse ouproximidade para nos), tern sido sempre objectivos cuja justifi­ca~ao e valor nao sao discutidos.

Ate recentemente, talvez, os brancos descendentes da Europanao sentiam a necessidade de descobrir as suas (ou nossas)razoes de quererem estudar e ensinar a sua literatura e a suahistoria. A politica do reconhecimento aumentou a sua sensibili­dade para 0 facto de que a sua literatura possa nao ser de exten­sao igual a da gande literatura. Reconhecer isto da-nos aoportunidade de pensar sobre 0 que e que explica e justifica 0

seu interesse e compromisso para estudar Shakespeare, porexemplo - sera 0 seu objectivo abrupto, a sua grandeza transcul­tural ou a sua importiincia em definir e moldar as nossas tradi­~oes literarias e dramaticas? No caso de Shakespeare, penso quenao ha necessidade de escolher. Ambas as razoes sao pefeita­mente boas para se estudar Shakespeare, e para incluf-Io no cur­riculo. Genericamente, ambos os tipos de razao que estas razoessingulares exemplificam tern 0 seu lugar no tomar de decisoeseducacionais. Ambas as formas de justifica~ao sao afectadas porurn reconhecimento consciente da diversidade cultural.

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Taylor, seguindo a dire~ao de Bellow, preocupa-se com a pri­meiro tipo de justifica~ao. Toma como garantido que a nossarazao para estudar uma cultura em vez de outra deve ser que essacultura e de uma importiincia objectiva particular, au que temalguma contribui~ao estetica au intelectual especialmente valiosaa fazer. Taylor esta certo ao reparar que as valores reflectidos nestetipo de razao tambem nos dao razao para procurar a mundointeiro, com paciencia e com carinho, para encontrar e aprender aapreciar grandes feitos humanos, onde quer que eles estejam.

A razao de Taylor para estudar culturas diferentes, entao, eque com a tempo estes estudos muito provavelmente irao ser«remunerados» em termos de uma compreensao do mundomais alargada e de uma elevada sensibilidade 11 beleza. Esta ecertamente uma razao para estudar culturas diferentes, mas naoe a unica nem a mais premente.

A minha posi~ao neste ensaio e compreender a legitimidadedo segundo tipo de justifica~ao,mas insistir que neste contexto,pelo menos tanto como no primeiro, hil a necessidade de umreconhecimento consciente da diversidade cultural. Realmente,neste contexto, podemos ate dizer que a justi~a 0 exige.

Nao hil nada de errado em ter um interesse especial par umacuitura porque e a nossa, au porque e a cultura de um amigoau a do nosso esposo. De facto, ter um interesse especialcomum na nossa pr6pria cultura comum e na nossa pr6priahist6ria comum e parte do que mantem viva a cultura comum,parte do que cria, reforma e suporta aquela cultura. Mas a poli­tica do reconhecimento tem consequencias para a que e justifi­cado nestes termos que sao tao importantes quanta as suasconsequencias pelo que pode ser justificado imparcialmente.A politica do reconhecimento impele-nos nao s6 a fazer esfor~os

para reconhecer a mais activamente e mais correctamente - areconhecer essas pessoas e essas culturas que ocupam a mundojuntamente connosco - mas tambem a olhar mais de perto emenos selectivamente para quem partilha as cidades, as biblio­tecas e as escolas a que chamamos nossas. Nao hil nada deerrado em conceder um espa~o especial no curricula para aestudo da nossa hist6ria, da nossa literatura e da nossa cultura.Mas se vamos estudar a nossa cultura, seria melhor se reconhe­cessemos quem n6s somas como comunidade.

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COMENTARIO

STEVEN C. ROCKEFELLER

A tradic;ao democr.:itica liberal e formada por um ideal deliberdade, igualdade e realizac;ao que na melhor das hip6teses foirealizado apenas parcialmente e que podera nao estar ainda com­pletamente imaginado. 0 significado espiritual da hist6ria daAmerica e da hist6ria de outras nac;oes democraticas e principal­mente a hist6ria da busca deste ideal. 0 corac;ao da tradic;ao libe­ral e um processo criativo, urn metodo de transformac;ao social eindividual, construido para permitir aos homens e as mulheres aincorporac;ao deste ideal. Charles Taylor tornou claro 0 modocomo 0 multiculturalismo e a polftica da diferenc;a e do reconheci­mento igual estao correntemente a influenciar este processo detransformac;ao. Explicou de uma maneira mais instrutiva as ori­gens hist6ricas no pensamento moderno de ideias que desempe­nham um papel central no actual debate sobre estes assuntos.

No minimo, a politica e a etica de igual dignidade precisamde ser aprofundadas e expandidas de modo a que 0 respeitopelo individuo seja compreendido como que envolvendo naos6 respeito pelo potencial humano universal em cada pessoamas tambem respeito pelo valor intrinseco das diferentes for­mas culturais atraves das quais os individuos poriam em pra­tica a sua humanidade e exprimem as suas personalidadesunicas. As reflexoes seguintes esforc;am-se por por esta ideiaem evidencia ao considerar a politica do reconhecimento

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igual em rela<;ao aos valores da democracia liberal, ao movi­mento ambiental e a dimensao religiosa da experiencia.Estas perspectivas podem ajudar-nos a apreciar as contribui­<;6es positivas da politica do reconhecimento e a darificar osperigos nas suas formas extremas que amea<;am subverteros ideais da liberdade universal e inc1usivamente a comu­nidade.

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Primeiro que tudo, e importante c1arificar um problemabasico quando se discute 0 reconhecimento da diversidadenum contexto social-democrata e polftico. Do ponto de vistademocratico, a identidade etnica de uma pessoa nao e a suaidentidade inicial, e importante como 0 respeito pela diversi­dade nas sociedades democratas multiculturais, a identidadeetnica nao e a base do reconhecimento do valor igual e da rela­cionada ideia dos direitos iguais. Todos os seres humanospossuidores de uma natureza humana universal - enquantopessoas - tem um valor igual perante a perspectiva democratica,e todos os povos enquanto pessoas merecem respeito igual eoportunidades iguais para a realiza<;ao pessoal. Noutras pala­vras, do ponto de vista liberal democrata uma pessoa tem 0

direito de reivindicar um reconhecimento igual antes de tudopela razao da sua identidade humana universal e potencial,e nao primeiramente pela razao de uma identidade etnica.A nossa identidade universal enquanto seres humanos e anossa identidade inicial e e mais fundamental do que a nossaidentidade particular, quer seja uma questao de cidadania,sexo, ra<;a ou origem etnica.

Pode acontecer que nalgumas situa<;6es os direitos dos indi­viduos possam ser melhor defendidos ao intitular os direitos deum grupo inteiro definindo-os, por exemplo, em sexo e ra<;a,mas isto nao altera a situa<;ao no que diz respeito aidentidadeinicial de uma pessoa. Elevar a identidade etnica, que e secun­daria, a uma posi<;ao igual, ou superior, em importancia a iden­tidade universal de uma pessoa e enfraquecer as bases doliberalismo e abrir a porta aintolerancia.

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o que e universalmente partilhado na natureza humanaexpressa-se numa grande diversidade de formas culturais. Numaperspectiva democnitica, as culturas particulares sao critica­mente avaliadas a luz da maneira em que dao uma expressaoconcreta distinta as capacidades e valores universais. Oobjectivode uma cultura democratica liberal e respeitar - nao reprimir - asidentidades etnicas e encorajar as diferentes tradic;oes culturaisa desenvolverem completamente 0 seu potencial de expressaodos ideais democraticos da liberdade e da igualdade, condu­zindo na maior parte dos casos a importantes transformac;oesculturais. 0 modo como as diversas culturas desempenham assuas tarefas ira variar, dando uma rica variedade pelo mundointeiro as formas da vida democratica. As culturas podem passarpor mudanc;as intelectuais, sociais, morais e religiosas significa­tivas, enquanto mantem continuidade com 0 seu passado.

Estas reflexoes levantam algumas questoes sobre 0 endossode Taylor de urn modelo de liberalismo que permite os objecti­vos de urn determinado grupo cultural, como os canadianosfranceses no Quebeque, de serem activamente apoiados pelogoverno em nome da sobrevivencia cultural. Mas uma coisa eapoiar a autonomia politica de urn grupo aut6nomo e historica­mente distinto como urn povo tribal da Idade da Pedra naNova Guine ou a cultura budista do Tibete na China, pelarazao do direito a autodeterminac;ao. A situac;ao torna-se maiscomplicada quando se considera a criac;ao de urn estado aut6­noma dentro de uma nac;ao democratica como no caso dos habi­tantes do Quebeque ou a fundac;ao de urn sistema escolar publicoseparado, com 0 seu pr6prio curriculo para urn determinadogrupo, nos EVA. Encarando a desonra do liberalismo doQuebeque defendida por Taylor, estou inseguro acerca do perigode uma desagregac;ao, com 0 tempo, dos direitos humanos fun­damentais a crescer de uma mentalidade separatista que elevaa identidade etnica sobre a identidade humana universal.A democracia americana desenvolveu como que urn esforc;opara transcender 0 separatismo e as rivalidades etnicas queteve urn efeito completamente destrutivo no «velho mundo»sendo a guerra civil jugoslava apenas 0 exemplo mais recente.

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II

A cIarifica<;ao da natureza e do significado de democracialiberal fornece uma maneira de explorar mais alem os proble­mas morais e politicos levantados pela politica do reconheci­mento. Alguns liberais contemporaneos defenderam a opiniaode urn estado liberal neutral entre as concep<;oes da vida boa.o liberalismo processual nesta opiniao envolve urn compro­rnisso moral nos processos que asseguram 0 tratamento iguale justa de todos, mas nao urn compromisso moral para finsespecfficos na vida, isto e, uma ideia da vida boa. Por exemplo,o liberalismo processual respeita a separa<;ao de igreja e estado.E tambem defendido que 0 liberalismo processual cria urn tipode cultura universal na qual todos os grupos podem florescer eviver juntos. No entanto, muitos multiculturalistas de hoje desa­fiam a ideia de que 0 liberalismo pode ser neutral relativamenteas concep<;oes de vida boa, argumentando que este reflecte umacultura anglo-americana regional e que tern urn efeito homoge­neizador. Rejeitam a opiniao segundo a qual 0 liberalismo e oupode ser uma cultura universal.

Hii alguma verdade ern ambas as interpreta<;oes de libera­lismo. Vma cultura politico-liberal eneutral no sentido ern quepromove a tolerancia e protege a liberdade de consciencia,religiao, discurso e reuniao de urn modo que nenhuma outracultura faz. No seu melhor, 0 liberalismo representa uma as­pira<;ao humana universal pela liberdade individual e deauto-expressao como nenhuma outra cultura representa. Noentanto, isto e apenas parte da hist6ria. Como Taylor reco­nhece, 0 liberalismo e uma «doutrina lutadora» e <<nao podenem deve reivindicar uma neutralidade cultural completa.»o que e esta «doutrina lutadora»? Qual e 0 significado dedemocracia liberal? Taylor nao se pronunciou tao nitidamentequanta John Dewey.

Por diferentes razoes, alguns americanos apoiam a ideia deuma forma puramente processual de liberalismo politico naopiniao de que e moralmente neutral considerando as concep­<;oes de vida boa. No entanto, omitem 0 completo significadomoral de democracia liberal, que contern ern si a ideia essencial

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de vida boa. Como Dewey afirma, 0 Iiberalismo e a expressaode uma fe moral distinta e urn modo de vidal.

Para os Iiberais como Dewey, a vida boa e urn processo, urnmodo de vida, de interac~ao com 0 mundo, e de resolver pro­blemas, que conduz ao progresso do crescimento individual eda transforma~aosocial. Reconhecemos 0 fim da vida, da vidaboa, todos os dias, vivendo com urn espirito liberal, mos­trando respeito igual por todos os cidadaos, preservando umamente aberta, praticando a tolerancia, cultivando 0 interessesimpatico nas necessidades e lutas dos outros, imaginandonovas possibilidades, protegendo os direitos e Iiberdadeshumanos basicos, resolvendo problemas com 0 metodo da inte­ligencia numa atmosfera nao-violenta imbuida de urn espiritode coopera~ao.Estas tern a prioridade entre as virtudes demo­craticas Iiberais.

Do ponto de vista deweyano, a democracia liberal nao eantes de tudo urn mecanismo politico; e urn modo de vida indi­vidual. A politica democratica liberal e forte e saudavel apenasquando toda a sociedade esta imbuida do espirito da democra­cia - na familia, na escola, nos neg6cios e na ind([stria, nas ins­titui~6es religiosas e nas politicas. 0 significado moral dedemocracia e encontrado na reconstru~ao de todas as institui­~6es de modo a que se tornem instrumentos do crescimentohumano e da Iiberta~ao. Por esta razao e que os problemas deabuso de menores e de assedio sexual, assim como a discrimi­na~ao sexual, ra~a, ou orienta~ao sexual, sao problemas demo­craticos Iiberais.

A democracia liberal e uma estrategia social que permiteaos individuos viverem uma vida boa. Esta inalteravelmenteoposta a ignorancia. Defende que 0 conhecimento e a compre­ensao tem 0 poder de Iibertar as pessoas. 0 seu sangue vital e acomunica~ao livre construida na Iiberdade de inquerito, dis­curso e reuniao. 0 poder Iibertador da democracia esta tambemestritamente Iigado ao que podemos chamar de metodo demo-

1 Ver, por exemplo, John Dewey, «Creative Democracy - The Task BeforeUs», in LIlter Works ofJolm Dewey, 1925-1935, ed. Jo Ann Boydston, SouthernIllinois University Press, 1988.

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cnitico da verdade, que confia na experiencia e na inteligenciaexperimental. A ideia dos absolutos morais e de uma hierarquiafixa de valores e rejeitada. Nenhuma ideia do bem esta acimado criticismo, mas isto nao conduz a um relativismo sem direc­<;ao. Atraves da experiencia, com a ajuda da inteligencia experi­mental, podemos encontrar vastas bases para fazer juizos devalor objectivos numa situa<;ao particular.

Quando uma sociedade liberal enfrenta a questao da garan­tia de privilegios especiais, imunidades e autonomia politicapara um grupo cultural como os canadianos franceses doQuebeque, nao pode comprometer os direitos humanos funda­mentais, como 0 Professor Taylor reconhece. Alem disso, aque­les que compreendem a democracia liberal como um pr6priomodo de vida baseado numa fe moral distinta nao podem de boaconsciencia concordar em permitir as escolas ou ao governoque suprimam a maneira democratica de crescimento e trans­forma<;ao. A maneira democratica entra em conflito com qual­quer ideia ou direito absoluto de sobrevivencia cultural.A maneira democratica significa respeito e abertura a todas asculturas, mas tambem desafia todas as culturas a abandonar osvalores intelectuais e morais que sao inconsistentes com os ideaisde liberdade, igualdade e a procura continua, cooperante eexperimental da verdade e do bem-estar. Eum metodo criativode transforma<;ao. Este e 0 seu significado espiritual e revolucio­nario mais profundo.

Taylor indica a aprecia<;ao deste significado quando des­creve 0 valor de um dialogo cultural-transcendente que trans­forme 0 entendimento humano, conduzindo a uma «fusao dehorizontes.» No entanto, e muito improvavel que uma socie­dade se abra a tal transforma<;ao se esta preocupada com a pro­tec<;ao de uma cultura especifica ao ponto de permitir que 0

governo mantenha essa cultura a custa da liberdade individual.Ha uma tensao incerta entre a defesa de Taylor do principiopolitico da sobrevivencia cultural e a sua adesao a uma trocacultural-transcendente aberta. As democracias liberais de hojeque lutam com os problemas identificados pela politica da dife­ren<;a, e fazem ajustes em resposta as poderosas for<;as separa­tistas e nacionalistas, e essencial que nao percam de vista esteproblema.

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III

Taylor considera a certa altura a questao de como e com queraz6es os diferentes grupos culturais devem ser reconhecidos erespeitados. Relativamente a isto, e instrutivo notar a emergenciade uma politica do reconhecimento com 0 movimento ambienta­lista assim como com a politica da diferen~a e 0 multicultura­lismo. as ambientalistas exigem respeito pelos animais, arvores,rios e ecossistemas. Tal como os multiculturalistas, estao preo­cupados com uma nova aprecia,ao da diversidade e com a posi­,ao legal e moral dos direitos dos grupos oprimidos. Alemdisso, tal como 0 multiculturalismo pode criticar a posi,ao dosfeitos de urn grupo, como os homens brancos europeus e ame­ricanos, como a norma da humanidade completamente de­senvolvida, tambem alguns ambientalistas criticam a visaoantropocentrica que coloca os seres humanos como 0 fim defi­nitivo do processo de cria,ao e como inerentemente superioresa todos os outros seres. Em ambos os casos ha urn ataque aosmodos de pensamento hierarquico que tendem a diminuir ou anegar 0 valor dos outros seres humanos.

Numa tentativa de consignar este valor, muitos ambientalistasabandonam uma orienta,ao antropocentrica que visa formas devida nao-humanas enquanto possuidoras de valor instrumentalapenas e existindo solitariamente como urn recurso para finshumanos. Eles abrangem uma perspectiva biocentrica que defendeo valor inerente a todas as formas de vida. Por exemplo, a UnitedNations World Charter for Nature, aprovada pela AssembleiaGeral em 1982, inclui 0 principio que «toda a forma de vida eUnica, procurando respeito independentemente do seu valor parao homem», e prossegue defendendo que todos os seres humanostern a obriga~ao moral de respeitar todas as formas de vida.

Esta linha de pensamento pode ser aplicada a questao dovalor das diversas culturas humanas. (Na sequencia definidapor Taylor, a preocupa~ao aqui e com «culturas que estimula­ram sociedades completas durante urn perfodo consideravel detempo».) Pode argumentar-se que as pr6prias culturas huma­nas sao formas de vida. Sao produtos de processos evolutivosnaturais do crescimento organico. Cada urn, de acordo com a

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sua forma distinta, revela 0 modo como a energia criativa douniverse se tomou num foco linico, operando atraves da natu­reza humana em interac~aocom um ambiente distinto. Cada umtem 0 seu pr6prio lugar no vasto esquema das coisas, e possu;valor intrfnseco independentemente de qualquer valor que assuas tradi~oes possam ter para as outras culturas. Este facto naose altera pela considera~ao que as culturas, como os seres viven­tes, podem desenvolver-se em formas desintegradas e doentes.

Assim como alguns ecologistas admitem um igualitarismobiocentrico, tambem alguns multiculturalistas exigem quetodas as culturas recebam 0 reconhecimento do igual valor.Atraido pelos criterios da psicologia social moderna, Taylorapresentou um argumento persuasivo para uma nova atitudemoral que inclui a aproxima~ao de todas as culturas com pelomenos a presun~ao do valor igual. Lembramo-nos do velhorabino a dizer que «uma pessoa sabia aprende com toda a gente.»A proposta de Taylor parece inteiramente consistente com 0

espirito democrMico liberal. No entanto, a ideia da presun~ao

do valor igual inclui a opiniao de que ap6s um estreito escru­tinio algumas culturas podem nao ser consideradas de valorigual. A resistencia de Taylor a um juizo franco do valor igualreflecte uma perspectiva critica que se preocupa com a evolu­~ao progressiva da civiliza~ao e necessita de fazer distin~oes

sobre os meritos relativos dos varios feitos das diferentes cultu­ras. No entanto, a posi~ao ecol6gica propoe outra perspectiva itluz da qual todas as culturas possuem valor intrfnseco e nestesentido Sao de valor igual. Ambas as perspectivas tem 0 seulugar e nao sao mutuamente exclusivas.

Traduzido em programas de ac~ao responsavel, uma pre­sun~ao, ou um reconhecimento, de um valor igual significa, porexemplo, reescrever os Iivros de base para as nossas escolas,como foi feito na Calif6rnia e esta a ser feito em Nova Torque.No entanto, partilho as preocupa~oes de Arthur Schlesinger, Jr.,que tais empreendimentos nao cdam uma fragmenta~aosocialelevada2. Precisamos de uma aprecia~ao nova, mais aprofun-

2 Arthur Schlesinger, Jr., «A Dissenting Opinnion}}, in Report of the SocinlStudies Review·Committee, State Education Department, State University ofNew York, Albany, Nova Iargue, 13 de Junho, de 1991, p. 89.

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dada das hist6rias etnicas do povo americano, e nao de umaredu~ao da hist6ria americana as hist6rias etnicas.

IV

Taylor afirma que talvez possa existir uma explica~ao reli­giosa para a presun~ao do valor igual das diferentes culturas, ee esclarecedor considerar a questao do reconhecimento dovalor igual numa perspectiva religiosa. Os argumentos emdefesa da ideia da dignidade igual nas democracias ocidentaiscontinuam a reflectir as antigas e classicas no~6es gregas de que haalgo de sagrado na personalidade humana. Do mesmo modo,na defesa da ideia do valor intrfnseco de todas as formas devida, que e defendida pelos ambientalistas, acabamos por pen­sar que esta ideia tem rafzes na experiencia religiosa e nascren~as. Reivindica-se que toda a vida e sagrada. Todas asvarias formas de vida tem fins em si pr6prias, e nenhuma delasdeveria ser vista apenas como um recurso. Na linguagem deMartin Buber, todas as formas de vida deveriam ser respeitadascomo um ser e nao como uma coisa. Como afirma AlbertSchweitzer, deviamos respeitar a vida em todos os seres comosendo sagrada e praticar a reverencia durante toda a vida.Alguns pensadores ecologistas como Aldo Leopold tentaramdar a ideia dos direitos morais da natureza uma defesa cienn­fica e secular, mas a ideia do sagrado esta normalmente implf­cita ou nao muito longe do fundo da questao.

Se, como foi sugerido, todas as culturas, bem como todas asformas de vida, tem um valor intrfnseco e sagrado tambem,entao, de uma perspectiva religiosa, neste sentido, tem um valorigual. 0 mfstico e cristao Mestre Eckhart do seculo XIV afirmou:«Deus ama todas as criaturas igualmente e enche-as com 0 seuser3.» Na perspectiva do espfrito de Johann Gottfried Herder,citado por Taylor, Aleksandr Solzhenitsyn escreve: «Todas aspessoas, mesmo as mais pequenas, representam a faceta unica

3 Ver Mathew Fox, Breakthrough: Meister Eckhart's Creation Spirituality i1l NewTrallslatioll, Garden City, Nova lorque: Doubleday, 1980, p. 92.

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dos desfgnios de Deus.» Solzhenitsyn prossegue citando a recons­tru~ao de Vladimir Solov)rov do segundo mandamento: «Devemamar todos os outros povos como amam 0 voss04.»

Se utilizamos este tipo de argumento religioso na defesa daideia do valor iguai, devemos reconhecer as suas impIica~oesporcompleto. Opoe-se a urn antropocentrismo e a todos os egofsmosde cIasse, ra~a ou cuitura. Apela para uma atitude de humildade.Encoraja urn respeito e orgulho pela nossa propria identidadeparticular apenas ate ao ponto em que esse respeito e esse orgu­Iho nascem de urn reconhecimento do valor da excIusividade naidentidade de todos os outros povos e formas de vida. Alemdisso, se 0 que e sagrado na humanidade e a vida, que nao e algoexcIusivamente humano, entao a identidade inicial da humani­dade nao e relativa apenas aespecie humana mas a toda a bios­fera que envolve 0 planeta Terra. As questoes relativas adignidade igual, ao respeito pela diversidade etnica e pela sobre­vivencia cultural deviam ser exploradas, por conseguinte, numcontexto que ineluisse a considera~ao do respeito pela natureza.

Finalmente, podemos ganhar outros criterios para 0 signifi­cado da exigencia do reconhecimento igual ao considerarmos adimensao psicologica do problema. Alguns multiculturalistaspodem exigir 0 reconhecimento do valor igual principalmentea tim de ganhar for~a para pressionar os programas politicos deurn grupo minorihirio espedfico. No entanto, 0 multicuItura­Iismo nao e apenas isto. 0 apelo ao reconhecimento do valorigual das diferentes culturas e a expressao da basica e profundanecessidade humana da aceita~ao incondicionai. Urn senti­mento por tal aceita~ao, incIuindo a confirma~ao da nossa par­ticularidade etnica e do nosso potencial universalmentepartilhado, e uma parte essencial de urn forte sentido de identi­dade. Como Taylor salienta, a forma~ao da identidade de umapessoa est<! estritamente Iigada a urn reconhecimento socialpositivo - aceita~ao e respeito - dos pais, amigos e entes que­ridos, e tambem de toda a sociedade. Urn sentido muitodesenvolvido da identidade requer ainda multo mais. Os seres

4 Aleksandr Solzhenitsyn, Rebuilding Russia: Reflections and Tentative Proposals,Farrar, Straus & Giroux, Nova Iorque, 1991, p. 21.

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humanos nao precisam somente de um sentido de perten<;a asociedade humana. Especialmente quando confrontados com amorte, tambem precisamos de um sentido permanente de per­ten<;a - de sermos uma parte valiosa - ao vasto todo que e 0

universo. A polftica do reconhecimento pode, por conseguinte,ser tambem uma expressao da complexa necessidade humanada aceita<;ao e perten<;a, que ao nivel mais profundo e umanecessidade religiosa. Propor apenas uma presun<;ao do valorigual nao consigna completamente esta profunda necessidadehumana. Alem do mais, de uma perspectiva c6smica, todos ospovos juntamente com as suas diversas culturas podem muitobem possuir um valor inerente e perten<;a num sentido ultimo.Este pode ser 0 elemento da verdade na ideia do valor igualnuma perspectiva religiosa.

Para a polftica secular nao e possivel consignar completamenteas necessidades religiosas dos individuos ou dos grupos numsentido de aceita<;ao incondicional. No entanto, qualquer polfticademocratica liberal comprometida com os ideais da liberdade eigualdade nao pode escapar aexigencia que cria ambientes inc1u­sivos e sociais que respeitam todos os povos na sua diversidadecultural, dando-lhes urn sentimento de perten<;a avasta comuni­dade. Alem disso, na medida em que uma democracia liberalencoraja as pessoas a identificarem-se nao s6 com 0 seu grupo OU

na<;ao etnicos mas tambem com a humanidade e outras formas devida, tambem nutre uma orienta<;ao especial conducente a reali­za<;ao de um sentido de harmonia com 0 cosmos.

Se uma confirma<;ao do valor igual e feita com fundamentosecol6gicos e religiosos, isto nao diminui a importancia de umapormenorizada avalia<;ao critica dos feitos e priiticas das dife­rentes culturas. 0 estudo comparativo e a analise critica saoessenciais ao desenvolvimento do entendimento cultural-trans­cendente e areconstru<;ao social progressiva. Numa democracialiberal, semelhante trabalho pode e deve ser realizado no seiode uma estrutura de respeito mutuo construida no reconheci­mento do valor intrinseco de todas as culturas.

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COMENTARIO

MICHAEL WALZER

Se 0 objectivo do comentario e a discordiincia (sendo esteurn dos valores humanos que pretendemos defender), entaoestou destinado a ser urn pobre comentador. Pois nao s6admiro 0 estilo hist6rico e filos6fico do ensaio de CharlesTaylor, como estou inteiramente de acordo com as opinioes queele apresenta. Por esta razao, tentarei apenas levantar a questaodentro do seu pr6prio argumento, posicionando-me onde ele seposiciona - em oposic;ao a urn certo absolutismo moral de espi­rito elevado e tambem a urn certo tipo de subjectivismo (e1echama-lhe neo-nietzscheanismo) de baixo espirito.

A questao coloca-se em relac;ao aos dois tipos de liberalismo queTaylor descreve e que eu redescreverei, abreviando 0 seu valor.o primeiro tipo de liberalismo «<Liberalismo 1») eshi compro­metido, na maneira mais forte possivel, com os direitos indivi­duais e, quase como uma deduc;ao disto, com urn estadorigorosamente neutral, isto e, urn estado sem projectos culturaisou religiosos ou sem qualquer tipo de objectivos colectivosalem da liberdade pessoal e da seguranc;a fisica, bem-estar eseguranc;a dos seus cidadaos. 0 segundo tipo de liberalismo«<Liberalismo 2») permite urn estado comprometido com asobrevivencia e 0 florescimento de uma determinada nac;ao,cultura ou religiao, ou com urn grupo (limitado) de nac;oes, cul­turas e religioes - desde que os direitos basicos dos cidadaos

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que tem diferentes compromissos ou que mio tem nenhunsestejam protegidos.

Taylor prefere 0 segundo destes dois liberalismos, emboranao defenda extensamente esta preferencia no seu ensaio.E importante notar que 0 Liberalismo 2 epermissivo, nao deter­minado: Taylor escreve que os liberais do segundo tipo «estaodispostos a pesar a importancia de certas formas de tratamentouniforme (de acordo com uma forte teoria dos direitos) contra aimportancia da sobrevivencia cultural, e optam as vezes (0enfase emeu) a favor do ultimo.» Isto significa obviamente queos liberais do segundo tipo iraQ optar as vezes a favor do libe­ralismo do primeiro tipo. 0 Liberalismo 2 eoptativo, e uma dasop~oese0 Liberalismo 1.

Isto parece-me corredo. Nao fazemos escolhas singulares oudefinitivas; adaptamos a nossa polftica para que se enquadrenas nossas circunstancias, mesmo se quisermos modificar outransformar as nossas circunstancias. Mas - esta e a minhaquestao - quando devemos escolher este ou 0 outro modo, 0

Liberalismo 1 ou 0 Liberalismo 2?o exemplo do Canada referido por Taylor coloca agradavel­

mente esta questao e talvez a responda. Suponho que ele faria aexcep~ao que os habitantes do Quebeque querem, reconhecendoo Quebeque como uma «sociedade distinta» e permitindo aogoverno provincial escolher 0 Liberalismo 2 e depois agir (den­tro dos limites: pode exigir 0 signage frances; nao pode banir osjornais ingleses) no sentido da preserva~aoda cultura francesa.Mas isto e precisamente abrir uma excep9iio; 0 governo federalnao aceitaria este projecto do Quebeque ou outro qualquer destetipo. Vis-a-vis todas as etnicidades e religioes do Canada, perma­nece neutral; defende um liberalismo do primeiro tipo.

A maior parte dos estados (pensem na Noruega, Fran~a e naRolanda, por exemplo) sao mais como 0 Quebeque do que comoo Canada. Os seus governos interessam-se pela sobrevivenciacultural da na~ao maioritaria; nao reivindicam a neutralidaderelativamente a linguagem, hist6ria, literatura, calendario, ouainda aos costumes da maioria. Para tudo isto eles acordam 0

reconhecimento publico e 0 apoio, sem qualquer ansiedadevisivel. Ao mesma tempo, justificam 0 seu liberalismo ao tole-

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rarem e respeitarem as diferen~as elnicas e religiosas e penni­tindo uma Iiberdade igual a todas as minorias para organizaremos seus membros, expressarem os seus valores culturais e repro­duzirem 0 seu modo de vida na sociedade civil e na familia.

Todos os estados agem de forma a reproduzirem homens emulheres de um certo tipo: noruegueses, franceses, holandeses,ou outros quaisquer. Nao duvido que haja tensao, as vezesmesmo um conflito aberto, entre estes esfor~os oficiais da repro­du~ao social e os esfor~os nao-oficiais das minorias para se apoia­rem a si proprias ao longo do tempo. A tensao e 0 conflitoparecem ser inerentes no Liberalismo 2, mas esta nao e umarazao para 0 rejeitar - nao nos lugares onde encaixam as necessi­dades de uma na~ao maioritaria ha muito estabelecida. Nem 0

conflito pode ser evitado ao exigir-se ao estado noruegues queforne~a 0 mesmo tipo de apoio aos grupos minoritarios que for­nece a maioria. Pois dificilmente 0 Faria sem segregar as variasminorias e dar-Ihes 0 controlo do seu proprio espa~o publico,criando um Quebeque, ou alguns, no seu proprio solo, onde naoexiste nenhum. E que razao poderia haver para adoptar seme­lhante political 0 Liberalismo 2 e inteiramente apropriado aqui,como e apropriado no actual. Quebeque. Nao parece existir umaexigencia para a provisao igual ou uma prote~ao igual para asculturas minoritarias, desde que os direitos basicos sejam res­peitados.

o primeiro tipo de Iiberalismo, ao contrario, e a doutrina ofi­cial das sociedades imigrantes como os EUA (e 0 Canada fede­ral), e tambem parece inteiramente apropriado ao seu tempo eespa~o. Pois os EUA nao sao, afinal de contas, um estado, massim uma na~ao de nacionalidades, como escreveu HoraceKallen na segunda decada do nosso seculo, ou uma uniaosocial de uni6es sociais, na mais recente formula~ao de JohnRawls. Aqui, a uniao singular reivindica a sua distin~ao dasoutras uni6es plurais, recusando defender ou apoiar os seusmodos de vida ou interessar-se activamente na sua reprodu­~ao social ou permitir a algumas delas diminuir 0 poder esta­tal, mesmo localmente. Dada a ausencia de fortes minoriasterritorialmente baseadas, a uniao americana nunca enfrentouo desafio do Quebeque. As uni6es plurais sao Iivres de fazer 0

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melhor que podem para seu pr6prio interesse. Mas nao rece­bern qualquer ajuda do estado; estao todas igualmente emrisco. No que diz respeito ao Liberalismo 1, nao ha qualquermaioria privilegiada e nao ha minorias excepcionais.

Esta e a doutrina oficial. Nao ha duvida que a neutralidadedo estado e frequentemente hip6crita, e sempre (por raz6es queTaylor torna c1aras) incompleta. Algumas nacionalidades,uni6es sociais ou comunidades culturais correm urn maior riscodo que outras. A cultura publica da vida americana apoia maiseste tipo de vida do que 0 outro. Para estas pessoas, a sobrevi­vencia e urn problema maior do que para as outras. Esta nao es6 uma questao de hist6ria e de numeros mas tambem de bem­-estar e poder. Por isso, a existencia da politica contemporaneado «multiculturalismo» e numa das suas formas uma exigenciade desafiar 0 bem-estar e 0 poder e igualar os riscos. Nao tenhoa certeza de como isto pode ser feito, mas no seu principio, pelomenos, e compativel com 0 Liberalismo 1, ou seja, com urnestado neutral para a sobrevivencia (cultural) de qualquerpessoa.

Mas 0 multiculturalismo e numa das suas outras formasuma exigencia para minimizar os riscos de todas as nacionali­dades, uni6es sociais e comunidades culturais. Agora 0 estadoe chamado a tomar responsabilidade pela sobrevivencia (cultu­ral) de todas as pessoas. Isto e 0 liberalismo de segundo tipo,excepto a «permissao» que Taylor sugere para os projectos oli­ciais como 0 do Quebeque, que aqui e tornado numa exigencia.Vma vez mais, nao sei que politicas do estado este facto exigi­ria. 0 que teria 0 estado de fazer para garantir ou mesmo paracome<;ar a garantir a sobrevivencia de todas as minorias queconstituem a sociedade americana? Teria certamente de semovimentar para alem do reconhecimento oficial do valorigual dos diferentes modos de vida. Os varios grupos minorita­rios necessitariam de urn controlo sobre os dinheiros publicos,sobre as escolas segregadas ou parcialmente segregadas, sobreas quotas de emprego que encorajariam as pessoas a regista­rem-se neste ou naquele grupo, e por ai adiante.

Perante semelhante panorama, a minha inc1ina<;ao (e pre­sumo que a de Taylor tambem) seria retroceder para urn libera-

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lismo do primeiro tipo - para nos, nao para toda a gente:Liberalismo 1 escolhido de dentro de urn Liberalismo 2. De den­Iro: isso significa que a escolha nao e governada por urn com­promisso absoluto a urn estado de neutralidade e direitosindividuais - nem pelo profundo desagrado de identidades par­ticularistas (tipo cidadania) que sao comuns entre os liberais doprimeiro tipo. E, ao contrario, governada pela condi~ao social epelas escolhas de vida actuais desles homens e mulheres.

De facto, ern parte escolheria 0 Liberalismo 1, pelo menos,porque penso que os imigrantes de sociedades deste tipo jafizerem a mesma escolha. Eles pretendiam (e ainda pretendem)tomar riScos culturais quando aqui chegaram e deixar as certe­zas do velho modo de vida para tras. Nao ha duvida que hamomentos de angustia e arrependimento quando se apercebemdo que deixaram para tras. Nao obstante, as comunidades quecriaram aqui sao diferentes das que conheciam antes precisa­mente no sentido ern que sao adaptadas e moldadas significati­vamente pela ideia liberal dos direitos individuais. Terfamosque reduzir estes direitos ern maneiras cruciais, muito longe dequalquer coisa exigida na Noruega ou no Quebeque, se f6sse­mos tratar as nossas rninorias como especies ern perigo necessi­tadas de garantia e protec~ao oficiais.

Por esta razao, dentro do Liberalismo 2, pesando os direitosiguais e a sobrevivencia cultural, como Taylor sugere que pode­mos e devemos fazer, eu optaria pelo Liberalismo 1 - aqui, naoern todo 0 lado. Nao vejo qualquer razao pela qual 0 libera­lismo deste tipo nao possa apoiar as escolas nas quais 0 estudoda diversidade, especialmente de todas as diversidades locais,foi adoptado de modo profundamente serio no ensaio deTaylor. De facto, que outro tipo de liberalismo, ou antilibera­lismo, poderia possivelmente fornecer este tipo de apoio, enco­rajando as pessoas a estudar a cultura dos outros antes dofuturo da sua estar garantido?

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SEGUNDA PARTE

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LUTAS PELO RECONHECIMENTONO ESTADO DEMOcRATICO

CONSTITUCIONAL

JORGEN HABERMAS

(traduzido par Shierry Weber Nichol.en)

As constitui<;6es modemas devem a sua existencia a urn con­ceito encontrado na lei natural modema de acordo com 0 qualtodos os cidadaos formam voluntariamente uma comunidadelegal de associados livres e iguais. A constitui<;ao oferece preci­samente os direitos que estes indivfduos devem garantir uns aosoutros se querem ordenar a sua vida juntos recorrendo legitima­mente alei. Este conceito pressup6e a no<;ao de direitos (subjecti­vas) individuais e de pessoas individuais legais enquantosuportes dos direitos. Enquanto a lei modema determina umabase para as rela<;6es sancionadas pelo estado de reconheci­mento intersubjectivo, os direitos delas advindos protegem aintegridade vulneravel dos sujeitos legais que sao em todos oscasos indivfduos. Numa analise final, e uma questao de prote­ger estas pessoas individuais legais, mesmo se a integridade doindivfduo - tanto na lei quanta na moralidade - depende de asrela<;6es do reconhecimento mutuo se manterem intactas.Podera uma teoria dos direitos, que econstrufda tao individua­listicamente, lidar adequadamente com as lutas pelo reconheci­mento nas quais e a articula<;ao e a asser<;ao de identidadescolectivas que parece estar em jogo?

Pode-se pensar na constitui<;ao como urn projecto hist6ricoque cada gera<;ao de cidadaos continua a adoptar. No estadodemocratico constitucional, 0 exercfcio do po<;ier polftico cifra-se

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numa maneira dupla: 0 tratamento institucionalizado dosproblemas e a media~ao de interesses regulada processual­mente devem simultaneamente ser compreensiveis enquantourn sistema de direitos efectivado1. Mas, na arena politica, osque se deparam uns com os outros sao actores colectivoslutando por objectivos colectivos e pela distribui~ao de benscolectivos. Apenas no tribunal e no discurso legal os direitossao vindicados e defendidos como direitos individuais contes­hiveis pelos quais se pode mover uma ac~ao judicial. A leiexistente tambem pode ser interpretada de novas maneiras emdiferentes contextos visando novas necessidades e novos inte­resJies. Esta luta pela interpreta~ao e satisfa~ao das reivindi­ca~6es historicamente nao cumpridas e a luta pelos direitoslegitimos nos quais os actores colectivos estao rnais uma vezenvolvidos, combatendo uma falta de respeito pela sua digni­dade. Nesta «Iuta pelo reconhecimento» as experiencias colecti­vas da integridade violada estao articuladas, como Axel Honnethmostrou2. Poderao estes fen6menos ser reconciliados com umateoria dos direitos que e planeada individualisticamente?

as feitos politicos do liberalismo e da democracia social quesao produto dos movimentos de emancipa~aoburgueses e domovimento trabalhista europeu sugerem uma resposta afirma­tiva a esta questao. Seguramente, ambas as tentativas paraultrapassar a priva~ao de direitos dos grupos desprivilegiadose com isso a divisao da sociedade em classes sociais; mas se areforma social liberal entrou em jogo, a luta contra a opressaode colectividades privadas de oportunidades sociais iguaistomou a forma de luta pela fraternidade universalista dos direi­tos humanos. Desde a bancarrota do estado socialista que estaperspectiva tern sido realmente a tinica que resta: 0 estatuto deurn assalariado dependente deve ser suplementado com direi­tos a uma participa~aosocial e politica, e e dada a. popula~ao aoportunidade de viver com uma expectativa realista de segu-

1 Jiirgen Habermas, Faktizitat lind Gellllng, Suhrkamp, (Frankfurt am M., 1992,cap. 3; trad. ing!. par William Rehq Cambridge, Mass.: MIT Press, 1994).

2 Axel Honneth, Kampf 11m Anerkenlllmg, Suhrkamp, Frankfurt am M., 1992;Trad. ing!. par Joel Andersen (Nova Iorque: Polity Press, 1994).

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ran~a, justi~a social e riqueza. Vma distribui~aomais equitativados bens colectivos seria compensada pelas condi~oes desi­guais da vida nas sociedades capitalistas. Este objectivo e com­pletamente compativel com a teoria dos direitos, porque osbens primarios (no sentido de Rawls) sao ou distribuidos entreos individuos (como 0 dinheiro, tempo livre e servi~os), ou usa­dos pelos individuos (como as infra-estruturas de transporte,saude ou educa~ao),e podem assim tomar a forma de reivindi­ca~oes individuais para beneffcios.

Aprimeira vista, no entanto, as reivindica~oespelo reconhe­cimento das identidades cultur~is e pelos direitos iguais as for­mas culturais da vida sao um assunto diferente. Feministas,minorias nas sociedades multiculturais, pessoas a lutar pelaindependencia nacional, e regioes outrora colonizadas pedindoa igualdade das suas culturas a um mvel intemacional - sao tudolutas correntes por tais reivindica~oes. 0 reconhecimento dasformas culturais da vida e das tradi~6es que foram margina­lizadas, quer num contexto de uma culttira maioritaria quernuma sociedade eurocentrica global, nao exige garantias deestatuto e de sobrevivenc;ia - por outras palavras, um tipo dedireitos colectivos que perturba 0 auto-entendimento desusadodo estado democratico constitucional, que e costurado aosdireitos individuais e e nesse sentido «liberal»?

Na sua contribui~ao para este volume, Charles Taylor da­-nos uma resposta complexa a esta questao, uma resposta queavan~a a questao significativamente3. Como indicam os seuscomentarios do ensaio aqui publicado, as suas ideis primeirastambem inspiram urn criticismo. Taylor permanece ambiguo noponto decisivo. Ele distingue duas leituras do estado democra­tico constitucional, para as quais Michael Walzer fomece os ter­mos Liberalismo 1 e Liberalismo 2. Estas designa~oes sugeremque a segunda leitura, a qual Taylor e favoravel, corrige mera­mente um entendimento desapropriado dos princfpios liberais.No entanto, num exame mais atento, a leitura de Taylor atacaos pr6prios principios e junta a questao a essencia individua­lista da concep~aomoderna de liberdade.

3 Neste volume, pp. 25-73.

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A «POLITICADO RECONHECIMENTO» DE TAYLOR

Amy Gutmann faz questao em frisar 0 ponto irreversivel

que 0 reconhecimento publico completo de cidadilosiguaispode exigir duas formas de respeito: primeiro, respeito pelasidentidades unicas de cada individuo, independentemente dosexo, rara ou etnicidade, e, segundo, respeito pelas actividades,praticas e maneiras de ver 0 mundo que silo particularmentevaliosas para, ou assoCiadas com, os membros de grupos inferio­res, incluindo mulheres, asio-americanos, afro-americanos,americanos nativos, e uma multidilo de outros grupos nosEUN.

o mesmo se aplica, claro, ao Gastarbeiter (trabalhadoresestrangeiros) e outros estrangeiros na Alemanha, aos croatas naServia, russos na Ucriinia, e aos curdos na Turquia; aos invali­dos, homossexuais, e por ai adiante. A exigencia do respeitovisa nao s6 a igualdade das condi~6es de vida, mas tambem aprote~ao da integridade das tradi~6es e formas de vida que osmembros de grupos que foram discriminados podem reconhe­cer-se a si pr6prios. Claro que normalmente 0 erro do reconhe­cimento cultural esta ligado com uma grande discrimina~ao

social, e as duas podem refor~ar-seuma a outra. A questao quenos diz respeito aqui e se a exigencia pelo segundo tipo de res­peito resulta do primeiro, isto e, resulta do principio do respeitoigual para cada individuo, ou se, pelo menos nalguns casos,estas duas exigencias iraQ necessariamente entrar em conflitouma com a outra.

Taylor prossegue com a suposi~ao que a protec~ao das identi­dades colectivas entra em competi~aocom 0 direito as liberda­des individuais (subjectivas) iguais - 0 direito humano originalde Kant - para que, em caso de conflito, uma decisao tenha deser feita em rela~ao ao que tem precedencia sobre 0 outro.

4 Neste volume, p. 8.

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a argumento e 0 seguinte: porque a segunda reivindica~ao

exige a considera~ao precisamente de tais particularidades dasquais a primeira reivindica~aoparece tao abstracta, 0 principiodos direitos iguais tem de ser posta em priitica atraves de doistipos de polftica que van ao encontro um do outro - uma polf­tica de considera~ao pelas diferentes culturas, por um lado, euma polftica para universalizar os direitos individuais, poroutro. Uma e suposta compensar 0 pre~o que a outra exige como seu universalismo igualitario. Taylor escreve sobre esta oposi­~ao - uma oposi~ao que e falsamente construida, como tentareimostrar - usando os conceitos Hom e justo, retirados da teoriada moral. as liberais como Rawls e Dworkin apelam para umaordem legal eticamente neutral que supostamente iria assegu­rar a todas as pessoas uma oportunidade igual de adoptar asua pr6pria concep~ao do bom. Ao contrario, os comunitarioscomo Taylor e Walzer discutem a neutralidade etica da lei e,deste modo, esperam que 0 estado constitucional, se necessario,avance activamente concep~6esespecificas sobre a vida boa.

Taylor da 0 exemplo da minoria dos falantes de lingua fran­cesa que forma a maioria da provincia canadiana no Quebeque.a grupo franc6fono reivindica 0 direito do Quebeque de formaruma «sociedade distinta» dentro de uma na~ao como um todo.Quer-se salvaguardar a integridade da sua forma contra a cul­tura anglo-sax6nica maioritaria pelo recurso, entre outras coisas,a regulamentos que proibem os imigrantes e a popula~ao fran­cesa de enviar os seus filhos para escolas de lingua inglesa, quedeterminam 0 frances como a lfngua em que empresas com maisde cinquenta empregados van funcionar, e que no geral aconse­lham 0 frances como a lfngua do mundo comercial. De acordocom Taylor, uma teoria dos direitos do primeiro tipo fechar-se-ianecessariamente a objectivos colectivos deste tipo:

Uma sociedade com objeetivos eoleetivos como a do Quebequeviola este modelo... Neste modelo, existe uma negligencia peri­gosa de urn limite essencial quando se fala de direitos funda­mentais de eoisas como a signage eomercial na linguagem danossa eseolha. Temos de distinguir as liberdades fundamen­tais, aquelas que nunea devem ser infringidas e, par eonse­guinte, deviam ser incontestavelmente defendidas, par um

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lado, de privilegios e imunidades que silo importantes, masque podem ser revogados au restringidos par razoes de politicapublica - embora precisassemos de uma forte razilo para fazeristo - par outro lados.

Taylor prop6e um modelo altemativo que sob determinadascondi~6es permitiria aos direitos basicos serem restringidos porgarantias de estatuto visando a promo~ao da sobrevivencia deformas de vida culturais em perigo, e assim permitiria as politi­cas que "procuram adivamente criar membros da comunidade,por exemplo, que assegurem que as futuras gera~6es continua­rao a identificar-se como os falantes de lingua francesa. Nao haqualquer maneira de estas politicas serem vistas como forne­cendo apenas uma facilidade as pessoas ja existentes,,6.

Taylor torna possivel esta sua tese de incompatibilidade aoapresentar a teoria dos direitos na leitura selectiva do Libe­ralismo 1. Nao define claramente quer 0 exemplo canadianoquer a referencia legal desta problematica. Antes de levantarestes dois problemas, gostaria de mostrar que, quando compreen­dida apropriadamente, a teoria dos direitos nao e de todo cegaas diferen~as culturais.

Taylor compreende 0 Liberalismo 1 como a teoria segundo aqua! se garante a todos os membros legais liberdades indivi­duais iguais de escolha e ac~ao na forma de direitos basicos. Emcaso de conflito, 0 tribunal decide a quem pertencem determi­nados direitos; deste modo, 0 principio do respeito igual paratodas as pessoas e valido apenas na forma de uma autonomialegalmente protegida que todas as pessoas podem usar pararealizarem 0 seu projecto de vida pessoal. Esta interpreta~ao dosistema de direitos e paternalista no sentido em que ignorametade do conceito de autonomia. Nao considera 0 facto deaqueles a quem a lei se dirige poderem adquirir autonomia (nosentido kantiano) apenas na medida em que se podem compreen­der a si pr6prios como autores das leis perante as quais sao

5 ct. Taylor. neste volume, pp. 58-59.6 Neste volume, pp. 58-59.

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sujeitos enquanto pessoas legais privadas. 0 Liberalismo 1falha em reconhecer que as autonomias privada e publica saoequiprimordiais. Nao e uma questao da autonomia publicasuplementar permanecer extema a autonomia privada, mas, emvez disso, de natureza interna, isto e, de uma ligac;ao necessariaconceptualmente entre elas. Pois, na analise final, as pessoaslegais privadas nao podem sequer alcanc;ar 0 prazer das liberda­des individuais iguais a nao ser que elas pr6prias, ao exerceremconjuntamente a sua autonomia enquanto cidadaos, cheguem aurn claro entendimento sobre quais os interesses e criterios justi­ficados e de que maneira aE; coisas iguais serao tratadas igual­mente e as coisas desiguais serao tratadas desigualmente emqualquer caso particular.

Assim que considerarmos seriamente esta ligac;ao internaentre a democracia e 0 estado constitucional, torna-se claro queo sistema de direitos nao e cego em relac;ao as condic;6es sociaisdesiguais nem as diferenc;as culturais. 0 daltonismo da leituraselectiva desvanece-se assim que concedermos aos apoiantesdos direitos individuais uma identidade que e concebida inter­subjectivamente. As pessoas, assim como as pessoas legais tam­bern, tornam-se individualizadas apenas atraves de urn pocessode socializac;ao.7 Vma teoria dos direitos correctamente enten­dida exige uma polftica do reconhecimento que proteja a inte­gridade do indivfduo nos contextos da vida nos quais a suaidentidade se forma. Isto nao exige urn modelo alternativo quecorrija 0 projecto individualista do sistema de direitos atravesde outras perspectivas normativas. Tudo 0 que e exigido e aactualizac;ao consistente do sistema de direitos. Haveria poucaverosimilhanc;a, claro, sem movimentos sociais e lutas polfticas.Vemos isto na hist6ria do feminismo, que teve de fazer repeti­das tentativas para realizar os seus objectivos legais e polfticosenfrentando uma forte resistencia.

Tal como 0 desenvolvimento da lei nas sociedades ociden­tais em geral, a polftica feminista da igualdade durante os ulti-

7 Jiirgen Habermas, «Individuation through Socialization», in PostmetapllysiralThinking; trad. ing!. por William Mark Hohengarten (Cambridge, Mass.: MITPress, 1992), pp. 149-204.

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mos cern anos segue urn modelo que pode ser descrito comouma dialectica da igualdade de jure e de facto. A igualdadeperante a lei garante liberdades de escolha e acc;ao que podemser usadas diferentemente e, desse modo, nao promovem aigualdade actual nas circunstancias da vida ou nas posic;6es depoder. Mas, por urn lado, se os pre-requisitos factuais para aoportunidade igual fazer usa da competencia legal igualmentedistribufda nao estao preenchidos, 0 significado normativo daigualdade legal tornar-se-a no oposto. Por outro lado, a igual­dade pretendida das circunstancias actuais da vida e das posic;6es

, de poder nao cleve conduzir a intervenC;6es «normalizadoras»que restringem perceptivelmente as capacidades dos presumf­veis beneficiarios de moldarem as suas vidas autonomamente.Desde que as polfticas ponham em foco a salvaguarda da auto­nomia polftica, enquanto a ligac;ao interna entre os direitosindividuais das pessoas privadas e a autonomia publica doscidadaos que participam na realizac;ao das leis for obscura, apolftica dos direitos ira oscilar desamparadamente entre ospalos de urn paradigma liberal no sentido lockeano e urn para­digma do bem-estar social igualmente limitado. Isto e a ver­dade do tratamento igual para os homens e para as mulheres8.

Inicialmente, 0 objectivo das polfticas liberais era desligar aaquisic;ao do estatuto do genero e garantir as mulheres oportu­nidades iguais de competir por empregos, posic;6es sociais,educac;ao, poder politico, e por af adiante, independentementedos resultados. Mas a igualdade formal que foi parcialmentealcanc;ada apenas fez 0 tratamento desigual das mulheres defacto mais abvio. As politicas do bem-estar social, especial­mente nas areas da lei social, laboral e familiar, respondem aisto com regulamentos especiais relativamente a gravidez,a maternidade, e as obrigac;6es sociais do div6rcio. Desde af,claro, nao s6 as exigencias liberais nao realizadas mas tambemas consequencias ambivalentes dos programas do bem-estarsocial implementadas com exito se tornaram 0 objecto do criti­cismo feminista - por exemplo, os elevados riscos de emprego

8 Deborah L. Rhode, JI/stice and Gender (Cambridge, Mass.: Harvard UniversityPress, 1989), parte 1.

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que as mulheres sofrem como resultado destas compensa~6es,aexagerada representa~aodas mulheres nos grupos dos salariosmais baixos, a no~ao problemMica de «bem-estar da crian~a», acrescente «feminiza~ao» da pobreza em geral, e por af adiante.Do ponto de vista legal, existe uma base estrutural para esta dis­crimina~ao produzida reflexivamente, nomeadamente, as classi­fica~6es demasiado generalizadas das situa~6es desvantajosas edos grupos em desfavoraveis. Estas classifica~6es «falsas» con­duzem a interven~es «normalizadoras» no modo como as pes­soas levam a sua vida, com 0 resultado que as compensa~6es

pretendidas se tornam novas formas de discrimina~ao, e, emvez de serem garantidas liberdades, as pessoas sao privadas deliberdade. Nos dominios da lei que diz respeito particularmenteao feminismo, 0 paternalismo do bem-estar social e precisa­mente esse, porque a legisla~ao e a adjudica~ao sao orientadaspor modelos tradicionais de interpreta~ao e assim servem ape­nas para refor~aros estere6tipos de genero existentes.

A classifica~ao dos papeis sexuais e das diferen~as depen­dentes do genero toea fundamentalmente os nfveis do auto­-entendimento cultural de uma sociedade. 0 feminismo radicals6 agora esta a tornar-nos conscientes da natureza falfvel desteauto-entendimento, que e fundamentalmente debativel e seencontra carente de uma revisao. 0 feminismo radical insistecorrectamente que a relevancia das diferen~as nas experienciase nas circunstancias da vida dos (grupos especfficos de)homens e das mulheres relativamente a oportunidade igual deexercerem liberdades individuais deve ser discutida na esferapolftica publica, em debates publicos sobre a interpreta~ao

apropriada das necessidades9 . Consequentemente, esta lutapela igualdade das mulheres e uma ilustra~ao particularmenteboa da necessidade de uma mudan~a no entendimento para­digmMico dos direitos. A discussao sobre se a autonomia daspessoas legais e melhor assegurada atraves de uma liberdade

" individual das pessoas privadas competirem, ou atraves de rei­vindica~6es objectivamente garantidas de beneficios para elien-

9 Nancy Fraser, «Struggle over Needs», in Ullmly Practices (Minneapolis:University of Minnesota Press. 1989), pp. 144-160.

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tes das burocracias do estado de bem-estar, esta a ser substituidopor uma concep~ao processualista dos direitos, de acordo coma qual 0 processo democratico tem de salvaguardar simultanea­mente as autonomias privada e publica. Os direitos individuaisque supostamente devem garantir as mulheres a autonomia demoldar as suas vidas privadas nao pode sequer ser apropriada­mente formulada a nao ser que as afectados afirmem e jus­tifiquem numa discussao publica 0 que e relevante para 0

tratamento iglial ou desigual em casos tipicos. A defesa da auto­nomia privada dos cidadaos com direitos iguais deve caminharlado a lado com a activa~ao das suas autonomias enquanto cida­daos de uma na~ao.

Vma versao «liberal» do sistema de direitos que falha emlevar em conta esta liga~ao ira necessariamente interpretar malo universalismo dos direitos basicos como um nivelamento abs­tracto das distin~6es,um nivelamento das diferen~asculturais esociais. Contrariamente, estas diferen~as tem de ser vistas emmodos crescentemente contexto-sensitivos se 0 sistema dedireitos for actualizado democraticamente. 0 processo de uni­versalizar os direitos civis continua a abastecer a diferencia~ao

do sistema legal, que nao pode ser assegurar a integridade dossujeitos legais sem um tratamento exactamente igual dos con­textos da vida que salvaguardam as suas identidades, dirigidopelos proprios cidadaos. Se a leitura selectiva da teoria dosdireitos ecorrigida de modo a induir um entendimento demo­cratico da actualiza~ao dos direitos basicos, nao ha qualquernecessidade de contrastar um Liberalismo 1 incompleto comurn modelo que introduz a no~ao de direitos colectivos que eestranha ao sistema.

LUTAS PELO RECONHECIMENTO:OS FENOMENOS E OS NlvEIS DA SUA ANALISE

o feminismo, a multiculturalismo, 0 nacionalismo e a lutacontra a heran~a eurocentrica do colonialismo sao fenomenosrelacionados que nao devem ser confundidos uns com osoutros. Relacionam-se no sentido em que as mulheres, as mino-

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rias etnicas e culturais, as na~6es e as culturas se defendem con­tra a opressao, a marginaliza~ao e 0 desrespeito, e assim lutampelo reconhecimento das identidades colectivas, quer no con­texto de uma cultura maioritaria quer dentro da comunidadedos povos. Aqui interessam-nos os movimentos de liberta~ao

cujos objectivos politicos colectivos sao definidos primeira­mente em termos de cultura, ainda que as desigualdades soci­ais e econ6micas assim come as dependencias politicas estejamsempre envolvidas.

a) 0 feminismo nao e uma causa minoritaria, mas e dirigidocontra uma cultura dominante que interpreta a rela~ao dossexos de uma maneira assimetral que exclui os direitos iguais.As diferen~as espedficas do genera nas circunstancias da vidae nas experiencias nao recebem uma considera,ao adequada,legal ou informalmente. 0 auto-entendimento cultural dasmulheres nao se da devido ao reconhecimento, nao mais doque a sua contribui~aopara a cultura comum; dadas as defini­,6es prevalecentes, as necessidades das mulheres nem sequerpodem ser afirmadas adequadamente. Assim, a luta pelo reco­nhecimento come,a como uma luta sobre a interpreta~ao dosfeitos e interesses espedficos do genera. Na medida em quetem exito, muda a rela~ao entre os sexos juntamente com aidentidade colectiva das mulheres, afectando assim directa­mente 0 auto-entendimento dos homens. A escala dos valoresda sociedade enquanto um todo esta em discussao; as conse­quencias desta prablematiza~aoestendem-se ate a essencia dasareas privadas e afectam os limites estabelecidos entre as esferasprivada e pliblicalO.

b) A luta das minorias etnicas e culturais oprimidas pelo reco­nhecimento das suas identidades culturais e um assunto dife­rente. Ja que estes movimentos de liberta~ao tambem visamultrapassar a divisao ilegftima da sociedade, 0 auto-entendi­mento da cultura maioritaria nao pode permanecer intocavel.

'Mas do ponto de vista dos membras da cultura maioritaria, arevista interpreta~aodos feitos e interesses dos outros nao

10 Sey!a Benhabib, Situating the Self (Nova Iorque: Riutledge, 1992), parte 2.

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altera necessariamente 0 seu pr6prio papel da mesma maneiraque a reinterpre}a<;ao das rela<;6es entre os sexos altera 0 papeldos homens.

Os movimentos de liberta<;ao nas sociedades multiculturaisnao sao um fen6meno uniforme. Eles apresentam desafios dife­rentes dependendo se e uma questao das minorias end6genastomarem consciencia da sua identidade ou das novas minoriassurgirem atraves da imigra<;ao, e dependendo se as na<;6es queenfrentam 0 desafio sempre entenderam ser paises abertos itimigra<;ao pela razao da sua hist6ria e cultura polftica ou se 0

auto-entendimento nacional precisa primeiramente de ser ajus­tado de modo a acomodar a integra<;ao das culturas estrangei­ras. 0 desafio torna-se maior, quanta mais profundas sao asdiferen<;as religiosas, raciais ou etnicas ou as disjun<;6es hist6­rico-culturais a ser construidas. 0 desafio torna-se mais ator­mentador, quanto mais as tendencias das nossas pr6priasasser<;6es tomam um caracter fundamentalista e separatista,quer seja porque as experiencias de impotencia conduzem aminoria que luta pelo reconhecimento a tomar uma posi<;aoregressiva ou porque a minoria em questao tem de mobilizar asmassas para acordar as consciencias de modo a firmar umaidentidade novamente construida.

c) Isto difere do nacionalismo dos povos que se veem comogrupos etnica e linguisticamente homogeneos contra todo umbackground de destino hist6rico comum e que querem protegera sua identidade nao s6 enquanto comunidade etnica comotambem enquanto um povo que constitui uma na<;ao com capa­cidade de ac<;ao polftica. Os movimentos nacionalistas modela­ram-se quase sempre no estado republicano que emergiu daRevolu<;ao Francesa. Comparadas com a primeira gera<;ao de esta­dos, a Italia e a Alemanha eram «na<;6es atrasadas». 0 perfodo dedescoloniza<;ao depois da Segunda Guerra Mundial representacontudo outro contexto. E as reuni6es do colapso dos Imperioscomo 0 Imperio Ottomano, 0 Imperio Austro-Htingaro ou aUniao Sovietica eram contudo diferentes. A situa<;ao das mino­rias nacionais como os bascos, os curdos, ou os irlandeses doNorte, que emergem no curso da forma<;ao dos estados, e nova­mente diferente. E a funda<;ao do estado de Israel e um caso

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especial, que emerge de um movimento nacional-religioso e oshorrores de Auschwitz, no mandato britanico da Palestina, quee reivindicada pelos arabes.

d) 0 eurocentrismo e a hegemonia da cultura oeidental sao emultima analise lemas na luta pelo reconhecimento a um nfvelinternacional. A Guerra do Golfo tornou-nos conscientes nesteponto. Sobre a sombra de uma hist6ria colonial que ainda estaviva nas mem6rias das pessoas, a interven~ao aliada foi enca­rada pelas massas religiosamente motivadas e pelos intelec­tuais secularizados como uma falha em respeitar a identidade ea autonomia do mundo arabe-islamico. A rela~ao hist6ricaentre 0 Ocidente e 0 Oriente, e especialmente a rela~ao doPrimeiro com 0 ultimo Terceiro Mundo, continua a suportar asmarcas de uma nega~aodo reconhecimento.

Mesmo esta classifica~ao superficial dos fen6menos per­mite-nos colocar a luta constitucional entre 0 governo canadianoe 0 Quebeque na fronteira entre (b) e (e). Abaixo do limiar deum movimento separatista para encontrar 0 seu pr6prioestado, e 6bvio que a minoria de expressao francesa esta alutar por direitos que os acordariam como um facto natural sese declarassem uma na~ao independente - como fizeramrecentemente a Croacia, a Eslovenia e a Eslovaquia, os esta­dos bal ticos e a Ge6rgia. Mas eles aspiram tomar-se num«estado dentro de urn estado», algo para 0 qual esta disponf­vel urn espectro estrangeiro de constru~6es federalistas, va­riando de urn estado federal ate uma confedera~ao livre. NoCanada, a descentraliza~ao dos poderes soberanos do estadoesta ligada a questao da autonomia cultural para uma mino­ria que gostaria de se tomar na maioria dentro da sua pr6­pria casa. Por seu turno, iriam surgir novas minorias, claro,com uma mudan~a na complexidade da cultura maioritaria.Alem de distinguir os fen6menos acima catalogados, temosde distinguir diferentes nfveis na sua analise. As observa~6es

de Taylor tocam pelo menos tres raciocfnios levantados porestes fen6menos.

e) No debate sobre a precisao polftiea, estes fen6menosserviram de ocasiao para os intelectuais americanos se lan~a­

rem num processo de auto-reflexao sobre 0 estado da moderni-

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dadell . Nenhuma das duas partes do debate quer adoptar 0

projecto da modernidade nos seus pr6prios termos, como umprojecto que nao deveria ser abandonado12. 0 que os «radicais»veem como um passo encorajador para a p6s-modernidade efavonivel ao ultrapassar das figuras do pensamento totalizado­ras e para os <<tradicionalistas» 0 sinal de uma crise com a qualse pode lidar apenas atraves de um retorno as tradi~oes classi­cas do Ocidente. Podemos deixar de lado este debate, ja quepouco contribui para uma analise das lutas pelo reconheci­mento no estado democratico constitucional e nao contribuinada para as suas resolu~oespoliticas13.

j) Os raciocfnios mais estritamente filos6ficos que tomam estesfen6menos como um ponto de partida ao descreverem os pro­blemas gerais estao num nivel diferente. Os fen6menos estaobem adaptados para ilustrarem as dificuldades do entendi­mento intercultural. Eles demonstram a rela~ao da moralidadena vida etica (Sittlichkeit) ou a ligac;ao interna entre 0 signifi­cado e a validade, e fornecem um novo abastecimento para avelha questao se emesmo possivel passar 0 contexto da nossapr6pria linguagem e cultura ou se todos os modelos de raciona­lidade permanecem ligados com as opinioes mundiais esped­ficas e tradic;oes. A evidencia opressiva da fragmenta~ao dassociedades multiculturais e a confusao babil6nica de linguasnuma sociedade global demasiado complexa parece impelir-nos

11 Paul Berman, ed., Debating P.e. (Nova [orque: Dell, 1992); ver tambemJ. Searle, «Storm over the University», no mesma volume, pp. 85-123.

12Jiirgen Habermas, The Philosophical Discourse of Modernity, trad. parFrederick Lawrence (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1987).

13 Como Amy Gutmann observa sobre 0 metoda desconstrucionista: «Esteargumento reducionista sabre as padroes intelectuais e frequentementefeita em nome de grupos que sao sub-representados na universidade e des­privilegiados na sociedade, mas ediffcil ver como podem servir de ajuda.a argumento e autodestrutivo, quer 16gica quer praticamente. Pela sua16gica interna, 0 desconstrucionismo nada mais tern a dizer aopiniao queas padroes intelectuais sao mascaras para a vontade de poder politico 'e quereflecte tambem a vontade de poder dos desconstrucionistas. Mas entao porque nos preocupamos com a vida intelectual, que nao e 0 mais rapido, 0

mais seguro, ou mesmo 0 mais satisfat6rio caminho para 0 poder politico,se e do poder politico que andamos atras?» (este volume, pp. 18-19).

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para concep~oes holicistas de linguagem e concep~oes contex­tualistas de opinioes mundiais que nos tornam cepticos emrela~ao as reivindica~oes universalistas, sejam cognitivas ounormativas. 0 debate complexo e indeterminado sobre a racio­nalidade tambem tem implica~oes, claro, para os conceitos debem e de justi~a com os quais funcionamos quando examina­mos as condi~oes de uma «politica do reconhecimento». Mas '\proposta de Taylor tem uma referencia diferente que reside aonivel da lei e da politica.

g) A questao dos direitos das minorias ofendidas e oprimi­das levanta um sentido legal quando colocada nestes termos.As decisoes politicas devem fazer uso da forma reguladora dalei positiva efectiva nas sociedades complexas. No entanto, nomeio-termo da lei, estamos a lidar com uma estrutura artificialcom algumas pressuposi~oesnormativas. A lei moderna eformal, porque depende da premissa que tudo 0 que nao eexplicitamente proibido e permitido. E individualista, porquetorna a pessoa individual no suporte dos direitos. E coerciva,porque e sancionada pelo estado e aplica-se somente ao com­portamento legal ou de acordo com a regra - permite a praticada religiao mas nao pode prescrever opinioes religiosas. E leipositiva, porque deriva das decisoes (modificaveis) da legisla­tura politica; e finalmente, e uma lei aprovada processualmente,porque e legitimada por um processo democratico. A lei posi­tiva exige um comportamento puramente legal, mas tem de serlegitimo; embora nao apresente os motivos para a obediencia alei, deve ser tal que os seus destinatarios podem sempre obe­dece-la fora do respeito pela lei. Uma ordem legal e legitimaquando salvaguarda a autonomia de todos os cidadaos a umnivel igual. Os cidadaos sao autonomos apenas se os dirigentesda lei tambem se puderem ver como os seus autores. E os seusautores sao livres apenas enquanto participantes em processoslegislativos que sao regulados de tal maneira e tomam lugar emformas de comunica~aotais que todas as pessoas podem presu­mir que os regulamentos aprovado~ dessa maneira merecemuma aprova~ao motivada geral e racionalmente. Em termosnormativos, nao ha nada tao semelhante como um estado cons­titucional sem democracia. Por outro lado, 0 proprio pro-

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cesso democratico tern de ser legalmente institucionalizado, 0

principio da soberania popular exige os direitos fundamentaissem os quais nao pode mesmo haver uma lei legitima; antes detudo, 0 direito it liberdade de escolha e de ac<;ao individualiguais, que, por seu tumo, pressupoe uma compreensiva prote­<;ao legal dos individuos.

Assim que tratarmos urn problema como urn problemalegal, trazemos it cena uma concep<;ao da lei modema que nosfor<;a - apenas em fundamentos conceptuais - a funcionar comas directivas do estado constitucional e com a sua prosperidadede pressuposi<;oes. Isto tern implica<;oes no modo como lidamoscom 0 problema de assegurar direitos legais iguais e reconheci­mento igual para os grupos definidos cuituralmente, isto e,colectividades que se distinguem de outras colectividades porrazoes de tradi<;ao, formas de vida, oripens etnicas, e por aiadiante - e cujos membros querem ser distinguidos de todas asoutras colectividades de modo a manterem e a desenvolveremas suas identidades.

A ETICA PERMEIA 0 ESTADO CONSTITUCIONAL

Do ponto de vista da teoria legal, a questao inicial que 0 mul­ticulturalismo levanta e a questao da neutralidade etica da lei eda politica. Por «etica» quero dizer todas as questoes relaciona­das com as concep<;oes de vida boa, ou uma vida que nao eesbanjada. As questoes eticas nao podem ser avaliadas do«ponto de vista morab se algo «e igualmente born para todos»;em vez disso, 0 julgamento imparcial de semelhantes questoes ebaseado em fortes avalia<;oes e deterrninado pelo auto-entendi­mento e pelos projectos de vida de grupos especificos, isto e,pelo que e, do seu ponto de vista, «born para nos», consideradastodas as coisas. A referencia da primeira pessoa e, por esta razao,a rela<;ao com a identidade de urn grupo (ou com urn individuo)e gramaticalmente inserida nas questoes eticas. Usarei 0 exemploda discussao constitucional canadiana para observar a exigencialiberal da neutralidade etica da lei relativamente ao auto-enten­dimento etico-politico de uma na<;ao de cidadaos.

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A neutralidade da lei - e do processo democnitico de decre­tar leis - e algumas vezes vista como pretendendo que as ques­t6es polfticas de natureza etica devessem ser manlidas fora dosprogramas e fora da discussao por «regras falsas» porque naosao susceptiveis de urn regulamento legal imparcial. Peranteesta opiniao, no sentido do Liberalismo 1, nao deve ser permi­lido ao estado adoptar quaisquer objectivos coleclivos alem dagarantia de liberdade pessoal, 0 bem-estar e a seguran~a dosseus cidadaos. 0 modelo alternativo (no sentido do Libe­ralismo 2), ao contnirio, espera que 0 estado garanta estes direi­tos fundamentais em geral mas que alem disso intervenhatambem em nome da sobrevivencia e do avan~o de «umana~ao, cultura, religiao especificas ou urn grupo (limitado) dena~6es, culturas e religi6es», na formula~aode Michael Walzer.Walier tarhbem encara este· modelo como fundamental; noentanto, deixa espa~o aos cidadaos para escolher dar priori­dade aos direitos individuais sob determinadas circunstancias.Walzer partilha a premissa de Taylor que os conflitos entreestas duas orienta~6es normativas fundamentais sao bastanteposslveis e que em muitos casos apenas 0 Liberalismo 2 per­mite dar precedencia aos objeclivos e identidades colectivas. Defacto, a teoria dos direitos defende a absoluta precedencia dosdireitos sobre os bens colectivos, de modo a que os argumentossobre os objectivos, como Dworkin mostm, possam apenas«triunfar» em reivindica~6esbaseadas nos direitos individuaisse estes objeclivos puderem, por seu turno, ser justificados a luzde oulros direitos que tern precedencia14. Mas apenas isto nao esuficiente para apoiar a opiniao comunitaria, partilhada porTaylor e Walzer, de que 0 sistema de direitos e cego as reivindi­ca~6es para a protec~ao de fOrrhas culturais de vida e de jdenli­dades coleclivas e esta assim a «nivelar» e necessita de revisao.

Usei anteriormente 0 exemplo da polftica feminista daigualdade para frisar um ponto geral, nomeadamente, que aelabora~ao democratica de urn sistema de djreitos tern de

14 Ronald Dworkin, Taking Rules Seriol/sly (Cambridge, Mass.: HarvardUniversity Press, 1977).

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incorporar nao s6 objectivos politicos gerais, mas tambemobjectivos colectivos que sao confirmados nas lutas pelo reco­nhecimento. Pois distinguindo-se das normas mora is queregulam possfveis interllc~oes entre os sujeitos da ac~ao e dafala em geral, as normas legais derivam das decisoes de urncorpo local de elabora~ao de leis e aplicam-se dentro de umaarea geografica espedfica do estado a uma colectividade demembros do estado socialmente delimitada. Dentro desta berndefinida esfera de validade, as normas legais colocam as deci­soes polfticas com as quais uma sociedade organizada actuacomo urn estado na forma de programas ligados colectiva­mente. Seguramente nao e permitido aos objectivos colectivosdissolverem a estrutura da lei. Pode nao destruir a forma da leicomo tal e, por isso, negue a diferen~a entre lei e polftica. Masesta inerente na natureza concreta dos assuntos a ser reguladosque no meio da lei - oposto amoralidade - 0 processo de esta­belecer regras normativas para modos de comportamento estaaberto a influencias atraves dos objectivos polfticos da socie­dade. Por esta razao, todo 0 sistema legal e assim a expressaode uma forma de vida espedfica e nao somente a reflexao dasatisfa~ao universal dos direitos basicos. Naturalmente, asdecisoes legislativas devem ser entendidas como a actualiza­~ao do sistema de direitos, e a polftica deve ser entendidacomo a elabora~ao desse sistema; mas mais concretamente, 0

auto-entendimento de uma colectividade e a sua forma devida (assim como a balan~a entre os interesses dos gruposcompetitivos e uma escolha informal entre fins alternativos erecursos) sao apresentados na aceitabilidade do modo comoo assunto e legalmente regulado. Vemos isto no largo espectrode razoes que entram no processo racional atraves do qual aopiniao e a vontade do legislador se formam: juntamente comas considera~oesmorais e os resultados das negocia~oesjustas,as razoes eticas tambem entram nas delibera~oese justifica~oes

das decisoes legislativas.Na medida em que 0 molde da opiniao e vontade polftica

dos cidadaos e orientado pela ideia da actualiza~aodos direitos,nao pode, como sugerem os comunitarios, ser igualizado aoprocesso atraves do qual os cidadaos entram em acordo sobre 0

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seu auto-entendimento etico-politicoI5. Mas 0 processo de actua­liza<;ao de direitos esta de facto embutido em contextos queexigem semelhantes discursos~comouma componente impor­tante da politica - discuss6es sobre uma concep<;ao partilhadado bem e uma forma de vida desejada que se reconhece comoautentica. Em tais discuss6es, os participantes clarificam 0

modo como eles se encaram como cidadaos de uma republicaespedfica, como habitantes de uma regiao espedfica, como her­deiros de uma cultura espedfica, quais as tradi<;6es que queremperpetuar e quais querem suspender, como querem lidar com asua historia, uns com os outros, com a natureza, e por ai adiante.E claro que a escolha de uma lingua oficial ou de uma decisaosobre ocurrfculo das escolas publicas afecta 0 auto-entendi­mento etico de uma na<;ao. Porque as decis6es etico-politicas saouma parte inevitavel da politica, e porque 0 seu regulamentolegal expressa a identidade colectiva de uma na<;ao de cidadaos,eles podem entusiasmar as batalhas culturais nas quais as minD­rias desrespeitadas lutam contra uma maioria cultural insensi­vel. 0 que se destaca nas batalhas nao e a neutralidade etica daordem legal, mas sim 0 facto de que toda a comunidade legal etodo 0 processo democratico para a actualiza<;ao dos direitosbasicos e inevitavelmente permitido pela etica. Vemos uma evi­dencia disto, por exemplo, nas garantias institucionais gozadaspelas igrejas cristas em paises como a Alemanha - apesar daliberdade de religiao - ou nas recentemente desafiadas garantiasconstitucionais do estado que acordaram em rela<;ao a familiaem distin<;ao de formas de casamento.

Neste contexto e interessante notar que, empirica e normati­vamente, ambas as decis6es dependem da composi<;ao doscidadaos do estado, algo que e contigente. A composi<;ao socialda popula<;ao de um estado e 0 resultado de circunstancias his­tMicas extrfnsecas ao sistema de direitos e de prindpios doestado constitucional. Determina a totalidade das pessoas quevivem juntas num territorio e estao ligadas pela constitui<;ao,isto e, pela decisao dos pais fundadores para orientarem as

15 Ronald Beiner, Political Judgment (Chicago: University of Chicago Press,1984), p, 138,

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suas vidas unidas legitimamente pelos recursos da lei positiva;os seus descendentes concordaram implicitamente (e explicita­mente como cidadaos naturalizados) continuar a adoptar umprojecto constitucional preexistente. Atraves do seu processo desocializa~ao,no entanto, as pessoas que compoem um estadonum determiriado tempo tambem incorporam as formas devida culturais nas quais desenvolveram as suas identidades ­mesmo se se tivessem separado das tradi~oes das suas origens.Eles formam os pontos nodais numa rede ascriptiva de culturase tradi~oes, de contextos de vida e de experiencia intersubjectiva­mente partilhados. E esta rede tambem forma 0 harizonte dentrodo qual os cidadaos da na~ao, querendo ou nao, conduzem osdiscursos etico-politicos nos quais tentam chegar a acordo sobreo seu pr6prio auto-entendimento. Se a popula~ao como um todomuda, 0 horizonte mudara tambem; manter-se-ao outros discur­sos sobre as mesmas questoes e serao tomadas outras decisoes.As minorias nacionais estao pelo menos intuitivamente conscien­tes disto, e e um motivo importante para a exigencia do seu pr6­prio estado, ou, como no caso do esbo~o da constitui~aoMeechLake, para a exigencia do reconhecimento de uma «sociedadedistinta». Se a minoria franc6fona no Canada se constituisse comouma comunidade legal, farmaria outras maiorias em importantesquestoes etico-politicas atraves dos mesmos processos democrati­cos e chegaria a decisoes regulamentares diferentes daquelas aque 0 todo dos canadianos tinham entretanto chegado16.

Como a hist6ria da forma~ao dos estados mostra, os novoslimites nacionais dao inicio a novas minorias nacionais. 0 pro­blema nao desaparece, excepto ao pre~o de <<lavagens etnicas» ­um pre~o que nao se justifica politica ou moralmente. A natu­reza de dois gumes do «direito» it auto-determina~ao nacional eclaramente demonstrado no caso dos curdos, que estao espa­Ihados por tres paises diferentes, ou no ca'so da B6snia­-Herzegovina, onde grupos etnicos lutam uns contra os outrossem miseric6rdia. Por um lado, uma colectividade que pensaem si pr6pria como uma comunidade com a sua pr6pria identi­dade atinge um novo nivel de reconhecimento ao dar 0 passo

16 Peter Alter, Nationalism (Nova Iorque: Routledge, 1989),

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para se tornar numa na~ij,o no seu proprio direito. Nao podeatingir este nivel enquanto comunidade etnica e pre-politica lin­guisticamente, ou mesmo enquanto uma «na~ao cultural» incor­porada ou fragmentada. A necessidade de reconhecimentoenquanto estado intensifica-se em tempos de crise, quando apopula~ao se apega aos signos ascriptivos de uma identidadecolectiva regressivamente revitalizada, como por exemplo depoisda dissolu~ao do imperio sovietico. Este tipo de apoio propoeuma compensa~aodubia para medos bem fundamentados sobreo futuro e a falta de estabilidade social. Por outro lado, a inde­pendencia social obtem-se muitas vezes apenas ao pre~o deguerras civis, novos tipos de repressao, ou problemas resultantesque perpetuam os conflitos iniciais com os sinais revertidos.

A situa~ao no Canada e diferente, onde se estao a fazer esfor­~os razoaveis para encontrar uma solu~ao federalista que deixetoda a na~ao intacta, mas tentara salvaguadar a autonomiacultural de uma parte, descentralizando os poderes do estado.Oeste modo, 0 numero de cidadaos que participam no processodemocratico em areas politicas especificas ira mudar, mas nao osprincipios desse processo. Pois a teoria dos direitos nao proibede modo algum os cidadaos de um estado democratico constitu­cional de confirmarem uma concep~ao do bem na sua ordemlegal geral, uma concep~ao que ou ja partilha ou acabou porconcordar atraves da discussao politica. No entanto, proibe-osde privilegiar uma forma de vida acusta de outros membros dana~ao. Nas versoes federais do estado da na~ao, isto e verdadequer ao mvel federal quer ao myel estatal. Se nao estou em erro,no Canada 0 debate nao e sobre este principio dos direitos iguaismas sobre a natureza e 0 limite dos poderes do estado que deve­riam ser transferidos para a provincia do Quebeque.

A COEXISTENCIA DOS DIREITOS IGUAISVERSUS A PRESERVA<;Ao DAS ESPECIES

A federaliza~ao e uma solu~ao possivel apenas quando osmembros de grupos etnicos e mundos culturais diferentesvivem em areas geograficas mais ou menos separadas. Em socie-

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dades multiculturais como os EVA nao e esse 0 caso. Nem seraem pafses como a Alemanha, onde a composi~ao etnica esta amudar sob a pressao de ondas de migra~aoglobais. Mesmo queo Quebeque se tomasse culturalmente aut6nomo, deparar-se-iacom a mesma situa~ao, tendo apenas trocado uma culturainglesa maioritaria por uma francesa. Se uma esfera publicaque funciona bern abrir estruturas de comunica~aoque permi­tam e promovam discuss6es orientadas para 0 auto-entendi­mento que se possam desenvolver em semelhantes sociedadesmulticulturais contra 0 background da cultura liberal e it basede associa~6es voluntarias, entao 0 processo democratico daactualiza~ao dos direitos individuais iguais tambem se esten­dera it garantia de direitos de coexistencia iguais para os dife­rentes grupos etnicos e para as suas formas de vida culturais.Isto nao exige uma justifica~ao especial ou urn prindpio alter­nativo, pois, de urn ponto de vista normativo, a integridade dapessoa individual legal nao pode ser garantida sem se protege­rem as experiencias partilhadas intersubjectivamente e os con­textos de vida nos quais a pessoa foi socializada e onde formoua sua identidade. A identidade do indivfduo esta entrela~ada

com as identidades colectivas e pode ser estabelecido apenasnuma rede cultural que nao pode ser apropriada enquanto pro­priedade privada mais do que a Ifngua mae. Por esta razao, 0

indivfduo permanece 0 suporte «dos direitos para os membrosculturais»,na £rase de Will Kymlicka17. Mas como a dialectica daigualdade legal e actual salienta, isto da origem a garantias doestado extensivas, direitos it auto-administra~ao, beneffciosinfra-estruturais, subsfdios, e por af adiante. Em sua defesa,culturas indfgenas em perigo avan~aram raz6es morais espe­ciais que surgem da hist6ria de urn pafs que foi apropriado pelacultura maioritaria. Argumentos semelhantes a favor da «dis­crimina~ao contraria» podem ser avan~ados para as culturasreprimidas e desaprovadas dos primeiros escravos.18

17 Will Kymlicka, Liberalism, Community and Culture (Oxford: OxfordUniversity Press, 1991).

18 Cf. R. Forst, Kontexte der Gerechtigkeit (Frankfurt am Main: Suhrkamp, breve­mente).

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Estas e outras obriga~6es semelhantes surgem de reivindica­~6es legais e nao de uma determina~ao geral do valor da cul­tura em questao. A polftica do reconhecimento de Taylor naoteria muito onde se apoiar se dependesse da «presun~ao dovalor iguah> das culturas e das suas contribui~6espara a civili­za~ao do mundo. 0 direito ao respeito igual, que todos podemexigir no contexto de vida no qual a sua identidade se formoucomo noutro sitio qualquer, nada tem a ver com a presumlvelexcelencia da sua cultura de origem/isto e, com feitos geral­mente valiosos. Susan Wolf tambem evidencia este aspecto:

Pelo menos uma das graves injustiras que um erro do reeonhe­cimento perpetua poueo tem a ver com a questiio de se umapessoa au uma cultura que niio ereconheeida tem alga deimportante a dizer a todos as seres humanos. A necessidade decorrigir estas injustiras, par conseguinte, niio depende da pre­sunriio au da eonfirmariio da presunriio que uma cultura espe­eifiea edistintamente valiosa para as pessoas externas a essaeultura19•

Nesta medida, a coexistencia com os direitos iguais paradiferentes grupos etnicos e suas formas de vida culturais naonecessita de ser salvaguardada atraves de um tipo de direitoscolectivos que sobrecarregariam a teoria dos direitos moldadaas pessoas individuais. Mesmo se os direitos de semelhantegrupo pudessem ser garantidos no estado democralico consti­tucional, eles nao seriam somente desnecessarios como tambemquestionaveis do ponto de vista normativo. Pois em ultimaanalise, a protec~ao de formas de vida e de tradi~6esnas quaisas identidades se formam supostamente devia servir 0 recon­nhecimento dos seus membros; nao representa um tipo de pre­serva~ao das especies atraves de recursos administrativos.A perspectiva ecol6gica para a preserva~ao das especies naopode ser transferida para as culturas. As heran~as culturais e asformas de vida nelas articuladas reproduzem-se normalmenteconvencendo aqueles a quem moldaram as estruturas da perso-

19 Neste volume, p. 79.

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nalidade, ou seja, motivando-os a apropriarem produtivamentee a continuar as tradi~6es. 0 estado constitucional pode tornarp~ssivel este feito hermeneutico da,eprodu~aode mundos devida culturais, mas nao pode garanti-lo. Pois para garantir asobrevivencia iria roubar necessariamente aos membros a liber­dade de dizer sim ou nao que e necessaria se querem apropriar­-se e preservar a sua heran~a cultural. Quando uma cultura setorna reflexiva, as unicas tradi~6es e formas de vida que sepodem sustentar sao as que ligam os seus membros enquantoao mesmo tempo se submetem a exames criticos e deixam asoutras gera~6es a op~ao de aprender a partir de outras tradi­~6es ou convertendo-se e remando para outras costas. Isto everdade mesmo em rela~ao a outras seitas fechadas como osAmish da Pensilvania.2o Mesmo se 0 considerarmos urn objec­tivo significativo na protec~ao de culturas como se elas fossemespecies em perigo, as condi~6es necessarias para elas se repro­duzirem com sucesso seriam incompativeis com 0 objectivo de«manter e apreciar a distin~ao, nao somente agora mas parasempre» (Taylor).

Neste ponto, ajuda relembrar as muitas subculturas e mun­dos de vida que florescem na antecipada Europa moderna coma sua estratifica~aoocupacional, ou as formas de vida dos tra­balhadores rurais e as massas urbanas proletarizadas e decine­radas da primeira fase da industrializa~aoque as originou.Estas formas de vida foram apanhadas e destruidas no pro­cesso de moderniza~ao,mas nem todas tinham descoberto 0

seu «Mestre Anton» e tinham comprometido membros para asdefender contra as alternativas apresentadas pela nova era. E asque eram ricas e atractivas 0 suficiente para estimular a von­tade da auto-asser~ao,como a cultura urbana do seculo XIX,

foram capazes de preservar alguns dos aspectos apenas atravesda auto-transforma~ao.Mesmo uma cultura maioritaria quenao se considere amea~ada preserva a sua vitalidade apenasatraves de urn revisionismo desenfreado, procurando alternati­vas para 0 status quo ou integrando impulsos estranhos - ate

20 Cf. a decisao do Supremo Tribunal em Wisconsin vs. Yoder, 406 EVA 2050~. .

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mesmo ao ponto de quebrar com as suas proprias tradic;6es.Isto e especialmente verdade acerca das culturas imigrantes,qua inicialmente se definem teimosamente em termos etnicos e,revivem elementos tradicionais sob a pressao assimilacionistado novo ambiente, mas depois desenvolvem rapidamente ummodo de vida igualmente distante quer da assimilac;ao quer datradic;ao.21 '

Nas sociedades multiculturais a coexistencia de formas devida com direitos iguais significa garantir a cada cidadao aoportunidade de crescer dentro do mundo de uma heranc;a cul­tural, e garantir aos seus filhos crescerem nele sem sofreremdiscriminac;ao. Significa a oportunidade de confrontar esta etodas as outras culturas e perpetua-Ia na sua forma mais con­vencional ou transforma-Ia;. tal como a oportunidade de nosdesviarmos dos seus comandos com indiferenc;a ou rompercom isso auto-criticamente e depois viver acelerado por terfeito um corte consciente com a tradic;ao, ou mesmo com aidentidade dividida. a passo acelerado da mudanc;a nas socie­dades modernas explode com todas as formas de vida estacio­narias. As culturas sobrevivem apenas se fizerem forc;a para setransferirem do criticismo e da secessao. As garantias legaispodem ser baseadas apenas no facto que dentro do seu propriomeio cultural cada pessoa detem a possibilidade de regenerar asua forc;a. E isto, por sua vez, desenvolve-se nao so por noscolocarmos de parte mas pelo menos tao de parte quanto astrocas com estranhos e coisas estranhas.

Na era moderna as formas de vida rfgidas sucumbem Ii entro­pia. as movimentos fundamentalistas podem ser entendidoscomo uma tentativa ironica de nos darmos a nossa ultra-estabili­dade no mundo atraves de recursos restaurativos. A ironia resideno modo como 0 tradicionalismo se compreende mal a si pro­prio. De facto, emerge do vertice da modernizac;ao social e imitauma substancia que ja se desintegrou. Como uma reac;ao ao forteempurrao para a modernizac;ao, e em si proprio um movimentomoderno de renovac;ao. a nacionalismo da Revolw;ao Francesa

21 Daniel Cohn-Bendi! e Thomas Schmid, Heimat Babylon (Hamburgo: Hoffmanne Campe, 1992), p. 316.

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aliado com os principios universalistas do estado democraticoconstitucional; simultaneamente 0 nacionalismo e 0 republica­nismo sao espfritos am\logos. Por outro lado, 0 fundamentalismoaflige nao s6 sociedades que estao prestes a desmoronar-se mastambem as democracias estabelecidas do ocidente. Todas as reli­gi6es do mundo produziram as suas formas de fundamenta­lismo, embora nem todos os movimentos sectarios disponhamdesses tra~os.

Como nos relembra 0 caso de Rushdie, um fundamentalismoque conduz a pratica da intolerancia e incompativel com 0

estado democratico constitucional. Semelhante pratica baseia-seem interpreta~6es religiosas ou hist6rico-filos6ficas do mundoque reivindicam exclusividade para um modo de vida privile­giado. Semelhantes concep~6es carecem de uma consciencia dafalibilidade das suas reivindica~6es,assim como de um respeitopelas «obriga~6es da razao» (Rawls). Claro que as convic~6es

religiosas e as interpreta~6es globais do mundo nao sao obriga­das a subscrever este tipo de falibilismo que correntementeacompanha 0 conhecimento hipotetico nas ciencias experimen­tais. Mas as opini6es mundiais do fundamentalismo sao dogma­ticas quando nao deixam espa~o para a reflexao na sua rela~ao

com outras opini6es mundiais com as quais partilham 0 mesmouniverso de discurso e contra as suas reivindica~6esde validadepodem avan~aras suas posi~6es apenas na base das raz6es. Naodeixam espa~opara a «discordancia razoavel»22.

Ao contrario, os «deuses e os dem6nios» subjectivados domundo moderno sao distinguidos por uma atitude reflexivaque faz mais do que permitir um modus vivendi - algo que podeser legalmente for~adodada a liberdade religiosa. Num espiritode tolerancia ala Lessing, as opini6es mundiais nao-fundamen­talistas que Rawls caracteriza como «doutrinas compreensivasrazoaveis»23 permitem um debate civilizado entre convic~6es,

no qual uma parte pode reconhecer as outras partes como

22 Jiirgen Habermas, Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics(Cambridge, Mass.: MIT Press, 1993).

23 John Rawls, «The Idea of an Overlapping Consensus», Oxford Journal ofLegal Studies 7 (1987): 1-25.

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co-combatentes na procura de verdades autenticas sem sacrifi­car as suas pr6prias reivindica<;6es de validade. Nas sociedadesmulticultur\lis, a constitui<;ao nacional pode tolerar somenteformas de vida articuladas no meio de tais tradi<;6es nao-funda­mentalistas, porque a coexistencia com os direitos iguais paraestas formas de vida exige 0 reconhecimento mutuo dos mem­bros das diferentes culturas: todas as pessoas devem tambemser reconhecicias como membros de comunidades eticas inte­gradas em diferentes concep<;6es do bern. Por esta razao, a inte­gra<;ao etica de grupos e subculturas com as suas pt6priasidentidades colectivas deve ser separada da integra<;ao polfticaabstracta que inc1ui todos os cidadaos igualmente.

A integra<;ao polftica dos cidadaos assegura lealdade a cul­tura polftica comum. A ultima tern a sua origem numa inter­preta<;ao dos prindpios constitucionais a partir da perspectivada experiencia hist6rica da na<;ao. Nesta medida, essa interpre­ta<;ao nao pode ser eticamente neutral. Talvez fosse melhorfalarmos de urn horizonte de interpreta<;ao comum dentro doqual os assuntos correntes dao origem a debates sobre 0 auto­-entendimento polftico dos cidadaos. as «debates hist6ricos»em 1986-87 na Alemanha sao urn born exemplo dist024. Mas osdebates sao sempre sobre a melhor interpreta<;ao dos mesmosdireitos e prindpios constitucionais. Estes formam 0 ponto dereferencia fixo para qualquer patriotismo constitucional quesitua 0 sistema de direitos dentro do contexto hist6rico de umacomunidade legal. Eles devem estar fortemente ligados asmotiva<;6es e convic<;6es dos cidadaos, pois, sem semelhanteapoio motivacional, nao se poderiam tomar a for<;a motriz pordetnis do projecto dinamicamente concebido para produziruma associa<;ao de individuos livres e iguais. Por isso, a parti­lhada cultura polftica na qual os cidadaos se reconhecem comomembros da sua polftica tambem e permitida pela etica.

Simultaneamente, a substancia etica de urn patriotismoconstitucional nao pode prejudicar a neutralidade do sistema

24Jurgen Habermas l The New Conservatism: Cultural Criticism and theHistorians'Debate, trad. por Shierry Weber Nicholsen (Cambridge, Mass.: MITPress, 1989).

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legal vis-ii-vis comunidades que estao eticamente integradasnum nivel subpolitico. Em vez disso, tern de moldar a sensibili­dade em diversidade e integridade das diferentes formas devida coexistindo dentro de uma sociedade multicultural. Ecru­cial manter a distin~ao entre os dois niveis de integra~ao.Se sedesmoronam, a cultura maiorih\ria ira usurpar as prerrogativasdo estado 11 custa dos direitos iguais de outras formas de vidaculturais e violar as suas reivindica~oespelo reconhecimentomutuo. A neutralidade da lei vis-ii-vis diferencia~6es eticas inter­nas tern origem no facto de que nas sociedades complexas 0

todo dos cidadaos nao mais pode ser sustentado por urn con­senso real de valores mas somente por urn consenso nos pro­cedimentos para a elabora~ao legitima de leis e do legitimeexercicio do poder. as cidadaos que estao politicamente integra­dos neste sentido partilham a convic~ao racional que a liber­dade de comunica~aodesenfreada na esfera publica politica, urnprocesso democratico para estabelecer conflitos, e 0 transporteconstitucional de poder politico fomecem uma base para inspe­cionar 0 poder ilegitimo e assegurar que 0 poder administrativoe usado no interesse igual de todos. a universalismo dos princi­pios legais reflecte-se num consenso processual, que deve serencaixado no contexto de uma cultura politica historicamenteespecifica atraves de urn tipo de patriotismo constitucional.

IMIGRA<::Ao, CIDADANIAE IDENTIDADE NACIONAL

as peritos legais tern a vantagem de discutir questoes nor­mativas em conexao com casos a serem decididos. a seu pen­samento e orientado para a aplica~ao. as fil6sofos evitam estapressao decisionista; enquanto contemporaneos de ideiasclassicas que se estendem por mais de dois mil anos, nao seembara~am ao considerarem-se participantes de uma con­versa que durara para sempre. Por isso, e muito fascinantequando alguem como Charles Taylor tenta compreender asideias do seu pr6prio tempo e mostrar a relevancia de criteriosfilos6ficos para as prementes questoes politicas do quotidiano.

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o seu ensaio e disso exemplo, sendo tao invulgar quanta bri­lhante - embora ele nao siga 0 fascinante caminho da «eticaaplicada».

Depois das revolt~s na Europa Central e de Leste, hii urnoutro tema presente na agenda da Alemanha e da ComunidadeEuropeia: imigrac;ao. Depois de uma apresentac;ao compreen­siva deste problema, urn colega holandes chega ao seguinteprogn6stico:

Os paises europeus ocidentais... iriio fazer 0 que puderem paraimpedir a imigrafilo dos paises do terceiro mundo. Para este fim,irilo garantir vistos de trabalho a pessoas com capacidades dereleviincia imediata para a sociedade em casas altamente excep­cionais apenas (jogadores de futebol, especialistas americanosde software, estudantes da india, etc.). Irilo combinar uma poli­tica de entrada bastante restrita com objectivos visados em lidarmais rapida e eficazmente com os pedidos de asilo, e com apratica de deportar sem demora aqueles cujo pedido Ihes foinegado... A conclusilo eque irilo individual e conjuntamenteusar todos os meios ao seu dispor para parar a mare'2S.

Esta descric;ao encaixa precisamente 0 compromisso do asilopolitico que 0 governo e a oposic;ao na Alemanha fizeram a basepara uma mudanc;a constitucional em Maio de 1993. Nao hiidtivida que a grande maioria da populac;ao aceita de born gradoesta politica. A xenofobia tambem se difundiu na ComunidadeEuropeia. Emais acentuada nalguns pafses do que noutros, masas atitudes dos alemaes nao diferem substancialmente das dosingleses e dos franceses26. 0 exemplo de Taylor pode encorajar­-nos a ver como urn ponto de vista filos6fico pode ajudar a res­ponder as questoes sobre se esta politica de nos determinarmoscontra a imigrac;ao e justificada. Comec;arei por discutir a questaode urn modo mais abstracto e depois concretizar referindo-me

25 D. J. van de Kaa, «European Migration at the End of History», EuropeanReview 1 Oaneiro, 1993): 94

26 E. Wiegand, «Auslandfeindlichkeit in cler Festung Europa. Einstellungenzu Fremden im europaischen Vergleich)), Informationsdienst SozialeIndikatoren (ZUMA), n." 9 Oaneiro, 1993): 1-4.

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ao debate alemao sobre 0 asilo polftico e 0 seu background hist6­rico. Esboc;arei depois as alternativas que teriam de ser discuti­das num debate publico - que ainda nao aconteceu - sobre 0

auto-entendimento etico-polftico da vasta Republica Federal daAlemanha depois da unificac;ao com a Republica DemocraticaAlema.

Embora a lei moderna se distinga da moralidade p6s-tradi­cional pelas suas caracteristicas formais espedficas, 0 sistema dedireitos e os prindpios do estado constitucional estao em har­monia com a moralidade atraves da virtude do seu conteudouniversalista. Simultaneamente, como ja vimos, os sistemaslegais sao «eticamente perrnitidos» quando reflectem a vontadepolftica e a forma de vida de uma comunidade legal espedfica.as EUA, cuja cultura polftica se caracteriza pela tradic;ao consti­tucional com duzentos anos, sao urn bom exemplo disto. Mas 0

ethos jurfdico de urn estado da nac;ao nao pode entrar em con­flito com os direitos civis desde que a legislatura politica seoriente pelos prindpios constitucionais e assim pela ideia deactualizar os direitos basicos. A substancia etica de uma integra­c;ao polftica que une todos os cidadaos da nac;ao deve permane­cer «neutral» relativamente as diferenc;as entre as comunidadesetico-culturais dentro da naC;ao, que estao integradas nas suaspr6prias concepc;6es do bem. Apesar da separac;ao destes doisniveis de integrac;ao, uma nac;ao de cidadaos pode suportar asinstituiC;6es da liberdade apenas se desenvolver uma deterrni­nada medida de lealdade para com 0 seu pr6prio estado, umalealdade que nao pode ser legalmente forc;ada.

E este auto-entendimento etico-politico da parte da nac;aoque e afectado pela irnigrac;ao; pois 0 fluxo de irnigrantes alteraa composic;ao da populac;ao em termos etico-culturais. Por isso,a questao e se 0 desejo pela imigrac;ao se confronta com os lirni­tes no direito de uma comunidade politica em manter a suaforma de vida politico-cultural intacta. Assumindo que aordem estatal desenvolvida autonomamente e realmente mol­dada pela etica, nao incluira 0 direito a autodeterminac;ao 0

direito de uma nac;ao de afirmar a sua identidade vis-a-vis irni­grantes que poderiam dar um molde diferente a esta forma devida polftico-cultural historicamente desenvolvida?

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Da perspectiva da sociedade recipiente, 0 problema da imi­gra<;ao levanta a questao das condi<;6es de entrada legftimas.Ignorando os estadios intermediarios, podemos por em eviden­cia 0 acto de naturaliza\,'ll.o, com 0 qual todo 0 estado controla aexpansao da comunidade politica definida pelos direitos decidadania. Sob que condi<;6es pode 0 estado negar cidadaniaaqueles que podem reivindicar naturaliza<;ao? A parte das clau­sulas habituais (como contra os criminosos), a questao maisrelevante no nosso contexto e em que medida urn estado demo­crMico constitucional pode lixigir que os imigrantes assimilemde modo a manter a integridade do modo de vida dos seuscidadaos. Filosoficamente, podemos distinguir dois tipos deassimila<;ao:

a) aceita<;ao dos princfpios da constitui<;ao dentro doescopo de interpreta<;ao determinado pelo auto-enten­dimento etico-politico dos cidadaos e pela cui turapolitica do pafs; noutras palavras, assimila<;ao domodo no qual a autonomia dos cidadaos e institucio­nalizada na sociedade recipiente e 0 modo como 0

«uso publico da razao» e aqui praticado;b) 0 nfvel seguinte de vontade de se tornar aculturado,

isto e, nao s6 de se conformar externamente mas de sehabituar ao modo de vida, 11 praticas e costumes dacultura local. Isto significa uma assimila<;ao que pene­tre ao nfvel da integra<;ao etico-cultural e, por isso,tenha urn impacto mais profundo na identidade colec­tiva da cultura de origem dos imigrantes do que asocializa<;ao politica exige acima.

Os resultados da politica de imigra<;ao praticados nos EUAapoiam uma interpreta<;ao liberal que exemplifica a primeiradestas duas alternativas27• Urn exemplo da segunda e a politica

27 Michael Walzer, «What does it mean to be an American?» Social Research 57(1990): 591-614. Walzer nota que a concep~ao comunitaria nao avalia acomplexa composilYao de uma sociedade multicultural (p. 613).

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prussiana em rela~ao a imigra~ao da Pol6nia sob Bismarck, queapesar das varia~oes foi orientada primeiramente para a ger­maniza~a028.

Um estado democratico constitucional que e serio sobre asepara~ao destes dois niveis de integra~ao s6 pode exigir dosimigrantes a socializa~ao polftica (a) descrita acima (e podemosesperar que isto aconte~a apenas na segunda gera~ao). Isto per­mite preservar a identidade da comunidade polftica, que naopermite, nem a imigra~ao, desrespeitar os direitos, ja que estaidentidade se baseia nos princfpios constitucionais fixados nacultura polftica e nao nas orienta~oeseticas basicas da forma devida cultural predominante nesse pais. De acordo com isto,tudo 0 que se espera dosimigrantes e a vontade de entrarem nacultura polftica da sua nova patria, sem terem de desistir dasua forma de vida cultural anterior ao assim agirem. 0 direito aauto-determina~ao democratica inc1ui de facto 0 direito doscidadaos de insistirem no caracter inc1usivo da sua pr6priacultura polftica; salvaguarda a sociedade do perigo da segmen­ta~ao - da exc1usao das subculturas estranhas e de uma desin­tegra~ao separatista em subculturas nao relacionadas. Comoindiquei acima, a integra~ao polftica tambem exclui as culturasimigrantes fundamentalistas. A parte disto, nao justifica a assi­mila~ao compulsiva para 0 bem da auto-afirma~aoda forma devida cultural dominante no pais29.

No entanto, esta altemativa constitucional tem uma implica­~ao impprtante, nomeadamente, que a identidade legitimamentedesignada da comunidade polftica nunca sera preservada dealtera~oes, a longo prazo, no inicio de ondas de imigra~ao.

Porque os imigrantes nao podem ser compelidos a renderem-seas suas pr6prias tradi~oes, como outras formas de vida se esta­belecem, 0 horizonte dentro do qual os cidadaos interpretam osseus princfpios constitucionais comuns tambem se pode expan­dir. Pois 0 mecanismo entra em jogo, pelo que uma mudan~a

na composi~aodos cidadaos activos muda 0 contexto ao qual se

28 Roger Brubaker, Citizenship and Nationhood in France and Germany (Cambridge,Mass.: Harvard University Press, 1992), p. 128.

29 Cohn-Bendil e Schmid, Heimat Babylon, cap. 8.

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refere 0 auto-entendimento etico-polftico da na~ao: «As pessoasvivem em comunidades com obriga~6es e limites, mas estespodem ser de tipos diferentes. Numa sociedade liberal, as obri­ga~6es e os limites devem ser compativeis com os prindpios libe­rais. A imigra~ao aberta mudaria 0 cankter da comunidade, masnao deixaria a comunidade sem cankterJ°.»

Da questao sobre as condi~6es que um estado democraticoconstitucional pode impor a recep~ao dos imigrantes queromudar para outra questao: quem tem 0 direito de imigrar?

Ha boas raz6es morais para 0 direito legal individual aoasilo polftico (no sentido do Artigo 16 da Lei Basica Alema(Grundgesetz), que devem ser interpretadas relativamente apro­tec~ao da dignidade humana garantida no Artigo 1 e em cone­xao com a garantia ao recurso legal estabelecido no Artigo 19).Nao preciso de examina-Ios agora. 0 que e importante e a defi­ni~ao de refugiado. De acordo com 0 Artigo 13 da Conven~ao

de Genebra sobre 0 estatuto dos refugiados, considera-se umapessoa refugiada aquela que foge de um pais «onde a sua vidaou liberdade estivesse amea~ada devido a ra~a, religiao, nacio­nalidade, membro de um grupo social espedfico ou de umaopiniao polftica». Aluz de experiencias recentes, esta defini~ao

precisa de ser alargada de modo a incluir a protec~ao das mulhe­res contra as viola~6es. 0 direito ao asilo temporario para osrefugiados das regi6es atingidas por guerras civis tambem naoe problematico. Mas desde a descoberta da America, e parti­cularmente desde 0 crescimento explosivo da imigra~ao portoda a parte no seculo XVIII, a grande maioria dos que queremimigrar sao pessoas que querem trabalhar e refugiados quefogem da pobreza, que querem escapar a uma existencia mise­ravel na sua terra natal. E 0 mesmo acontece hoje. Econtra estaimigra~ao das regi6es leste e sui depauperadas que 0 chauvi­nismo de afluencia europeu se esta agora a armar.

30 J. H. Carens, "Aliens and Citizens», Review ofPolitics 49 (1987): 271; cr. tam­bern JOrgen Habermas, «Staatsburgerschaft und nationale Identitat», inFaktizitat ltnd Geltung, pp. 632-660. Vma antiga versao deste ensaio apare­ceu em ingles com 0 titulo «Citizenship and National Identity», PraxisInternational 12 (1992): 11-9.

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Podemos citar boas raz5es para uma reivindica~aomoral.Normalmente, as pessoas nao deixam a sua terra natal exceptoem graves situa~5es; em regra, 0 simples facto de terem fugidoe evidencia suficiente da necessidade de serem ajudadas. Emparticular, a obriga~ao de fornecer ajuda surge das crescentesinterdependencias de uma sociedade global que se tornou taoconfusa atraves do mercado mundial capitalista e das comuni­ca~5es electronicas de massa que as Na~5es Unidas assumiualgo como uma responsabilidade politica para a salvaguardada vida no planeta, como indica 0 recente exemplo da Somalia.Seguidamente, desenvolvem-se deveres especiais sobre 0

Primeiro Mundo como resultado da historia da coloniza~aoe doextermfnio das culturas regionais devido 11 incursao da moderni­za~ao capitalista. Devemos tambem notar que no perfodo entre1800 e 1960 os europeus estavam desproporcionalmente repre­sentados nos movimentos migratorios intercontinentais jun­tando 80 por cento dos envolvidos, e tiravam proveito disto - ouseja, melhoravam as suas condi~5esde vida em compara~aocomos outros migrantes e com os que nao migravam. Ao mesmotempo, 0 exodo do seculo XIX enos princfpios do xx melhorou assitua~5es economicas nos paises dos quais migraram, tao decisi­vamente quanto a imigra~ao para a Europa durante 0 periodo dereconstru~aodepois da Segunda Guerra MundiaJ31. De ambos osmodos, a Europa foi a beneficiaria destes fluxos de migra¢o.

31 P. C. Emmer, «Intercontinental Migration», European Review 1 (Janeiro,1993): 67-74: «Depois de 1800 a aumento dramatico do crescimento econo­mica cia Europa Ocidental 56 poderia ser mantido como urn «alt;apao deescape.» a escape de 61 milh6es de europeus depois de 1800 permitiu aseconomias europeias criarem uma mistura de fadores de prodw;ao quepermitiu urn crescimento econ6mico recorde e evitoll a situa~ao na qual 0crescimento econornico era absorvido por urn aumento na popula~ao.

Depois cia Segunda Guerra Mundial, as europeus tambem beneficiaramde uma migraC;ao intercontinental ja que os imperios coloniais forc;arammuUos sujeitos coloniais a migrarem para a metr6pole. Neste periodoparticular nao havia 0 perigo de urn excesso de popula<;ao... Muitos dosmigrantes coloniais que vieram para a Europa estavam bern treinados echegaram na altura exacta em que 0 trabalho capacitado era valioso paraa reconstru<;ao da economia europeia.» (p. 72).

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Do ponto de vista moral, nao podemos encarar este pro­blema unicamente da perspectiva dos habitantes das socieda­des afluentes e pacfficas; tambem temos de considerar aperspectiva dos que vern dos continentes estrangeiros a pro­cura de bem-estar, isto e, uma existencia digna de seres huma­nos, em vez de protec<;ao da persegui<;ao polftica. A questao dareivindica<;ao legal pela imigra<;ao e particularmente relevantena situa<;ao corrente, onde 0 numero de pessoas que quer iIni­grar excede manifestamente a vontade de as receber.

Estas e outras questoes morais relacionadas que poderiamser dadas nao justificam, seguramente, a garantia de direitosindividuais legais accionaveis para a imigra<;ao, mas justificama obriga<;ao de ter uma polftica de imigra<;ao liberal que abra anossa sociedade aos imigrantes e regule 0 fluxo de imigra<;aode acordo com as capacidades existentes. No slogan defensivo«0 barco esta cheio» ouvimos uma falta de vontade de conside­rar a perspectiva oposta - ados «pescadores» no seu debil ofi­cio, por exemplo, a tentar escapar ao terror na Indochina. Associedades europeias, contraidas demograficamente e depen­dentes da imigra<;ao quanta mais nao seja por razoes econ6mi­cas, nao atingiram certamente os limites da sua capacidade emabsorver imigrantes. A base moral para uma polftica de imigra­<;ao liberal tambem da origem a uma obriga<;ao nao de limitaras quotas da imigra<;ao as necessidades econ6micas do paisrecipiente, isto e, de «receber com agrado os peritos tecnicos»,mas de estabelecer quotas de acordo com criterios aceitaveis daperspectiva de todas as partes envolvidas.

A POLITICA DE ASILONUMA ALEMANHA UNIDA

Se tomamos estes principios como ponto de partida, 0 com­promisso sobre 0 asilo polftico negociado entre 0 governo ale­mao e a oposi<;ao social democratica nao pode ser justificadoem termos normativos. Sem entrar em pormenores, enunciareias tres falhas centrais do acordo e criticarei as premissas nasquais se baseiam.

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AS regulamentos fomecidos pelo acordo limitam-se ao asilopolftico, isto e, a medidas dirigidas directamente contra os «abu­sos» do direito ao asilo. Ignoram 0 facto de que a Alemanhanecessita de uma politica de imigra~ao que assegure aosimigrantes outras op~6es legais. a problema da imigra~ao edefinido incorrectamente de urn modo que tern implica~6es

numerosas. Todo aquele que dissolver a liga~ao entre a questaodo asilo polftico e a questao da imigra~ao devido apobreza estaimplicitamente a declarar que quer destruir a obriga~ao moral daEuropa para com os refugiados e esta disposto a tolerar urn fluxode imigra~ao ilegal e incontrolavel que pode sempre ser apeli­dada de «abuso de asilo» e utilizada com objectivos polfticosnacionais.

A jun~ao do Artigo 16 a Lei Basica enfraquece a substanciado direito individual legal ao asilo polftico porque permite aosrefugiados que entram num pais denominado «terceiro paisseguro» serem deportados sem recurso legal. Isto muda 0 fardoda imigra~ao para a Europa de Leste, para os nossos vizinhosda Pol6nia, Republica Checa, Eslovaquia, Hungria e Austria ­noutras palavras, para paises que estao deficientemente prepa­rados para lidar com 0 problema de urn modo legalmente irre­preensivel. Adicionalmente, reduzir a garantia de protec~ao

legal para os refugiados de paises definidos como «livres depersegui~ao» do ponto de vista alemao e problemMico.

Em vez de simplificar a situa~ao para os estrangeiros ja resi­dentes na Alemanha, especialmente 0 Gastarbeiter (literalmente,trabalhadores convidados) a quem recrutamos para adquirircidadania, 0 compromisso ao asilo deixou as leis de naturaliza­~ao inalteradas. A dupla cidadania preferida por estes estran­geiros e-lhes negada; mesmo os seus filhos que ja nasceram naAlemanha nao recebem automaticamente os direitos de cidada­nia. as estrangeiros que estejam dispostos a renunciar a suacidadania anterior s6 podem ser naturalizados depois de vive­rem na Alemanha pelo menos quinze anos. Ao contrario, oschamados Volksdeutschen ou alemaes etnicos - primeiramentepolacos e russos que podem provar ascendencia alema - ternurn direito constitucional a naturaliza~ao. ~m 1992, de aproxi­madamente 500 000 candidatos a asilo (dos quais 130 000 eram

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das regi6es da guerra civil da anterior Jugoslavia), 220 000 itni­grantes de etnia alema foram aceites na Alemanha pela razaoacima apresentada.

A polftica alema sobre 0 asilo polftico depende da premissarepetidamente reafirmada que a Alemanha nao e um pais deimigra~ao. Isto contradiz nao s6 tudo 0 que vemos nas ruas enos metropolitanos das nossas metr6poles - hoje 26 por centoda popula~ao de Frankfurt e composta de estrangeiros - mastambem todos os factos hist6ricos. E absolutamente certo quedesde 0 inicio do seculo XIX quase 8 milh6es de alemaes emi­graram s6 para os EUA. Mas ao mesmo tempo, ondas maioresde imigra~aoocorreram durante os ultimos cem anos. Durantea Primeira Guerra Mundial entraram no pais 1,2 milh6es detrabalhadores imigrantes, e 12 milh6es de «refugiados politi­cos» foram deixados para tn1s no final da Segunda GuerraMundial - primeiramente for~a laboral deportada da Po16nia eda Uniao Sovietica. Em 1955, seguindo 0 caminho da polfticanazi de trabalhadores estrangeiros for~ados, e apesar do relati­vamente alto desemprego na Alemanha, chegou 0 recruta­mento organizado de mao-de-obra barata e masculina solteirado sui e do sudeste europeu. Isto continuou ate 0 recrutamentoparar em 1973. Hoje em dia, as familias e os rebentos dosGastarbeiter que nao voltaram para os seus paises vivem nasitua~aoparadoxal de serem imigrantes sem claras expectativasde imigra~ao - alemaes com passaportes estrangeiros32• Elesformam a parte principal dos 8,2 por cento da popula~ao alemaem 1990 composta por estrangeiros residentes na Alemanha.Sem eles, 0 boom econ6mico s6 compariivel ao do Japao naoteria side possivel, e e ainda mais dificil compreender a resis­tencia acompleta integra~ao destes estrangeiros, se considerar­mos que por volta de 1990 a Alemanha Ocidental integrou15 milh6es de refugiados, imigrantes e estrangeiros que oueram alemaes ou descendentes alemaes - por isso Neuburger, cida­daos novos: «Se se junta uma popuIa~ao estrangeira de cerca de

32 K. J. Bade. «Immigration and Integration in Germany since 1945», EuropeanReview 1 Daneiro, 1993): 75-79.

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4,8 milhoes, quase urn ter~o da popula~ao alema ocidentalresultou de movimentos de imigra~aodesde a Segunda GuerraMundial»33.

Se a no~ao de que <<nao somos urn pais de imigra~ao» se con­tinua a desenvolver na esfera politica publica, isto indica que e amanifesta~ao de uma mentalidade profunda - e que e necessariauma mudan~a dolorosa no modo como nos encaramosenquanto na~ao. Nao e por acidente que as nossas decisoes denaturaliza~aose baseiam no principio da ascendencia, e nao noprincipio de territorialidade, como noutras na~oes ocidentais.As falhas descritas acima no modo como a Alemanha esta alidar com 0 problema da imigra~ao devem ser entendidas con­tra 0 background hist6rico do auto-entendimento que os alemaestern deles pr6prios enquanto na~ao de Volksgenossen ou camara­das etnicos centrada na lingua e na cultura. Urn individuo quenas~a em Fran~a e considerado frances e tern os direitos de urncidadao frances. Na Alemanha, ate ao fim da Segunda GuerraMundial, ainda se faziam grandes distin~oes entre os Deutschen,ou cidadaos de ascendencia alema; Reichsdeutschen, ou cidadaosalemaes de ascendencia nao-alema; e Volksdeutschen, ou indivi­duos de ascendencia alema residentes noutros paises.

Em Fran~a, a consciencia nacional podia desenvolver-sedentro das estruturas de urn estado territorial, enquanto naAlemanha estava originalmente ligado 11 no~ao de classe mediaeducada romanticamente inspirada de uma Kulturnation, umana~ao definida pela sua cultura. Esta ideia representava umaunidade imaginaria que tinha de procurar apoio numa lingua,tradi~ao e ascendencia partilhadas de modo a transmitir a reali­dade dos pequenos estados existentes na Alemanha. Aindamais importante era 0 facto que a consciencia nacional francesapodia desenvolver-se juntamente com a funda~ao de liberdadescivis democraticas e com a luta contra a soberania do rei fran­ces, ao passo que 0 nacionalismo alemao surgiu da luta contraNapoleao, e por isso contra urn inimigo extemo, independente­mente da batalha pelas liberdades civis democraticas e muitoantes de se ter imposto 0 estado da na~ao kleindeutsche. Tendo

33 Bade, p. 77.

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surgido de uma «guerra de liberta~ao»deste tipo, a consciencianacional na Alemanha estava ligada aos carninhos da singulari­dade da sua cultura e ascendencia - urn particularismo forte­mente patente no auto-entendimento alemao.

A Republica Federal da Alemanha desviou-se desteSonderbewusstsein ou sentimento especial depois de 1945, ap6s 0

choque do colapso da civiliza~ao nas extermina~oesnazis.A perda da soberania e uma posi~aomarginal num mundo pola­rizado refor~ou este facto. A reunifica~ao e a dissolu~ao da UniaoSovi<:~tica mudaram esta constela~ao numa maneira fundamental.Consequentemente, as rea~oes ao radicalismo direitista quetinham florescido outra vez - e neste contexte 0 debate deceptivosobre 0 asilo -levantaram a questao se a vasta Republica Federalcontinuaria no seu carninho ern dire~ao a uma politica mais civi­lizada ou se 0 antigo Sonderbewusstsein se esta a regenerar nurnaforma diferente. Esta questao e complicada pelo facto de 0 pro­cesso da unifica~ao nacional se ter levado a cabo adrninistrativa­mente manipulado e relativamente a isto colocou 0 pais nummau carninho. A discussao e a clarifica~ao do auto-entendimentoetico-politico dos cidadaos dos dois estados alemaes corn desti­nos hist6ricos largamente divergentes e necessario urgentementemas ainda nao ocorreu. A «acessao» dos novos Lander, ou estadosfederais - uma op~ao legal constitucionalmente dubia - anteci­pou urn debate constitucional, e as posi~oes no debate sobre 0

lugar do capital alemao estao distorcidas. Entretanto, os cidadaosda antiga Alemanha de Leste, hurnilhados de muitas maneiras eprivados dos seus porta-vozes e da sua esfera politica publica,debatem-se corn outros problemas; ern vez de contribui~oescla­ramente pronunciadas, eles encontram ressentimentos latentes.

Toda a repressao produz sintomas. Urn desafio depois de outro- da Guerra do Golfo a Maastrich, a guerra civil na Jugoslavia, 0

problema do asilo e 0 radicalismo direitista ate ao desenvolvi­mento de for~asmilitares alemas fora da area da NATO - suscitamurn sentimento de abandono na esfera politica publica e numgovemo imobilizado. Uma constela~ao de poder transformada euma situa~aonacional diferente certamente que exigem novas res­postas. A questao e: corn que tipo de consciencia ira a Alemanhafazer as adapta~oes exigidas se continuar 0 seu padrao de reagircom decisoes ad hoc e mudan~as de humor subliminares?

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AS historiadores que escrevem apressadamente livros comtftulos como «Regresso a hist6ria» ou «Medo do poder» pro­poem-nos uma visao do passado de despedida a antigaRepublica Federal que pretende expor a recentemente louvadahist6ria da democracia alema do p6s-guerra como urn Sonderwegou urn caminho pr6prio especial. Diz-se que a antiga Alemanhaocidental incorporou a afectada anormalidade de uma na~ao

derrotada e dividida, e agora, tendo recuperado a sua grandeza esoberania nacional, tern de se desembara~ar do utopismo, com 0

seu esquecimento pelo poder, e voltar ao caminho da auto-cons­ciencia de primazia na Europa Central, 0 caminho da politica depoder estabelecida por Bismarck. Esta celebra~ao da cesura de1989 esconde 0 desejo repetidamente frustrado da normaliza~ao

dos que nao quiseram aceitar a cesura de 1945. Eles rejeitam urnaaltemativa que nao conduza necessariamente a outras op~oes acada mudan~a a curto prazo, mas ao inverso abra outra perpec­tiva ao compreender a despedida da antiga Republica Federal deurn modo diferente. Nesta visao alternativa, a orienta~ao daAlemanha ocidental para 0 ocidente representa nao uma decisaoastuta, mas uma decisao politica estrangeira secundaria, e acimade tudo nao somente uma decisao politica, mas sim uma pro­funda quebra intelectual com as tradi~oes alemas espedficas quemarcaram 0 Imperio Guilhermino e contribuiram para a quedada Republica de Weimar. Esta quebra deu lugar a uma mudan~ana mentalidade que afectou largos segmentos do publico ap6s arevolta juvenil de 1968 e sob as condi~oes favoraveis de umasociedade afluente, uma mudan~a que tomou possivel a demo­cracia e ao estado constitucional criarem raizes pela primeira vezem solo alemao. Hoje, 0 que esta em jogo e adaptar 0 papel poli­tico alemao as novas realidades, sem deixar 0 processo de civi­liza~ao da politica levado a cabo ate 1989, altura em que foiinterrompido pela pressao dos problemas econ6micos e sociaisda unifica~ao,e sem sacrificar os feitos normativos de urn auto­-entendimento nacional que ja nao se baseia na etnicidade massim na cidadania.

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IDENTIDADE, AUTENTICIDADESOBREVIvENCIA

SOCIEDADES MULTICULTURAISE REPRODU<;Ao SOCIAL

K. ANTHONY ApPIAH

I

Charles Taylor esta seguramente certo quando afirma quemuito da vida social e politica moderna gira em torno das ques­toes do reconhecimento. Na nossa tradi~ao liberal vemos 0 reco­nhecimento largamente como uma questao de reconhecer osindividuos e 0 que chamamos de suas identidades. Tambemtemos a no~ao, que vern (como Taylor correctamente afirma) daetica da autenticidade, que, se outras coisas sao iguais, as pes­soas tern 0 direito de serem reconhecidas publicamente poraquilo que elas realmente ja sao. 10: porque alguem ja e autentica­mente judeu ou homossexual que the negamos algo ao exigir-lheque esconda esse facto, que posse a ser algo que nao e.

No entanto, como se tern salientado frequentemente, 0 modocomo tern lugar muita discussao sobre 0 reconhecimento eestranhamente dispar com a confian~a individualista do dis­curso de autenticidade e identidade. Se 0 que importa sobremim e 0 meu ser individual e autentico, por que e que e tao con­temporaneo 0 discurso da identidade sobre largas categorias ­genero, etnicidade, nacionalidade, «ra~a»l, sexualidade - queparece estar tao longe do individuo? Qual e a rela~ao entre esta

1 Ja gastei tempo suficiente a argumentar contra a realidade das «rac;as» parame sentir infeliz quando usa 0 termo. Ver In My Father~s House: Africa in thePhilosophy 0JeHltllye (Nova Iorque: Oxford University Press, 1992).

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linguagem colectiva e a confian~a individualista da no~ao

moderna do ser? Como e que a vida social se ligou tanto 11 ideiade identidade que tem rafzes profundas no Romantismo, com 0

seu louvor pelo indivfduo em detrimento da sociedade2?Uma linha do rico ensaio de Taylor e a defesa irrefutavel de

um grupo de respostas a estas questoes. Discuto aqui algunstra~os da sua hist6ria na nibrica da identidade, autenticidade esobrevivencia. No fundo, quero levantar algumas complica~oes

sobre cada um destes tres termos.

II

IDENTIDADE

Durante a minha vida vi franceses, italianos e nlSSOS; att sei,gratlas a Mmllesqu;eu, que podemos seT persas; mas em rela­rllo ao homem, nunca 0 encontrei na minha vida.

JOSEPH DE MAISTRE3

As identidades cujo reconhecimento e discutido por Taylorsao 0 que chamamos identidades sDciais colectivas: religiao,sexo, etnicidade, «ra~a», sexualidade. Esta lista e de algummodo heterogenea; tais identidades colectivas sao importantespara os seus apDiantes e para outros de varias maneiras. Porexemplo, a religiao, ao cDntrario de todas as outras, requereamor pela cren~a ou compromisso com as praticas. 0 sexo e asexualidade, ao contrario das restantes, estao ambos inculcadosno corpo sexual; ambos tem experiencias diferentes em lugarese tempos diferentes. Contudo, sei que em todo 0 lado a identi­dade sexual propoe normas de compoTtamento, de vestir e de

2 Taylor relembra-nos correctamente sabre as profundas contribuis-oes deTrilling para 0 nosso entendimento ciesta hist6ria. Discuto a obra de Trillingno capftulo 4 do livro 111 My Fathey"s HOl/se,

3 Joseph de Maistre, COflsiderations stir In France (segunda ed. London; B~He,

1797), p. 102. «rai vu, dans rna vie, des Francis, des Italiens, des Russes, etc.;je sais m@me, graces aMontesquieu, gu'on peut etre Persan: mais quant aI"homme, je declare ne l"avoir recontre de rna vie.... »

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caracter. Certamente que sexo e sexualidade, apesar das seme­Ihan~as abstractas, sao de muitas maneiras profundamentediferentes. N a nossa sociedade, por exemplo, ser-se conside­rado uma mulher ou urn homem ediffcil, enquanto ser-se con­siderado franco (ou homossexual) e relativamente faci!. Haoutras identidades coleetivas - pessoas invalidas, por exemplo- que procuraram reconhecimento, moldando-se muitas vezesnas minorias raciais (com quem partilham a experiencia da dis­crimina~aoe do insulto), ou (como e0 caso das pessoas surdas)nos grupos etnicos. E ha castas no sui da Asia, clas ern todos oscontinentes, e classes, com variados graus de consciencia declasse por todo 0 mundo industrializado. Mas as identidadescolectivas mais importantes que correntemente exigem 0 reco­nhecimento na America do Norte sao a religiao, 0 sexo, a etnici­dade, a «ra~a» e a sexualidade4. a facto de serem importantespara nos por razoes tao heterogeneas devia fazer com que cui­dadosamente nao assumfssemos que 0 que evalida para urn evalida para todos.

A liga~ao entre a identidade individual, por urn lade, que eo centro da discussao de Taylor, e estas identidades colectivas,por outro lado, parece ser algo como isto: a identidade indivi­dual de cada pessoa e vista como tendo duas dimensoes prin­cipais. Ha uma dimensao colectiva, a intersec~ao das suasidentidades colectivas, e ha uma dimensao pessoal, que con­siste ern caracterfsticas social ou moralmente importantes ­inteligencia, charme, perspicacia, cobi~a - que nao sao elas pro­prias as bases das formas de identidade colectiva.

A distin~ao entre estas duas dimensoes de identidade e, porassim dizer, uma distin~ao sociologica mais do que logica. Emcada dimensao falamos sobre propriedades que sao importan­tes para a vida social, mas somente as identidades colectivascontam como categorias sociais, como tipos de pessoas. Hauma categoria logica mas nao social dos perspicazes, ou dosespertos, ou dos charmosos, ou dos gananciosos. As pessoas

4 Nos EVA lidamos com 0 que Herder teria reconhecido como diferen~as

nacionais (diferenc;as, na formulac;ao de Taylor, entre uma sociedade e Dutradentro da na<;J.o americana) atraves de conceitos de etnicidade.

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que partilham estas propriedades nao constituem urn gruposocial, no sentido relevante.

Voltareia questao de como estas propriedades especfficasconstituem a base para as categorias sociais que exigem 0 reco­nhecimento; por agora, ficarei pela compreensao intuitiva dadistin<;ao entre as dimensoes pessoal e intuitiva da identidadeindividual. Falarei agora da «autenticidade» de modo a real<;aralgo importante sobre a liga<;ao entre estas duas dimensoes.

III

AUTENTICIDADE

a artista - como the chamam - para de ser artesiio Oll actor,dependendo da aprovafiio da fludiencia. A sua referencia e56para consigo, QU para algum poder transcendente que ordenolto seu empreendimento e edigno de 0 julgar sozinho.

LIONEL TRILLINC5

Taylor esta certo ao relembrar-nos da brilhante discussaode Trilling sobre 0 eu moderno, e, mais particularmente, doideal da autenticidade. Taylor transmite essa ideia nalgumasfrases elegantes: «Existe urn determinado modo de ser que e 0

meu modo. Sou chamado a viver a minha vida deste modo...Se nao sou (verdadeiro para comigo), perco 0 sentido daminha vida» (p. 30).

a tema de Trilling e a expressao desta ideia na literatura e nanossa compreensao do papel do artista enquanto arquetipo dapessoa autentica. Se M urna parte da imagem de Trilling queTaylor deixa de fora, e que para 0 Romantismo a procura daautenticidade e demonstrada pelo menos tao em oposi<;ao asexigencias da vida social quanto no reconhecimento do nossoproprio eu. Precisamente na cole<;ao intitulada The OpposingSelf, Trilling escreve sobre «The Scholar Gypsy» (enquanto

5 Lionel Trilling, Sincerity and Allthenticity (Cambridge, Mass.: HarvardUniversity Press, 1971). p. 97.

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modelo do artista} que «a sua exist<~nciapretende perturbar-nose fazer-nos insatisfeitos em rela~ao a nossa vida habitual nacultura»6.

o t6pico de Taylor ea polftica do reconhecimento; tendo emconta que os aspectos opostos da autenticidade iriam complicaro quadro, porque poria em evidencia a diferen~a entre os doisniveis de autenticidade que a politica do reconhecimento con­temporanea parece misturar. Para elucidar 0 problema, deixem­-me come~ar por urn ponto que Taylor refere ao considerarHerder:

Devo dizer aqui que Herder aplicou a sua concepriio deoriginalidade adDis nfveis, niio so ii pessoa individual entreDrltras pessoas, mas tambem ii cultura que suporta os povosentre outros povos. Tal como os indivfduos, um Volk deveser verdadeiro consigo proprio, isto e, ii sua propria cultura(p.31).

Este modo de fragmentar 0 problema nao da aten~ao sufici­ente a liga~ao entre a originalidade das pessoas e das na~6es.

Acima de tudo, hoje em dia, em muitos sitios, a identidadeindividual, cuja autenticidade putativa grita pelo reconheci­mento, esta apta a ter 0 que Herder encararia como uma identi­dade nacional enquanto componente da sua dimensaocolectiva. 0 facto de ser, por exemplo, afro-americano, entreoutras coisas, molda 0 eu autentico que procuro expressar.7

E isto acontece, em parte, porque procuro expressar a mim pr6­prio que procuro 0 reconhecimento de uma identidade afro­-americana. Este e 0 facto que traz problemas ao eu oposto deTrilling, pois 0 reconhecimento de urn afro-americano significaconfirma~ao social dessa identidade colectiva, que exige nao s6o reconhecimento da sua existencia mas a demonstra~ao real dorespeito por ele. Se, ao reconhecer-me como afro-americano, mevejo como resistente as normas brancas, aos habitos das con-

6 Lionel Trilling, The Opposing Self: Nine Essays in Criticism (Nova Iorque:Viking Press, 1955), p. )(N.

7 Para Herder, ista seria uma identidade nacional paradigmatica.

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ven<;oes americanas, 0 racismo (e, talvez, 0 materialismo ou 0

individualismo) da «cultura branca», por que e que devo simul­taneamente procurar 0 reconhecimento destes outros brancos?

Noutras palavras, ha pelo menos uma ironia no modo comourn ideal - chamava-Ihe ideal boemiano - no qual a autentici­dade nos exige que rejeitemos muito do que e convencional nanossa sociedade e virado ao contrario e sao feitas as bases da«politica do reconhecimento.» A ironia nao e 0 unico problemaboemiano. Parece-me que esta no<;ao de autenticidade se ternconstruido numa serie de erros de antropologia filos6fica.Primeiro que tudo, esta errada ao falhar em ver 0 que Taylor taoclaramente reconhece: 0 modo como 0 eu e, como ele diz, dialo­gicamente constituido. A ret6rica da autenticidade propoe naos6 que eu tenha urn modo de ser que e 0 meu pr6prio, mas queao desenvolviHo eu tenha de lutar contra a familia, a religiaoorganizada, a sociedade, a escola, 0 estado - todas as for<;as daconven<;ao. No entanto, isto esta errado, nao s6 porque e no dia­logo com 0 entendimento das outras pessoas de quem eu souque eu desenvolvo uma concep<;ao da minha pr6pria identidade(ponto de Taylor) mas tambem porque a minha identidade e cru­cialmente constitufda de conceitos e praticas disponfveis paramim atraves da religiao, da sociedade, da escola e do estado, emediados a varios graus pela farru1ia. 0 dialogo molda a identi­dade que eu desenvolvo enquanto cres<;o, mas 0 material doqual me formo e fomecido, em parte, pela minha sociedade, peloque Taylor chama a sua linguagem num «sentido amplo»8.o termo «monoI6gico» de Taylor pode estender-se de modo a des­crever opinioes de autenticidade que fazem esta liga<;ao de erros.

Nem todos acham estes criterios agradaveis. Uma naciona­lista negro pode constatar 0 seu caso desta maneira: «A identi­dade afro-americana e moldada pelas sociedade, cultura ereligiao afro-americanas. E 0 dialogo com estes outros negrosque molda 0 eu negro; e destes contextos negros que derivamos conceitos atraves dos quais os afro-americanos se moldam.

8 a sentido amplo «cohre nao 56 as palavras que falamos, mas tambemQutros modos de expressao pelos quais nos definimos, incluindo as lingua­gens da arte, dos gestos, do amor, e outras tais» (p. 32).

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A sociedade branca, a cultura branca, contra a qual 0 naciona­lismo afro-americano de tipo anticonvencional se coloca, nao eassim uma parte do que molda a dimensao colectiva das identi­dades individuais dos negros nos EVA.»

Esta reivindica~ao parece-me simplesmente falsa. Acima detudo, e em parte 0 reconhecimento da identidade negra pela«sociedade branca» que e exigida pelo nacionalismo destaforma. E «reconhecimento» aqui significa 0 que Taylor querdizer, e nao somente reconhecer a sua existencia. A identidadeafro-americana e principalmente moldada pela sociedade e ins­titui~6es americanas; nao pode ser vista como construida sozi­nha dentro das comunidades afro-americanas.

Penso que hii outro erro na fragmenta~aopadrao da autenti­cidade enquanto ideal, e isso e 0 realismo filos6fico (que hoje sechama «essencialismo») que parece inerente no modo como nor­malmente se colocarn as queslOes da alltenticidade. A alltentici­dade fala do eu real enterrado ali, 0 eu que temos de desenterrare expressar. S6 mais tarde, em reac~ao ao Romantismo, e que sedesenvolve a ideia que 0 eu e algo que temos de criar, inventar,para que cada vida seja uma obra de arte cujo criador, numdeterminado sentido, e a maiar cria~ao de si pr6prio. (Suponhoque uma das fontes desta ideia e Oscar Wilde.)

Claro que nem a imagem na qual hii uma pepita autenticado ser, que e distintivamente a minha essencia, 11 espera queseja desenterrada, nem a no~ao que eu posso simplesmenteinventar urn eu que eu escolha, deve tentar-nos. Inventamoseus a partir de urn estojo de op~6es 11 nossa disposi~ao atravesda cultura e da sociedade. Fazemos realmente op~6es, mas naodeterminamos as op~6es entre as que escolhemos9. Isto levantaa questao de como devemos reconhecer a autenticidade nanossa moralidade politica, e isso depende de como uma suaavalia~ao se pode desenvolver que nao seja nem essencialistanem monol6gica.

9 Ista e tambem muito simples, por raz6es encontradas nas muitas discuss6essabre «dualidade de estrutura» de Anthony Giddens. Ver Central Problems inSocia/17leory (Berkeley: University of California Press, 1979); e The Constitutiona/Society (Cambridge: Polity Press, 1984).

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Seria uma reivindica~aobastante ampla que as identidadesque reivindicam 0 reconhecimento no chorus multiculturaltivessem de ser essencialistas ou monol6gicas. Mas parece-meque uma razao razoavel para suspeitar de muito discurso mul­ticultural contemporaneo e que este pressup6e muitas concep­~6es de identidade colectiva que sao notavelmente indiscretasnos seus entendimentos dos processos atraves dos quais asidentidades, quer individuais quer colectivas, se desenvolvem.Nao tenho a certeza se Taylor concordaria comigo no facto deas identidades colectivas disciplinadas pelo conhecimento his­t6rico e pela reflexao filos6fica seream radicalmente opostas asidentidades que exibem perante n6s para 0 reconhecimento elevantarem, como consequencia, quest6es diferentes das queele refere.

Suspeito que Taylor esta mais contente do que eu com asidentidades colectivas que habitaIn 0 nosso planeta, e esta podeser uma das raz6es pela qual estou menos disposto a fazer asconcess6es que ele faz. Estas diferen~as na simpatia aparecemna area da sobrevivencia do grupo, a qual me you referir.

IV

SOBREVIVENCIA

As poUticas que visum a sobrevivencia proclIram activamenteeriar membros da comunidade, por exemplo, esperando que asfutttras gera(oes continuem a identificar-se como [alantes dalingua francesa.

CHARLES TAYWR (pp. 58-59)

Taylor afirma que a realidade das sociedades plurais podeexigir-nos que modifiquemos 0 liberalismo processua!. Pensoque ele esta certo ao pensar que nao ha muito para se dizersobre a opiniao que 0 liberalismo devia ser puramente proces­sua!. Concordo que nao devemos aceitar (a) a insistencia naaplica~ao uniforme das regras sem excep~ao e (b) a suspeitados objectivos colectivos (p. 60); concordo que a razao pela qual

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nao podemos aceitar (a) e que devemos rejeitar (b) (p. 61).Podem existir objectivos colectivos legftimos cuja persecuc;aoira exigir a desistencia do processualismo puro.

Mas 0 argumento de Taylor para os objectivos colectivos nagrande maioria dos estados modemos, que sao multiculturais,e que uma exigencia muito forte, a qual 0 estado podera ter deceder, pode ser para a sobrevivencia de certas «sociedades»,pelas quais ele entende grupos cuja continuidade ao longo dotempo consista na transmissao atraves das gerac;oes de umadeterminada cultura, de instituic;oes, valores e praticas distin­tos. E ele alega (p. 41) que 0 desejo de sobrevivencia nao e sim­plesmente 0 desejo que a cultura que da sentido as vidas dosindividuos deva continuar para eles, mas exige a existenciacontinuada da cultura atraves de gerac;oes futuras indefinidas.

Gostaria de sugerir urn ponto diferente do de Taylor na suadiscussao deste problema. Deixem-me frisar primeiro que asgerac;oes futuras indefinidas em questao devem ser os descen­dentes da populac;ao corrente. 0 desejo pela sobrevivencia daidentidade francesa-canadiana nao e 0 desejo que haja semprepessoas que falem a lingua do Quebeque e ajam de acordo comas praticas do Quebeque. E0 desejo que esta lingua e estas pra­ticas sejam levadas de gerac;ao em gerac;ao. Uma proposta pararesolver estes problemas do Canada pelo pagamento a urngrupo de pessoas nao relacionadas para levarem a culturacanadiana-francesa para uma ilha no Pacifico SuI nao iria aoencontro da verdadeira necessidade.

Isto e importante porque me parece que nao e claro que esteobjectivo seja urn que possamos reconhecer enquanto respeita­mos a autonomia de futuros individuos. Em familias especifi­cas da-se frequentemente 0 caso de pais quererem que os seusfilhos continuem alguma pratica a qual as crianc;as se opoem.Isto e verdadeiro no caso de casamentos arranjados para mulhe­res de origem indiana residentes na Gra-Bretanha, por exemplo.Neste caso, os principios eticos da dignidade igual que subli­nham 0 pensamento liberal parecem militar contra dar permis­sao aos pais sobre 0 seu caminho porque nos preocupamos coma autonomia destas jovens mulheres. Se isto e verdade no casoindividual, parece-me igualmente verdadeiro onde toda uma

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......

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gera<;ao de um grupo deseja impor uma forma de vida 11 gera­<;ao seguinte - e uma verdade q fortiori se eles tentam impo-Iode alguma maneira a outras gera<;6es.

Abstractamente falando, a sobrevivencia e perfeitamenteconsistente neste sentido relativamente 11 autonomia, de outromodo toda a sociedade genuinamente liberal teria que morrernuma gera<;ao. Se criamos uma cultura que os nossos descen­dentes irao quer continuar, a nossa cultura ira sobreviver neles.Mas aqui ha um problema profundo que tem a ver com a ques­tao de como 0 respeito pela autonomia devera reprimir a nossaetica de educa<;ao. Afinal, temos em nosso poder, ate certamedida, tomar os nossos em tipos de pessoas que irao querercontinuar a nossa cultura. Precisamente porque a opiniaomonol6gica da identidade e incorrecta, nao ha uma pepita indi­vidual 11 espera em cada crian<;a para se expressar, se apenas afamilia e a sociedade permitem 0 seu desenvolvimento livre.Temos de ajudar as crian<;as a formarem-se, e temos de fazeralgo de acordo com os nossos valores porque as crian<;as naocome<;am com valores pr6prios. Valorizar a autonomia e respei­tar as concep<;6es dos outros, pesar os seus pianos para si pr6­prios muito fortemente ao decidir 0 que e bom para eles, muitoembora as crian<;as nao tenham os seus pianos e concep<;6es.Por conseguinte, na educa<;ao em sentido amplo - 0 sentidoque e coberto pela no<;ao tecnica de reprodu<;ao social - temosde apelar e transmitir valores mais substancialmente do queum respeito pelos procedimentos liberais. 0 processualismoliberal tende a permitir ao estado ser indiferente entre umavariedade de concep<;6es do bem, mas a pr6pria variedade iradepender do que acontece na educa<;ao. Ensinar as crian<;asapenas que devem aceitar uma polftica na qual as concep<;6esdo bem de outras pessoas nao sejam dominadas e riscamosuma situa<;ao na qual existem concep<;6es substantivas do bemincompativeis com 0 principio liberal ou, pelo menos, umascom as outras. Epara este ponto que Taylor adverte ao salientaro problema levantado pela questao de Rushdie. Epor isto que 0

liberalismo, afinal, deve estar preparado para ser uma doutrinalutadora.

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Na maioria das sociedades modernas, a educa~ao da maiorparte das pessoas e condJzida por institui~oes dirigidas pelogoverno. A educa~ao esta, por isso, no dominio politico. Istonao e s6 urn acidente: a reprodu~ao social inclui objectivoscolectivos. Alem disso, assim que as crian~as se desenvolvem eacabam por ter identidades cuja autonomia devemos respeitar,o estado liberal tem urn papel ao proteger a autonomia dascrian~as contra os pais, as igrejas e as comunidades. Eu estariapreparado para defender a opiniao que 0 estado na sociedademoderna deve estar envolvido na educa~aodeste tipo de bases,mas mesmo que alguem discorde disto, eles tern de admitir querealmente desempenha esse papel e isso significa que 0 estadoesta envolvido em propagar elementos, pelo menos, de umaconcep~aoimportante do bern.

Esta e uma das razoes principais pela qual concordo tao sin­ceramente com as obje~oes de Taylor ao processualismo puro.No entanto, nao penso que e a razao de Taylor, muito emboraele levante as suas obje~oes ao processualismo puro no con­texto da discussao da sobrevivencia - isto e, da reprodu~ao

social.

vAs abundantes identidades coleetivas que apelam ao reco­

nhecimento surgem com no~oes de como uma pessoa decentedesse tipo se comporta: nao e que haja urn modo como oshomossexuais ou os negros se devam comportar, mas hamodos de comportamento homossexual e negro. Estas no~oes

fornecem normas ou modelos indefinidos que fazem estasidentidades colectivas centrais para as suas identidades indivi­duais.10 Em suma, as identidades colectivas fornecem 0 quepodemos chamar manuscritos: narrativas que as pessoas

10 Digo «fazer», nao porgue pense que ha. sempre uma atenc;ao consciente aDmolde de pIanos de vida ou uma exp"eriencia de escolha substancial, masporque quero Erisar 0 ponto antiessencialista de que ha. escolhas quepodem ser feitas.

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podem usar ao moldar os seus pianos de vida e ao contar ashistorias das suas vidas. Na nossa sociedade (embora talveznao na Inglaterra de Addison e de Steele) ser-se perspicaz naosugere desta maneira 0 manuscrito da vida do «perspicaz.» E epor isso que as dimensoes pessoais da identidade funcionamdiferentemente das colectivasll .

Isto nao e apenas um ponto sobre os ocidentais modernos:transculturalmente importa as pessoas que as suas vidastenham uma determinada unidade narrativa; querem ser capa­zes de contar a historia das suas vidas que fa<;a sentido. A his­toria - minha historia - pode ser coerente se e apropriada pelospadroes disponfveis na minha cultura para uma pessoa daminha identidade. Ao contar essa historia, como me encaixo navasta historia das varias colectividades e, para a maior parte denos, importante. Nao sao so as identidades de sexo que daoforma (atraves, por exemplo, dos ritos da passagem a mulher ­ou a maturidade) a nossa vida: as identidades etnicas e nacio­nais tambem se encaixam em cada historia individual para umagrande narrativa. E alguns dos indivfduos mais individualistasdao valor a estas coisas. Hobbes falava do desejo pela gloriacomo um dos impulsos dominantes dos seres humanos, umque estava destinado a trazer problemas para a vida social. Mas

.a gloria pode consistir no encaixe ou ser vista como que encai­xando numa historia colectiva, e, assim, em nome da gloria,podemos acabar por fazer as coisas mais sociais.

Na nossa presente situa<;ao no ocidente multicultural, vive­mos em sociedades nas quais certos indivfduos nao tem sidotratados com igual dignidade porque eram, por exemplo,

11 Ha outras identidades que aparecem nos manuscritos, assim nao valera apena distinguir apenas a pequena classe de identidades colectivas das iden­tidades pessoais. «Intelectual»J «artista», identidades profissionais como«professor», «advogado», «politico» tacias diferem das vastas identidadescolectivas sobre as quais lenho falado de varias maneiras num ponto quequem desenvolver: tendem a nao depender, de algurna maneira, das pro­priedades (como ascendencia e corpo sexual) que sao (concebidas como)nao opdonais; e tendem a nao ser centrais para a infancia, relac;oes interge­rac;6es, e vida familiar. Ha poucas distinc;6es nesta area. a ponto da distin­~ao analitica entre identidades manuscritas e nao manuscritas e explorarurn problema, nao fomecer os inidos de urn grupo de categorias rigidas.

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mulheres, homossexuais, negros, cat6licos. Como Taylordefende tao persuasivamente, porque as nossas identidadesestao dialogicamente moldadas, as pessoas que tem estas carac­teristicas acham-nas centrais - muitas vezes negativamente ­para as suas identidades. Hoje em dia, ha a concordiincia bas­tante difundida que os insultos as suas dignidades e as limita­~6es da sua autonomia impostas em nome destas identidadescolectivas estao seriamente errados. Uma forma de curar 0 euque os que tem estas identidades compartilham e aprender aver estas identidades colectivas nao como fontes de limita~aoeinsulto mas como uma parte valiosa do que elas centralmentesao. Porque a etica da autenticidade nos exige que expressemoso que centralmente somos, eles exigem assim 0 reconhecimentona vida social enquanto mulheres, homossexuais, negros, cat6­!icos. Porque nao havia uma boa razao para tratar mal as pes­soas deste tipo, e porque a cultura continua contudo a fornecerimagens degradantes delas, elas exigem que fa~amoscom que aobra cultural resista a estere6tipos, que desafie os insultos, quesuspenda as restri~6es.

Estas restri~6es antigas sugeriam manuscritos de vida paraos apoiantes destas identidades, mas eram negativos. De modoa construir uma vida com dignidade, parece natural capturar aidentidade colectiva e em sua vez construir manuscritos devida positivos. Um afro-americano ap6s 0 movimento PoderNegro retem 0 velho manuscrito odioso, 0 manuscrito que osconsiderava negros, e trabalha, em comunidade com os outros,para construir uma serie de manuscritos de vida negra positi­vos. Nestes manuscritos de vida, ser negro e recodificado porser Preto, e isto exige, entre outras coisas, a recusa em assimilarnormas de discurso e de comportamento brancas. E se alguemnuma sociedade racista e Preto, entao ten! de !idar constante­mente com assaltos a sua dignidade. Neste contexto, insistir nodireito de viver uma vida digna nao sera suficiente. Nem sequer

• sera suficiente exigir ser tratado com igual dignidade apesar dese ser Preto, pois isso ira exigir uma concessao de que ser Pretoconta naturalmente ou ate certo ponto contra a nossa digni­dade. E entao acabaremos por pedir para sermos respeitadosenquanto negros.

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o mesmo exemplo se aplica a identidade homossexual. Urnhomossexual americana depois de Stonewall e da liberta~ao

homossexual retoma 0 antigo manuscrito odioso, 0 manuscritode armario, 0 manuscrito no qual ele e uma mulher, e trabalha,em comunidade com outros, para construir uma serie demanuscritos de vida homossexual positivos. Nestes manuscri­tos de vida, ser homossexual e recodificado como ser gay, e istoexige, entre outras coisas, a recusa de ficar no armario. E sevamos permanecer fora do armario numa sociedade que privaos homossexuais de igual dignidade e respeito, entao tern delidar constantemente com assaltos asua dignidade. Neste con­texto, 0 direito de viver como «homossexual abertamente» naosera suficiente. Nem sequer sera suficiente ser-se tratado comigual dignidade apesar de ser homossexual, pois isso ira exigiruma concessao de que ser homossexual conta naturalmente ouate certo ponto contra a nossa dignidade. E entao acabaremospor pedir para sermos respeitados enquanto homossexuais.

Este e 0 tipo de hist6ria que Taylor conta, com simpatia,sobre 0 Quebeque. Simpatizo com as hist6rias da identidadegay e negra que acabei de contar. Pode ate ser hist6rica e estra­tegicamente necessario para a hist6ria enveredar por este cami­nho12• Mas penso que temos de dar 0 passo seguinte, que eperguntar se as identidades construfdas deste modo serao ­falo aqui como alguem que na America conta como urn homemnegro homossexual - agradaveis a longo prazo. Exigir respeitopara pessoas negras e homossexuais requer que existam algunsmanuscritos que concordem com 0 ser afro-americano ou ter osmesmos desejos sexuais. Havera modos apropriados de sernegro e homossexual, terao de se encontrar expectativas, seraofeitas exigencias. Eneste ponto que alguem que leva a autono­mia a serio ira perguntar se nao teremos substitufdo urn tipo de

12 Comparem com 0 que Sartre escrevia em «Orphee Nair» in Anthologie de faNouvelle Poesie Negre et Malagache de Langue Fran,aise (ed. L. S. Senghor),p. XlV. Sartre defendia, com efeito, que esta mudan~a eurn passo necessariana progressao dialectica. Nesta passagem ele afirma explicitamente que 0

que ele chama de «racismo anti-racista» e urn caminho para a «unidadefinal... a aboli~o das diferenc;as de rac;a.»

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tirania por outro. Se tivesse de escolher entre 0 mundo do arma­rio e 0 da liberta~ao homossexual, ou entre 0 mundo do UncleTom's Cabine e 0 Poder Negro, eu escolheria, claro, 0 ultimo decada caso. Mas gostaria de nao ter de escolher. Gostaria de teroutras op~6es. A poHtica do reconhecimento exige que a nossacor de pele, 0 nosso corpo sexual, seja reconhecido politica­mente de maneira diffcil para aqueles que querem tratar a suapele e 0 seu corpo sexual como dimens6es pessoais do eu. E pes­soal nao significa secreto, mas nao apertadamente manuscrito.Eu penso (mas Taylor nao) que 0 desejo de alguns habitantes doQuebeque de escolheram pessoas que sao «etnicamente» franc6­fonas para ensinarem os seus filhos em frances passa dos limites.Acredito (pronunciando-me num t6pico nao referido por Taylor)que isto e, de algum modo, 0 mesmo limite que exige que euorganize a minha vida de acordo com a minha «ra~a» ou aminha sexualidade.

Eurn pensamento familiar que as categorias burocraticas daidentidade devem surgir pouco antes das excentricidades dasvidas das pessoas. Mas e igualmente importante ter em menteque uma politica da identidade pode transformar as identida­des daqueles em cuja representa~ao trabalha13. Entre a poHticado reconhecimento e a poHtica da compulsao, nao ha uma Iinhamuito distante.

13 Este e Dutro ponto que as essencialistas incorrectamente tentam nao ver.

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COLABORADORES

KWAME ANTHONY ApPIAH e Professor de Estudos Afro·Americanos e deFilosofia na Universidade de Havard. Cresceu em Ghana e estudou naUniversidade de Cambridge, onde fez a seu Mestrado e Doutoramentoem Filosofia. Nos sellS muitos livros encontram-se Assertion andConditionals, For Tntth in Semantics, Necessary Questions, e In My FathersHouse. E tambem autor de duas novelas de misterio: Avenging Angel eNobody Likes Letitia. Os interesses escalares do Professor Appiah variamdesde a hist6ria intelectual africana e afro-americana aos estudos litera­rios, etica e filasalia espiritual e cia linguagem; tambem ensinou regular­mente problemas filos6ficos no estudo das religi6es tradicionais africanas.Poi Presidente do Comite para as Estudos Africanos do Conselho deInvestigac;ao das Ciencias Sociais e do Conselho Americano dasSociedades Evoluidas e Director da Sociedade para a Filosofia Africana naAmerica do Norte. Eeditor da revista «Transition», e tern leccionado emCambridge, Yale, Cornell, Duke, e na Universidade de Ghana.

AMY GUTMANN e Professora de Polftica na Universidade de Princeton eDirectora do Centro Universitario para os Valores Humanos e doPrograma para os Assuntos Eticos e Politicos. Entre as suas publicac;6esestao Democratic Education, Liberal Equality, Democracy and the WelfareState, e Ethics and Politics. as seus interesses de investigac;ao incIuem afilosofia moral e pol£tica, a etica pratica e a educac;ao. Faz parte do qua­dro executivo da Associac;ao para a Etica Pnltica e Profissional e e Leitoraem Stanford em 1994-95. Foi companheira de Rockfeiler, Inspectora noInstituto de Estudos Avanc;ados, e Professora extraordinaria naUniversidade de Havard. Licenciou-se na Harvard-Radcliffe College, fezMestrado pela London School of Economics e 0 Doutoramento emHarvard.

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JORGEN HABERMAS e Professor de Filosofia na Universidade de Frankfurt.Recebeu ja numerosos premios, incluindo os Premios Hegel, SigmundFreud, Adorno e 0 Geschwister-Scholi. as livros disponlveis em linguainglesa sao The Structural Transformation of the Public Sphere, Theory andPractice, Knowledge and Human Interests, Toward a Rational Society, TheTheory of Comunicative Action, The Philosophical Discourse of Modernity,Post-Metaphysical Thinking, e Between Facts and Norms (brevemente).

STEVEN C. ROCKEFELLER e Professor de Religiiio na Middlebury College, ondefoi presidente do departamento e reitor da universidade. A sua investiga­c;ao e ensino focam a integraC;ao dos valores democraticos, da ecologia eda religiao. Autor de John Dewey; Religiolls Faith and Democratic ReligiousHumanism, e membro da Comissao Nacional para 0 Ambiente, convo­cado pelo World Wildlife Fund. Etambem director e fundador do MuseuWendell Gilley em Southwest Harbor, Maine. Dirigiuo simp6sio Espiritoe Natureza: Religiao, Etica e Crise Ambiental, e falou sobre natureza,valores e sabre a espiritualidade, e foi entrevistado por Bill Moyers para«A World of Ideas». Fez Mestrado na Universidade de Princeton eDoutoramento na Universidade de Columbia.

CHARLES TAYLOR e Professor de Filosofia e CH~ncia Politica na UniversidadeMcGill. Durante muitos anos foi Professor de Teoria Social e Politica emOxford e membra do All Souls College. Tambem ensinou em Princeton,na Universidade da California em Berkeley e na Universidade deMontreal, e deu conferencias em muitas universidades do mundo. asseus livros incluem The Explanation of Behavior, Hegel, Human Agency andLanguage, Philosophy and the Human Sciences, e mais recentemente Sourcesof the Self· Publicou numerosos artigos e criticas sobre a filosofia do espi­rito, psicologia e politica. E activo na politica e candidatou-se para 0

Parlamento Federal Canadiano em nome do partido New Democratic.Recentemente foi escolhido para 0 Conseil de la Langue Franc;aise noQuebeque, onde torna bastante interesse pela vida publica.

MICHAEL WALZER e Membro Permanente da Faculdade na School of SocialSciences no Instituto para as Estudos Avanc;ados da Universidade dePrinceton. Antes de se juntar ao Instituto, leccionou em Princeton e emHarvard, e ganhou urn premio nacional pelo excelennte ensino naDanforth Foundation. Os seus muitos livros incluem The Revolutio.n of theSaints (vencedor do Premio Benjamin E. Lippincott em 1991 da AmericanPolitical Science Association), ObligatiotJs, Just and Unjust Wars, Spheres ofJI/stice, Interpretation and Social Criticism, e The Company ofCritics. Eeditorda revista «Dissent», subeditor da revista «The New Republic», e fazparte do quadro editorial da «Philosophy & Public Affairs» e «PoliticalTheory», E um frequente contribuidor destes e de outros jornais.Licenciou-se na Universidade Brandeis e tirou 0 Doutoramento em cienM

cia politica na Universidade de Harvard.

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ISUSAN WOLF e Professora de Filosofia na Universidade John Hopkins.

Ensinou em Dartmouth, Harvard, Princeton e na Universidade deMaryland. Autora de «Freedom Within Reason» e de muitos artigossabre etica e filosofia do espirito, incluindo «Moral Saints», «Above andBelow the Line of Duty», «Sanity and the Metaphysics of Responsibility»,«Ethics, Legal Ethics, and the Ethics of Law», e «The Importance of FreeWill», Foram-Ihe atribuidas balsas da American Council of LearnedSocieties e da American Association of University Women. E colabora­dora do «Journal of Philosophy», «Mind» e «Ethics» do qual pertence aoquadro editorial. Fez Mestrado em maternatica e filasafia em Yale e 0

Doutoramento em filosofia em Princeton.

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INDICE REMISSIVO

A

aborto, 38, 41Ackerman, Bruce, 76afluencia, 158Afro-americanos: identidade cultu­

ral, 21, 22, 26-27, 97, 103, 104, 169,170-171; eurrkulo, 25-26, 32, 33,37, 85-86, 99, 100; manuseritos devida, 177; auto-estima, 46, 96

Alema (Lei Basiea), 157, 160Alemanha, 51, 103, 136, 143, 145,

151-154,159-164ambientalismo, 111-114, 116«American Scholar, The», 35-36Amish, 96, 148Amnistia IntemacionaI. 85antropocentrismo, 111, 114anti-semitismo,40-41Arendt, Hannah, 34aristocracia, 24, 47Arist6teles, 34, 35, 36artistas, 168, 169Asio-americanos: identidade cultu­

ral, 21, 22, 26-27, 96, 102, 103; eur­rkulo, 32, 37, 99

assimila,ao, 58, 155atomismo, 2S

Austria, 160autenlicidade, 48-52, 54-58auto-consciencia, 49auto-determina,ao, 72-73, 77, 107, 144auto-estima, 46, 56, 57, 85, 95-96auto-realiza,ao, 51, 105, 106Autobiografia de Frederick Douglass,

34autonomia, 59-60, 72-73, 77, 107, 110,

178-179; cultural, 136, 174; indivi­dual, 12, 13, 130-134

B

barbarismo, 92Barchas, Isaac, 31Baseos, 136Beauvoir, Simone de, 34Bellow, Saul, 62, 63, 99-100, 118bern comum: diversidade e, 29, 33-34,

72-81, 84, 92-93; como processso,109-110; identidade universal, 24,53,66-71, 108

bilinguismo, 72-79Bills of rights, 72-75, 79, 82-83, 118bioeentrismo, 111-114, 116Bloom, Allan, 35Bohemlano (ideal), 170

185

,

J

B6snia-Herzegovina, 144Buber, Martin, 113budismo, 107

cCaliban,46California, 112Canada: direitos aborfgenes, 59·60,

61n, 72, 74; constitui,ao de, 72-73;desintegra~ao, 72, 84; pluralismo,21, 74-81, 84, 118, 119, 144-145.Ver tambem Quebeque

Canadian Charter of Rights, 72-76, 80Canadianos: aborigenes, 59·60, 61n,

72, 74; ingleses, 22, 27, 74-76, 80,84; franceses, 22, 27, 61n, 72-81,84,96,107, 110, 129, 144, 173

Canadiano (Supremo Tribunal), 73n,75

casamento, 173-174catolicos,l77censura, 102-103China, 107cidadania: direitos basicos, 22, 29-32,

57-58,71-83,88,109,110,117,119_-121, 142; igualdade, 22-25, 47, 55,57-61, 66-71, 77-81; "primeiraclasse»,57

frances, 161; alemao, 32-36; identi­dade, 106; educa,ao liberal, 32-36;naturaliza,ao, 155, 160; obriga­~6es, 36-37; cultura politica, 151;reconhecimento publico, 66-71;«segunda dasse, 57-59; estadosocioecon6rnico, 58, 59, 60, 61n; 0

estado,143civil (desobediencia), 34civil (direitos), 22, 27, 58, 71-83, 88,

105-106, 109, 110civil (guerra), 74, 107civiliza,ao, 92, 99-100, 112civis (movimento dos direitos), 58dasse, 167

186

coexistencia, 146, 147, 148colec~6es bibliotecarias, 101-102colonialismo, 46, 51, 83, 85, 127, 134,

136, 137, 158«comum (eu)>>, 69comunismo, 63ncomunitarios, 141, 142, 155nconformidade,50conhecimento, 36-37,40, 109, 110COllsideraroes sobre 0 goverllo da

Pol6llia, 66-67, 67n, 69nconstitui,ao, 127, 129, 131contos populares, 101, 103crian,as (abuso de), 109crianc;as (bem-estar), 133crian,as, 174, 175Cristianismo, 22, 27, 66, 69, 82, 97,

114,143Critoll, 36Croatas, 128cuidados de saude, 22cultura: autonomia, 136; evoluc;ao

de, 24-25, 62, 107, 109-112; frag­mentac;ao, 113; forma de vida,112-114; na,ao, 162; fases, 86;potencialidade, 62-63; preserva­,ao, 29-31, 32, 51, 60-61, 72-73, 78­-84,96, 104, 107, 110-111, 114,117-121; estudo de, 86-93, 98-99,103-104,110-113,116,121; univer­sal, 108; Ocidente, 32-36, 46, 51,62,73-74,82-88,91-93,99-102,103, 108, 111, 113, 136; «branco»,170-171

«cultura branca», 170, 171cultural (diferen,as), 129, 130cultural (integridade), 27-31, 60, 61n,

78-81, 86, 95, 102, 104, 107, 113,135-136

cultural (meio), 76cultural (valor), 84-93, 95, 98, 99,

102-104, 105, 112-116Curdo, 128, 136, 144Checa (Republica), 160

rI

oDamnes de 10 Terre, Les (The Wretched

of the Earth), 85Dante, 31Darwin, Charles, 31decadencia,86«desconstrucionistas», 32-34, 37-40,

138ndemocracia: constitucional, 11, 12, 13;

desenvolvida, 27; reconhecimentoigual, 47, 55-61, 112-116; direitosindividuais, 22, 29-32, 57-58, 71-81,105-107, 109, 110; interesses degrupos, 39; pluralismo, 21-31, 36­-40,54-56; pap,Hs sociais, 51-52,54-56; estrategia social, 109-116

Derrida, Jacques, 90Dewey, John, 28, 39, 52-57Deus, 48-49, 54, 114di'logo, 25, 39, 52-57di'spora, 83diferencia~iio, 70-72dignidade, 24; iguaidade, 58-65, 69­

-71, 77-78, 88, 105; vs. homa, 47, 57,69-71; ideal, 26, 31, 51, 55, 113-114

discurso do 6dio, 40-42Discurso sobre a desigualdade, 55discrimina~ao: identidade cultural, 21-

-22, 59-64, 73-93; protec~iio contra,73-76, 80-81, 109; inverso, 60, 61n

distinta (cIausula da sociedade), 75--76, 80-81, 118

distribui~iio de bens, 126-127divina (providencia), 92Douglass, Frederick, 34devido (processo), 22, 79Dworkin, Ronald, 76, 129, 141

E

Eckhart, Meister, 113ecologia, 111-114, 116

187

educa\'ao elevada: padroes normais,37-40,91-93,98,99-100, 103-104;curriculo, 31-40, 85-88, 98, 99-100,103-104; pensamento critica, 103­-104; direitos minoritarios, 21, 39--41, 121; cultura ocidental, 31-37,85-88,91,99-104

Emersson, Ralph Waldo, 25, 35-37Emile, 66escravatura, 34, 46, 65-66, 70Eslava (cultura), 51Eslov'quia, 160Espanhol, 32especiflcidade,59«essencialistas», 32-37, 39-40, 171Estados Vnicios: direitos civis, 58,

73, 74, 76, 77-78, 105; Congresssode, 74n; politica educacional, 30­-37, 107; sociedade imigrante, 3D,113, 119, 121, 155; pluralismo, 21,26-27,37,96,119-121,145; culturapolflica, 154

etica: cultura, 142-150; identidade,21-22, 37, 106, 107, 115-116, 166

Est6icos, 66, 69etnocentrismo: criticismo, 62-63, 83,

85-93; desenvolvimento, 46, 99­-100,104; tolerancia, 23, 41-42

Eurocentrismo: desenvolvimento de,46, 51, 99-100; perpetua~iio de, 32­-33, 62, 85-86, 90-91, 104, 111, 136

Europa, 158-159

F

Famflia, 143Fanon, Frantz, 85-86favorilismo, 59-60, 61n, 74, 110federalismo, 145feminismo, 23, 26, 34, 45-46, 63; igual­

dade legal, 131-133; psicoanalilico,57n; reconhecimento, 56, 57, 57n,71,85, 95-97, 127, 134, 135

filosofia, 137, 171Foucault, Michel, 90

"

Fran~a, 51,103,118,119,161-162Francesa (Revolu~ao), 136, 149Frederico, 0 Grande, 51Fundamentalismo, 149, 156«fusao de horizontes», 87, 90, 93,

110

G

Gadamer, Hans-Georg, 87Gastarbeiter, 128, 159-162gays, 128, 177, 178Giddens, Anthony, 171nGolfo (Guerra do), 136Grande (Cultura Russa), 63ngravidez,25Grecia, 35, 56-57, 113Gutmann, Amy, 128, 137

H

habeas corpus, 81Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 46,

56,70,84hegemonia, 37-38, 63, 86, 89Herder, Johann Gottfried von, 50,

51,52,92,114, 167n, 169historiadores (debate de), 151Hobbes, Thomas, 176Holanda, 118, 119Homero,31homogeneidade, 63, 70-73, 81, 91-93,

95-97, 101-102, 108homofobia, 40-41homossexual, 128, 177, 178Honneth, Alex, 126honra: bases, 47, 57, 69-70; hierar­

quias, 65-71humana (natureza): sagrada, 113-114;

universalidade, 35-36, 106-107Hungria, 160Hutcheson, Francis, 48nHutchins, Robert Maynard, 35

188

I

identidade: autenticidade, 165-166;cria~ao, 25, 45-46, 52-57, 62, 105­-106, 115; descrita, 45, 53-54; sexoe, 106, 166, 167; individualizada,24-27,32,48-57,106,114,167,170,176; nacionaI, 169; potenciali­dade, 62-63, 105-106; preserva~ao,60-63; primaria, 107-108, 114;reconhecimento de, 45-48, 52, 54­-60, 72, 84-93, 95-97, 106, 113-117;rela~6es, 52, 57, 59, 65, 115; estadosocial, 51-52, 54-56, 65, 115; natu­reza unica, 25-27, 50-51, 58-60,105, 114

igualdade: identidade, 24-27, 55, 64­-65; protec~ao de, 22-23, 29-31, 40--43,61-64,101, 105, 107, 118; idealrepublicano, 66-71; universal, 24­-27, 43, 47, 55, 57-72, 76-82, 84-93,98, 105, 112-116, 134

igualitarismo, 47, 69, 111-112igual (protec~ao),74, 81igual (direitos), 129-132imigrantes, 30, 83, 113, 119, 121, 148,

152-159incapacidade, 25, 62, 128, 167incompatibilidade, 130Incorpora~ao (doutrina), 74nindividualismo,170individuais (direitos), 125-129instituil;6es publicas, 22inteledual (padrao), 37-40Islao, 22, 27, 82isola~ao, 68Israel,136Mlia, 136

J

Jacobinos, 71Jugoslavia, 107

,

(

IrI

judaismo, 22, 27, 40-41, 96judicial (revisao), 72, 73-74, 78, 81, 84

K

Kallen, Horace, 119Kant, Immanuel, 61, 64, 71, 77-78, 128Kimball, Roger, 92King, Martin Luther, 34Kohlberg, Lawrence, 59nkltltltrnation, 162Kymlicka, Will, 61n, 146

L

lavagens etnicas, 144lei, 125, 126, 129, 138-139, 141, 152, 154Leopold, Aldo, 113-114«Letter from Birmingham City Jail»,

34Letter to D'Alembert, 57-58liberdade: de associa~ao, 22, 29-30,

31, 108, 109; objectivo comum, 70­-71; educas-ao liberal, 31, 43; deimprensa, 22, 31; de protecS'ao, 22­-23,29-31,42,72-75,79, 105-111;opinHio publica, 68; de respeito,65,70-71, 115-116; de discurso, 22,29-30, 31, 40-43, 79, 83, 108, 109

liberalismo: «cego», 59-60, 63-64, 80­-83,88,91-93; neutralidade cultural,82-84, 108-109, 117-121; diversi­dade, 27-37, 42, 63-64, 70-81, 106­-113; ideais, 105-109; identidade,106-107; direitos individuais, 126,127, 132, 175; proeessual, 76, 77-81,108-110,172-173,174; representa­S'ao e, 22-27; estratl~gia social, 109­-116; substantivo, 76-77, 82-83

«Liberalismo 1», 30, 117, 119-122,127,130-131,134,141

«Liberalismo 2», 30, 117-118, 119,120,121,127,141

189

lingua, 52, 72-79, 128, 170livros escalares, 112Locke, john, 48nluero,22

M

Machiavelli, 32maiorihirias (culturas): arrogancia

de, 62-63, 96; poder de, 38-39;protecS'ao contra, 23, 58-60, 61n,72-93,111,118-121; apoio de, 118

Maistre, joseph, 116manuscrito de vida, 176-178marginalizaS'ao, 83Marx, Karl, 32massa (culturas) Ver: culturas maio­

ritariasmaterialismo, 170mau reconhecimento, 45-46, 56-57,

84-88, 95-97, 99-101Mead, George Herbert, 52Meech amendement, 73, 75, 80Meech Lake, 73, 143-144Mill, john Stuart, 25, SInminorias: padr6es comuns, 37-39,

63-64, 72-83, 91-93, 98; padroesculturais, 21, 26-30, 51, 60, 61n,63,72-83,85-93,111,118-121,127,135-136; desfavori'veis, 21, 26-27,58-60, 120; deficientes, 62; nacio­nal, 143; territorial, 119

misogenia,41modernidade, 137, 158monarquia,47Montesquieu,47moral (compromisso): processual,

76,77-81, 108-109; substantivo,76-77, 82-83

moral (valores): autenticidade e, 170­-171; defesa, 41-43; valor igual, 93;vida etica, 137; Deus, 48-49; born,48-49; hierarquia, 110; inato, 48-52

Mormons,96Morrison, Toni, 34

....

..

..

mulheres: auto-entendimento cultu­ral, 135; curriculo, 32-37, 85; explo­ra~ao, 96-97; identidade, 177;minoria, 21-22, 25-26, 45-46, 57n,96-97

N

nacional (movimentos de indepen­dencia), 127, 136

nacionalismo, 22, 23, 51, 84, 111, 134,136-137,149

nativo (americanos), 21, 24, 26-27, 95,101; curriculo, 32, 37, 99; favori­tismo, 59-60, 61n, 74; auto-estima,46; auto-govemo, 59-60, 72

natural (cil~ncias), 89, 92nnaturaliza~ao, 155, 160natureza: padrao critico, 35, 69; mara­

lidade, 49-50; respeito, 111-114Neuburger, 161neutralidade: igualdade, 22, 29-30,

62-64, 82; incompleto, 82, 120;como urn requerimento, 31, 59n,77-78,108-109,117-121

Nova Guine, 107Novo Mundo, 46Nova Iorque, 112Nietzsche, Friedrich, 87, 90, 117Norte (lrlanda), 136Noruega, 118,119,121

oobjectivismo, 89, 103, 104, 110On Liberty, 51nOpposing Self, The, 168opressao, 45-46, 56-57, 96-97orgulho, 49, 66, 67, 69, 70, 114originalidade, 50-55OUlros-dependenda, 52-57, 65-71, 115

p

pantefsmo,49particularismo, 37, 63-64, 121

190

patriarcado, 45-46patriotismo, 66-67, 152Piatao, 32, 33-34, 35, 36Polania, 160politica (actividade), 21, 23, 78, 82-

-84, 115-116, 118politico (asilo), 153, 157, 159-164politica (rectidao), 137politica (cultura), 12, 151, 152, 154,

156politica (liberdade), 22, 27politica (moralidade), 171-172politico (poder), 37-40, 65, 78, 90Politica,34pobreza, 58,59, 133prim'rios (bens), 22, 23, 127processual (consenso), 152Prussia, 155-156psicologia, 112, 115publica (educa~ao): curriculo, 25-26,

30, 85-86, 107, 115; contexto cultu­ral, 25-26, 30, 31, 121; comunida­des locais, 30, 31, 121; direitosminorit'rios, 21-22, 25-26, 72-73,75, 174; vs. educa~ao privada, 103;reprodu~ao social, 175

publicas (cerimanias), 66-68Publicas (institui~6es): avalia~ao, 30;

valores culturais, 29-30, 31, 38-39,41-43; crescimento humano, 109;impessoalidade, 22; pluralismo,21-26

publica (opiniao), 65-71, 84

Q

Quebeque: como sociedade distinta,80-81, 84, 107, 110, 118, 119, 120,121, 129, 136; lingua francesa, 72­-73,75-76,78-79,118,179

Quebeque (Bill of Rights), 75Quebeque (habitante de), 72-73, 79,

84,107,118Quebeque (Lei), 75, 119quota (sistema), 120

I'

1

R

ra~a: igualdade, 26-27, 40-41, 88, 109,114; identidade, 21-22, 37, 106,166-167; recanhecimenta, 39-40,56,97

racial (superiaridade), 23, 41-42, 46racisma, 23, 32, 40-41, 46, 74, 170,

178nracionalidade, 61Rawls, john, 34, 76, 119, 127, 129, 150realismo, 171reciprocidade,67-70reconstrw;ao,74redistributiva (programa), 59reducionismo, 37-39refugiadas, 157relativisma, 32, 35, 36, 110religHio: aceitac;ao, 115-116; cerimo­

nia, 67; identidade colectiva, 166,173; igualdade, 21, 40-41, 92, 97,105, 113-116, 118; liberdade, 22,29-30, 31, 79, 108; fundamenta­lismo, 149-150; polftica, 82; estado,29-31, 74n, 82, 108

representa~ao, 21-27repressao, 163Rep.lblica, 33-34, 36republicanismo,66-71respeito: condescendencia VB. 90-93,

98-99; descri~aa, 40-43, 128; hie­rarquia, 65-71; importancia de,46, 61-63, 65, 98-104, 115-116;compromisso processual, 76-81,86,88,98,105-106, 110-114; racia­nalidade, 61, 62

«reversa» (discriminaC;ao), 146Ramantisma, 50n, 166, 168, 171Rousseau, Jean-Jacques: objectivD

comum, 24, 66-71; curriculo, 32;diferencia~aa, 70-71; igualdade,25-26,55,65-71; maralidade, 49-50;recanhecimenta, 25-26, 55, 64-65,70-71; respeito, 65-71; hierarquiasocial, 55, 65-71; mulheres, 34

191

Rushdie, Salman, 83, 84,149-150,175Russia, 63nRussos,128

sSanto Agastinha, 32, 49Sao Tomas de Aquino, 34Sandel, Michael, 78Sartre, jean-Paul, 178nSchlesinger, Arthur, jr., 112Scholar Gipsy, 168segmenta~iia, 156segrega~iia, 120separa~aa de 19reja e Estada, 29-31,

74n, 82, 108separatisma, 63n, 72, 84, 107, 111sexisma, 32,40-41,45-46, 57n, 74, 96­

-97sexa: igualdade, 26-27, 47, 57n, 86, 96­

-97, 109, 111, 132, 133; identidade,106, 166, 167; impartancia de, 21,22,37,39; pap"is, 96-97

sexual (molestamento), 109sexualidade, 166, 167sexual (arienta~iia), 97, 109Shaftesbury, Earl of, 48nShakespeare, 103«significantes» outros, 52-57, 115sobrevivencia, 172-175social (classe), 25, 39, 51-52, 54-56,

65-69,97,114Social Contract, The, 65, 69, 71nsocial (demacracia), 126social (hierarquias): colapso, 24, 46-47,

51i «preferencias)), 47, 55, 65-69iopinHio publica, 65-71

socializa~ao, 131social (moderniza<;30), 149social (reprodu~aa), 175social (ciencias), 32, 38-39, 89social (bem-estar), 132-133solidariedade, 90sociedades fechadas, 64

..

d

b

Solovyov, Vladimir, 114Solzhenilsyn, Aleksandr, 64n, 113, 114Somalia, 158SonderbeWllsstsein, 163Sovietica (Unioo), 63n, 163Stanford (Universidade), 32-33, 34subalternos (grupos), 45subculturas, 29, 31, 101, 117subjectivismo, 89-91, 98, 117SlImma Theologiae, 34supremas (culturas), 23, 41-42, 46,

51, 62-63, 84, 85-93, 111

T

teatro,67teismo,49Terceiro Mundo, 51Theory ofJlIslice, 34Tibete,107toleranda, 41-42Tolstoy, Leo, 62, 92, 99totalitarismo, 24-27, 71«trabalhadores convidados», 160tradicionalismo, 149tribalismo, 37, 107Trilling, Lionel, 48, 166n, 168

u

UNESCO, 85United Nations Generai Assembly,

111, 158

192

United Nations World Charter forNature, 111-112

universalismo, 29-31, 47, 57-58, 69universal (potendal), 61-63, 70-71,

77,105-107,115-116Universidade de Chicago, 100

v

Versos Satdnicos, 82violencia, 40, 85Volk,51Volksdelltschen, 160voto (direito de), 22, 58, 88

wWall Street JOllmal, 31-32Walzer, Michael, 127, 129, 141Wilde, Oscar, 171Wisconsin vs. Yoder, 148nWoolf, Virginia, 34

xXenofobia, 153

zZulus, 62, 92, 99

l'

II

I

L

,INDICE

Prefacio (1994) 11

Prefacio e agradecimentos 15

PRIMEIRA PARTE

Introduc;ao, Amy Gutmann 21

A Politica de Reconhecimento, Charles Taylor 45

Cornentario, Susan Wolf 95

Cornentario, Steven C. Rockefeller 105

Cornentario, Michael Walzer 117

SEGUNDA PARTE

Lutas pelo Reconhecimento no Estado Constitucional Dernocratico,]iirgen Habermas, traduzido por Shierry Weber Nicholsen 125

Identidade, Autenticidade, Sobrevivencia: Sociedades Multiculturaise Reproduc;ao Social, K. Anthony Appiah 165

Colaboradores 181

lndice Rernisslvo 185

193

,