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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Administração Sara Pimenta Resende UMA ANÁLISE DOS PROCESSOS SIMBÓLICOS ENVOLVIDOS NO CONSUMO DE FÃS DO GÊNERO MUSICAL FUNK À LUZ DA CULTURA MATERIAL Belo Horizonte 2018

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Administração

Sara Pimenta Resende

UMA ANÁLISE DOS PROCESSOS SIMBÓLICOS ENVOLVIDOS NO CONSUMO

DE FÃS DO GÊNERO MUSICAL FUNK À LUZ DA CULTURA MATERIAL

Belo Horizonte

2018

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Sara Pimenta Resende

UMA ANÁLISE DOS PROCESSOS SIMBÓLICOS ENVOLVIDOS NO CONSUMO

DE FÃS DO GÊNERO MUSICAL FUNK À LUZ DA CULTURA MATERIAL

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Administração da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do Título de Doutor em Administração. Orientador: Prof. Dr. Marcelo de Rezende Pinto. Área de concentração: Estratégia e Marketing

Belo Horizonte

2018

FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Ficha catalográfica elaborada por Fernanda Paim Brito– CRB 6/2999

Resende, Sara Pimenta

R433a Uma análise dos processos simbólicos envolvidos no consumo de fãs do

gênero musical funk à luz da cultura material / Sara Pimenta Resende. Belo

Horizonte, 2018.

165 f.: il.

Orientador: Marcelo de Rezende Pinto

Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Administração

1. Funk (Música) - Análise, apreciação - Belo Horizonte (MG). 2. Sociedade

de consumo. 3. Música - Instrução e estudo. 4. Comportamento humano -

Aspectos sociais. 5. Adolescência - Aspectos sociais. I. Pinto, Marcelo de

Rezende . II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-

Graduação em Administração. III. Título.

CDU: 339.4

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Sara Pimenta Resende

UMA ANÁLISE DOS PROCESSOS SIMBÓLICOS ENVOLVIDOS NO CONSUMO

DE FÃS DO GÊNERO MUSICAL FUNK À LUZ DA CULTURA MATERIAL

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Administração da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do Título de Doutor em Administração. Orientador: Prof. Dr. Marcelo de Rezende Pinto. Área de concentração: Estratégia e Marketing

_______________________________________________________

Prof. Dr.Marcelo de Rezende Pinto - Orientador Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

_______________________________________________________

Prof. Dr. Ramon Silva Leite Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

_______________________________________________________

Prof. Dr. Ricardo César Alves Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

_______________________________________________________

Profa. Dra. Maribel Carvalho Suarez Universidade Federal do Rio de Janeiro

_______________________________________________________

Profa. Dra. Eliane Bragança De Matos Unicentro Novos Horizontes

Belo Horizonte, 10 de julho de 2018.

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Ao Cláudio, a Maria e ao João,

que merecem, muito mais do que eu,

o significado desta tese.

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AGRADECIMENTOS

Finalizar esta tese significa colocar em ordem uma profusão de sentimentos,

reconhecer o papel de cada ator nesse processo e, sobretudo, agradecer a Deus por cada um.

Tenho tanto a agradecer!

Antes de tudo, agradeço a Deus por minha família.

Agradeço imensamente...

A minha família, pelo suporte, possibilitando que eu incluísse também um doutorado

entre meus afazeres cotidianos.

Aos meus Pais, pela dedicação e pelos cuidados diários com a Maria e o João.

Ao Cláudio, a Maria e ao João, por terem se entregado de forma tão profunda e

gratuita a esse meu projeto.

O amor de vocês e por vocês move meu mundo!!!

Esta tese de doutorado mudou a forma como eu enxergo a sociedade e devo a entrada

nesse campo de estudo ao Marcelo. Marcelo foi um orientador excepcional! Dedicado,

generoso, respeitador, encorajador e inovador, faz parte de um seleto grupo de Professores

que tornam a academia um lugar melhor. Tive a sorte de tê-lo ao meu lado por todos esses

anos, e o Professor Belk por uma parte importante do meu caminho. Os dois são

essencialmente parecidos.

Manifesto meu respeito e minha admiração pelos Professores do Programa de Pós-

Graduação em Administração da PUC Minas, pela qualidade das aulas, pela profundidade das

discussões e pelo respeito aos alunos. Manifesto, também, meu agradecimento à equipe de

funcionários do programa, ímpar na forma de cuidar de toda a engrenagem!

Agradeço à instituição Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais pelo

financiamento de meu curso de doutorado, por meio do Programa Permanente de Capacitação

Docente e, nas pessoas dos professores Marcos André Silveira Kutova, Diretor da PUC Minas

Virtual e Sérgio Silveira Martins, Pró-Reitor de Recursos Humanos da Universidade, pela

contribuição para a realização do doutorado sanduíche em Toronto, no Canadá, financiado

pelo Governo brasileiro, através de recursos da Capes/MEC. Agradeço, também, à

Capes/MEC por esse fundamental incentivo.

O período de doutorado sanduíche no Canadá foi um divisor de águas em minha vida e

de minha família. Manifesto meu respeito e minha admiração pelo corpo de professores,

funcionários e alunos do Programa de Pós-Graduação em Marketing da Schulich Business

School, especialmente os professores Russel Belk, Eillen Fischer e Markus Giesler, dos quais

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tive a honra de ter sido aluna. Ressalto um agradecimento especial ao Professor Russel Belk,

pela sua generosidade em me receber e apoiar sempre e pelo brilhantismo de suas orientações.

A resposta do aceite do Professor Belk, que chegou durante uma tarde de jogo do Brasil na

Copa de 2014 e que me possibilitou pleitear uma bolsa da Capes para meus estudos no

Canadá, teve sabor de bilhete premiado de loteria!

Ainda sobre o Canadá, essa temporada não teria sido tão bacana se eu não tivesse

encontrado um time tão especial de brasileiras na Schulich Business School. Maribel Suarez,

Luciana Velloso, Carolina Pereira e Renata Andreoni, obrigada pelo compartilhamento de

conhecimentos, experiências e companhia! Tenho muita saudade das aulas, dos cafés e

almoços nos intervalos, do papo no metrô e de nossos passeios nos finais de semana. Foi

muito bom passar um ano com vocês!

A PUC Minas é minha segunda casa, instituição onde estou desde os meus 19 anos,

com pequenos intervalos, lugar onde amizades muito especiais nasceram e foram cultivadas

com carinho. Compartilho minha rotina com alguns desses amigos, que passaram os últimos

quatro anos me escutando falar sobre funk, CCT, cultura material e temas correlatos… César

Rafael, Daniella Paulino, Júnia Lage, Marcos André Kutova, Nélio Oliveira e Soraya

Pongelupe, muito obrigada pela companhia, pela amizade, pela paciência e, sobretudo, pelo

apoio! Apoio não faltou por parte de meu chefe e de meus colegas professores! O apoio e o

carinho por parte de minha equipe, sobretudo de tutoras da PUC Minas Virtual, foram muito

importantes. Meninas, sem o cuidado de vocês tudo teria sido muito mais difícil!

Agradeço, também, a companhia de meus colegas da turma de doutorandos do ano de

2014 em todo esse processo. Tive a sorte de ter colegas encantadores! Agradeço

especialmente a dois colegas, Matheus Andrade e Adriano Joaquim. A generosidade do

Matheus ao abrir o caminho e me acompanhar em minha primeira visita ao Aglomerado da

Serra foi fundamental para que eu tivesse segurança para seguir adiante. Ao Adriano,

agradeço pela amizade e pela companhia em cada fase desta pesquisa. Meninos, a parceria de

vocês nessa caminhada foi uma das coisas boas do processo!

Agradeço à banca de qualificação desta tese, Professora Maribel Suarez, Professora

Eliane Bragança, Professor Ramon Leite, saudoso Professor Dalton Jorge e meu orientador,

Professor Marcelo de Rezende Pinto, pela forma respeitadora com que receberam meu

trabalho e pelos preciosos direcionamentos.

Agradeço, de forma muito especial e com profundo respeito, aos entrevistados que

dedicaram seu tempo a essa pesquisa e me permitiram conhecer de perto uma parte de suas

vidas. Agradeço, ainda, ao bolsista do trabalho de campo desta pesquisa, o acadêmico

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Matheus Cozta, por me emprestar seus olhos para que eu pudesse enxergar uma parte

importante do campo de pesquisa.

Finalmente, agradeço aos profissionais que me auxiliaram a deixar esse documento

melhor. Rennan Antunes, pelo desenvolvimento das belas linhas do tempo que ilustram esta

tese, Luiza Meira pela produção do vídeo originado desta pesquisa, Fernanda Santana, pela

revisão do texto e da normalização e Maria Resende Tadiello, minha filha, pela revisão do

abstract.

É com muito gosto que entrego esta tese de doutorado ao grupo de pesquisa do qual

orgulhosamente faço parte, o Gemacons. Que nossa compêtencia de pesquisa continue a ser

construída com garra, coragem, em equipe e entre amigos!

Pessoal, obrigada por tudo!! Tomara que eu consiga retribuir tudo o que fizeram por

mim!

Parece-me que a saudade acompanha tudo que foi bom! Já estou com saudades de tudo

isso!

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RESUMO Amparado no entendimento do consumo como um produtor de sentidos e identidades e uma categoria central para o entendimento da sociedade contemporânea, essa tese, aderente aos estudos da Consumer Culture Theory (CCT), tem por objetivo compreender a articulação entre as práticas socioculturais e os processos simbólicos na construção de uma identidade cool por jovens integrantes de comunidade de baixa renda inseridos no ambiente do Funk. Para dar suporte teórico à discussão, foi elaborada uma revisão da literatura no tocante aos temas relativos ao consumo, à Consumer Culture Theory, à Cultura Material, aos debates dos conceitos sobre habitus e capitais de Pierre Bourdieu e, por fim, à identidade cool proposta por Belk et al. (2010). Por meio de uma abordagem interpretativista de investigação e baseada no interacionismo simbólico, uma pesquisa empírica foi conduzida com jovens e master of ceremony (MCs) de Belo Horizonte entre os anos de 2015 e 2017. O trabalho de campo concentrou-se em observação participante em eventos e bailes funk e entrevistas em profundidade com 3 MCs e 26 jovens com o apoio de roteiros semi-estruturados. Para analisar os dados lançou-se mão do software de análise de dados qualitativos Atlas ti e da metodologia de análise de conteúdo proposta por Bardin (1995). A fase de análise resultou no estabelecimento de seis categorias de análise: vivendo entre extremos: o funk, o tráfico e a cultura evangélica; o funk como cultura construída pelos jovens de periferia, o funk e as experiências de consumo de lazer; a realidade refletida nas letras do funk; a indumentária funk à luz da cultura material e, por fim, o funk e a identidade cool. Os resultados parecem indicar alguns pontos importantes. Pelo fato de o funk fazer parte do cotidiano dos jovens, as diversas vivências, marcadas por violência e tráfico, potencializam a criação de uma identidade cool que faz com que esses jovens encontrem um lugar nesse universo de signos e significados, típico da sociedade de consumo atual. Nesse universo, eles acabam por (re)significar marcas, produtos e experiências, o que dá lugar às interpretações do papel dos objetos na constituição dos sujeitos, elementos básicos da cultura material. Pode-se destacar também que esses jovens, por meio do funk, criaram um “padrão”, um “modelo” de indumentária, que serve para construir um estilo que se mostrou capaz de ser “importado” por outros contextos e utilizado por outros jovens. Dessa forma, o estudo traz contribuições para o campo pois se acomoda na lacuna percebida entre a construção da identidade cool e as diferentes combinações dos capitais de Pierre Bourdieu no contexto brasileiro. Além disso, vale mencionar que a contribuição teórica dessa tese foi a análise do grupo estudado a partir da lente da cultura material concluindo que, sob essa perspectiva, é possível que um grupo, ao invés de um indivíduo, assuma e comunique as características de identidade cool para outros . Palavras-chave: Consumo, CCT, Funk, Cultura Material, Cool Capital

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ABSTRACT Based on the understanding of consumption as a producer of meanings and identities and a central category for understanding contemporary society, this thesis, adhering to the studies of Consumer Culture Theory (CCT), aims to conceive articulation between sociocultural practices and symbolic processes in the construction of the cool identity by young low-income community members inserted in the Funk environment. To give theoretical support to the discussion, a literature review was elaborated on subjects related to consumption, Consumer Culture Theory, Material Culture, debates on the concepts of habitus and capitals by Pierre Bourdieu and, finally, on the cool identity proposed by Belk et al. (2010). Through an interpretative approach to investigation based on symbolic interactionism, an empirical research was conducted with youth and Master of Ceremony (MCs) of Belo Horizonte between the years of 2015 and 2017. The field work was focused on participant observation in events and Funk dances and in-depth interviews with 3 MCs and 26 youths with the support of semi-structured scripts. To analyze the data, the qualitative data analysis software Atlas ti and the content analysis methodology proposed by Bardin (1995) were applied. The analysis phase resulted in the establishment of six categories of analysis: living between extremes: funk, drug trafficking and evangelical culture; funk as a built culture of the periphery youth, funk and consumption for leisure; the reality reflected in the funk lyrics; funk accouterment in the light of material culture and, finally, funk and the cool identity. The results seem to indicate some important points. Because funk is part of the daily life of youth, the various experiences, marked by violence and trafficking, potentiate the creation of a cool identity that causes them to find a place in this universe of signs and meanings, typical of the modern consumer society. In this universe, they end up (re)signifying brands, products and experiences, which gives rise to the interpretations of the role of objects in the constitution of subjects, basic elements of material culture. Furthermore, it is possible to emphasize that, through funk, these youth created a "standard", a "model" of accouterment that serves to construct a style capable of being "imported" to other contexts and used by other youth. Thus, the study contributes to the field as it accommodates the perceived gap between the construction of the cool identity and the different combinations of the capitals of Pierre Bourdieu in the Brazilian context. In addition, it is worth mentioning that the theoretical contribution of this thesis was the analysis of the group studied from the lens of material culture, concluding that, from the said perspective, it is possible that a group, instead of an individual, assumes and communicates the characteristics of the cool identity to others. Keywords: Consumption, CCT, Funk, Culture Material, Cool capital.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1- Caminho percorrido pela autora...............................................................................50

Figura 2- História do Funk em Belo Horizonte........................................................................61

Figura 3- Common structures of theoretical interests………………………………..………68

Figura 4 - The Interchangeability Model………………………………………………..……89

Figura 5 - MCs entrevistados…………………………………...……………………………93

Figura 6- Eventos frequentados………………………………………………………………93

Figura 7- Ator entrevistado………………………………………………………….…….…93

Figura 8- Entrevistas realizadas na Casa do Hip Hop……………………………………..…94

Figura 9 - Entrevistas Realizadas no Projeto Providência……………………..……….…….95

Figura 10- Aluno da PUC Minas unidade São Gabriel entrevistado…………………………95

Figura 11 - Entrevistas realizadas por Matheus Cozta………………………………………..95

Figura 12 - Baile funk frequentado…………………………………………………………...96

Figura 13 - MCs entrevistados por indicação do Prof. Dayrell………………………….…...97

Figura 14 - DJ entrevistado…………………………………………………………………...97

Figura 15- Proposta teórica desta tese.....................................................................................142

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LISTA DE SIGLAS

BDT Behaviorial Decision Theory

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CCBB Centro Cultural Banco do Brasil

CCT Consumer Culture Theory

DJ Disk Jockey

LSD Lysergsäurediethylamid

MC Master of Cerimony

MOFUCE Movimento de Fundação da Casa do Estudante de Minas Gerais

ONG Organização Não Governamental

PPGA Programa de Pós-graduação em Administração

PUC/MG Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

UFMG Universidade Federal de Minas Gerais

UFRJ Universidade Federal de Rio de Janeiro

Unesco Organização das Nações Unidas para Educação, Ciências e Cultura

USP Universidade de São Paulo

VAC Verão Arte Contemporânea

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SUMÁRIO

1 PRÓLOGO: o encontro da pesquisadora com o contexto da pesquisa .......................... 14 2 INTRODUÇÃO 21

2.1 Contextualização do estudo e problema de pesquisa ...................................................... 21 2.2 Justificativas e relevância do estudo ............................................................................... 24 2.3 Estrutura da tese .............................................................................................................. 26

3 DESCREVENDO O CAMINHO PERCORRIDO ........................................................... 28 4 O CONTEXTO DA PESQUISA: o funk em Belo Horizonte ........................................... 55 5 REVISÃO DA LITERATURA ........................................................................................... 63

5.1 Consumo ......................................................................................................................... 63 5.2 Consumer Culture Theory (Teoria da Cultura do Consumo) ......................................... 66 5.3 Cultura material, ou Materialidade ................................................................................. 70 5.4 Bourdieu e os conceitos de habitus e capitais ................................................................ 77 5.5 Identidade cool ............................................................................................................... 82

6 POSICIONAMENTO EPISTEMOLÓGICO E PROPOSTA METODOLÓGICA ..... 86 6.1 Posicionamento epistemológico ..................................................................................... 86

6.1.1 O Interpretativismo .................................................................................................. 86 6.1.2. Interacionismo simbólico ....................................................................................... 87

6.2 Percurso metodológico ................................................................................................... 91 6.3 O trabalho de campo ....................................................................................................... 92

6.3.1 Os sujeitos da pesquisa e a coleta de dados ............................................................. 92 6.3.2 Instrumentos de coleta de dados .............................................................................. 97 6.3.4 Análise dos dados .................................................................................................... 98 6.3.5 Apresentação dos dados ........................................................................................... 99

7 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS ............................................................. 100 7.1 Vivendo entre extremos: o funk, o tráfico e a cultura evangélica ................................ 101 7.2 O funk como cultura construída pelos jovens de periferia ........................................... 105 7.3 As letras cantam a realidade do grupo .......................................................................... 110 7.4 O baile funk e as experiências de consumo de lazer e sociabilidade ............................ 115 7.5 A indumentária funk à luz da cultura material .............................................................. 119 7.6 O funk e a identidade cool ............................................................................................ 135

REFERÊNCIAS 150 ANEXOS 158

9.1 Roteiro 1 – entrevista com os MCs Magnata da ZN e Charlin ..................................... 158 9.2 Roteiro 2 – entrevista com o MC Monge ..................................................................... 159

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9.3 Roteiro 3 – entrevistas com os jovens rappers do “Setor RAP”, com os MCs Jeffinho, Klebinho e com DJ Joseph ................................................................................................. 160 9.4 Roteiro 4 – utilizado por mim na entrevista com o jovem Pedro Ivo e pelo acadêmico Matheus nas entrevistas realizadas com os fãs do movimento funk. .................................. 162

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1 PRÓLOGO: o encontro da pesquisadora com o contexto da pesquisa

O domingo na minha casa é sempre um dia especial. Dia de acordar tarde, receber as

crianças na cama pela manhã, para casos e risadas, tomar café demorado, com mesa bonita e

repertório musical escolhido por meus filhos e pelo Cláudio, meu marido. Geralmente, rock´n

roll, mas se o responsável pela escolha for o João, certamente será um “Clube da Esquina”, ou

alguma das músicas que ele cantava no Canadá, na companhia do Mr. Simoni... Se for um

domingo de sol, dia de ir ao clube. Mineiro não tem praia, mas tem clube. Domingo sem

clube não é domingo! Não para mim! Mas o dia 27 de maio de 2017 seria um domingo

diferente...

Era domingo de baile funk! O primeiro da minha vida! Iríamos... Cláudio, Matheus e

eu. Matheus é um rapaz jovem, de 21 anos, moreno, cabelos cacheados, aluno do curso de

Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG), nascido e

criado em uma comunidade de baixa renda em Salvador, fã de funk e nosso bolsista nesta

pesquisa. Matheus emprestou-me seus olhos para eu que tentasse entender os signos que

transitam por esse cenário.

Eu sempre curti cultura de rua. Muito mais do que da música, no sentido literal, eu

gosto da festa. Música, para mim, tem gosto de festa. O baile funk, entretanto, nunca esteve

entre as minhas curiosidades culturais, pelo menos não entre as com visita programada.

Talvez, porque sempre estivesse longe do cenário cultural que frequento. Entretanto, posso

dizer seguramente que eu estava muito entusiasmada com essa oportunidade. Depois de eu ter

visto um sem número de videoclipes e documentários, ter lido inúmeros artigos e conversado

com muitas pessoas, eu precisa muito entender como esse negócio funciona! Estava bem

aflita com isso! Entre ansiosa e aflita, na verdade.

Domingo é dia de curtir os filhotes, mas esse seria diferente. Não dava para levar as

crianças, afinal, eu nem sabia o que poderia ver por lá... Maria queria ir! Maria sempre quer

ir! Parece com a mãe... Lá em casa fazemos tudo juntos e os nossos filhos são nossos

companheiros em bares e festas. Se eles não podem ir, quase sempre ninguém vai... Dentre os

dois, a Maria é a mais, digamos, entusiasmada. Não pode escutar a expressão “happy hour”

que quer saber quando é, onde é, quem vai e quer ir junto. Desta vez, não falou que queria ir,

porque sabia que não era convidada, mas disse mais de uma vez: “Mamãe, isso vai ser

divertido!”. Divertido não sei... Eu estava muito ansiosa para que realmente fosse divertido!

Com certeza, seria um evento bem diferente...

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Começamos a nos aprontar logo após o café da manhã. Matheus estava trabalhando

em um evento no “Museu do Futebol”, no Mineirão, e eu o pegaria lá por volta de 15h30min.

O baile iniciava-se às 17h00min, e planejamos chegar uma hora antes para acompanhar o final

da organização da casa e o início do baile. O evento aconteceria em uma casa em Venda

Nova, na região norte de Belo Horizonte (BH). Venda Nova, na periferia de BH, é uma região

importante em se tratando de rap e funk. Basta dizer que é lá que fica a “Quadra do

Vilarinho”, onde acontece o “Baile do Vilarinho”, o baile funk mais antigo de Belo Horizonte

e, atualmente, dizem ser o único “de raiz”. A casa é da família de uma aluna da PUC Minas -

Unidade São Gabriel. Ela já estava avisada sobre nossa visita e tinha deixado a equipe

preparada para nos receber e explicar a dinâmica do baile.

A escolha da minha roupa para esse evento já foi uma novela! Eu queria passar batido,

porém não iria usar shortinho e deixar a barriga de fora, então optei por uma calça jeans justa,

camiseta Hering branca, colarzão colorido e Melissa. Acho que acertei na roupa, mas só na

roupa... Cláudio foi de calça de brim cinza, camiseta de malha preta, bota preta e boné de

couro preto. Ele não costuma aceitar muita interferência na escolha das roupas, mas achei que

estava bom. Na verdade, tentei que ele trocasse a bota por um tênis, mas ele não concordou. A

barba cerrada completava o look.

Deixamos nossos filhos na casa da minha sogra para o almoço. Saímos meio

sorrateiros, sem falar muito aonde iríamos. Quem é que ia entender que não poderíamos

participar desse almoço de domingo porque precisávamos ir a um baile funk? Quem é que, na

nossa idade e do nosso grupo social, precisa ir a um baile funk? Todo mundo deveria ir! Mas

quase ninguém sabe disso...

Saímos por volta de 15h30min. Não era dia de jogo, mas o trânsito tornava a Avenida

Antônio Carlos, que vai para o Mineirão, lenta. O tempo passava e a ansiedade aumentava...

Pegamos o Matheus aproximadamente às 16h30min. Do Mineirão à região de Venda Nova

seria um percurso rápido e conseguiríamos chegar para o início do baile! Nesse momento, eu

pensava que tinha perdido a oportunidade de acompanhar a organização da casa...

Cláudio não conhecia o Matheus e, no trajeto entre o Mineirão e Venda Nova, na

presença do Matheus, fui falando de um para o outro, em uma espécie de apresentação

simultânea. Meu objetivo era torná-los conhecidos, deixá-los mais à vontade um com o outro,

para que a experiência do baile fluísse melhor. Confesso que foi tarefa fácil, pois todos os

dois são muito acessíveis! Chegamos ao “Bar Nacional” de carro. Eu desci, toquei a

campainha da porta dos fundos – porta da garagem. Um rapaz abriu o portão e eu me

apresentei. Ele disse-me para entrar, sendo assim, entramos de carro. Uma moça, funcionária

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da casa, veio nos receber. De fato, ela estava avisada de nossa presença e foi muito receptiva e

simpática! Nesse momento, dei liberdade para que ela terminasse a conversa com os

seguranças da casa a respeito de nossa presença no local. Ficaríamos por ali aguardando.

Assim que descemos do carro, Matheus reparou na roupa do Cláudio e levou um susto.

“Cara, você está igual policial civil! Putz Grila!” Se quiséssemos errar, não erraríamos tanto!

Matheus disse para o Cláudio tirar o boné, colocar a camiseta para fora da calça e tentar

tampar a bota com a barra da calça. Percebi que Cláudio havia ficado tenso, com medo de me

atrapalhar. Apesar de ter se oferecido para esperar do lado de fora, entrou, encorajado por

mim. Ele estava super curioso com o baile, disposto a me acompanhar, eu não faria isso com

ele! Eu logo terminei o assunto: “Matheus, tá ótimo assim! O Cláudio é super leve, vai se

integrar ao ambiente rapidinho! Esquece isso!”. E fomos com tudo!!!

A moça nos acompanhou, mostrou a casa, o palco, o funcionamento do bar, as bebidas

que seriam vendidas e como seriam servidas, a entrada e o papel dos seguranças. Já havia um

burburinho na porta e poucos rapazes já estavam dentro da casa. Depois entendi que esses

rapazes eram os organizadores da festa.

No bar, a moça, a qual eu não consigo lembrar o nome, ofereceu-nos bebidas. Eu e

Matheus aceitamos água mineral. Cláudio pegou uma cerveja Heineken long neck. Achei

ótimo, pois, assim, logo ele se esqueceria da roupa e da tensão da entrada. Em seguida, eu

disse para a moça que nos acompanhava que estávamos bem e que ela podia continuar com os

afazeres de seu trabalho. Ela compreendeu o meu recado, assim, conseguimos nos sentir mais

livres no ambiente. O objetivo era curtir a festa, mas eu também queria ter tranquilidade e

liberdade para tirar fotos.

Comecei a explorar os espaços, para ver o que tinha. Dei uma circulada, entendi o

funcionamento do palco, do espaço que seria ocupado pelos Masters of Cerimony (MCs),

entrei nos banheiros, os quais eram muito simples, e fui ao bar. O bar foi o local onde

permaneci por mais tempo! No chão havia vários fardos de uma vodka chamada Ninnoof.

Eram garrafas parecidas com as de vodka Orloff, mas pareciam engarrafadas em algum fundo

de quintal. Estavam embaladas de 6 em 6, em fardos plásticos, como os que embalam

refrigerantes pet. Vários copos altos e finos, de acrílico, fluorescentes, de várias cores,

logomarcados com o nome dos donos da festa, enfeitavam nichos dispostos no ambiente.

“Tropa dos Primos” era a marca da galera. Devem ser famosinhos, pensei! Bem perto do

balcão, no local de maior visibilidade do bar, estavam dispostos dois dispensers com

garrafões de água mineral cheios de líquidos que pareciam sucos artificiais, desses que são

vendidos em pacotinhos tipo Tang. Perguntei para um rapaz que estava dentro do bar o que

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era aquilo, ele disse-me que era Frozen. Como assim? Ele explicou que era suco (como eu

imaginei), vodka (Ninnoff, segundo ele) e água, e que seria servido com gelo. Por isso, o

nome Frozen! Ele me ofereceu um pouco, para experimentar. Agradeci, porém não aceitei a

bebida naquele momento. Havia acabado de chegar ao local e interessava-me, antes de

qualquer outra coisa, tirar fotos de tudo que eu pudesse!

Nesse momento, durante essa conversa, outro rapaz entrou no bar. Escutando minhas

perguntas, ficou me olhando de cima embaixo. De repente, atirou! “Tia, pode falar, você é do

Juizado de Menores!”. Eu, sem titubear, respondi: “Sou nada! Tô mais pra sem juízo!”.

Matheus entrou na conversa, cheio de ginga e gírias, para tentar me salvar. O menino largou o

assunto para lá, mas não ficou convencido. Agora “ferrou tudo”, éramos um casal de juíza de

menores e policial civil! Em um baile funk matinê! Cenário perfeito!

Tentei andar sozinha pela casa. Então, resolvi ficar encostada em um canto... Curtindo

o ritmo. Misturar com o público, exatamente, era impossível. Sou muito mais velha que os

jovens do baile e não tenho trejeitos de funkeira. Para piorar, eu ainda tinha me esquecido de

colocar minhas lentes de contato, eu estava usando óculos, e meus óculos não são exatamente

fashion... Não dava para tirá-los, simplesmente porque não enxergo nada sem eles. De toda

forma, Matheus tinha comentado que meu visual estava bom, e era melhor eu acreditar nisso!

Meninas conversavam em grupos e dançavam com amigas. Nada muito sensual. Ou

melhor, sensual era, só menos do que eu imaginava. As roupas eram curtas, justas e coloridas,

nos pés sandálias, rasteirinhas ou tênis coloridos, poucas usavam saltos. Parecia que a ordem

era estar confortável para dançar. Todas apresentavam unhas grandes e coloridas e os cabelos

eram bem tratados. Os batons, de cores fortes, eram visivelmente a única maquiagem que

usavam. Procurei por referências a grifes nas roupas das meninas e não as encontrei. Julguei

que não era a pegada delas! Para ser bastante honesta, o que mais me chamou a atenção, no

tocante à aparência dessas meninas, é que a maioria delas estava fora do padrão estético das

musas do funk. Muitas delas estavam acima do peso, apesar de parecerem totalmente à

vontade com as suas aparências e suas roupas curtas! O baile era lugar para elas se jogarem!!!

Algumas dessas meninas passavam com copos fluorescentes nas mãos, com o tal

Frozen. Mas eram poucas. Outras garotas tomavam refrigerantes, que eram vendidos em

copos de 300 ml, servidos de garrafas pet. Pareceu-me que elas bebiam pouco. As garotas se

divertiam, principalmente, por meio da dança e de suas selfies, as quais, depois, certamente

iriam povoar as mídias sociais. Achei interessante que elas tiraram selfies em frente a um

banner que fazia propaganda de um show futuro do MC Lan. Fiquei pensando que, talvez, o

Lan fosse ídolo da turma...

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Os rapazes se comportavam de forma bastante parecida. Ficavam em grupos, longe

das meninas. Alguns poucos dançavam. Ficavam, na verdade, passando para lá e para cá,

como que procurando algo. A maioria usava bermuda de tactel, algumas com marcas

aparentes, camisas de times de futebol, tênis chamativos e bonés de grife, com abas retas. Os

que estavam sem boné tinham o cabelo muito bem cuidado, com cortes trabalhados. Muitos

deles portavam os copos fluorescentes, com a tal bebida que era vendida por lá. Eles pareciam

não ter tanta preocupação com fotos. Os celulares, no caso deles, não eram aparentes.

Certamente existiam, mas deviam estar guardados...

Falando em fotos... Rapidamente percebi que o celular na minha mão, o qual era

utilizado toda hora para tirar fotos, estava chamando a atenção. Eu, definitivamente, não

queria chamar a atenção, especialmente depois de ter sido confundida como juíza! Quando eu

pensava sobre como resolver a questão das fotos, Cláudio me chamou. Tinha descoberto um

fotógrafo no baile! Conversamos com o rapaz, e perguntei se eu poderia comprar algumas das

fotos que ele tirava do baile. Ele não entendeu nada! “Como assim, comprar fotos?” Ele era

pago pelos organizadores do baile, a “Tropa dos Primos”, para registrar a presença das

pessoas na festa. Segundo o rapaz, no dia seguinte, ele postaria todas as fotos nas redes

sociais. Era só eu entrar em sua página do Facebook, curtir e segui-la, marcar meus amigos

nas fotos e, se eu quisesse, poderia baixá-las. Mas eu tinha que fazer isso rápido, porque

várias festas viriam em seguida, e eu ia ficar perdida na página. Ele me explicou o

funcionamento e me passou o nome da página – “Love Night Coberturas” 1. Por via das

dúvidas, peguei também o telefone dele. Bom, as fotos, pelo menos, estavam garantidas!

Cláudio tinha marcado um golaço!

Comecei a observar o rapaz tirando as fotos. Era como se ele fosse de uma revista da

moda, cujo click representasse prestígio. Os grupos se formavam em poses para as fotos. As

meninas caprichavam nos passinhos e os rapazes faziam cara de mal. Comecei a entender a

dinâmica do baile...

Pouco tempo depois, Matheus procurou me mostrar que a revista dos seguranças na

entrada era bem superficial. Eles não verificavam os bonés dos jovens, nem os tênis.

Passavam, mal... mal, as mãos pelos bolsos das bermudas dos garotos. As meninas eram ainda

menos revistadas. Além disso, havia uma galera que entrava pela parte lateral, fora da revista.

Estava explicado o motivo de tanta droga dentro da casa. Nesse momento, isso ainda estava

fora de meu entendimento. Muita gente fumava cigarros de maconha, o que eu já havia

1Acessívelemhttps://www.facebook.com/lovenight.coberturas/.

19

percebido pelo cheiro. Muitos jovens chupavam pirulitos, e alguém já tinha me explicado que

isso evita que eles enrolem a língua e se sufoquem – efeito colateral da droga LSD. Se o

pessoal do baile tinha acesso a esse tipo de droga eu não sei, mas eles “faziam tipo”...

O tempo inteiro Matheus foi emprestando-me seu olhar, para que eu pudesse entender

o ambiente. Confesso que ele enxergava muito mais do que eu, por conhecer a dinâmica do

baile, portanto, com sua ajuda, tudo ia ficando mais claro para mim!

O baile já “rolava” por volta de mais ou menos umas três horas, quando chegaram

alguns rapazes vestidos como o Cláudio, de calça de brim cinza, camiseta preta e bota.

Matheus disse-me que eram policiais civis! Eles deram uma volta, entraram no bar e depois

sumiram. Não os vi saindo da casa, mas também não os vi mais na festa. Certamente,

passaram pelos fundos...

Resolvi, então, comprar um copo de Frozen... Na verdade, dois! Eu queria

experimentar a bebida, ver que gosto tinha! E queria um copo para mim e outro para

presentear o Marcelo, meu orientador desta tese, de lembrança dessa empreitada! Ofereci ao

Matheus, mas ele não aceitou. Matheus não bebe álcool e, tampouco, demonstrou interesse

pelo souvenir. O copo de Frozen custava R$ 5,00 e devia conter em torno de 300 ml da

bebida. Comprei duas fichas, não sem antes perguntar à moça quantas cervejas ela tinha

vendido. Segundo ela, havia vendido somente as duas cervejas que o Cláudio tomou. De

acordo com a moça, cerveja long neck custa caro. Agradeci à moça pelo atendimento e fui

para o bar. Matheus foi comigo.

Pensei em pegar apenas um dos copos cheios e pedir o outro vazio, para não

desperdiçar, mas fiquei em dúvida quanto ao significado disso para eles. Melhor não arriscar!

Peguei um e dei o outro para Matheus segurar para mim. Experimentei o Frozen de sabor uva.

Era doce e com gosto de álcool. Não era ruim, nem bom, mas eu não ia beber isso naquele

momento. Enrolei com o copo na mão e depois entrei no banheiro, para jogar a bebida fora.

Não tinha ninguém lá, então, não precisei de nenhum malabarismo para fazer isso. Cláudio

pegou o copo do Matheus, experimentou, e depois se encarregou de se desfazer da bebida.

Acho que fez o mesmo que eu...

Continuamos por ali, observando, curtindo a música até a hora que Matheus nos

chamou para ir embora. Deveria ser quase nove horas da noite! Eu disse para ele que não iria

enquanto não visse um “bonde”! Matheus prontamente respondeu-me: “Esquece Sara! Não

tem isso, não aqui, não enquanto você estiver aqui!”. O baile era pequeno e a gente realmente

deveria estar incomodando...

20

Saímos por trás do palco, fomos ao escritório agradecer à moça que nos recebeu. Na

parte de trás, na garagem, havia algumas pessoas. Agradecemos e nos despedimos de cada

uma delas e, em seguida, entramos no carro.

O próximo passo era deixar Matheus em casa, no bairro Santo Agostinho. Fomos

trocando impressões sobre o baile, mas, eu, na verdade, queria mesmo era chegar à casa da

minha sogra para pegar meus filhos. Estava exausta e com uma baita dor de cabeça! Fizemos

tudo isso o mais rápido que pudemos e, por volta de 22h30min, as crianças já estavam em

casa, deitadas, e eu tomei um banho rápido. Apaguei!

Por volta de três da manhã, acordei e voltei a pensar no baile. Não consegui dormir

mais! Primeiro, achei que a fumaça da droga causou-me sensações estranhas e mal-estar, por

isso a sensação inicial de sono pesado e a dor de cabeça intensa. Depois, passei a pensar no

que aconteceria se tivéssemos sido abordados pela polícia no baile, o que eu falaria, enfim,

como agiria. Claro que a madrugada e o estado de sonolência potencializaram meus medos,

mas esses pensamentos trouxeram-me ansiedade. Perdi-me no pensamento acerca dos

figurinos das pessoas, dos hábitos na festa, do papel de cada ator, da dinâmica do baile, da

organização do espaço. Enfim, voltei ao mundo das análises e não saí mais desse papel...

Todavia, posso dizer que o baile pareceu-me um lugar de festa, lugar onde cada uma

daquelas pessoas extravasa suas emoções e busca se esquecer da labuta cotidiana. Lugar onde

se mostram o mais bonito que podem, limitados pelos orçamentos apertados. Lugar

frequentado por grande maioria de pessoas jovens, onde bebidas e drogas circulam e são

consumidas com certa facilidade e naturalidade. Lugar de música alta e alegre. Lugar de letras

que cantam a realidade daquele grupo. Lugar de danças que aprenderam desde pequenos, nas

comunidades onde moram. Lugar onde podem ser eles mesmos! Lugar onde fazem amigos e

paqueram!

O baile funk não tem nada demais! É apenas um lugar. Mais um lugar. Para alguns, “O

Lugar!

21

2 INTRODUÇÃO

2.1 Contextualização do estudo e problema de pesquisa

Nas últimas décadas, faz sentido considerar que os estudos que se dedicam para o

entendimento do consumo na sociedade atual passaram a ocupar um lugar de destaque nas

Ciências Sociais, tanto na Europa como nos Estados Unidos (Barbosa, 2006) e, hoje,

compreendê-lo torna-se algo vital, não mais um luxo intelectual (Desjeux, 2011). Tal como

apontado por Desjeux (2011), o consumo passou a estar no centro de ambivalências ligadas à

vida social, como a competição e a cooperação, a autonomia e o controle, a hierarquia e a

comunidade. No mesmo sentido, na visão desse autor, nossas sociedades parecem insistir em

manter essa ambivalência, ou, no entender de Barbosa (2006), de insistir em um expressivo

grau de imprecisão e ambiguidade relacionada ao consumo. Sendo assim, quase sempre, o

consumo é percebido como fonte de desejo, realização de si, posicionamento estatutário,

desenvolvimento econômico e, concomitantemente, como causa de alienação, desperdício,

perda de valores e dissolução da cultura (Desjeux, 2011).

O importante a ser considerado é que, a despeito de toda essa discussão, o consumo

pode ser entendido como um processo social que está associado a diversas formas de provisão

de bens e serviços e a diferentes processos de acesso a eles. Além disso, não se pode deixar de

mencionar que o consumo é entendido pelas Ciências Sociais como um produtor de sentidos e

identidades, bem como uma estratégia usada no dia a dia dos atores sociais, para definir

situações em termos de direitos, estilo de vida e identidade, ou seja, uma categoria central na

busca por definição da sociedade contemporânea (Barbosa & Campbell, 2006).

No campo do marketing, a discussão do consumo, nessa perspectiva social e

culturalmente construída, tem aderência aos estudos adeptos da “Consumer Culture Theory”

(CCT) (Arnould & Thompson, 2005; 2007) ou, em tradução livre, “Teoria da Cultura do

Consumo”. Essa vertente é adotada no presente estudo.

Nesse contexto, ainda que os estudos que envolvem o consumo nessa perspectiva

social e simbólica venham paulatinamente ganhando importância e relevância na academia de

marketing brasileira (Casotti & Suarez, 2016), percebe-se que, no Brasil, a despeito da

inequívoca maioria numérica de alguns estratos da população, é negado a determinados

grupos sociais o status de membros de uma sociedade moderna e de consumo, uma vez que é

enfatizada, nos estudos, a dimensão de “minoria discriminada e excluída” (Barbosa, 2006).

22

É inegável que o conjunto de consumidores considerados de “baixa renda” ou, na

concepção de Neri (2010), como “da nova classe média”, historicamente foram relegados a

segundo plano, tendo em vista a concepção de que esses indivíduos não consumiam, apenas

sobreviviam (Rocha & Barros, 2004) e os estudos existentes eram sempre marcados pela

lógica da carência. Na última década, contudo, a relevância dos estudos orientados ao melhor

entendimento desse consumidor vem, então, ganhando destaque, principalmente pela

capacidade de consumo desse grupo.

Na perspectiva organizacional, busca-se vender e se relacionar com esse grupo, pela

sua capacidade de gerar receitas. Como exemplo dessa capacidade de consumo, no ano de

2014, segundo dados da pesquisa “Faces da Classe Média” (Data Popular & Serasa, 2014),

esses consumidores demandaram 8,5 milhões de viagens internacionais, 7,8 milhões de

notebooks, 4,8 milhões de geladeiras e 7,8 milhões de móveis para casa. A partir da crise

econômica de 2015, esses números estão sendo revistos, deixando em aberto o que acontecerá

com esse público em termos de consumo para os próximos anos.

Por outro lado, é possível mencionar que, mesmo que os estudos envolvendo os

consumidores de baixa renda já tenham um “peso” significativo nas pesquisas de consumo no

Brasil nos últimos 10 anos2, ainda parece faltar um maior interesse dos pesquisadores para o

entendimento de alguns fenômenos relacionados ao consumo dos indivíduos oriundos das

camadas mais jovens da população. Fenômenos, estes, com características simbólicas que

possam revelar a noção de juventude como uma experiência cultural, e não simplesmente

como uma experiência fisiológica.

Nas Ciências Sociais, o entendimento do papel do jovem na sociedade pode oferecer

algumas questões interessantes para o estudo do consumo. Bourdieu (1983) chegou a afirmar

que a divisão entre as idades é, além de arbitrária, socialmente manipulada e manipulável,

uma vez que sua função é estabelecer uma divisão de poder ou uma forma de estabelecer uma

ordem, respeitando limites sociais invisíveis. Entretanto, o antropólogo espanhol Carlos Feixa

(2004), ao trazer para o debate a questão do jovem, enfatiza o termo “cultura juvenil”, com o

propósito de traduzir as formas em que as experiências juvenis podem se expressar mediante

estilos de vida distintivos, por meio do consumo de determinados produtos como roupas,

músicas, adereços, formas de lazer, entre outros.

É nesse contexto que parece emergir um fenômeno que não passa despercebido por

um observador mais atento – a ascensão do fenômeno musical e cultural do funk, que parece

2 Consulta, em março de 2018, ao portal Spell – mantido pela Associação Nacional dos Programas de Pós-

Graduação em Administração - retornou 31 registros de artigos com a pesquisa do termo “baixa renda”.

23

ter uma expressiva relação com o consumo juvenil, uma vez que os cantores conhecidos como

MCs lançam mão, ao compor as letras das canções, de referências culturais, simbólicas e

consumo deste grupo. É aí, também, que reside uma lacuna quando se pensa o fenômeno do

consumo de grupos de jovens pela lente da cultura material, ou materialidade.

A noção de que os objetos têm caráter simbólico e o que parece fazer sentido nesse

contexto é a posição de Miller (2013), ao defender que a mercadoria passa a ser um bem

particular, sempre carregado de significado simbólico, dependendo do contexto social ao qual

está inserido. O bem comprado é recontextualizado várias vezes, até não poder ser mais

reconhecido como tendo relação com o mundo de onde veio, o da produção. Ou, como aponta

MCCracken (2012), os bens de consumo são um importante meio de nossa sociedade, visto

que neles atribuímos diversos significados públicos e privados. Ora, nesse sentido, o

consumo, então, pode ser definido como o processo de recontextualização, que leva um objeto

para uma condição de inalienável, o que deve ser visto como uma construção cultural. Essa

constatação vai ao encontro do que advoga Belk (2012), de que a melhor forma de entender,

transmitir e apreciar nossa humanidade seria por meio da nossa materialidade, ou mesmo de

Appadurai (2008), no livro “A vida social das coisas”, quando enfatiza que os bens

representam formas sociais e partilhas de conhecimento muito complexas.

Há de se destacar que essa discussão não é tão nova para o marketing, uma vez que

Rook (1985), há mais de 30 anos, já apontava que o simbolismo do produto é um grande

ponto cego do marketing. Belk (1988), nesse mesmo período, também salientava que entender

os significados que as pessoas atribuem as suas posses e a forma como a identidade do

indivíduo é “moldada” por essas posses é questão central para o entendimento do consumidor.

O curioso a notar é que esses jovens, por meio da materialidade, buscam se diferenciar

de seus pares com a construção de uma identidade que passa a ser considerada cool pelo

grupo. Essa construção, segundo Belk et al. (2010), está embasada na articulação entre os

capitais econômico, cultural e social de Bourdieu (2007). Tal como proposto por Ostberg

(2007), esse status de cool pode ser entendido como um capital cultural alternativo ligado a

determinados grupos, sendo que a sua posse permite aos membros de uma comunidade

assimilar os códigos necessários para se manterem como “diferentes” ou como “distintos” dos

demais.

Ao focar na relação entre o papel dos objetos no contexto de consumo dos jovens

urbanos de baixa renda, cria-se uma abertura para a condução de estudos que deem conta de

tangenciar questões do tipo: Como o jovem de baixa renda interage e (re)significa o conceito

dos bens para seu cotidiano? De onde vem o arsenal de informações que ele usa no processo

24

de (re)construção do papel dos objetos em sua vida social? Como ele ressignifica os signos

que recebe? De que forma esse indivíduo cria sua identidade? O que esse grupo tem de

diferente dos outros que o torna cool? Como esse grupo lida com essa identidade cool?

Ademais, não se pode deixar de mencionar que, tendo em vista que no campo dos

estudos relacionados à pesquisa do consumidor há um movimento no sentido de se aprofundar

na relação entre as pessoas e os objetos, é interessante perceber que, nas comunidades de

baixa renda, a forma como os jovens se relacionam com os signos de consumo no contexto do

funk é marcada por algumas particularidades que merecem um escrutínio mais cuidadoso

pelos pesquisadores. Assim, surgiu o interesse em empreender uma pesquisa empírica

orientada pela seguinte questão de pesquisa: como se articulam as práticas socioculturais e os

processos simbólicos na construção de identidade cool por jovens integrantes de comunidades

de baixa renda inseridos no ambiente do funk?

A partir da questão proposta, o objetivo geral do trabalho consiste em: compreender o

a articulação entre as práticas socioculturais e os processos simbólicos na construção de

identidade cool por jovens integrantes de comunidade de baixa renda inseridos no ambiente

do funk. Destacam-se, pois, como objetivos específicos: (a) compreender a forma como o

cotidiano dos jovens de baixa renda integrantes do movimento funk é permeado por padrões

de consumo; (b) desvelar a diferença entre as práticas socioculturais do grupo (como as

pessoas realmente agem) e suas representações (fantasias, sonhos e farsas); (c) entender a

forma como os objetos são (re)significados pelos jovens integrantes do movimento funk em

sua vida cotidiana; (d) relatar os processos simbólicos que levam à construção da identidade

cool pelo grupo pesquisado.

Para se atingir esses objetivos, adotou-se uma perspectiva interpretativa de

investigação, com uma lógica de pesquisa essencialmente indutiva, focada na realidade dos

sujeitos pesquisados. Assim, justifica-se e torna-se relevante este estudo.

2.2 Justificativas e relevância do estudo

A pesquisa, focada em elementos teóricos ligados ao consumo, em uma perspectiva

cultural e simbólica, sob a lente da cultura material, buscando compreender a forma de

constituição da identidade desses jovens de baixa renda, imbricados em um contexto rico em

questões simbólicas como o funk, conduz a tese a um patamar que a torna oportuna e

relevante, tanto para o meio acadêmico quanto no âmbito do ensino em Administração.

25

Pode-se afirmar, inicialmente, que a pesquisa traz para o debate um conjunto de temas

que contribuem para explicar fenômenos recentes sobre a sociedade brasileira, ligados às

instituições e a uma nova cultura de consumo emergente nos últimos anos no país, bem como

serve para questionar o modo como novas lógicas de consumo vêm sendo construídas por

diferentes grupos sociais. Para explorar esse cenário, utilizou-se, portanto, uma lógica de

pesquisa essencialmente indutiva, focada na realidade dos sujeitos pesquisados.

No mesmo sentido, é importante ressaltar que as temáticas da cultura material em

grupos de jovens urbanos ainda não são comuns nos estudos de consumo no Brasil. Pode-se

afirmar que a questão da materialidade precisa ainda ser investigada mais detalhadamente à

luz de contornos da cultura brasileira. Nesse contexto, é importante apontar que a abertura do

mercado brasileiro para o comércio internacional, assim como a estabilização da economia

ocorrida a partir da última década do século passado aliada à maior distribuição de renda, que

teve seu lugar na primeira década dos anos 2000, deixaram um legado importante para os

jovens urbanos de baixa renda. Ainda que atualmente o cenário econômico, político e social

seja diferente, a mudança de hábitos desse estrato de consumidores, promovida pela maior

possibilidade à informação pelos canais eletrônicos de comunicação, acaba por acarretar

sensíveis modificações na forma como esses indivíduos percebem o mundo e (re)significam

sua realidade.

Complementarmente, ao propor a articulação entre essas temáticas e a construção de

uma identidade cool, a pesquisa ganhou contornos de ineditismo e contribui para construir

“pontes” entre a área de pesquisa do consumidor e outros campos distintos do conhecimento,

tal como proposto por MC Cracken (2003). Além disso, pode servir para fomentar outras

pesquisas focadas em fenômenos que guardam relação com as temáticas.

Não se pode deixar de mencionar que o estudo, ao focar luzes na investigação da vida

cotidiana de jovens urbanos, acaba por contribuir à medida que desvela os processos de

tradução que esses indivíduos fazem da sua realidade por meio da mediação de valores,

hábitos, gostos, atitudes, estéticas e práticas sociais (Rocha & Pereira, 2009). Cabe ressaltar,

ainda, que os resultados originados desta tese parecem ter aderência à ideia, defendida por

esses pesquisadores, de que a juventude conquistou um poder hegemônico por meio de um

status considerável obtido por uma produção de gostos e costumes.

No tocante ao contexto do estudo, o funk, vale salientar a posição de Abdalla (2014), a

qual enfatiza que o interesse da opinião pública por esse “movimento musical” acabou por

trazer visibilidade e projeção midiática. A despeito dessa exposição na mídia, ainda são

poucos os trabalhos que buscam compreendê-lo com lentes teóricas como a da cultura

26

material e dos capitais de Pierre Bourdieu (2007) e a da identidade cool proposta por Belk et

al. (2010). Cabe considerar, ainda, que a pesquisa traz para o contexto brasileiro o conceito de

cool capital, construído com base na teoria dos capitais, habitus e gosto, proposta por

Bourdieu (2007), com a finalidade de compreender a (re)construção da identidade de um

grupo de jovens urbanos amparada pelo e no consumo.

Outro aspecto do trabalho, que parece torná-lo oportuno, tem a ver com as escolhas

epistemológicas e metodológicas utilizadas no trabalho empírico. Em primeiro lugar, a adoção

de uma perspectiva interpretativa para se atingir os objetivos propostos por este trabalho

permite uma contribuição ao campo da pesquisa do consumidor em nosso país, uma vez que,

segundo Rocha e Rocha (2007), a adoção de referenciais amparados em uma abordagem mais

próxima ao subjetivismo e baseada no interpretativismo, ainda que se tenha avançado muito

nos últimos anos, é fenômeno que pode ser considerado recente no Brasil e em outros países.

A videografia, incentivada por autores como Belk e Kozinets (2005) e Kozinets e Belk

(2007), também pode ser considerada como algo novo no contexto brasileiro e pode inspirar

novos pesquisadores do campo.

Ademais, vale considerar que, no âmbito do ensino da Administração, com os

resultados do trabalho, alunos, professores e pesquisadores do consumo terão à disposição

uma descrição rica da realidade nacional, bem como acesso a discussões teóricas

contextualizadas política e culturalmente, que podem ser consideradas alternativas à literatura

predominantemente estrangeira, comum nos livros-texto de Marketing e Administração.

Dessa forma, trabalhos como este contribuem para a formação de uma massa crítica de

conhecimentos para explicar fenômenos de consumo por parte de diferentes grupos sociais no

contexto cultural, político e social brasileiro.

2.3 Estrutura da tese

Essa tese está estruturada em oito capítulo, sendo o próximo uma descrição do

caminho percorrido por mim desde o início do programa de doutorado, destacando as

experiências vividas, os locais visitados, os personagens encontrados, as escolhas realizadas,

as angústias e alegrias vividas.

Em seguida descrevo o contexto de pesquisa, objetivando mostrar ao leitor, em uma

perspectiva histórica, o ambiente do funk em Belo Horizonte. Esse contexto foi desenvolvido

por meio das articulações desencadeadas entre o conhecimento decorrente da revisão de

literatura e as informações advindas das entrevistas de campo.

27

No quinto capítulo trato da revisão de literatura. Trabalho a literatura relacionada a

Consumo, Consumer Culture Theory, Cultura Material, Bourdieu e os conceitos de habitus e

capitais e Identidade Cool.

Em seguida apresento o posicionamento epistemológico da tese, situada na perspectiva

interpretativista com a abordagem do interacionismo simbólico e descrevo o percurso

metodológico desta pesquisa, para, então, apresentar o trabalho de campo: os sujeitos da

pesquisa, a coleta de dados e as escolhas realizadas para análise e apresentação dos dados.

No sétimo capítulo trato da apresentação dos dados, divididos em sete categorias,

todas emergentes do campo para em seguida, no oitavo capítulo, fazer as considerações finais.

Em anexo estão todos os roteiros utilizados no campo da pesquisa.

28

3 DESCREVENDO O CAMINHO PERCORRIDO

Minha história com o funk começou na disciplina de “Comportamento do

Consumidor”, no segundo semestre de 2014, quando cumpria os créditos do doutorado.

Houve uma atividade avaliativa na qual os alunos, divididos em grupos, deveriam estudar,

cada grupo, um tipo de mercado. Meu grupo decidiu estudar os jovens. Essa escolha

aconteceu por minha influência, pois ingressei no doutorado apresentando uma proposta de

projeto com a intenção de pesquisar a respeito do consumo nessa faixa etária.

Ao buscar os movimentos de consumo entre os jovens, deparamo-nos com o

“movimento do rolezinho”3, que tem (ou tinha) como gênero musical preferido o “funk

ostentação”. Sendo assim, comecei a assistir a vídeos no YouTube, reportagens e

documentários sobre o “movimento do rolezinho” e o “funk ostentação” e, aos poucos, fui me

aproximando desse universo.

Depois desse primeiro contato com o “funk ostentação”, soube que havia um MC

desse gênero musical entre os funcionários da PUC Minas no Coração Eucarístico. Entrei em

contato e, em dezembro de 2014, eu e o professor Marcelo, meu orientador nesta tese de

doutorado, marcamos uma conversa com o MC Magnata da ZN4, que era eletricista na

universidade, e com seu colega, chamado MC Charlin, que, na vida cotidiana, era porteiro de

um centro de saúde na periferia de Belo Horizonte. Assim, foi possível compreender um

pouco a respeito da realidade deles. Eles eram meninos simples, que buscavam um lugar ao

sol e acreditavam que conseguiriam isso cantando os seus sonhos de consumo: marcas

conhecidas de roupas, acessórios, carros e motos. Pareceu-nos que era apenas discurso e que a

vida real dos meninos era dura e comum. As marcas faziam parte do discurso deles, mas não

da indumentária que, de fato, portavam.

Saímos de férias da universidade e, em janeiro de 2015, liguei novamente para o MC

Magnata, para continuarmos nossa conversa. Para minha surpresa, ele disse-me que havia

decidido que não iria mais cantar “funk ostentação”. Ele relatou que esse gênero musical não

3 Pinheiro-Machado e Scalco (2014) apresentam o fenômeno do rolezinho como um movimento juvenil, iniciado

em 2014, que rapidamente ganhou ampla visibilidade nacional e internacional. “Trata-se de adolescentes das periferias urbanas que se reúnem em grande número para passear, namorar e cantar funk nos shopping centers de suas cidades. O evento causou apreensão nos frequentadores e, consequentemente, fez com que alguns proprietários dos estabelecimentos conseguissem o direito na justiça de proibir a realização dos rolezinhos, barrando o acesso dos jovens. Desde então, emergiu um amplo debate sobre a ferida aberta da segregação racial e social na sociedade brasileira, uma vez que a maioria desses jovens é composta por negros e pobres” (Pinheiro-Machado & Scalco, 2014, p. 2).

4 ZN - Referência à região em que mora e frequenta, a Zona Norte da cidade de Belo Horizonte.

29

estava mais na moda e que ele iria investir em algo mais “quente”. Desesperei! Não é possível

que logo ao iniciar a minha pesquisa, o meu objeto de estudo já havia caído por terra...

Passado alguns dias, fui me acalmando, pois constatei que em apenas um mês nada

havia mudado na vida daquelas pessoas e o estilo musical era pouco importante. Meu foco são

as pessoas! É a vida delas! De toda forma, a conversa com Josué, codinome do Magnata da

ZN, parou por aí. Hoje ele nem trabalha mais na universidade.

Também, nesse mês de janeiro de 2015, aconteceu em BH o festival “Verão Arte

Contemporânea” (VAC), com grande parte dos eventos ocorrendo no Centro Cultural Banco

do Brasil (CCBB) – espaço cultural próximo a minha casa, o qual eu costumo frequentar. Um

dos eventos foi o “Festival de Hip Hop”. Fui ao evento no sábado, dia 17 de janeiro, com meu

marido, e voltei no domingo, levando, também, meus filhos. Eu, de fato, gostei do que vi.

Houve apresentações de música, dança, grafite, batalhas de dança e de letras. Lindo de se ver

e sentir! A energia dos jovens era contagiante e a beleza dos figurinos (emprestados da vida

real) e das letras era emocionante. Ao final do evento, apresentei-me à equipe de organização

e peguei o contato de um dos organizadores (Leonardo Cezário), para uma conversa futura.

Os organizadores eram jovens que pertenciam a um movimento social ligado às artes,

chamado “Família de Rua”.

Comecei a seguir o movimento “Família de Rua” no Facebook e, logo em seguida, no

dia 14 de março de 2015, um sábado, fui a um evento promovido por eles embaixo do viaduto

da Avenida Contorno, nas imediações da Praça da Estação, baixo centro de BH. Era uma

batalha de MCs. Fomos eu e o Cláudio, meu marido. Confesso que estava tensa, afinal seria o

meu primeiro contato com o hip hop em um ambiente que eu desconhecia. O espaço estava

cheio, um público de perfil jovem, a maioria das pessoas presentes eram negras, todas

vestidas com a indumentária do hip hop. Os rapazes usavam calças de moletom largas, ou

calças jeans também largas (acho que para permitir o movimento da dança), camisetas de

malha largas, em geral alusivas a movimentos culturais, algumas estampadas com logomarcas

de marcas famosas, bonés, tênis, alguns com correntes de prata. Já as moças usavam vestidos

ou shorts e camisetas, curtos e justos, mas sem exagero, penteados afros e batons de cores

fortes, no geral, vermelho ou rosa-choque. A música, alta, era o rap e muitos bebiam cerveja.

Provavelmente, tinha droga naquele ambiente, mas seu uso não era ostensivo.

Ficamos nesse espaço por algum tempo, tomamos uma cerveja long neck e fomos para

nosso destino: um espaço cultural localizado na Rua Aarão Reis, chamado “Teatro Spanca”.

Lá acontecia um evento chamado “Café, Ritmo e Poesia”. Era um evento de certa forma

familiar, em que o palco e o microfone eram franqueados a quem quisesse cantar ou recitar

30

poesias. Havia muitas mães com crianças e muitos jovens, em um ambiente respeitoso, com

arte no ar! Foi muito legal ver o quanto os jovens eram engajados e talentosos! Ao final,

fomos apresentados ao Monge (um dos líderes do movimento), por Leonardo Cezário, que

havíamos conhecido no CCBB. O Monge foi muito receptivo e trocamos contatos.

Poucos dias depois, eu liguei para o Monge e, no dia 25 de março de 2015, uma

quarta-feira, por volta de 10h00min, nós tomamos café no Palácio das Artes. Foi ele quem

escolheu o local, pois morava perto dali. A conversa com o Monge durou cerca de duas horas.

Ele foi super gentil e didático. O Monge vive a cultura do hip hop desde os anos 2000. Iniciou

sua trajetória como grafiteiro em 2003, foi integrante de um grupo de rap e, hoje, é um MC

do movimento hip hop. Conheceu o hip hop nas ruas, aos 16/17 anos e, o seu primeiro contato

com o gênero musical rap, que integra o mundo do hip hop, deu-se por meio da “Rádio

Favela” de BH. Segundo Monge, a rádio “faz o trabalho de levar a contra cultura para o

mundo, para fora do movimento”.

Conversamos sobre a história do hip hop no mundo e no Brasil, a história do

movimento em BH, o lugar dos artistas na cidade e as perspectivas de trabalho. O “funk

ostentação” está bem distante desse movimento. Conforme Monge, “o jovem que está no

crime é contabilizado pelo sistema. Quando ele se estabelece de outra forma, no

conhecimento, na cultura, a sociedade não sabe o que fazer”. Sendo assim, o objetivo do

movimento hip hop, segundo Monge, é dar força para esses jovens se colocarem socialmente

por meio da cultura e da arte.

Para Monge, o “funk ostentação” é uma forma dos jovens se destacarem nos grupos

dos quais fazem parte. “Você vem da quebrada, não tem o que comer e encontra naquela

imagem um objetivo, uma forma de se colocar na vida”. De acordo com ele, “a molecada

assiste Angélica (a atriz) recebendo alguém para almoçar em Angra dos Reis e pensa: “quero

isso também”. Essa molecada não tem ideia de contexto macro. É injusto criticá-los”. O MC

ressalta que a grande maioria dos jovens não consegue acesso aos bens cantados no funk pelo

seu talento e parte para o mundo do crime. Ele, entretanto, não acredita que isso seja

consequência do funk. Para Monge, isso é mais antigo que o funk, vem da mídia. Segundo ele,

o “mesmo moleque que escuta MC Catra escuta “Facção Central”, então, criticar o funk

ostentação não leva a lugar nenhum – o objetivo tem que ser unir a molecada”.

Com esse discurso, Monge estabelece a diferença entre o hip hop e o funk e coloca o

hip hop em um lugar mais nobre, mais pensante. Nesse lugar, ele situa o movimento “Família

de Rua”, do qual faz parte. Monge me explicou que o movimento “Família de Rua” surgiu em

31

2007, após um duelo de MCs, e é um movimento social organizado para trazer o hip hop de

BH à tona. Hoje, formam uma associação.

Segundo Monge, “a galera do hip hop foi criada no ambiente da consciência e não se

permite olhar para o lado. Nesse sentido, a galera do rap exclui a galera do funk”. De acordo

com Monge, os jovens envolvidos com o funk respeitam e admiram os rappers, mas a

recíproca não é verdadeira. Essa cisão, para Monge, enfraquece o movimento, de forma que

hoje o rap não domina mais a periferia (ou, na linguagem dele, “as quebradas”). O funk de

ritmo mais dançante é o gênero musical dominante nas comunidades periféricas. Conforme

Monge, as letras de funk reproduzem mais a cultura do lugar.

Apesar de ter aprendido muito com o movimento “Família de Rua” e o Monge e de ter

adorado gravitar em torno do hip hop, uma arte viva e linda, fiquei com a impressão de que

não aproveitaria, para minha tese, essa movimentação que fiz em torno desse gênero musical.

Em julho, fui para o Canadá, onde fiz meu doutorado sanduíche, e essas conversas com o hip

hop pararam por aí.

O tempo vivido no Canadá foi dedicado ao meu aprimoramento teórico, porém, de lá

comecei a seguir, pelo Facebook, alguns MCs de funk ostentação. MC Guimê, MC Gui, MC

Pocahontas e MC Robacena passaram a fazer parte de minha timeline, quer dizer, não da

minha exatamente, mas da “Patty Silva”, uma personagem que criei apenas para esse fim.

Acompanhei a gravidez da MC Pocahontas, o chá de bebê de sua filha Vitória (regado

a espumante), a volta da moça aos holofotes após o nascimento da menina e, mais importante,

fiz uma pesquisa na linha do tempo desses jovens, buscando fotos mais antigas, a fim de

tentar mapear a construção desse personagem que é o MC. Descobri que os rapazes investem

em roupas de marcas famosas, acessórios de ouro, carros importados e caros e tatuagens, já as

moças investem no corpo. As roupas são escolhidas para valorizar o corpo, que, por sua vez, é

meticulosamente melhorado, com claras intervenções estéticas, ao mesmo tempo, a

personagem ganha fama e dinheiro. A Pocahontas de quatro anos atrás é uma, já a de hoje é

outra, completamente diferente! Ostentação, para ela, parece-me ser encantar seu público, seja

pela idolatria, pelo desejo ou pela inveja.

O que mais me intrigou foi a despeito de todo o discurso feminista que tomou conta do

país recentemente, a MC cantar sua beleza e a importância dos homens terem bens de

consumo valiosos para terem acesso a ela. Entendi que ela, sem constrangimento e, por

vontade própria, vende sua beleza. Nesse momento, não consegui entender que esse discurso

pode significar liberdade e afronta. O tom das letras dessas músicas, para ser honesta,

ofendeu-me enquanto mulher. Somente depois de outras entrevistas, de conversar com outras

32

pessoas que vivem esse mundo e de um tempo de reflexão, foi que entendi que essa é a minha

posição moral e que outras mulheres podem pensar e agir diferente, sem necessariamente

diminuírem-se enquanto mulheres. É a tal liberdade.

Voltei para o Brasil em julho de 2016. Assim que a poeira da volta baixou, fiz uma

incursão a um ambiente onde julgava que encontraria o funk ostentação em BH – o

Aglomerado da Serra. No dia 26 de agosto, Matheus, meu colega de doutorado, acompanhou-

me em um encontro com um rapaz chamado Éder Rufino. O Rufino foi protagonista de um

documentário do cineasta Rodrigo Valle, chamado “Cafezal, Amor e Esperança”. O

documentário, muito bem avaliado pela crítica e merecedor de prêmios, trouxe fama para o

rapaz e ele pode ser considerado um personagem cool do Cafezal.

Matheus é filho de sociólogo e lutador de jiu jitsu, combinação perfeita para me incluir

nesse mundo da favela. Tendo morado próximo a essas comunidades, por vezes, desde a

infância, ele cresceu convivendo com as crianças do morro. Já conhecedor dos códigos desses

perímetros urbanos, imagino que o jiu jitsu o inseriu ainda mais nesse mundo. O fato é que ele

é brother do Rufino, lutador da mesma arte, hoje também ator, morador nato da Vila do

Cafezal, favela pertencente ao Aglomerado da Serra, maior conjunto de favelas de BH e

segundo maior da América Latina. Então, de brother para brother, Rufino emprestou-nos

seus olhos, para que conseguíssemos ver por dentro do seu mundo, dessa forma, ele nos

levava ladeira acima.

Rufino é super simpático. Cuida bastante do corpo (como deve ser um lutador de jiu

jitsu), apresentando um porte “sarado”. Baixo para os padrões masculinos, forte, moreno

claro, cabelos crespos meticulosamente cuidados em tranças rastafári, barba (que disse estar

mantendo com vistas em um curta que vai gravar), calça de moletom e camiseta de malha

justa, que não identifiquei a marca, chinelo Havaianas. Não pude deixar de reparar que ele

usava óculos Oakley e um escapulário fininho de ouro. Eu diria que é um rapaz bonito, mas a

simpatia sobrepõe à beleza. Alegre, chegou abraçando e fazendo festa para o Matheus. Não

esperou que o Matheus fizesse a minha apresentação, foi logo se adiantando, abraçou-me

dando as boas-vindas. Matheus o interrompeu, apresentando-me formalmente. Disse que

éramos colegas de doutorado, que eu era professora da PUC Minas e grande amiga dele.

Cuidadoso, enfatizou bastante essa amizade, imagino que preocupado com minha inserção

nesse ambiente e, também, com minha segurança. Em seguida, começamos a subir e entrar na

Vila do Cafezal.

Conversamos com Rufino por mais de uma hora. Dialogamos sobre sua infância,

relação com a família e a comunidade, relação de seus pais com a comunidade. Falamos da

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adolescência, dos trabalhos que ele já teve, do jiu jitsu, de sua recente incursão no cinema, do

desejo de, como ator, se profissionalizar mais e de seu sonho de produzir um filme nos

moldes do filme “Cidade de Deus”. Discutimos, também, sobre consumo e ostentação, tanto

para ele quanto do consumo naquele meio.

Quando perguntei para Rufino o que ele ostentava, respondeu-me que é o corpo.

Segundo ele, aos 40 anos, prefere ficar “mais pelado”. Não abre mão dos suplementos de

proteína, que ressaltou que são caros, e das tatuagens, todas muito trabalhadas, escolhidas

após “muito estudo sobre outras culturas”, como bem salientou.

Falando sobre os bailes funk e a vida na favela, Rufino presenteou-me com algumas

pérolas: disse que a ostentação está ligada ao sexo, às drogas e ao dinheiro. Rufino

argumentou que: “Com o dinheiro, eu vou ter tênis de marca, cordão de ouro, roupas que o

outro não tem. As gatas vão ficar com quem tem mais... aqui não é um jogo de caráter, é um

jogo de quem tem mais. No baile não interessa como a pessoa conseguiu as coisas, interessa

quem tem mais”. A ostentação está ligada àquilo que a pessoa apresenta – que não precisa,

necessariamente, ser dela, como relatou Rufino.

Eu o perguntei como consegue o carro, ele disse-me que é emprestado. De quem? “De

amigos endinheirados”. E Rufino continuou: “as mulheres não querem saber se o cara é dono

do carro, querem saber se o cara está dentro do carro! As gatas querem dizer para as amigas

‘dei pra fulano na Captiva’ e os caras querem falar para os amigos ‘comi aquela ali’”. Trata-

se, claramente, de um jogo de poder.

Essas falas do Rufino ajudaram-me a costurar algumas pontas desse meu quebra-

cabeça. Facilmente, junto esse discurso com as letras das músicas da MC Pocahontas (em

suas músicas, a MC diz que custa caro estar com ela. O indivíduo precisa ter um carro caro,

usar roupas caras, frequentar festas bacanas etc.), que retratam a maneira como ela acaba

atribuindo “preço a si mesma”, com as músicas e indumentárias dos MCs que acompanhei

pelo Facebook e com o discurso do Monge, que situou o funk no campo dos sonhos dos

jovens. As coisas, com o decorrer das conversas e observações, passaram a fazer algum

sentido.

Paramos nossa conversa logo em seguida, visto que já tinha sido um dia muito intenso

de diálogos e questionamentos para o primeiro dia e, também, porque ele precisava sair.

Trocamos telefones e eu combinei que faria novo contato. A promessa foi de que o próximo

encontro seria com o MC de funk ostentação mais famoso do Aglomerado! Esse rapaz,

durante o dia, é funcionário de serviços gerais em uma academia badalada na reião sul de

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Belo Horizonte. Segundo Rufino, sai de lá com camiseta Nike, tênis Nike Shox e óculos

Oakley, que pagou de 10 vezes, pronto para ostentar.

Rufino falou sobre alguns nomes de MCs para mim. Dessa forma, busquei na internet,

para tentar conhecer um pouco a respeito deles antes de encontrá-los. Não vi bens de consumo

valorizados e alusão às marcas. Os vídeos mostravam armas e a música falava sobre crimes.

Esses aspectos, naquele momento, desanimaram-me um pouco, entretanto, segui firme no

propósito de avançar a pesquisa no Aglomerado da Serra. Tentei marcar mais encontros com

Rufino, mas levei alguns “bolos”. Certa vez, ele marcou um encontro comigo, em um dia de

sábado às 14h00min, visita esta confirmada na sexta-feira anterior. No sábado, às 13h30min,

já pronta, liguei para Rufino para avisar que estava saindo de casa. Ele não atendeu ao meu

telefonema. Liguei inúmeras vezes, até que às 17h00min ele atendeu a minha ligação e disse-

me que havia dormido. Nessa hora, o dia já estava quase anoitecendo, não dava mais para nos

encontrarmos na favela. Nesse dia, eu tinha a intenção de acompanhar a gravação de um

videoclipe de um dos MCs sobre o qual ele havia falado. Comentei isso com Rufino, porém,

ele ressaltou que eu não deveria ir ao aglomerado sozinha, sem a companhia dele. Visto esse

comentário, entendi que eu teria dificuldade de seguir a pesquisa tendo Rufino como único

informante-chave, pois a dependência tão extrema de alguém que apresentava pouco

compromisso seria uma grande barreira.

Comentei toda essa dificuldade com uma amiga professora da PUC, cuja família, além

dela própria, tem atuação em movimentos sociais e culturais, e pedi seu auxílio diante da

situação. Andrea, essa minha amiga, havia comentado comigo a respeito de uma antropóloga,

Clarice Libânio, membro de uma Organização Não Governamental (ONG) chamada “Favela

é Isso Aí”. A ONG havia mapeado o funk em BH, sendo assim, talvez, eu pudesse obter

alguns contatos por lá. No dia 16 de setembro, escrevi para Clarice pelo Messenger (programa

de mensagens ligado ao Facebook), apresentei-me rapidamente como amiga da Andrea e

professora da PUC Minas, pedindo a Clarice seu e-mail. Clarice respondeu-me imediatamente

e, no mesmo dia, eu escrevi um e-mail para ela, apresentando-me de maneira mais formal,

desta vez como doutoranda, pesquisadora dos fenômenos do consumo. Clarice foi bastante

receptiva, mas estava em Portugal, fazendo seu doutorado sanduíche. Ela me passou os

contatos do Ed Marte, arte-educador que havia trabalhado no projeto da ONG, mas adiantou

que ele era candidato a vereador e que, por isso, talvez fosse mais prudente esperar as eleições

passarem. Concordei com sua posição e esperei esse período eleitoral terminar.

Continuei em busca de outras possibilidades para esse campo. Lembrei-me de uma

boa alternativa: a Arquidiocese de Belo Horizonte tem um projeto chamado “Providência”,

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que atende jovens das regiões mais carentes de Belo Horizonte. A gestora do projeto é

conhecida minha e, certamente, poderia me possibilitar o acesso. Comecei a pesquisar sobre

os braços do projeto e descobri que eles tinham uma parceria com a “Casa do Hip Hop”, na

comunidade do Taquaril, em BH. Demorei alguns dias para conseguir falar com a Fernanda

(gestora do projeto) e mais tantos outros para compatibilizar a agenda. Na verdade, consegui

explicá-la sobre minha pesquisa em um final de semana que nos encontramos por acaso, em

uma festa de aniversário de um amigo em comum. Fernanda permitiu meu acesso e fez a

indicação de uma jovem educadora do projeto com quem eu poderia conversar. Essa jovem, a

Gabriela, recebeu-me na unidade “Fazendinha” do “Projeto Providência”, em novembro de

2016. Ela é uma rapper, não está ligada ao funk ostentação, porém se colocou à disposição

para me ajudar a encontrar alguns MCs. Ela comentou sobre o MC G, que mora no Taquaril e

canta funk ostentação. Fiquei animada!

Mais uma vez a Universidade entrou no período de férias e o “Projeto Providência”

também teve seu recesso. No dia 12 de janeiro de 2017, consegui agendar meu primeiro

encontro com Gabriela e outros jovens na “Casa do Hip Hop”, na comunidade do Taquaril. O

Taquaril fica na região leste da cidade de BH, sendo considerada uma das favelas mais pobres

da região metropolitana. O Censo de 20105 informa que a comunidade conta hoje com 4.000

moradores, a maioria com faixa etária de 15 a 64 anos.

Eu precisava de alguém para me acompanhar nessa visita, visto isso, chamei o César,

um grande amigo, companheiro de todas as horas e, também, naquele momento, colega de

trabalho na PUC Minas Virtual. Fomos usando o UBER6. A “Casa do Hip Hop” encontra-se

dentro da favela do Taquaril, em um espaço amplo da rua principal, perto de um comércio. Eu

havia marcado com Gabriela às 16h00min.

Cabe destacar que Gabriela é integrante de um grupo de rap chamado “Setor RAP”

(Respeito, Ataque e Protesto), formado por jovens moradores do Taquaril que se conheceram

no “Projeto Providência” e fortaleceram o vínculo na “Oficina de Hip Hop”, financiada pelo

programa “Fica Vivo”, do Governo do Estado de Minas Gerais. Hoje, a oficina acontece na

“Casa do Hip Hop”, um espaço coletivo da associação de moradores do Taquaril, todas as

quintas feiras, às 17h00min. Meu objetivo era conhecer e conversar com os meninos

de16h00min às 17h00min e, depois, visitar e observar o funcionamento da oficina.

5 Último Censo disponível. 6 UBER é uma empresa americana de transporte colaborativo que, por meio de um aplicativo para smartphones,

permite que as pessoas encontrem motoristas nas regiões onde estão. Funciona como um serviço de táxi tradicional, com um diferencial em relação à comodidade e ao custo percebido pelos clientes.

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O grupo é formado pela Gabriela, 21 anos, Matheus, 20 anos (namorado da Gabriela),

Gabriel, 20 anos e Sandro, 20 anos. Todos começaram a participar da “Oficina de Hip Hop”

na mesma época e, em comum, almejam viver da música. São meninos criados na

comunidade, com alta consciência social e engajados com movimentos sociais. Conversamos

sobre quem são e o motivo de terem se aproximado da música por cerca de 30 minutos,

quando, então, chegou o W2, codinome de Wilson Wagner, o oficineiro do “Setor RAP”.

W2 é o maior incentivador do grupo e, sobretudo, considerado ídolo. O W2 começou

no rap em 1999, mas disse-me que é “militante” do funk e do rap desde 1989, sempre no

Taquaril. W2 explicou-me que quase não havia rap em BH nessa época e que a discriminação

social aos moradores do Taquaril era algo que incomodava tanto a ele quanto a seus amigos.

Nessa época, eles usaram a música, em especial o funk e o rap, para mostrar essa realidade.

W2 faz parte de um movimento social chamado “Aliança Cultural Taquaril”, junto com

outros 52 grupos artísticos. Segundo W2, esse movimento fez com que o Taquaril ficasse

conhecido de uma forma positiva por meio da arte.

W2 relatou uma vida pautada na militância social, usando a música, no passado, como

forma de tornar pública a realidade da violência policial e do desrespeito aos direitos humanos

na comunidade. Atualmente, ele trabalha em escolas e projetos sociais, como oficineiro ligado

às artes e ao esporte. Conforme W2 relata, hoje o hip hop é bem aceito e ele credita a essa arte

e às Igrejas Evangélicas a distância dos jovens do Taquaril da vida do crime e da violência.

Além disso, W2 contou que o funk foi fortemente combatido em Belo Horizonte no

Governo de Aécio Neves (2003-2010). De acordo com W2, o governo associava o funk ao

tráfico e, como forma de combatê-lo, houve violência nessa operação, com a Polícia Militar

reprimindo fortemente os artistas e toda a expressão dessa arte. Não sei se essa ação de fato

ocorreu, mas W2 a relata com a propriedade de quem vive o movimento há muito tempo.

Ao discorrer sobre o funk ostentação, Wilson Wagner disse que esse gênero musical

propaga a ideia que ele tanto combate: “se você não tem objetos de marca você não é nada. É

ter para ser. E para isso, os jovens entram no crime. Eles querem estar na moda do jeito que a

mídia vende para eles. Hoje é ainda pior, tem que ter carro, tem que ter moto”. Segundo W2,

em BH não tem nenhum MC que tenha posses cantando o funk, “eles cantam os sonhos

deles”.

Gabriel, 20 anos, fez coro à fala de W2: “o cara quer ter as marcas porque todo mundo

curte, quer mostrar, as meninas curtem”, para logo em seguida emendar: “se você almejar

mais do que tem não vai chegar a lugar nenhum”. Ao escutar W2, eu me lembrava do que

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tinha ouvido do Monge e, ao escutar Gabriel falando, eu, imediatamente, lembrei-me de

Rufino. Os discursos tinham semelhanças e iam me dando indicativos da realidade.

Por volta de 17h00min, chegou o MC G, supostamente um MC de funk ostentação. Ao

se apresentar, MC G disse-me que canta desde pequeno, esteve no mundo do crime e, “depois

do acerto”, se distanciou deste caminho. Ele relatou que sempre transformou “as coisas da

vida” em música. MC G contou que foi preso e depois obrigado a se engajar em projetos

comunitários, tendo “caído” na oficina do W2, fato que o levou para o mundo do rap.

“Menino de favela a mãe não tem condições de dar as coisas e aí o menino vai para o crime”,

justificou.

O MC G canta nos bailes funk do Taquaril e compôs uma letra de funk ostentação

cantando as coisas que ele tem: dois trainings adidas, um preto com listras verdes e um preto

com listras alaranjadas, um boné, um relógio e a casa onde mora – um barracão de madeira,

em área de ocupação. Ele trajava essa indumentária, que era visivelmente falsificada.

Sentindo-se à vontade na conversa, o MC G disse que “se você não tiver coisas, você

não está na moda”, e contou que “no tempo de escola, a maioria das pessoas tinha alguma

coisa da hora. Se você não tem, na hora da merenda você tem que pegar seu prato e sentar

separado, senão todo mundo fica te olhando”. Nesse momento, Gabriel completou: “você

socializa com quem tem algo em comum com você: ou coisas, ou ideias”.

De forma recorrente, W2 adota o discurso socialmente responsável e, como educador,

aproveita as falas dos meninos para chamá-los a prestar atenção em seus atos. De acordo com

W2, “o ser humano é muito vaidoso e o capitalismo selvagem leva a essa coisa de querer

comprar. O jovem quer acompanhar o momento”.

Os meninos escutam, respeitam, mas voltam a falar das coisas: “um exemplo atual é o

tênis Springblade, da Adidas. Custa R$1.000,00. Depois de um tempo, 70% dos jovens aqui

tem esse tênis”, conta Gabriel. “O menino que não tem as coisas sofre até bullying”,

complementa Matheus.

Logo ao ser convidada a participar da conversa, Gabriela conta que as meninas têm

expectativa de que os meninos que supostamente têm mais dinheiro (portam bens de valor)

possam oferecê-las um lanche, um passeio, um momento diferente. W2 entra na conversa e

diz que o sexo é moeda de troca para essas meninas. Gabriela completa dizendo que as

meninas pensam que “se não mostrarem a barriga e a bunda ninguém vai olhar para elas, e

elas precisam desse olhar”. Impossível não remeter à fala de Rufino, que explicou que as

pessoas “ali” querem “viver o momento”, apenas isso. Como se fosse um sonho, acordados...

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MG G retornou a conversa ao funk ostentação e disse-me que sempre o achou legal,

que “a gente fica querendo as coisas. Os MCs famosos têm as coisas” e “as meninas querem

um cara com as coisas, então, os meninos querem se mostrar, chamar atenção”.

Já havia escurecido e decidimos parar. Precisávamos pegar o ônibus de volta para a

cidade e estávamos receosos, pois estava anoitecendo. Combinamos de voltar na semana

seguinte. MC G prometeu aparecer e voltar a fazer parte das oficinas. O grupo estava na

torcida para que de fato ele voltasse a frequentar a “Casa do Hip Hop”, pois temiam que ele

tivesse voltado para o mundo das drogas.

Nosso segundo encontro foi no dia 17 de janeiro de 2017, na “Casa do Hip Hop”,

durante a oficina do W2. César novamente me fez companhia. Dessa vez, levamos um lanche

para os meninos, pois percebemos que eles tinham uma mesinha em que o W2 havia deixado

biscoitos e refrigerantes para eles no encontro anterior – é nítido o esforço para agradar os

meninos, parece que no intuito de fazer com que o momento da oficina seja bem prazeroso!

Eu levei um cachorro-quente de tabuleiro que eu mesma fiz e o César comprou alguns

refrigerantes (Coca Cola e Schweppes – verdadeira ostentação), em um bar localizado em

frente à “Casa do Hip Hop”. Compartilhar esse lanche ajudou a nos aproximar ainda mais!

César é muito “conversado”, extrovertido, disse para os meninos que eu não sou, digamos,

uma cozinheira habitual. Então, se me dispus a fazer a torta foi porque gostei mesmo deles!

Acertou o alvo! Eles gostaram da brincadeira e da delicadeza do lanche!

Os meninos começaram a nos contar sobre a forma como W2 os direcionou a escrever

letras de cunho social, do quanto eles se sentem bem naquele espaço e na companhia uns dos

outros, do que o RAP significa para eles e de seus sonhos profissionais relacionados à música.

W2 tomou o foco da conversa para si e comentou uma decisão do programa “Fica Vivo” de

trazer o funk para dentro das oficinas de rap. Conforme W2, a área do Taquaril é dominada

pelo funk, e eles avaliaram que, talvez, trazendo o funk para a oficina atrairiam mais jovens.

Segundo ele, “quem estuda a situação acredita que é muito difícil tirar o jovem do tráfico e

trazê-lo para o rap”. W2 tem um discurso muito engajado, explicita muito o custo social do

tráfico e acredita firmemente no potencial da arte como catalisador de mudanças na percepção

macrossocial dos jovens.

Nesse dia, os meninos pediram-me uma “contrapartida” ao compartilhamento que

estavam fazendo comigo: que eu os ajudasse a pensar em uma forma de melhorar o

“marketing” do grupo. Fiquei feliz com o interesse deles e propus que construíssemos um

plano de marketing para o “Setor RAP”. Essa aproximação, além de uma contribuição social,

iria me ajudar a compreender esses meninos na essência e, quem sabe, chegar mais perto

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dessa realidade. Combinamos nosso primeiro encontro para o dia 04 de fevereiro, na PUC

Minas - Unidade Praça da Liberdade.

Encerramos esse encontro mais rápido que o encontro anterior. A “Casa do Hip Hop”

é aberta, pois é de posse da comunidade. Mais ou menos uns 30 minutos depois de iniciada a

oficina, entrou um rapaz vestido como um MC de funk ostentação: roupas de marca, cordão

de “ouro”, tênis chamativo e boné. O grupo não o acolheu, na verdade nem o cumprimentou.

Ele se ajeitou na janela, mexendo no celular, como se estivesse trocando mensagens com

alguém. W2 continuou a falar, como se o rapaz não existisse, mas enfatizando a importância

de trazerem mais jovens para a casa, de usarem a arte para tirar os jovens do tráfico e da

violência. Como não conhecemos os códigos daquele lugar, tivemos medo do rapaz ser ligado

ao tráfico e, como desconhecíamos a imagem que a comunidade estava formando sobre nós,

resolvemos ir embora. Inventamos uma desculpa qualquer, relativa ao nosso tempo, e, tão

logo, pegamos o ônibus e fomos embora. O coração só desacelerou quando chegamos à Praça

Floriano Peixoto, no bairro Santa Efigênia, já mais perto de casa.

No dia 04 de fevereiro de 2017, encontrei-me com Gabriela, Matheus, Sandro e

Gabriel na PUC Minas - Unidade Praça da Liberdade. Falamos sobre a identidade dos

meninos e do grupo. Mesmo longe do W2, eles mantiveram o discurso do papel social do rap

e das letras que eles compõem. Ressaltaram bastante a diferença do rap em relação ao funk,

excetuando desse bolo o funk consciente, que tem a musicalidade do funk, mas letras musicais

semelhantes ao rap.

Gabriel defendeu a ideia de que os jovens curtem o funk porque é popular. Ele afirmou

que “os meninos vão para o baile funk atrás das meninas” e o “funk canta o que os jovens

querem ouvir”. A Gabriela argumentou que “o pessoal curte marca porque todo mundo usa,

curte funk porque todo mundo curte. Se você pedir para ver a playlist do celular daquelas

pessoas, não achará funk”. E ela acrescentou que “funk elas escutam em público. É o

momento, sem compromisso. É o que ela quer mostrar, quer atenção. Acha que se não

mostrar, vai ser diferente, o que não é legal. Hoje o obsceno é que é legal”. Para o Matheus,

“funk é curtição, rap é compromisso”.

Os meninos foram unânimes em relatar a violência do tráfico, a violência doméstica

atrelada a esse submundo das drogas e, o tempo todo, eles associavam o funk a esse universo.

Eles se colocam em um universo diferente, com preocupações e perspectivas diversas. Essas

características ficaram cada vez mais evidentes ao longo de nossos encontros. O assunto do

funk ostentação foi sumindo de nossas conversas até se afastar completamente. O trabalho

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voluntário com os meninos continuou por bastante tempo, envolvendo, inclusive, outros

professores e alunos da PUC Minas.

Na tentativa de me aproximar novamente do universo do funk, pedi ajuda a Gabriela,

que é educadora no “Projeto Providência”, para possibilitar um encontro meu com um grupo

de adolescentes assistidos pelo projeto. Esse encontro aconteceu em 09 de fevereiro de 2017.

Conversei com oito adolescentes, dois meninos e seis meninas, com idades entre 12 e 14 anos.

Foi uma conversa exploratória, em que falamos sobre o dia a dia na escola, paqueras e roupas.

Nesse grupo, também percebi que os dois meninos vestiam roupas de marcas, um

deles usava uma corrente de prata e ambos tinham o cabelo cortado de forma semelhante aos

cortes de funkeiros e alguns jogadores de futebol. As meninas, quase todas, usavam roupas

justas. O discurso do conforto foi muito presente, porém deixaram bastante claro que

valorizam o que julgam belo. Todas disseram que gostam de maquiagem e acessórios e se

inspiram nos looks que veem nas ruas.

Ao falarem das paqueras da escola, todas as meninas descreveram minuciosamente as

roupas que os meninos usam, dando muita ênfase às marcas. Uma das meninas, de 14 anos, ao

descrever um menino da escola, o qual acha bonito, enfatizou: “ele tem uma blusa Polo (a

marca) e um tênis Nike Shox de 12 molas (para enfatizar as 12 molas ela aumentou o tom de

voz), coloridão, muito bonito”. Tentando entender a forma como os meninos pensam,

perguntei a um menino de 13 anos como era a menina que ele paquerava. Ele olhou para o

chão e disse-me: “não posso falar, não é apropriado”. Eu insisti para que ele falasse, dizendo

que ele poderia falar tudo que pensava sobre ela naquele momento. Ele me respondeu: “posso

não, Tia. Eu tenho noção”, e saiu da mesa e foi se assentar no chão, longe de mim.

Rapidamente entendi que ele ia se referir ao corpo. Mais uma vez eu percebia o interesse das

meninas por rapazes que portassem coisas, e dos rapazes por meninas com corpos bonitos.

Eles certamente estavam repetindo o comportamento social da comunidade onde vivem.

Diante desses aspectos, novamente remeti meus pensamentos às letras de músicas das

funkeiras, lembrando da MC Pocahontas.

Todas as meninas disseram-me que têm “peguetes”. Perguntei onde conheceram os

rapazes, e a maioria delas contou-me que forma nos “becos” onde moram, ou por onde

passam. Sempre são rapazes mais velhos do que elas. Perguntei com que os rapazes trabalham

e a resposta comum foi: “nada não”. Penso que é pouco provável que façam “nada não”, uma

vez que precisam viver. Muito provavelmente estão envolvidos com o tráfico ou têm

trabalhos temporários, pouco importantes para a construção da identidade daquele grupo.

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Pensando sobre o modo de viver desse grupo, remeto-me a tudo que escutei nesse meu

caminho até aqui. Primeiro, o mais importante é o momento, não se pensa em futuro. Os

jovens vivem o agora. Segundo, o trabalho formal ou os estudos não criam identidade nesse

grupo. Ninguém se remete ou parece se importar com isso (inclusive, a escola parece ser

apenas um lócus de encontro). Terceiro, os rapazes se preocupam em portar objetos de grife e

as meninas em estarem atraentes, e isso é tão natural que é como se fosse o curso normal da

vida, é assim que eles se valorizam.

O funk havia apenas tangenciado minhas entrevistas até aqui. O Magnata, que havia

ficado lá atrás, em 2014, havia desistido do funk ostentação; com o Rufino encontrei barreiras

de acesso; a “Casa do Hip Hop” trabalhava com uma concepção de consciência social muito

forte e os adolescentes do “Projeto Providência” eram muito jovens, estavam apenas

começando sua vida social.

Lembrei-me do Ed Marte! No dia 09 de março de 2017, telefonei para o Ed Marte.

Assim como Clarice, ele também foi bastante receptivo! Só que as notícias não foram boas...

Ele disse-me que não havia encontrado funk ostentação em BH e que o cenário é marcado

pelo hip hop (rap) e pelo funk consciente. Para tentar ajudar, ele passou contatos de alguns

MCs e, também, de produtores que talvez pudessem conhecer alguém do funk ostentação para

mim. Não cheguei a fazer contato com esses músicos, pois já sabia, de antemão, a dificuldade

que seria eu chegar nesse campo. Já havia experimentado isso no Aglomerado da Serra.

Diante de toda essa dificuldade, em reunião com o prof. Marcelo, meu orientador nesta

tese, decidimos tentar o acesso ao funk por meio dos alunos da PUC Minas. Pensamos nas

unidades, no perfil de alunos de cada unidade e decidimos entrar em contato com alunos na

Unidade São Gabriel. Essa unidade está localizada na periferia de Belo Horizonte e, no turno

da manhã, temos muitos alunos de bairros do entorno, filhos de comerciantes da região.

Talvez conseguíssemos algo. Nesse mesmo dia, conversei com uma amiga, a Meny,

professora do curso de Administração do turno da manhã, que fez contato com um aluno

(Pedro Ivo), que julgou ter perfil para minha pesquisa, para que eu pudesse iniciar meus

estudos com esse novo público-alvo.

Liguei para Pedro Ivo, para combinarmos um horário para nossa conversa. Ele foi

super receptivo e muito gentil. Marcamos para o dia 16 de março, uma quarta-feira, na

Unidade São Gabriel, às 08h30min, antes do início de suas aulas, às 10h40min. Nossa

conversa aconteceu em uma sala de reuniões da Universidade.

Pedro Ivo é um menino jovem, bonito, bem vestido, filho de um pequeno empresário

do ramo de transportes e de uma dona de casa, família de classe média, morador de um bairro

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próximo à Unidade São Gabriel – típico aluno do curso de Administração do turno da manhã

desta unidade. Conversamos sobre rotina, férias, gosto musical, amigos, namorada, consumo,

marcas, profissão, sonhos de consumo e sonhos de vida. Foi uma conversa muito agradável,

de quase duas horas de duração. O Pedro não vive no mundo do funk, mas o tangencia. Já

frequentou bailes de favela por duas vezes, tem amigos nesse ambiente, entende um pouco do

código de conduta desse grupo, posto que foi frequentador assíduo de shows de funk em casas

sofisticadas e portador (para usar o jargão adequado) de um Jetta (carro da Volkswagen que

agrada os funkeiros), que trocou por um Sonata, sonho de consumo de 10 em 10 dos jovens

desse grupo social. De Sonata ele arrumou a atual namorada e, nesse namoro, agora já antigo,

de volta à vida real, trocou por uma Kombi e iniciou seus negócios, no mesmo ramo do pai.

Pedro disse-me que precisava, emocionalmente, do Sonata, e, hoje, não precisa mais. Pedro

transparece ser um rapaz seguro, cheio de planos de futuro. A conversa foi prazerosa, mas eu

ainda me mantinha distante de meu universo de pesquisa. Com certeza a conversa contribuiu

para alguns insights sobre posicionamento dos jovens em relação às marcas, mas no tocante

ao funk, eu continuava distante...

Mais uma vez a Andrea, professora da PUC Minas, minha amiga, que havia me

ajudado a conversar com Clarice e Ed Marte, entrou em cena! Andrea foi dar uma palestra no

curso de graduação das Ciências Sociais da PUC Minas - Unidade Coração Eucarístico, onde

se doutorou, e comentou com os alunos sobre meu trabalho e minha dificuldade de entrar

nesse universo do funk. Um dos alunos, Eduardo, ao final da palestra, a procurou e disse que

havia realizado um projeto de iniciação científica por meio do qual mapeou o funk em BH.

Andrea anotou o telefone do rapaz, com a intenção de me passar. Para Andrea devo uma

cerveja em um Baile Funk!

Liguei para o Eduardo e ele se mostrou solícito e disposto a ajudar. Enviou-me, por e-

mail, o artigo que escreveu decorrente de seu projeto de iniciação científica. A partir desse

contato, marcamos uma conversa (eu, Eduardo e Marcelo), para dia 28 de março de 2017,

uma terça-feira, às 14h00min, na PUC Minas Virtual.

A palavra que definiu essa reunião foi ESPERANÇA! O Eduardo é formando em

Ciências Sociais, pesquisador acadêmico e ponte perfeita para o mundo que precisamos

entrar: conhece o mundo do funk, gosta da música, já pesquisou nesse mundo e se interessou

tanto pelo universo em questão quanto pela possibilidade de pesquisa que a ele apresentamos.

Até que enfim uma luz começava a aparecer para indicar o início desse túnel!

Marcelo ofereceu uma bolsa de pesquisa ao Eduardo, já imaginando que pudéssemos

levar esse estudo para além de minha tese. O Eduardo já era, nesse momento, bolsista de

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pesquisa e não pode aceitar, entretanto, combinou conosco que sondaria a disponibilidade de

colegas de curso igualmente envolvidos no mundo do funk. Sendo assim, apareceu Matheus

Costa, que se tornou nosso acadêmico de pesquisa.

Matheus é soteropolitano, tem 21 anos, estuda Ciências Sociais na PUC Minas, é

prounista7 e ativista do movimento estudantil. Ele mora em uma residência estudantil, onde

residem alunos de baixa renda, chamada “Movimento de Fundação da Casa do Estudante de

Minas Gerais” (Mofuce). Esse aspecto e a participação em eventos do movimento estudantil,

do qual é integrante, propiciam a ele convivência com muitos jovens estudantes. Isso foi

indispensável para a seleção dos participantes de nossa pesquisa.

O funk é parte importante da vida de Matheus, que nasceu e foi criado em uma

comunidade de baixa renda em Salvador. A música, a moda, a forma de relacionamento e o

consumo que gravitam em torno do funk são claros para Matheus. Bingo! Ele se dispôs a

entrevistar jovens fãs do ritmo musical. Matheus tem idade e códigos para ter acesso a esse

grupo, acesso este que eu não havia conseguido.

Como uma boa notícia nunca aparece sozinha, no dia 29 de março, recebi um e-mail

de um colega, professor da PUC Minas, com quem eu não conversava havia muito tempo –

Wanderley Novato. Wanderley soube, pela Soraya, também professora da PUC Minas e

minha colega no Programa de Pós-graduação em Administração (PPGA), que eu estava

estudando o funk e não estava conseguindo acesso a este universo. Ele contou-me que tinha

uma aluna cuja família tem uma casa de espetáculos onde são realizados bailes funk.

Perguntou se eu gostaria que ele conversasse com ela, na tentativa de obter ajuda para mim.

Claro! Inacreditável que na mesma semana outra luz se acendesse! Inacreditável mesmo é que

demorei aproximadamente dois anos e meio para conseguir entrar nesse mundo...

Adentrando nesse mundo, Marcelo e eu decidimos seguir dois caminhos paralelos: eu

caminharia em direção aos MCs – inicialmente eu imaginava que conseguiria isso com auxílio

de Amanda, nossa aluna cuja família tem a casa de bailes funk e o Matheus seguiria buscando

os fãs do gênero.

Fiz contato com Amanda e marquei nosso primeiro encontro. No dia 11 de maio de

2017, estive com Amanda e Sara (sua mãe e minha xará), no “Bar Nacional”, em Venda

Nova, periferia de Belo Horizonte, na rua Padre Pedro Pinto, número 2041 – uma rua

movimentada e importante para o comércio local. Dessa vez, eu fui sozinha.

7 O Programa Universidade para Todos (ProUni) é uma iniciativa do Governo Federal para facilitar o acesso de

alunos carentes ao Ensino Superior. Criado em 2004, o ProUni oferece bolsas de estudos de 50% ou 100% da mensalidade em faculdades particulares.

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O “Bar Nacional” é uma casa dedicada ao ritmo do funk, que promove festas

comandadas tanto por Disk Jockeys (DJs) quanto por MCs. A casa funciona, normalmente, de

quinta a segunda-feira, tanto para festas organizadas pela direção da casa quanto para eventos

organizados por terceiros, quando alugam a casa. O “Bar Nacional” promove desde shows de

MCs famosos até eventos comandados por MCs locais. Conversamos sobre o funcionamento

da casa, o perfil do público-alvo, os hábitos de consumo desses frequentadores em relação a

roupas, acessórios e bebidas dentro do baile e os desafios da gestão da casa relativos aos

preconceitos com o ritmo, especialmente em uma casa de periferia.

Sara, sendo a proprietária da casa, autorizou o meu acompanhamento dos bailes no

“Bar Nacional” e, imediatamente, combinamos que eu acompanharia um baile tradicional, de

domingo e um baile comandado por um MC famoso, o MC Lan, de São Paulo, queridinho da

meninada naquele momento.

No dia 28 de maio, por volta de 17h00min, partimos para um baile funk matinê, que

aconteceria no “Bar Nacional”. Fomos eu, Cláudio (meu marido) e Matheus. Essa experiência

do baile funk foi um caso à parte (e que caso!), fundamental para eu compreender o

significado do funk na vida desses jovens de periferia... Eu saí deste baile completamente

diferente de como entrei... Foi uma experiência impressionante! Passado o baile, passamos a

esperar ansiosamente o show do MC Lan, que aconteceria no dia 17 de junho.

Matheus foi caminhando com as entrevistas dele e, até o final de nosso percurso,

conseguiu entrevistar onze jovens, todos moradores de comunidades de baixa renda em Belo

Horizonte inseridos na cultura funk. Sem a ajuda de Matheus o acesso a esses jovens seria

muito difícil! Não sendo um deles eu não conseguiria conversar de igual para igual e acessar o

que é fundamental nessa história toda.

De minha parte, fiz contato com o professor Juarez Dayrell, fundador e integrante do

“Observatório da Juventude” da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O prof.

Dayrell é sociólogo de formação, mestre em Educação pela UFMG, doutor em Educação pela

USP e pós-doutor em Ciências Sociais em Lisboa. Em sua tese de doutorado, o prof. Dayrell

estudou o papel do rap e do funk na socialização da juventude pobre de Belo Horizonte e tem

seu papel de desvendador do binômio funk e juventude de baixa renda reconhecido tanto

academicamente quanto pelos jovens ligados, principalmente, ao movimento do rap, em Belo

Horizonte. O nome do prof. Dayrell e o “Observatório da Juventude” da UFMG foram

referências importantes durante minhas pesquisas bibliográficas para a construção de meu

projeto de tese, assim como foram referências expressivas nos discursos do Monge e do W2.

Certamente, o prof. Dayrell teria uma rica contribuição para minha luta.

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O “Observatório da Juventude” tem seu papel reconhecido, em Belo Horizonte, pelos

jovens ligados aos movimentos sociais que hoje têm papel relevante no cenário cultural da

cidade. O Monge é um desses! Ele se define como “cria” do Observatório.

Particularmente, tenho ficado cada dia mais encantada com o entendimento do cenário

cultural da minha cidade, possibilitado por essa pesquisa. Sempre gostei de cultura de rua,

sempre frequentei eventos de rua, mas meu olhar era outro.

No dia 07 de junho, uma quarta-feira linda de sol e céu claro, Marcelo e eu passamos

algumas horas riquíssimas na companhia do prof. Dayrell, em seu apartamento, no icônico

bairro de Santa Tereza, em BH. O professor Dayrell foi cordial, recebendo-nos com leveza e

generosidade. Escutou minha história, minhas angustias e dúvidas e compartilhou conosco

seus achados de pesquisa, suas impressões, além de diversas referências bibliográficas e os

contatos de dois de seus entrevistados da tese de doutorado, os MCs Jefinho e Klebinho. Eu

diria que essa reunião com o prof. Dayrell, além de ter sido um refresco para minha alma, deu

uma “turbinada” em minha pesquisa! MC Jefinho e MC Klebinho são ouro em pó!

No mesmo dia liguei para os dois, que foram super receptivos! Lembraram, com

carinho, do tempo que passaram com o professor Dayrell, em 2001, quando eram bem jovens,

perto dos 18 anos de idade.

O feriado de Corpus Christi prometia. O evento mais importante do feriado seria o tão

esperado show do MC Lan no “Bar Nacional”. Eu também tentaria me encontrar com o

Jefinho, que disse que estaria em casa e, talvez, pudesse me receber. Fiquei de ligar para ele

durante o feriado. Ele preferiu assim, pois poderia aparecer algum compromisso de última

hora.

No dia 12, segunda-feira antes do feriado, eu telefonei para Amanda, a fim de

confirmar minha presença no baile e solicitar um contato anterior ao horário do show com o

MC Lan, conforme a mãe dela, Sara, havia me prometido. Amanda disse-me que nem ela nem

a mãe dela estariam presentes no show (achei estranho, pois era um show grande...), mas que

uma funcionária da casa poderia me receber. Em relação à entrevista com o MC, disse-me que

conversaria com sua mãe a esse respeito. Na terça-feira, tentei falar com Amanda, para

agendar a entrevista, porém ela não atendeu ao meu telefonema. Liguei inúmeras vezes na

quarta-feira, véspera de feriado, e nada também... Então, eu comecei a ficar desanimada...

No dia 15, Amanda enviou uma mensagem por meio do WhatsApp para mim, dizendo

que seria muito difícil eu falar com o MC Lan no “Bar Nacional”, pois ele chegaria em cima

da hora do show, vindo de outra casa, com toda sua equipe e tempo contado, posto que dali

iria, ainda, para outro lugar. Seriam vários shows seguidos e ele passaria pelo “Bar Nacional”

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como um beija-flor. Amanda, portanto, passou para mim o telefone de um rapaz chamado

Ítalo, da produtora I9, que estava acompanhando o MC nessa temporada de shows em BH e

que iria me ajudar. Amanda disse-me que já havia falado a respeito de mim com MC Lan.

Nesse meio tempo, eu já havia procurado o telefone do empresário do MC Lan na

internet e ligado para o rapaz, em São Paulo. Não consegui falar, deixei recado e não recebi

retorno. Bom, nessa altura, isso já era o esperado!

Somente no dia 17, perto do meio-dia, consegui falar com o Ítalo. Ele contou-me que

o Lan estava dormindo, mas que levaria minha demanda para ele. Pontuou que a agenda dele

estava muito “corrida”, que eles chegaram ao hotel, depois de vários shows, às nove da manhã

e, que em poucas horas começariam tudo novamente. Entretanto, ele prometeu que me

ajudaria! De toda forma, percebi que não conseguiria ter o tempo que precisaria com o MC.

Caso ele me recebesse, seria para 15 minutos de conversa, entre uma refeição e a preparação

para o primeiro show. Apesar disso, eu ainda esperava esse contato.

Imediatamente após essa conversa com Ítalo, telefonei para o Jefinho e confirmei

nosso encontro. Marcamos às 14h00min. Eu e Cláudio, meu marido e presença constante em

todo esse trabalho de campo, fomos recebidos por Jefinho em sua casa, no Jardim Felicidade

– uma comunidade de baixa renda na região norte de Belo Horizonte.

Tínhamos decidido ir ao encontro de Jefinho em nosso próprio carro, não sem antes

pensarmos inúmeras vezes se isso seria ou não adequado. Guiados pelo Waze8, chegamos fácil

à casa de Jefinho. O Jardim Felicidade é um lugar pobre, mas muito alegre e pareceu-nos um

local seguro. Várias crianças brincavam na rua, mulheres trançavam para lá e para cá e

homens conversavam com os vizinhos e lavavam carros na porta de casa. Um sábado típico.

O sogro dele, cadeirante, estava à porta e nos confirmou o endereço. Quem chegou

primeiro para nos atender foi a Rose, esposa de Jefinho, uma graça de moça! Entramos e,

ainda no quintal, avistamos Jefinho com sua filha, Jeniffer, de cinco anos de idade.

Conversamos um pouco sobre sua filha, o que gostava de fazer, entre outros aspectos. Eu vi

as bonecas dela, brinquei um pouco de chá de bonecas com ela para, em seguida, ela me

liberar seu pai para a entrevista.

Passamos toda a tarde daquele dia com Jefinho, debaixo da sombra de uma árvore, no

quintal de sua casa, nos deliciando com um café com biscoitos que a Rose havia preparado

para nós. Que família simpática essa!

8 O Waze é um aplicativo para smartphones, usado para mapear o trânsito e as possíveis rotas para determinado

local.

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A conversa com Jefinho foi deliciosa! Foi um momento singular escutar sobre o

caminho dele, sua relação com a música, com a comunidade, com a espiritualidade, suas

preocupações com a família, com o futuro da filha... Eu confesso que aprendi um pouco sobre

o amor. Essa tarde foi realmente um presente!

Uma semana depois, comentei com Marcelo que esse trabalho de campo estava

mudando minha visão de mundo. Eu nunca havia tido tantos inputs em minhas reflexões

sobre a vida quanto tenho tido em meu trabalho de campo. Salve o funk!

Saímos da casa de Jefinho por volta de 17h00min, avaliando se iríamos ao baile

comandado pelo MC Lan no “Bar Nacional”. Eu estava muito receosa... O baile começaria às

23h00min, muito provavelmente o MC Lan chegaria por volta de duas da manhã, Venda

Nova era uma região perigosa durante a madrugada e eu não conseguiria conversar com ele

durante a festa. O receio venceu e não fomos. No outro dia, assim que acordei, entrei no

Facebook para buscar relatos dos frequentadores da casa sobre o baile e me deparei com

notícias sobre drogas e batida policial. Meu receio deve ter sido um presságio... Agradeci por

não ter ido!

No domingo, dia 18, conversei novamente com o Ítalo. O MC Lan não teria tempo

para me receber, pois já estava se preparando para voltar a sua casa. Fiquei sem essa

entrevista, mas não fiquei triste, pois a fama, de certa forma, já o afastou do mundo real que

estou procurando entender... Com tempo, certamente eu conseguiria acessar o Lan que ficou

lá atrás, mas tempo não é exatamente o recurso que ele queria compartilhar comigo...

A vida seguiu e eu fiz novo contato com o Klebinho. Combinamos que nos

encontraríamos na UFMG, em uma sexta-feira, quando ele comanda um programa na rádio

universitária. A data escolhida por ele foi 30 de junho, pois antes estava com a agenda

apertada em seu estúdio.

Cláudio, a essa altura já estava super interessado em minha pesquisa e, como em sua

vida cotidiana, enquanto dentista, é muito atarefado, precisou desmarcar com alguns pacientes

para me acompanhar. Eu havia combinado com Klebinho às 16h00min na Praça de Serviços

do campus da Pampulha.

Como Klebinho se atrasou um pouco, foi o tempo de tomarmos um café e curtirmos o

ambiente com certa nostalgia. Cláudio estudou Odontologia na UFMG e estava vivenciando

um momento de boas recordações, dos tempos de seu ciclo básico no campus, do “bandejão”

no restaurante universitário, das festas, enfim, da juventude...

Klebinho chegou! Compramos mais um café, dessa vez para nós três, e começamos

nossa conversa. Eu e meu esposo ficamos muito impressionados com o pensamento claro e o

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discurso bem articulado de Klebinho. Os posicionamentos dele ora corroboravam com os

meus pensamentos, ora me mostravam pontos que ainda permaneciam obscuros para mim.

Jefferson Kleber dos Santos Costa tem 34 anos, graduado em Educação Artística pela

UEMG, é produtor musical e tem um estúdio na Vila Maria, comunidade de baixa renda na

qual foi criado, integrante do bairro Jardim Vitória, na região noroeste de Belo Horizonte. É

casado e não tem filhos. Não mora mais no bairro, mas mantém suas raízes por meio do

estúdio e dos músicos que produz. Falamos sobre a vida cultural e política efervescente da BH

dos anos 90, dos movimentos sociais nas comunidades de baixa renda, do significado do

curso superior para um jovem de periferia, da vida dos jovens de periferia, do significado da

música funk, dos bailes, dos relacionamentos, da indumentária, enfim, de todos os signos que

permeiam o universo destes jovens.

A conversa não foi muito longa, embora intensa, pois o programa na rádio

universitária tinha hora para começar, e o nosso tempo estava se esgotando! Fomos, inclusive,

interrompidos por um jovem, também da rádio, preocupado com os procedimentos anteriores

a serem realizados para o início do programa.

Muito provavelmente, por sua formação como arte educador, por sua intimidade com

o pensamento crítico e reflexivo, pelo contato constante com pesquisadores, Klebinho mostre

ser capaz de refletir de maneira tão densa sobre o universo que o cerca. Jefinho e Klebinho se

mostraram de forma bastante diferente para mim! Foram razão e emoção e, sem combinarem,

se completaram!

Para fechar essa pesquisa, eu necessitava ainda de dados mais históricos do

movimento funk em BH. Ambos, Jefinho e Klebinho, sugeriram que eu tentasse uma

entrevista com o DJ Joseph. Sendo assim, Jefinho logo passou o contato do DJ Joseph para

mim.

No dia 02 de outubro, uma segunda-feira, às nove horas da noite, eu e Cláudio

seguimos, mais uma vez, para o centro de Belo Horizonte em direção ao estúdio do DJ

Joseph. O estúdio se situa em uma região muito comercial da cidade, nas imediações do

Mercado Central. O prédio onde o estúdio se localiza é comercial, de três andares apenas,

porém bastante comprido – ocupa quase um quarteirão. Já fui a prédios semelhantes durante o

dia, mas nunca havia frequentado esses ambientes à noite. Descobri uma ocupação

completamente diferente! Em várias salas escutei burburinho de cozinha funcionando, de

conversas entre/de casais, de vozes de crianças. Joseph disse-me que muitas famílias moram

ali. “Permitido não é, mas quem vai impedir! Eles não têm onde morar”, comentou Joseph.

Segundo ele, muitas daquelas pessoas fornecem salgados para as lanchonetes do centro da

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cidade, e passam a noite preparando as encomendas. E a cidade vai se descortinando para

mim...

Joseph estava ocupado na finalização da gravação de uma música para uma jovem

dupla, do interior de Minas Gerais, cantores de música romântica, dessas que animam as

exposições de gado em cidades pequenas. Enquanto esperávamos o DJ, acompanhamos a

gravação, conversamos com eles, curtimos a música e ficamos lendo os inúmeros posters

pregados nas paredes do estúdio. Um dos posters era do MC Pelé, mineiro, já falecido. Pelé

foi um importante MC no cenário do funk nacional, é um rosto conhecido de minha

adolescência.

A dança jazz era moda nos anos 80 e eu adorava. Dançava com um grupo do colégio,

em uma aula extraclasse que acontecia duas vezes por semana. Nada demais, mas era muito

divertido e levávamos aquilo a sério, apresentávamos em muitos eventos na BH daquela

época, culturalmente efervescente. Basta lembrar que foi quando nasceu o “Skank”, que

tocava no recreio do meu colégio.

Nesse cenário, havia um dançarino famoso que era dono de uma academia, o Maurício

Tobias. O sonho da maioria das meninas era dançar lá – não o meu, porque eu gostava mesmo

era da diversão que o grupo do colégio me proporcionava. Pelé integrava esse grupo. Além

disso, era jurado de um programa de calouros da TV Alterosa, o “Show da Tarde”,

comandado pelo jornalista Dirceu Pereira. Lembro-me dessa época em detalhes! Isso tudo

serviu de assunto para o início de minha conversa com Joseph. As memórias criaram

afinidades que permitiram nossa aproximação.

Ficamos conversando com o Joseph até por volta das 23h00min. Ele rememorou 40

anos de história, desde a década de 70, com quatorze anos, quando começou sua história

como DJ Joseph. Agora ele tem 57 anos e trabalha como técnico na Rede Minas. Já teve

programas importantes na Rádio 98 FM e no Sistema Globo de Rádio.

O DJ, por meio de suas diversas histórias, fez com que voltássemos para o início da

década de 70, época em que os bailes de periferia ferviam ao som da black music americana.

Ele relatou que era a época da música disco, um gênero de música e de dança cuja

popularidade atingiu o pico em meados da década de 1970, mas a periferia curtia black music

e black dance, dança break, passinhos, e isso foi o início da cultura funk no Brasil.

Joseph integrou o cenário nacional, participando dos lps “Funk Brasil 2 e 3”, que são a

origem do funk no Brasil. Fomos ali buscar história e encontramos memória, funk vivo. O DJ

é muito entusiasmado, vive para a música e sempre viveu da música. Agora tenho subsídios

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para compreender o funk historicamente e, de forma privilegiada, escutei tudo isso de quem

nasceu e cresceu junto com o movimento.

Esse caminho não tem começo, meio e fim, mas já tem riqueza suficiente para eu

iniciar minhas análises, na tentativa de compreender todo esse mistério. Por hora, vou parando

por aqui...

Figura 1 - Caminho percorrido pela autora

Fonte: desenvolvida pela autora para ilustrar essa tese.

Segundo semestreInício da minha história com Funk, em um trabalho acadêmico para a disciplina de Comportamento do Consumidor do PPGA da PUC Minas.

Dezembro Depois desse primeiro contato com o Funk Ostentação soube que havia um MC desse gênero musical entre os funcionários da PUC. Entrei em contato e, em dezembro de 2014, eu e o Marcelo marcamos uma conversa com o MC Magnata da ZN, que era eletricista na Universidade e seu colega, chamado MC Charlin, que na vida cotidiana era porteiro de um centro de saúde na periferia de BH.

2015

Julho Fui para o Canadá, onde fiz meu Doutorado Sanduíche e essas conversas com o Funk pararam por aí. O tempo no Canadá foi dedicado ao aprimoramento teórico mas, de lá, comecei a seguir e a observar, pelo Facebook, alguns MCs de Funk Ostentação: MC Guimê, MC Gui, MC Pocahontas e MC Robacena, por exemplo, passaram a fazer parte de minha timeline... não da minha exatamente, mas da Patty Silva, uma personagem que criei apenas para esse fim...

Descrevendo o caminho

2014JaneiroMC Magnata da ZN me informou que o FunkOstentação não estava mais em moda e que elelargaria o estilo para investir em algo mais“quente” (“proibidão”).

Fui ao evento Festival Hip Hop, parte da programação do festival Verão Arte Contemporânea (VAC), no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em BH. Foi aí que estabeleci o meu primeiro contato com o movimento social Família de Rua, dedicado ao Hip Hop.

Março Fui a um espaço cultural na rua Aarão Reis chamado Teatro Spanca. Lá acontecia um evento chamado “Café, Ritmo e Poesia”, quando fui apresentada ao MC Monge, que foi muito receptivo e trocamos contatos.

Dias depois, encontrei com o Monge no café doPalácio das Artes. Nossa conversa durou cercade duas horas e falamos sobre a história do HipHop no mundo, no Brasil e em BH, o lugar dosartistas na cidade e as perspectivas de trabalho.Além disso, o MC evidenciou para mim o queacredita ser as principais diferenças entre Funke Rap.

Figura 1: Caminho percorrido pela autoraFonte: desenvolvida pela autora para ilustrar esta tese.

2016Voltei para o Brasil. Assim que a poeira da volta baixou fiz uma incursão a um ambiente onde julgava que encontraria o Funk Ostentação em BH: o Aglomerado da Serra.

Matheus, meu colega de doutorado, me acompanhou em um encontro com um rapaz chamado Eder Rufino, para uma entrevista. O Rufino foi protagonista de um documentário do cineasta Rodrigo Valle chamado “Cafezal, Amor e Esperança”.

As falas do Rufino sobre funk e ostentação me ajudaram a costurar algumas pontas desse meu quebra-cabeça.

Setembro

2017JaneiroAprofundei a conversa com a Gabriela, rapper do grupo Setor R.A.P. que não está ligada ao Funk Ostentação, mas se dispôs a me ajudar a encontrar alguns MCs. Ela comentou sobre o MC G, que mora no Taquaril e canta Ostentação. No mesmo dia, também me reuni com outros jovens na Casa do Hip Hop, na comunidade do Taquaril.

Foi nesse dia que conheci, também, o W2, “militante” no Funk e no Rap desde 1989. Ele também me contou a sua versão sobre a história do funk na cidade.

Ainda em janeiro, aconteceu o segundo encontro com o W2 e com o Setor R.A.P. Na ocasião, o rapper comentou sobre a decisão do programa Fica Vivo de trazer o Funk para dentro das oficinas de Rap. De acordo com W2, a área do Taquaril é dominada pelo Funk e o projeto avaliou que, trazendo o Funk para a oficina, poderiam atrair mais jovens.

Nesse dia, os meninos do Setor R.A.P. me pediram uma “contrapartida” ao compartilhamento que estavam fazendo comigo: que eu os ajudasse a pensar em uma forma de melhorar o “marketing” do grupo.

Descrevendo o caminho

Entrei em contato com o Projeto Providência, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Comecei a pesquisar sobre os braços do projeto e descobri que eles têm uma parceria com a Casa do Hip Hop, na comunidade do Taquaril, em BH.

NovembroFui recebida na unidade Fazendinha, do Projeto Providência, pela Gabriela, educadora do projeto e ligada ao movimento do Hip Hop na comunidade do Taquaril.

FevereiroAconteceu o primeiro encontro com os meninos do Setor R.A.P. para começarmos a trabalhar no plano de marketing do grupo, na PUC Minas Praça da Liberdade.

O assunto do Funk Ostentação foi sumindo de nossas conversas até se afastar completamente. O trabalho voluntário com os meninos continuou por bastante tempo, envolvendo, inclusive, outros professores e alunos da PUC Minas.

Aconteceu, mediado pela Gabriela, o encontro com um grupo de 8 adolescentes: dois meninos e seis meninas, com idades entre 12 e 14 anos. Foi uma conversa exploratória, onde falamos sobre o dia a dia na escola, sobre paqueras e sobre roupas.

Figura 1: Caminho percorrido pela autoraFonte: desenvolvida pela autora para ilustrar esta tese.

Descrevendo o caminho

MarçoClarice Libânio, antropologa, membro da ONG “Favela é Isso Aí”, intermediou um contato meu com Ed Marte. Assim como a Clarice, ele também foi bastante receptivo! Só que as notícias não foram boas... ele me disse que não havia encontrado Funk Ostentação em BH e que o cenário é marcado pelo Rap e pelo Funk Consciente. Para tentar ajudar, me passou contatos de alguns MCs e também produtores que talvez pudessem conhecer alguém do Funk Ostentação.

Ainda em março, aconteceu uma conversa importante com Eduardo, aluno da PUC Minas. A palavra que definiu essa reunião foi ESPERANÇA! O Eduardo é formando em Ciências Sociais, pesquisador acadêmico e ponte perfeita para o mundo que precisávamos entrar. Ele conhece o mundo do Funk, gosta da música, já pesquisou nesse cenário e se interessou tanto pelo universo em questão quanto pela possibilidade de pesquisa que a ele apresentamos. Até que enfim uma luz começou a aparecer para indicar o início

desse túnel! Eduardo nos apresentou Matheus, igualmente interessado pelo Funk, que se tornou nosso acadêmico de pesquisa. Ele estuda Ciências Sociais na PUC Minas, é prounista e ativista do movimento estudantil. Nascido e criado em uma comunidade de baixa renda em Salvador, o Funk é parte da vida do Matheus.

Matheus se dispõe a entrevistar jovens fãs do Funk. Ele tem a idade e os códigos para ter acesso a esse grupo de pessoas, acesso que eu não havia conseguido.

Nesse mesmo mês, recebi um e-mail de um colega, professor da PUC Minas, que ficou sabendo da minha pesquisa. Ele me passou o contato de uma aluna cuja família tem uma casa de espetáculos onde realiza bailes funk.

Adentrando nesse mundo, Marcelo e eu decidimos seguir dois caminhos paralelos: eu caminharia em direção aos MCs - inicialmente eu imaginava que conseguiria isso com auxílio da Amanda, nossa aluna cuja família tem a casa de bailes funk e o Matheus seguiria buscando os fãs do gênero.

MaioAconteceu o primeiro encontro com Amanda e com sua mãe, Sara, no Bar Nacional, em Venda Nova. O Bar Nacional é uma casa dedicada ao ritmo do Funk, que promove festas comandadas tanto por DJs quanto por MCs. Conversamos sobre o funcionamento da casa, perfil do público alvo, hábitos de consumo destes frequentadores no que se refere a roupas, acessórios e bebidas dentro do baile e desafios da gestão da casa, relativo aos preconceitos com o ritmo, especialmente em uma casa de periferia.

A Sara me autorizou a acompanhar os bailes na casa e imediatamente combinamos que eu acompanharia um baile tradicional, de domingo e um baile comandado por um MC famoso, o MC Lan, de São Paulo.

Matheus foi caminhando com as entrevistas dele e, até o final de nosso percurso, entrevistou quatorze jovens, todos moradores de comunidades de baixa renda em Belo Horizonte inseridos na cultura Funk. Sem a ajuda do Matheus o acesso a esses jovens seria muito difícil!

2017

Figura 1: Caminho percorrido pela autoraFonte: desenvolvida pela autora para ilustrar esta tese.

Descrevendo o caminho

JunhoMarcelo e eu nos encontramos com o professor Dayrell, que compartilhou conosco seus achados de pesquisa, suas impressões, além de diversas referências bibliográficas e o contato de dois MCs com quem conversou durante a sua tese de doutorado: MC Jefinho e MC Klebinho.

Foi em junho que também aconteceu a minha primeira conversa com o MC Jefinho, no Jardim Felicidade, na zona Norte de BH. A conversa rendeu uma tarde inteira e falamos sobre o seu caminho, sua relação com a música, com a comunidade, com a espiritualidade e suas preocupações com a família. Com ele, aprendi um pouco mais sobre o amor.

Nesse mesmo mês, também me encontrei com MC Klebinho, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), quando ele comandaria um programa na rádio universitária. Falamos sobre vida cultural e sobre a política efervescente da BH dos anos 1990, dos movimentos sociais nas comunidades de baixa renda, do significado do curso superior para um jovem da periferia, da vida dos jovens da periferia, do significado da música Funk, dos bailes, dos relacionamentos, da indumentária, e de muitos outros signos que permeiam o universo desses jovens.

Outubro

Aconteceu o encontro com o MC Joseph, em seu estúdio. Ele rememorou 40 anos de história, desde a década de 70 onde, com quatorze anos, quando começou sua história como DJ. O Joseph integrou o cenário nacional, participando dos LPs Funk Brasil 2 e 3, que são a origem do Funk no Brasil. Fomos ali buscando história e encontramos memória, Funk vivo. O DJ é muito entusiasmado, vive para a música e sempre viveu da música.

Agora tenho subsídios para compreender o Funk historicamente e, de forma privilegiada, escutei tudo isso de quem nasceu e cresceu junto com o movimento.

(...)

Esse caminho não tem começo, meio e fim, mas já tem riqueza suficiente para eu começar minhas análises na tentativa de compreender esse mistério. Por hora, vou parando por aqui...

2017

Figura 1: Caminho percorrido pela autoraFonte: desenvolvida pela autora para ilustrar esta tese.

55

4 O CONTEXTO DA PESQUISA: o funk em Belo Horizonte

Este capítulo apresenta e discute, ainda que brevemente, a ascensão do gênero musical

funk em Belo Horizonte. Faz-se importante ressaltar que a preocupação foi compreender,

tanto historicamente quanto atualmente, a realidade desse gênero musical na cidade de Belo

Horizonte, relevando suas diferenças comportamentais em relação aos demais estados do

Brasil. A intenção é ir além de defender a ideia de que se trata de um fenômeno musical com

grande inserção entre os jovens urbanos e passar a tratá-lo como manifestação sociocultural

imbricado com diversas questões caras à sociedade de consumo atual. Pretende-se, assim,

revelar o contexto vivo e atual do funk, por meio das articulações desencadeadas entre o

conhecimento decorrente da revisão de literatura e as informações advindas das entrevistas de

campo.

A comunidade do hip hop, considerada a partir de nossos entrevistados9,

especialmente o MC Monge, atribui a origem do funk ao jamaicano Clive Campbell,

conhecido como DJ10 Kool Herc, cujas festas de bairro em Bronx (Nova Iorque - Estados

Unidos), onde se ouvia especialmente James Brown, tornaram-se famosas por terem

estabelecido e congregado os pilares de música e dança do gênero cultural. A festa dada pelo

DJ e sua irmã, Cindy Campbell, em 11 de agosto de 1973, no modesto salão de festa do

edifício residencial de número 1520 da Sedwick Avenue, é considerada pelos fãs da cultura

hip hop como a data simbólica de nascimento da mesma. O endereço citado é, inclusive, hoje,

um ponto turístico para os apreciadores da cultura hip hop. De acordo com nosso entrevistado,

DJ Joseph, referência forte e antiga do funk em BH, esse gênero musical surgiu no Brasil na

segunda metade da década de 1970, com a popularização dos bailes de música black 11nas

periferias das grandes cidades do sudeste brasileiro, onde se tocava soul e funk americanos.

Uma pesquisa à literatura referente à temática do funk no Brasil certamente apontará,

como pioneiro, o trabalho de Hermano Vianna, publicado no livro intitulado “O Mundo do

Funk Carioca”. Esse livro foi fruto da dissertação do autor, defendida em 1987, no mestrado

em Antropologia da Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ), com o título “O Baile

Funk Carioca: festas e estilos de vida metropolitanas”. Outro livro sobre a temática, já mais

9 Entrevistamos, nessa fase da pesquisa, três MCs e um DJ, todos proeminentes no cenário do hip hop e do funk em BH. 10 DJ (Disk Jockey) – Indivíduo responsável pela seleção e reprodução da música no baile (Beschizza, 2015). 11 Fernando Mukulukusso, fundador da Academia Brasileira de Black Music, explica que, nos EUA, a música negra era conhecida como race music (música da raça) e, nos anos 40, foi batizada de black music pela revista “Billboard” (Disponível em: https://revistaraca.com.br/a-origem-da-black-music. Acesso em 04 de mar. 2018).

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recente, publicado em 2005, pelo jornalista Silvio Essinger12, chama-se “Batidão: uma

história do funk”.

Para Vianna (1987), à época de sua dissertação, o baile funk poderia ser definido como

uma festa organizada por equipes de som em clubes, ginásios de esporte ou quadras de

escolas de samba do subúrbio do Rio de Janeiro. Os bailes funk eram frequentados pela

população de baixa renda dessas localidades. Essinger (2005) complementa explicando que,

no final dos anos 1950, já havia, no Rio de Janeiro, bailes que seriam os embriões do funk.

No final dos anos 1980, a violência, constantemente noticiada pela imprensa durante e

após esses bailes, acabou por gerar expressivo preconceito contra o funk. Apesar disso,

Essinger (2005) salienta que a emergência de alguns DJs como, por exemplo, DJ Marlboro, o

qual tinha um programa em uma rádio carioca que tocava os sucessos dos bailes para milhares

de jovens, serviu para levar o estilo musical para além do Rio de Janeiro.

Para a consolidação do funk nessa época, foi importante o lançamento do CD “Funk

Brasil”, que contou com cinco volumes até o ano de 1996. Faz-se relevante destacar que,

nesse período, aconteceu o que os analistas denominam de nacionalização do funk, momento

em que as letras das canções passam a descrever a vida dos moradores de comunidades

pobres. A partir daí, como ressaltado por Beschizza (2015), o funk passou a ser tocado em

várias emissoras de rádio e programas de televisão. Os bailes passaram a ser frequentados não

somente pela população de baixa renda, mas também por jovens de classes média e alta, o que

resultou em um novo papel atribuído ao funk no imaginário do brasileiro, retirando-o do

cenário exclusivo dos jovens de baixa renda.

Dayrell (2002) apresenta o cenário musical do funk como ambiente de socialização

para os jovens das classes populares. O mundo do trabalho, da escola e da cultura, para esses

jovens, não é um ambiente de expressão da identidade, seja pela baixa qualificação para

atividades profissionais motivadoras que lhes façam algum sentido para além da

sobrevivência, seja pela exclusão escolar ou seja pela baixa oferta de equipamentos culturais

públicos. Por outro lado, o mundo do funk traz a dimensão do sonho e do sentido ao cotidiano

desses jovens, propiciando a esperança para quem se vê privado de cultura e consumo.

Em Belo Horizonte, na visão de Dayrell (2002), o funk é herdeiro dos bailes black, que

se difundiram na periferia da cidade desde os anos 70 (séc. XX). O autor enfatiza que até os

anos 90 os jovens frequentadores dos bailes não apresentavam uma fidelidade a um estilo

12 Silvio Essinger é jornalista formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, tendo passado

pelas redações da Tribuna da Imprensa, da Revista Manchete e do Jornal do Brasil.

57

musical, uma vez que conviviam com diferentes sons, do rock ao pagode. Foi somente a partir

da segunda metade dos anos 1990 que, com a emergência dos MCs13 locais, foi sendo

delineado o funk como estilo, com os jovens se identificando como funkeiros. Pode-se

enfatizar que, por meio do funk, emerge “um processo por meio do qual os jovens se

apropriam de um estilo difundido pelos meios de comunicação e o reelaboram a partir das

condições concretas em que vivem, dos discursos que dispõem, excluindo elementos ou

ressignificando práticas” (Dayrell, 2002, p. 130).

“O funk para mim, é a riqueza genuína do Brasil”. É assim que MC Klebinho (34 anos

- Belo Horizonte), nosso entrevistado, define esse estilo musical que, ao seu olhar, é ao

mesmo tempo cultura e resistência. Embora seu relato revele conhecimento sobre a origem

cultural do funk e do rap – a música negra americana, ele é enfático ao dizer que “este tipo de

funk que a gente escuta, com essa batida marcante, que fica na cabeça, nasceu no Brasil. Foi

inventado e produzido aqui”.

O discurso de MC Klebinho, mesmo atrelado a um argumento histórico, é uma peça

do grande quebra-cabeça que as linhas seguintes pretendem montar. Se contar a história do

funk no Brasil é um objetivo ousado, colocar a cidade de Belo Horizonte no contexto para

contar a história desse ritmo na capital mineira é ainda mais desafiador. Para essa empreitada,

contamos com nomes importantes na cena funk e hip hop da cidade: DJ Joseph, MC Monge,

MC Jeffinho e MC Klebinho. Foram eles que, ao longo de várias entrevistas, gentilmente

forneceram as peças para a montagem da história que perpassa essas linhas. E, para encaixá-

las, nos apoiamos nas concepções do professor Juarez Dayrell que nos forneceu, por meio de

sua tese de doutorado, intitulada “A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da

juventude em Belo Horizonte”, o fio condutor cronológico da narrativa que começa a se

desenhar a seguir.

O DJ Joseph, morador da região noroeste de Belo Horizonte, conta que, até por volta

da década de 90 (séc.XX), o rap e o funk eram misturados na capital mineira:

Quando eu comecei a tocar, nessa época, haviam muitos bailes aqui em Belo Horizonte. A disco music estava no auge. Mas a periferia não era muito disco, a periferia gostava do lado mais funk dentro da própria disco. A galera não gostava muito daquela música mais tuntz,

13 MC é um acrônimo de Mestre de Cerimônias, que se pronuncia "eme ci". Um MC pode ser um artista que

atua no âmbito musical ou pode ser o apresentador de um determinado evento que não está necessariamente ligado a uma manifestação musical (Disponível em: <https://www.significados.com.br/MC>. Acesso em: 04 mar. 2018).

58

tuntz, a galera gostava era de fazer passinho, de uma pegada mais swingada. (Fonte: DJ Joseph, 57 anos, protagonista no funk nacional desde a década de 70).

Entretanto, foi nos anos 80 que o funk se popularizou na Grande BH. Para

exemplificar, nessa época, espaços ociosos ou quadras de escolas públicas eram

transformados em espaços que, nos finais de semana, reuniam as pessoas em festas funk, as

quais ficaram conhecidas como “O Som”. Conforme relata DJ Joseph

Só na região onde eu morava, haviam cerca de 15 bailes como esses. Era um tempo em que fim de semana era sinônimo de dança, do Som. Eu mesmo tinha uma equipe, a Dumpsom, formada por alguns amigos, e fazíamos um Som também. Equipe era o nome que dávamos a um grupo de pessoas que compravam suas pick-ups e caixas de som e arrumava um lugar para dar seus bailes. E nós entramos nessa onda funk também, começamos a escrever nossas letras e a subir no palco e cantar. Era bom demais! (Fonte: DJ Joseph, 57 anos, protagonista no funk nacional desde a década de 70).

Mesmo sendo a periferia o local onde o funk ganhava mais expressividade, espaços

como a boate “Máscara Negra”, localizada no centro da cidade e frequentada, principalmente,

por negros da periferia, também promovia seus bailes funk. Nessas festas, o som tocado era

soul e funk americanos, seguidos por ritmos mais lentos para, em um terceiro momento, ter

início a rodada de funk mais batidão, influenciado pelo break – um estilo de funk mais

futurista com batidas mais pesadas. Era uma época em que jovens do funk e do rap curtiam

juntos os bailes da cidade. Cabe destacar que os aspectos que os diferenciavam eram as

músicas e o tipo de dança que os jovens faziam.

Além disso, foi também, nos anos 80, que os jovens apreciadores desse estilo musical

começaram a formar grupos chamados “gangues”. Ao contrário do pensamento propagado de

senso comum, as gangues não possuíam nenhuma relação com a violência que se instalava

nas grandes cidades na época e, também, não tinham uma organização muito definida. Foi

justamente a partir dessa organização em gangues que o movimento hip hop começou a se

formar em Belo Horizonte.

As gangues não ficavam restritas apenas aos bailes das periferias, elas circulavam por

toda a cidade e se destacavam pelo modo como seus membros se vestiam – geralmente

utilizando elementos inspirados nos cantores de break americano. Tanto nos bailes quanto nas

ruas, havia muita competição entre as gangues, que promoviam rachas (rodas de pessoas) e

disputavam entre si qual era a melhor, mostrando tudo o que sabiam fazer: música, dança,

rap, entre outras manifestações socioculturais. Por causa dessa competição, não eram

incomuns as brigas entre os grupos.

59

No final dos anos 80, o break foi perdendo força e começou a dividir o espaço com

outros ritmos dentro dos bailes, em sua maioria, influenciados pelo funk carioca. No entorno

da Avenida Vilarinho (reduto do funk), região de Venda Nova, ao norte da cidade de Belo

Horizonte, muitos bailes se renderam ao ritmo e à coreografia oriundos do Rio de Janeiro.

Com o tempo, já no início da década de 90, a turma do rap começou a se mostrar

incomodada com a influência do funk carioca, cujas letras e coreografias eram mais

irreverentes do que as do rap contestador da capital mineira, fortemente influenciado pelo

movimento de São Paulo. É justamente aí que funk e rap se separam em Belo Horizonte. Os

fãs do rap se filiam ao movimento hip hop, cujas letras, na definição do MC mineiro

Klebinho, “são mais contestadoras, seguindo uma linha que bate na polícia, que fala das

mazelas e dos problemas sociais. Uma linha mais consciente”. Já a turma do funk começa a

fazer um som mais baseado no “melô”, com ritmo mais dançante, que aborda dois tipos

principais de temas: os satíricos irreverentes e os românticos, como no Rio de Janeiro.

Foi nessa época que o funk começou a ganhar projeção nacional e espaço em

programas de televisão, atraindo o interesse da indústria fonográfica. Discos como “Funk

Brasil II” e “Funk Brasil III”, produzidos pelo DJ Marlboro (RJ), registraram a participação

de funkeiros belohorizontinos, como o pessoal do “União Rap e Funk” e do “Protocolos de

Subúrbio”, o que inspirou a criação de novos grupos de funk em Belo Horizonte e possibilitou

a gravação do disco “Fábrica de Ritmos” (1995), que reuniu uma coletânea de gravações só

de músicos mineiros.

Considerando esse contexto, há de se ressaltar que a gravação do disco “Funk Brasil

III” envolveu algumas polêmicas que ajudaram a acentuar as diferenças entre funkeiros e

rappers em Minas Gerais. Acreditando no sucesso da fórmula do melô e das letras mais

irreverentes e menos politizadas, o DJ Marlboro impôs esse modelo como requisito para a

participação no disco. Alguns grupos mineiros, ligados ao rap, se revoltaram e se negaram a

ferir suas raízes e a participar. Foi nesse momento que a coletânea carioca “Funk Brasil”

rompeu com o rap e com o movimento hip hop e estabeleceu um estilo de funk específico.

Juntamente com o lançamento do “Funk Brasil III”, em 1992, por influência do latino-

hispano Tony Garcia, que começou a fazer uma música mais romântica aproveitando a batida

do funk, que surgiu o “funk melody”, o qual conquistou o país e alguns grupos de Belo

Horizonte.

Cabe pontuar, relevando esse cenário, que em 1992, o Rio de Janeiro viveu momentos

de tensão com os muitos arrastões acontecidos nas praias da zona sul, que foram atribuídos a

moradores de favelas, frequentadores de baile funk. Por conseguinte, as pessoas começaram a

60

“torcer o nariz” para o estilo musical, relacionando-o diretamente com a violência. O funk,

desde então, passou por um processo de criminalização, com reflexos também em Belo

Horizonte, a partir de meados da década de 90. Foi nesse cenário árido que a capital mineira

assistiu ao processo de proliferação de MCs e a consolidação da prática cotidiana de shows e

bailes funk na cidade, como um posicionamento de resistência.

A situação se agrava partir de 1995, quando as turmas juvenis de diversos bairros de

Belo Horizonte, seguindo o modelo carioca, começaram a se autodenominar “galeras”. Elas

possuíam organização e hierarquias mínimas e eram vigiadas de perto pela polícia. E, em

1996, a região do entorno da Avenida Vilarinho, região de Venda Nova, ao norte da cidade de

Belo Horizonte, viu nascer o projeto “Novos Tempos”, com a apresentação de duas novas

duplas de MCs a cada semana, seguidas de baile funk.

O ano de 1996 foi de grande efervescência cultural na cidade de Belo Horizonte,

porém, em 1997, grandes embates entre as distintas galeras começaram a fugir do controle e a

se tornar realidade nos bailes, os quais se tornaram locais de dança e brigas. A situação foi se

agravando quando as brigas começaram a extrapolar os bailes e a tomar as ruas da cidade, até

que, em 1998, o funk começou a ser mal visto na capital mineira, passando por um processo

de estigmatização, que culminou na diminuição do número de bailes e na migração dos

adeptos do funk para outro estilo emergente: o pagode. Foi assim que o funk começou a entrar

em decadência em Belo Horizonte.

Foi somente em 2002, por meio do funk melody de MC Dodô, com forte apelo a letras

mais conscientes e menos irreverentes, que o funk belo-horizontino começou a se reerguer,

entretanto, nunca mais atingiu o sucesso alcançado nas décadas passadas.

Devido a esses acontecimentos, o que se observou na cena funk de Belo Horizonte foi

uma sucessão de estilos que entraram e saíram de moda e de estilos que perduram até hoje, do

funk ostentação ao funk proibidão. De 2010 aos dias atuais, algumas das casas noturnas mais

sofisticadas da cidade já abriram suas portas para o estilo na tentativa de alcançar um público

maior, mas o funk se transformou em um fenômeno sazonal e, como tal, em alguns momentos

cede espaço para outros estilos jovens, como o sertanejo universitário.

Academicamente, vale ressaltar que a temática do funk está presente em dissertações e

teses desenvolvidas em diversos programas de pós-graduação do país, notadamente em

Ciências Sociais e em Comunicação. No levantamento conduzido por Beschizza (2015), até o

primeiro semestre de 2013, 31 teses/dissertações com foco nesse tema podiam ser encontradas

no banco de dissertações e teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior (CAPES). Em busca realizada pela autora, entre os anos de 2014 e 2017, mais 87

61

teses/dissertações que tratavam do funk foram encontradas no banco de dissertações e teses da

CAPES, sendo que nenhuma das obras foi apresentada em um programa de pós-graduação em

Administração.

Nesse sentido, esta tese se constrói tendo como um dos objetivos compreender o

significado do funk enquanto cultura material dos jovens moradores da periferia de Belo

Horizonte. Para tal, buscamos alicerce na cultura material, nos conceitos de habitus e capitais

de Bourdieu e no conceito de cool capital, proposto por Belk et al. (2010), que configuram o

próximo capítulo desta tese.

Figura 2 - História do Funk em Belo Horizonte

Fonte: desenvolvida pela autora para ilustrar essa tese.

O funk se popularizou na Grande BHNessa época, espaços ociosos ou quadras de escolas públicas, por exemplo, eram transformados em espaços que, nos finais de semana, reuniam as pessoas em festas de funk que ficaram conhecidas como O Som. Os jovens apreciadores deste estimo musical começaram a formar grupos, chamados gangues.

O funk começou a ganhar projeção nacional e espaço em programas de televisão, atraindo o interesse da indústria fonográfica. Discos como Funk Brasil II e Funk Brasil III, produzidos pelo Dj Marlboro (RJ), registraram a participação de funkeiros belohorizontinos, como o pessoal do União Rap e Funk e do Protocolos de Subúrbio, o que inspirou a criação de novos grupos de funk em Belo Horizonte e possibilitou a gravação do disco Fábrica de Ritmos (1995), que reuniu uma coletânea de gravações só de músicos mineiros.

No início da década de 1990, a galera do rap começa a se mostrar incomodada com a influência do funk carioca, cujas letras e coreografias eram mais irreverentes do que as do rap contestador da capital mineira, fortemente influenciado pelo movimento de São Paulo.

O funk e rap se separam em Belo Horizonte. A galera do rap se filia ao movimento Hip Hop, cujas letras, na definição do MC mineiro, Klebinho, “são mais contestadoras, seguindo uma linha que bate na polícia, que fala das mazelas e dos problemas sociais. Uma linha mais consciente”. Já o pessoal do funk começa a fazer um som mais baseado no melô, com ritmo mais dançante que aborda dois tipos principais de temas: os satíricos irreverentes e os românticos, como no Rio de Janeiro.

Em 1992 surgiu o funk melody, que conquistou o país e alguns grupos de Belo Horizonte.

Em 2002, com o funk melody de MC Dodô, com forte apelo a letras mais conscientes e menos irreverentes, que o funk belo-horizontino começou a se reerguer, mas nunca mais atingiu o sucesso alcançado nas décadas passadas.

A partir daí, o que se observou na cena funk de Belo Horizonte foi uma sucessão de estilos que entraram e saíram de moda e que perdura até hoje, da ostentação ao proibidão.

2010De 2010 para cá, algumas das casas noturnas mais sofisticadas da cidade já abriram suas portas para o estilo na tentativa de alcançar um público maior, mas o funk se transformou em um fenômeno sazonal e, como tal, em alguns momentos cede espaço para outros estilos jovens, como o sertanejo universitário.

1980 1990 2000

A historia do

Figura 2: História do Funk em Belo HorizonteFonte: desenvolvida pela autora para ilustrar esta tese.

63

5 REVISÃO DA LITERATURA

Este capítulo tem o objetivo de conduzir uma revisão da literatura no tocante às questões

teóricas fundamentais desta tese: consumo, Consumer Culture Theory, cultura material,

conceitos de habitus e os capitais de Pierre Bourdieu e, por fim, discussões atinentes ao

conceito de cool capital.

5.1 Consumo

Inicialmente, é importante considerar que o consumo, enquanto fenômeno social, foi

relegado a uma posição periférica nas Ciências Sociais até bem pouco tempo atrás (Duarte,

2010). Ainda que seja possível encontrar campos dentro das Ciências Sociais que busquem

apresentar contribuições para o fenômeno do consumo como a Sociologia do Consumo

(Campbell, 1995), Economia Política (Fine, 1995), Estudos Históricos (Glennie, 1995) e

Estudos de Mídia (Morley, 1995), essa aparente negligência está intrinsecamente ligada, na

visão de Rocha (2002), ao fato das questões referentes à produção serem consideradas nobres,

valorosas ante o consumo, o qual tende a ser compreendido como algo superficial e fútil, ao

mesmo tempo em que é visto como inconsequente e falso.

O mesmo pode ser dito a respeito da pouca importância dada ao consumo no campo da

Antropologia, perspectiva adotada nessa tese. Embora a questão do consumo já estivesse

presente em alguns textos e estudos oriundos das Ciências Sociais, ainda que de forma

periférica ou coadjuvante, como nos trabalhos de Veblen (1988), Mauss (1974) e Sahlins

(2003), para citar alguns, deve-se ressaltar que essa visão do consumo, como eminentemente

cultural e simbólico, só começou a ser delineada a partir dos anos 70 (século XX), com a

publicação do livro “O mundo dos bens”, de Mary Douglas e Baron Isherwood e com a

publicação da obra “La distinction”, de Pierre Bourdieu, fincando raízes na década de 80,

quando outros trabalhos importantes para o campo foram publicados.

Para Duarte (2010), essa negligência por parte dos pesquisadores do campo tem

origem em duas questões. A primeira delas tem a ver com a opção estruturante da

Antropologia pelas sociedades pré-industriais. Ainda que a relação com os objetos seja algo

verificado desde o nascimento das civilizações, o consumo, enquanto fenômeno

contemporâneo, foi deixado de lado pelos antropólogos. A segunda questão está relacionada à

forte influência do modelo marxista, cujos efeitos são sentidos na atenção sobre a produção

(categoria fundamental de Marx) e o trabalho em detrimento do consumo. Desjeux (2011)

ainda traz como contribuição a questão de que as sociedades contemporâneas mantêm com o

64

consumo uma relação ambivalente. Ao mesmo tempo em que é percebido como fonte de

desejo e realização, é também visto como causa de alienação, desperdício, perda de valores e

dissolução da cultura.

Vale considerar, sobretudo, que, na perspectiva da Antropologia do Consumo, o

consumidor é abordado como um ser dotado de consciência e razão, que toma decisões

racionais, mas não no sentido utilitarista do termo. Ao contrário, ele é inserido em um nexo

complexo e relacional, de forma simbolicamente informada e socialmente situada,

permitindo-lhe construir sua racionalidade sobre essa lógica simbólica para ler a realidade. O

enfoque da Antropologia do consumo torna-se fundamental para compreender essa

racionalidade e as formas pelas quais os consumidores criam novos sentidos para os objetos,

produtos e serviços (Migueles, 2007).

Do ponto de vista conceitual e para fins desta tese, os conceitos de consumo têm fortes

conotações culturais e simbólicas. Uma das definições escolhidas, por ter aderência à proposta

desta tese, é a de MCCracken (2003). Ele apresenta o consumo como sendo “moldado,

dirigido e constrangido em todos os seus aspectos por considerações culturais” (MCCracken,

2003, p. 11). Para o autor, nas sociedades desenvolvidas ocidentais, a cultura é profundamente

ligada ao consumo. Sendo assim, os bens são os instrumentos principais de manutenção

dessas sociedades. Essa relação, entretanto, demorou a ser percebida pelas Ciências Sociais e

ainda há falhas na percepção do consumo como um fenômeno totalmente cultural

(MCCracken, 2003). Relevante também é a definição de Desjeux (2011), cujas contribuições

tendem a confirmar que o consumo aparece como uma importante “lente” para entender a

vida cotidiana, as construções identitárias, as questões políticas, os modos de vida, além de

dar subsídios interessantes para se identificar estratificações sociais e elementos da

globalização.

Além disso, cabe pontuar que o consumo pode ser visto também como um processo

social, que diz respeito a múltiplas formas de provisão de bens e serviços e a diferentes

formas de acesso a esses mesmos bens e serviços. Ao mesmo tempo, pode ser encarado como

um mecanismo social, entendido pelas Ciências Sociais como produtor de sentido e de

identidades. Ou, ainda, como uma estratégia utilizada no dia a dia pelos mais diferentes

grupos sociais, para definir diversas situações em termos de direitos, estilos de vida e

identidades ou como uma categoria central na definição da sociedade contemporânea

(Barbosa & Campbell, 2006).

Outra consideração pertinente nesse contexto é oferecida por Rocha (2002), que

apresenta o consumo como parte fundamental de nossas vidas. Dessa forma, o estudo do

65

consumo é um caminho privilegiado para entender a sociedade contemporânea. Rocha (2002)

se vale de Veblen para apontar a comunicação como lugar central do consumo. Os produtos e

os serviços falam por nós e sobre nós. As roupas explicam a personalidade, o mobiliário

explica a casa e todos os produtos expressam sentimentos, desejos ou momentos em nossas

vidas: “se o sapato combina com a bolsa, a calça pode combinar com o estado de espírito e o

terno com a posição social” (Rocha, 2002).

Rocha (2002) ainda apresenta o consumo, em primeiro lugar, como um sistema de

significação e a principal necessidade social que supre é a necessidade simbólica. Em

segundo, o consumo é como um código e por meio dele são traduzidas muitas das nossas

relações sociais e elaboradas muitas das nossas experiências de subjetividade. Em terceiro,

esse código, ao traduzir sentimentos e relações sociais, forma um sistema de classificação de

coisas de pessoas, produtos e serviços, indivíduos e grupos.

Complementarmente e para fins dessa tese será adotado o conceito de consumo de

Askegaaard e Linnet (2011), para os quais o consumo passou da geração de forças produtivas

(como é para a Sociologia), da maximização utilitária (como é para a Economia) e do

processo de aquisição (como é pela Visão de Negócios) para se tornar um termo que permeia

o relacionamento entre a sociedade e os indivíduos, seja na forma de classificação social e/ou

sistema de comunicação de valores, seja no processo de formação de identidades, rituais, seja

nos processos de construção de comunidades e relacionamentos entre o indivíduo e o estado,

ou seja na busca por experiência existencialmente satisfatória (Askegaaard & Linnet, 2011).

Percebe-se, dessa forma, que o conceito ganha uma abrangência expressiva quando não foca

somente em questões ligadas ao processo de compra, mas ao consumo como algo que está

intimamente imbricado a questões societais mais amplas.

Trazendo a discussão para a área de marketing, mais precisamente para o campo do

comportamento do consumidor, três perspectivas se destacam, as quais podem ser

consideradas subdisciplinas desse campo: Behaviorial Decision Theory (BDT), Information

Processing e a Consumer Culture Theory (CCT) (Maccinnis & Folkes, 2010). Enquanto a

BDT foca seus esforços no entendimento de aspectos racionais do consumo e se baseia nos

pressupostos da Economia e da Psicologia Cognitivista, a Information Processing destina a

atenção para questões ligadas ao processo de decisão, bem como em aspectos menos

conscientes do consumo. A terceira subdisciplina – a Consumer Culture Theory, que tem

expressiva aderência à proposta desta tese, será discutida com maiores detalhes na próxima

seção.

66

5.2 Consumer Culture Theory (Teoria da Cultura do Consumo)

No campo do marketing e mais precisamente nos estudos referentes à pesquisa do

consumidor, a inserção do consumo em uma perspectiva social e culturalmente construída

também é recente. Até a década de 1980, imperava, no campo do Comportamento do

Consumidor (nome que já denomina a posição do campo, eminentemente behaviorista),

estudos com base positivista e com viés quantitativista, na qual o consumo era considerado

como fenômeno essencialmente individual e possível de ser entendido por meio de modelos

descritivos e prescritivos (Rocha, 2002).

Com o objetivo de posicionar o paradigma interpretativista como uma forte

perspectiva para o campo, um grupo de autores, liderados pelo professor Russell Belk,

empreendeu uma experiência de pesquisa desenvolvida no verão de 1986, denominada

“Consumer Behavior Odissey”, cujo objetivo foi enxergar o consumo de forma diferente do

proposto pelo paradigma positivista predominante na pesquisa em consumo à época (Belk,

2014).

A pretensão da “Consumer Behavior Odissey” foi atravessar os EUA observando e

entrevistando consumidores em uma variedade de locais e situações. Essa experiência causou

um profundo impacto na pesquisa em comportamento de consumo, tornando a cultura como

algo central para os estudos de consumo e, principalmente, além de uma variável exógena nos

estudos.

Esse projeto deixou como legado uma série de estudos desenvolvidos a partir dos

dados coletados no projeto e de diversas lições aprendidas. A primeira dessas lições (Belk,

1987, 1988, 1991) foi o fato de serem “forçados” a olhar com novos olhos, a questionar o que

viram e se abrirem para uma percepção, mais intensa, do comportamento do consumo que

acontece, todos os dias, entre nós.

Um grande aprendizado relativo à pesquisa interpretativista também foi relatado por

Belk (1987, 1991, 2014). Em 1987, John Sherry Jr, pesquisador da “Consumer Behavior

Odyssey”, publicou um ensaio no qual também fez uma avaliação pessoal da experiência e

também, enfatizou a importância da pesquisa qualitativa e da etnografia para a compreensão

dos fenômenos ligados ao consumo (Sherry, 1987).

Esse movimento teve repercussões visíveis ao longo das décadas de 80 e 90, até que,

já nos anos 2000, Arnould e Thompson (2005), ao fazerem um levantamento de tudo o que foi

produzido nos vinte anos anteriores relacionados a aspectos socioculturais, experienciais,

simbólicos e ideológicos do consumo, cunharam um campo de pesquisa denominado por eles

67

como Consumer Culture Theory, ou CCT; em uma tradução literal, Teoria da Cultura do

Consumo.

Arnould e Thompson (2005) enfatizaram que essa “corrente” não tinha a intenção de

ser unificada, pelo contrário, a intenção foi de abrir uma frente de pesquisas baseada em uma

família de perspectivas teóricas que tivessem como direção as relações dinâmicas entre as

ações de consumo, o mercado e os significados culturais. Nesse sentido, mais do que partir do

pressuposto de que a cultura é um sistema homogêneo de significados compartilhados

coletivamente, a Consumer Culture Theory tem por escopo explorar a distribuição

heterogênea dos significados e a multiplicidade de grupos e manifestações culturais que

existem nas diversas formações socio-históricas atuais.

Dito de outra forma, a CCT busca sedimentar uma linha de pesquisa que conceitualiza

um sistema interconectado de imagens, textos e objetos produzidos comercialmente, que os

grupos utilizam por meio da construção de práticas, identidades e significados sobrepostos

para a criação de sentidos em seus ambientes e para orientar as experiências e vidas de seus

membros (Kozinets, 2001). Esses significados são envolvidos e negociados pelos

consumidores em situações e relacionamentos sociais.

Nesse sentido, cumpre salientar alguns pontos que parecem não poder passar

despercebidos pelos pesquisadores do campo. Em primeiro lugar, as teorias da cultura do

consumo podem ser entendidas como uma construção de experiências, significados e ações.

Ou seja, a cultura do consumo não determina a ação como força causal, mas sim como um

imbricado sistema de valores, sentimentos e pensamentos que são construídos e negociados

na interpretação da vida social (Thompson & Hirscheman, 1995). Em segundo lugar, a

perspectiva da Teoria da Cultura do Consumo tem sido embasada por meio tanto de estudos

empíricos que analisam como as manifestações particulares de cultura do consumo são

constituídas, mantidas, transformadas e formatadas pelas forças históricas mais amplas (tais

como narrativas culturais, mitos e ideologias) quanto de específicas circunstâncias

socioeconômicas e sistemas de mercado particulares (Arnould & Thompson, 2005). Outra

questão, mais relacionada à questão metodológica, remete ao fato de que as teorias da cultura

do consumo focam as dimensões experienciais e socioculturais do consumo, que não são

plenamente acessíveis por meio de experimentos, surveys ou modelagem de banco de dados.

Em suma, pode-se afirmar que a CCT é organizada a partir de uma série de questões

teóricas atinentes ao relacionamento entre as identidades individual e coletiva dos

consumidores: a cultura criada e corporificada no mundo vivido dos consumidores; processos

e estruturas das experiências vivenciadas; e, a natureza e o dinamismo das categorias

68

sociológicas, por meio das quais essa dinâmica da cultura do consumo é influenciada. Dessa

forma, ela pode contribuir para o desenvolvimento teórico relacionado à pesquisa do

consumidor, ao gerar novos “construtos” e insights teóricos e estender o conhecimento

existente com o aporte da disciplina antropológica (Arnould & Thompson, 2005).

Arnould e Thompson (2005) propuseram uma estrutura teórica em que potencialmente

se alocam os estudos da CCT. Em 2007, Arnould e Thompson (2007) redesenharam essa

estrutura, tornando as áreas interrelacionadas e mutualmente implicativas. Tanto as áreas

quanto as interações entre elas podem ser visualizadas na Figura 1, a seguir, em tradução

proposta por Gaião, Souza e Leão (2012). Esta tese, ainda que não exclusivamente, pode ser

alocada como um estudo local, de um fenômeno de cultura de mercado, demonstrado na

estrutura pontilhada da Figura 1 a seguir.

Figura 3– Estrutura teórica sintética da CCT

Fonte: Gaião, Souza e Leão, 2012, p. 333. (Versão adaptada – marcação pontilhada realizada pela autora).

Cabe ressaltar que os pesquisadores adeptos da CCT, por meio de esforços de pesquisa

exploratórios e qualitativos, desafiam os modelos tradicionais da Psicologia Cognitiva. No

campo do marketing, eles buscam considerar o contexto e abraçar a complexidade, mais do

que admitir esses fatores como secundários. Em geral, os teóricos estão mais preocupados

69

com o consumo do que com a compra e tentam entender as experiências de consumo e o

processo de construção de significados mais do que a percepção de utilidade (Lieb & Shah,

2010).

Valendo-se do aniversário de dez anos do artigo que deu origem à “marca” CCT,

Arnould e Thompson (2015) apresentaram uma leitura atualizada das pesquisas na área e das

ramificações que surgiram após a proposta original, considerando a complexidade da cultura

de consumo e contribuindo para uma conversa teórica maior, além dos estudos de casos

pontuais. Essa dinâmica, conforme ressaltam os autores, tem ajudado na construção de uma

constituição teórica heteroglóssica, que engloba uma multiplicidade de abordagens teóricas e

orientações metodológicas, além de tensões filosóficas.

Esse diálogo permanente e multifacetado produziu grande desenvolvimento teórico,

organizado por Arnould e Thompson (2015) em quatro grandes eixos conceituais: cultura

enquanto uma rede distribuída, política de consumo, teoria do mercado consumidor e teoria

das culturas regionais, eixo em que se encontra esta tese. Para Arnould e Thompson (2015), o

mercado tem sido um agente fundamental de estruturação e fonte de recursos para a

mobilização social.

Contudo, ainda mais recentemente, algumas vozes clamam por uma maior renovação

nos estudos da CCT. Entre elas, é possível apontar a discussão conduzida por Firat &

Dholakia (2017), os quais, após revisar as origens e a trajetória desse campo, buscaram

apontar limitações para propor algumas ações de renovação, visando levar a CCT a novos

horizontes e assegurar seu lugar na história dos estudos do consumo.

Resgatando o corpus de pesquisas sumarizado no artigo seminal de Arnould e

Thompson (2005; 2015) e produzido ao longo dos últimos anos por diversos autores adeptos

da CCT, é possível identificar várias linhas de estudo. Em uma delas, os pesquisadores se

propuseram a entender os efeitos da posse na identidade. Belk (1988) apresentou a posse

como a chave para o entendimento dos indivíduos. O autor fez uma extensa revisão

bibliográfica para defender a posição dos bens como forma de expansão e fortalecimento da

identidade.

Belk (1988) se apoiou em Sartre para tratar do impacto do ter para o fazer e para o ser

e para tratar do papel dos bens enquanto forma de tornar pública a identidade. O estudo trata

da importância dos bens nas diversas fases da vida dos indivíduos e das diversas formas de

posse de bens. Nesse sentido, Belk (1988) cita as roupas, as casas e os automóveis como uma

segunda pele dos indivíduos. As casas são apresentadas como o corpo simbólico das famílias.

70

O autor cita, ainda, objetos que representam grupos e que, para esses grupos, são como

amuletos: as canetas Mont Blanc para os homens de negócios, por exemplo.

Após discutir as formas pelas quais os objetos se tornam extensão da identidade, o

autor passa a tratar do impacto desta extensão no comportamento do consumidor. Belk (1988)

traz uma importante reflexão ao afirmar que grupos, comunidades e nações são constituídos

por monumentos, construções, livros, músicas, entre outros objetos. Esses objetos são

essenciais na formação do senso de comunidade, na determinação da cultura material desse

povo. Tudo isso pode se constituir em um prenúncio de que, já na década de 1980, havia uma

tendência de se reconhecer os bens como algo importante para os indivíduos no dia a dia.

Os bens, nesse contexto, parecem ganhar grande vulto para constituir algo essencial

relacionado ao consumo. Os bens, segundo MCCracken (2012), possibilitam às pessoas tornar

público seus significados. O autor apresenta os indivíduos como “criaturas dependentes dos

significados contidos no mundo material” (MCCracken, 2012, p. 15).

Duarte (2010) se apoia na teoria de Veblen (1988), para explicar a ascendência do

consumo na sociedade moderna. Para a autora, o consumo aparece como meio de exibição das

distinções sociais e os objetos são enxergados, então, como marcadores de status. Nas atuais

sociedades de massa, o julgamento da reputação das pessoas surge vinculado aos objetos que

são exibidos.

Douglas e Isherwood (2013), na mesma linha, também apresentam os bens por sua

capacidade de comunicar valor. De acordo com os autores, o consumo é “algo ativo e

constante em nosso cotidiano e nele desempenha um papel central como estruturador de

valores que constroem identidades, regulam relações sociais, definem mapas culturais”

(Douglas & Isherwood, 2013, p. 8). Para esses autores, os bens são utilizados para marcar

estilos de vida e servem para dar ampla visibilidade à cultura social e à vida social cotidiana.

As questões envolvendo a relação entre indivíduos e objetos e o papel dos objetos em

nossa vida cotidiana inauguram um novo campo de estudos, que acaba por ter aderência aos

estudos de consumo – a cultura material ou materialidade, tema a ser tratado no próximo

tópico.

5.3 Cultura material, ou Materialidade

É possível perceber um “movimento” no campo dos estudos relacionados aos estudos

do consumo, no sentido de se aprofundar na relação entre as pessoas e os objetos. Parece que,

para se estudar o consumo, há uma tendência de se entender melhor a relação entre as pessoas

71

e seus pertences, assim como a forma como os objetos e seus contextos constroem os sujeitos.

Ou seja, parte-se do pressuposto de que a melhor maneira de entender, transmitir e apreciar

nossa humanidade seria dar maior foco a nossa materialidade (Belk, 2012; Miller, 2013), uma

vez que os bens representam formas sociais e partilhas de conhecimento muito complexas

(Appadurai, 2008).

É de interesse ressaltar que esse “movimento” percebido nos estudos do consumo tem

lastro na arqueologia do século XVII e receberam a denominação de cultura material a partir

dos escritos de Edward Taylor (Denis, 1998). A partir daí, diversos pesquisadores das

Ciências Sociais têm se dedicado à compreensão dos artefatos materiais na constituição da

sociedade. Entre eles, pode ser citado Mauss (2003) que, desde o início do século XX, já

defendia a ideia de que os bens não são coisas mortas e que as pessoas não estão separadas

dos seus objetos.

Sendo assim, tal como exposto por Kopytoff (2008), embora, para os economistas, as

mercadorias simplesmente existem; de um ponto de vista antropológico, a produção de

mercadorias é também um processo cultural, isto é, as mercadorias não devem ser somente

produzidas materialmente como coisas, mas, principalmente, sinalizadas como um

determinado tipo de coisa. Sob essa perspectiva, Mauss (2003) acrescenta que os objetos,

assim como as pessoas, podem ser dotados de alma e espiritualidade. No mesmo sentido,

Sahlins (2003) advoga a favor de que o significado é a propriedade específica do objeto

antropológico. Defende também que, além disso, as culturas devem ser entendidas como

ordens de significado de pessoas e coisas.

Duarte (2010) evoca Miller (1991) para atribuir aos bens já adquiridos características

pessoais daquele que o adquiriu. A mercadoria passa, portanto, a ser um bem particular,

carregado de significado. O bem comprado é recontextualizado várias vezes, até não poder

mais ser reconhecido como tendo relação com o mundo de onde veio – o da produção. O

consumo, então, pode ser definido como o processo de recontextualização que leva um objeto

para uma condição de inalienável, aspecto que deve ser visto como uma construção cultural.

As proposições de Miller (2013) sobre a teoria dialética da cultura material parecem

ter especial aderência ao contexto da tese. Essa teoria se baseia na co-criação advinda do

processo relacional entre pessoas e coisas, processo esse que é nomeado por ele como

objetificação. Assim, a premissa que sustenta a objetificação é a agência das coisas,

deslocando o objeto da figura inerte e sem ação para um agente ativo, que faz coisas conosco,

independente de nossas vontades. Dito de outra forma, essa objetificação desloca a ideia de

72

que as coisas são inertes e sem ação para uma perspectiva das coisas como um agente ativo

(Miller, 2013).

Levando a discussão para os trabalhos de cunho mais aplicado, Savaş (2014) aborda a

cultura material a partir do gosto coletivo pelos objetos que compõem o dia a dia dos grupos

culturalmente constituídos, ao tratar do cotidiano de imigrantes turcos que vivem em Viena,

capital da Áustria. A autora recorre às posições de Miller (1991) para contrapor a teoria que

Bourdieu apresenta em seu livro “A Distinção”14, uma vez que, enquanto Bourdieu (2007)

apresenta o gosto como uma forma de poder para reprodução da estrutura das classes sociais,

defendendo que o gosto impacta no desenvolvimento e na manutenção das relações sociais,

Miller (1991) defende que a relação com os objetos é baseada na diferença entre os objetos e

na diferença entre os grupos sociais.

Savaş (2014) lança mão de Geismar e Horst (2004) com o propósito de explicar que

pesquisas sobre materialidade necessitam de uma aproximação relacional, para compreender

que as categorias sujeito e objeto funcionam uma em relação à outra na produção de

relacionamentos e significados na formação da cultura, da sociedade e do sentimento de

localidade.

Ao relatar a respeito de sua pesquisa de doutorado, em que estuda a vida dos

imigrantes turcos em Viena, Savaş (2014) aponta a importância das xícaras de chá e das

próprias ervas tradicionais para o sentimento de pertencimento do povo turco a esse novo

grupo social. Um dos entrevistados expõe que se sente muito bem na Viena atual (referindo-se

à época em que foi entrevistado) em comparação com a época na qual imigrou, isto porque é

possível encontrar grande variedade de copos especiais para chá em uma infinidade de lojas

turcas. Os turcos entrevistados relatam a importância dos objetos na reconstituição de seus

hábitos e o impacto dessa ação no sentimento de bem estar. Por essa razão, a autora defende o

potencial poderoso dos objetos na reconstituição do sentimento de estar em casa.

De acordo com Savaş (2014), a cultura material do dia a dia é diferente da cultura

apresentada pela religião ou pelas organizações políticas, por exemplo. A estética do dia a dia

apresenta sentidos de pertencimento, identidades, práticas e representações que permitem

compreender as fronteiras individuais, como argumenta a autora.

Em sentido semelhante, Djohari (2016) dedicou-se a compreender o significado amplo

dos bazares virtuais para venda e troca de baby wraps, que são faixas de tecido cortadas e 14 O livro intitulado “A Distinção” aparece como síntese das pesquisas que Bourdieu desenvolveu ao longo

dos anos de 1970 sobre o processo de diferenciação social, sendo considerado como obra central na sua carreira como sociólogo.

73

preparadas especialmente para carregar os bebês próximos ao corpo da mãe, ao mesmo tempo

em que deixam as mãos da mãe livres para demais usos/afazeres. Para as mães, o uso desse

objeto tem razões práticas, estéticas e ideológicas. Os bazares virtuais acompanhados pela

autora vendem artigos usados, os quais são enxergados/percebidos pelo grupo como

carregados de emoções. As mães, ao se envolverem nesses movimentos de trocas,

compartilham histórias, modos de vida, desejos e, nesse sentido, impregnam os objetos com

as memórias individuais, deixando explícita a relação de agência entre sujeitos e objetos.

Miller (2013) também reivindica para as coisas o lugar adequado, o qual elas ocupam

na vida das pessoas. É por meio dos trecos e das coisas que se vive a vida, os relacionamentos

familiares, os casamentos, as memórias e as aspirações (Miller, 2013). Na mesa da cozinha,

com uma xícara de café e demais artefatos, é possível observar as famílias e suas escolhas e,

por muitas vezes, a partir da escolha do mobiliário da sala de estar, é possível

enxergar/desvelar suas vidas.

Douglas e Isherwood (2013), em linha semelhante, apresentam uma passagem

cotidiana de uma mulher que chega a sua casa com compras de supermercado e é observada a

partir daquelas compras. As compras denunciam suas relações com a casa, com o marido,

com os filhos e com seu ciclo de relacionamentos sociais. O que ela compra para cada um

desses atores sociais, a frequência com que compra e a forma como apresenta a compra a

esses atores “exprimem e geram cultura em seu sentido mais geral” (Douglas & Isherwood

2013, p. 101). Pode-se afirmar, sobretudo, que os bens são uma parte visível da cultura.

As coisas têm significado diferente em cada lugar, coisas são cultura e cultura são

coisas. Em Londres, em um bairro de periferia, a compra, para um filho, de um uniforme

original de um time de futebol local, caro para os padrões familiares locais, é um tipo de ato

de amor que não se pode ser negado (Miller, 2002, p. 40). O fato de o indivíduo não poder ter

esse artefato (uniforme original) é um aspecto que pode levar famílias simples até mesmo a

roubar. A ansiedade advinda do desejo de possibilitar ao filho a aceitação pelo grupo é

superior a qualquer racionalidade. Compras, explicitamente, tornam-se projetos (Miller,

2002), são relacionamentos familiares e sociais que vão sendo construídos.

Miller (2013) argumenta que os trecos nos criam. Por meio das roupas, uma pessoa se

mostra, a seu próprio modo e de acordo com o contexto em que vive – esportiva, ou

intelectualizada, ou executiva, ou uma em cada momento. Para Miller (2013), as roupas não

são superficiais, “elas são o que fazem de nós, o que queremos ser”. É um significado real,

verdadeiro. Em última instância, defende o antropólogo, se retiradas as camadas, não resta

absolutamente nada, como se fosse uma cebola.

74

Nesse mesmo sentido, Mizrahi (2007) apresenta, em uma pesquisa desenvolvida no

ambiente dos bailes funk, o papel da roupa de carregar poder – o poder do erótico, da sedução

e da provocação. A pessoa e a coisa, no caso a roupa, acabam se fundindo de tal forma que

uma precisa da outra para fazer efeito nesse contexto.

Voltando a Londres, Miller (2013) se depara com a ansiedade das mulheres em relação

às roupas. A roupa revela a liberdade individual e social e o aceite às convenções sociais.

Acertar no uso de uma roupa de festa, no cumprimento de uma saia, no tamanho de um decote

ou na arrumação do sári tem uma importância social muito superior ao sentido utilitário da

roupa. A roupa mostra a pessoa e a pessoa se busca pela roupa. É como Miller (2013) ressalta:

“As roupas não nos mudam tanto quanto nos revelam, até para nós mesmos: revelam o

verdadeiro eu interior e relativamente constante” (p. 62). Para o autor, o vestuário

desempenha um papel fundamental na determinação do indivíduo. Não é um símbolo ou uma

forma de representação, mas o conceito da pessoa, a percepção sobre si. Mesmo que as roupas

sejam as mesmas, em lugares diferentes do mundo, a forma de se usar e de se relacionar com

elas são culturalmente determinadas.

Miller (2013) ainda traz para a indumentária o papel de evocar o mundo dos

sentimentos. Por meio da roupa se acessa a visão de mundo da pessoa. Nesse sentido, Mizrahi

(2007) apresenta a comunidade dos bailes funk. Conforme a autora, o objeto se mistura à

pessoa na construção de sua autoestima – a roupa para alguns; o “corpo bombado” para

outros.

Ao remeter à teoria da socialização, de Pierre Bourdieu, Miller (2013) explica que o

que torna um sujeito um típico cidadão parisiense são os trecos. As coisas, por sua vez, não

são individuais (individuais são trecos) e são elas que nos fazem as pessoas que somos: o

sistema agrícola, rodoviário, as moradias, os jardins. As coisas não nos chamam a atenção,

apenas seguem seu fluxo. Quanto mais despercebidas se passarem, mais poderosas são. A

cultura material, entretanto, conforme Miller (2013) argumenta, é feita de trecos. O autor

defende a materialidade, enfatizando que os trecos são algo comum, necessários a nossa

existência no mundo.

Sob uma perspectiva em consonância com a de Miller (2013), enxergando o sujeito a

partir de seus objetos, Yacooub (2011) apresenta a classe popular brasileira a partir de seus

bens eletroeletrônicos. Yacooub (2011) expõe um recorte a respeito de uma pesquisa de sua

autoria, para a qual residiu por oito meses em um bairro popular na região metropolitana do

Rio de Janeiro. Nesse recorte, a autora relata sobre uma festa da qual participou, para

comemorar a compra de uma geladeira. Esse novo bem mudaria a sociabilidade da dona dela,

75

sendo um “divisor de águas em seu cotidiano e sua prática social” (Yaccoub, 2011, p. 199). A

senhora, protagonista desse relato, dizia: “Agora vou poder receber visitas e dar festas, pois as

bebidas vão gelar. Vou fazer pavê, comprar sorvete, fazer gelo para o refrigerante. Agora,

sim!”. Agora sim, essa senhora passará a existir para aquela comunidade! Além de passaporte

social, a geladeira proporcionará conforto para aquela família e dotará de sentido a vida

cotidiana daqueles indivíduos. Sob essa vertente apresentada, cabe pontuar, aqui, os trabalhos

de Castilhos (2007)15 e Pinto (2013)16 que, com o intuito de entender o consumo em uma

perspectiva cultural, também discutem o papel dos bens na construção de sociabilidade e

redes de relacionamentos dos indivíduos pobres.

Yaccoub (2011) apresenta o consumo como forma de inclusão, ascensão social e

poder para esse grupo estudado por ela. Para tanto, a autora remete à pesquisa de Carla

Barros, publicada em 200717, sobre o consumo entre empregadas domésticas. Essa pesquisa

levanta a questão do molde social. As empregadas veem suas patroas como exemplos a serem

seguidos, e isso se materializa na forma de se vestir, de comer e na estética da casa. São os

objetos que definem o lugar dessas mulheres na comunidade onde vivem.

Tratando também da agência entre sujeito e objeto, Copertino (2014) apresenta um

processo de restauração de casas árabes em uma cidade síria, islâmica e milenar chamada

Damascus, onde a constituição do espaço e a propriedade das casas dizem muito além do

patrimônio que representam. As casas restauradas não são somente estruturas físicas e nem

somente símbolos para possibilitar relacionamento social, mas sim objetos que foram

incorporados na rede formada por pessoas, objetos e ideias, produzindo, então, determinado

significado social.

O autor relata que a organização da restauração dessas casas árabes, patrimônio

mundial da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciências e Cultura (Unesco), no

centro antigo da cidade de Damascus, envolveu o remanejamento dos antigos moradores,

muitos deles desinteressados por esse processo devido ao alto custo que isso representaria e,

também, arquitetos, historiadores, artistas e artesãos que trabalhavam vinculados ao governo,

mas com custos financiados pelos novos donos das casas. Toda essa movimentação, que

envolveu memórias econômica, religiosa, legal, de lazer, dentre outras, baseadas na memória 15 Castilhos, R. B. (2007). Subindo o morro: consumo, posição social e distinção entre famílias de classes

populares. 2007. 204 f. (Dissertação de Mestrado em Administração). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

16 Pinto, M. R. (2013). As experiências de consumo de eletrônicos de consumidores de baixa renda no Brasil. REMark, 12(1), 166.

17 BARROS, Carla. (2007). Trocas, hierarquias e mediação: as dimensões culturais do consumo em um grupo de empregadas domésticas. 2007. (Tese de Doutorado em Administração). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

76

do espaço, impactou no comportamento dos atores sociais desse processo. A arquitetura,

como já reconhecida pela antropologia, mais uma vez se mostrou como um mecanismo

importante de comunicação de significados.

Os novos habitantes das casas restauradas são pessoas com alto capital intelectual,

dispostas a empenhar recursos econômicos próprios na preservação da cultura local. A

disposição desses atores para, segundo Copertino (2014), “jogar este jogo”, está relacionada à

posição deles no cenário social local. Os novos moradores, todos em posição econômica

proeminente, com boa formação educacional, passaram a ser vistos como autênticos

valorizadores da cultura dos antepassados e, por isso, tornaram-se dignos dessa nova morada.

Esse benefício social demandou investimento econômico, entretanto, para essas pessoas, pelos

capitais social, cultural e simbólico que também possuem, pareceu um preço justo.

Palludan e Winther (2017) expõem a materialidade como co-criadora do processo

social, ao estudarem o relacionamento entre as famílias e seus filhos e entre os irmãos a partir

do quarto das crianças, ou seja, a agência da materialidade sobre o contexto. Os autores, ao

exporem a evolução histórica e econômica da Dinamarca, utilizando a perspectiva do espaço

doméstico, apresentam-nos uma sociedade atual formada por 50% de adultos divorciados e

que, provavelmente, devido a esse aspecto, esteja mais centrada nas crianças. As crianças,

nesse cenário, enxergam seu papel nas famílias, sua ascensão sobre os irmãos e sobre os

novos parceiros amorosos dos pais a partir de seu lugar na casa – neste caso, pelo seu direito

ou não a um quarto individual. Os autores apresentam, segundo o olhar de seus entrevistados,

todos pertencentes à classe média, o quarto individual para os filhos como uma mostra de

amor e cuidado, especialmente para os filhos de pais divorciados.

Um ponto interessante, trazido à tona por Palludan e Winther (2017), refere-se ao

sentimento de invisibilidade que assola a criança quando, após o estabelecimento de novos

relacionamentos amorosos e novos filhos, os pais precisam rever a divisão do espaço

doméstico e retirar, dos filhos antigos, o direito ao quarto individual. O quarto é, nesse

contexto, enxergado/concebido como uma manifestação social do papel do filho na casa e na

nova família.

Balthazar (2016), ao relatar a etnografia que realizou, por quinze meses seguidos,

atuando como voluntária em lojas de antiguidades e bazares de roupas usadas em uma

pequena cidade no interior do Reino Unido, destaca o processo de transformação conjunta

pelo qual passam sujeito e objeto durante o processo de consumo. Há uma agência mútua, ou

seja, o objeto não define a pessoa e a pessoa, por sua vez, não projeta um significado ao

objeto. Há, aí, uma construção mútua de significado.

77

A autora teve contato próximo, enquanto vendedora voluntária em diferentes

comércios de objetos usados, com grupos diversos de pessoas que apresentam características

diferentes e, sendo assim, se relacionam de forma diferente com os objetos. Balthazar (2016)

ressalta, de forma especial, três grupos de consumidores, dois deles com poder aquisitivo um

pouco mais alto e certo background cultural e outro em situação de precariedade financeira.

Enquanto os dois primeiros dão valor à história dos objetos usados, seu passado, o significado

deste passado, as características dos possíveis ex-donos e as características históricas da

produção destes objetos, o último atribui apenas valor utilitário a esses bens. A pesquisa de

Balthazar (2016) reforça o valor relativo dos objetos, ou seja, reforça o poder da agência e

destaca a importância do contexto.

Borgerson (2005) já havia jogado luz à importância, para os estudos do consumo,

dessa discussão acerca da agência entre sujeito e objeto. Para a autora, as pesquisas em

consumo tendem a discutir o materialismo como o efeito dos objetos na satisfação do sujeito

com a vida, a felicidade e o progresso social, ao invés da co-criação entre sujeito e objeto. A

pergunta fundamental, para Borgerson (2005), se apoia sobre a questão da agência – de que

forma sujeito e objeto se tornam o que e quem são.

A teoria da cultura material permite mapear a agência e os efeitos do relacionamento

entre consumidores, objetos, relações de consumo e construção de identidade, considerando,

ainda, o contexto em que estas relações são construídas. É justamente nesse processo que se

apoia esta tese.

5.4 Bourdieu e os conceitos de habitus e capitais

Na busca pelo entendimento da relação entre sujeitos e objetos, torna-se pertinente

discutir as relações sociais para que se chegue à construção social do consumo. Nesse sentido,

propõe-se que esse caminho seja iniciado pelos conceitos de capital, habitus e campo, de

Bourdieu.

Bourdieu (2007) amplia a concepção marxista de capital. Além do capital econômico,

que se refere diretamente ao dinheiro disponível (bens e renda), a compreensão do capital

cultural, refletido nas maneiras, no gosto (Bourdieu, 2007; Holt, 1998; Saatcioglu & Ozanne,

2013), nas disposições culturais e nos saberes, do capital social, refletido nas relações sociais

(Boudieu, 2007; Holt, 1998; Üstüner, & Holt, 2010) e do capital simbólico, refletido no

prestígio e na honra, são fundamentais para entender a dinâmica social pós-moderna. Essa

equação de capitais forma o habitus do agente (Bourdieu opta por chamar o indivíduo de

78

agente, aquele que age) e esse agente usa desse habitus para atuar no campo, onde acontecem

as relações sociais. O campo é um espaço de conflitos e competências. É a vida vivida, em

que o agente, munido de seu habitus, atuará. Para Bourdier (2007) o habitus comanda a forma

como escolhemos nossas ações e, também, o nosso posicionamento diante de determinadas

circunstâncias.

Em sua obra, “A Distinção”, Bourdieu (2007) apresenta o conceito do “gosto de

necessidade”, tratando da dificuldade do agente de mudar seu hábito, ou capital cultural, na

mesma velocidade com que ascende financeiramente, pois as necessidades culturais são frutos

da educação e estão estritamente ligadas ao nível de instrução. Usando das palavras de

Bourdieu (2007, p. 10), “o expectador, desprovido de código específico, sente-se submerso,

afogado, diante do que lhe parece ser um caos de sons e ritmos, de cores e linhas, sem tom

nem som”.

Cada campo considera como valor predominante um tipo específico de capital. Assim,

o que tem valor em um campo pode não significar nada em outro. Para atuar em determinado

campo, o agente precisa dispor de determinado capital valorizado naquele campo. A posse

desse capital permite reconhecer o que está sendo transmitido como óbvio e que passaria

despercebido para outros que não tem essa categoria de percepção. Dessa maneira, as

desigualdades sociais não acontecem somente pelo déficit econômico, mas, também, pelo

déficit do capital cultural no acesso aos bens (Bourdieu, 2007).

Ao diferenciar o capital de origem, ou a posição original, e o capital de chegada, ou a

posição atual no espaço social, Bourdieu (2007) chama a atenção para as práticas dos novos

entrantes em um determinado grupo social, apoiando-se nas maneiras sutis que denunciam

condições de existência diferentes das condições presentes, ou seja, uma trajetória social

diferente da trajetória comum no grupo em questão.

Enxergando as relações sociais pelo prisma proposto por Bourdieu (2007), enxerga-se

claramente a dificuldade da ascensão social. A migração social não pode ser vista somente

pelo prisma financeiro. A maior dificuldade para os novos entrantes em um grupo social é,

justamente, o capital cultural. Como Bourdieu (2007) salienta

[...] não basta ter um milhão para ficar em condições de levar a vida de milionários; e os recém-chegados levam, em geral, muito tempo, às vezes uma vida inteira, para aprender que, em sua nova condição, o que ele havia considerado uma prodigalidade culpada faz parte das despesas de primeira necessidade. (Bourdieu, 2007, p. 351)

79

Bourdieu (2007) também retrata a desigualdade cultural quando afirma que “a loucura

de uns é a necessidade primordial de outros” (p.351), ou seja, as despesas ostensivas não são

desperdícios, são elementos do estilo de vida e, quase sempre, formas de acumulação de

capital social.

Para alcançar uma nova posição social, o agente precisa deter uma nova configuração

de habitus, novos capitais e essa mudança não é rápida, pois ela é resultado de uma

construção social já arraigada. O pertencimento a um novo campo requer harmonia entre o

que se é e o que se consome, o ambiente que se frequenta e o grupo social que frequenta

aquele ambiente. O agente precisa dominar inconscientemente as regras daquele campo

(Bourdieu, 2007).

Nesse sentido, o que os agentes parecem buscar é a distinção social naquele grupo ao

qual pertencem e, nesse contexto, o consumo é um fator importante, devido ao simbolismo a

ele anexado. O acesso ao consumo é possibilitado pelo acesso ao capital econômico, que,

dentre todos os capitais que formam o habitus do agente, é o mais fácil de ser conquistado em

relativo curto espaço de tempo.

Para Bourdieu (2007), a submissão à necessidade leva as classes populares a adotar

comportamentos de consumo mais pragmáticos, impondo gostos “simples e modestos”. A

compra, para as classes populares, é encarada como um negócio, em que o lucro precisa ser

potencializado.

A vida social pode ser concebida como um jogo de status com três diferentes tipos de

recursos (capital econômico, capital cultural e capital social) competindo por status (capital

simbólico). Distinguindo-se do capital econômico (recursos financeiros) e do capital social

(relacionamentos, afiliações e redes sociais), o capital cultural consiste em um lugar

privilegiado na sociedade, com gosto, habilidades, conhecimento e práticas (Bourdieu, 2007;

Holt, 1998).

Holt (1998) argumenta que o capital cultural existe em três formas primárias: agregada

a conhecimentos práticos, habilidades e disposições; agregada a objetos culturais e

institucionalizada por meio de diplomas que certificam a existência desse corpo. O capital

social pertence ao meio social das elites culturais, ganhando corpo em famílias cujos pais são

bem educados do ponto de vista formal, cujas atividades profissionais requerem habilidades

culturais, interação com pares com capital cultural semelhante, formação acadêmica em

universidades que atraem elites, em áreas que enfatizam o pensamento abstrato e a aquisição

de habilidades e conhecimentos que são refinados e reforçados em suas ocupações, que

enfatizam a produção simbólica. Essas diversas experiências da elite cultural tornam-se

80

subjetivamente encarnadas nas formas de sentir, pensar e agir, por meio da estrutura

psicológica que Bourdieu (2007) chama de habitus. O habitus, então, é um sistema abstrato

que classifica o mundo e a estrutura das ações (Holt, 1998).

Assim como os outros capitais, o capital cultural é articulado de forma particular em

cada domínio institucional. Para Bourdieu (2007), o mundo social consiste de várias

estruturas, relativamente autônomas, mas similares, como o campo da política, das artes, da

religião, da educação e dos negócios. Esses campos funcionam como arenas nas quais os

atores competem por lugar e status na hierarquia social. O capital cultural é diferente em cada

um desses campos.

Bourdieu (2007) afirma que a crença da relação direta entre renda e consumo existe

devido ao gosto e às práticas de consumo, que são percebidos somente em condições

econômicas idênticas àquelas em que funciona. Por esse motivo, segundo o autor, mesmo

quando sujeitos ao aumento dos rendimentos financeiros, os integrantes das classes populares

tendem a não modificar a estrutura de seu consumo. A tendência é aumentar o consumo do

mesmo, e não modificar o que é consumido.

A manifestação do capital cultural por meio do consumo de bens e serviços resulta na

construção de um estilo de vida que expressa e reproduz o habitus. Bourdieu (2007)

argumenta que o capital cultural assegura o respeito dos outros por meio do consumo de

objetos que somente podem ser consumidos pelos poucos com habilidade para tal e, dentro

desse grupo, as pessoas lutam para manter a posição de status. Adicionalmente, para entender

e apreciar essa prática de consumo é preciso ter as informações que esse grupo específico tem,

ou seja, há uma premissa de capital cultural para apreciar o consumo do grupo com alto

capital cultural.

Holt (1998) ressalta, entretanto, que, nas culturas pós-modernas, tem crescido a

dificuldade de inferir status por meio dos bens consumidos, por estarem sendo demolidas as

barreiras da hierarquia de consumo da classe alta para a classe baixa. Nas sociedades

capitalistas avançadas a objetificação do capital cultural tem sido um mecanismo fraco de

exclusão social. A distinção, na sociedade norte americana, de acordo com a pesquisa de Holt

(1998), tem se dado pelas práticas, pela forma como o grupo interage com os objetos.

Somente uma pequena parcela da classe alta nos Estados Unidos conhece as artes

clássicas da forma como Bourdieu descreve haver esse conhecimento na classe média

francesa (Holt, 1998). Na busca por desvendar a sociedade norte americana contemporânea,

de capitalismo avançado, Holt (1998) desenvolveu sua pesquisa, explorando a variação do

capital cultural e suas respectivas diferenças de gosto e práticas de consumo entre as classes

81

altas e as classes populares. O autor abordou o consumo de alimentos, moda, decoração,

música, televisão, cinema, leitura, socialização, férias, esportes e hobbies.

Um tema central em “A Distinção” (Bourdieu, 2007) é o gosto, estruturado em

contínua interação com a cultura material. Para o autor, o gosto, na classe baixa, se forma em

ordem mais funcional – “o gosto da necessidade”. Já para a classe alta, o gosto é uma

expressão da identidade, por meio do qual se constrói a subjetividade.

Ao comparar a estética material versus a estética formal, Holt (1998) conclui que as

classes populares ressaltam o utilitarismo dos objetos consumidos, enquanto a classe alta tem

uma preocupação exclusivamente estética. Segundo Holt (1998), as classes populares aplicam

o sistema classificatório usado na vida cotidiana para o contexto das artes, preferindo, por

exemplo, filmes e programas de TV que pareçam reais e músicas que conversem diretamente

com sua vida cotidiana.

Nessa pesquisa, Holt (1998) relata um materialismo maior entre a classe baixa. A boa

vida, para a classe popular, está relacionada ao ter em abundância, especialmente bens

entendidos como luxuosos. Em contraste, a classe alta enfatiza o valor metafísico dos aspectos

da vida. Eles enfatizam experiências que proporcionem o exercício da criatividade,

contemplação e aprimoramento do senso estético. Esse posicionamento perpassa desde a

escolha do restaurante, passando pelas roupas, mobília da casa, escolha com destino de férias

até a relação com a carreira profissional.

Holt (1998) conclui que as pessoas que possuem um maior capital econômico do que

cultural, como os membros da classe baixa em ascensão, tendem a adotar um estilo

materialista de consumo. Para a classe alta, cujo gosto é alicerçado no capital cultural, o

materialismo é um termo pejorativo, considerado como ostentação e, portanto, de mau gosto.

Ambos os grupos, classe alta e classe baixa, buscam prestígio, o que difere é a forma de se

adquirir este prestígio. Enquanto para a classe popular o prestígio vem da aquisição de bens e

da participação em atividades com alto simbolismo econômico, para a elite cultura vem da

experiência. Esse materialismo é o que a elite evita para marcar sua posição social.

Nesse cenário, Belk et al. (2010) se apoiam no conceito de capital de Bourdieu para

propor um outro capital, com atuação simbólica limitada ao micro grupo do qual o agente

pertence: o status de cool. O conceito de status cool será apresentado e discutido na próxima

seção.

82

5.5 Identidade cool

Belk et al. (2010) apresentam e defendem a ideia de que o status de cool é um capital

que opera permeado por características culturais muito específicas. Nancarrow e Nancarrow

(2007) definem cool como um capital tribal, considerando que é reconhecido e compartilhado,

em seu significado específico, por membros de uma determinada tribo.

Cool é um adjetivo, cujo substantivo é coolness. Essa característica, apesar de

perseguida, não tem um significado claro. Há, entretanto, algumas propriedades que já

parecem claras (Warren & Campbell, 2014). A primeira delas é a construção social desse

significado, ou seja, é uma característica atribuída pela audiência (Belk et al., 2010). A

segunda é o subjetivismo e o dinamismo. Os objetos sociais (que podem ser pessoas ou

coisas) considerados cool mudam com o tempo e entre grupos. Consumidores com

background e interesses similares tendem a concordar em relação à percepção de coolness

(Warren & Campbell, 2014). A terceira diz respeito ao caráter positivo, de desejabilidade, da

característica coolness (Belk et al., 2010). E, por último, cool não é uma forma diferente de se

dizer “good”, cool tem uma bagagem cultural implícita (Warren & Campbell, 2014). Warren

e Campbell (2014) defendem que a autonomia em relação às normas, crenças e expectativas

do outro é o que diferencia o que é “good” do que é “cool”.

É importante salientar que a autonomia aumenta a percepção de coolness somente

quando no contexto apropriado. Belk et al (2010) apontam ainda uma diferença importante

entre destacar-se como cool e enquadrar-se como cool. Para destacar-se como cool o sujeito

precisa ter um ponto de vista autêntico, de gosto privilegiado (Kernet & Pressaman, 2007).

Nancarrow e Nancarrow (2007) apresentam, ainda, a autenticidade e a criação de distinção

como características da pessoa cool.

Warren e Campbell (2014) propõem a seguinte definição para cool: é subjetivo e

dinâmico, socialmente construído e aplicável a objetos culturais (pessoas, marcas, produtos,

tendências etc.). Os autores ressaltam que a autonomia apropriada aumenta a percepção de

coolness, ou seja, é desejável que se seja autônomo, mas não inapropriado.

Essa definição de inapropriação está claramente ligada ao comportamento que, por sua

vez, está ligado aos códigos culturais. O que é apropriado em um contexto diverge do que é

apropriado em outro. Warren e Campbell (2014) ainda perceberam, em seus experimentos,

que a autonomia aumenta a percepção de coolness quando o comportamento diverge de uma

norma considerada ilegítima (desnecessária, arbitrária ou incorreta), mas não quando diverge

de uma norma considerada legítima. A pesquisa ainda sugere que as pessoas normalmente

83

preferem objetos culturais com moderada autonomia, evitando popularidade ou

impopularidade em demasia.

Os autores ligam o conceito de contraculturalismo aos conceitos de autonomia e

percepção de coolness. Eles defendem que pessoas com um alto grau de contraculturalismo

percebem um alto grau de autonomia como uma característica positiva, ao passo que pessoas

com baixo grau de contraculturalismo percebem um alto grau de autonomia como uma

característica negativa. Contraculturalismo, nesse caso, é definido como descrença na mídia

de massa, no governo, na igreja, na elite econômica e, eventualmente, até na família e amigos.

(Warren & Campbell, 2014).

Nessa mesma linha, Bird e Tapp (2008) trazem a informação de que a Superbrand,

uma organização independente que realiza avaliações de marcas em todo o mundo, ao

apresentar a lista das marcas mais cool do Reino Unido, descreve tal conceito como elegante,

inovador, original, autêntico, desejável e singular. Pensamento semelhante leva Dalton (2014)

a apresentar o conceito de cool como ligado a uma série de características e comportamentos,

como: controle emocional, desprezo pela autoridade e pela opinião alheia, autonomia e

impulsividade. Adicionalmente, a identidade cool costuma estar ligada a um código de

vestimentas.

Para Nancarrow e Nancarrow (2007) a essência do cool não é facilmente capturada e

essa dificuldade é parte da sedução. O conceito de cool, para esses autores, envolve

originalidade, autoestima e certo grau de narcisismo; e, tudo isso, aparentemente, sem esforço

para o sujeito que ostenta o adjetivo de cool.

Segundo Belk et al. (2010), a busca pelo status de cool é, atualmente, o maior

motivador de consumo global. Os autores, remetendo a Bourdieu, apresentam o status de cool

como uma maneira de incrementar o capital cultural, muito difícil de ser adquirido em curto

espaço de tempo, com o capital econômico que, com a mercantilização do status, está sendo

cada vez mais requisitado. Belk et al. (2010) nos convidam a pensar em uma condição social

fundamental ao jovens contemporâneos: ter uma presença cool, que, em última instância,

significa ser amado, admirado e, assim, ter esse status validado pelo micro grupo do qual o

agente pertence.

Bird e Tapp (2008) acreditam que a busca pelo cool se origina no início da

adolescência, nas discrepâncias existentes entre a identidade real e a identidade desejada pelos

jovens, posição também defendida por Kerner e Pressman (2007). Isso explica a ligação dos

jovens às tendências consideradas cool, mas ainda não explica como as tendências nascem e

nem porque ficam rapidamente ultrapassadas. Tão pouco explica por que as gerações mais

84

velhas também valorizam o cool. Os autores também remetem ao conceito de capital cultural,

de Bourdieu, para situar o cool como um “capital ilegítimo”, ou seja, baseado nos ícones da

internet, do cinema, das músicas alternativas, das bebidas e grifes da moda, enfim, do

conhecimento e compartilhamento das últimas tendências. Essa nova elite, a elite cool, não é

definida pelo dinheiro e pela classe social. O cool é uma alternativa valiosa ao capital cultural,

construída nos grupos sociais locais.

Fraiman (2003), em seu livro, “Cool men and the second sex”, analisa o diretor,

roteirista, produtor de cinema e ator norte americano Quentin Tarantino a partir das

referências fortemente violentas, julgadas como sendo cool em seus filmes. A temática

trabalhada por Tarantino foi a do “bad boy” e do “black (white) men” com elevado auto

controle e senso de dominação. Essa referência é claramente ligada à tribo a qual o

personagem faz parte e embasada nos valores daquela sociedade, naquele momento. Em uma

linha correlata, Hooks (2004) analisa o coolness entre os homens negros, relacionando-o a

características ligadas à masculinidade. Esses estudos reforçam a relatividade do conceito,

altamente relacional e temporal.

Apresentando também a aderência do coolness às características de uma área, grupo

ou tribo, Liu (2004) apresenta o conceito ligado ao mundo da internet e da tecnologia da

informação. Na tentativa de definir o conceito, o autor usa do recurso de um poema:

“Cool isn’t static. Today’s cuts might not make it next week next month next year The definition envolves... Coolest on the web is always in flux, Reflecting current state of the art.”

Para Liu (2004), cool é, e não é, um ethos, um estilo, um sentimento, uma política e

uma informação.

Embora o conceito de cool não esteja vinculado ao consumo ou às marcas, estes

suportes têm se tornado cada vez mais centrais para essa identidade tão comum entre os

jovens, apesar de não ser exclusivo a eles. A música, a TV, o cinema, as revistas e, hoje, com

muita força, a internet e as redes sociais, nos apontam quem são essas pessoas e ajudam a

difundir as tendências cool.

85

Os entrevistados por Belk et al. (2010) apontaram como elementos do status de cool

atitude, performance, estilo, singularidade, indiferença ao mainstream, talento, aproximação

das ruas e capacidade de esconder as emoções. Os autores, entretanto, puderam perceber que

o conceito é permeado por símbolos culturais, e o que é cool para uma cultura, não

necessariamente tem que ser para outra.

Belk et al. (2010), remetendo às músicas de hip hop americanas, que, assim como as

brasileiras, mencionam, com frequência, grandes marcas, concluíram que o status de cool

historicamente mudou de “desdenhar” o consumo para “celebrar” o consumo. O que se busca

não é o status da elite, mas sim o status de cool.

Gioia (2009) defende que se no passado o termo cool foi usado para adjetivar uma

pessoa, um estilo de música ou uma atitude, cada vez menos se relaciona às pessoas e, cada

vez mais, a atributos de mercadorias. O autor fala de uma sociedade pós-cool, na qual o que

se busca não é um novo estilo, mas sim liberdade de estilo e liberdade de tendências. Mas, de

fato, o que parece ser isso senão mais uma tendência cool?

Nesse ponto, torna-se adequado lançar mão da denominação de Ostberg (2007), o qual

defende que o status de cool é um capital cultural alternativo, ligado aos grupos. A posse

desse capital é o que permite aos membros de uma comunidade assimilar os códigos

necessários para se manterem nesse grupo.

Por fim, com intuito de sumarizar os aspectos discutidos nessa revisão da literatura,

faz-se importante salientar que a proposta teórica desta tese é articular questões atinentes à

cultura material, caras à Teoria da Cultura do Consumo (Consumer Culture Theory), e pontos

relacionados ao conceito de identidade cool desenvolvido por Belk et al. (2010), baseados na

construção de capitais e habitus de Pierre Bourdieu. Acredita-se no sentido dessa articulação

teórica no contexto de consumo de jovens no ambiente do funk, de forma a possibilitar o

entendimento do fenômeno pelas lentes do consumo em uma perspectiva cultural e simbólica.

Frente a essas discussões teóricas e almejando atingir os objetivos propostos, o

próximo capítulo desta tese apresenta o posicionamento epistemológico adotado pela pesquisa

e sua proposta metodológica.

86

6 POSICIONAMENTO EPISTEMOLÓGICO E PROPOSTA METODOLÓGICA

Este capítulo tem por objetivo discutir questões envolvendo o posicionamento

epistemológico do estudo, bem como elementos que compõem a proposta metodológica da

pesquisa. Para isso, o capítulo foi estruturado em duas seções: a primeira discute o

posicionamento epistemológico, com ênfase no interpretativismo e no interacionismo

simbólico, e a segunda seção descreve as escolhas metodológicas adotadas pela pesquisa

empírica.

6.1 Posicionamento epistemológico

6.1.1 O Interpretativismo

Tendo em vista as características da pesquisa, julgou-se mais coerente a adoção de

uma perspectiva interpretativista. Perspectiva, esta, que assume realidades múltiplas e

emergentes vivenciadas no cotidiano; contextos históricos e socialmente construídos, frutos

de interação com outras pessoas; fatos e valores interligados; verdade como provisional; e a

vida social como processual (Charmaz, 2009; Creswell, 2014; Schwandt, 2006).

Trazendo a discussão para o campo do consumo, Goulding (1999) ressalta outros

pontos importantes que parecem ter adesão à proposta da tese: em primeiro lugar, deve-se

reconhecer o consumidor, considerando seu mundo construído culturalmente. Além disso, é

indispensável ressaltar a importância da linguagem, dos símbolos e gestos em relação à

experiência vivida; entender que tempo e espaço têm diferentes significados e não são

conceitos universais rígidos, mas fluidos e negociáveis; ter humildade ao reconhecer que a

noção de “verdade” não é algo único; e, por fim, assumir que a observação é parte de um

processo de interpretação.

Para Charmaz (2009), um estudo interpretativista pode ter pressupostos

construcionistas sociais que permeiam o interacionismo simbólico, a etnometodologia, os

estudos culturais e a análise de narrativas. No caso da presente pesquisa, a escolha recaiu

sobre o interacionismo simbólico, tema a ser discutido na próxima seção.

87

6.1.2. Interacionismo simbólico

Primeiramente, há de se considerar que o interacionismo simbólico é uma abordagem

para o estudo da vida social, que pode ser entendido como uma escola, uma corrente de

pensamento ou, até mesmo, como uma metodologia de pesquisa (Blumer, 1969; Bryman,

1995; Charmaz, 2009). No caso desta tese, o interacionismo simbólico é compreendido como

uma corrente de pensamento adepta ao interpretativismo.

O interacionismo simbólico emergiu em decorrência dos estudos da Psicologia Social

e da Sociologia no início do século passado, os quais foram estimulados pelos efeitos da

industrialização e, mais especificamente, pela urbanização. Dessa maneira, os pesquisadores

que adotaram o interacionismo simbólico como corrente de pensamento passaram a estudar o

indivíduo como alguém que está em constante interação com o ambiente em que vive, porém,

de uma maneira completamente nova: a partir da sua própria perspectiva. O objetivo, segundo

Coulon (1995), foi desvendar as significações que os próprios investigados construíam em sua

prática e que geravam os contornos do seu mundo social.

Os estudiosos dessa corrente buscaram, por meio de uma investigação sistemática do

comportamento social humano, compreender não só como o indivíduo constrói seu olhar

acerca dos objetos e demais indivíduos com os quais se relaciona, mas, também, compreender

como essa construção influencia seu comportamento enquanto indivíduo, em um contexto

socialmente dinâmico (Carvalho, 2010).

A perspectiva interpretativista, que segundo Kanter (1972) e Hall (1987) parte do

princípio de que os indivíduos usam o raciocínio e a capacidade de simbolização para

interpretar e se adaptar às circunstâncias e, desta maneira, se posicionarem diante de uma

determinada situação, pavimentou não só o caminho para o surgimento do interacionismo

simbólico, mas, principalmente, promoveu o uso dos métodos qualitativos e mistos de

investigação (Coulon, 1995).

Cabe destacar, sobretudo, as lições de Blanco (1998) sobre a complexidade que seria

tentar reconstituir os caminhos que possibilitariam encontrar as raízes do interacionismo

simbólico. Para o autor, haveria muitas ramificações oriundas tanto do pensamento

econômico de Adam Smith, das ideias iluministas de Rosseau e Diderot quanto da filosofia

alemã de Kant. Todavia, Carvalho (2011) legitima o fato de que os contornos teóricos atuais

do interacionismo simbólico foram estabelecidos, por um lado, pela Escola de Chicago,

considerada a escola clássica dessa corrente, e que se desenvolveu a partir dos estudos de

Herbert Blumer e, de outro, pela Escola do Iowa, que, por sua vez, foi influenciada por

88

Manford Kuhn. É importante ressaltar que ambas as escolas comungam dos mesmos

princípios teóricos básicos, advindos das concepções desenvolvidas principalmente por

George Mead (1923), como bem sintetizaram Sauerbronn e Ayrosa (2010), ao perceberem

que:

O interacionismo simbólico dá conta da natureza da sociedade humana e da vida humana em grupo e, dentro desta perspectiva, os grupos humanos são formados por seres humanos comprometidos com ações. Estas ações consistem em múltiplas atividades que os indivíduos realizam em suas vidas, enquanto se encontram uns com os outros e lidam com a sucessão de situações com que são confrontados. Assim, os grupos humanos ou sociedades existem em ação e devem ser observados em termos de suas ações. A vida em grupo pressupõe necessariamente as interações dos membros de grupo ou, posto de outra forma, uma sociedade consiste em indivíduos interagindo. (Sauerbronn & Ayrosa, 2010, p. 859)

Esses fatos também foram trazidos à tona por Blanco (1998), ao afirmar que a essência

do ser humano está na capacidade de interagir por meio de comunicações simbólicas, as quais

podem ser articuladas indefinidamente, a partir de um self ou mediador entre o indivíduo e a

organização social. Fato, esse, que foi descrito por Mead (1934) como o “Eu” e o “Mim”. O

“Mim” é tratado como a representação do que o ser humano é e de como age enquanto

membro de um determinado grupo social. Já o “Eu” revela as reações que o indivíduo tem e

como reage, portanto, como se dá a sua adaptabilidade às interações a que está submetido em

um contexto social.

O mesmo fato foi ressaltado por Stryker e Vryan (2006), ao concluírem, com bases

nessas concepções, que as explicações teóricas que previssem o comportamento tanto

individual quanto coletivo têm pouca efetividade. Dessa maneira, os autores sugerem que,

para que seja possível obter a compreensão de um dado comportamento social, deve-se

estudá-lo após sua ocorrência, pois, como pontuou Blumer (1998), o significado dos objetos

são consequências das interações entre indivíduos dentro de um determinado contexto.

Ao fazer essa afirmação, Blumer (1998) se apropriou da figura da interatividade que o

indivíduo tem com o mundo para estabelecer o modus operandi, a fim de compreender os

fenômenos sociais. Para tanto, estabeleceu algumas premissas: a ação que o indivíduo exerce

sobre os objetos se dá a partir da significação dada por ele aos objetos; o fato de que essa

significação se estabelece com base nas relações que esse indivíduo mantém com outros

indivíduos e, por fim, o fato do indivíduo dialogar com esses significados por meio de um

processo interpretativo ao lidar continuamente com os objetos.

Visto isso, Blumer (1998) operacionalizou o raciocínio de Mead (1934), ao afirmar

que a conduta social fornece as bases para a criação dos significados e que estes só existem

89

quando encontram ressonância no outro. Sendo assim, tanto a significação quanto a

ressignificação dos objetos acontecem no processo de interação social. Isso, para Blumer

(1998), consiste, portanto, no interacionismo simbólico.

Pesquisadores como Belk (1985) construíram as pontes entre o interacionismo

simbólico e o mundo do consumo, ao apontarem que bens de consumo podem assumir

diferentes significados para aqueles que os consumem. Exemplificando esse aspecto, pode-se

dizer que um boné, ao ser utilizado por um indivíduo idoso, pode ser considerado por ele

apenas como uma forma de proteção do sol. Já para um adolescente, um boné pode, inclusive,

demonstrar a que tribo ele pertence.

Claxton e Murray (1994) apresentam a permutabilidade entre sujeito e objeto como a

aplicação do princípio do interacionismo simbólico na Teoria da Materialidade. Para os

autores, a interação entre sujeito e objetos é parte natural da socialização. Baseando-se nesse

pressuposto, eles propuseram o “Modelo da Permutabilidade”, conforme pode ser visualizado

na Figura 2.

Figura 4 - The Interchangeability Model

Fonte: Claxton e Murray, 1994, p. 423.

Embora já mencionado que as Escolas de Chicago e de Iowa comunguem dos

ensinamentos de George Mead e que, de fato, Blumer (1969) foi um dos responsáveis pelos

estudos que propiciaram os atuais contornos do interacionismo simbólico, Stryker e Vryan

(2006) não permitem que se negue a importância dos estudos de Manford Kuhn para a

consolidação do interacionismo simbólico. Não apenas para o delineamento da teoria, mas,

principalmente, para a diversificação dos métodos de investigação, pois, como ele era um

90

positivista, acreditava que o interacionismo simbólico deveria ter uma abordagem mais

estruturada.

É justamente no método de abordagem do problema que Blumer e Kuhn se afastam.

O primeiro, por ser um crítico da metodologia convencional, defende que para se entender o

mundo (empírico) o pesquisador, necessariamente, tem que buscar as respostas no campo,

para que estas possam explicar a realidade estudada (Stryker & Vryan, 2006). Para Kuhn

(1964), que, por sua vez, defende que a estrutura social depois de criada se auto-restringe

tornando-se estável, é possível utilizar instrumentos metodológicos que sejam capazes de

identificar e mensurar as relações existentes dentro da estrutura social. Kuhn (1964) acredita

que as investigações devem se basear em proposições gerais, a partir da verificação de

hipóteses específicas, que possibilitem generalizações teóricas.

Carvalho (2011) aponta para as duas divergências centrais entre os pensamentos de

Blumer e Kuhn, as quais são fundamentais para que se compreenda a diferença entre as duas

Escolas. A primeira delas é a autodeterminação do comportamento humano. Enquanto para

Blumer (1969) o ser humano é livre e, portanto, tem um comportamento imprevisível, para

Kuhn (1964), ele tem um comportamento determinado pela estrutura social na qual está

inserido. Essa diferença no modo de ver o objeto de investigação fez com que uma segunda

diferença emergisse: a metodológica.

Nesse aspecto, como esclarecem Stryker e Vryan (2006), diferentemente de Kuhn

(1964), que aposta nas análises estatísticas, nos questionários, nas escalas, dentre outras

técnicas ligadas à lógica de verificação, Blumer (1969) entende que, ao se adotar uma

abordagem interacionista, o pesquisador deve estar no campo, observando seu sujeito de

pesquisa dentro do contexto em que ele vive esse motivo, técnicas de investigação que

privilegiam a interatividade, como entrevistas em profundidade, grupos de foco e observações

participante, são as mais adequadas para extrair as informações necessárias para o pesquisador

construir sua compreensão daquele mundo. Blumer (1969) justifica sua posição

argumentando que:

A exploração e a inspeção representam a descrição e a análise e correspondem ao que se denomina investigação naturalista; um processo destinado a abordar o mundo empírico em seu caráter natural e contínuo, em lugar de se limitar a uma simulação do mesmo, uma abstração ou a sua substituição por uma imagem pré-estabelecida (Blumer, 1969, p. 33).

Apesar de, historicamente, as opções metodológicas defendidas por Blumer terem sido

adotadas pela maioria dos pesquisadores, as ideias de Kuhn foram fundamentais para a

91

construção dos conceitos do interacionismo simbólico, os quais, como ressalta Carvalho

(2011), não são excludentes, e versam sobre estabilidade/mudança, construção/reprodução

social, criatividade/estabilidade e, como bem demonstrado por Stryker e Vryan (2006),

caracterizam a vida social.

Dessa maneira, restringir a discussão sobre interacionismo simbólico à opção do

conjunto metodológico de investigação seria desprezar as possibilidades que essa corrente

teórica tem a oferecer para aqueles que estudam o comportamento humano e, no caso em

questão, o comportamento do consumo.

Cabe, por fim, resgatar mais um ensinamento de Stryker e Vryan (2006): o

interacionismo simbólico enquanto perspectiva teórica auxilia a compreender as relações

entre os indivíduos e estes com as estruturas sociais. Percebe-se, portanto, adesão aos estudos

do comportamento do consumidor, uma vez que suas ideias centrais recaem sobre o fato de

que os indivíduos são ativos e estabelecem relações simbólicas com os ambientes nos quais

convivem. Considera-se que é uma possibilidade bastante adequada aos pesquisadores que

têm o objetivo de compreender o consumidor partindo do fato de que ele é produto e produtor

da sua própria realidade.

Acredita-se que a proposta epistemológica do interacionismo simbólico vai ao

encontro dos pesquisadores do comportamento do consumidor preocupados e direcionados

em explorar os significados construídos e as experiências vividas pelas pessoas, buscando

entendê-las no seu contexto social, tratando o conhecimento como um empreendimento de

construção conjunta.

O interacionismo simbólico parece ser uma possibilidade de se chegar àquilo que os

consumidores realmente fazem, a partir de estudos que privilegiem uma visão de “perto e de

dentro”, com o pesquisador procurando entender a lógica que orienta a vida desses

consumidores em seu próprio contexto natural.

Uma vez determinado o posicionamento epistemológico da pesquisa, passa-se a

apresentar a proposta metodológica utilizada para o seu desenvolvimento.

6.2 Percurso metodológico

O objetivo geral proposto para a pesquisa é compreender os processos simbólicos

envolvidos no consumo do gênero musical funk. Considerando esse objetivo e o

posicionamento epistemológico discutido na seção anterior baseado no interpretativismo, a

pesquisa possui características que a alinham como qualitativa.

92

Para Creswell (2014), a pesquisa qualitativa tem pressupostos ontológicos,

epistemológicos, axiológicos e metodológicos. A presente pesquisa coaduna com essa

concepção. No que tange à questão ontológica, na qual se discute a natureza da realidade, os

pesquisadores que conduzem uma pesquisa qualitativa adotam a ideia de múltiplas realidades,

uma vez que essa realidade é vista por múltiplas perspectivas.

Sendo o pressuposto epistemológico interpretativista marcado por questões como o

significado do conhecimento, as justificativas sobre o significado do conhecimento e a relação

entre o pesquisador e o pesquisado, em uma pesquisa qualitativa, os pesquisadores tentam

chegar o mais próximo possível dos participantes, pois as evidências subjetivas são

acumuladas a partir das visões dos pesquisados.

Com relação ao pressuposto axiológico, no qual é levado em conta o papel dos valores, os

investigadores admitem a natureza carregada de valores nas informações obtidas em campo,

ou seja, os pesquisadores se posicionam em um estudo e reconhecem os “vieses” advindos

desse posicionamento.

Por fim, no que concerne ao pressuposto metodológico, o pesquisador faz uso de uma

lógica indutiva ao estudar o fenômeno em seu contexto. Dito de outra forma, os

procedimentos são caracterizados, além de indutivos, como emergentes e moldados pela

experiência do pesquisador na coleta e na análise dos dados.

6.3 O trabalho de campo

Dadas as características desta pesquisa, cumpre ressaltar a importância do trabalho de

campo. O papel do pesquisador é crucial, uma vez que suas competências comunicativas

constituem o principal “instrumento” de coleta de dados (Flick, 2004). Complementarmente,

segundo Creswell (2014), a lógica que o pesquisador qualitativo adota é indutiva, ou seja, a

estratégia de coleta de dados pode ser modificada e/ou complementada ao longo do estudo

para acompanhar os achados em campo.

O próximo tópico busca apresentar e discutir a atuação em campo desenvolvida para a

coleta dos dados desta pesquisa.

6.3.1 Os sujeitos da pesquisa e a coleta de dados

A técnica da entrevista em profundidade, conjugada com a técnica de observação, foi

usada para acessar a realidade dos sujeitos pesquisados. Sendo assim, tal como expresso por

93

Gaskell (2002), “a compreensão dos mundos da vida dos entrevistados e de grupos sociais

especificados é a condição sine qua non da entrevista qualitativa” (p. 65). Adicionalmente,

fotos e vídeos dispostos nas redes sociais foram coletados em busca de pistas da teia de

construção identitária desses sujeitos por meio do consumo. Essas fotos e vídeos foram

usados na construção videográfica.

Na primeira fase da pesquisa, ainda exploratória, dois MCs de funk foram

entrevistados em conjunto, por meio de uma conversa gravada que durou cerca de 60 minutos,

e um MC de hip hop, em uma conversa gravada com 76 minutos de duração. Além disso,

participei de dois eventos culturais, para entendimento inicial do contexto de pesquisa:

Figura 5: MCs entrevistados

Nome Idade Data da entrevista Duração da gravação

MC Magnata da ZN Entre 20 e 25 anos 18/12/2014 60’

MC Charlin Entre 20 e 25 anos 18/12/2014

MC Monge 31 anos 25/3/2015 76’

Fonte: elaborado pela autora para esta tese.

Figura 6: Eventos frequentados

Verão Arte Contemporânea – VAC 2015 17 e 18 de janeiro de 2015

Café, Arte e Poesia 14 de março de 2015

Fonte: elaborado pela autora para esta tese.

Essas entrevistas e os eventos, assim como todas as outras entrevistas, encontram-se

ricamente descritas no item 1.3 desta tese, intitulado “Descrevendo o caminho percorrido”.

O início propriamente dito do trabalho de campo ocorreu no segundo semestre de

2016, com uma tarde de observação e uma entrevista gravada de 58 minutos, com o ator e

professor e lutador de jiu jitsu, Éder Rufino, morador da Vila do Cafezal no Aglomerado da

Serra.

Figura 7: Ator entrevistado

Nome Idade Data da entrevista Duração da gravação

Éder Rufino 40 anos 26/08/2016 58’

Fonte: elaborado pela autora para esta tese.

94

Houve diversos contratempos, todos descritos no item 1.3 desta tese, para o

acontecimento e o desenvolvimento dessa entrevista, de forma que as entrevistas seguintes

aconteceram apenas em janeiro de 2017. No dia 12 de janeiro de 2017, consegui me reunir na

“Casa do Hip Hop”, sede de um projeto cultural na comunidade do Taquaril, favela da região

leste da cidade de BH, com um grupo de jovens envolvidos com o hip hop e com o gestor da

instituição e oficineiro da Prefeitura de BH. Esse foi o primeiro de muitos encontros com esse

grupo.

O segundo encontro com esse grupo aconteceu em 17 de janeiro de 2017, desta vez

sem a presença de um dos jovens, o MC G, e o terceiro encontro com o grupo, também sem o

MC G, aconteceu em 04 de fevereiro de 2017.

Figura 8: Entrevistas realizadas na Casa do Hip Hop

Nome Idade Data da entrevista / Duração da gravação

Gabriela 21 anos 12/01/2017

17/01/2017 04/02/2017

Matheus 20 anos

Gabriel 20 anos

Sandro 20 anos 90’ 60’

(sem MC G)

70’

(sem MC G) W2 Em torno de 40 anos

MC G Em torno de 20 anos

Fonte: elaborado pela autora para esta tese.

Com a ajuda da Gabriela, membro do grupo de rap “Setor RAP” (Revolução, Ataque e

Protesto), que eu já havia encontrado em diversas ocasiões na “Casa do Hip Hop”, e arte

educadora do “Projeto Providência”, projeto social ligado à Arquidiocese de Belo Horizonte,

consegui me encontrar e conversar com um grupo de oito adolescentes, dois meninos e seis

meninas, com idades entre 12 e 14 anos, para conversarmos sobre a vida cotidiana deles.

Minha busca, nesse encontro, foi pela compreensão da intensidade da interferência do

contexto cultural do funk e seus símbolos de consumo na vida destes adolescentes.

Figura 9: Entrevistas Realizadas no Projeto Providência

Nome Idade Data da entrevista Duração da gravação

Pedro 13 anos 09/02/2017 62’

95

Bianca 13 anos

Carol 14 anos

Ana Flávia 14 anos

Letícia 13 anos

Raíssa 12 anos

Guilherme 12 anos

Helen 13 anos

Fonte: elaborado pela autora para esta tese.

Na busca por atores desse cenário do funk em BH, mais uma longa conversa

aconteceu:

Figura 10: Aluno da PUC São Gabriel entrevistado

Nome Idade Data da entrevista Duração da gravação

Pedro Ivo 21 anos 16/03/2017 73’

Fonte: elaborado pela autora para esta tese.

A partir desse momento, conforme descrito no item 1.3 desta tese, a pesquisa contou

com a colaboração de um bolsista acadêmico do curso de Ciências Sociais da PUC Minas,

que entrevistou, entre os meses de maio e agosto de 2017, onze jovens, todos moradores de

comunidades de baixa renda em Belo Horizonte e em seu entorno, os quais estavam inseridos

no universo do funk.

Figura 11: Entrevistas realizadas por Matheus Cozta

Nome Idade Ocupação Moradia Duração da gravação

Jennifer 25 anos Estudante

universitária

Ribeirão das Neves 30’

Elias 30 anos Escriturário Bairro Padre Eustáquio 55’

Jéssica 20 anos Não trabalha

nem estuda

Comunidade Morro das

Pedras

Natália 21 anos Estudante

universitária

Bairro Veneza

Thiago 15 anos Estudante do

ensino

fundamental

Região de Venda Nova 25’

96

Amanda 22 anos Não trabalha

nem estuda

Bairro Padre Eustáquio 42’

Camila 21 anos Não trabalha

nem estuda

Favela do Bairro

Calafate

15’

Jonathan 22 anos Não trabalha

nem estuda

Bairro Lindéia 30’

Patrícia 24 anos DJ Bairro Santa Efigênia 42’

Rafael 26 anos Estudante

universitário

Bairro Santa Efigênia 26’

Isabelle 31 anos Atendente 31 anos 40’

Lana 25 anos Estudante

universitária

Bairro Jardim

Comerciários

20’

João Vitor 23 anos Não trabalha

nem estuda

Favela Aglomerado da

Serra

22’

Josafá 24 anos Garçom Favela Aglomerado da

Serra

16’

Fonte: elaborado pela autora para esta tese.

Nesse momento da pesquisa, com a interferência de um amigo professor da PUC

Minas, fui recebida por Amanda e Sara, proprietárias de uma casa de shows funk na zona

norte de Belo Horizonte. Saí desse encontro com um convite para um baile funk no dia 28 de

maio de 2017.

Figura 12: Baile funk frequentado

Baile “Tropa dos Primos” Bar Nacional 28/05/2017

Fonte: elaborado pela autora para esta tese.

Tive a sorte de contar com a ajuda do professor Juarez Dayrell, fundador e integrante

do “Observatório da Juventude da Universidade Federal de Minas Gerais”, que, em sua tese

de doutorado, estudou o papel do rap e do funk na socialização da juventude pobre de Belo

Horizonte. O professor Dayrell abriu duas das mais importantes portas desta pesquisa ao me

apresentar dois MCs proeminentes na cena do funk em BH, MC Jeffinho e MC Clebinho.

97

Figura 13: MCs entrevistados por indicação do Prof. Dayrell

Nome Idade Moradia Data da entrevista Duração da gravação

MC Jeffinho 36 anos Jardim Felicidade 17/06/2017 90’

MC Klebinho 34 anos Comunidade

Vila Maria

30/06/2017 60’

Fonte: elaborado pela autora para esta tese.

Apesar de toda a riqueza dessas entrevistas, eu ainda precisava de dados históricos do

movimento funk em BH. Durante essas entrevistas, Jeffinho e Klebinho deram a sugestão de

que eu conversasse com o DJ Joseph, o qual foi meu último entrevistado.

Figura 14: DJ entrevistado

Nome Idade Data da Entrevista Duração da Gravação

Joseph 57 anos 02/10/2017 55’

Fonte: elaborado pela autora para esta tese.

Ao todo foram 1.117 minutos de gravações, aspecto que me possibilitou ter muitas

horas a mais de relacionamento com os entrevistados e com o público dos eventos dos quais

participei, sendo assim, foi possível ir montando o quebra-cabeça que ocupa minha mente

desde o final do ano de 2014.

As entrevistas com o MC Magnata da ZN, MC Charlin, MC Monge, Éder Rufino, MC

Jeffinho, MC Klebinho e DJ Joseph foram também transcritas, para permitirem a análise dos

dados em uma perspectiva histórica, o que gerou 176 páginas de textos.

6.3.2 Instrumentos de coleta de dados

Conforme descrito anteriormente, a coleta de dados da pesquisa aconteceu com a

realização de entrevistas em profundidade com dois públicos distintos: MCs e fãs do

movimento funk. Para isso, optou-se pelas metodologias propostas por Gaskell (2002) e por

MCCracken (1988). Assim, preliminarmente, foi necessária a elaboração de guias de

entrevista, os quais contiveram questões que foram apresentadas aos informantes, a fim de

compor o material necessário para a análise dos dados.

98

Cabe salientar que os instrumentos de coleta de dados da pesquisa foram, mesmo que

minimamente, alterados no curso das entrevistas, refletindo o caráter aberto e flexível da

pesquisa qualitativa (Creswell, 2014). Foram utilizados os seguintes roteiros, todos

disponíveis no Anexo desta tese: (1) Roteiro 1 – entrevista com os MCs Magnata da ZN e

Charlin; (2) Roteiro 2 – entrevista com o MC Monge; (3) Roteiro 3 – entrevistas com os

jovens rappers do “Setor RAP”, com os MCs Jeffinho, Klebinho e com DJ Joseph; (4)

Roteiro 4 – utilizado por mim na entrevista com o jovem Pedro Ivo e pelo acadêmico Matheus

nas entrevistas realizadas com os fãs do movimento funk.

6.3.4 Análise dos dados

Para a realização da análise dos dados, as entrevistas foram separadas em grupos. A

primeira entrevista, referente aos MCs Magnata da ZN e Charlin, foi uma entrevista

exploratória, para a entrada em campo. As entrevistas com o MC Monge e o DJ Joseph foram

planejadas e utilizadas sob uma perspectiva histórica, para entender o contexto de pesquisa.

As demais entrevistas foram minuciosamente analisadas.

Como técnica de análise de dados, utilizou-se a análise de conteúdo, uma vez que se

pretendeu identificar o que foi dito a respeito das experiências dos sujeitos integrantes do

movimento cultural do funk. Segundo Bardin (1995), a análise de conteúdo pode ser entendida

como um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter, por procedimentos

sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, a inferência de

conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas

mensagens.

Para Bardin (1995), considerando essa a perspectiva adotada para a tese, a análise não

se limita ao conteúdo, considera os significados, embora analise, também, os significantes. A

autora apresenta o código oral como um domínio possível da análise de conteúdo, por meio de

entrevistas e conversas. Isso quer dizer que o analista é um arqueólogo. A categorização e a

enumeração das características do texto consistem na primeira fase da análise de conteúdo,

sendo a inferência um procedimento intermediário e a interpretação a última fase.

Complementarmente, Cavalcante, Calixto e Pinheiro (2014) apresentam a análise de

conteúdo como uma técnica adequada para a pesquisa qualitativa, por permitir compreender

tanto a realidade “visível” quando a realidade “invisível”, ou seja, disposta nas entrelinhas do

texto, rica em significados. Para os autores, a boa análise requer uma compreensão dos seres

99

pesquisados, suas manifestações e interações com o contexto de pesquisa e um olhar

meticuloso do pesquisador.

Corroborando com Cavalcante et al. (2014), Mozzato e Grzybovski (2011) apresentam

a análise de conteúdo como uma técnica de análise de dados que vem sendo bastante utilizada

no campo da Administração enquanto metodologia de interpretação. Os autores ressaltam a

importância dos pesquisadores considerarem o contexto das análises, não podendo o

pesquisador se ater aos aspectos superficiais dos dados coletados.

Cabe ressaltar, também, que, para essa fase, foi utilizado o software ATLAS/ti,

desenvolvido pela Scientific Software Development, que auxiliou no gerenciamento dos dados

textuais e das interpretações. Além disso, ele também permite a auditoria necessária para

verificar a validade e a confiabilidade dos resultados.

Foram analisados, por meio do software ATLAS/ti, 19 documentos em aúdio, que

geraram 326 codificações, nomeadas através de 134 códigos. Esses códigos foram agrupados

em oito grupos que, ao final, geraram sete categorias de análise dos dados.

6.3.5 Apresentação dos dados

Pelo fato de a pesquisa ter se desenvolvido em um ambiente bastante rico em imagens,

as quais são fundamentais para se entender o universo pesquisado, a videografia foi utilizada

nesta tese como metodologia complementar de apresentação dos dados, com o objetivo

principal de que não fosse perdida a riqueza da história não narrada.

Essa técnica, ainda que pouco usual nas pesquisas do consumo no Brasil, vem sendo

constantemente divulgada em estudos conduzidos por pesquisadores como Peñaloza e Cayla

(2006), Sayre (2006), Sherry (2006) e Hietanen (2012) e defendidas por Belk e Kozinets

(2005) e Kozinets e Belk (2007), que exploraram o uso da videografia na pesquisa em

marketing e em comportamento do consumidor.

100

7 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

Antes de iniciar a apresentação das categorias emergentes da pesquisa, alguns dados

referentes ao percurso precisam ser enfatizados. Foram utilizados como principal fonte de

dados primários os depoimentos dos quatorzes fãs do funk entrevistados, cinco MCs e um DJ

de funk, além de um reconhecido (localmente) ator residente na favela Aglomerado da Serra.

Compuseram, ainda, o cenário de análise as entrevistas realizadas com o educador

responsável pela gestão da “Casa do Hip Hop” do Taquaril, os cinco jovens da banda de rap

“Setor RAP” e oito adolescentes atendidos pelo “Projeto Providência”, além da participação

minha participação em eventos artísticos ligados ao movimento.

Há de se pontuar que, pelo fato de a pesquisa ter um caráter essencialmente indutivo,

as categorias emergiram ao longo dos processos de coleta e análise de dados. Assim, torna-se

essencial reforçar dois pontos. O primeiro deles é que a revisão da literatura, desenvolvida

ainda na fase de elaboração do projeto, contemplou pontos e autores referentes aos temas

consumo, cultura material e identidade cool, elementos que propiciaram articulação em

relação aos propósitos traçados pela pergunta e pelos objetivos da pesquisa. Porém, outras

questões emergiram no campo, as quais se tornaram essenciais para o entendimento do

fenômeno explorado pela pesquisa. Sendo assim, esse é o segundo ponto que é importante

assinalar, uma vez que precisamos lançar mão de autores que, a priori, não tínhamos

escolhido como referências para o desenvolvimento do estudo.

Para organizar a apresentação e discussão dos resultados, considerei seis categorias

que auxiliam na organização do texto. Fica evidente, no entanto, a interlocuções entre elas,

com a pretensão de compreender o fenômeno pesquisado:

1. Vivendo entre extremos: o funk, o tráfico e a cultura evangélica;

2. O funk como cultura construída pelos jovens de periferia;

3. As letras cantam a realidade do grupo;

4. O baile funk e as experiências de consumo de lazer e sociabilidade;

5. A indumentária funk à luz da cultura material;

6. O funk e a identidade cool.

Importante explicar, sobretudo, que optei por reproduzir no texto as citações tais como

foram ditas na íntegra, com erros de grafia e concordância ou com uso de gírias, por

considerar que, desta forma, estaria sendo fiel à realidade de meus entrevistados. Cabe deixar

101

claro também que não parti de nenhuma construção teórica dada a priori e produzida

externamente, e sim das interpretações dos dados oriundos do trabalho de campo. Minha

intenção é proporcionar ao leitor a construção de uma interpretação que contribua para a

ampliação do entendimento a respeito da sociedade em que vivem os informantes e sobre

como eles a vivem.

7.1 Vivendo entre extremos: o funk, o tráfico e a cultura evangélica

A primeira categoria de análise traz à baila algumas considerações contextuais do

ambiente vivenciado pelos jovens pesquisados. Tal como apresentado em outros trabalhos

envolvendo o contexto de consumidores de baixa renda (Castilhos, 2007; Pinto, 2013), a

realidade vivenciada por esses indivíduos é marcada pela violência em suas diversas

manifestações e pelo tráfico de drogas. Ainda que possa parecer secundária ou periférica a

menção a essas questões em um estudo atrelado ao consumo, não se pode deixar de

mencionar que eles compõem o lócus vivenciado pelos entrevistados em seu cotidiano.

Algumas vezes, essas situações são camufladas, em outras, silenciadas, porém, esses

elementos permeiam o discurso dos entrevistados.

Alguns dos entrevistados foram enfáticos ao relatar episódios nos quais as drogas e o

tráfico foram marcantes em situações vivenciadas por eles. Jéssica, uma das entrevistadas

desta pesquisa, por exemplo, relata alguns desses fatos.

“Os cara que organiza o baile lá na minha quebrada, que são do movimento (tráfico) e tal, faz o corre deles, ilegal, mas faz o corre deles pra ter a grana deles é os mesmo cara que tá botando grama no terrão que a gente pediu várias vezes a prefeitura pra pô, mano! Cê entender? É os cara que promoveu uma festa junina top que nunca tinha tido no meu morro, véi. É uma outra realidade. É ausência de Estado, é ausência de tudo.” (Jéssica, 20 anos)

É interessante notar na fala dessa entrevistada a presença do traficante como alguém

que contribui para a comunidade, que ajuda a resolver os problemas que seriam de

responsabilidade do Estado. Ou seja, os traficantes assumem o papel de benfeitores em locais

com inúmeros problemas de estrutura urbana nos quais o poder público se mostra ausente.

Constata-se, também, que os traficantes oferecem festas e bailes para a comunidade,

principalmente para os jovens – esses eventos são momentos oportunos, na visão de muitos

entrevistados, para que ocorra a venda de entorpecentes.

102

Um dos entrevistados falou abertamente sobre essa questão durante as entrevistas,

levantando uma série de questões envolvendo a situação das comunidades de baixa renda e

até mesmo o funk. “Hoje, existe uma lavagem de dinheiro atrás do funk, sabe?” [...] “É mais fácil você trabalhar um artista de funk hoje e você provar, talvez pra uma polícia, pra um governo que você tá ganhando dinheiro com aquele artista… não é ilícito né? Você não vai preso” [...] “Ou você cede pros cara, ou você aceita essa condição, ou você não toca, entendeu” . (identidade do entrevistado suprimida por proteção)

Esses três fragmentos ilustram bem essa questão. Esse entrevistado, que possui uma

visão crítica acerca do contexto do funk, consegue mostrar a relação existente entre o funk e o

tráfico. Não se pode deixar de mencionar que investir no funk pelos líderes do tráfico pode ser

uma forma atraente de “esquentar” os recursos originados do tráfico por meio de

investimentos em artista do funk que é da própria comunidade. Muitas vezes, o artista se vê

em uma posição de pouca opção quanto ao que é colocado pelo “sistema”: ou você aceita as

“regras do jogo” para tentar galgar alguma posição de sucesso ou você não tem vez no

mercado do funk.

No fragmento subsequente, o mesmo entrevistado faz uma análise mais ampla desse

contexto:

“Mas assim é o que eu falei no início, ostentação estourou muito porque veio de São Paulo e foi uma forma de maquear o crime, isso foi o pontapé. Então investiram muita grana na ostentação para falar, “agora eles esquecem o PCC, vão esquecer o nome e nós vamos investir nisso aqui grandemente”, para quando (um MC) falar “eu ganho 500 mil reais por mês” e o cara ser preso, por exemplo, eu sou o empresário dele, não os 500 mil que eu tenho aqui em casa é do show do MC. Então injetaram muito para aquilo ali ter uma resposta positiva.” (identidade do entrevistado suprimida por proteção)

Tendo em vista que o funk faz parte da cultura jovem e, como tal, precisa estar se

reinventando sempre com a introdução de novos “rótulos” e categorias, fica latente nesse

discurso que a emergência do funk ostentação – que esteve em moda entre os anos de 2014 a

2016 (Abdalla, 2014) – foi muito mais uma “estratégia” para driblar a polícia e a opinião

pública quanto à forma do crime se relacionar com esse movimento musical. Entretanto, o

mais importante a ser ressaltado nesse ponto da análise tem a ver com a relação entre o tráfico

e o consumo de drogas no dia a dia dos entrevistados.

[Entrevistado falando sobre a evolução do uso de drogas nos bailes funk]

103

“Era uma maconha que você via, nossa quando eu comecei até de um tempo para cá, mal, mal você via cocaína né. Hoje tem tudo, então assim, hoje você vai tem maconha, tem cocaína, tem o tal do lança perfume que está muito, tem o loló. Isso você vê um jovem com três tipos de droga na mão, no bolso, entendeu?”

“É liberado até pelo dono da casa, mas de uma forma velada, sei lá, lembro que ia numa casa de show você entrava no banheiro e tinha 15 pessoas cheirando,” “Hoje a gente tem as críticas que né você vai ao baile funk, hoje você tem o problema que tem muito menor, muito uso de droga, como qualquer outra coisa que tem juventude reunida.” (identidade do entrevistado suprimida por proteção)

Além disso, outros dois entrevistados apontaram a droga como subterfúgio para os

jovens encararem a dura realidade em que vivem.

“Aí você vê manos que cheiram (cocaína) mesmo, que bebem pra caralho mesmo, é uma forma de você tentar suportar a realidade que você vive.” “Porque é muito mais descarado e aí tem vários problemas que fazem com que ali vire uma bomba-relógio mesmo, porque por trás daquelas meninas e meninos que estão no funk tem problema familiar, tem falta de estrutura, então é muito mais fácil daquilo explodir ali do que em outro lugar. Você fazer um baile funk no Belvedere, igual tem, a probabilidade de aquilo dar errado é menor. Agora você joga um baile funk lá no morro das Pedras onde o menino e a menina crescem com a ausência do pai, ou até sem a mãe, criados pela avó, tem pouca formação, pouca instrução aquilo é gasolina com álcool, ali tá precisando só de alguém apertar o palito, qualquer coisa vira problema, dá briga, a menina engravida aí é mais uma que vai seguir o ciclo da família, enfim.” (identidades dos entrevistados suprimida por proteção)

Os entrevistados citados acima reforçam a perspectiva relativa ao uso das drogas pela

juventude de forma geral. Rafael, entretanto, apresenta em seu discurso indícios de que a

pobreza é a causa do tráfico.

“esse padrão de querer se vestir, padrão do consumismo, da ostentação, eu acho que as pessoas acabam perdendo a noção, acabam indo para outros caminhos.” (Rafael, 26 anos)

Esse ambiente com presença marcante das drogas, do tráfico e da violência, é terreno

fértil para o crescimento das Igrejas Pentecostais. As famílias, principalmente as mães,

parecem enxergar no ambiente religioso um potencial “refúgio” para os seus filhos ou uma

espécie de proteção para as “más tendências” dos jovens. Essa situação apareceu de forma

discreta, mas importante nas entrevistas, e dá origem ao que podemos denominar de cultura

evangélica. É interessante notar que especialmente ao falarmos de moda, de roupas, a cultura

evangélica apareceu em um discurso de repúdio ao funk. Os indícios, pelos tons das

104

conversas, foram de uma tentativa de proteção, mesmo que inconsciente, dos filhos pelas

famílias.

“Mas na maioria das vezes elas se vestem mais por questão de identificação e outra coisa você chega em uma loja na quebrada, você não tem burca lá não, você tem é um shortinho, você tem isso pra consumir. Então às vezes as pessoas exploram um mercado, então você não tem um saião lá, quem veste saião na comunidade é evangélica, eles vão falar que você é evangélica.” (MC Klebinho, 34 anos)

No discurso de MC Klebinho é possível perceber uma clara dicotomia entre o que, de

um lado, é considerado “cultura funk” (baseado em roupas curtas para as meninas e roupas

mais despojadas para os meninos) e, de outro, o que é considerado “cultura evangélica”, na

qual se tem como referência roupas compridas, mais fechadas, bem representadas pelo saião.

Essa constatação parece estar alinhada com a ideia de Miller (2013), um dos defensores da

cultura material, ao afirmar que “as roupas estão entre os nossos pertences mais pessoais. Elas

constituem o principal intermediário entre nossa percepção de nossos corpos e nossa

percepção do mundo exterior” (p. 38).

Além dessa dicotomia marcante, foi possível notar também preconceito entre os tipos

de seguidores da “cultura evangélica” e da cultura funk”, como pode ser visto nos fragmentos

seguintes.

[Entrevistada falando sobre a resistência dos amigos ao funk] “É por conta de um preconceito deles por conta da maioria desses amigos antigos serem da Igreja, são evangélicos. Na verdade por conta de um conceito filosófico deles (os evangélicos), que eu não entendo muito, que eles fazem essa divisão entre movimentos do mundo e movimentos da Igreja. Então, o funk, além de ser, para eles, ser um movimento do mundo, é um movimento vulgar, digamos assim. É um movimento que faz repulsa a eles.” [...] “Nas comunidades agora tem uma onda evangélica muito forte e ela é extremamente resistentes aos bailes funk”. (Lana, 25 anos) (Entrevistadas falando sobre o impedimento para aderir à moda do piercing] “Minha mãe é evangélica, é louca surtada mesmo. Ela já falava logo de cara que ia arrancar e eu não duvidava não.” [...] “Minha mãe tava meio grilada (com a frequência da filha ao baile funk). Minha mãe é evangélica e tal”, Ananda (22 anos), explicando porque diminuiu a frequência aos bailes funk na adolecência. (Ananda, 22 anos), “Eu vi o funk emergindo, porém, com muito mais preconceito que tem hoje em dia em relação ao funk, inclusive de mim mesma, porque eu vim de uma família cristã, então, eu tinha total resistência ao funk”. (Lana, 25 anos)

105

Apesar das questões relativas à religiosidade não serem foco deste trabalho, considerei

relevante mostrar a emergência, pois o MC Klebinho foi enfático em pontuar como a roupa

pode mostrar a qual grupo aquele pessoa pertence. A presença das igrejas pentecostais nas

comunidades de baixa renda é fenômeno conhecido e tema, inclusive, de um grande número

de trabalhos acadêmicos nas diversas áreas de conhecimento.

Na próxima seção apresento uma das mais importantes categorias emergentes da

análise dos dados, que refere-se ao funk como uma cultura orgânica do jovem de periferia.

7.2 O funk como cultura construída pelos jovens de periferia

Essa é, sem dúvida, a categoria que explica a vida longa do funk. Funk não é uma

escolha musical, é o barulho da vida na periferia! A sensação que eu tive escutando esses

jovens de periferia é que o funk é uma característica intrínseca à vida cotidiana dos lugares

onde moram. É uma música, para alguns um estilo de vida, que se confunde aos sons naturais

das esquinas, das casas, da vida em comunidade. Ou seja, ainda que não seja uma opção de

todos, ouve-se funk em todo lugar, seja em casa, na rua ou no trabalho. É tão presente que

deixa a impressão que o jovem pobre de hoje nasceu embalado por esse gênero musical.

“Eu lembro muito dos carros, lá na minha casa os vizinho lavando carro e botavam funk, na hora da faxina também, e na escola.” (Patrícia, 24 anos) “Eu sempre morei na periferia, então você escuta (funk) meio que involuntariamente, é? Então, aonde você vai tá tocando, sua vizinha tá escutando, os carros que passam na sua rua tão escutando e aí, como você convive com as pessoas da periferia, eu passei a ter um contato maior com o funk nesse momento. E aí as festas que você vai tá tocando, todo mundo na sua escola tá escutando, tá falando dele e aí você vai pegando gosto pela coisa.” (Jennifer, 25 anos) “Os vizinhos, todo mundo ouve funk” (Jonathan, 22 anos). “Involuntariamente, quando você tá na periferia você vai tá em contato com a cultura da periférica. Então, o funk tava lá, do mesmo jeito que o picho tava também.” (Ananda, 22 anos).

Todos os fragmentos de discursos dos entrevistados parecem reforçar a ideia de que o

consumo é uma forma de inserção do indivíduo na sociedade, uma forma de apresentação dele

ao mundo (Barbosa & Campbell, 2006; Douglas & Isherwood, 2013). O funk, nesse caso,

representa esse “elo”, uma vez que é por ele que o indivíduo é socializado e apresentado ao

106

mundo. Além disso, Desjeux (2011), para quem o consumo é uma importante “lente” para

entender a vida cotidiana, argumenta que as construções identitárias, as questões políticas e os

modos de vida fornecem subsídios interessantes para se identificar estratificações sociais e

elementos da globalização. Considerando esses aspectos, MCCracken (2003) apresenta o

consumo como sendo “moldado, dirigido e constrangido em todos os seus aspectos por

considerações culturais” (p. 11).

“No meu colégio praticamente todo mundo ouvia funk.” (Jennifer, 25 anos) “Ah mano, (eu) já ouvia funk desde pequeno já. Os cara colocava aquele sonzão lá na rua e eu começei a gostar.” (Thiago, 15 anos) “Nas favelas toca muito, entendeu? A gente acaba ouvindo, aprendendo, gostando.” (Isabelle, 31 anos). “Como eu moro na favela, tinha muito baile.” (Camila, 21 anos)

No tocante a esses aspectos, cabe desenvolver dois argumentos importantes. Para o

primeiro deles, vou me valer de Rocha (2002) para defender o funk como cultura construída

na periferia. Seus símbolos são nada mais que o estilo de vida do jovem de periferia. O autor

apresenta o consumo, em primeiro lugar, como um sistema de significação e a principal

necessidade social que supre é a necessidade simbólica. Em segundo, o consumo é como um

código e, por meio dele, são traduzidas muitas das nossas relações sociais e elaboradas muitas

das nossas experiências de subjetividade. Em terceiro, esse código, ao traduzir sentimentos e

relações sociais, forma um sistema de classificação de coisas, pessoas, produtos e serviços,

indivíduos e grupos.

O outro argumento está relacionado ao conceito que extrapola o fenômeno analisado

na tese, o qual tem a ver com a socialização para o consumo. Esse consumo ganhou

notoriedade na literatura de consumo em 1974, a partir da publicação do artigo intitulado

“Consumer Socialization”, do pesquisador Scott Ward. Desde então, o termo “socialização do

consumidor” passou a ser entendido como o processo por meio do qual indivíduos adquirem

habilidades, conhecimentos e atitudes relevantes para sua atuação como consumidores no

mercado.

Algo importante a ser considerado nos estudos de socialização para o consumo tem a

ver com a influência dos principais agentes sobre as crianças, incluindo a mídia, a escola e

outros grupos sociais, ressaltando, neste contexto, os padrões familiares, tal como enfatizado

por Ward (1974). É aí que parece fazer sentido o fato de o funk ser o elemento socializante

107

para o consumo no contexto das comunidades de baixa renda, uma vez que é por meio dele

que se cria um estilo de vida, uma forma de ver o mundo, uma maneira de se relacionar entre

os jovens e com os mais velhos.

“Eu acho que o funk vira um estilo de vida.” (Patrícia, 24 anos) “Eu acho legal porque cria essa identidade, porque são tribos, né? A gente se identifica com certos tipos de tribo.” (Patrícia, 24 anos)

Tendo como base referencial Bourdieu (2007) e concebendo o gosto musical como um

capital cultural, considero que os fragmentos de entrevistas que apresento a seguir permitem-

nos entender o impacto da vizinhança no gosto musical dos jovens, deixando evidente que o

gosto é aprendido, moldado pela vivência.

“[...] eu acho que é uma bagagem de vivência também, né? Quem vive na periferia acaba desde cedo tendo contato com esse tipo de ritmo.” (Rafael, 26 anos). “Nas favelas tocava muito, entendeu? A gente acaba ouvindo, aprendendo, gostando.” (Isabelle, 31 anos). “Ah mano, (eu) já ouvia funk desde pequeno já. Os cara colocava aquele sonzão lá na rua e eu comecei a gostar.” (Thiago, 15 anos) “Eu conheci o funk por uma vivência de família, uma vivencia de bairro, então, eu sempre escutei, mas não era meu ritmo predileto.” (Rafael, 26 anos) “Quando você está na periferia você vai estar em contato com a cultura da periferia. Então o funk tava lá, do mesmo jeito que o picho tava lá.” (Ananda, 22 anos)

Resgatando o que foi mencionado anteriormente no tocante à socialização para o

consumo, os fragmentos explicitam essa questão. Percebe-se, nos discursos dos entrevistados,

as seguintes expressões: “bagagem de vivência”, “tendo contato”, “sempre escutei”,

“aprendendo, gostando”, “o funk tava lá” – o que reforça, sobretudo, a noção de socialização

para o consumo.

Outra questão que também merece ser lembrada trata-se da questão do

compartilhamento, tão presente nos diversos relacionamentos nas comunidades de baixa

renda. Tal como demonstrado nos trabalhos de Castilhos (2007), Barros (2006) e Pinto

(2013), nesse contexto é comum o compartilhamento de objetos e áreas comuns entre as

casas, como as lajes, os becos e os quintais. Isso parece se configurar em um ambiente

propício para as questões discutidas anteriormente.

108

Parece, entretanto, ser uma música do jovem. Os entrevistados, em alguns momentos,

deram pistas de que os mais velhos têm outro gosto musical.

“Minha mãe gosta de samba, meu pai gosta muito de samba, MPB, e meus irmãos gostam de funk.” (Rafael, 26 anos) “Mais nova eu curti muito (o funk).” (Isabelle, 31 anos)

Há, nesses fragmentos, alguma contradição, pois, sendo a música tão presente na vida

da periferia, escutada e aprendida por todos, parece estranho cair no gosto somente dos

jovens. De toda forma, isso pode ser explicado pela incidência maior de jovens nas ruas do

dia a dia desses lugares. Não se pode negar, portanto, o caráter de algo ligado à cultura jovem

nos diversos movimentos do funk. Isso pode ser explicado pelo fato de que muitos dos

indivíduos mais velhos foram socializados em outros contextos, em que a disseminação de

músicas e filmes era restrita à televisão e aos rádios, diferente do momento atual em que o

acesso aos conteúdos é muito mais facilitado por diversos recursos tecnológicos e

comunicacionais.

Um dos entrevistados, MC Klebinho, mostrou-se capaz de fazer uma leitura clara do

lugar do funk na cultura de periferia. Partindo do pressuposto de que o funk, enquanto estilo

musical, é um bem que está sendo consumido, a afirmação de MC Klebinho pode ser lida à

luz de Barbosa e Campbell (2006), que apresentam o consumo como uma estratégia utilizada

no dia a dia pelos diferentes grupos sociais para definir diversas situações em termos de

direitos, estilos de vida e identidades e, também, na perspectiva de Thompson e Hirschman

(1995), para os quais o consumo é um imbricado sistema de valores, sentimentos e

pensamentos que são construídos e negociados na interpretação da vida social, ou de

McCracken (2012), quando afirma que os bens possibilitam as pessoas tornarem públicos

seus significados. Ao afirmar, no fragmento subsequente, que o funk tem a ver com a busca

pelo estilo e com a identificação com o grupo social, o MC reforça as considerações

explicitadas dos autores ora citados.

“Buscam o estilo também né? Uma identificação com um grupo social. Porque, querendo ou não, se a gente é criado sempre vendo sua mãe, seu pai, seus irmãos indo pra igreja, você pode até ser a ovelha negra da turma, né, mas você vai acabar fazendo esse mesmo caminho. Você vê todo mundo da sua família indo pra universidade, seu pai todo dia lendo um livro, você vai acabar repetindo alguns hábitos. Talvez você aprimore ou retroaja um tiquinho, mas você acaba bebendo dessas fontes. E a maioria dos jovens que é de comunidade, que é a maioria da população, a única coisa que sobra pra essa galera, eu costumo dizer, é futebol e igreja, boteco e baile funk. Quadripé, vamos dizer assim, pra manter em pé. Podia até ser um tripé. Tem mais

109

coisas aí que a gente pode elencar, mas tem, são essas coisas assim. O baile funk é a alegria na quebrada para os mais novos, que são a maioria. Hoje até está mudando um pouco porque as pessoas estão tendo menos filhos, não sei o que. Então os meninos estão cada vez mais velhos. Então assim, mas ainda é assim. Quem não está no baile funk vai pra igreja. Quem não vai pra igreja vai pro boteco. E quem não está no boteco está dentro do futebol. Então são essas quatro coisas. É alienante? Pode ser. Quando a pessoa só consegue viver nisso. Não tem a oportunidade de viver em outras coisas.” (MC Klebinho, 34 anos)

Esse fragmento do discurso do MC Klebinho parece trazer à tona algumas discussões

que estão interligadas ao fenômeno do funk. Em primeiro lugar, percebe-se uma

argumentação que está alinhada com as postulações de Bourdieu (2007), ao afirmar o poder

da estrutura familiar e do contexto social na formação do indivíduo. Quando MC Klebinho

diz que o indivíduo vai para o funk porque não tem outra escolha, ele acaba reforçando que

são poucas as possibilidades de romper com a estrutura de pobreza, miséria e falta de

oportunidades de viver outra realidade. O baile funk parece ser a grande opção, uma vez que

nem todos “se encontram” nas igrejas, ou têm talento para o futebol. O boteco, na fala do MC,

está ligado ao consumo de álcool e drogas, que também, de certa forma, está vinculado ao

funk.

Alguns entrevistados, cujos fragmentos de entrevistas transcrevo abaixo, assumiram o

papel de dar vida ao conceito de consumo trazido por Douglas e Isherwood (2013), para os

quais o consumo é “algo altivo e constante em nosso cotidiano e nele desempenha um papel

central como estruturador de valores que constroem identidades, regulam relações sociais,

definem mapas culturais” (p. 8).

“Com o funk a gente aprende muito a realidade do dia a dia da periferia e o dia a dia da periferia é muita gíria.” (Jonathan, 22 anos) “Na quebrada os cara liga um sonzão altão e a galera só chega.” (Jéssica, 20 anos)

As falas dos dois entrevistados reforçam a ideia de que o funk é orgânico, visto que ele

se adere ao dia a dia dos membros das comunidades de baixa renda por se valer da linguagem,

das gírias, de retratar a vida deles em suas letras. Além disso, não se pode deixar de

mencionar que o ato de “ligar o sonzão” é motivo para as pessoas se aglomerarem.

[Entrevistados falando sobre “curtir funk”] “Minha mãe gosta de samba, meu pai muito de samba, de MPB, e meus irmãos gostam de funk.” (Rafael, 26 anos)

110

“Tem muito haver com aceitação, com você ser aceito pelo grupo, dentro e fora da escola.” (Natália, 21 anos) “O funk para mim é uma riqueza genuína do Brasil e é um lugar onde boa parte dos adolescentes e dos jovens conseguem se expressar e comunicar aquilo que ele tá vivendo ali. Talvez depois ele vá falar, “nossa, aqui eu exagerei”, mas é o lugar onde ele se sente liberto. Falo isso pensando nas duas meninas que estão aqui, elas são fãs de baile funk e elas estão longe de tudo que é tipo de estrutura que vai dizer pra elas não fazer e elas vão fazer ali, o lugar onde elas podem se libertar, onde elas se identificam naquele tipo de letra, por mais escrota que aquela letra seja, escrota no sentido de ser direta e comunica com ela de forma que seus pais e seus pares muitas vezes não conseguem se comunicar.” (MC Klebinho, 34 anos)

A fala do MC Klebinho expõe alguns elementos interessantes que ensejam uma

discussão sobre o papel do funk no cotidiano dos jovens. Quando ele enfatiza que o funk é o

lugar onde os jovens, no caso de baixa renda, conseguem se expressar, de se sentir parte do

contexto, ele acaba por dar ao funk um papel que vai além das letras. Isso traz para o debate o

conteúdo das letras que cantam a realidade do grupo, tema do próximo tópico.

7.3 As letras cantam a realidade do grupo

O grupo entrevistado é formado por jovens de classe média baixa e classe baixa,

alguns frequentam o Ensino Superior, porém são filhos de pais com baixa formação

acadêmica. Desses pais, poucos possuem o ensino médio completo, a maioria apenas concluiu

o Ensino Fundamental. Muitos desses jovens moram também com membros da família

estendida, como avós e tios, quase todos em comunidades de baixa renda, alguns em bairros

do entorno destas comunidades, bem próximos a elas.

Esse grupo, entretanto, é privilegiado. A maior parte dos entrevistados participa de

movimentos sociais, então, de certa forma, tem visão político-cultural privilegiada em relação

ao entorno de suas moradias. MC Jefinho e MC Klebinho também têm visões diferenciadas

sobre a cultura de periferia, sendo o último capaz de fazer uma análise bem apurada do

ambiente. Tomar emprestado os olhos desse grupo é entender a realidade em que vivem, sem

nenhuma oportunidade de desenvolvimento pessoal.

É lugar comum pensar no consumo como fator de alienação na vida desses jovens de

baixa renda. Entretanto, para o grupo, a alienação está na própria condição de distância entre

as comunidades de baixa renda e a instrução, formal ou cultura.

“O que é alienante não é nem o baile, é a vida da pessoa, as oportunidades que ela tem.” (MC Klebinho, 34 anos)

111

Tem sido cada vez mais comum o repúdio social e midiático às letras de funk. As

mídias sociais têm sido diariamente utilizadas para protestos contra MCs e suas supostas

bandeiras de alusão à violência, ao estupro e aos diversos tipos de preconceito. Escutar dos

jovens que as letras cantam a vida deles, que conversam com eles e, por isso, os encantam é

um “soco no estômago”.

“Esse assunto de empoderamento não é da quebrada, não chega (quem é empoderado é o pessoal da quebrada que chegou na pista – completa Matheus, o entrevistador). Quer dizer que eu posso usar meu cabelo do jeito que eu quiser. Nó! Só força, Véi! Só que aí tem as consequências de você usar seu cabelo como cê quiser.” (Jéssica, 20 anos) “Por isso que me encanta muito. Porque vai de encontro com minha realidade.” (Jonathan, 22 anos) “Eu interpreto que eles foram livres na letra deles e eles fala aqui nós mata, aqui nós faz, é a realidade, é uma realidade. Assim, eles não tão impondo isso pra ninguém, tipo reproduza a putaria, reproduza o tiro no muleque. Eles não tão falando isso, eles tão falando assim: aqui só tá tendo isso por enquanto, fraga. Tá pra nascer um dia que as letras de funk, letras de rap que nasce no morro vai falar assim: aqui rola poesia, aqui rola um rap pela órdi, aqui você não precisa ostentar, aqui você não precisa ter do melhor para se sentir incluso. Na quebrada a gente não é aceito entre si mesmo.” (Jéssica, 20 anos)

Os discursos dos entrevistados encontram eco na discussão empreendida por Dayrell

(2002), quando ele aponta que o mundo da cultura (no caso da pesquisa desta tese, o

movimento funk) pode ser considerado tanto como um espaço privilegiado tanto de

representações e símbolos, mas também de rituais. Esse espaço no qual os jovens atuam como

protagonistas, visto que estão longe dos olhares de pais, professores e patrões, contribui para

demarcar uma identidade juvenil que acaba por construir um olhar sobre si mesmo e sobre o

mundo.

“Eu lembro que as músicas eram bem vívidas assim, com o que estava acontecendo no momento específico. Era algo marcante para a gente que tava ali, que vivia esse cotidiano, enfim.” (Ananda, 22 anos – falando de uma letra de música que remete a batida policial com desfecho de morte). “Falo isso pensando nas duas meninas que estão aqui, elas são fãs de baile funk e elas estão longe de tudo que é tipo de estrutura que vai dizer pra elas não fazer e elas vão fazer ali, o lugar onde elas podem se libertar, onde elas se identificam naquele tipo de letra, por mais escrota que aquela letra seja, escrota no sentido de ser direta e comunica com ela de forma que seus pais e seus pares muitas vezes não conseguem se comunicar.” (MC Klebinho, 34 anos)

Apesar disso, há de se destacar que as letras incomodam alguns, especialmente as

pessoas que, de alguma forma, se veem retratadas nestas letras.

112

“A maneira como a mulher é exposta, o machismo elevado, essas coisas me incomoda muito.” (Isabelle, 31 anos) “As letras são machistas, homofóbicas, tem algumas letras até racistas. Esse é o ponto mais pesado.” (Jonathan, 22 anos)

Interessante notar que os jovens reconhecem os MCs como formadores de opinião,

como pessoas com o papel social de trazer à tona as mazelas vividas por eles.

“Atualmente eu acho que ele (o MC) é o detentor dos signos, tanto o visual, tanto o de expressão. Tanto é que hoje os MCs são muito efêmeros, atualmente o que está no auge chama MC Lan. Mas daqui dois meses você não vai ouvir falar dele mais, porque ele já não vai carregar mais o signo do momento. Então às vezes ele vai ganhar dinheiro e vai fiar engessado em algumas ideias, então essa galera que curte funk hoje elas são muito do dia.” [...] “Como formadores de opinião, como pessoas que carregavam de certa forma uma responsabilidade sem pegar essa responsabilidade para si, mas de certa forma as pessoas que eram envolvidas com a cultura hip hop ou com outras culturas em comunidades, às vezes são vistas como melhores, pessoas sábias, ‘vamos perguntar fulano, fulano canta rap, aquele cara ali faz show, vamos perguntar’.” (MC Klebinho, 34 anos)

Explicitamente, percebe-se uma preferência pelos cantores que saíram da “quebrada” e

que “cantam a quebrada”. Os jovens não se sentem atraídos pelas músicas comerciais. Pelo

contrário, preferem, na maioria das vezes, os cantores que possuem algum tipo de relação com

a realidade vivenciada por ele.

“Hoje por exemplo, os MCs da Som Livre, Nego do Borel, a Anitta, a Ludmila, a galera da quebrada não escuta. Se você colocar eles vão reclamar, que é cafona, que fala de amor, esconde aquilo que os meninos querem ouvir.” (MC Klebinho, 34 anos)

Holt (1998) ressalta que, nas culturas pós-modernas, tem crescido a dificuldade de

inferir status por meio dos bens consumidos, por estarem sendo demolidas as barreiras da

hierarquia de consumo da classe alta para a classe baixa. Nas sociedades capitalistas

avançadas, a objetificação do capital cultural tem sido um mecanismo fraco de exclusão

social. A distinção, nessas sociedades, de acordo com a pesquisa de Holt (1998), tem se dado

pelas práticas, pela forma do grupo se dar com os objetos. Segundo o autor, as classes

populares aplicam o sistema classificatório usado na vida cotidiana para o contexto das artes,

preferindo, por exemplo, filmes e programas de TV que pareçam reais e músicas que

conversem diretamente com sua vida cotidiana. Essa leitura, proposta por Holt (1998), é, por

si só, capaz de explicar o sucesso das letras de funk.

113

Outro ponto que merece atenção nesta análise de dados é a presença das drogas e do

tráfico na vida cotidiana desses jovens. As letras cantam o tráfico, que parece se misturar ao

dia a dia dessas comunidades.

O caráter simbólico do consumo do funk, portanto, reflete uma forma de os jovens

extravasarem seus sentimentos, uma tentativa de libertação das estruturas vigentes às quais

eles estão submetidos em sua vida cotidiana. Nesse caso, trazendo a análise conduzida por

Rocha e Pereira (2009) para os gadgets no contexto dos jovens, o funk assume um papel

importante para a compreensão de aspectos centrais da juventude em comunidades pobres,

influenciando a maneira com que os jovens consomem produtos e ideias.

Dito de outra forma, o papel das letras de funk de tornar pública a realidade da

periferia merece destaque. As letras cantam o que acontece dentro das casas, nos becos, nas

quadras e nos bailes. Elas não parecem objetivar a defesa de um comportamento, apenas

promover empatia. A letra “conversa” com o jovem. Tal como enfatizado por Dayrell (2002),

para esses jovens, a música que cantam e os bailes que frequentam podem ser vistos como

uma forma de afirmação pessoal, assim como um reforço de sua auto-estima.

Essa percepção da manifestação do capital cultural por meio do consumo musical, que

resulta na construção de um estilo de vida que expressa e reproduz o habitus, que tem como

alicerce Bourdieu (2007), está claramente exposta nos trechos a seguir:

“[...] o funk relata a vivência da periferia, toda a dificuldade, como é o dia a dia da periferia” [...] “com o funk a gente aprende muito a realidade do dia a dia da periferia e o dia a dia da periferia é muita gíria.” (Jonathan, 22 anos) “Eu vejo no funk uma tentativa de escrachar mesmo as coisas que acontecem na vida real, enquanto na zona sul tenta-se omitir.” (Lana, 25 anos) “O favelado mata a cobra e mostra o pau.” (Jéssica, 20 anos)

Outro ponto a ser considerado, exposto pelo fragmento seguinte, refere-se ao papel da

música de promover um encontro entre iguais. Trata-se de um signo percebido e valorizado.

[Entrevistado falando sobre a identificação com o igual] “O menino com cara de nerd lá, conversando coisa de Universidade, elas vão falar ‘nó, que menino chato né, esse menino não canta nenhuma música do MC Lan, pelo amor de Deus, tchau’.” (MC Klebinho, 34 anos)

Eu não poderia, entretanto, deixar de chamar a atenção para certa mágoa com a

avaliação que o senso comum faz das letras de funk. O fragmento a seguir nos permite

114

compreender que favela não é poesia, então, não há como esperar poesia das músicas lá

construídas.

“Eles (os MCs) foram livres na letra deles. Eles fala “aqui nós mata”, “aqui nós faz”, é a realidade, fraga. E eles não tão impondo isso pra ninguém, tipo reproduza a putaria, o tiro no muleque. Eles tão falando assim ó: aqui nós só tá tendo isso por enquanto. Tá pra nascer um dia que as letras de funk e que as letras de rap que nasce no morro vai falar assim: aqui rola poesia, aqui rola um rap pela órdi, aqui cê num precisa ostentá, aqui cê num precisa tê do melhor pra você se sentir incluso, aqui cê vai ser aceito do jeito que cê é. Na quebrada a gente não é aceito entre si mesmo.” (Jéssica, 20 anos)

As passagens do discurso de Jéssica trazem vida à teoria proposta por Bourdieu

(2007), a qual considera que cada campo tem como valor predominante um tipo de capital.

Assim, o que tem valor em um campo pode não significar nada em outro. Para atuar em

determinado campo, o agente (o indivíduo que age) precisa dispor de determinado capital

valorizado naquele campo. A posse desse capital permite reconhecer o que está sendo

transmitido como óbvio e que passaria despercebido para outros que não têm essa categoria

de percepção. Acredito que essa seja a base da desavença entre os moradores da periferia e as

classes sociais mais elevadas, no que tange ao gosto musical. Dessa forma, se o funk causa

estranhamento em algum grupo social, provavelmente é porque esse grupo social não detém

os códigos para vivê-lo (Bourdieu, 2007).

Um de meus entrevistados alçou o funk ao patamar de transformador da vida de jovens

pobres. Nesse sentido, para esse rapaz, o consumo do gênero musical o possibilitou enxergar

um futuro profissional com essa arte, como MC, retirando-o do provável patamar de (mais

um) trabalhador com baixa qualificação. Essa entrevista deu vida ao conceito de Askegaaard e

Linnet (2011), para quem o consumo permeia o relacionamento entre a sociedade e o

indivíduo, seja na forma de classificação social e/ou sistema de comunicação de valores, no

processo de formação de identidades, rituais e nos processos de comunicação de

relacionamentos entre os indivíduos e o Estado, na busca por experiência existencialmente

satisfatória. Os fragmentos a seguir têm o objetivo de demonstrar essa nuance.

“O funk é a minha vida. É tudo né? É tudo o que eu conquistei, tudo o que eu fiz. É até emocionante.” [...] “Mas o funk é surpreendente assim ele leva um menino da comunidade a virar um cara super famoso.” [...] “Isso! Eu não consegui achar a palavra, mas eu vi uma cortina, que é o seguinte, tem uma cortina na sua frente eu digo para os artistas de funk. Uma hora quando ela se abrir imagina o teatro, vai se abri vai ter ninguém ou vai se abri e não vai ter espaço para o tanto de gente que

115

estará te esperando, entendeu? É uma surpresa. O funk é uma coisa que assim, é o que a gente está falando. Pegou um Nego do Borel, um cara que andava descalço na favela e fez um astro hoje que para mim ele é um super artista, hoje né. Já tive minhas críticas dele, mas assim se tornou um artista grande.” (MC Jefinho, 36 anos)

Os trechos acima nos mostram de maneira muito clara a oportunidade de empreender

que alguns jovens enxergam no funk. A arte é, ao mesmo tempo, um sonho e uma das poucas

possibilidades de um futuro profissional de sucesso para os jovens de baixa renda. Alguns

deles investem seu tempo na tentativa de se tornarem MCs com alguma proeminência, alguns

poucos conseguem. Esses poucos tornam-se exemplo e alimentam o sonho do grupo.

Uma observação de outra jovem entrevistada ajudou-me a confirmar esse ponto. Essa

jovem chega a afirmar que “ultimamente as pessoas têm ganho a vida com o funk” (Jennifer,

25 anos). Retornando ao que foi dito anteriormente, não sobram muitas possibilidades para

esse jovem ascender financeiramente: ou se é jogador de futebol ou torna-se astro da música.

Devido ao contexto do qual faz parte, teria sentido apenas ser astro do funk, o que torna a

“profissão” algo possível para eles. É importante atentar para o fato do investimento

financeiro na carreira de MC ser baixo, pois os arranjos musicais são elaborados usando

basicamente a voz, o que torna a possibilidade ainda mais próxima.

Essa constatação parece remeter à ideia de que o funk é um estilo musical menos

elaborado, com poucos arranjos e “fácil” de ser implementado por qualquer iniciante na

música. Em um contexto de carência material, é interessante ressaltar que o funk encontrou

campo fértil entre os jovens pobres com poucos recursos para arcar com produções mais

elaboradas.

“Eu acho o seguinte, o funk sempre foi da periferia, então é uma galera muito pobre, sempre foi de pouco arranjo.” (Dj Joseph, 57 anos, protagonista no funk nacional desde a década de 70).

Considerando o funk a preferência musical do jovem de periferia, que remete à alegria

e é opção de socialização, fica mais fácil entender que os bailes funk acabam sendo a principal

opção de lazer desses jovens, o que motivou a criação da próxima categoria de análise.

7.4 O baile funk e as experiências de consumo de lazer e sociabilidade

Para iniciar essa seção, torna-se importante lançar mão do conceito da noção

experiencial que passou a fazer parte do consumo com a publicação do artigo “The

116

Experiential Aspects of Consumption: Consumer fantasies, feelings, and fun”. Nesse paper,

Holbrook e Hirschman (1982) traziam para a comunidade de marketing a “visão

experiencial”, na qual estavam presente um fluxo de fantasias (sonhos, imaginação, desejos

inconscientes), sentimentos (emoções, tais como amor, ódio, raiva, inveja, divertimento) e

diversão (prazer hedônico derivado de atividades divertidas, alegres e prazerosas) associado

ao consumo. Nesse sentido, uma das categorias emergentes contemplava justamente todos

esses elementos, conforme será discutido a seguir.

Em um contexto de uma comunidade pobre com todas as suas carências econômicas e

com a ausência do Estado para prover os indivíduos de opções de entretenimento, não se pode

esquecer de que existe espaço para a construção de significados culturais e sociais atrelados às

experiências de consumo de lazer e sociabilidade em bailes funk. Nesse ambiente, tal como

fica expresso nos fragmentos a seguir, fica claro que é o lócus onde os jovens se encontram,

dançam, bebem, namoram, enfim, consomem diversas experiências que servem para compor

um estilo de vida que os fazem pertencentes de uma sociedade de consumo, ainda que não de

uma forma tradicional descrita nos livros-textos sobre o tema.

“Eu acho que é um espaço de diversão, porque nós temos uma carência de espaços de lazer, principalmente nas comunidades, então eu acho incrível (o baile).” (Lana, 25 anos) “O que rola na quebrada e o que atrai os muleque, as mina e tal é o baile funk. É o único meio de diversão que fala de uma realidade deles e que eles não se sentem excluídos nas letras, porque são imensamente contemplados.” (Jéssica, 20 anos) “No meu bairro não tem nenhum lugar de lazer, nenhum, nenhum. O baile funk é o único espaço que você vai se sentir à vontade e o único espaço que você vai para dançar, para encontrar com seus amigos.” (Natália, 21 anos)

Há de se ressaltar que vários jovens entendem o baile funk como o “momento” de suas

vidas, como uma das poucas opções de lazer que possuem. Dessa forma, o baile funk se

constitui como um lócus único para a socialização e a constituição de grupos de convivência.

“Os bailes são o momento que as pessoas vão para sair um pouco da loucura, né, do role, da rotina.” (Patrícia, 24 anos)

O discurso da entrevistada Patrícia traz à baila a noção de que o baile funk é o

momento em que os jovens se “desligam” da vida cotidiana e da “loucura” que a realidade

parece oferecer para eles. Isso remete à ideia defendida por Campbell (2001), quando

apresenta o conceito de hedonismo moderno autônomo e imaginativo tão presente na

117

sociedade atual, que acaba por ser um dos pilares da sociedade de consumo. Para esse autor,

os indivíduos, no afã de fazer parte de uma sociedade que estimula cada vez mais o

hedonismo, constroem imagens mentais para serem consumidas pelo prazer que elas

proporcionam como forma de devanear ou fantasiar. Dito de outra forma, no contexto da

pesquisa, os jovens buscam, no baile funk, por meio de uma estimulação sensorial e

emocional, criar um mundo de fantasia, um escape, uma forma de abstrair da realidade difícil

e, muitas vezes, calcada na violência e na privação.

Essa visão dos jovens talvez seja fruto de uma construção simbólica que parece

permear muitos dos processos presentes na sociedade de consumo atual. Ou seja, essa visão

também parece ter algum tipo de relação com a discussão empreendida por Lipovetsky e

Serroy (2015) ao buscar enfatizar o alinhamento entre experiências e cultura do consumo.

Para eles, qualquer objeto ou até mesmo um local, por mais simples que possam parecer,

mobilizam o imaginário do consumidor, que busca, cada vez mais, emoções e prazer.

“Eu ia pra me divertir, pra dançar, pra namorar.” (Isabelle, 31 anos) (eu vou ao baile) “pra dançar, encontrar amigos, beber, descontrair.” (Jonathan, 22 anos) “Meu objetivo (no baile) é curtir mesmo, é dançar mesmo, é beijar, essas coisas.” (Ananda, 22 anos) “O importante é eu tá ali curtindo o momento.” (João Vítor, 23 anos).

Percebe-se, nos fragmentos anteriores, a presença de todos os elementos

característicos da noção experiencial do consumo atrelados aos significados culturais e sociais

vinculados a esses momentos. Isso fica evidente na utilização dos verbos que permeiam os

discursos: divertir, dançar, namorar, encontrar amigos, curtir, beber, descontrair, beijar, todos

eles indicando ação, movimento, algo que é fundamental na vida do jovem e que se faz tão

presente no baile funk.

“Eu vou (no baile) por diversão mesmo. O ambiente me agrada. O ambiente do funk, o ambiente do morro. É um ambiente que eu me sinto bem.” (Rafael, 26 anos)

No último fragmento do discurso, é possível notar a relação de autenticidade que se

constrói com o baile funk. Na fala do jovem, fica explícita a noção de que aquele ambiente faz

parte do seu dia a dia, o que contribui para sua sensação de bem-estar e de pertencimento,

algo que certamente não se obtém em outros espaços de consumo como outros locais de lazer

ou de compras como shopping centers e outras opções de lazer.

118

“Geralmente no ônibus, em casa, eu ouço rock. Mas para dançar mesmo eu gosto de funk.” (Jenifer, 25 anos) “Funk é mais diversão, é mais dança. Eu não escuto funk em casa, assim, no fone de ouvido. É uma coisa sabe, mais festa mesmo. Pra mim é diversão, é curtição.” (Rafael, 26 anos)

A fala do entrevistado Rafael confirma, assim como os fragmentos anteriores, a

relação do baile funk com festa, com diversão, com curtição. Para ele, não faz muito sentido

ouvir funk no fone de ouvido, que remete à ideia de um consumo mais privado, mais

particular. O funk é para ser ouvido na rua, para ser compartilhado na festa, na presença de

outras pessoas.

De acordo com a visão dos entrevistados, há uma ligação marcante entre a música funk

e o ambiente de festa. Isso apareceu em muitas entrevistas. Pode parecer contraditório ao fato

dos mesmos entrevistados terem apresentado o funk como a música da rua na periferia.

Entretanto, pelo contrário, isso reforça o papel do funk de aproximar as pessoas e trazer

alegria, muito provavelmente um alento a uma rotina nada fácil.

“Eu acho que com o funk, nas festas, você faz mais amizades, todo mundo se une mais. Às vezes você não conhece ninguém na festa, mas na hora do funk não tem ninguém que fica sentadinho no cantinho. E aí todo mundo vai dançar junto e no final tá todo mundo amigo, saindo junto.” (Jenifer, 25 anos)

A entrevistada Jenifer, em sua fala, traz para o debate uma questão interessante que

tem relação com o entendimento do baile funk como um espaço privilegiado de lazer e

sociabilidade. Percebe-se que é pela música e, principalmente, pela dança, que ocorre a

aproximação dos jovens. Além disso, confirma-se o funk como movimento e ação, presente

no fragmento que diz que “não tem ninguém que fica sentadinho no cantinho”.

Para ratificar o que foi discutido anteriormente, não se pode deixar a posição

apresentada não só pelos frequentadores dos bailes, mas também pelo MC e pelo DJ, ambos

entrevistados na pesquisa, figuras que conduzem a festa. Eles são unânimes em afirmar que a

veiculação de música do estilo funk se apresenta como um momento especial, mesmo quando

a festa não é dedicada apenas àquele ritmo musical.

“Você fala um palavrão, você repete um palavrão e a galera toda canta, sabe? Eu entendi que a galera tá indo mesmo pra extravasar, entendeu?” (MC Jefinho, 36 anos)

119

“A hora do funk é a hora que mais bomba. Todo mundo quer bater a bunda no chão e ser feliz naquela festa, sair de lá suando e num conseguir nem andar no outro dia.” (Patrícia, 24 anos, DJ)

Ambas as falas anteriores confirmam a ideia de que o funk consegue alterar o clima de

uma festa, visto que tem o poder de influenciar os jovens. A utilização de palavrões e de

coreografias específicas, aliadas à batida da música característica do funk parece promover

uma sensação de euforia entre os jovens. Tal como expresso pela DJ Patrícia, o funk

representa o auge da festa, o momento em que todos podem cantar, dançar, extravasar.

“É claro que dá um up, né? (tocar funk em uma festa) Porque todo mundo quer dançar o funk.” (Patrícia, 24 anos, DJ)

Ainda que de forma secundária, uma das entrevistadas chegou a mencionar a questão

da diversidade presente no movimento do funk. Nas entrevistas e durante todas as fases do

trabalho de campo, ficou evidente a noção de que o funk é um movimento que preza pela

diversidade, pela inclusão. Não foi possível perceber qualquer tipo de menção à tentativa de

segregar as pessoas que participam dos bailes ou que, simplesmente, curtem o estilo musical.

Não houve relatos também de formas de preconceito entre os jovens, velados ou não, no

tocante aos frequentadores dos bailes. Um fragmento do discurso de Lana retrata essa questão.

“O que eu mais gosto no baile funk é a diversidade de pessoas. Por ser uma pessoa negra também é um espaço onde eu me sinto um pouco mais acolhida, né? Principalmente nos bailes de periferia. Eu me sinto a vontade.” (Lana, 25 anos)

Ao utilizar as palavras “diversidade”, “acolhida” e a expressão “à vontade”, Lana

parece ratificar o que foi discutido anteriormente, o que ajuda também a entender o baile funk

como um espaço para experiências de consumo e de sociabilidade.

Sendo um traço cultural, orgânico, opção de lazer do jovem de periferia, esse evento

demanda uma indumentária especial. E, é dessa demanda que emerge uma das categorias

centrais da pesquisa: a indumentária funk à luz da cultura material.

7.5 A indumentária funk à luz da cultura material

Para iniciar essa seção sobre indumentária funk, faz-se necessário tecer alguns

comentários sobre a indumentária à luz da cultura material. De forma geral, tal como expresso

por Gonçalves, Guimarães e Bittar (2013), as coisas não existem isoladamente, pelo contrário,

120

elas fazem parte de uma vasta e ao mesmo tempo complexa rede de relações sociais, nas quais

desempenham funções mediadoras fundamentais. Com as roupas, essa noção não é diferente.

Miller (2013) é enfático ao advogar a favor de que “as roupas são a própria forma pela qual a

pessoa pode descobrir quem realmente ela é” (p. 34) e de que “as roupas estão entre os nossos

pertences mais pessoais” (p. 38). Dessa forma, é fácil constatar que elas constituem o

principal intermediário entre nossa percepção de nossos corpos e nossa percepção do mundo

exterior.

Trazendo a discussão para o contexto do funk, Mizrahi (2007) argumenta que o

“figurino funk” pode ser abordado como um conjunto que se constitui basicamente por

relações de oposição, relações essas que são estabelecidas pelos diferentes elementos que

constituem o grupamento de roupas e adornos corporais. Assim, torna-se importante levar em

conta que a indumentária é colocada em diálogo com as outras manifestações presentes tanto

no baile como na música, na letra das canções e na dança. Isso remete à discussão de que a

estética e o gosto, para terem seus significados apreendidos, devem ser inseridos em seu

contexto de criação. Ou seja, no mundo da moda, estilos de vestuário ou utilidades domésticas

são associados a princípios culturais estabelecidos (McCracken, 2003). O sistema de moda

capta os movimentos culturais inovadores, capitaneando os significados de grupos que

existem de alguma forma à margem da sociedade. O indivíduo usa os bens como partes

cruciais de si mesmo e do mundo. O autor sugere que o significado reside no mundo

culturalmente constituído, nos bens e no consumidor.

Dessa forma, percebeu-se que os jovens, no geral, se preocupam em manter um estilo

próprio com a utilização de alguns itens que são fundamentais: os meninos, bermuda de tactel,

camisas de times de futebol, tênis chamativos e bonés de grife, com abas retas. Já as meninas,

a opção recai sobre vestidos ou shorts e camisetas, via de regra, curtos e justos, e penteados

afros e batons de cores fortes. A “arte” trabalhada na sobrancelha, o corte e o desenho no

cabelo, bem como outros artefatos também contribuem para a construção dessa indumentária

funk, que também pode ser considerada como prevalente nas comunidades jovens, mas que

servem como uma “marca” de pertencimento ao movimento.

“É uma espécie de querer ser aceito talvez, porque um vai copiando o outro, não é padrão, é um código.” (MC Jefinho, 36 anos)

MC Jefinho é categórico ao afirmar que esse modus operandi de copiar um padrão

serve como um código para o grupo. O uso da palavra “padrão” no discurso dele acaba

121

servindo para reforçar a ideia de código ou forma de “operação” nesse contexto. A

indumentária funciona, nesse caso, como esse “operador”.

“Cada lugar tem esse padrão então as pessoas vão se identificando.” (MC Klebinho, 34 anos) “Tem no rap. Como a gente vê no Sertanejo também, tem essa identificação do publico, né? Eu acho muito da hora essas diferenças.” (Patrícia, 24 anos) “Tem que andar, sei lá mano, sempre fazer a sobrancelha, cortá o cabelo pela órdi.”.[...] “É pela órdiandá na moda, mano!” (Thiago, 15 anos)

As falas dos jovens apresentadas anteriormente parecem reforçar algo que é

fundamental ao se pensar em cultura jovem: entender os códigos do grupo, reconhecer o

padrão e se preparar em consonância com ele é condicionante para a aceitação pelo grupo. É

uma clara relação entre signo e significado.

Esse ponto resgata a discussão de Bourdieu (2007) no tocante ao habitus e ao conceito

de capital cultural. A manifestação do capital cultural por meio do consumo de bens e

serviços resulta na construção de um estilo de vida que expressa e reproduz o habitus. Ortiz

(2013) avança nessa argumentação ao estabelecer que às diversas posições conquistadas nos

diferentes espaços sociais vão corresponder a estilos de vida que são a retradução simbólica

de diferenças inscritas nas condições de existência. Se o rap ou o sertanejo, como apresentado

no discurso dos entrevistados, possuem seus “operadores” tangibilizados pela indumentária, o

funk também tem os seus.

“Meu irmão mais novo tem tatuagem e acaba gastando muito com isso. É sempre uma questão de se enquadrar, né? Com os amigos.” (Rafael, 26 anos) “Minhas amigas tinham tudo… era piercing na sobrancelha, no umbigo, na língua... foi uma parada que durante anos eu martirizei por não fazer era o piercing no umbigo. Piercing no umbigo com a pingentezinha da Playboy. Era bem isso assim.” (Ananda, 22 anos)

Percebe-se na fala dos dois entrevistados (Rafael e Ananda, ambos na faixa etária dos

20 anos) uma alusão ao comportamento de consumo atinente aos pares, no caso, representado

pelo irmão e pelas amigas. É importante levar em conta o desejo expressivo de se manter

alinhado com outros membros do grupo, levando a entrevistada, por exemplo, a se martirizar

por não fazer o piercing no umbigo.

“Existe toda uma onda de ostentação, né, principalmente entre os rapazes, né, com aquela onde de roupa de marca, de tênis de marca, que acaba dando status, principalmente dentro do baile.” (Lana, 25 anos)

122

“Tem umas coisa assim que são bem do tempo, né? Tipo Ciclone, depois veio a época dos tênis coloridão, Red Nose. Isso eu acho que foi mais marcante para mim porque, tipo, era o que todo mundo tinha e, como eu queria também mas nem sempre foi possível. Os tênis coloridos eu consegui comprar. Comprei um roxo e branco, Red Nose.” (Ananda, 22 anos) “Tem um estereótipo da vestimenta, do chinelo Kenner, sapato da Nike, boné de aba reta, gírias.” (Jonathan, 22 anos)

A partir do discurso dos entrevistados, é curioso notar que há no campo do funk uma

tentativa de conspicuidade tal como proposta inicialmente por Veblen (1988) e,

posteriormente, contextualizada para a sociedade atual por O’Cass e McEwen (2004). A

narrativa do MC Jefinho ratifica essa ideia.

“Eu vivi lá (em SP) em 2013, quando eu fui na casa de alguns e eles estavam na situação igual eu assim, de casa, não muito bem para o que eles diziam e tinha uma reportagem, a Record foi lá e falou assim ‘mas você mora aqui? E o que vocês falam na música, não tem um apartamento?’. Hoje eu digo que daquilo tudo (todos os MCs) uns três ficaram bem, mas aí faziam com que os artistas do funk usassem a casa do empresário de um produtor, de um amigo rico, para poder gravar e dar uma entrevista, carro emprestado, alugado.” (MC Jefinho, 36 anos)

Para o entrevistado, os MCs, em sua busca por aceitação de que atingiram um grau de

sucesso digno de celebridades de alto nível, acabam por tentar criar uma aura de riqueza e

ostentação que parece coincidir com o que foi denominado por O’Cass e McEwen (2004)

como consumo conspícuo. Segundo esses autores, o consumo conspícuo é uma forma de

aumentar o prestígio perante os membros de uma sociedade ou grupo exibindo bens que

revelam riqueza.

A influência das marcas na vida desses jovens está relacionada com a questão da

conspicuidade. Por meio das entrevistas, ficou evidente que os produtos com marcas

consideradas sofisticadas fazem parte do imaginário desses jovens. Essa constatação está em

consonância com os achados da pesquisa conduzida por Abdala (2014), quando argumenta

que, para o contexto do funk ostentação, o consumo e a exibição dos objetos estão

relacionados ao consumo compensatório, ou seja, o consumo serviria para preencher pontos

frágeis do self desses jovens.

[Entrevistados falando sobre marcas] . “Tinha umas mini saia da Ciclone, de veludo, bem essa vibe. A Ciclone pegou muito na minha escola, então, todo mundo que tinha condições tinha uma Ciclone (risos). Era calça, era bermuda, era tudo. E Kenner, chinelo é Kenner, feminino e masculino. Tem umas Kenner com

123

relevinho, como se fosse com saltinho atrás. Tinha uma que era linda, branca e rosa.” (Ananda, 22 anos) “A vestimenta do pessoal que mora lá (referindo-se ao local onde mora) é, mulher é short curto, blusa curta e homem é tênis, de marca. Que usa muito é Adidas, Mizuno, aqueles de mil reais (risos), bermuda, camiseta, boné, tem que ter um colarzão.” (Camila, 21 anos) “Mano (eu curto) Ciclone, Oakley, MC Di, Kronik, acho que só, mano.” (sobre as marcas que usa) (Thiago, 15 anos) “Ah mano, (eu curto usar) tipo Ciclone, só marca, só pela órdi! Eu faço meus corre, né, pra conseguir comprar... a gente consegue uns precinho bacana numas loja aí, legal.” (Thiago, 15 anos) (Eu uso marcas) porque são de boa qualidade e que a maioria do rolê também usa.” (Jonathan, 22 anos)

A análise desses fragmentos joga luz sobre algo que parece ter grande aderência aos

estudos envolvendo a questão da marca em contexto de consumidores de baixa renda. Ainda

que a busca por entender o poder de influência das marcas pelos jovens simpatizantes do

estilo musical funk extrapole os objetivos desta tese, não se pode deixar de mencionar que, no

contexto da investigação, os mecanismos do processo de recepção pelo consumidor no

processo de comunicação ao qual a marca se inscreve permitem, a cada destinatário,

(re)significar as mensagens da marca de acordo com sua perspectiva e suas expectativas.

Assim, considerando as novas formas de comunicação interativa entre marca e seus

públicos, principalmente aquelas em que o consumidor de baixa renda passou a ter acesso

como as novas mídias e a internet, acabam por instalar um simulacro de relação

personalizada, no qual o consumidor colabora ativamente na (re)construção da relação e de

seu significado (Semprini, 2010). Isso parece fazer todo o sentido quando se avalia a forma

como esses jovens utilizam-se dessas marcas dando-lhes outros atributos muito diversos do

conceito original proposto pelas empresas. Vale sublinhar que muitas dessas marcas fazem

parte do discurso desses jovens sem que eles tenham tido contato com elas, o que parece ser

um fenômeno curioso que merece maiores escrutínios posteriormente.

“Aí você chega no oculista o cara fala ‘você quer descansar suas vistas, coloca um óculos aí de grau 0,25’, aí você vai pega a armação melhor ou Prada ou Oakley e eu falo ‘vou chegar, neguinho vai bater o olho’ e eu vou pensar ‘tô aqui’ mais ou menos assim. Um perfume bem legal, o Million, por mais que ele seja antigo e muito usado né, é um perfume que chama a ostentação, já chama lá, olha o nome do perfume, One Million. Eu ostento deste lado assim, mas a maior da ostentação mesmo é corporal, é a proteína é o exercício, é o ficar forte no shape, porque eu prefiro hoje aos 40 ficar mais sem roupa do que ficar totalmente vestido de marca, tipo isso. Uns riscos assim, uma coisa mais singular.” (Eder Rufino, 40 anos)

124

Mesmo que apenas como sonhos distantes:

“Era um tênis Adidas que naquela época eu não tinha, tanto é que a minha música acabava assim “eu só suponho, é só um sonho, está sempre na vitrine ainda não comprei, meu Adidas.” (DJ Joseph, 57 anos).

Opostamente, é importante ressaltar que existe entre os jovens uma parcela que

assume um discurso de pouca preocupação com relação ao porte de roupas mais caras e

sofisticadas, bem como lança mão de um discurso crítico a respeito do poder das marcas na

escolha dos produtos por parte dos consumidores. No entanto, é questionável essa aparente

aversão às marcas, tendo em vista que muitos deles citam várias marcas, o que configura que

eles estão inseridos na estrutura.

“Na maioria das vezes as marcas, ainda mais essas marcas famosas, como Lacoste nunca pensou que menino de funk ia usar. Mas é porque é um MC, porque nessa época dos MCs ostentações eles investiram muito nesse negócio de ‘eu posso ser o foda também, eu posso usar Armani, eu posso usar perfume da 212”, enfim! E começou a ditar essa regra então os meninos ficaram ligados, mas isso passou.” [...] “Em relação aos meninos vestindo não, não estão nem aí. Na verdade elas olham e acham bonitinho nos meninos, mas a questão da estética, não interessa se está com camisa de time, ou sem camisa, ou uma roupa qualquer, o menino tem que está bonitinho.” (MC Klebinho, 34 anos) “Não faço questão nenhuma (de roupa de marca). Eu acho que é mesma coisa das roupas de lojas tradicionais, mas só que mais caras. Eu acho mais legal dar valor para as lojinhas” (Jennifer, 25 anos).

No último fragmento, uma das entrevistadas menciona que as lojas de roupa

tradicionais são as que ela utiliza para fazer suas compras. No ambiente de baixa renda, essas

lojas são representadas por brechós, pequenas lojas de bairro que funcionam como extensão

da casa dos proprietários e também como bazares. Não se pode esquecer que, nesse contexto,

é muito evidente a presença das sacoleiras que exercem um papel interessante de prover

muitas famílias com roupas e outros produtos oriundos de outras regiões a preços adequados

aos orçamentos dessas pessoas. No trabalho de campo, essa realidade mostrou-se relevante,

visto que a maioria desses jovens, embora tenha acesso por meio das redes sociais às marcas

sofisticadas, por outro lado, não frequentam os shopping centers e as lojas mais abastadas,

não restando outra opção a não ser as pequenas e simples lojas de bairro.

Há de se apontar ainda que os fragmentos de entrevistas ora apresentados estão em

consonância com o que Savas (2014) chama de cultura material do dia da dia. Diferentemente

125

da cultura apresentada pela religião ou pelas organizações políticas, por exemplo, a estética do

dia a dia apresenta sentidos de pertencimento, identidades, práticas e representações que

permitem compreender as fronteiras individuais. Miller (2013), de forma ainda mais

específica, traz para a vestimenta o papel de evocar o mundo dos sentimentos. Por meio da

roupa é possível acessar a visão de mundo da pessoa. De acordo com Miller (2013), “as

roupas não nos mudam tanto quanto nos revelam, até para nós mesmos: revelam o verdadeiro

eu interior e relativamente constante” (p. 62).

É muito interessante observar que em um ambiente de baixa renda, no qual a

convivência entre os diversos grupos é muito próxima e intensa, o vestuário assume ainda a

função de mostrar a qual grupo social o indivíduo se insere. É, além de um código de

inclusão, uma forma de marcar o território. Essa percepção também encontra respaldo teórico

em Miller (2013). Para o autor, o vestuário desempenha um papel fundamental na

determinação do indivíduo. Não é um símbolo ou uma forma de representação, mas o

conceito da pessoa, a percepção sobre si. Mesmo que as roupas sejam as mesmas, em lugares

diferentes a forma de se usar e de se relacionar com elas são culturalmente determinadas. O

trecho de entrevista a seguir demonstra essa característica:

“Mas na maioria das vezes elas se vestem mais por questão de identificação e outra coisa você chega em uma loja na quebrada, você não tem burca lá não, você tem é um shortinho, você tem isso pra consumir. Então às vezes as pessoas exploram um mercado, então você não tem um saião lá, quem veste saião na comunidade é evangélica, eles vão falar que você e evangélica. E às vezes se forma uma bolha em que as pessoas acham que é normal, mas porque elas não deram um passo para fora.” (MC Klebinho, 34 anos)

Foi possível perceber em alguns jovens uma busca de identidade com os MCs

famosos. Os jovens copiam o que é veiculado em videoclipes. Apesar de ter sido pouco

explicitado nas entrevistas, fica claro que eles se inspiram no que veem nas telas do

smartphones ou tablets.

“Porque alguém dita isso. Por exemplo, um MC famoso começar a falar agora ‘ah eu tô de Lacoste e não sei o que’, Eles vão pensar ‘oh o cara usa Lacoste mano, eu vou meter uma Lacoste aqui’. O outro usa Crony??, Cronic eu vou usar também.” (MC Klebinho, 34 anos) (Falando sobre os videoclipes) “Assisto para ver a letra, aprender a dançar. Também olho as roupas, pra ver o que tá em alta, o que não tá em alta.” (Jonathan, 22 anos) (Falando sobre compra de roupas) “Geralmente é porque alguma celebridade do funk usa (as roupas). Anitta, Ludmila, eu acho (elas) lindas, divas, então quero usar também, pra ficar igual elas.” (Jenifer, 25 anos)

126

Os últimos fragmentos dos discursos dos entrevistados levantam uma questão

interessante que está relacionada ao poder das celebridades no contexto dos simpatizantes do

gênero funk. Embora a influência das celebridades no dia a dia dos jovens não seja novidade

nas discussões sobre a cultura juvenil, pode-se perceber, ao longo de todo o trabalho de

campo, que com a maior proliferação dos smartphones e tablets nas comunidades de baixa

renda essa influência mostrou-se mais marcante ainda. Constatou-se aí a emergência dos

ídolos desse público e, principalmente a influência deles no cotidiano desses jovens em

relação ao estabelecimento de formas de consumo.

Algumas entrevistas levaram-me a refletir sobre o poder da identidade em trazer

conforto social e emocional ao indivíduo com alguma vulnerabilidade financeira, social ou

emocional. Essa reflexão encontra, mais uma vez, respaldo em Miller (2013), que argumenta

que os trecos (os objetos que pertencem à vida cotidiana de cada um) nos criam. Por meio da

roupa uma pessoa mostra seu próprio modo de acordo com o contexto em que vive. Para

Miller (2013), as roupas não são superficiais, “elas são o que fazem de nós o que queremos

ser” É um significado real, verdadeiro.

“A gente se identifica com esse tipo de tribo. Aí, tem que ter essa identidade para, nó, chegou a pessoa, já tá com um cortezinho (de cabelo), um boné, você vai criar uma aproximação que rola, né? Eu acho muito da hora.” (Patrícia, 24 anos) “Eu acho que acaba que vira um estilo de vida, a galera cria um modelo, um padrãozinho a ser seguido, aí as meninas vestem iguais, os meninos fazem uma tatuagem na mão, cortam a sobrancelha. E eu acho legal porque cria essa identidade porque são tribos, né? A gente se identifica com um certo tipo de tribo e aí precisa ter também essa identidade para falar, nó! Chegou a pessoa, cê sabe, tá com um cortezinho (de cabelo), pá, boné, cê já sabe, é uma aproximação que rola, né? Eu acho muito da hora!” (Camila, 21 anos)

No discurso da entrevistada Camila, é possível perceber uma série de “marcadores”

que enfatiza o papel da roupa como “construtor” de uma imagem. Ao lançar mão das palavras

“modelo”, “padrãozinho”, “identidade”, “aproximação” atreladas à expressão “vira um estilo

de vida”, a jovem acaba por reforçar um dos principais argumentos dessa categoria de análise:

a indumentária como forma de pertencimento ao grupo. A próxima fala da entrevistada Lana

também ilustra essa questão. A jovem explicita que, para fazer parte do grupo e não se sentir

excluída, é “obrigada” a se vestir parecida com suas amigas e seus amigos.

[Entrevistada falando sobre exclusão por não usar marcas] “Eu me visto um pouco parecida com minhas amigas e meus amigos, no caso, então, eu não sinto essa exclusão, porque eu faço parte de um grupo, que seria meu grupo.” (Lana, 25 anos)

127

MC Klebinho, uma figura intrigante por sua lucidez e capacidade analítica, convida-

nos a refletir se essa inserção é apenas uma ilusão, uma vez que tem um caráter extremamente

momentâneo.

“Ele te insere só, se aceita ou não, não sei, mas pra você, você se sente inserido. Se sente parte daquilo ali, agora se outros vão te ver como parte daquilo ali eu já não sei. A pessoa busca isso.” [...] “Falando sobre marca, não, não acho que transporta. Tanto é que elas (as sobrinhas, que o acompanhavam no dia da entrevista) se sentem fora do habitat natural, tanto que elas chegaram e ficaram assim ‘nossa, nós somos os favelados aqui’ (esse aqui é uma referência ao campus da UFMG, onde foi realizada a entrevista). (MC Klebinho, 34 anos)

Os dois excertos confirmam uma questão que extrapola os objetivos da tese, mas não

pode deixar de ser citado na análise. Trata-se da questão do estigma que tende a perseguir os

indivíduos de baixa renda. Novamente, pode-se recorrer aos conceitos de campo e de capitais

desenvolvido por Bourdieu (2007) para se chegar à constatação de que o acesso a

determinados objetos de consumo simplesmente não conduz o indivíduo a outro status de

inclusão social. O trecho da fala do MC Klebinho ratifica a questão quando diz que “[as

meninas] se sentem fora do habitat natural”.

Essa percepção é reforçada por Jéssica e Natália, que dão pistas das angústias do

jovem de periferia ao notar que não houve, de fato, a sonhada inclusão social para além do

próprio grupo na qual já está inserido.

“Se você vai pro shopping de chinelo todo mundo te olha, a menos que você seja branco da Savassi; aí é normal, aí você entra tranquilamente.” (Jéssica, 20 anos e Natália, 21 anos) “A ostentação ali dentro (do baile) é outra. É dentro de outro padrão; é dentro de uma outra classe social, fraga. A gente não vai ostentar que nem cara que mora na Savassi vai ostentar. São tipos de ostentação diferente, são tipos de alcance diferente, fraga. Vem de uma luta de classe, de raça, fraga.” (Jéssica, 20 anos)

A fala de Jessica põe em foco outra questão que reforça aquilo que já foi discutido

anteriormente: o papel de destaque do baile funk como o lócus que dá sentido ao cotidiano

desses jovens. Dito de outra forma, a jovem afirma que é nesse ambiente que as “coisas

acontecem”, pois está dentro de “outro padrão”, padrão esse que está próximo da realidade

deles.

128

Tangente à questão da indumentária funk, é importante assinalar a forma como a

necessidade de inserção social do jovem mobiliza a família. Isso fica muito claro na entrevista

com o MC Jefinho.

“Num grupo de funkeiro, claro que eles não vão falar ‘se você não tiver desse jeito você não entra’, mas ele só se sente inserido se estiver igual todo mundo, eu acho que isso também é do jovem, vem os roubos e um tanto de coisa por isso também. Eu era assim também, eu lembro que minha mãe muito pobre, hoje conseguiu bastante coisa, mas na época, quando tinha a Samsonite e falava para mim assim ‘Filho, eu não tenho condição de ter dar não, vou te dar prima!’ Tudo dela era prima (em referência aos produtos piratas), eu sempre ganhava outro, era All Star eu ganhava Red Star. Mas esses meninos hoje, eu vejo pelos meus sobrinhos, ‘Eu tenho que ter é aquele’ e parece que é aceitação mesmo, se não tiver eles se excluem ‘Não vou chegar perto do meu amigo ali não’.” (MC Jefinho, 36 anos)

A menção ao termo “ele só se sente inserido se estiver igual todo mundo” ratifica algo

que parece ser evidente: o consumo como diferenciador social e a busca por uma construção

identitária. MC Jefinho enfatiza a importância da mobilização familiar por parte dos pais que

sentem coagidos a prover os filhos de diversos bens que possam mitigar a carência financeira

da família. Essa mobilização familiar provavelmente é reforçada pelo fato do espírito do não

pertencimento estar invisivelmente presente no dia a dia de toda a família oriunda de

comunidades pobres. Muito provavelmente é uma forma de proteção dos pais para com os

filhos.

“Eu acho que a ostentação dentro do baile funk, dentro desse estereótipo de favela, surge por causa disso: a galera de fora tem muito para ostentar, a galera de minoria, que mora na favela, não tem, fraga, e quer copiar.” (Jéssica). Natália completa: “que é uma forma de você ser aceito”. Jéssica confima, “Isso, ser aceito.” (Jéssica, 20 anos e Natália, 21 anos)

Essa dicotomia presente na relação com as roupas é compreendida por dois dos

alicerces teóricos desta tese: o capital cultural e a cultura material. O jovem da periferia,

portando o que julga ser a indumentária adequada para transparecer sua visão de mundo, não

consegue ser percebido como igual em um ambiente que julga ser mais sofisticado, mesmo

usando as mesmas marcas. Salta aos olhos a barreira cultural que separa as classes sociais.

Enxergando as relações sociais pelo prisma proposto por Bourdieu (2007), percebe-se

claramente a dificuldade de ascensão social.

Apesar da busca identitária comum aos jovens independente da classe social, os

jovens de baixa renda têm como dificultador para adesão aos padrões de moda também a falta

de dinheiro. Isso os leva a buscarem alternativas de consumo, que vão da compra em lojas de

departamento ao consumo de produtos falsificados.

129

(Perguntado se gosta de roupas de marca) “Gostar eu até gosto, mas a condição financeira não deixa.” (Jonathan, 22 anos) (Falando sobre o local de compra das roupas) “Eu compro em Feira Shopping, em feirinhas, não tenho muita preocupação não. Às vezes, uma vez ou outra, vou no shopping e compro em loja de departamento.” (Isabelle, 31 anos) “Eu não tenho valor fixo não (referindo-se a gastos com roupas), roupa é o que eu gasto menos. Eu gosto muito de bazar. Eu tô evitando comprar em lojas assim, roupas novas.” (Rafael, 26 anos) “As vez a gente faz uns corre lá no Oiapoque, no centrão, lá tem umas roupa pela órdi, mais barata. Nós faz catira em tudo também. (Thiago, 15 anos) “As minhas compras geralmente eu compro na Renner, C&A, nessas lojas mais de departamento.” (Jonathan, 22 anos)

É curioso notar certo grau de incoerência presente nos discursos. De um lado, é

possível encontrar uma despreocupação com relação à compra e ao uso de roupas de marcas e

mais sofisticadas. Para confirmar isso, os jovens afirmam que compram e até gostam de

roupas de marca, mas não têm condição. Por isso, optam por comprar em lojas simples, em

feiras e, ocasionalmente, em lojas de departamentos. Por outro lado, acabam assumindo uma

postura de conhecimento das marcas, ao citar outros pares para exemplificar um

comportamento mais materialista e afeito às marcas. A próxima fala apresenta esse aspecto.

“Eu sei que a galera usa essas marquesonas, que eu não sei nem se é original, se não é, foda-se né? Adidas, Nike, os bonés de uma marca que todo mundo usa mas eu não sei o nome. Os menino todo mundo de boné, né?, uma camisa mais esparradona, uma bermudinha, roupa de time, roupa de time tem muito; e as meninas de short jeans, um cropped mostrando o umbiguinho, um piercing e é… isso!” (Camila, 21 anos)

Não se pode deixar de mencionar que as roupas fazem parte do conjunto de objetos

que mais servem de trocas entre os jovens pesquisados. Dois entrevistados (Thiago e Jéssica)

reforçam essa realidade, ao apontar a “troca” da roupa por celular ou a aquisição por meio de

“treta”, que pode significar até mesmo meios ilícitos para obter os objetos.

“Nós troca uma peça de roupa num celular.” (Thiago, 15 anos) “É mano, vai lá Véio, que é, eu comprei essa mesma treta por tantos lá, no Oiapoque. Nó demorô! Vou chegar no baile com essa. Essa aqui eu comprei pra ir no baile. E tem isso também, essa aqui eu comprei pra chegar no baile, pra ir no baile” (reproduzindo um diálogo entre os jovens). (Jéssica, 20 anos)

130

Justamente pela baixa disponibilidade financeira, o gasto em consumo de vestuário é

relativamente pequeno, levando os jovens a optarem por peças de baixo custo. Ainda que as

peças sejam de baixo valor, não se pode deixar de enfatizar que carência financeira não é

sinônimo de carência simbólica (Barros, 2007). Isso quer dizer que, embora os jovens não

tenham condições financeiras de comprar objetos de marca caros ou sofisticados, eles têm

condição de (re)significar as diversas marcas e, principalmente, dar sentido aos objetos aos

quais têm acesso. Isso fica evidente nos excertos a seguir.

“Eu nunca fui ligada nesse rolê de tá igual o artista, o cantor, justamente porque eu tinha a limitação financeira, então, eu vejo o que meu dinheiro dá. A minha questão é o que eu achar que eu tô bonita, tô gostosa.” (Ananda, 22 anos) “Eu vou de rasteirinha porque é uma parada muito barata aqui em Minas, né? Porque vem do interior para cá, então, é muito barato. A gente encontra rasteirinha de dez reais, então, as meninas sempre ia, a gente sempre ia de rasteirinha, rasteirinha com pedra em cima.” (Ananda, 22 anos)

As duas falas de Ananda, em dois momentos distintos apontam para a questão do

simbólico atrelado ao consumo de itens “básicos” do cotidiano. Ao reforçar que as “meninas

sempre ia” com “rasteirinha com pedra em cima”, ela acaba por enfatizar a análise de que, no

consumo moderno, há a prevalência da dimensão simbólica sobre a perspectiva utilitária. Ou

seja, por meio do consumo dos produtos e serviços (no caso da entrevistada, uma rasteirinha

com um adereço diferente representado por uma “pedra em cima”), o indivíduo ressalta suas

diferenças, agrupa as semelhanças, fazendo com que os objetos possibilitem a comunicação

entre as pessoas e o estabelecimento das relações sociais (Rocha, 2002). Da mesma forma, o

uso de bens revela o quanto as pessoas podem ser dependentes, como coletividades ou

indivíduos, dos processos de produção, circulação e consumo de objetos considerados

“ordinários” no cotidiano (Gonçalves, Guimarães & Bitar, 2013).

“Geralmente cê vai comprar uma roupa nova pro baile, cê compra o look inteiro. Então é uma calça, uma blusa, então geralmente custa cento de vinte (reais) no máximo. Aí você gasta com uma calça bonita, que deixa seu corpo bacana e uma blusa confortável, fresca.” (Jenifer, 25 anos).

O trecho do discurso de Jenifer é interessante para exemplificar o que McCracken

(2003) chama de “efeito Diderot”. Para esse pesquisador, esse efeito sugere que os bens de

consumo são “ligados” por uma espécie de harmonia, ou consistência, com outros bens. Ou

seja, o significado de um bem é mais bem comunicado quando este bem é cercado pela

131

complementaridade de outros bens que carregam a mesma significação. A entrevistada

explicita isso quando afirma que gosta de estar confortável com a combinação de roupas que

privilegiam o “look inteiro”. Complementarmente, a fala de Isabelle também confirma a

questão.

“Quando a gente é mais nova tudo que a gente vê a gente quer comprar. Se vê uma roupa bonita quer comprar, um vestido, sapato, bijouteria. Depois, com as necessidades que vai aparecer na vida a gente tem que colocar outras prioridades na frente.” (Isabelle, 31 anos)

Complementando a análise, mesmo em um contexto de privações marcado por

evidentes carências financeiras, mas fértil para construções simbólicas, pude perceber que há

uma preocupação muito maior com as questões imediatas, por exemplo, a roupa para o

próximo baile, do que com problemas estruturais relativos aos jovens, intrínsecos à vida nas

classes populares, como, por exemplo, estudo e melhores condições de trabalho.

(Com) Uns 15, 16 anos. Eu gastava o meu salário em duas peças de roupa.” (Eder Rufino, 40 anos) (Perguntado se o funk aumentou o padrão de gasto dele) “Gasto mais porque o baile, você gasta pra ir por baile; tem a roupa, que geralmente são mais caras.” (Jonathan, 22 anos) “Tem as roupas que é própria de ir pro baile, que é mais a cara, tem mais aver. (eu gasto) uns cento e pouquinho reais com essas roupa.” (Jonathan, 22 anos) “Ah mano! Tem que andar na moda, né? Então acho que comecei a gastar um pouco mais de dinheiro.” (comparando hoje, quando frequenta baile funk com o tempo em que não frequentava) (Thiago, 15 anos)

Em todas as falas, é recorrente o “poder” de fascínio do baile funk no imaginário dos

jovens. Nesse caso, é possível perceber uma forma de estruturação ou ordem nas roupas

quando um dos entrevistados afirma que “tem roupa específica para ir ao baile” ou que é

necessário envidar todos os esforços para se manter “na moda”, ou “tem a roupa, que

geralmente são mais caras”.

Um dos entrevistados falou bastante da busca por trabalhos temporários, pouco

qualificados, em função da necessidade de levantar dinheiro para financiar o gasto com

vestuário. O baile funk vira, então, motivador para uma atividade profissional momentânea.

“Ah mano! As roupa que eu compro não vô mentir não, é caro, viu? Uma bermuda tá uns cem conto! As vezes a gente acha um lugar mais barato, que a gente caça duas peça de roupa por trezentos conto. Aí é mais barato, né? Mas depende do bico que eu faço eu consigo ganhar mais.” (Thiago, 15 anos)

132

“Ah mano! Tênis eu gasto, viu? Tênis eu gasto, viu? Já tenho dois Spring blade lá em casa já, que eu juntei dinheiro e comprei pra caralho. Aqueles tênis da Adidas lá, de mil conto. Fiz meu corre, né mano?” (Thiago, 15 anos)

Inusitadamente escutei que a sensualidade das roupas não é uma opção. Na realidade,

é a única referência que os jovens têm. Assim como discutido na seção 7.2 no tocante à

categoria “O funk como cultura orgânica do jovem de periferia”, a sensualidade da

indumentária é algo que faz parte do cotidiano desses jovens. Portanto, a utilização da blusa

curta, do short minúsculo e do chinelo é algo que pode ser considerado orgânico e compõe o

dia a dia dos jovens. Dito de outra forma, a forma de se vestir com essa indumentária

representa os elementos da cultura jovem de periferia e possui relação direta com a cultura

funk. A fala de MC Klebinho a seguir explicita a questão principalmente quando ele afirma

que “que elas se vestem assim muito mais numa questão de não se sentir fora d’água, não se

sentir fora do seu grupo”. Na visão dele, a questão do que pode ser considerado sensual, ou

até mesmo ofensivo do ponto de vista da sexualidade, é uma construção ou, até mesmo,

preconceito, por parte de outros grupos sociais.

“Sensual ao nosso olhar, porque na verdade elas estão até preocupadas com o olhar do outro, mas eu não acredito que elas saem pra ser sensuais. Assim eu acho que elas se vestem muito mais numa questão de não se sentir fora d’água, não se sentir fora do seu grupo. O sensual somos nós que colocamos, os homens, o machismos, o sexismo a gente que acha que a menina mostra a metade da bunda ‘ai não, gostosa que não sei o que. Tá com a metade da bunda de fora, tá querendo dar’ e não tem nada disso. Se você perguntar, ali oh nunca transaram na vida delas. Isso eu tô falando colocando minha mão no fogo que ali são super cúmplices. Mas elas não saem com esse sentido de ‘ah vou transar hoje, vou ser um pedaço de carne’ pelo contrário elas repudiam isso, a maioria das meninas. Mas tem lá sim as meninas que já são mais avançadas e estão a fim disso, na maioria das vezes são os meninos que estão muito mais a procura disso do que as meninas. As meninas demoram mais, aí aquelas que são menos assistidas aí elas são mais vulneráveis.” (MC Klebinho, 34 anos) “Eu sempre usei roupa curta.” (afirmando não ter ligação com o funk) (Isabelle, 31 anos)

A fala da Isabelle contribui para dar força ao argumento de que a roupa curta não é

reflexo do movimento funk. Opostamente, pode-se afirmar que o movimento funk se

apropriou de algo que é orgânico para os jovens de baixa renda, fazendo com que a roupa

curta para as mulheres passasse a representar um símbolo ou uma “marca” da cultura funk.

Essa situação acaba sendo reforçada pela mídia, quando veicula, de forma estereotipada, esse

perfil do movimento funk.

Embora a questão extrapole os limites de discussão necessários nesta tese, não se pode

deixar de trazer à baila a questão do corpo como construção social, algo que parece evidente

133

no movimento funk. Ganha destaque nesse contexto, portanto, a tese defendida por LeBreton

(2007), quando defende que é por meio do corpo que os indivíduos se apropriam da

substância de sua vida ao mesmo tempo em que se aderem aos sistemas simbólicos

compartilhados pelos membros da comunidade ao qual faz parte.

Em sentido paralelo, os jovens apresentam a indumentária funk como uma necessidade

do corpo para a dança, como a malha para os bailarinos. Isso parece servir de justificativa

para algo que é socialmente construído e que tem diversos contornos simbólicos. Cabe

pontuar que a perspectiva utilitarista apareceu nos discursos de três entrevistados e com um

tom de explicação necessária.

“A pouca roupa né, quanto mais à vontade. Que o funk tem essa coisa da dança, do corpo, então corpo tem que aparecer. Quando você for dançar lá a dança do ventre, você tem que estar com a barriga de fora, o funk também tem aquela coisa da perna, da postura da bunda, tem que estar bem marcada né, então tem tudo isso.” (MC Klebinho, 34 anos)

A fala de MC Klebinho reforça a ideia do funk como uma manifestação da cultura dos

jovens de periferia, quando salienta que o funk tem características marcantes que o diferencia

de outras modalidades musicais. Essas características têm a ver com “aquela coisa da perna”,

“da postura da bunda”, entre outros detalhes.

(Falando sobre como se veste para o baile funk) “É uma roupa mais flexível, que dá pra mover. Mais tactel, tecido solto, coisa que facilita os movimentos, pra podê dançar.” (Jonathan, 22 anos). “Shortinho, pá, uma blusa mais coladinha, tenisinho. Eu acho que é isso. Roupas mostrando a beradinha da bunda.” (falando sobre moda funk) (Patrícia, 24 anos)

Todos esses fragmentos de entrevistas, encadeados, são reforçadores da importância,

para os estudos de consumo, de se compreender a agência entre sujeito e objeto, conforme

propõe Borgerson (2005). Para a autora, as pesquisas em consumo tendem a discutir o

materialismo como o efeito dos objetos na satisfação do sujeito com a vida, a felicidade e o

progresso social, ao invés da co-criação entre sujeito e objeto. A questão fundamental, para a

autora, se apoia sobre a questão da agência – de que forma sujeito e objeto se tornam o que e

quem são.

O consumo foi apresentado, nestas entrevistas, de diversas formas. Paralelamente ao

fator da inclusão social, é visto, por uma das jovens entrevistadas, como supressor de

carências emocionais. Pincei alguns pontos da entrevista com a Jéssica, para deixar claro esse

posicionamento.

134

“Eu acredito que eles buscam (o consumo) para suprir a ausência de alguma coisa na vida, véi, de afeto, cara!” [...] “[...] os caras que tão com Mizuno de mil conto, fraga, são os cara de referência da criançada, véi, eles não tem uma referência de que eu posso usar o que eu quero, você pode ser livre com o padrão social que você tem e a criançada vai falar assim, pô! Eu só tenho esse chinelo e aquele cara ali tá andando com Mizuno e ele tá respeitado e cumprimentado por todos os caras. Eu vou lutar pra ter o meu!” [...] “Às vezes o cara tem um Mizuno, de mil conto, mas tá faltando o arroz com feijão na casa dele. Mas, assim, é minha imagem. A minha imagem tá passando que eu tenho, né? Então beleza! Na minha casa, minha realidade eu que sei e eu quero esconder isso, véi! Fraga! Eu não quero que todo mundo saiba que eu sou pobre, que eu moro na favela e que na minha casa está passando dificuldade pra isso e praquilo. Fraga!” (Jéssica, 20 anos)

Uma das entrevistadas salvou o funk desse papel de promotor do consumo. Para Lana,

a vida no contexto de periferia é que estimula as compras. Novamente aparece aqui a busca

pela inclusão social por meio do consumo.

“Para mim o funk, em si, não é promotor de consumo. Existe o funk ostentação, que ele visa essa questão do consumo, mas também tem que analisar o contexto histórico, porque muitas das vezes essas pessoas surgem de um contexto periférico e, então, traça-se um objetivo de consumo nessa perspectiva.” (Lana, 25 anos)

Holt (1998) já havia relatado um materialismo maior entre a classe baixa. Embora seja

necessária uma adaptação das ideias do autor para o contexto brasileiro, na visão dele, a boa

vida, para a classe popular, está relacionada ao ter em abundância, especialmente bens

entendidos como luxuosos. Em contraste, a classe alta enfatiza o valor metafísico dos aspectos

da vida. Para a classe popular o prestígio vem da aquisição e do efeito conspícuo desses bens,

tal como analisado anteriormente. É o que advoga Miller (2013), ao enfatizar que há uma

tendência a considerar que os ricos sejam mais materialistas do que os pobres, quando as

pesquisas antropológicas ligadas à cultura material apontam justamente o contrário.

Com relação a essa importante categoria emergente da pesquisa, em suma, a relação

dos jovens com a indumentária é intrigante. Não há dúvidas em relação ao papel social das

roupas e das marcas. Entretanto, é interessante notar que alguns entrevistados são muito

lúcidos em relação a sua capacidade financeira e, portanto, assumem a pouca disponibilidade

de recursos para o investimento nessas peças.

Pude notar que parte dos jovens se sente atraída pelos significados do figurino

conforme os padrões apresentados por videoclipes, novelas e pelo que é visto nas vitrines dos

shoppings, mas uma parte importante é capaz de refletir sobre o impacto disso em suas vidas.

135

De toda forma, essa reflexão é baseada na disponibilidade financeira. Apenas dois

entrevistados fizeram reflexões mais profundas sobre o tema, e ambos têm uma participação

privilegiada em movimentos sociais.

Toda essa discussão parece direcionar nossos esforços para o entendimento de uma

questão que também se mostrou fundamental no trabalho de campo e representa a última

categoria de análise: o funk e a identidade cool, tema da próxima seção.

7.6 O funk e a identidade cool

Para começar a discussão sobre esta categoria emergente da pesquisa, preciso resgatar

algumas questões que considero essenciais. O objetivo geral desta pesquisa foi compreender a

articulação entre as práticas socioculturais e os processos simbólicos envolvidos na

construção de identidade cool por jovens integrantes de comunidades de baixa renda inseridos

no ambiente do funk. Inicialmente, eu considerava, inspirada pela mídia e também pela

academia, que o funk promovia o consumo entre os jovens. Os diversos documentários,

programas de TV, artigos de jornais e artigos acadêmicos aos quais tive acesso, mesmo que

não diretamente relacionados ao Marketing, de alguma forma tangenciavam situações

relativas ao consumo entre os jovens fãs do funk. As roupas de grifes, as tatuagens, os cabelos

desenhados dos rapazes, as roupas curtas e justas das moças, a maquiagem bem cuidada

estiveram presentes e marcadas em tudo que vi e li. As letras do “Funk Ostentação”, na crista

da onda em 2015, quando iniciei este trabalho de campo, serviram para coroar essa percepção.

O desejo de entender a construção dessa identidade de consumo tão distante da realidade de

poucos recursos financeiros do grupo foi o motivador para o início deste estudo.

Ao pensar teoricamente o universo estudado no início deste processo de pesquisa,

pareceu-me que a teoria dos capitais, de Bourdieu (2007), recontextualizada por Holt (1998),

complementada pelo Cool Capital, proposto por Belk et al. (2010), fazia pleno sentido. De

fato, o habitus do agente explica toda a formação do gosto e, portanto, sua ação no campo.

Nesse campo, sobressairiam sujeitos reconhecidamente cool; possivelmente assim é que

surgiria o formador de opinião – papel muito provavelmente exercido, em meu cenário de

pesquisa, pelo MC. Restava compreender o processo de construção dessa identidade por

sujeito.

A dificuldade em encontrar o “Funk Ostentação” em Belo Horizonte foi a primeira

pista de que a realidade seria diferente do esperado. O que encontrei nas periferias foram

jovens que de fato cuidam do visual, que se importam com as roupas, que se constroem

136

enquanto sujeitos a partir dos objetos que portam – mas que não são, obrigatoriamente,

objetos legítimos. Não conheci, nos lugares que frequentei, ninguém que fizesse uso da marca

no seu sentido original, ou seja, percebi uma reconstrução dos atributos da marca, muitas

vezes distante do que foi anteriormente estabelecido pela marca tradicional. Ao usar muitas

marcas, os jovens acabam por lançar mão de réplicas, adquiridas por troca, empréstimo ou até

mesmo comprado por preços baixos nas pequenas lojinhas de bairro ou nos shoppings

populares do centro da cidade

O que quero enfatizar é que a identidade, na realidade, parece ser construída por um

somatório de momentos. Percebi que a falta de recursos financeiros os leva a viverem o

momento, a se preocuparem com o imediato, o que, de alguma forma, traz leveza para a vida

dessas pessoas. Quando há um baile no final de semana e o rapaz deseja um boné especial, dá

um “corre” durante a semana, arranja a “grana”, compra o boné e arrasa no baile, sem muita

complicação.

A roupa curta e justa das moças não me pareceu também restrita aos bailes. Encontrei

pelas ruelas, dentro dos ônibus, nas vilas, saias tão curtas que duvidei que as moças

conseguissem se assentar. E elas conseguem, sem constrangimento algum! É natural, faz parte

da identidade do grupo. No baile, na rua ou nos pequenos comércios locais, a roupa é a

mesma. Parece não haver uma divisão entre roupa de festa e roupa do dia a dia. Ou seja, é

orgânico. O funk, por sua vez, é o barulho da favela. É música de lavar carro, fazer faxina,

reunir os amigos – faz parte, “sempre foi assim” (dizem eles).

Outra expectativa que eu tinha era entender como os MCs se transformam em ícones

cool do grupo, como é essa construção identitária. Para isso, pretendia partir do grupo,

tentando entender o que o grupo enxerga no MC. Para minha surpresa, eles pouco falaram

sobre o MC. O MC comanda a festa, dá o tom do ritmo da noite, compreende o desejo da

galera, mas parece não ser imitado no que tange ao consumo. As informações de moda, que

dão o tom dos desejos de consumo, parecem vir da mídia e são ressignificadas pelo grupo.

Essa ressignificação, por sua vez, é mediada pelo capital financeiro e simbólico do grupo. Ou

seja, a teoria proposta por Bourdieu (2007) e redesenhada por Holt (1998) se aplica totalmente

ao que encontrei em campo. Se eu ficasse limitada ao que enxerguei dentro das comunidades,

o cool capital faria pouco sentido.

Entretanto, impossível não enxergar o fenômeno do funk em uma perspectiva macro.

Se voltarmos ao referencial teórico referente à identidade cool, tratado nesta tese, veremos

que as principais características, compartilhadas pelos diversos autores, que definem o sujeito

reconhecido como cool são:

137

(a) Talento, audiência e aproximação das ruas, que são atributos socialmente

construídos, como popularidade ou status. Ou seja, é cool quem é reconhecido

pelo outro como cool (Belk et al., 2010);

(b) Estilo, que, para Belk et al. (2010), é expresso por meio da música, da dança,

do esporte, da forma de falar, se vestir e dos gestos. Para esses autores, a

música rap e a cultura hip hop emergem como cool. O rap contém as

características básicas do cool: é rebelde, romantiza o que é fora da lei e lança

tendências de moda;

(c) Autenticidade, singularidade, atitude, autonomia, contraculturalismo,

indiferença ao mainstream e impulsividade, características próximas e tratadas

por Warren e Campbell (2014) e Belk et al. (2010). Referem-se à disposição

para criar seu próprio curso de vida, independente das normas e expectativas

dos outros. Conformidade, mimetismo e necessidade de pertencimento

sugerem a ausência dessas características.

Belk et al. (2010) afirmam que a busca pelo status de cool é, atualmente, o maior

motivador de consumo global. Esses autores nos convidam a pensar em uma condição social

fundamental aos jovens contemporâneos: ter uma presença cool, que, em última instância,

significa ser amado, admirado e, assim, ter esse status validado pelo micro grupo do qual o

agente pertence.

Bird e Tapp (2008) se remetem ao conceito de capital cultural de Bourdieu, para situar

o cool como um “capital ilegítimo”, ou seja, baseado, nos ícones da internet, do cinema, das

músicas alternativas, das bebidas e grifes da moda, enfim, do conhecimento e

compartilhamento das últimas tendências. Essa nova elite, a elite cool, não é definida pelo

dinheiro e classe social. O cool é uma alternativa valiosa ao capital cultural, construída nos

grupos sociais locais. Para Belk et al. (2010), o que se busca não é o status da elite, mas sim

o status de cool.

Retornando ao contexto da pesquisa, é mister afirmar que os jovens da periferia

apresentam a música como um retrato de seu dia a dia. A música comunica características

populares, ligadas à vivência do momento, à liberdade. Sendo assim, música funk,

representativa da cultura material dos jovens da periferia, é o recurso sensorial usado para

entregar para o mundo as características de audiência, atitude, estilo, aproximação das ruas,

talento, autenticidade, autonomia, contraculturalismo, singularidade, impulsividade e

indiferença ao mainstream desses jovens das camadas populares.

138

Essas características foram claramente percebidas por mim, tanto nas ruas quanto nas

falas de meus entrevistados. Dentre todas as características, um grupo aparece de forma muito

forte. O estilo, a aproximação das ruas, a autenticidade, a singularidade, a atitude, a

autonomia, o contraculturalismo, a indiferença ao mainstream e a impulsividade são muito

evidentes nos discursos dos jovens escutados.

Algumas dessas características, inclusive, são da essência da cultura hip hop, em que o

funk está inserido. O contraculturalismo e a atitude revelada pelo funk são o que o aproxima

das ruas. Isso fica muito claro nos trechos de entrevistas transcritos a seguir:

“O funk relata a vivência da periferia, toda a dificuldade, como é o dia a dia da periferia.” (Jonathan, 22 anos)

Percebe-se, na fala de Jonathan, uma questão que parece retratar a forma como os

jovens entrevistados veem o funk. O estilo musical é fruto da construção dos próprios jovens

ao descrever nas letras o cotidiano da periferia, a dificuldade presente na “vida vivida”, o que

o coloca em uma posição de oposição às letras bem comportadas e “fabricadas” em estúdios

para “vender” uma vida irreal, fantasiada. Isso parece estar em consonância com a ideia do

contraculturalismo e com a atitude.

“Eu vejo no funk uma tentativa de escrachar mesmo as coisas que acontecem na vida real, enquanto na zona sul tenta-se omitir.” (Lana, 25 anos)

A entrevistada Lana também reforça a ideia de que o funk funciona como uma forma

de mostrar ao público em geral o que, de fato, ocorre na periferia. O uso da palavra

“escrachar” remete ao conceito de abrir, mostrar por inteiro, escancarar, um pouco diverso de

um dos significados originais da palavra que reforça o conceito de “desmoralizar,

ridicularizar”.

“Eles (os MCs) foram livres na letra deles. Eles fala “aqui nós mata”, “aqui nós faz”, é a realidade, fraga. E eles não tão impondo isso pra ninguém, tipo reproduza aputaria, o tiro no muleque. Eles tão falando assim ó: aqui nó tá tendo isso por enquanto. Tá pra nascer um dia que as letras de funk e que as letras de rap que nasce no morro vai falar assim: aqui rola poesia, aqui rola um rap pela órdi, aqui cê num precisa ostentá, aqui cê num precisa ter do melhor pra você se sentir incluso, aqui cê vai ser aceito cê é. Na quebrada a gente não é aceito entre si mesmo.” (Jéssica, 20 anos) “O favelado mata a cobra e mostra o pau.” (Jéssica, 20 anos)

139

Os dois fragmentos da fala de Jéssica confirmam a ideia apresentada anteriormente de

que o funk é o retrato da periferia, é a forma que o jovem encontra para extravasar seus

sentimentos. Dessa forma, é esperado que as letras denunciem situações de dificuldades e

violência. Fica evidente, também, que esse tipo de letra não está impondo essa realidade, pelo

contrário, é somente um retrato que parece estar longe de uma situação poética e idealizada, o

que reforça a característica de contraculturalismo, mas também e, principalmente, a

característica de autenticidade. Os próximos excertos ratificam a questão.

Mas como na quebrada fica muito mais escancarado o povo tem muito menos vergonha de mostrar o que é. Então isso gera mais desconforto nas políticas, nas sociedades, então as pessoas vão lá e ‘bater’ no baile funk.” (MC Klebinho, 34 anos) “Quando você está na periferia você vai estar em contato com a cultura da periferia. Então o funk tava lá, do mesmo jeito que o picho tava lá.” (Ananda, 22 anos) “Eu interpreto que eles (falando sobre o MCs) foram livres na letra deles e eles fala aqui nós mata, aqui nós faz,é a realidade, é uma realidade. Assim, eles não tão impondo isso pra ninguém, tipo reproduza a putaria, reproduza o tiro no muleque. Eles não tão falando isso, eles tão falando assim: aqui só tá tendo isso por enquanto, fraga. Tá pra nascer um dia que as letras de funk, letras de rap que nasce no morro vai falar assim: aqui rola poesia, aqui rola um rap pela órdi, aqui você não precisa ostentar, aqui você não precisa ter do melhor para se sentir incluso. Na quebrada a gente não é aceito entre si mesmo.” (Jéssica, 20 anos)

A autenticidade parece de forma clara no trecho apresentado do discurso de Ananda,

quando ela afirma que o “funk tava lá, do mesmo jeito que o picho tava lá”. Ou seja, ela

parece atrelar o funk ao ambiente marcado por pichadores. Nesse caso, ambos estariam

relacionados ao ambiente típico das comunidades pobres.

Importante perceber ainda a forma como o grupo valoriza o contraculturalismo, a

indiferença ao mainstream, assim como a autenticidade. O trecho de entrevista transcrito a

seguir deixa isso explícito, ao enfatizar que as músicas que falam de temas que não retratam a

realidade desses jovens acabam tendo pouca aceitação por parte deles.

“Hoje por exemplo, os MCs da Som Livre, Nego do Borel, a Anitta, a Ludmila, a galera da quebrada não escuta. Se você colocar eles vão reclamar, que é cafona, que fala de amor, esconde aquilo que os meninos querem ouvir.” (MC Klebinho, 34 anos)

Essa aproximação das ruas, por sua vez, concede audiência ao funk, audiência, esta,

que ganha o mundo, como podemos observar no trecho transcrito a seguir.

140

“O funk para mim é uma riqueza genuína do Brasil e é um lugar onde boa parte dos adolescentes e dos jovens conseguem se expressar e comunicar aquilo que ele tá vivendo ali.” (MC Klebinho, 34 anos)

A fala de MC Klebinho parece resumir uma característica do funk que se relaciona ao

conceito de cool quanto a sua característica de singularidade. Dito de outra forma, é por meio

do funk que retrata o seu cotidiano que os jovens se singularizam, tornando-se “especiais”,

“únicos” e acabam criando uma oportunidade para conquistar um lugar no mundo. Os dois

trechos das duas falas de MC Jeffinho também deixam isso evidente.

“Mas o funk é surpreendente assim ele leva um menino da comunidade a virar um cara super famoso.” [...] “O funk é a minha vida. É tudo né? É tudo o que eu conquistei, tudo o que eu fiz. É até emocionante.” (MC Jeffinho, 36 anos)

Conforme os autores, para ser cool é preciso ter audiência. Isso parece estar óbvio nos

próximos trechos extraídos dos discursos do MC Jeffinho e de outros apreciadores do estilo

funk.

“Isso! Eu não consegui achar a palavra, mas eu vi uma cortina, que é o seguinte, tem uma cortina na sua frente eu digo para os artistas de funk. Uma hora quando ela se abrir imagina o teatro, vai se abrir vai ter ninguém ou vai se abrir e não vai ter espaço para o tanto de gente que estará te esperando, entendeu? É uma surpresa. O funk é uma coisa que assim, é o que a gente está falando. Pegou um Nego do Borel, um cara que andava descalço na favela e fez um astro hoje que para mim ele é um super artista, hoje né. Já tive minhas críticas dele, mas assim se tornou um artista grande.” (MC Jeffinho, 36 anos) “O funk começou a atingir um outro lugar, um lugar que não era o dele...” (Ananda, 22 anos) “O funk virou uma coisa universal. Eu fui numa calourada na UFMG e tava tocando MC Dodô. Eu fiquei abismada. As pessoas não sabiam rebolar, mas tava lá. É uma parada que não adianta você falar que não curte, é muita hipocrisia quem fala que não gosta.” (Ananda, 22 anos) “A hora do funk é a hora que mais bomba. Todo mundo quer bater a bunda no chão e ser feliz naquela festa, sair de lá suando e num conseguir nem andar no outro dia.” (Patrícia, 24 anos)

Constata-se, por meio das falas dos entrevistados, o sentimento de que o funk é algo

que extrapolou o ambiente das comunidades pobres, para se tornar um movimento cool para

outros públicos diferentes do original. Ananda menciona algo relevante, ao dizer que em um

ambiente que não é o “da quebrada”, mas sim o de um público mais refinado como o da

calourada da UFMG, o funk tem um lugar de destaque. Contudo, percebe-se, na visão dela,

141

que os jovens de lá não “sabiam rebolar”, longe da forma autêntica de se comportar, típico de

quem nasceu “na quebrada”.

É importante ainda mostrar como a questão do estilo atrelado ao movimento funk

permeia o discurso de vários dos entrevistados.

“Buscam o estilo tambem né? Uma identificação com um grupo social.” (MC Klebinho, 34anos) “Eu acho que o funk vira um estilo de vida” (Patrícia, 24 anos) “Ah mano! Tem que andar na moda, né?” (Thiago, 15 anos) “A gente se identifica com esse tipo de tribo. Aí, tem que ter essa identidade para, nó, chegou a pessoa, já tá com um cortezinho (de cabelo), um boné, você vai criar uma aproximação que rola, né? Eu acho muito da hora.” (Patrícia, 24 anos)

Os excertos apresentados tocam em questões que são esclarecedoras para este ponto da

análise. Ao longo de todo o tempo que estive em campo, conforme já discutido em outras

seções deste capítulo de análise da tese, ficou evidente que a criação dessa identidade se dá

por meio de um estilo particular não somente ligado à indumentária, mas também pela forma

de dançar, cantar e agir no cotidiano.

“Tinha um ditado que periguete não sentia frio. Para ir num baile funk você pode achar que cê sente frio só porque cê tá em Belo Horizonte. Cê precisa tá com a vestimenta, tem que tá a caráter mesmo.” (Ananda, 22 anos)

A entrevistada Ananda, em sua fala, explicita o modus operandi do baile funk, no qual

as meninas se vestem com roupas muito curtas e apertadas. Essa indumentária, já discutida

em outros pontos deste capítulo, serve para mostrar o caráter de estilo da identidade cool que

emerge desse grupo de consumidores do estilo musical funk.

Os fragmentos de fala de outros entrevistados reforçam essa questão de que o estilo

não se limita à indumentária.

“É pela órdi andá na moda, mano!” (Thiago, 15 anos) “Eu nunca fui ligada nesse rolê de tá igual o artista, o cantor, justamente porque eu tinha a limitação financeira, então, eu vejo o que meu dinheiro dá. A minha questão é o que eu achar que eu tô bonita, tô gostosa.” (Ananda, 22 anos) “Foi uma parada que durante anos eu martirizei por não fazer era o piercing no umbigo. Piercing no umbigo com a pingentezinha da Playboy. Era bem isso assim.” (Ananda Leão, 22 anos)

142

“Minhas amigas tinham tudo… era piercing na sombrancelha, no umbigo, na língua.” (Ananda Leão, 22 anos)

Os autores que trabalharam com os conceitos relativos à identidade cool os ressaltam

como aplicáveis a indivíduos. Quem é reconhecido como cool é o sujeito. Entretanto, ao

considerarmos a Teoria da Cultura Material, voltamos nosso olhar em direção aos grupos

culturalmente constituídos. Savaş (2014) aborda a cultura material a partir do gosto coletivo

pelos objetos que compõem o dia a dia dos grupos culturalmente constituídos. A Teoria da

Cultura Material permite mapear a agência e os efeitos do relacionamento entre

consumidores, objetos, relações de consumo e construção de identidade, considerando, ainda,

o contexto em que estas relações são construídas.

Se fizermos uma interposição entre a teoria relativa à cultura material e a teoria

relativa à construção da identidade cool, considerando esses achados do campo, parece que

bens culturais como a música são capazes de agrupar os indivíduos de forma que, perante a

sociedade, assumam uma identidade única – nesse caso, uma identidade cool. A unicidade

cultural do grupo parece permitir que ele adquira características que teoricamente são

percebidas em indivíduos – como a identidade cool.

Conforme é possível compreender nesta análise dos dados, o que encontrei foi um

contexto em que os jovens, apesar da presença da violência e do tráfico de drogas, vivem o

momento a partir de um lugar marcado pela música funk. O funk se confunde com os sons

naturais das esquinas, das casas, da vida em comunidade. Ouve-se funk em casa, na rua e no

trabalho. É muito presente! Por meio do funk, o indivíduo é socializado e, permeado por esse

gosto musical, ele se constrói, se relaciona e se apresenta ao mundo. As letras cantam a

realidade vivida e falam do lugar de quem vive a periferia. O baile funk é uma experiência de

lazer e socialização para jovens com poucos recursos para outras possibilidades, até mesmo

para além do lazer. É um momento mágico, de desprendimento da dura realidade para

vivenciar uma fantasia, embalados por uma indumentária capaz de comunicar estilo. A

música funk assume o papel de instrumento sensorial de comunicação da cultura material

desse grupo para a sociedade, conforme tangibiliza a figura a seguir:

Figura 15: Proposta teórica desta tese

Fonte: desenvolvida pela autora para ilustrar esta tese.

144

Dessa forma, o corpo desta pesquisa de campo nos mostra que um recurso sensorial de

cultura material pode assumir o papel de comunicar para fora do grupo a identidade deste

grupo, que passa, então, a ser reconhecido em sua unicidade e por essa identidade.

Uma vez que reconhecemos nesse grupo as principais características, compartilhadas

pelos diversos autores aqui citados, que definem o sujeito reconhecido como cool, uma vez

que o estilo, a aproximação das ruas, a autenticidade e a singularidade, a atitude, a autonomia,

o contraculturalismo, a indiferença ao mainstream e a impulsividade são muito claras nos

discursos dos jovens escutados, parece-nos possível dizer que encontramos um grupo cool.

Individualmente, se resgatados desse espaço que ocupam em conjunto, esses indivíduos não

são reconhecidos como cool pelos seus pares, mas, a partir da força do grupo, comunicam e

são percebidos socialmente por essa identidade. E, nesse, sentido, apresento as considerações

finais desta tese.

145

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo, que tem como objetivo tecer as considerações finais da tese, busca

resgatar os pontos mais relevantes da pesquisa, discutir as suas contribuições para o campo,

além de apontar as limitações que se fizeram presentes ao longo de toda a trajetória do estudo

e de comentar aquelas que podem ser consideradas sugestões para estudos futuros.

Em primeiro lugar, torna-se essencial reforçar os pontos teóricos que nortearam o

estudo, desde a escolha do tema passando, evidentemente, pelo percurso da pesquisa de

campo e, por conseguinte, pela análise dos dados. Para isso, retomo a Barbosa e Campbell

(2006), para ressaltar que o consumo, de fato, pode ser entendido como um produtor de

sentidos e identidades, bem como uma estratégia usada no dia a dia dos atores sociais para

definir situações em termos de direitos, estilo de vida e identidade, ou seja, uma categoria

central na busca por definição da sociedade contemporânea. Tal como expresso na revisão da

literatura e percebido em diversas análises, os resultados da pesquisa permitiram enfatizar que

o contexto em que esta pesquisa foi desenvolvida me permitiu tanto conhecer a identidade de

consumo dos jovens de baixa renda quanto compreender a forma como constroem e

significam essa identidade.

Em segundo lugar, é essencial retomar aquelas indagações que serviram de ponto de

partida para a realização da pesquisa. Não posso deixar de frisar que todas elas foram

devidamente respondidas pelas discussões advindas da análise dos resultados e, melhor ainda,

serviram de ponto de partida para outras reflexões que poderão compor novas investigações.

Isso porque, ficou evidente que os jovens pesquisados estão continuamente ressignificando o

conceito dos bens em seu cotidiano e que o funk permeia todo esse processo.

No mesmo sentido, não se pode deixar de levar em conta que são essas diversas

vivências em relação ao papel dos objetos no seu cotidiano que potencializam a criação de

uma identidade cool, a qual faz com que esses jovens encontrem um lugar nesse universo de

signos e significados. Esses signos e significados acabam assumindo o papel de diferenciador

deles em uma sociedade de consumo na qual a questão simbólica assume um papel central

como mediadora das relações sociais.

Seguindo a ideia de resgatar aqueles pontos essenciais do trabalho, torna-se importante

rever os objetivos estabelecidos para o trabalho. O primeiro desses objetivos era compreender

a forma como o cotidiano dos jovens de baixa renda integrantes do movimento funk é

permeado por padrões de consumo. Nesse contexto, é relevante sublinhar uma questão. Os

resultados do trabalho sugeriram que as vidas dos jovens pesquisados, ainda que marcadas por

146

carências materiais evidentes, não os limitam na construção dos significados dos bens aos

quais eles têm acesso. A indumentária funk mostrou isso de forma clara, uma vez que, embora

as roupas fossem simples, sem ostentação de marca e com baixo padrão de sofisticação, isso

não significa ausência de simbolismo. Pelo contrário: criou-se um “padrão”, um “modelo” de

indumentária que serve para criar um estilo que se mostrou capaz de ser “importado” para

outros contextos e utilizado por outros jovens.

Por meio das práticas socioculturais desse grupo, foi possível perceber a construção de

processos simbólicos que levaram à construção da identidade cool por eles, conforme

retratado na análise dos resultados. Os objetos, nesse caso, principalmente, as roupas,

contribuíram para isso. Dito de outra forma, tentando resumir em poucas palavras o que os

resultados da pesquisa permitem afirmar, posso dizer que o funk não determina o consumo

dos jovens, ele é expressão de uma condição de vida. É um traço de cultura resultante da

condição de vida financeira, social e cultural desses jovens, ou seja, reflexo de seu habitus e

do campo em que vivem.

Não posso deixar de salientar outros pontos que considero essenciais. Enquanto eu

realizava esse trabalho de campo, tive a oportunidade de conversar com alguns jovens mais

abastados e participar de algumas de suas festas, em que o funk foi o estilo musical central.

Pude perceber que a música também domina as festas dos jovens de classes sociais mais altas

e é mote de festas caras, em casas de shows segmentadas para um público mais privilegiado

em relação ao aspecto socioeconômico. Nessas festas, as meninas também usam roupas curtas

e justas e os rapazes também usam bonés de aba reta, como nos bailes de favela. A música é

alta, os jovens dançam mediados pelas coreografias e as bebidas ou as drogas também estão

presente. Colocando-me de fora e avistando uma festa e outra, impossível não enxergar as

semelhanças. Parece que a diferença é que, para os jovens pobres, o funk é expressão da vida

e, para os jovens ricos, é um momento de extravasar. Os elementos da festa parecem os

mesmos, a diferença talvez seja a expressão desses elementos na vida dos jovens.

Por outro lado, parece-me que jovem rico adota o funk como a música que representa a

festa, o descompromisso, a oportunidade de viver o momento. É como se ele transpusesse a

vida simples do menino da favela, que vive o agora, para aquele momento de festa. Ali ele

dança, paquera, bebe, embalado pela música e pelas roupas – que exercem um papel de

fantasias; mas saindo dali, ele retoma sua vida, permeada pelas preocupações com o futuro,

como é a vida de um jovem brasileiro de classe média alta. Parece-me que a diferença entre os

dois grupos é que o que é momento para o jovem com maiores posses financeiras e simbólicas

é vida para os jovens de baixa renda.

147

Os jovens pobres apresentam a música como um retrato de seu dia a dia; os jovens

ricos a usam para trazer cor e alegria para os momentos de festa. Acredito que seja uma

apropriação, por meio da música, das características populares, ligadas à vivência do

momento e à liberdade. Os jovens da favela se tornaram cool, seu gosto é momentaneamente

copiado, em tom de fantasia. A música é o recurso sensorial que traz as características de

audiência, atitude, estilo, aproximação das ruas, talento, autenticidade, autonomia,

contraculturalismo, singularidade, impulsividade e indiferença ao mainstream dos jovens das

camadas populares para os jovens mais abastados – mas apenas no momento da festa.

Provavelmente, reside aí a diferença da relação com o funk entre os jovens pobres e os jovens

abastados.

Diante desses resultados, sinto-me confortável em apontar que o estudo apresenta

contribuições para o campo dos estudos de consumo no Brasil. Primeiro, porque se alinha a

outros estudos que ao longo dos últimos 15 anos vêm tirando da invisibilidade a discussão

relativa às questões simbólicas e essencialmente sociais e culturais do consumo de uma

parcela significativa da população que, historicamente, foi relegada a segundo plano pelos

pesquisadores das áreas de marketing e estudos do consumo.

Ao trazer a questão da cultura material entendida a partir da noção de que os objetos

constroem sujeitos para essa discussão, o trabalho pode oferecer subsídios interessantes para o

papel dos objetos no contexto de consumidores que, via de regra, não têm acesso a tantos bens

devido às suas carências financeiras.

Complementarmente, o estudo traz contribuições para o campo, visto que se acomoda

na lacuna percebida entre a construção da identidade cool e as diferentes combinações dos

capitais discutidas por Pierre Bourdieu em um contexto nacional com peculiaridades muito

específicas. Em suma, a contribuição teórica desta tese foi a análise do grupo estudado a partir

da lente da cultura material, concluindo que, sob esta perspectiva, é possível que um grupo, ao

invés de um indivíduo, assuma e comunique as características da identidade cool.

Cabe, neste momento, trazer à luz algumas discussões que remetem às limitações ou

dificuldades percebidas por mim ao longo de todo o processo de pesquisa. Foram necessárias

inúmeras e repetidas leituras de textos e artigos a respeito do consumo, para que eu pudesse

“mudar a chave”, a fim de perceber questões simbólicas e permeadas por questões sociais e

culturais em todos os atos de consumo. Entretanto, para alguém que foi socializada para ser

uma “executiva de marketing”, isso não se constituiu a parte mais desafiadora do processo.

Posso confessar, sem medo de me arrepender, que a parte mais angustiante de todo o processo

foi a entrada em campo.

148

Conforme descrevi minuciosamente ao relatar o caminho percorrido, não foram

poucos os percalços. Foi quase impossível, para uma mulher de 45 anos, branca, de olhos

claros, mãe, professora universitária, passar por funkeira. E eu pensava que se usasse calça

jeans, camiseta e sandália rasteirinha passaria batido... não só fui notada, como, de certa

forma, hostilizada. Precisei contar com o olhar do Matheus, nossa bolsista em parte desta

pesquisa, para adentrar nesse campo.

Esse olhar externo foi o que me permitiu aproximar dos jovens fãs do funk e, ao

mesmo tempo, foi minha maior fonte de ansiedade e angústias. O tempo do Matheus não era o

meu tempo, dessa forma precisei discutir com ele cada percepção. Impressionante como, até

frequentando o mesmo espaço, eu e Matheus enxergávamos o fenômeno de formas diferentes.

Matheus é jovem, acadêmico de Ciências Sociais e oriundo das classes populares. Essa

diferença de perfil foi, por si só, um grande desafio. Tive que mergulhar em um “mundo” no

qual os termos utilizados, o estilo de comunicação, os valores não estavam muito próximos

dos meus. Entretanto, ao longo do tempo, o olhar do Matheus foi se mostrando fundamental, e

eu precisei exercitar o dom da resiliência.

Sorte a minha de ter encontrado o Professor Dayrell, que me apresentou os MCs

Jeffinho e Klebinho. Esses rapazes foram fundamentais para o meu entendimento acerca do

campo e, como são um pouco mais velhos e já tinham trabalhado com o Professor Dayrell,

foram muito receptíveis em relação a minha presença. Esses encontros renderam-me dados,

contatos e energia para seguir adiante. Esse trabalho de campo durou, aproximadamente, dois

anos e foi intenso e tenso.

A partir daí, na análise dos resultados, as limitações do trabalho contaram com as

dificuldades normais de uma pesquisa interpretativista e essencialmente aberta, como a

proposta nesta tese. Para reunir as inúmeras peças de contornos tão distintos com o propósito

de construir uma narrativa que fizesse sentido e conseguisse, de fato, responder às questões da

pesquisa, foram necessárias muitas idas e vindas, muitas horas de dedicação e alguma dose de

angústia. Posso dizer, ao chegar neste estágio, que consegui, na medida do possível, contornar

todas as dificuldades e vencer os desafios.

Como disse anteriormente, a partir da análise dos resultados e de sua consequente

discussão, foram surgindo inúmeras outras reflexões que, tangentes ou não ao foco do

trabalho, servem para inaugurar férteis trilhas de pesquisas no campo dos estudos de

consumo. Uma dessas possibilidades caminha no sentido de se pesquisar outros públicos

consumidores do estilo funk. Uma primeira sugestão, portanto, é justamente a realização de

pesquisas junto aos jovens mais abastados da população. A condução de investigações

149

poderia contemplar o real papel do funk na vida desses jovens que, ao contrário do que foi

encontrado na tese, não foi construído por eles e está distante do seu cotidiano. Nesse sentido,

é fundamental compreender o poder que alguns elementos culturais têm de servir de ponte

para realidades momentaneamente almejadas. Assim, investigações que direcionassem o foco

para os bailes funk voltados para públicos de outras classes econômicas com outras

construções socioculturais seriam de grande valia para comparação de resultados.

Na esfera da cultura material, outras sugestões para trabalhos futuros emergem a partir

dos resultados apresentados. A pesquisa se limitou a entrevistar os jovens oriundos de

camadas pobres da população no tocante ao consumo do estilo funk, mas não destinou

esforços a conhecer as casas e os pertences desses jovens. Estudos etnográficos que

buscassem entender a relação deles com os objetos relacionados ao consumo do funk

poderiam trazer resultados relevantes.

Outros conceitos importantes dos estudos de consumo como socialização, práticas de

consumo, poder da marca, narrativas de consumo, estigmatização, consumo do corpo, entre

diversos outros, apenas tangenciados na análise, podem servir de ponto de partida para

importantes contribuições em investigações futuras. No mesmo caminho, o aporte de outras

temáticas caras a campos de estudos afins ao consumo também pode ser considerado como

adequado.

Ficou constatado, na discussão dos resultados, que as letras das músicas têm o papel

de denunciar o cotidiano desses jovens. Caberia, portanto, a condução de pesquisas que

pudessem analisar, à luz de metodologias diversas como, por exemplo, a análise de discurso

crítica e a análise sociosemiótica, como essas letras retratam, refletem e refratam o dia a dia

desses jovens no tocante aos seus posicionamentos políticos e seus entendimentos no que

tange a outros temas complexos ligados às relações na sociedade.

Em todas essas análises não poderiam ficar de fora temáticas caras ao conceito de

interseccionalidade, tais como a articulação entre as variáveis gênero e etnia e, também,

elementos ligados às classes econômicas.

A riqueza é muita e a vida é latente. Esses jovens são pura fonte de energia e merecem

um olhar curioso, cuidadoso e criterioso, sob diversos aspectos. Como dizem pelo interior de

nossas Minas Gerais, há muita água pra rolar por baixo dessa ponte...

150

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158

ANEXOS

9.1 Roteiro 1 – entrevista com os MCs Magnata da ZN e Charlin

Roteiro de Entrevista – MC Magnata da ZN e MC Charlin – dezembro 2014

§ Conte-nos um pouco sobre a sua vida cotidiana.

§ Como é sua relação com seus familiares?

§ Com quem você mora? Como é o dia a dia em sua casa?

§ Conte-nos um pouco sobre suas amizades.

§ O que você mais gosta de fazer em suas horas vagas?

§ E com relação ao trabalho? Você gosta do que você faz? Se tivesse a oportunidade de

mudar de trabalho, você mudaria? Fale um pouco sobre isso.

§ Há quanto tempo você(s) faz(em) este trabalho?

§ O que é o funk para você?

§ Como e por que você se identificou com o funk?

§ Quando surgiu a idéia do nome Funk da Ostentação? Conte-nos como foi.

§ Por que Funk da Ostentação?

§ Você(s) se baseou(aram) em alguém para isso?

§ Qual é sua base de inspiração para as músicas?

§ Por que as letras e os vídeos focam sempre em produtos caros e de marca?

§ As pessoas que ouvem e cantam suas músicas conhecem e valorizam esses produtos e

marcas? Na sua opinião, por que isso acontece?

§ Você cita sempre marcas famosas e caras em suas letras. Por que gosta de reforçar os

produtos de marcas? O que é a marca para você?

§ Qual é o principal público para suas músicas?

§ Por que suas músicas chamam atenção desse público?

§ O público reconhece as marcas e os produtos mostrados por vocês?

§ O que é o dinheiro para você?

§ Você possui tudo que gostaria de ter?

§ Quais são seus sonhos de consumo?

§ Se você ganhasse um bom dinheiro na Megasena, o que faria?

159

§ Como você se considera como consumidor?

§ O que mais gosta de consumir? Fale um pouco sobre isso.

§ Onde você gosta de fazer compras? Por quê?

§ Se você tivesse mais dinheiro, o que compraria a mais?

§ Você se considera consumista?

§ Vamos agora fazer um exercício de imaginação. Considere que estamos em uma nave

espacial voando pelo espaço. De repente, avistamos um planeta chamado “Planeta Funk”.

Tente descrever para mim com o máximo de detalhes: Como seria este planeta? Que cores,

movimentos, formas podemos notar? Como é a geografia desse planeta? Como são os

habitantes desse planeta? Como são as casas nesse planeta? Como eles se relacionam? O que

eles fazem em seu dia a dia? Como estão vestidos? O que comem e bebem? Como você se

sente lá?

9.2 Roteiro 2 – entrevista com o MC Monge

ROTEIRO DE ENTREVISTA: MC MONGE

Entrevista Mc Monge

Movimento Família de Rua

Dia 25/3/2015

Quem é o Monge?

Como é ser o Monge?

O que é Mc?

O que é ser um Mc?

Como se chega a essa “patente”?

ENTENDENDO QUE O HIP HOP É UM MOVIMENTO CULTURAL, MAS FALANDO

AINDA APENAS DO MC...

Qual é o papel do MC dentro do Hip Hop?

160

Quais as características necessárias para que o Mc seja respeitado dentro do movimento?

Qual a importância do Mc para os objetivos do movimento?

FUNK, HIP HOP, NEW REC...

Qual a história dos movimentos culturais de rua/comunidades ligados a esse universo?

Como surgiu, evoluiu e chegou aos dias de hoje o movimento Hip Hop e, neste contexto, a

“Família de Rua”?

O que é, qual o papel e objetivos deste movimento?

POSICIONADO O “FAMILIA DE RUA”, RETORNAR A ABORDAGEM PARA O

CONTEXTO FUNK GERAL, SITUANDO O FUNK OSTENTAÇÃO.

Qual a sua visão sobre o Funk Ostentação?

Em que momento houve essa segmentação?

Porquê surgiu e porquê faz sucesso?

Qual é o público?

9.3 Roteiro 3 – entrevistas com os jovens rappers do “Setor RAP”, com os MCs Jeffinho,

Klebinho e com DJ Joseph

ROTEIRO DE ENTREVISTAS – MCs FUNK e DJ Joseph

Apresentação

Fale um pouco sobre você (sua família, trabalho, hobbies, relacionamento com amigos, etc)

Como surgiu seu interesse por música?

Como começou sua trajetória no funk? Conte-me sobre isso.

Há tempo você atua como MC?

Quais foram os principais momentos de sua trajetória no funk?

Qual foi o melhor e o pior momento dessa trajetória?

Se tivesse a chance de voltar no passado, o que você não faria?

161

Que conselho você daria para um iniciante no funk?

Significados do funk

O que é o funk para você?

O que não combina com funk?

Caso tivesse que resumir em uma única palavra o que é o funk, qual seria essa palavra? Por

quê?

O que mais gosta no funk?

O que menos gosta?

Qual(is) música(s) simboliza(m) o funk para você?

Quem são as pessoas que mais gostam de funk? Quais são as características delas?

Quando que você acha que as pessoas mais consomem funk?

O que você acha que é a característica mais marcante do funk que faz tanta gente curtir esse

movimento?

História do funk em BH

Quais foram os principais eventos que marcaram a história do funk em BH?

Quais são as diferenças marcantes entre o funk dos anos 90, 2000 e atual?

Quais foram os personagens marcantes do funk em BH ao longo do tempo?

O que mudou nesse tempo? O que mudou para melhor? E para pior?

Quando foi o auge do funk em BH? Conte-me detalhes dessa época.

O que o funk de BH tem de diferente de outros lugares do Brasil como Rio de Janeiro e São

Paulo?

E quanto às pessoas fãs do funk? O que mudou nesse tempo?

E com relação à mídia? O que mudou nesse tempo?

Características dos bailes funk

Quais são, na sua opinião, as principais características do baile funk?

Que tipo de pessoas mais frequentam esses bailes?

Como essas pessoas se vestem? Como se comportam? O que gostam de fazer em um baile?

O que mais combina com os bailes funk?

162

O que não pode faltar em um baile funk?

Qual é o papel do MC em um baile funk?

Quais são as características necessárias para que o MC seja respeitado pelo público?

O que o baile funk significa para essas pessoas?

Para muitas pessoas, o baile funk é sinônimo de violência e consumo de droga. Você

concorda com essa afirmação? Por quê?

Fechamento

Há algo que você gostaria de complementar ou de falar que não conversamos aqui?

9.4 Roteiro 4 – utilizado por mim na entrevista com o jovem Pedro Ivo e pelo acadêmico

Matheus nas entrevistas realizadas com os fãs do movimento funk.

Roteiro entrevista – Pesquisa Funk

1ª etapa – Aquecimento

Antes de começarmos a falar do tema da nossa pesquisa, gostaria de lhe pedir que falasse um

pouco de você. Você poderia se apresentar?

• Nome e idade

• Naturalidade

• Tipo de ocupação. Em que você já trabalhou?

• Com que pessoas vive em casa (nome e idade)?

• Fale um pouco sobre sua família em termos de formação, profissão, atividades

profissionais (pais, irmãos).

• Como é o seu dia a dia? Conte-me com detalhes como é o seu dia.

• O que você mais gosta de fazer quando está em casa?

• E fora de casa? Onde você gosta de ir? Com quem? Quando? Fale um pouco sobre

isso.

• O que é o dinheiro para você?

163

2ª etapa – Hábitos de compra

• O que você mais gosta de fazer quando está em casa?

• E fora de casa? Onde você gosta de ir? Com quem? Quando? Fale um pouco sobre

isso.

• O que é o dinheiro para você?

• Você gosta de usar produtos de marca? Por quê?

• Que marcas você mais gosta de usar? O que essas marcas dizem para você?

• Se você tivesse mais dinheiro, o que compraria para você?

• Você gosta de fazer compras? Em quais momentos? Com quem?

• Descreva o que sente quando vai às compras?

• O que mais gosta de comprar? Por quê?

• Onde você gosta de fazer compras? Por quê? Fale sobre lojas, shoppings, marcas, etc.

• Descreva, com o máximo possível de detalhes, uma boa experiência de compra que

você vivenciou?

• Descreva, com o máximo possível de detalhes, uma desagradável experiência de

compra que você vivenciou?

• Que tipo de roupas você mais gosta de usar?

• Que marcas você mais gosta de usar? O que essas marcas dizem para você?

• Se você tivesse mais dinheiro, o que compraria para você?

3ª etapa – Consumo de música

• Que tipo de música você mais gosta de ouvir?

• Qual estilo musical tem mais a ver com você?

• Qual tipo de música você não gosta? Por quê?

• Quando você mais ouve música?

• Você tem que tipo de aparelho para ouvir músicas?

• Como adquire essas músicas?

• Quais são seus artistas prediletos?

4ª etapa – A relação com o funk

• O que é o funk para você?

• Quando você pensa em funk, o que vem a sua cabeça?

164

• Se você pudesse resumir em uma única palavra o que é funk, o que seria?

• Quais são seus ídolos? O que esse ídolo tem a ver com você?

• O que você mais gosta no funk: as letras ou a “batida”? Fale um pouco sobre isso.

• O que as letras dizem para você?

• E seus amigos? Curtem funk também? O que eles têm de semelhança e diferença de

você em relação ao funk?

• Como sua família vê o seu consumo de funk?

• Você gosta de ver vídeo-clipes de funk?

• Qual(is) imagens mais gosta de ver em video-clips?

• Fale um pouco sobre um vídeo-clip que você gosta muito?

• E seu s amigos? Eles curtem ou não vídeo-clips?

• Fale um pouco sobre o que você gosta de ver em um vídeo-clip.

• Você gostaria de participar de um vídeo desses? Por quê?

5ª etapa – O baile funk

• Você gosta de ir em bailes funk?

• O que “rola” nesses bailes, que você mais gosta?

• O que você acha das pessoas que frequenta esses bailes?

• Conte-me a sua experiência no último baile que foi. Fale sobre o local, as pessoas, as

músicas, o que foi bom e ruim.

• Com quem você vai nesses bailes?

• O que as pessoas buscam em um baile funk?

• Como você gosta de se vestir quando vai a um baile funk?

• O que você acha que é mais adequado em termos de roupas em bailes funk?

• O que não pode faltar nesses bailes? Por quê?

• Como é o seu consumo de bebidas em um baile funk?

• O que a sua família acha de sua participação nesses bailes?

• Qual parcela dos seus amigos/colegas/conhecidos também frequentam esses bailes?

• Onde você conheceu seus, amigos/colegas/conhecidos que frequentam os Bailes

Funk?

• Quanto normalmente você está disposto a investir em vestimentas para usar nos

bailes?

165

• E com relação ao Mcs? O que você mais gosta?

6ª etapa – Funk e Cultura Material

• Na sua opinião, qual é a roupa mais adequada para alguém que seja da cultura funk?

• Quais são as marcas que são mais utilizadas pelos apreciadores do funk?

• Como as roupas são usadas pelos apreciadores do funk?

• O que não pode faltar em termos de consumo para apreciadores do funk?

• E com relação a cabelo, maquiagem, adereços? O que combina com apreciadores de

funk?

• E bonés, óculos e outros materiais? O que combina com apreciadores de funk?

• Você possui algum piercing e/ou tatuagem? Como escolheu o tipo de

piercing/tatuagem que iria fazer (região do corpo/design)? Quanto foi investido?

• Você pretende fazer/colocar mais pelo corpo? Onde e qual tipo?

• Existe alguma celebridade da Cultura Funk que influencia na sua vestimenta, adornos,

tatuagens, piercings?

• Quanto você investe na manutenção de tatuagens e piercings e quanto você está

disposto a investir em novas tatuagens e piercings?

7ª etapa – Fechamento

• Para muitas pessoas, o baile funk é sinônimo de violência e consumo de droga. Você

concorda com essa afirmação? Por quê?

• Pense em você daqui a dez anos. Como você se vê? Você ainda estará consumindo

funk? Por quê? Fale-me sobre isso.

• Na sua opinião, qual é a próxima tendência do funk em termos de músicas, bailes,

roupas, ídolos e outros?

• Há alguma questão relacionada à nossa conversa que não foi discutida que você

gostaria de falar?