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NegóciosEstrangeirosnúmero 15Dezembro 2009
publicação semestral doInstituto Diplomáticodo Ministério dos Negócios Estrangeiros
I nstituto diplomático
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15
Anton BeblerCarlos Martins BrancoCarlos Neves FerreiraDuarte Pinto da RochaDuško LopandicFilipe Ortigão NevesGisela GuevaraHugo SobralJoão Carlos VersteegJoão Sabido CostaJorge Azevedo CorreiaJosé CutileiroJosé-Sigismundo de SaldanhaLeonardo MathiasManuela FrancoMateus KowalskiPaulo MarrecasRafael Marcos ArandaTiago dos Reis Miranda
NegóciosEstrangeirosRevista N.º 15
RevistaPublicação do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros
DirectorEmbaixador Carlos Neves Ferreira
(Presidente do Instituto Diplomático)
Directora ExecutivaMaria Madalena Requixa
Design GráficoRisco – Projectistas e Consultores de Design, S.A.
Pré ‑impressão e ImpressãoEuropress
Tiragem400 exemplares
PeriodicidadeSemestral
Preço de capa10
Anotação/ICS
N.º de Depósito Legal176965/02
ISSN1645 ‑1244
EdiçãoInstituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE)
Rua das Necessidades, n.º 19 – 1350 ‑218 LisboaTel. 351 21 393 20 40 – Fax 351 21 393 20 49 – e ‑mail: [email protected]
Número15 . Dezembro 2009
NegóciosEstrangeiros
7 Nota do Director
9 A Europa ou o diálogo que nos falta? Hugo Sobral
31 A Carta das Nações Unidas como “Constituição” da comunidade internacional Mateus Kowalski
59 O funcionário internacional na UNESCO – evolução do paradigma João Carlos Versteeg
73 A protecção internacional dos Direitos Humanos e a sua influência nos ordenamentos jurídicos internos
Paulo Marrecas
83 La gestión de conflictos en la Comunidad Iberoamericana Rafael Marcos Aranda
89 Contributos para o Estudo da Política Externa Portuguesa no Contexto do Brasil Pombalino – O Directório dos Índios do Pará e Maranhão
Duarte Pinto da Rocha
141 África, perspectivas para el futuro Gisela Guevara
159 História e Diplomacia João Sabido Costa
NOTAS DE LEITURA
179 Retrovisor, um Álbum de Família, de Vera Futscher Pereira A thing of love is a joy forever, por José Cutileiro
182 Arquitectos da Paz – a diplomacia portuguesa de 1640 a 1815, de Ana Leal de Faria por Leonardo Mathias
185 Handbook of Intelligence Studies, de Loch K. Johnson Do estudo ao escrutínio parlamentar: uma introdução às Informações, por Filipe Ortigão Neves
190 Seeds of Terror. How Heroin is Bankrolling the Taliban and al Qaeda, de Gretchen Peters
por Carlos Martins Branco
196 The future of freedom: illiberal democracy at home and abroad, de Fareed Zakaria por Jorge Azevedo Correia
Índice
202 Negotiating Change: The New Politics of the Middle East, de Jeremy Jones The Greater Middle East and the Cold War: U.S. Foreign Policy Under Eisenhower and Kennedy, de Roby C Barrett Churchill's Promised Land: Zionism and Statecraft, de Michael Makovsky
O Novo Médio Oriente ou De novo, o Médio Oriente? por Manuela Franco
219 NOVAS AQUISIÇÕES PARA A BIBLIOTECA DO MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS
DIÁLOGO
225 Comentário ao artigo de Anton Bebler publicado na Revista Negócios Estrangeiros n.º 14 Duško Lopandic
229 Comments on Ambassador Duško Lopandic’s letter concerning the Kosovo issue Anton Bebler
CADERNOS DE ARQUIVO
235 Journal des cérémonies de mon Ambassade au Portugal par le Presidente Rouillé José-Sigismundo de Saldanha
257 A embaixada de D. António de Saldanha da Gama à Corte de Paris: instrução secreta e cartas de crença (1756)
Tiago C. P. dos Reis Miranda
Linhas de Orientação
Os artigos reflectem apenas a opinião dos seus autores. E em nenhumas circunstâncias poderão ser invocados como traduzindo posições da política externa portuguesa.
5Nota do Director
6
7
Num muNdo digital, em que a alternativa 0.1 absorveu, simplificou ou atenuou as dicotomias
tradicionais, que davam colorido ao quotidiano e conteúdo ao pensamento dito
sério (o bem e o mal, o justo e o arbitrário, o razoável e o funesto, em suma, o
isto e o aquilo…), põe‑se ao editor de uma revista sobre questões internacionais
uma alternativa bem mais pedestre: fazer um número dedicado exclusivamente a
um assunto, com o risco inerente da irrelevância; ou publicar um número com
um pouco de tudo – que é, como quem diz, com o que houver disponível, e aí,
outra vez, para além da irrelevância, correr o risco da banalidade por dispersão
temática.
No número 15 da NE mantêm‑se as secções notas de leitura e cadernos de arquivo,
esta com a divulgação de documentos de interesse para a história diplomática
portuguesa.
Acrescenta‑se‑lhe uma secção de divulgação das recentes aquisições de livros
para a Biblioteca do Ministério. Para que estas sorumbáticas salas deixem de ser um
cemitério de livros e cumpram a sua função primeira de estimular a leitura, algu‑
ma coisa se comprou e bastante mais vem a caminho. Assim aquele espaço se
anime e as pessoas leiam! A primeira condição, que é haver livros – se possível
recentes e escolhidos a partir de criteriosas notas de leitura –, está a ser cumprida.
A segunda – que é haver leitores, já ultrapassa os responsáveis, que apenas contam,
como os economistas do século XIX e alguns do século XX, que a oferta crie a sua
própria procura.
No presente número o leitor encontrará, pois, alguma variedade. Para já, resul‑
tado de uma esperada divergência de opiniões, um sereno comentário do embaixa‑
dor da Sérvia em Lisboa que discorda – como seria de esperar – da forma como foi
apresentado pelo Professor Anton Bebler o problema do Kosovo, no n.º 14 da NE.
Bebler, que achou por bem, contudo, replicar e por aí se fica a controvérsia. Uma
outra divergência, suscitada por uma nota de leitura algo acerba, ficará inédita por
vontade de uma das partes. A semestralidade da revista não ajuda à vivacidade dos
debates.
NegóciosEstrangeiros . N.º 15 Dezembro de 2009 pp. 7-8
8 Como é natural, há um “desvio” editorial a favor dos colegas diploma‑
tas e, penso, ninguém estranhará que um bom pedaço do espaço disponível
lhes tenha sido atribuído. Há também artigos em português, inglês e espa‑
nhol. Todos teremos de ser um pouco poliglotas, dentro dos limites da razo‑
abilidade, e de nos sabermos bater com textos originais, em detrimento da
visão tacanha dos nacionalismos condescendentes proclamados a pretexto
da grandeza putativa da língua materna. Acabou o tempo de se falar “patrio‑
ticamente mal” as línguas estrangeiras, frase, aliás, cunhada por um escritor
de imenso talento e exímio cultor do francês.
O Presidente do Instituto DiplomáticoCarlos Neves Ferreira
Embaixador
NegóciosEstrangeiros . N.º 15 Dezembro de 2009 pp. 7-8
9A Europa ou o diálogo que nos falta?**
Hugo Sobral*
n Abstract:
A new cycle is about to begin in the European Union with a new Commission being
designated until the end of the year, a new Parliament in place as from July and a
more than likely new Treaty in force by the beginning of 2010. All these changes
present an appropriate opportunity to reflect upon and improve our participation in
the EU decision making process, particularly in the areas pertaining to the Permanent
Representatives Committee – part I (COREPER I), predominantly in charge of the leg‑
islative procedure. The fact that around 60% of the national legislation already stems
from transposition or application of laws decided at European level, on areas as relevant
as finance and economy, environment, social and employment, constitutes, on its own,
an incentive to revisit our positioning, strategy of alliances and negotiating techniques.
Furthermore the challenges put forward by a pluralistic and diverse Council, a steady
extension of the European Parliament’s co ‑decision power’s and an evolving European
Commission oblige Member States to increase their efficiency and sophistication if
they want their voices heard in EU affairs. In a scenario of ‘power dispersion’ between
the three main actors of the legislative process (Council, European Parliament and
Commission) one can only be effective in shaping European policies with well defined
roles in the national administration, a powerful and fully ‑functioning coordination
unit and a close inter ‑action between national officials in all European institutions.
ToNy BarBer, o chefe da representação em Bruxelas do Financial Times, comparava no seu
blogue a chegada dos Chefes de Estado e de Governo para o Conselho Europeu de 19
e 20 de Março, que deveria aprovar formalmente a componente comunitária do plano
* Agradeço as sugestões, comentários e críticas dos Senhores Embaixadores Vasco Valente e Pedro Nuno Bártolo, bem como (por ordem alfabética) do Domingos Fezas Vital, Duarte Bué Alves, Francisco Duarte Lopes, Lénia Real, Manuel Cansado de Carvalho e Mónica Marques Silva. Naturalmente que o conteúdo do artigo apenas vincula o autor.
** Título retirado do primeiro ensaio de Eduardo Lourenço sobre questões europeias, Heterodoxia I e II, Lisboa: Assírio e Alvim, 1987.
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10 de recuperação económica, às referências no Livro do Génesis à entrada dos animais
na Arca de Noé, procurando salvação para a inundação iminente.
A comparação é manifestamente exagerada, sobretudo se atentarmos na reduzida
dimensão da vertente comunitária do plano de recuperação económica (5 mil milhões
de euros), pouco salvífico para as finanças dos Estados ‑membros. No entanto, adequa‑
‑se perfeitamente se pensarmos nas limitações já abundantemente esmiuçadas com
que se deparam os Estados individualmente considerados perante a magnitude e o
carácter global da crise financeira, económica e social – que fazem da União Europeia
uma bóia de salvação para muitos – e se atendermos à grande influência que a União
Europeia tem na produção legislativa de cada um dos Estados ‑membros.
Num momento em que se completará um ciclo institucional na União Europeia,
esperando ‑se até ao final do ano um novo Parlamento Europeu, uma nova Comissão
Europeia e possivelmente um novo Tratado, assumirá também funções em Portugal um
novo Governo. Esta conjuntura revela ‑se particularmente apropriada para avaliar se
estaremos, em Portugal, aos mais diversos níveis, a participar no processo de constru‑
ção europeia de uma forma optimizada, em particular na sensível área da produção
legislativa que tanto condiciona a organização económico ‑social de cada Estado‑
‑membro. Estarão todos os agentes (na administração pública e na sociedade civil)
conscientes e mobilizados para esta importante, mas não raras vezes negligenciada,
dimensão da nossa participação na construção europeia?
Uma pequena história poderá ilustrar a resposta a esta questão. Quando, a 31 de
Dezembro de 2007, terminou a terceira presidência portuguesa do Conselho da União
Europeia, o balanço foi unanimemente considerado como positivo. Também se regis‑
tou unanimidade na identificação dos grandes resultados alcançados: a assinatura do
Tratado de Lisboa, a realização da primeira Cimeira com o Brasil e a realização da
segunda Cimeira União Europeia ‑África.
Alguma imprensa, mais atenta e informada, incluía ainda o acordo sobre o pro‑
jecto Galileo no inventário dos sucessos do segundo semestre de 2007. Escassas refe‑
rências, no entanto, se tivermos em conta o que foi alcançado. Se é justo enquadrar os
três momentos evocados no rol dos êxitos da nossa presidência, pelo trabalho e pela
negociação aturada que implicaram, não é menos justo reconhecer que a presidência
portuguesa do Conselho representou muito mais do que isso. Foram 57 os acordos
legislativos com o Parlamento Europeu em primeira, segunda e terceira leituras,
destacando ‑se o acordo sobre a integração da aviação no Comércio Europeu de
Licenças de Emissões, o acordo sobre o regulamento que cria o Instituto Europeu de
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11Inovação e Tecnologia, o acordo sobre a directiva que visa a liberalização final dos
Serviços Postais na União Europeia, as Directivas sobre a Qualidade do Meio Marinho
e a Qualidade do Ar.
Esta análise de conteúdo impressionista da maneira como foi tratada a nossa
Presidência ilustra a forma como a Europa é encarada em Portugal. Com efeito, o dia‑
‑a ‑dia da União Europeia vai muito para além dos grandes eventos internacionais ou
dos cada vez menos esporádicos e cada vez mais incertos momentos de revisão insti‑
tucional.
A ausência de informação sobre uma dimensão importante dos assuntos que são
discutidos e aprovados em Bruxelas, que tendem a coincidir justamente com a gene‑
ralidade das políticas que estão já comunitarizadas e onde é maior a produção legisla‑
tiva com impactos directos nos Estados ‑membros, é comum a todos os países mas
sente ‑se particularmente em Portugal.
Esta falta de informação alimenta, de resto, o desinteresse pelas questões comuni‑
tárias. Numa sondagem publicada no Eurobarómetro1, em Março de 2009, relativa às
expectativas e conhecimento dos cidadãos sobre as eleições europeias de Junho,
Portugal aparecia apenas à frente da Letónia, República Checa, Eslováquia e Reino
Unido, como o país onde os cidadãos revelam maior desinteresse por este acto eleito‑
ral (62% dos inquiridos, contra 54% da média comunitária). Ainda no mesmo inqué‑
rito, Portugal foi o país que registou menor percentagem de intenção de voto (14%,
contra 34% da média comunitária).
O problema no que respeita aos assuntos europeus é que, embora já tenham
decorrido 23 anos desde a nossa adesão, este alheamento, para além dos cidadãos e da
generalidade da imprensa, gera também alguma indiferença por parte da administra‑
ção.
O comité de representantes permanentes – Parte I – a incansável formiga Esta dimensão
‘desconhecida’ ou pelo menos indevidamente acompanhada da construção comunitária
tem o seu centro nevrálgico no Comité de Representantes Permanentes – parte I
(COREPER I)2 onde as questões abordadas coincidem em geral com as políticas
1 http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/ebs/ebs_303_fr.pdf2 O número 1 do artigo 207 do Tratado da União Europeia estabelece um “Comité, composto pelos
Representantes Permanentes dos Estados ‑membros, responsável pela preparação dos trabalhos do
Conselho e pela execução dos mandatos que este lhe confia”. Este COmité de REpresentantes PERmanentes
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12 que já estão comunitarizadas e que são comummente denominadas de políticas
internas. As características e o método de trabalho deste órgão têm ainda algumas
particularidades que lhe conferem uma dinâmica negocial muito própria:
é nestes domínios que o essencial da produção legislativa (regulamentos,
directivas e decisões) é negociado, com implicações directas na legislação
nacional e nos sectores económico e social;
o método comunitário assume particular preponderância, com a Comissão
a ter o poder de iniciativa legislativa e o Conselho e o Parlamento Europeu
a assumirem, em conjunto, a função de co ‑legisladores. Cerca de 80% das
questões discutidas pelo COREPER I são tratadas em co ‑decisão e exigem,
por isso, que para além de um acordo entre os membros do Conselho, um
entendimento seja igualmente alcançado com o Parlamento Europeu;
o COREPER I cobre igualmente as áreas em que, de acordo com os Tratados,
mais se recorre à maioria qualificada como meio de votação, o que obriga
a uma estratégia negocial mais trabalhada para reunir apoios suficientes que
permitam formar maiorias qualificadas ou minorias de bloqueio.
A relevância deste Comité confirma ‑se ainda pelo facto de as áreas por ele cober‑
tas serem responsáveis por mais de 60% da legislação adoptada a nível nacional, direc‑
tamente, via regulamentos, ou após transposição, no caso das directivas. Quer isto dizer
que enquanto se debate o primado do direito comunitário sobre o direito nacional,
mais de metade da legislação que está em vigor em Portugal resulta já do que é deci‑
dido em Bruxelas… facto que, por si só, deveria ser razão suficiente para contrariar o
alheamento acima constatado.
O impacto da legislação: casos recentes Mas para além do elemento quantitativo3, existe
também a dimensão qualitativa. Por vezes uma determinada proposta pode ter um
(COREPER) divide ‑se em dois, o COREPER I e o COREPER II, acompanhando diferentes matérias. Em
geral, o CORPER II (onde têm assento os Representantes Permanentes) acompanha os assuntos discutidos
nas formações Assuntos Gerais e Relações Externas; Economia e Finanças e Justiça e Assunto Internos.
O COREPER I (onde participam os Representantes Permanentes ‑Adjuntos) acompanha as questões tra‑
tadas nas formações Ambiente; Competitividade (Indústria, Mercado Interno e Investigação); Educação
Juventude e Cultura; Agricultura (no que releva dos assuntos fitossanitários, veterinários e pescas);
Emprego, Política Social, Saúde e Consumidores e Transportes, Telecomunicações e Energia.3 De 1999 a 2003 foi adoptada uma média de 195 propostas legislativas por ano; em 2004 este número foi de
240; em 2005 de 130 e em 2006 de 197.
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13impacto crucial na estrutura económico ‑social dos Estados ‑membros. Tomemos
como exemplo algumas propostas legislativas discutidas nos últimos anos pelo
COREPER I, em diferentes áreas, para melhor avaliar este alcance4.
Directiva Serviços
A Directiva relativa aos Serviços no Mercado Interno5, que ficou conhecida pela
“Directiva Serviços” – depois de uma primeira denominação de “Directiva Bolkestein”6
(“Frankenstein” para os seus detractores) –, tinha como objectivo “facilitar a liberdade
de estabelecimento dos prestadores de serviços noutros Estados ‑Membros e a liberda‑
de de prestação de serviços entre Estados ‑membros; aumentar as possibilidades de
escolha à disposição dos destinatários dos serviços e melhorar a qualidade dos serviços
prestados tanto aos consumidores como às empresas”. A intenção da Comissão era
completar o mercado interno na área dos serviços, responsáveis por 70% do PIB euro‑
peu e por mais de 50% do emprego, números não muito diferentes dos portugueses
(69,2% e 57,9% respectivamente)7.
Assim, na proposta original apresentada pela Comissão (onde os serviços eram
entendidos como as actividades prestadas mediante contrapartida económica)
concretizar ‑se ‑ia uma liberalização generalizada deste sector, passando toda a regula‑
mentação a ser feita de acordo com a regra do princípio do país de origem; ou seja,
todo e qualquer prestador que se quisesse estabelecer em Portugal teria apenas de
cumprir com a legislação do respectivo país de origem para o exercício da actividade.
No final da negociação, e depois de muita polémica entre os defensores da proposta
que valorizavam os potenciais 33 mil milhões de euros de ganhos8 e os seus detracto‑
res que alertavam para os riscos de dumping social inerentes9, foi restringido o âmbi‑
to de aplicação da proposta, aumentado o número de sectores excluídos e substituído
4 Nesta avaliação não se pretende fazer um juízo de mérito sobre o resultado negocial nem sobre o conteúdo
detalhado de cada uma das propostas, mas dar um enquadramento sobre a importância específica de cada
uma destas peças legislativas para o conjunto dos Estados ‑membros e, em particular, para Portugal.5 Proposta apresentada em Janeiro de 2004, tendo a negociação sido concluída em Dezembro de 2006. O prazo
para a sua transposição termina no final de 2009.6 A partir do nome do Comissário holandês responsável pelo Mercado Interno, Frits Bolkestein, que a apre‑
sentou.7 Dados AICEP/INE de 2008: http://www.investinportugal.pt/NR/rdonlyres/F74747D4 ‑D6A6 ‑40DC ‑A9AA‑
‑5D6CC60A549C/0/FichaPaisPortugues_Abril2009.pdf8 http://ec.europa.eu/internal_market/services/docs/services ‑dir/studies/2005 ‑01 ‑cph ‑study_en.pdf9 http://www.etuc.org/a/243
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14 o princípio do país de origem pela regra da liberdade de prestação de serviços (que
permite salvaguardar o princípio do livre acesso e exercício da actividade, possibili‑
tando no entanto aos Estados ‑membros apresentarem algumas restrições a essa acti‑
vidade desde que sejam não ‑discriminatórias, proporcionadas e justificadas por
razões relacionadas com a ordem, segurança e saúde públicas ou com a protecção do
ambiente).
Tratou ‑se de um processo negocial longo e atribulado, de grande significado polí‑
tico, que contribuiu com outros factores para a rejeição da Constituição Europeia
referendada em França10. No caso português, independentemente do juízo de mérito
sobre o resultado final da negociação, esta directiva terá repercussões sobre 70% do
valor acrescentado bruto nacional e mais de metade dos empregos.
REACH
O regulamento relativo ao registo, avaliação, autorização e restrição de substâncias
químicas, que cria a Agência Europeia das Substâncias Químicas, ficou conhecido pela
sua abreviatura em inglês REACH11. Este regulamento tinha como objectivo criar um
sistema integrado único de registo, avaliação e autorização de substâncias químicas,
bem como uma Agência Europeia das Substâncias Químicas, passando assim a obrigar
as empresas que fabricam e importam estas substâncias a avaliar os riscos decorrentes
da utilização das mesmas e a tomar as medidas necessárias para gerir todos os riscos
que identificarem. O propósito é o de proteger o ambiente e a saúde humana, promo‑
vendo simultaneamente a inovação industrial.
Este regulamento, com mil páginas de texto, entre considerandos, articulado e
anexos, substituiu mais de 40 directivas e regulamentos, afectando assim de forma
directa a indústria química europeia, responsável pela produção de 31% dos químicos
a nível mundial e empregadora de 1,7 milhões de trabalhadores. Em Portugal, 850
empresas operam no sector químico, empregando 22 500 trabalhadores, responsáveis
por cerca de 3,7% do PIB. No entanto, as repercussões deste regulamento estendem ‑se
também, de forma indirecta, a todos os utilizadores downstream de produtos químicos
10 O famoso canalizador polaco evocado na campanha, mais não era do que uma sátira à directiva Serviços e
ao receio do dumping social (vide, por exemplo, a entrevista de Philippe de Villiers, ao Figaro, 15 Março
2003, “La grande triche du oui”)11 O regulamento foi apresentado pela Comissão Europeia em 2003. As negociações concluíram ‑se em finais
de 2006, a entrada em vigor aconteceu em Janeiro de 2007 e o prazo de transposição terminou em Junho
de 2008.
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15nas restantes indústrias, desde os cosméticos até ao automóvel, passando pelos têxteis,
na medida em que a utilização destes produtos está disseminada por toda a cadeia
industrial.
O estudo de impacto realizado pela Comissão antes de apresentar a proposta esti‑
mava os custos totais de aplicação do regulamento para os operadores europeus entre
2,8 e 5,2 mil milhões de euros num prazo de 11 e 15 anos respectivamente. Porém,
os ganhos em termos de saúde pública calculados em conjunto com o Banco Mundial
e a Organização Mundial de Saúde ascendiam a 50 mil milhões de euros num prazo
de 30 anos12.
Independentemente dos valores finais que só se conhecerão a médio ou longo
prazo, é inegável o impacto que este regulamento terá não só na indústria química
nacional, mas também em todos os sectores industriais associados que equivalem pra‑
ticamente a todo o sector secundário, responsável por 28,3% do valor acrescentado
bruto e por 30,5% do emprego13 em Portugal.
Directiva Tempo de Trabalho
A Directiva relativa à organização de determinados aspectos do tempo de trabalho14
estabelece as prescrições mínimas gerais de segurança e de saúde em matéria de orga‑
nização do tempo de trabalho e regula os períodos de descanso diário, as pausas, os
períodos de descanso semanal, as férias anuais e certos aspectos do trabalho nocturno
e do trabalho por turnos.
Esta directiva enquadra e regula assim qualquer período durante o qual o traba‑
lhador está a exercer a sua actividade ou se encontra à disposição da entidade patronal
no exercício das suas funções, ou seja, o tempo de trabalho, consagrando na legislação
comunitária a regra da semana laboral das 48 horas.
12 No entanto, um estudo encomendado pelo Comité ITRE (Indústria, Investigação e Energia) do Parlamento
Europeu à consultora Arthur D. Little apontava para um decréscimo do valor acrescentado bruto para a
indústria manufactureira na UE15 de 12,6% – i.e. 167 mil milhões de euros (valores contestados poste‑
riormente por exagerarem custos envolvidos e minimizarem os benefícios em termos de saúde pública).
13 Dados AICEP/INE de 2008: http://www.investinportugal.pt/NR/rdonlyres/F74747D4 ‑D6A6 ‑40DC‑
‑A9AA ‑5D6CC60A549C/0/FichaPaisPortugues_Abril2009.pdf14 Apresentada a 4 de Novembro de 2003, codifica a directiva de base de 1993 (adoptada no decurso da pri‑
meira Presidência Portuguesa da UE) e revê a redacção da Directiva de 2000 sobre a mesma matéria. A res‑
pectiva negociação entre o Conselho e o Parlamento Europeu falhou no final do mês de Abril de 2009, mas
prevê ‑se que a Comissão Europeia venha apresentar em breve uma nova proposta sobre esta matéria.
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16 Contudo, na directiva de base de 1993 foi admitida uma excepção à regra da
semana das 48 horas (o chamado opt -out) através de acordos ‘voluntários’ entre empre‑
gadores e trabalhadores que permitiam exceder o horário estipulado (outra excepção
era a possibilidade de anualizar o período de referência para cálculo das 48 horas
semanais). Esta cláusula de opt -out foi incluída a pedido do Reino Unido, que pretendia
manter a liberalização do seu mercado laboral.
A Confederação Patronal Britânica (CBI), principal opositora de um gradual desa‑
parecimento do opt -out (tal como pretendido por vários Estados ‑membros e pelo
Parlamento Europeu), afirmava que o fim deste regime de excepção poderia custar
entre 53 e 75 mil milhões de euros à economia britânica até 2020. Por seu turno, a
Confederação Europeia de Sindicatos (ETUC) recordava que já em 1919 a primeira
Convenção Internacional do Trabalho – predecessora da Organização Internacional do
Trabalho – consagrava o princípio das 8 horas diárias e das 48 horas semanais.
Resulta assim claro o alcance desta directiva, com implicações directas na organi‑
zação das relações laborais em todos os Estados ‑membros (no caso português a sua
adopção poderia implicar a revisão de aspectos pontuais do código de trabalho), fun‑
damental para um equilíbrio entre o objectivo principal de segurança e de saúde dos
trabalhadores e as necessidades de uma economia eficaz e competitiva.
Pacote Energia e Clima
O pacote legislativo Energia e Clima15 visa dar seguimento às decisões políticas do
Conselho Europeu da Primavera de 2007, em particular à meta dos 20/20/20, ou seja,
atingir em 2020 20% de redução das emissões de CO2 (podendo ir até aos 30% se
Estados terceiros se associarem a este esforço), 20% de utilização obrigatória de ener‑
gias renováveis (10% no sector dos transportes), e 20% adicionais de eficiência ener‑
gética (este último objectivo não teve uma proposta legislativa associada).
Os impactos destas propostas são extensos, na medida em que o modelo de fun‑
cionamento do Comércio Europeu de Licenças de Emissões (CELE) é totalmente revis‑
15 O pacote, apresentado no início de 2008 e concluído no final do mesmo ano, era constituí do pelas seguintes
quatro propostas legislativas: proposta de directiva que revê o regime de comércio de licenças de emissão
de gases com efeito de estufa da Comunidade; proposta de decisão relativa aos esforços a realizar pelos
Estados ‑membros para redução das suas emissões de gases com efeito de estufa (nos sectores não cobertos
pelo comércio de licenças de emissão); proposta de directiva relativa ao armazenamento geológico do
dióxido de carbono e proposta de directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à promoção da
utilização de energia proveniente de fontes renováveis.
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17to, passando a assentar no leilão das licenças de emissões de CO2 pelas unidades
industriais europeias, começando com uma percentagem de 20% em 2013 e atingindo
100% em 2027. Quer isto dizer que as emissões de CO2 industriais passarão a ter de
ser compradas no mercado europeu de carbono. No sector eléctrico o leilão será obri‑
gatoriamente de 100% a partir de 2013, com excepções previstas para os Estados‑
‑membros cujo sector energético continua a depender, em grande medida, do carvão.
Uma das questões mais longamente discutidas no âmbito deste pacote foi o risco
de ‘fugas de carbono’, associado às eventuais deslocalizações de empresas para outras
regiões do mundo, como reacção ao aumento dos custos de produção, decorrentes do
comércio de emissões. Face a um problema real, cuja verdadeira dimensão todavia só
se saberá após um eventual acordo internacional em Copenhaga sobre o regime pós‑
‑Quioto16, e face a uma preocupação generalizada por parte da indústria17 e sindicatos,
foi necessário introduzir disposições que salvaguardassem a economia europeia, per‑
mitindo assim às indústrias potencialmente afectadas (o cálculo far ‑se ‑á com uma
fórmula que combina o valor acrescentado bruto e a intensidade do comércio) rece‑
berem gratuitamente as licenças de emissão.
Para além disso, nos sectores não cobertos pelo Comércio de Licenças de Emissões
(agricultura, transportes, sector residencial) será necessário reduzir igualmente as
emissões segundo uma escala que, tendo por base o PIB per capita, obrigará os Estados‑
‑membros com um PIB mais elevado a fazerem reduções significativas para que aque‑
les com um menor PIB possam emitir um pouco mais18.
O objectivo de 20% de incorporação de renováveis, incluindo 10% obrigatórios
no sector dos transportes foi calculado com base no PIB per capita, bem como no poten‑
cial endógeno de cada Estado ‑membro. Neste contexto, Portugal terá o quinto objec‑
tivo mais ambicioso na UE para 2020 (31% de energia renovável)19.
Este conjunto de propostas a que já se chamou a ‘revolução verde’ ou a nova ‘revo‑
lução industrial’ obrigará a uma adaptação do sector industrial nacional no sentido de
16 Sendo que os potenciais destinatários das deslocalizações empresariais serão os países que não se associarem
a um acordo internacional para o pós ‑Quioto.17 Vide comunicado das indústrias com elevado consumo energético: http://www.eurometaux.org/files/
ETSBar11 ‑02 ‑08 ‑160127A.pdf18 A Portugal será permitido um crescimento de emissões de 1% comparado com o ano base de 2005 (único
Estado ‑membro com possibilidade de crescimento na UE15).19 Refira ‑se no entanto que em relação ao ano base de 2005 também éramos o 5º Estado Membro na UE com
maior utilização de renováveis (20,5%).
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18 limitar as suas emissões de gases com efeito de estufa. Terá ainda um efeito indutor de
incorporação de energias renováveis na produção de electricidade, nos transportes e
no aquecimento e arrefecimento (heating and cooling) e representará uma mudança no
próprio modo de vida das pessoas20.
Os custos serão naturalmente significativos. De acordo com o relatório produzido
pelo economista Nicholas Stern21 em Outubro de 2006, os custos globais poderão
atingir 1% do PIB mundial (face a algumas críticas quanto ao facto de o economista
ter subestimado estes custos, o valor foi actualizado para 2%22) num prazo de 50 anos.
No entanto, o mesmo relatório refere também que os custos de inacção poderiam
representar 20% desse mesmo PIB no mesmo prazo.
Quem é quem no triângulo institucional comunitário Os impactos evidentes destas questões
no nosso quotidiano aconselham uma preparação adequada na forma como
participamos no processo de decisão comunitário e nos trabalhos do COREPER I.
A complexidade das questões e dos métodos de decisão actualmente existentes em
Bruxelas obriga a que, para se garantir sucesso negocial, deva existir uma estrutura de
coordenação e rotinas de actuação bem interiorizadas por parte das administrações
nacionais, onde cada actor sabe o que fazer em cada momento do processo.
Esta organização é fundamental para Estados ‑membros como Portugal que têm
vindo a ser pressionados em várias frentes pelas sucessivas revisões institucionais. Por um
lado, através da alteração da ponderação dos votos e do aumento das matérias decididas
por maioria qualificada, que tem vindo a traduzir ‑se numa perda progressiva de poder
no Conselho. Por outro lado, pela diminuição do número de parlamentares, associada ao
aumento das matérias decididas por co ‑decisão com o Parlamento Europeu23.
20 Um estudo elaborado pela Cambridge Energy Research Associates referia que estas políticas poderiam, por exemplo,
permitir uma poupança de gás de 125 mil milhões de metros cúbicos por ano em toda a União Europeia,
fazendo com que o consumo de gás em 2030 se aproxime dos valores de 1990. 21 Disponível em http://www.hm ‑treasury.gov.uk/sternreview_index.htm22 “Cost of tackling global climate change has doubled, warns Stern”, in Guardian, http://www.guardian.
co.uk/environment/2008/jun/26/climatechange.scienceofclimatechange23 Com efeito, até Nice, o sistema de ponderação de votos no Conselho nas decisões por maioria qualificada era
mais equilibrado, não havendo um hiato tão grande entre o Estado ‑membro com menor número de votos
(Luxemburgo com 2) e os Estados ‑membros com maior número de votos (França, Alemanha e Reino
Unido com 10 votos). Neste sistema, Portugal dispunha de cinco votos. Embora o critério demográfico fosse importante, este era matizado com considerações de equilíbrio político através de um método de proporcionalidade regressiva (isto é, os mais pequenos eram beneficiados). Com os alargamentos suces‑
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19Segue ‑se uma análise mais atenta da actuação dos diferentes actores envolvidos no
processo negocial, essencial para se perceber a complexidade da tarefa e para se pode‑
rem tirar ilações para uma melhor actuação nacional.
A Comissão Europeia
A Comissão Europeia é um actor central na negociação comunitária, dado que tem o
monopólio da iniciativa legislativa (que partilha com o Conselho nalgumas áreas espe‑
cíficas da Justiça e Assuntos Internos). Assim, antes ainda das propostas serem subme‑
tidas aos dois co ‑legisladores (Conselho e Parlamento) já uma negociação intensa teve
sivos, os Estados maiores foram perdendo algum peso relativo (com o alargamento de 1995 o número mínimo de população para atingir a maioria qualificada descia de 63,21% para 58,73%), pelo que, pri‑meiro em Amesterdão (sem sucesso) e depois em Nice, procuraram (re)valorizar o elemento demográ‑fico, sobrepondo uma “União dos maiores Estados” à “União de Estados”. Assim, apesar de um aumento de votos generalizado para todos os Estados ‑membros, a reponderação ficou a favorecer os grandes países (França, Inglaterra e Itália e, em menor medida, a Alemanha) e os médio ‑grandes (Polónia e Espanha) que fizeram depender deste reforço aceitarem ‘perder’ o segundo Comissário de que dispunham. O hiato entre os Estados com maior número de votos (29) e o menor (3) aumentou e Portugal perdeu algum peso institucional ao ficar com 12 votos, num total de 237 (o limiar da maioria qualificada foi fixado em 169 votos). Mais tarde, com o alargamento a 10, e depois a mais 2, o número total de votos subiu para 321 e 345, passando o limiar da maioria qualificada para 232 e 255 respectivamente, não alterando no entanto a revalorização dos Estados de maior dimensão. Esta revalorização consolidou ‑se de resto com o aditamento da chamada cláusula demográfica: qualquer membro do Conselho pode pedir, por ocasião de uma tomada de decisão por maioria qualificada, que se verifique se essa maioria qualificada representa, pelo menos, 62 % da população da União. Esta disposição junta ‑se às outras condições necessárias para a adopção de uma decisão (a maioria qualificada dos votos e a maioria dos Estados ‑membros). Ou seja, o actual sistema prevê uma tripla maioria (votos ponderados; população; e número de Estados) – contudo, tendo em conta os limiares fixados, praticamente só os votos ponderados contam. No futuro Tratado de Lisboa passou ‑se para a dupla maioria, anulando ‑se os votos ponderados que garantiam o equilíbrio da decisão (e salvaguardavam a posição de Portugal), considerando ‑se aprovadas as decisões que sejam apoiadas por 55% dos Estados ‑membros que representem pelo menos 65% da população da UE. Ou seja, para se formarem maiorias qualificadas ou minorias de bloqueio, os Estados ‑membros de maior dimensão contam cada vez mais com as sucessivas revisões dos Tratados. Paralelamente o envolvimento do Parlamento Europeu enquanto co ‑decisor é uma tendência que se vem acentuando com as últimas revisões institucionais e que continuará com o Tratado de Lisboa, onde o procedimento de consulta será substituído pela co ‑decisão na Agricultura, nas Pescas e nalguns domínios da Justiça e Assuntos Internos (com o Tratado de Lisboa a co ‑decisão tornar ‑se ‑á o processo legislativo ordinário, passando de um total de 44 áreas para 85). Contudo, Portugal também tem vindo a perder representatividade neste órgão. Assim, se tomarmos como referência o Tratado de Amesterdão, a partir do qual se aceleram os poderes em co ‑decisão do Parlamento, Portugal dispunha então de 25 parlamentares num total de 626 (4%); com Nice, os parlamentares nacionais caíram para 24 num total de 732 (3,28%); posteriormente com a adesão da Bulgária e da Roménia, o número total passou para 785 (3,06%); com o (futuro) Tratado de Lisboa a nossa representação diminui para 22 parlamentares num total de 751 (2,92%).
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20 lugar no seio da Comissão, com a participação indirecta, e por vezes mesmo bastante
directa e explícita dos Estados ‑membros.
Daí que o trabalho do negociador comunitário deva começar na fase pré‑
‑legislativa, com o objectivo de influenciar e determinar desde logo a lista de priori‑
dades da própria Comissão24, e posteriormente o conteúdo das propostas que são
apresentadas. Esta influência pode ser exercida de várias formas, umas mais subtis,
outras mais explícitas:
– por intermédio dos funcionários nacionais na Comissão, naturalmente mais
próximos das sensibilidades portuguesas, incluindo os peritos nacionais
destacados que, não raras vezes, são determinantes na parte técnica de
sustentação das propostas25;
– através de uma participação activa nas consultas públicas que normalmente
antecedem a apresentação das propostas legislativas;
– e naturalmente pela pressão que as Representações Permanentes nacionais
(REPER’s) possam fazer em Bruxelas, assim que tomam conhecimento dos
ante ‑projectos de propostas.
Este último factor está directamente relacionado com outra questão mais estrutu‑
ral que se prende com o relacionamento da administração nacional, via REPER, com o
Comissário nacional.
Embora formalmente independente, o Comissário proposto pelo Estado ‑membro
é a ‘correia de transmissão’ entre a instituição Comissão Europeia e o seu órgão deci‑
sório – o colégio de comissários – e os respectivos Estados ‑membros.
A manutenção de um Comissário por país é muito importante para vários
Estados ‑membros (veja ‑se o caso irlandês) por ser um elemento simbólico de ‘repre‑
sentação nacional’ no órgão executivo da máquina comunitária – que ganha assim
uma legitimação acrescida aos olhos das opiniões públicas nacionais26 – mas tam‑
24 Para além do programa de trabalho para os cinco anos de mandato, a Comissão aprova anualmente um
documento de Estratégia Política (em Fevereiro do ano anterior) que é depois convertido num Programa
de trabalho legislativo (adoptado em Outubro do ano anterior).25 Para além da política activa de incremento dos seus nacionais como funcionários das diversas instituições os
principais Estados ‑membros ‘patrocinam’ a colocação de peritos nacionais destacados em diferentes sec‑
tores da Comissão, que são recebidos de ‘braços abertos’ pelos Directores ‑Gerais. Naturalmente que estes
‘peritos nacionais’ se apresentam com um ‘caderno de encargos’ muito preciso, fornecido pelas respectivas
administrações nacionais.26 A Comissão Europeia não escapa à tese de Max Weber “de que é necessário transformar o poder em auto‑
ridade legítima”.
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21bém pela influência efectiva que tem na defesa ou transmissão das sensibilidades
nacionais nas reuniões do Colégio.
De resto, como vimos atrás, quando os grandes países da UE (Alemanha, França,
Reino Unido, Espanha e Itália) prescindiram em Nice de um segundo Comissário da
sua nacionalidade, exigiram em troca um reforço do seu peso institucional no
Conselho. A lógica utilizada e o sinal então dado foram bastante claros: o poder e a
influência de que dispõem os grandes Estados ‑membros na preparação da legislação
(ou seja na Comissão) só podem ser trocados por igual (ou acrescido) poder e
in fluência aquando da adopção da legislação (ou seja nas instituições que funcionam
como co ‑decisores, Conselho e Parlamento).
Por outro lado, já no decurso do processo negocial no Conselho, é importante ter
a Comissão a apoiar as nossas posições, dado que os argumentos que apresenta, com
a autoridade de órgão proponente e de detentor de maior conhecimento técnico,
podem ser determinantes no decurso da negociação. É preciso não esquecer que a
Comissão tem os seus próprios interesses na negociação das propostas – regra geral, o
aprofundamento da construção comunitária –, mas, como qualquer outro actor do
processo negocial, pode por vezes inflectir a sua posição, por influência de pressões
externas (que são abundantes nos dias que correm), ou caso considere que tal é deter‑
minante para desbloquear os impasses existentes27.
O Conselho
As sucessivas revisões institucionais da União Europeia tornaram a negociação no
Conselho mais difícil, dado que a diminuição do peso relativo de Portugal em termos
institucionais obriga a uma maior exigência para construir maiorias qualificadas e
formar minorias de bloqueio. Para além disso os recentes alargamentos fizeram com
que seja muito difícil negociar em sala com 27 Estados ‑membros28.
27 Tomando como exemplo o pacote relativo ao Mercado Interno na área da Energia, a ‘medida ‑farol’ das
propostas apresentadas pela Comissão era a separação patrimonial – ownership unbundling – das empresas
produtoras e distribuidoras de gás e electricidade. Todavia, dada a oposição de 8 Estados ‑membros (entre
os quais a Alemanha e a França), a Comissão admitiu contornar esta exigência, aceitando um modelo
que permite a integração vertical das produtoras e distribuidoras [http://www.euractiv.com/en/energy/
commission ‑set ‑climb ‑ownership ‑unbundling/article ‑166335]. 28 Um colega do COREPER comentava a este respeito que “a 27 já nem as caras das pessoas se conseguem
ver”.
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22 Assim, hoje em dia, grande parte dos acordos e entendimentos forjam ‑se antes das
reuniões, em negociações bilaterais entre Estados ‑membros. Em regra, antes de apre‑
sentarem os assuntos a discussão no COREPER, as Presidências procuram assegurar ‑se,
através de contactos bilaterais, que as suas propostas dispõem já do apoio de uma
maioria qualificada de Estados ‑membros que viabilize um acordo. Os Estados ‑membros
têm por isso de começar a negociação no Conselho antes ainda das reuniões formais
onde os assuntos deveriam supostamente ser apreciados 29 e 30. Esta circunstância faz
também ressurgir a importância de complementar a actuação em Bruxelas com acções
de diplomacia bilateral nas capitais dos restantes 26 Estados ‑membros.
Ainda que, por norma, as Presidências procurem que todos os Estados ‑membros
se associem ao consenso, procurando por vezes fazer um esforço adicional para aco‑
modar algumas preocupações isoladas, mesmo quando já dispõem de maioria qualifi‑
cada, o facto de um Estado ‑membro se saber dispensável para a formação de uma
maioria condiciona a sua capacidade negocial. É evidente que um negociador pode ser
tanto mais assertivo na defesa das suas posições quanto sabe que os seus votos são
essenciais para a viabilização de um acordo31.
Neste jogo de bastidores é por isso fundamental assegurarmo ‑nos que as nossas
posições não estão isoladas e, idealmente, que reúnem um apoio que permite formar
uma maioria qualificada ou, no mínimo, uma minoria de bloqueio. Para este efeito é
essencial contar com o apoio de pelo menos 2 ou 3 dos Estados ‑membros com maior
peso institucional (Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Espanha ou Polónia), não
só pela aritmética dos votos, mas também porque é mais difícil para uma Presidência,
seja ela qual for, isolar um ou dois grandes Estados ‑membros. Como escrevia Orwell:
“All animals are equal, but some animals are more equal than others”.
Por outro lado, com esta nova composição do Conselho, é importante constatar
que nunca como agora a expressão “geometria variável” foi tão apropriada, pois é
difícil destacar um grupo fixo de aliados tradicionais nas matérias em discussão no
29 Centre for European Policy Studies: “Decision -making in the Enlarged Council of Ministers: Evaluating the Facts”, Sara
Hagemann and Julia De Clerck ‑Sachsse, 200730 A este propósito saliento ainda a importância de poder dispor de cidadãos nacionais em cargos de chefia
no Secretariado ‑Geral do Conselho da União Europeia que funciona como ‘braço direito’ de todas as
Presidências do Conselho e, no caso de Presidências assumidas por Estados ‑membros mais permeáveis ou
com menos recursos, têm uma influência importante nos compromissos que se desenham. 31 Note ‑se que nas condições que o futuro Tratado de Lisboa prevê (vide nota de rodapé 25), Portugal dificil‑
mente será decisivo.
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23Conselho, não se confirmando qualquer divisão entre a “velha Europa” e a “nova
Europa”. Da mesma forma, também não se constata nenhuma ‘entente’ permanente,
sobre todas as questões, entre os grandes Estados ‑membros ou entre os médio/
pequenos.
Aliás, se alguma linha de força é possível identificar, é que as coligações tendem a
fazer ‑se mais em função do grau de desenvolvimento sócio ‑económico dos países do
que em função da respectiva dimensão. Sendo as questões discutidas no COREPER I
mais de carácter económico e social é natural que Estados ‑membros com graus de
desenvolvimento semelhante partilhem os mesmos pontos de vista. Havia assim a
expectativa, em 2004, de que os Estados do centro ‑leste se associassem, por regra, aos
Estados mediterrânicos (da coesão). No entanto, se por vezes tal acontece (por exem‑
plo na discussão das Perspectivas Financeiras em 2005), tal não é o caso noutras oca‑
siões em que os Estados do centro ‑leste alinham com os países nórdicos, nomeada‑
mente em questões de desregulamentação ou liberalização do mercado32.
A política e a ideologia não estão completamente mortas e as abordagens díspares
sobre diferentes modelos de organização da sociedade resultantes de passados mais ou
menos recentes e mais ou menos traumáticos ainda se fazem sentir33. A conclusão que
podemos tirar é de que a recomposição das coligações é permanente, sendo essencial
em cada tema, e em cada momento, saber identificar e mobilizar os nossos potenciais
aliados.
O Parlamento Europeu
Como referido anteriormente, a partilha com o Parlamento Europeu da autoridade
legislativa num crescente número de assuntos densifica a negociação comunitária no
COREPER I. A atenção do negociador não se pode circunscrever apenas aos restantes
Estados ‑membros e à Comissão, mas deve incluir também os parlamentares. Muitas
32 No entanto, também nestas matérias nem sempre se regista uniformidade de posições; assim, se na Directiva
Serviços os Estados do centro e do leste estavam maioritariamente a favor de uma liberalização total do
mercado, assumindo Portugal uma postura mais prudente, no Pacote legislativo sobre o Mercado Interno
da Energia, que pretendia precisamente a liberalização do mercado do gás e da electricidade, vários
Estados do centro e do leste (República Checa, Eslováquia, Hungria ou Polónia) alinharam com a França e
a Alemanha na manutenção dos seus monopólios nacionais, tendo então Portugal advogado um aprofun‑
damento mais rápido do Mercado Interno. 33 Um interessante relatório publicado pelo Open Society Institute de Sófia, por ocasião dos 5 anos do alargamen‑
to de 2004, revela bem a existências destas diferenças de abordagem: http://osi.bg/downloads/File/
ComparativePolicyReport_OSI ‑Sofia_EuPI_28April2009.pdf
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24 vezes, as negociações ganham ‑se no Conselho para se perderem na etapa complemen‑
tar de negociação com o Parlamento e, inversamente, por vezes a opinião do Parlamento
pode ser instrumental para reforçar (ou ‘ressuscitar’) uma posição nacional.
O trabalho legislativo no Parlamento Europeu encontra ‑se distribuído por
Comissões parlamentares permanentes34 que se ocupam das diferentes propostas em
razão das matérias específicas que acompanham. Os parlamentares dos vários Estados‑
‑membros distribuem ‑se assim pelas distintas Comissões em função dos seus interes‑
ses específicos e dos acordos dentro de cada grupo político.
Nestas comissões são apreciadas as propostas da Comissão e do Conselho e são
votados os relatórios parlamentares sobre as referidas propostas. O trabalho de um
parlamentar pode assim circunscrever ‑se ao voto, em Comissão e em plenária, dos
referidos relatórios, com uma participação mais ou menos activa na apresentação de
emendas aos relatórios votados; ou podem os próprios parlamentares propor ‑se para
redigir esses relatórios35, podendo mais facilmente influenciar o resultado final dos
trabalhos.
Assim, para um Estado ‑membro, é fundamental: i) dispor de parlamentares nas
Comissões mais importantes do ponto de vista do processo legislativo; ii) procurar que
os seus eurodeputados sejam autores de relatórios, preferencialmente de carácter legis‑
lativo.
Naturalmente que o pressuposto base no relacionamento com o Parlamento
Europeu é o do respeito pela independência da função e cargo parlamentar que têm
uma legitimidade eleitoral específica. Todavia, todos os Estados ‑membros, sem excep‑
ção, tentam fazer sentir as sensibilidades nacionais e dar informação que ajude a fixar
o sentido de voto dos eurodeputados da sua nacionalidade, procurando que o
Parlamento Europeu assuma como suas as visões e preocupações que são as dos res‑
pectivos Estados ‑membros.
Também aqui, como vimos, Portugal tem vindo a perder peso específico (ver dados
apresentados supra) pelo que seria crucial actuar de forma concertada para maximizar as
possibilidades de sucesso. No entanto, as tendências no Parlamento são contrárias,
dado que a crescente consolidação dos partidos políticos à escala europeia reforça o
34 Existem 20 comissões parlamentares que podem ser consultadas em: http://www.europarl.europa.eu/
activities/committees/committeesList.do?language=PT35 A distribuição dos relatórios pelos diferentes parlamentares obedece a regras específicas de divisão das maté‑
rias entre os vários grupos políticos em função da sua representatividade.
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25carácter ideológico das linhas de fractura, fazendo com que os parlamentares votem
cada vez mais de acordo com os respectivos grupos e menos numa base nacional36.
Esta tendência poderá não ser dramática para países como a Alemanha, que dispõe de
99 parlamentares contudo, para um país como Portugal, cujo número de parlamenta‑
res tem vindo a diminuir, a tendência para a fragmentação dos votos agudiza a dificul‑
dade em fazer passar posições específicas.
Acresce que, infelizmente, no decorrer da legislatura 2004 ‑2009, nas duas comis‑
sões com maior preponderância na produção legislativa comunitária (Comissão
Indústria, Investigação e Energia, e Comissão Mercado Interno e Protecção dos
Consumidores) não houve qualquer parlamentar português como membro efectivo,
limitando ainda mais a nossa influência no processo legislativo comunitário.
Assim, se queremos maximizar as nossas possibilidades de sucesso temos de refor‑
çar a articulação entre a Representação Permanente, a administração nacional e a dele‑
gação ao Parlamento Europeu, no respeito naturalmente da isenção, competências e
funções de cada um.
Contributos para melhorar a nossa participação negocial no processo de decisão
comunitário As propostas que se seguem não pretendem ser a solução definitiva
para os nossos problemas, surgindo antes como decorrência lógica de algumas das
insuficiências já relatadas. O objectivo é que possam ser um contributo, entre outros,
para uma reflexão maior e mais estruturada sobre a nossa participação na construção
comunitária.
Uma negociação começa quando a proposta ainda não foi apresentada (fase
pré ‑legislativa). Nesta fase o objectivo primordial deverá ser o de inserir as
nossas preocupações na pré ‑proposta. Normalmente a Comissão antecede a
apresentação das propostas de Livros Brancos, Livros Verdes, Comunicações
36 Esta constatação, assim como outras dinâmicas de votação no Parlamento Europeu estão bem desenvolvidas
num estudo editado pela Universidade de Cambridge: “Democratic Politics in the European Parliament”; Simon
Hix, Abdoul Noury e Gérard Roland (sinopse pode ser consultada em http://www.cambridge.org/cata‑
logue/catalogue.asp?isbn=052187288X).
Estes mesmos investigadores desenvolveram um site sobre as tendência de voto no PE – http://www.
votewatch.eu/index.php – onde é possível constatar que os deputados portugueses que integram o
Partido Socialista Europeu e o Partido Popular Europeu votaram em 98,19% e 97,04% das ocasiões,
respectivamente, de acordo com as orientações do grupo político a que pertencem (não há dados disponíveis
neste estudo para os restantes parlamentares nacionais).
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26 que são sujeitos a consulta pública. Os resultados desta consulta influenciam
o conteúdo final das propostas. É por isso fundamental que os serviços da
nossa administração pública participem sempre e activamente nesta fase,
enviando opiniões e contributos.
Igualmente útil para o desfecho positivo de uma negociação é a mobilização
dos respectivos stakeholders, operadores económicos, associações empresariais,
grupos de interesse, que estão normalmente agrupados a nível europeu e que
são muito activos junto das instituições europeias, em particular junto do
Parlamento Europeu que está mais predisposto para incorporar as posições
da sociedade civil. É por isso necessário incitar os interlocutores nacionais a
participarem activamente nas respectivas associações a nível europeu e a fazer
valer as suas opiniões nesta esfera.
As novas propostas legislativas saídas da Comissão Europeia devem ser objecto
de uma análise circunstanciada por parte da Direcção ‑Geral dos Assuntos
Europeus/REPER/ministério sectorial competente no sentido de identificar,
desde o início, os problemas e as sensibilidades que as referidas propostas
suscitam em relação aos interesses nacionais e fazendo uma primeira proposta
de posição nacional. Esta análise deve ser sancionada a nível político, numa
fase inicial, para que a negociação em Bruxelas possa decorrer com o devido
aval do executivo37. Estes documentos deveriam estar disponíveis numa
intranet informática do Ministério dos Negócios Estrangeiros, acessível aos
serviços centrais, à REPER e às nossas Embaixadas nos 26 Estados ‑membros.
A existência de uma central de coordenação e definição ou validação de
posições provenientes dos ministérios sectoriais é crucial para assegurar a
coerência das nossas posições. É fundamental que as posições assumidas por
Portugal na negociação dos diferentes dossiês sejam coerentes com a nossa
linha geral de participação na construção europeia. Embora, por vezes, seja
necessário ter em conta diferentes aspectos na consideração das posições
nacionais, deveríamos evitar grandes oscilações nas posições que defendemos
nas diferentes fileiras sectoriais. A coerência é uma vantagem pois, muitas
37 Sem prejudicar, naturalmente, a flexibilidade que deve ser acordada à REPER para ajustar e interpretar aquela
que deverá ser a posição nacional nas diferentes etapas negociais e que é uma condição sine qua non para o
sucesso negocial. Ajustar uma posição pré ‑definida é, no entanto, diferente de elaborar suposições sobre
aquela que será eventualmente a posição nacional.
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27vezes, a expectativa de uma posição num determinado sentido por parte de
uma delegação é desde logo incorporada/assumida nos compromissos que
são preparados antes mesmo das respectivas negociações.
Na fase legislativa, e sobretudo nos dossiês em co ‑decisão, é fundamental
envolver o Parlamento Europeu. Para tal, é essencial contactar os nossos
eurodeputados, mas também os parlamentares de outras nacionalidades, os
relatores das propostas e os presidentes das comissões parlamentares, assim
como os outros actores relevantes (consultores das comissões e grupos
políticos) e habilitá ‑los, em tempo útil, com informação sobre as nossas
posições.
Respeitando a independência e legitimidade próprias de quem foi sufragado
nas urnas, deveria haver reuniões mais assíduas entre o titular da Secretaria de
Estados dos Assuntos Europeus, o Representante ‑Permanente e o Representante
Permanente ‑Adjunto e os parlamentares europeus portugueses, para discutir
os dossiês mais sensíveis em negociação e para dar conta das posições
portuguesas.
De igual forma, respeitando também a independência dos funcionários
portugueses nas instituições comunitárias, deveriam ser organizadas com
mais assiduidade sessões regulares de informação que permitissem dar conta
das posições portuguesas sobre os dossiês em negociação.
Ainda num plano de actores externos cuja independência e isenção têm
de ser respeitadas mas que são elementos ‑chave na mecânica de decisão
comunitária, é essencial reforçar a ligação com o Comissário português (seja
ele o Presidente ou não), dado o seu peso na tomada de decisões por parte
da Comissão Europeia.
Um elemento central para um desfecho positivo do processo negocial é
dispormos de bons negociadores. Aliás, o talento negocial e o prestígio
pessoal dos negociadores nacionais tem vindo funcionar como ‘factor de
correcção’ e reequilíbrio face a um menor peso institucional em relação a
outros Estados ‑membros38. Nesta medida – e para que possamos continuar
a dispor de bons elementos a todos os níveis – devem ser previstas acções
38 Relevo a qualidade dos Representantes ‑Permanentes Adjuntos com quem trabalhei entre 2004 e 2009, que
souberam defender e interpretar o interesse nacional com assinalável sucesso assim como, durante a ter‑
ceira presidência portuguesa do Conselho, em 2007, presidir de forma exemplar aos destinos da União.
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28 de formação para os funcionários – diplomáticos e provenientes dos
ministérios sectoriais – colocados em Bruxelas.
A Direcção ‑Geral dos Assuntos Europeus (DGAE) tem de poder
exercer as suas funções de coordenação de forma capaz e completa,
devendo para tal ser dotada dos recursos humanos necessários,
inclusive a nível técnico, para fazer a síntese da posição nacional e
enviar instruções sobre a totalidade dos assuntos.
A DGAE tem também de ser percebida pelos restantes serviços da
administração pública como a ‘torre de controlo’ no que respeita aos
assuntos europeus e não como mera ‘caixa de correio’ das informações
da REPER para os ministérios sectoriais e vice ‑versa. Essa autoridade
deve não só ser claramente outorgada pelo poder executivo mas
também conquistada através da mais ‑valia das intervenções, algo
que só pode acontecer se os serviços não estiverem sistematicamente
desprovidos de funcionários.
A Comissão Interministerial para os Assuntos Europeus (CIAE) tem
de funcionar verdadeiramente como um espaço de coordenação
inter ‑ministerial, de antecipação, definição e acompanhamento
permanente das posições nacionais nos diferentes dossiês em
negociação. A periodicidade das reuniões tem de ser mais regular
e a representação tem de ser assegurada ao mais alto nível técnico
possível, facilitando para tal que seja presidida pelo membro do
governo titular da Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus.
A discussão e a preparação dos assuntos europeus deveriam ser
objecto, com mais frequência, das reuniões do Conselho de Ministros.
Os assuntos são, como referido, suficientemente importantes para
merecerem a atenção e discussão nesta instância, para a qual
poderiam ser convidados, sempre que se justificasse, o Representante
Permanente e o Representante Permanente ‑Adjunto39.
A coordenação dos assuntos europeus pode, quando tal se justifique,
atendendo à especial sensibilidade de determinados assuntos, e sem
39 Ainda que para tal fosse necessário, numa próxima revisão constitucional, alterar o art.º 184 da
Constituição da República Portuguesa.
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29pôr em causa as estruturas de coordenação dos Negócios Estrangeiros, ser
assegurada a um nível superior, inspirando ‑se, nomeadamente, nos exemplos
de outros Estados ‑membros como a França, Finlândia ou a Estónia onde
(nestes três Estados de forma permanente) a coordenação é feita ao nível do
gabinete do Primeiro ‑Ministro.
Dadas as importantes implicações – já aludidas – na organização socio‑
económica do país, estas questões devem também subir com mais frequência
ao gabinete do Primeiro ‑Ministro para que este possa avaliar da oportunidade
de uma intervenção ao mais alto nível. A argumentação de que são questões
técnicas, e como tal devem ser mantidas ao nível dos ministérios sectoriais,
é falaciosa pois não há nada de mais político do que o futuro da economia
nacional, do seu sistema produtivo, da regulação das relações de trabalho,
e do desenvolvimento harmonioso e sustentável. De resto, são frequentes
as intervenções dos Chefes de Governo dos maiores países europeus nestas
questões40. Se tal atenção, ao mais alto nível, é devotada a estas questões por
parte de países que institucionalmente têm um grande peso no processo de
decisão europeu, maior atenção deveria ser devotada ainda nos países com
menor peso relativo na aprovação das decisões.
Epílogo Como nos recorda Tito Lívio na sua obra ‑prima, “Ab urbe condita”, que relata a
história do primeiro projecto de unificação do continente – o Império Romano:
“Nenhuma lei se adapta igualmente bem a todos”. Esta máxima, que continua de
grande actualidade, ilustra bem um dos desafios que temos pela frente no processo
decisório comunitário: assegurar que a legislação europeia contribui para o
progresso e desenvolvimento de Portugal, ao mesmo tempo que observa o interesse
geral europeu.
40 É sabido que da agenda de trabalho das Cimeiras e dos Conselhos de Ministros conjuntos franco ‑alemães
constam propostas legislativas europeias, sendo algumas delas discutidas directamente entre a Chanceler
e o Presidente (são disso exemplo o Pacote Energia e Clima, da Directiva sobre os solos, dos OGM's,
do Regulamento das emissões de CO2 em veículos ligeiros, do projecto Galileo, apenas para enumerar
alguns). Conhecido e frequente foi também o activismo do Primeiro ‑Ministro inglês durante as nego‑
ciações da Directiva Tempo de Trabalho (aliás particularmente intenso no decurso da última Presidência
Portuguesa da UE), ou do Presidente do Conselho italiano e do Primeiro ‑Ministro polaco sobre o Pacote
Energia e Clima.
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30 A forma mais evidente de o conseguir seria convergir económica e socialmente
com o resto da Europa de forma a que os nossos interesses e preocupações se situassem
naquela que é a ‘média ponderada’ do interesse geral europeu.
Enquanto não o conseguirmos, este desafio só será ultrapassado se traçarmos
objectivos e actuarmos de maneira concertada, entre a administração central e os nos‑
sos representantes nos diferentes órgãos e instituições comunitárias, única forma de
evitarmos o risco da ‘jangada de pedra’ económica e social e permanecermos timonei‑
ros, e não apenas meros tripulantes, deste navio chamado Europa.NE
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31A Carta das Nações Unidas como “Constituição”
da comunidade internacional
Mateus Kowalski*
n Abstract:
The Charter of the United Nations is frequently referred to as the “constitution of
the international community”. In fact, more than being just a constitutive treaty
of an international organization, it affirms itself as an international instrument of
reinforced value, which can be described as the fundamental legal statute of the
international community.
In this context, this article argues that the Charter plays a matrix role for the inter‑
national legal framework, establishing as well the foundation of the institutional
structure of the international community. Additionally, it may determine a path to
world governance based at the United Nations that eventually is worth exploring.
1. Introdução as orgaNizações iNterNacioNais têm como instrumento fundador um Tratado
multilateral. Não deixando de estar sujeito às regras do Direito dos Tratados, a sua
natureza específica justifica a designação particular de Tratado Constitutivo1: um
instrumento que não só traduz a vontade de outros sujeitos de Direito Internacional
(em regra, Estados) em criarem um novo sujeito de Direito Internacional, como
regula ainda a sua vida, estabelecendo as suas finalidades, a sua estrutura orgânica e
o seu funcionamento.
A Carta das Nações Unidas é, na sua génese, o Tratado Constitutivo das Nações
Unidas, adoptado em S. Francisco, a 26 de Junho de 1945. No entanto, mais do que
um tratado constitutivo, a Carta das Nações Unidas tem sido referida frequentemen‑
te como a “Constituição da comunidade internacional”2.
* Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Doutorando em Política Internacional e Resolução de Conflitos na Universidade de Coimbra.
1 O artigo 5.º da Convenção sobre o Direito dos Tratados, adoptada em Viena, a 23 de Maio de 1969, dispõe que «a presente Convenção aplica ‑se a todo o tratado que seja acto constitutivo de uma organização internacional».
2 Sobre o assunto vide, entre outros, FRANCK, Thomas, “The ‘powers of appreciation’: who is the ultimate guardian of UN
legality?” in American Journal of International Law, vol. 86, Julho de 1992, págs. 519 -523; REISMAN, W. Michael, “The
constitucional crisis in the United Nations” in Le développement du rôle du Conseil de Sécurité, Académie de Droit International de
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32 A possibilidade da Carta das Nações Unidas assumir o estatuto de “Constituição”
da comunidade internacional encerra uma enorme potencialidade no que respeita à
tentativa de ordenação, pelo Direito, do mundo actual. Uma eventual resposta afir‑
mativa à questão central colocada neste artigo, permitiria encarar a Carta não só
como matriz do ordenamento jurídico internacional, mas também como fundadora
da base institucional da comunidade internacional. Em última análise, trata ‑se de
saber se existe um caminho para a governação mundial com sede nas Nações Unidas
que valha a pena explorar. Este assunto deve ser contextualizado na discussão que
tem vindo a ser feita em redor do chamado constitucionalismo global enquanto
paradigma emergente numa época em que o conceito clássico de soberania e a ideia
de auto ‑suficiência das ordens constitucionais estaduais se mostram desadequados,
devendo ser repensados e actualizados.
Pretendendo ‑se saber se a Carta será de alguma forma uma “Constituição” da
comunidade internacional, importa, antes de mais, contextualizar a questão na deba‑
te sobre o chamado constitucionalismo global para, depois, estabelecer os parâme‑
tros pelos quais se procurará dar resposta à questão. No final do exercício, a medida
em que se possa concluir pela Carta como alicerce de uma ordem jurídica da comu‑
nidade internacional vai depender da maior ou menor presença desses fenómenos
constitucionais, lidos à luz do constitucionalismo global.
2. O Constitucionalismo global
2.1. A proposta no contexto da globalização
A emergência do chamado constitucionalismo global3 acontece num momento de
globalização dos fenómenos humanos e de aceleração da história. Trata ‑se de um
La Haye, Colloque – La Haye, 21 -23 Juillet 1992, págs. 399 -423, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, 1993;
CRAWFORD, James, “The Charter of the United Nations as a Constitution” in The changing Constitution of the United Nations,
organização de FOX, Hazel, págs. 3 -16, BIICL, s.l., 1997; DUPUY, Pierre ‑Marie, “The constitutional dimension of the
Charter of the United Nations revisited” in Max Planck Yearbook of United Nations Law, vol. 1, 1997, págs. 1 -33; FASSBENDER,
Bardo, UN Securit Council reform and the right of veto – a constitucional perspective, Kluwer Law International, A Haia,
1998; BAPTISTA, Eduardo Correia, O poder público bélico em Direito Internacional: o uso da força pelas Nações Unidas em
especial, Livraria Almedina, Coimbra, 2003 – págs. 392 e ss. 3 Note ‑se que este fenómeno tem sido frequentemente apelidado de “constitucionalismo internacional”. Não
lhe querendo dar outro sentido, parece, no entanto, preferível utilizar, neste contexto, a expressão “cons‑
titucionalismo global”, uma vez que traduz de forma mais actualizada e adequada a realidade que lhe está
subjacente e que pretende conformar.
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33processo que tem como ponto de partida a observação do mundo, actualmente mar‑
cado pela globalização, e do ser humano dotado de dignidade. A meta é a criação de
um modelo que, pelo Direito, ordene a realidade global em que hoje o ser humano
se insere.
Tem ‑se assistido não só à globalização da economia, da política, da ciência, ou
da informação, mas também à desterritorialização de problemas relacionados com a
segurança, a saúde, o ambiente, ou mesmo as crises económico ‑financeiras. Tudo o
que tem contribuído para o reforço das interdependências globais.
O Estado, por si só, mostra ‑se insuficiente para lidar com a realidade globaliza‑
da que o compele a organizar ‑se com outros Estados. Funções que anteriormente
caíam na esfera governativa do Estado soberano acham ‑se agora transferidas para
níveis políticos que vão para além das fronteiras do clássico Estado ‑Nação, tais como
Organizações Internacionais ou outras formas de cooperação bilateral e multilateral.4
Por outro lado, os actores internacionais não ‑estatais têm vindo a ganhar crescente
participação na vida da comunidade internacional. É o caso das organizações não‑
‑governamentais, das empresas transnacionais ou do indivíduo.5 Enquanto a erosão
do Estado ‑Nação traz consigo a superação da ideia de soberania estadual como prin‑
cípio absoluto, o fortalecimento do conceito de comunidade internacional acarreta
a consideração de princípios como o interesse global ou a protecção dos direitos do
ser humano, onde quer que este se encontre.
Objectivos clássicos do constitucionalismo, tais como o respeito pelo primado
do Direito, a promoção e protecção dos direitos e liberdades dos membros da comu‑
nidade, a separação dos poderes, a solução pacífica de conflitos, ou a adequada cria‑
ção das normas necessárias à comunidade, são também agora encarados ao nível
internacional, se bem que, a este nível, não tenham, ainda, sido concretizados.
Observa ‑se, pois, que a governação é exercida para além dos limites constitucionais
do Estado. Tudo o que contribui para que, no momento actual da história, se reco‑
4 Vide SENGHASS, Dieter, “Global governance: how could it be conceived?” in Security Dialogue, vol. 24, n.º 3, 1993, págs. 247 -256 –
pág. 247; BOUTROS ‑GHALI, Boutros, “Global prospects for United Ntions” in Aussen Politik, volume 46, n.º 2, págs. 107-
-114 – pág. 108; MAKINDA, Samuel, “International society and global governance” in Cooperation and Conflict, vol. 36, n.º
3, 2001, págs. 334 -337 – pág. 334; RONIT, Karsten, “Institutions of private authority in global governance: linking territorial
forms of self -regulation” in Administration & Society, vol. 33, n.º 5, 2001, págs. 555 -578 – pág. 558; ESCARAMEIA, Paula,
O Direito Internacional Público nos princípios do século XXI, Livraria Almedina , Coimbra, 2003 – págs. 17 e ss.5 ESCARAMEIA, Paula, op. cit. – págs. 21 e ss.
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34 nheça às constituições estaduais uma insuficiência na ordenação da clássica “comu‑
nidade perfeita”, o Estado ‑Nação, que agora, e cada vez mais, deve ser considerada
no âmbito de uma comunidade mais abrangente.
É perante a necessidade de complementar o constitucionalismo nacional, numa
adequação à realidade globalizada, que surge a proposta do constitucionalismo glo‑
bal. A diluição do poder do Estado noutros níveis políticos para além dele, a exigên‑
cia cada mais forte da globalização da democracia, do desenvolvimento e do respei‑
to pelos direitos humanos, acorrentada à prática da “boa governação”, provocam
novas pulsões constituintes, complementado e fazendo inflectir as ordens constitu‑
cionais nacionais.
2.2. O constitucionalismo global em perspectiva
A ideia da existência de uma ordem constitucional universal tem sido encarada, de
diferentes perspectivas, por diversos autores.
Alfred Verdross, cultor do monismo com primado no Direito Internacional, foi
dos primeiros autores a levar a noção de Constituição para o contexto do Direito
Internacional. A Constituição da comunidade universal de Estados seria fundada nas
normas, entendidas como o conjunto dos princípios de Direito que organizam os
Estados num todo, aceites como válidas pelos Estados no momento em que o Direito
Internacional teria sido criado. Normas, essas, que teriam então sido desenvolvidas
pelo Direito Internacional costumeiro e por determinadas convenções multilaterais
formando uma Constituição em sentido substantivo. O autor, numa fase mais adian‑
tada do seu pensamento, e em conjunto com o seu discípulo Bruno Simma6 defen‑
deram que quando as Nações Unidas passaram a incluir como membros quase todos
os Estados, tendo aqueles que permaneceram como não ‑membros reconhecido os
seus princípios edificantes, a Carta passou a ser a Constituição da comunidade uni‑
versal de Estados.
A tese de Hermann Mosler7 assenta no conceito de comunidade internacional
de Direito, entendida como a dimensão jurídica da sociedade internacional. Num
6 VERDROSS, Alfred / SIMMA, Bruno, Universelles Völkerrecht, Duncker & Humblot, Berlim, 1984, apud FASSBENDER,
Bardo, op. cit. – pág. 41. 7 MOSLER, Hermann, “The international society as a legal community” in Recueil des cours de l’Académie de Droit International de
la Haye, Tomo 40 – 1974 (IV), A. W. Sijthoff, Leyde, 1976; MOSLER, Hermann, “International legal community” in
Encyclopedia of Public International Law, vol. 2 – págs. 1251 ‑1255, Elsevier, Amesterdão, 1992.
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35sentido amplo, a comunidade internacional de Direito compreenderia não só os
Estados mas também todas as «entidades organizadas dotadas com a capacidade para
participarem em relações jurídicas internacionais».8 A Constituição é apresentada
como a lei superior de uma sociedade, quer regule a vida no seio de um Estado, quer
regule a coexistência de um grupo de Estados. Qualquer sociedade necessitaria de
uma norma constitucional fundamental «sem a qual não seria uma comunidade,
mas apenas um conjunto de indivíduos».9 Esta norma serviria de critério para a
criação e desenvolvimento do Direito. De início, quando os Estados existiam sem
algum tipo de organização, haveria, ainda assim, um elemento constitucional: o
Direito Internacional era desenvolvido por consenso entre os membros da sociedade
internacional. No momento actual, embora reconhecendo que os tratados constitu‑
tivos das organizações internacionais, no seu globo, representam um elemento cons‑
titucional da vida da sociedade internacional, Hermann Mosler entende que é ainda
através do consenso dos membros da sociedade internacional que são criadas e alte‑
radas as normas de Direito Internacional. As Organizações Internacionais, em parti‑
cular as Nações Unidas, interviriam no processo articulando o consenso.
Christian Tomuschat10 apresenta um conceito de Constituição internacional mais
denso do que até aí tinha sido proposto. O autor começa por defender que a consti‑
tuição de qualquer sistema de governação é formada pelas regras respeitantes à atri‑
buição das funções executivas e judiciais, e pelas regras que asseguram a produção
normativa. Essas regras gozariam de precedência no ordenamento em que operassem,
reflectindo, ao mesmo tempo, a distribuição de poderes na comunidade. O autor con‑
clui a comunidade internacional pode ser concebida como uma entidade jurídica,
governada por uma constituição, um termo que serviria para denotar as funções bási‑
cas da governação no âmbito dessa entidade.11 Como consequência, nenhum Estado
poderia, por si só, rejeitar as regras que fizessem parte da ordem constitucional da
comunidade internacional. A constituição da comunidade internacional, não tendo
entrado em vigor como um todo num dado momento, seria modelada por um con‑
junto de forças político ‑históricas presentes na comunidade internacional.
8 MOSLER, Hermann, “International legal community”, cit. – págs. 1251 ‑1252.9 MOSLER, Hermann, “The international society as a legal community”, cit. – pág. 32. 10 TOMUSCHAT, Christian, “Obligations arising for States without or against their will” in Recueil des cours de l’Académie de Droit
International de la Haye, Tomo 241 – 1993 (IV), págs. 194 -374, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, 1994. 11 Ibidem – pág. 236.
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36 Já Bardo Fassbender12 defende que a reforma do Conselho de Segurança das
Nações Unidas deve ter por base o entendimento da Carta como a Constituição da
comunidade internacional. O autor começa por analisar o conceito de “Constituição”,
com origem no Estado moderno, transpondo ‑o para o espaço da comunidade inter‑
nacional. Tendo como ponto de partida o pensamento de outros autores, este autor
conclui que uma «comparação da Carta com o tipo ideal de constituição revela uma
semelhança suficientemente forte para atribuir qualidade constitucional ao
instrumento».13 A Carta seria o resultado de uma “revolução jurídica”, através da
qual o paradigma do Direito Internacional baseado na soberania estadual se viu
substituído pelo paradigma do constitucionalismo internacional.
Entre nós, também Gomes Canotilho14 se refere ao constitucionalismo global. Os
pontos de partida deste paradigma emergente seriam a democracia e o caminho para a
democracia enquanto «tópicos dotados de centralidade política interna e internacional»,15
a busca pela legitimação da autoridade e da soberania política noutros suportes sociais
e políticos diferentes do Estado ‑Nação, e a constatação de que novos fins do Estado
«podem e devem ser os da construção de “Estados de direito democráticos, sociais e
ambientais”, no plano interno, e Estados abertos e internacionalmente “amigos” e
“cooperantes” no plano externo».16 Neste contexto, o jus cogens e os direitos humanos,
articulados com o papel da Organização Internacional, porventura as Nações Unidas,
forneceriam «um enquadramento razoável para o constitucionalismo global».17
2.3. A comunidade internacional e a sua “Constituição”
É tarefa difícil, porventura irrealizável, encontrar uma definição perfeita e consensu‑
al para o termo “Constituição”.18 Sem querer experimentar preencher o seu conte‑
údo, de uma forma abrangente parece ser possível dizer que “Constituição” é o
estatuto jurídico fundamental ordenador de uma comunidade.
12 FASSBENDER, Bardo, op. cit.13 Ibidem – pág. 114.14 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional, Livraria Almedina, Coimbra, 2003 – págs. 1369‑
‑1372.15 Ibidem – pág. 1369.16 Ibidem – pág. 1369.17 Ibidem – pág. 1370.18 Para uma perspectiva sobre diversas abordagens à noção de “Constituição”, vide MIRANDA, Jorge, Manual de
Direito Constitucional, tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 2000 – págs. 52 e ss.
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37No seu sentido próprio, a expressão “Constituição” é referida ao Estado. Trata ‑se
de um conceito que, intimamente relacionado com o Estado moderno, ganhou con‑
teúdo no século XVIII procurando responder a preocupações, ainda actuais, de limi‑
tação do poder do Estado e de garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos. Ainda
hoje é frequentemente invocado o artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, de 1789, segundo o qual «toda a sociedade na qual a garantia dos
direitos não esteja assegurada, nem a separação dos poderes estabelecida, não tem
Constituição». É, pois, no seu sentido original, referido à comunidade estadual.
Utilizar a expressão “Constituição” para designar outra coisa que não o estatuto
jurídico fundamental da comunidade estadual incorre no risco óbvio da confusão
com a tentativa de comparar o estatuto de uma qualquer comunidade a uma
“Constituição” estadual e, por consequência, estabelecer um paralelo entre essa
comunidade e um Estado. No entanto, num sentido evoluído, é de admitir a utiliza‑
ção da expressão “Constituição” como símbolo da fundamentalidade de um estatuto
que comungue de alguns fenómenos constitucionais observáveis na realidade esta‑
dual. Mesmo que não se queira ou que não seja possível comparar essa realidade ao
Estado.
Pode até acontecer que, num sentido pouco rigoroso, “Constituição” queira
designar o estatuto de uma qualquer entidade colectiva, enquanto instrumento que
constitui essa entidade.19 Pese embora a importância do rigor terminológico, o que
importa é mais o conteúdo desse estatuto e a natureza da comunidade que ele orga‑
niza, e menos a expressão que é utilizada para o designar.
No caso em estudo, pergunta ‑se pelo estatuto fundamental organizador da
comunidade internacional. Uma comunidade que adquire dimensão universal.
A existência da comunidade internacional pressupõe, mais do que a soma dos
indivíduos em que prevalece a vontade de todos, a existência de um colectivo em
que prevalece a vontade geral. Uma comunidade ordenada pelo Direito que articula
a relação entre os seus membros, fazendo com que o colectivo seja mais do que a
mera justaposição das partes que o compõem.20
19 Vide MIRANDA, Jorge, “Constituição e Integração” in A União Europeia e Portugal: a actualidade e o futuro, organização de
CUNHA, Paul de Pitta e, págs. 173 -202, Livraria Almedina , Coimbra, 2005 – pág. 174. Recorde ‑se, designada‑
mente, que o estatuto da Organização Internacional do Trabalho se designa, em inglês, por “Constitution of
the International Labour Organization”. 20 TOMUSCHAT, Christian, op. cit. – pág. 219; FASSBENDER, Bardo, op. cit. – pág. 81.
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38 Num sentido estrito, a comunidade internacional é actualmente melhor definida
como uma colectividade humana que se distingue por os seus membros primários
serem entidades políticas e soberanas.21 Mas uma comunidade em que a ideia clássica
da soberania absoluta e indivisível do Estado se encontra superada. Uma comunidade
em que a dimensão da subordinação surge ao lado das dimensões de cooperação inter‑
governamental e de reciprocidade,22 assistindo ‑se à verticalização da vasta planície
interestadual.23
Nela se estabelecem e desenvolvem relações jurídicas complexas e diversificadas
entre sujeitos que não apenas os Estados. O indivíduo, dotado de dignidade humana e
sujeito dos direitos inerentes, assume na comunidade internacional um estatuto basi‑
lar, se bem que intervém na governação de uma forma indirecta, conferindo legitimi‑
dade às entidades estaduais (com a excepção única da eleição dos deputados ao
Parlamento Europeu, ou até, numa certa medida, da representação dos governos, dos
patrões e dos trabalhadores nacionais de cada Estado Membro na Conferência Geral da
Organização Internacional do Trabalho). Assim, num sentido amplo, a comunidade
internacional de Direito é constituída pelos sujeitos de Direito Internacional.24 E isto
sem esquecer o papel das organizações não ‑governamentais na defesa da comunidade
humana e dos seus interesses. Tudo contribuindo para o reforço da compreensão e da
representatividade dos valores e interesses da humanidade.
Mas quais, então, os fenómenos constitucionais que devem ser observados para
que se possa reconhecer um estatuto fundamental organizador da comunidade inter‑
nacional? Em primeiro lugar, um tal estatuto deverá incorporar um núcleo duro de
Direito imperativo que se imponha aos membros da comunidade. Só assim se poderá
garantir o mínimo de uniformidade necessário à manutenção da comunidade. Por
outro lado, tratando ‑se dum estatuto de natureza jurídica que se propõe ordenar a
comunidade internacional, esse estatuto deverá gozar de supremacia no seio do orde‑
namento jurídico internacional. Parece também evidente que deverá assegurar a garan‑
21 AGO, Robert, “Communauté international et organization internationale” in Manuel sur les organizations internationales, organização
de DUPUY, René -Jean, págs. 3 -12, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, 1998 – pág. 3. 22 PEREIRA, André Gonçalves / QUADROS, Fausto de, Manual de Direito Internacional Público, Livraria Almedina,
Coimbra, 1993 – págs. 37 e ss.23 Nguyen Quoc Dinh, Patrick Dailler e Alain Pellet falam num «reconhecimento progressivo, lento e prudente,
de uma certa personalidade jurídica da comunidade de Estados» – DINH, Nguyen Quoc / DAILLER, Patrick
/ PELLET, Alain, Direito Internacional Público, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2003 – pág. 411. 24 MOSLER, Hermann, “International legal community”, cit. – pág. 1252.
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39tia dos direitos fundamentais da pessoa humana, enquanto padrão de conduta da
comunidade. Só assim se compreende uma comunidade que assenta num substrato
humano. Ainda, para que lhe possa ser reconhecida natureza de ordenador fundamen‑
tal, é necessário que o estatuto detenha a capacidade de permanecer vivo, sofrendo o
influxo da realidade que pretende conformar, traduzindo a vontade geral dos seus
membros. Acresce que o estatuto deverá prever uma base institucional, com inspiração
no princípio da separação de poderes, que sirva de garantia da ordem jurídica da
comunidade internacional.
O poder constituinte é elemento essencial de uma ordem constitucional. Como
escreve Jorge Miranda, «é cada povo, em cada momento, que faz as opções básicas da
sua vida colectiva – políticas, económicas e sociais – através do exercício do poder
constituinte».25 Ora, não é possível, ainda, vislumbrar no seio da comunidade interna‑
cional a manifestação de um poder constituinte exercido pelo povo.26 Pese embora esta
impossibilidade actual, não significa que não possa ser encontrado um estatuto funda‑
mental ordenador da comunidade internacional. O que não pode ser encontrado é
uma “Constituição” em sentido próprio. Não se pretendendo confundir a comunidade
internacional com um Estado, tal não pode constituir motivo de desânimo no caminho
que se ensaia percorrer.
Estes serão, pois, os elementos que servirão de referência para procurar a
“Constituição”, no seu sentido evoluído, da comunidade internacional. Uma realidade
jurídica que se insere no processo constitucional global, complementando a insuficien‑
te ordem constitucional nacional, sem que para tal se almeje a criação de um super‑
‑Estado. O que não significa, contudo, que, num futuro longínquo, o constitucionalis‑
mo global não possa evoluir ao encontro de uma ordem constitucional pós ‑moderna.
3. A Carta como Constituição da comunidade internacional
3.1. O núcleo duro de Direito imperativo
Uma Constituição é uma ordenação normativa fundamental dotada de supremacia.27
Ora, sendo a comunidade internacional uma comunidade de Direito, é indispensável
25 MIRANDA, Jorge, “Constituição e Integração”, cit. – pág. 174.26 Bardo Fassbender, no entanto, entende a redacção da Carta na Conferência de S. Francisco como se tratando
de um “momento constitucional” – FASSBENDER, Bardo, op. cit. – pág. 98.27 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, op. cit. – pág. 246.
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40 a existência de um núcleo mínimo de princípios e de regras imperativas para os seus
membros que funcione como aglutinador da comunidade e garante da sua unifor‑
midade.
Neste âmbito, assume grande relevância a teorização do jus cogens enquanto
Direito imperativo que se impõe aos Estados e que só pode ser derrogado ou modi‑
ficado por uma norma da mesma natureza. Mesmo no espaço estadual, a conclusão
de que exista uma superioridade hierárquico ‑normativa das normas constitucionais
sobre as normas internacionais deve ser temperada pelo reconhecimento do jus cogens
cuja a observância se impõe como dever imperativo dos Estados.28
A existência do jus cogens foi pela primeira vez consagrada expressamente na
Convenção sobre o Direito dos Tratados, adoptada em Viena, a 23 de Maio de 1969.29
O artigo 53.º daquela Convenção estabelece que é nulo qualquer tratado30 que seja
incompatível com o jus cogens. O mesmo artigo identifica o jus cogens com as normas
de Direito Internacional geral aceites e reconhecidas pela comunidade internacional
dos Estados no seu conjunto como normas às quais nenhuma derrogação é permiti‑
da e que só pode ser modificada por uma nova norma de Direito Internacional geral
com a mesma natureza. Nos termos do artigo 64.º da mesma Convenção, o tratado
é nulo quer seja posterior ou anterior ao surgimento de uma dessas normas impe‑
rativas. O conteúdo do jus cogens pode, pois, variar no tempo.
É, assim, reconhecido a este Direito imperativo um dinamismo que se justifica
pela necessidade de adaptação do Direito à realidade em que se desenvolve e que,
simultaneamente, pretende organizar. Um dinamismo observável nas ordens consti‑
tucionais estaduais. Tal é a fundamentalidade do jus cogens.
Se bem que o seu reconhecimento expresso se dá no contexto do Direito dos
Tratados, este Direito imperativo existe no âmbito de todo o Direito Internacional. A
Comissão de Direito Internacional, no seio da qual se desenvolveu o projecto da
Convenção sobre o Direito dos Tratados, mais não fez do que constatar uma situação
preexistente e recomendar que fossem sancionados com a nulidade os tratados
incompatíveis com o jus cogens.31 Note ‑se, por exemplo, que no projecto de Convenção
28 Ibidem – pág. 695.29 Para uma perspectiva histórica da teorização do jus cogens vide PEREIRA, André Gonçalves / QUADROS, Fausto
de, op. cit. – págs. 278 e ss.30 “Convenção internacional”, na terminologia constitucional portuguesa. 31 DINH, Nguyen Quoc / DAILLER, Patrick / PELLET, Alain, op. cit. – pág. 206.
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41sobre a Responsabilidade dos Estados por Actos Internacionalmente Ilícitos elabora‑
do pela Comissão de Direito Internacional,32 o capítulo III da parte II versa sobre a
responsabilidade internacional com origem na violação de uma obrigação que
decorra de uma “norma peremptória de Direito Internacional geral”.
Hermann Mosler utiliza a expressão “ordem pública internacional” para desig‑
nar o mínimo de princípios e regras sem as quais a comunidade internacional dei‑
xaria de existir.33 Jus cogens seria a parte da “ordem pública internacional” aplicável às
convenções internacionais.34 Parece, no entanto, ser possível identificar o jus cogens
com todo o mínimo de princípios e regras que compõem a ordem pública da comu‑
nidade internacional, cuja aplicação ao Direito dos Tratados é regulada pelos artigos
53.º, 64.º e 66.º da Convenção sobre o Direito dos Tratados. Assim, qualquer norma
incompatível com o jus cogens é nula.35
Pese embora o reconhecimento expresso da existência do jus cogens pela
Convenção sobre o Direito dos Tratados ser um «evento jurídico notável (…) na
edificação das bases constitucionais escritas da comunidade internacional»36 fica
ainda muito por concretizar, designadamente, no que respeita ao seu conteúdo.
Quais são, então, as regras que conformam o jus cogens?
Quando o artigo 53.º da Convenção sobre o Direito dos Tratados dispõe que uma
norma, para que seja jus cogens, deve ser reconhecida como tal pela «comunidade inter‑
nacional dos Estados no seu conjunto», não deve ser interpretado no sentido de se
exigir o reconhecimento por todos os Estados que compõem a comunidade interna‑
cional, correndo o risco de se cair num voluntarismo contrário à própria natureza do
jus cogens. O critério será o da existência de um interesse da comunidade internacional
assim aceite pelos Estados em geral. A justificação para a existência de um Direito
imperativo que ocupe o topo da hierarquia da ordem jurídica internacional deve ser
procurada no seu conteúdo, na medida em que reflicta os valores fundamentais da
comunidade internacional e procure prosseguir os interesses comuns.
32 Resolução A/RES/59/35, de 16 de Dezembro de 2004 O texto do projecto pode ser consultado em http://
untreaty.un.org/ilc/texts/instruments/english/draft%20articles/9_6_2001.pdf.33 MOSLER, Hermann, “International society as a legal community”, cit. – pág. 33.34 Ibidem – pág. 35.35 Neste sentido, PEREIRA, André Gonçalves / QUADROS, Fausto de, op. cit. – pág. 284; MIRANDA, Jorge,
“Constituição e Integração”, cit. – pág. 175.36 DINH, Nguyen Quoc / DAILLER, Patrick / PELLET, Alain, op. cit. – pág. 211.
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42 A Comissão de Direito Internacional, sem, no entanto, se querer comprometer,
apontou o caminho para o que deveria ser o conteúdo do jus cogens enunciando alguns
exemplos no seu relatório, tais como tratados que visem o emprego da força, trata‑
dos que prevejam a execução de um crime de Direito Internacional, tratados que
organizem o tráfico de escravos, a pirataria ou o genocídio, tratados que violem
direitos humanos, tratados que violem a igualdade dos Estados, ou tratados que vio‑
lem o princípio da autodeterminação.37
O artigo 66.º da Convenção sobre o Direito dos Tratados prevê que, no caso de
diferendo que surja no âmbito de um processo para arguição da nulidade por
incompatibilidade de um tratado com o jus cogens e que não seja resolvido nos doze
meses posteriores à data em que a objecção for formulada, qualquer das Partes a
pode submeter à decisão do Tribunal. No caso Barcelona Traction,38 o Tribunal enunciou
o respeito pelas regras aplicáveis aos actos de agressão, ao genocídio e aos direitos
humanos como sendo obrigações dos Estados para com a comunidade internacional
no seu conjunto.39
O artigo 19.º do projecto sobre a Responsabilidade dos Estados, elaborado no
seio da Comissão de Direito Internacional, na sua redacção anterior à nomeação, em
1997, de James Crawford como relator especial, definia crime internacional como
um acto ilícito resultante da violação por um Estado de uma obrigação internacional
essencial para a protecção dos interesses fundamentais da comunidade internacio‑
nal.40 Como exemplos de interesses fundamentais para a comunidade internacional,
o projecto refere a manutenção da paz e segurança internacionais, a protecção do
direito à autodeterminação dos povos, a protecção do ser humano e a preservação
do “ambiente humano”.
A doutrina tem, igualmente, procurado concretizar o conteúdo do jus cogens.
Assim, e citando apenas alguns autores, André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros,
afirmam que o jus cogens abrange: o costume internacional geral (exemplificando com
os princípios da liberdade dos mares, da coexistência pacífica, da autodeterminação
37 Annuaire de la Commission du Droit International, 1966, vol. II – pág. 270.38 Caso respeitante à Barcelona Traction, Empresa de Água e Luz, Limitada (Bélgica c. Espanha), registo de 19 de Junho de
1962.39 International Court of Justice Reports, 1970 – pág. 32.40 Para consulta deste texto, vide www.un.org/law/ilc/reports/1996/chap03.htm
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43dos povos, da proibição da escravatura, da pirataria, do genocídio e da discriminação
racial, a qualificação dos crimes internacionais e o Direito Humanitário Internacional);
as normas convencionais pertencentes ao Direito Internacional geral, dando como
exemplo os princípios constantes na Carta; o Direito Internacional geral, de fonte
unilateral ou convencional, sobre direitos humanos, como seja a Declaração Universal
dos Direitos do Homem ou os Pactos de 1966.41
Por seu lado, Jorge Miranda enuncia um vasto conjunto de princípios como
integrando o acervo de jus cogens: os princípios da cooperação, da resolução pacífica
de conflitos, de acesso aos benefícios do património comum da humanidade, do
livre consentimento, da reciprocidade de interesses e da equivalência das relações
contratuais, pacta sunt servanda, da boa fé, da responsabilidade por actos ilícitos, da
igualdade jurídica dos Estados, do respeito da integridade territorial, da não‑
‑interferência nos assuntos internos dos Estados, da legítima defesa contra a agressão,
da continuidade do Estado, da igual dignidade de todos os homens e mulheres, da
proibição da escravatura, do tráfico de seres humanos e de práticas semelhantes, da
proibição do racismo, da protecção das vítimas de guerra e conflitos, da garantia dos
direitos “inderrogáveis” enunciados no artigo 4.º do Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos.42
Sem querer empreender o difícil exercício de delimitar o conteúdo do jus cogens,
parece, no entanto, possível identificar algumas linhas gerais comuns aos exemplos
supra referidos. Todos eles têm por fundamento a dignidade humana, a paz, a igual‑
dade ou a liberdade enquanto valores comuns da comunidade internacional, e o
reconhecimento de que a protecção das suas iminentes expressões é seu interesse
fundamental.
Não parece difícil estabelecer um paralelo entre aquelas linhas gerais e o dispos‑
to na Carta. Nos seus dois primeiros artigos, a Carta consagra um conjunto de regras
fundamentais conformadoras da comunidade internacional:43 a manutenção a paz e
41 PEREIRA, André Gonçalves / QUADROS, Fausto de, op. cit. – págs. 282 ‑283.42 MIRANDA, Jorge, Curso de Direito Internacional Público, Principia, Cascais, 2004 – págs. 127 ‑128. 43 Sobre o assunto, vide os comentários, não só aos artigos 1.º e 2.º da Carta, mas também ao seu preâmbulo,
em GOODRICH, Leland / HAMBRO, Edvard, Charter of the United Nations – commentary and documents, World
Peace Foundation, Boston, 1946 – págs. 53 e ss.; BENTWICH, Norman / MARTIN, Andrew, A commentary
on the Charter of the United Nations, Routledge & Kegan Paul Ltd., Londres, 1950 – págs. 1 e ss.; COT, Jean‑
‑Pierre / PELLET, Alain “Préambule” in La Charte des Nations Unies – commentaire article par article, organização de COT,
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44 da segurança internacionais, a proibição do recurso à força e a inerente obrigação da
resolução pacífica de conflitos, a autodeterminação dos povos, a cooperação inter‑
nacional nas áreas económica, social, cultural e humanitária, a promoção do respei‑
to pelos direitos humanos e das liberdades fundamentais, a boa fé nas relações
internacionais, ou a igualdade soberana entre os Estados. A Carta das Nações Unidas
assimila os valores comuns da comunidade internacional e prossegue os interesses
da comunidade internacional.
Se é verdade que a Carta não consagra expressamente todas as regras imperativas
conformadoras da comunidade internacional, também é verdade que todas elas
beneficiam de uma ligação substancial com a Carta, ou que, pelo menos, são uma
implicação lógica das regras consagradas na Carta das Nações Unidas. É, pois, possí‑
vel concluir pela Carta como constituindo a matriz ética e jurídica do jus cogens
enquanto ordem pública da comunidade internacional.44
3.2. A hierarquização normativa
Um outro fenómeno constitucional característico é o estabelecimento pela
Constituição da hierarquia das normas da comunidade que organiza.
Ora, o artigo 103.º da Carta estabelece a hierarquização das obrigações conven‑
cionais, colocando a Carta das Nações Unidas no topo dessa hierarquia. Nos termos
daquela disposição, em caso de conflito entre as obrigações de um dos Estados
Membros em virtude da Carta e obrigações que para ele decorram em virtude de
uma outra convenção internacional, prevalecem as primeiras. Como observa Thiébaut
Flory, o artigo 103.º traduz o «carácter “constitucional”», a «natureza de “supra‑
legalidade” em relação aos restantes tratados internacionais» que os negociadores na
Conferência S. Francisco relacionavam com a Carta.45
O Tribunal Internacional de Justiça teve já ocasião de aplicar o artigo 103.º da
Carta. Assim no caso Actividades militares e paramilitares,46 o Tribunal afirmou que «todos
os acordos regionais, bilaterais e mesmo multilaterais que as Partes no presente caso
Jean ‑Pierre / PELLET, Alain, Economica, Paris, 1991 – págs. 1 e ss.; WOLFRUM, Rüdiger “Preamble” in The
Charter of the United Nations – a commentary – volume I, organização de SIMMA, Bruno, págs. 33 -37, Oxford University
Press, Oxford, 2002. 44 Neste sentido, DUPUY, Pierre ‑Marie, op. cit. – pág 11.45 FLORY, Thiébaut “Article 103” in La Charte des Nations Unies – commentaire article par article, cit., pág. 1381.46 Caso Actividades militares e paramilitares dos Estados Unidos na Nicarágua (Nicarágua c. Estados Unidos da América), registo de
9 de Abril de 1984.
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45possam ter concluído sobre a solução de controvérsias ou da jurisdição do Tribunal
Internacional de Justiça, deverão ser sempre submetidas as disposições do artigo
103.º».47
No caso Lockerbie,48 o Tribunal invocou mais uma vez o artigo 103.º. Em 1988,
uma bomba explodiu num avião da Pan Am que se despenhou em Lockerbie, na
Escócia. Tendo as investigações indicado que teriam sido dois agentes líbios os auto‑
res do atentado, o Conselho de Segurança solicitou à Líbia que cumprisse com as
exigências dos Estados Unidos da América e do Reino Unido, nomeadamente, que
entregasse os dois presumíveis responsáveis.49 Perante aquela recomendação, a Líbia
submeteu o caso ao Tribunal arguindo que tinha cumprido com as suas obrigações
ao abrigo da Convenção para a Eliminação de Actos Ilícitos Contra a Segurança da
Aviação Civil, adoptada em Montreal, a 23 de Setembro de 1971, de julgar os res‑
ponsáveis pelo atentado, e que os Estados Unidos da América e o Reino Unido não
estavam a cumprir com as suas obrigações ao abrigo daquela Convenção, não poden‑
do tomar quaisquer medidas para forçar a Líbia a cumprir as suas exigências.
Entretanto, o Conselho de Segurança, ao abrigo do capítulo VII da Carta, determinou
que o não cumprimento da resolução 731 (1992) constituía uma ameaça à paz.50
Nessa medida, o não cumprimento daria lugar à imposição de medidas coercivas.
Face à argumentação da Líbia, o Tribunal afirmou que «de acordo com o artigo
103.º da Carta, as obrigações das Partes a esse respeito [referindo ‑se ao artigo 25.º
da Carta e à resolução 748 (1992), de 31 e Março de 1992, do Conselho de
Segurança] prevalecem sobre as suas obrigações decorrentes de qualquer outro acor‑
do internacional, incluindo a Convenção de Montreal».51 Mais adiante, o Tribunal
conclui que «a indicação das medidas requeridas pela Líbia seriam incompatíveis
com os direitos que os Estados Unidos parecem gozar prima facie em virtude da reso‑
lução 748 (1992) do Conselho de Segurança».52
47 International Court of Justice Reports, 1984 – pág. 440. 48 Caso Questões sobre a interpretação e aplicação da Convenção de Montreal resultantes do incidente aéreo em Lockerbie (Jamahiriya Árabe
Líbia c. Estados Unidos da América / Jamahiriya Árabe Líbia c. Reino Unido), registos de 3 de Março de 1992.49 Resolução 731 (1992), de 21 de Janeiro de 1992. Note ‑se que esta resolução tinha natureza meramente
recomendatória. 50 Resolução 748 (1992), de 31 de Março de 1992.51 International Court of Justice Reports, 1992 – pág. 126.52 Ibidem – pág. 127.
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46 Igualmente relevante parece ser a questão quanto à relação, a este nível, entre as
obrigações que decorram da Carta e as normas costumeiras, situação em relação à
qual a Carta nada refere. Na Conferência de S. Francisco chegou mesmo a ser discu‑
tida uma proposta de redacção que explicitava que as obrigações decorrentes da
Carta prevaleceriam sobre todas as outras, incluindo as de Direito costumeiro.53
Apesar daquela fórmula não ter sido adoptada, é de admitir que os redactores da
Carta procurassem integrar na sua obra o Direito costumeiro então em vigor, acre‑
ditando ao mesmo tempo que as futuras regras costumeiras nunca seriam incompa‑
tíveis em termos substanciais com o disposto na Carta.54
Entendimento que sai reforçado se se reconhecer à Carta o estatuto de matriz
ética e jurídica do jus cogens. Rudolf Bernhardt refere mesmo que as «ideias que estão
na base do artigo 103.º são também válidas no caso de conflito entre obrigações da
Carta e outras obrigações para além daquelas que resultam de tratados».55
O que parece certo é que o âmbito do artigo 103.º não inclui apenas as obriga‑
ções que se encontrem consagradas directa e imediatamente na Carta das Nações
Unidas, mas todas as obrigações que resultem em virtude da Carta, incluindo, pois,
as deliberações dos órgãos das Nações Unidas que tenham força vinculativa.56 Por
outro lado, e seguindo a mesma linha de raciocínio, as obrigações em virtude da
Carta prevalecerão também sobre as deliberações vinculativas dos órgãos de outras
organizações internacionais.
O relacionamento da hierarquia das obrigações convencionais estabelecida pela
Carta pode parecer incompatível com a teoria do jus cogens. Se nem todo o jus cogens
está na Carta, admitindo que possa ser encontrado noutras convenções internacio‑
nais, designadamente sobre direitos humanos, é de questionar a possibilidade das
obrigações em virtude da Carta poderem prevalecer sobre aquele Direito inderrogá‑
vel. Ora, admitindo que a Carta é matriz ética e jurídica do jus cogens, existe uma
impossibilidade lógica de conflito entre a Carta das Nações Unidas e o Direito de que
é matriz. A verificação de um conflito entre a Carta e uma regra de Direito obrigaria
à conclusão imediata de que não se estaria perante jus cogens.
53 Vide BERNHARDT, Rudolf “Article 103” in The Charter of the United Nations – a commentary – volume II, cit. – pág. 1293.54 Assim DUPUY, Pierre ‑Marie, op. cit. – pág. 13. 55 BERNHARDT, Rudolf, op. cit. – pág. 1299.56 O Tribunal Internacional de Justiça pronunciou ‑se neste sentido no âmbito do caso Lockerbie – International
Court of Justice Reports, 1992 (Jamahiriya Árabe Líbia c. Estados Unidos da América) – pág. 126.
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47O jus cogens e o artigo 103.º são, antes, instrumentos poderosos, compatíveis, que
contribuem para a afirmação da fundamentalidade da Carta, reconhecendo ‑a como
ocupando um lugar de topo na ordem jurídica internacional hierarquizada. Não se
pode esconder, no entanto, que quer a teoria do jus cogens, quer a sua relação com o
artigo 103.º da Carta carecem de elaboração. Elaboração que, no estádio actual de
desenvolvimento do Direito Internacional, se reveste de grande importância.
Não havendo espaço neste estudo para aquele aprofundamento, o que importa
aqui realçar é a afirmação da Carta das Nações Unidas como primaz da ordem jurí‑
dica da comunidade internacional. Rudolf Bernhardt vai mesmo ao ponto de dizer
que «a própria paz mundial pode depender do respeito pela elevada posição e força
vinculativa da Carta tal como sublinhado pelo artigo 103.º. Os desenvolvimentos
ocorridos no mundo desde 1988 podem ser considerados como tendo fortalecido o
papel das Nações Unidas e da Carta, que pode tornar ‑se numa real e efectiva consti‑
tuição para a comunidade internacional».57
3.3. A garantia dos direitos fundamentais do ser humano
O local de positivação dos direitos fundamentais é a Constituição. Como refere
Gomes Canotilho, «a positivação de direitos fundamentais significa a incorporação
na ordem jurídica positiva dos direitos considerados “naturais” e “inalienáveis” do
indivíduo. Não basta qualquer positivação. É necessário assinalar ‑lhes a dimensão de
Fundamental Rights colocados no lugar cimeiro das fontes de direito: as normas
constitucionais».58
Na comunidade internacional, enquanto comunidade de substrato humano, a
dignidade humana deve ser assumida como valor central, e o reconhecimento e
protecção dos direitos humanos deve constituir uma preocupação fundamental. O
estatuto da comunidade internacional deve, pois, reflectir esse seu factor humano.
A Carta das Nações Unidas não incorpora um catálogo de direitos fundamen‑
tais.59 No entanto, os direitos humanos são reconhecidos como fundamentais pela
Carta. O preâmbulo da Carta dá o mote manifestando a decisão dos “povos das
57 BERNHARDT, Rudolf, op. cit. – pág. 1302.58 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, op. cit. – pág. 377.59 Na Conferência de S. Francisco o Panamá chegou a propor a introdução na Carta de uma “Declaração dos
Direitos Essenciais do Homem”.
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48 Nações Unidas” em reafirmar a sua «fé nos direitos fundamentais do homem, na
dignidade e no valor da pessoa humana». No caso Sudoeste Africano60, o Tribunal afir‑
mou que «considerações humanitárias podem inspirar regras de direito: assim o
preâmbulo da Carta das Nações Unidas constitui a base moral e política das disposi‑
ções que são enunciadas em seguida».61 Rüdiger Wolfrum, referindo ‑se àquela dis‑
posição do preâmbulo, fala numa «mini carta dos direitos humanos».62
Também o artigo 1.º, n.º 3 da Carta faz referência à promoção e estímulo do
«respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para todos».
Desenvolvendo o disposto no preâmbulo e concretizando o objectivo enunciado no
artigo 1.º, n.º 3 da Carta, o artigo 55.º dispõe que «com o fim de criar condições de
estabilidade e bem ‑estar (…) as Nações Unidas promoverão (…) o respeito univer‑
sal e efectivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais para todos». Para
além destas disposições estruturantes, são feitas na Carta diversas outras referências
aos direitos humanos.
Estas referências na Carta constituem, ao tempo da Conferência de S. Francisco,
um avanço sem precedentes no que respeita à afirmação dos direitos fundamentais
do ser humano. São estas disposições de carácter geral que conferem competência
aos órgãos das Nações Unidas para se debruçarem sobre questões de direitos huma‑
nos e para consolidar a obrigação geral da Organização e dos Estados Membros para
respeitarem os direitos humanos.63 A acção em favor do respeito dos direitos huma‑
nos tornou ‑se uma responsabilidade da comunidade internacional. A prática foi ‑se
encarregando de, lentamente, ir materializando e solidificando aquele que é um dos
pilares fundamentais da actuação das Nações Unidas.
Em 1948, a Assembleia Geral adoptou a Declaração Universal dos Direitos do
Homem.64 Em 1966, foram adoptados o Pacto Internacional sobre Direitos Eco‑
nómicos, Sociais e Culturais, e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.65
Actualmente são Parte em cada um dos Pactos cento e sessenta, e cento e sessenta e
60 Casos do Sudoeste Africano (Etiópia c. África do Sul / Libéria c. África do Sul), registo de 4 de Novembro de 1960.61 International Court of Justice Reports, 1966 – pág. 34.62 WOLFRUM, Rüdiger, op. cit. – pág. 35. 63 RIEDEL, Eibe “Article 55 (c)” in The Charter of the United Nations – a commentary – volume II, cit. págs. 917 ‑941.64 Resolução 217 A (III), de 10 de Dezembro de 1948.65 No preâmbulo de ambos os Pactos pode ler ‑se que «em conformidade com os princípios enunciados na Carta
das Nações Unidas, o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos
seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e a paz no mundo».
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49quatro Estados, respectivamente. Em conjunto estes três instrumentos são frequente‑
mente designados por Carta Internacional dos Direitos do Homem, uma vez que
apresentam unidade de inspiração e de conteúdo.66 Foram ainda adoptadas no âmbi‑
to das Nações Unidas um conjunto de outras convenções em matéria de direitos
humanos, de índole específica.
Também no âmbito das Nações Unidas, foram sendo criados mecanismos com
vista à promoção e à protecção dos direitos humanos.67 São os casos do Conselho
dos Direitos Humanos e da subcomissão para a Promoção e Protecção dos Direitos
Humanos, ou do Gabinete do Alto ‑Comissário para os Direitos Humanos. O acervo
de instrumentos de direitos humanos fundados no sistema da Carta é vasto e de
conteúdo abrangente. A insuficiência reside mais ao nível dos mecanismos de imple‑
mentação, que são ainda frágeis quando comparados com outros ao nível regional.
Apesar de tudo, parece ser possível, também nesta matéria, afirmar que a Carta das
Nações Unidas é matriz ética e jurídica do sistema de promoção e protecção de
direitos humanos no contexto da comunidade internacional.
3.4. A modificação da Carta
Um outro fenómeno constitucional observável na Carta das Nações Unidas é o seu
processo de modificação. Um processo que alimenta as ideias de fundamentalidade
da Carta e de coesão da comunidade internacional.
Uma Constituição regula a sua revisão.68 No entanto, as convenções internacio‑
nais, frequentemente, também o fazem. Porém, o processo de modificação consagra‑
do na Carta regista algumas especificidades que, em certa medida, se aproximam
mais das Constituições estaduais do que das convenções internacionais.
O processo de modificação da Carta das Nações Unidas encontra ‑se previsto no
capítulo XVIII, nos artigos 108.º e 109.º. O artigo 108.º distingue de forma clara três
fases: a adopção, a manifestação do consentimento em estar vinculado e a entrada
em vigor. Em relação à primeira fase, aquele artigo dispõe que as emendas são adop‑
tadas «pelos votos de dois ‑terços dos membros da Assembleia Geral». O que signi‑
66 SUDRE, Fréderic, Droit International et Européen des droits de l’homme, PUF, Paris, 1989 – pág. 90. 67 Para uma descrição do vasto sistema das Nações Unidas relativo aos direitos humanos, vide www.ohchr.org/
EN/HRBodies/Pages/HumanRightsBodies.aspx68 MIRANDA Jorge, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, cit. – pág. 150.
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50 fica que as emendas são adoptadas, pelo voto positivo de dois ‑terços dos Estados
Membros das Nações Unidas, por resolução da Assembleia Geral. O artigo 18.º, n.º 2,
refere que as «decisões da Assembleia Geral sobre questões importantes serão toma‑
das por maioria de dois ‑terços dos membros presentes e votantes». No caso do
artigo 108.º, o facto de os dois ‑terços serem aferidos em relação à totalidade dos
membros, e não apenas em relação aos membros presentes e votantes, traduz a espe‑
cial importância que o processo de modificação representa na vida das Nações
Unidas. A manifestação do consentimento em estar vinculado acontece de acordo
com os “métodos constitucionais” dos Estados Membros. As emendas entram em
vigor quando dois ‑terços dos membros das Nações Unidas, incluindo os cinco
membros permanentes do Conselho de Segurança, manifestarem o seu consenti‑
mento em estar vinculados. Pese embora a entrada em vigor se encontrar na dispo‑
nibilidade da vontade geral de apenas dois ‑terços dos membros, após aquele
momento, as emendas vinculam todos os Estados, mesmo aqueles que tenham vota‑
do contra a adopção do texto e que não tenham manifestado o seu consentimento
em estar vinculados, não querendo vincular ‑se às emendas.
Ora, o significado desta possibilidade é profundo. Assemelha ‑se ao exercício de
um poder constituinte em que é manifestada a vontade geral dos membros da comu‑
nidade em relação ao seu estatuto organizador fundamental, vinculando todos. No
entanto, o entusiasmo pela constatação do fenómeno constitucional esmorece um
pouco pelo facto de, também aqui, os membros permanentes do Conselho de
Segurança gozarem de direito de veto. Se assim não fosse, seria possível retirar pri‑
vilégios aos cinco membros permanentes, tais como o direito de veto ou a perma‑
nência no Conselho de Segurança, mesmo contra sua vontade.
O processo de emenda previsto no artigo 108.º e o processo de revisão previsto
no artigo 109.º não diferem muito. A maior diferença reside no seu âmbito: o artigo
109.º foi redigido com o intuito de permitir uma revisão geral da Carta. Tarefa que,
devido à sua dimensão, não poderia ser levada a cabo no âmbito da Assembleia Geral.
Por outro lado, a inclusão deste artigo na Carta, contribuiu, na Conferência de S.
Francisco, para a superação da resistência dos pequenos e médios Estados à conces‑
são do direito de veto aos membros permanentes do Conselho de Segurança. A
redacção do artigo 109.º acalentava alguma esperança na revisão do direito de veto
num futuro próximo.
A Carta prevê, então, um procedimento especial para o efeito, determinando
que a revisão geral da Carta se proceda no âmbito de uma “Conferência Geral dos
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51membros das Nações Unidas”, a convocar pela Assembleia Geral, pelo voto de dois‑
‑terços dos membros da Assembleia e por nove votos de quaisquer membros do
Conselho de Segurança. Apesar de o artigo 109.º não se pronunciar expressamente
nesse sentido, deve ser entendido que, tal como o previsto no artigo 108.º, a mani‑
festação do consentimento em estar vinculado por dois ‑terços dos Estados Membros,
incluindo todos os membros permanentes, determina que o recomendado pela
Conferência Geral “tenha efeito” para todos os Estados Membros. Curioso é o facto
de no artigo 109.º se utilizar a expressão “ter efeito”, enquanto no artigo 108.º se
emprega a expressão “entrada em vigor”. Ora, como se sabe, a eficácia e a validade
obedecem a regimes diferentes.
É ainda de notar que o n.º 3 do artigo 109.º se encontra obsoleto. Este número
3 refere que se a Conferência Geral não se realizar até à décima sessão anual da
Assembleia Geral a proposta da sua convocação deveria figurar na agenda dessa ses‑
são. Na realidade, nunca aconteceu uma reunião de uma Conferência Geral com o
objectivo de rever a Carta.
O regime de modificação da Carta distingue ‑se do regime geral previsto na
Convenção sobre o Direito dos Tratados. Nos termos do artigo 40.º, n.º 4 daquela
Convenção, só se encontram vinculados pelas emendas os Estados que assim consenti‑
rem. O que permite reconhecer no capítulo XVIII um regime de características espe‑
ciais, em que o consentimento de um Estado que é Parte não é relevante para a sua
vinculação, a não ser que se trate de um dos cinco membros permanentes do Conselho
de Segurança. Por outro lado, a Carta nada diz quanto à hipótese de um Estado Membro
praticar o recesso em relação à Carta, no caso, por exemplo, de não querer vincular ‑se
a uma emenda em relação à qual não manifestou o seu consentimento.
Ainda neste contexto, há que observar que a possibilidade da vontade geral de
dois ‑terços vincular todos confere vida à Carta, permitindo ‑lhe, pelo menos em teoria,
uma constante adaptação à realidade que deve organizar. Característica fundamental
que um estatuto organizador da comunidade internacional não pode dispensar.
3.5. A base institucional
A noção de “Constituição” pode ser perspectivada numa dupla dimensão: a substan‑
tiva e a institucional.69 A dimensão substantiva realça os preceitos atinentes à base
69 DUPUY, Pierre ‑Marie, op. cit. – pág 3.
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52 ideológica e política da comunidade, os princípios básicos que fundamentam os
direitos e as liberdades fundamentais do homem e do cidadão, e os fins das institui‑
ções políticas, afirmando ‑se como matriz conformadora da comunidade, implican‑
do, pois, uma hierarquização normativa. Já a dimensão institucional faz sobressair a
existência de uma estrutura orgânica, assente no princípio da separação de poderes,
em que cada instituição tem competências próprias no seio do sistema. A dimensão
institucional é instrumento necessário para a articulação e promoção da dimensão
substantiva.
Encarando, agora, a Carta das Nações Unidas numa perspectiva institucional,
importa saber se estabelece uma estrutura orgânica dirigida à organização da comu‑
nidade internacional de acordo com o Direito de que a Carta será fonte e matriz. No
artigo 7.º, a Carta estabelece os órgãos principais da Organização Internacional
Nações Unidas. Ao lado dos órgãos característicos da estrutura clássica das organiza‑
ções internacionais, como o são a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança e o
Secretariado, a Carta prevê ainda a existência de um órgão judicial, o Tribunal
Internacional de Justiça. São estabelecidos também como órgãos principais o
Conselho Económico e Social e o Conselho de Tutela que, sem constituírem uma
inovação ao modelo clássico, respondem a uma necessidade de especialização fun‑
cional e de descongestionamento dos outros órgãos.70
A Carta prevê, ainda, no seu artigo 57.º a criação de Organizações Internacionais
especializadas vinculadas às Nações Unidas, mas com amplo grau de autonomia, cuja
actividade é dirigida à prossecução dos objectivos enunciados no artigo 55.º, no
âmbito da cooperação económica e social internacional. A Carta estabelece, pois, um
sistema institucional vasto e complexo, dirigido à prossecução dos seus objectivos
que se concretizam num amplo âmbito de actuação.
A institucionalização da comunidade internacional e a criação de unidades polí‑
ticas para além do Estado, explicam ‑se não só por factores endógenos como também
exógenos. As Organizações Internacionais não só servem apenas como base para a
realização de funções que os Estados já não conseguem realizar por si sós, ou que
realizam melhor em cooperação com outros sujeitos internacionais, mas funcionam
igualmente como resposta para as questões que, desconhecendo fronteiras, não são
70 DUPUY, René ‑Jean, “État et organisation international” in Manuel sur les organizations internationales, organização de DUPUY,
René -Jean, págs. 13 -30, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, 1998 – pág. 19.
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53estaduais, mas globais. Assim se compreende a cada vez maior transferência de pode‑
res dos Estados para as organizações internacionais.
Não só as Organizações Internacionais vão sendo modeladas de acordo com as
funções que vão sendo chamadas a cumprir, como elas próprias, frequentemente vão
fomentando a sua autonomia e o reforço dos seus poderes. Os seus órgãos, designa‑
damente os integrados como o Secretariado das Nações Unidas, o Tribunal
Internacional de Justiça, a Comissão Europeia ou o Tribunal de Justiça, com mais ou
menos vigor e em níveis distintos, vão procurando reforçar a autoridade da organi‑
zação no seio da comunidade.
Por outro lado, a existência de Organizações Internacionais para as quais os
Estados transferem algum poder, prepara o terreno para a transferência de mais
poder. É que é mais fácil a aceitação de um processo de integração suave do que um
big bang supranacional. As Organizações Internacionais não só recebem do constitu‑
cionalismo global, como também o estimulam.
Quanto mais universal for a Organização Internacional e quanto maior for o
leque de funções e os níveis a que actua, maior a potencialidade para servir de base
institucional à comunidade internacional no quadro do constitucionalismo global.
Postas assim as coisas, nenhuma outra Organização Internacional se apresenta com
esta potencialidade como as Nações Unidas.
A estrutura institucional prevista pela Carta apresenta insuficiências que se
reflectem na sua capacidade para governar a comunidade que a Carta organiza. Esta
temática será desenvolvida ao longo do presente estudo, designadamente no capítu‑
lo II, onde se abordará o sistema do poder das Nações Unidas. Por ora é suficiente a
verificação da existência de uma estrutura institucional que articula e promove a
dimensão substantiva da ordem estabelecida pela Carta.
4. Conclusão Apesar de se tratar de um tratado constitutivo, são observáveis na Carta das
Nações Unidas fenómenos normalmente só observáveis nas ordens constitucionais
estaduais. A Carta assume ‑se como matriz do Direito Internacional imperativo,
estabelecendo uma hierarquia das obrigações convencionais, cujo topo ocupa. A
Carta fornece alicerces ao sistema de promoção e protecção de direitos humanos no
contexto da comunidade internacional, em concretização de uma sua preocupação
fundamental. Até o regime de modificação da Carta, que procura traduzir a vontade
geral dos membros da comunidade, é mais próximo do observável nas constituições
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54 estaduais, do que nos tratados em geral, onde prevalece o clássico princípio do
consentimento. Tudo articulado pelo sistema institucional das Nações Unidas.
Reconhecendo ‑lhe a fundamentalidade, é preciso também reconhecer ‑lhe a uni‑
versalidade que a liga à comunidade internacional no seu todo. Em 1945, eram
membros das Nações Unidas cinquenta e um Estados. Actualmente esse número é de
cento e noventa e dois. Tudo o que contribui para que actualmente se possa falar nas
Nações Unidas enquanto organização verdadeiramente universal, onde a grande
maioria dos membros da comunidade internacional está representada.
Será porventura excessivo chamar “Constituição” à Carta procurando estabelecer
um paralelo com a lei fundamental de um Estado. As Nações Unidas não são um
Super ‑Estado71. Não é possível equiparar a estrutura do poder de um Estado à das
Nações Unidas. A comunidade internacional é, ainda, mais caracterizada pela sobe‑
rania igual dos Estados do que pela sua subordinação a um ente superior estabeleci‑
do pela Carta, que funcione como uma autoridade central encarregue de fazer valer
a “ordem constitucional” estabelecida.
Todavia, é também verdade que a Carta, mais do que um mero tratado consti‑
tutivo de uma Organização Internacional, se afirma como um instrumento interna‑
cional de valor reforçado. Apelidá ‑la ou não de “Constituição” será porventura uma
questão do termo a empregar, com o qual uns concordarão e outros não.72 Porém,
adjectivá ‑la de estatuto jurídico fundamental organizador da comunidade interna‑
cional é algo que poucos recusarão fazer. Neste sentido evoluído não será incorrecto
dizer que a Carta das Nações Unidas é a Constituição da comunidade internacional.
A Constituição é um processo e não um acontecimento único. Espera ‑se da Carta
uma adequação ao tempo e ao espaço em que se move e que se lhe pede para organi‑
zar. A necessidade de complementar o constitucionalismo nacional vai sendo cada vez
maior na actualidade globalizada. A Carta assume ‑se como uma resposta a essa neces‑
sidade de complementarização constitucional ao nível global. O facto da Carta ser
Constituição da comunidade internacional significa que ocupa um lugar cimeiro no
71 Tal como lembrou o Tribunal no parecer Reparação por danos sofridos ao serviço das Nações Unidas – parecer consultivo
de 11 de Abril de 1949, solicitado pela Assembleia Geral (resolução 258 (III), de 3 de Dezembro de 1948)
– International Court of Justice Reports, 1949 – pág. 174. 72 Pierre ‑Marie Dupuy, por exemplo, refere que a expressão “constituição da comunidade internacional” encer‑
ra, em parte, uma dimensão metafórica – DUPUY, Pierre ‑Marie, op. cit. – pág. 30.
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55ordenamento jurídico internacional. As relações jurídicas entre os membros da comu‑
nidade internacional devem ter, assim, a Carta como referência máxima. Por outro
lado, tendo a capacidade fundamental de organizar a comunidade, confere às Nações
Unidas uma posição central na governação da comunidade internacional.NE
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58
59O funcionário internacional na UNESCO – evolução do
paradigma
João Carlos Versteeg*
n Abstract:
A criação de um aparelho burocrático progressivamente complexo para dar resposta à
evolução da Comunidade Internacional e das suas instituições levantou um problema
de importância crescente relativamente à lealdade possível dos funcionários interna‑
cionais que as servem, mesmo quando por indicação dos seus governos.
Neste quadro, o paradigma do funcionário internacional, ao apelar para a neutrali‑
dade dessa burocracia internacional, representa um poder de facto indesmentível no
paronama geral dos intervenientes nas relações internacionais, como assistimos na
UNESCO.
I – Numa liNguagem, tão irónica quanto sugestiva, um antigo juiz do Tribunal Internacional
de Justiça recorda que o Funcionário Internacional é um produto do século XX
e, como espécie do genus homo, ele não podia ter sido identificado por um Darwin
político, senão a partir de 19151.
Se, até então, a Administração Internacional não oferecia senão alguns postos oca‑
sionais e precários, em poucos anos passou a dispôr, ao seu serviço, de um numeroso
pessoal permanente e qualificado.
Ao mesmo tempo aperfeiçoam ‑se os processos de recrutamento, concedem ‑se
garantias de estabilidade, reconhecem ‑se imunidades e surge, timidamente, a figura da
carreira profissional.
As Organizações Internacionais, apesar da sua diversidade, defrontam ‑se, contudo,
com problemas análogos de gestão e de dificuldades administrativas e financeiras da
mesma ordem. Isso explica que para a sua administração se tenham inspirado por
princípios comuns e encontrado soluções mais ou menos semelhantes.
* Ministro Plenipotenciário.1 Phillip Jessup “The International Civil Servant and his loyalties”, Columbia Journal of International Affairs
vol. IX, n.º 2, 1955, pg. 55
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60 Como veremos relativamente à UNESCO – que é o quadro de referência deste
trabalho – também ela goza de autonomia para seleccionar e gerir o seu pessoal, de
acordo com os seus objectivos estratégicos. É a sua específica finalidade que explica as
significativas diferenças de estipulações contratuais e das suas disposições estatuárias.
Nestas circunstâncias, é necessário precisar a condição jurídica externa e o esta‑
tuto interno dos seus funcionários para a definição dos direitos e deveres que decor‑
rem do vínculo de serviço à UNESCO2.
II – Até ao século XIX a Sociedade Internacional apresentava ‑se como uma Sociedade Inter‑
‑Estadual, onde as relações se desenvolviam principalmente no plano político e as
manifestações de conflito de interesses e hostilidade eram bem mais numerosas do
que as de solidariedade.
A transformação desse relacionamento em laços mais frequentes e intensos de
cooperação, em domínios que abrangem desde o económico e social ao cultural e
científico, deve ‑se, sobretudo, aos progressos técnicos da área industrial e ao desenvol‑
vimento das comunicações2.
Assiste ‑se à criação de Organizações de carácter permanente que iniciam uma
cooperação inter ‑estadual de onde se excluem as questões de índole política e no seio
das quais se promove a colaboração internacional, em domínios que tradicionalmente
eram da esfera das administrações nacionais3.
Através de Acordos, vários Estados criam então Organizações Internacionais que
vão servir de plataforma de discussão, negociação e resolução de problemas comuns,
a exigirem soluções globais.
Recordamos aqui, que surgiu, em 1865, a primeira das chamadas Uniões
Internacionais Administrativas – a União Telegráfica Universal – antecessora da actual
União Internacional de Telecomunicações, a que se seguiu a União Postal Universal,
criada em Berna, em 1874, e que hoje funciona com a mesma designação.
Estabeleceram ‑se também os primeiros Organismos Internacionais de âmbito
regional, como aconteceu na América, com a União Internacional das Repúblicas
Americanas que foi criada em 1891 e depois se transformou na União Pan ‑Americana.
2 Cfr. Claude ‑Albert Colliart, Instituitions Internationales ed. Dalloz, Paris, 1970 – 5 ed., pg. 575.3 Crf. Paulo de Pitta e Cunha, Dos Funcionários Internacionais, ed. Coimbra, 1964, pg. 8
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61Na Europa surgiram as Comissões do Reno e do Danúbio para a administração inter‑
nacional desses dois rios.
Tratava ‑se porém, em rigor, de uma mera cooperação organizada entre as admi‑
nistrações dos Estados ‑Membros. Por isso, à excepção de um escasso pessoal afecto aos
trabalhos de índole interna, não existiam agentes administrativos internacionais. Eram
os representantes dos Estados ‑Membros que preparavam os temas a discutir e delibe‑
ravam por unamidade. A aplicação efectiva das medidas cabia aos funcionários das
respectivas administrações nacionais que eram cedidos à Organização ou aos funcio‑
nários nacionais do Estado onde esta se sediava.
À medida que as Organizações Internacionais foram ganhando importância e
dimensão crescente, surgiu a necessidade da criação de órgãos próprios para se dedi‑
carem, em exclusivo, à administração destas. Assim apareceram os Secretariados e
autonomizou ‑se a categoria do Agente Internacional, distinto do Representante dos
Estados com estatuto diplomático.
É com a criação da Sociedade das Nações, após a convulsão política da Guerra de
1914, que se plasma a figura do funcionário internacional, compaginada com o perfil
da função pública internacional.
O carácter para ‑universal da Sociedade das Nações e a natureza predominante‑
mente política das questões a tratar no quadro do ambicioso objectivo de assegurar a
manutenção da paz, levou a que os Estados, receando que surgisse uma posição hege‑
mónica no seio da SdN, se prontificassem a aceitar ou mesmo a favorecer a internacio‑
nalização do Secretariado.
Para tanto, contribuiu extraordinariamente a personalidade arguta de Sir Eric
Drummond, que foi o primeiro Secretário ‑Geral da Sociedade das Nacões. Ele defen‑
deu a criação de um serviço público internacional e a necessidade de nomear funcio‑
nários internacionais, de reconhecido mérito para o Secretariado4.
A original concepção de Drummond inspirava ‑se nos princípios de indepen‑
dência política e de probidade moral do civil service britânico e defendia que cada
funcionário do Secretariado só actuava por instruções do Secretário ‑Geral e no inte‑
resse da Sociedade das Nações, sem ter em conta a política do seu próprio governo
nacional.
4 Veja ‑se, F.P. Walters, A History of the League of Nations, ed. Oxford University Press, Londres, 19650, pg. 76.
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62 Esta orientação pretendia contrariar o risco das posições defendidas pelos delega‑
dos à Conferência de Paz em Paris que pretendiam institucionalizar os interesses dos
seus países, de acordo com o seu respectivo papel desempenhado na Grande Guerra,
numa tentativa de administrar a Sociedade das Nações, beneficiando ‑se das lealdades
nacionais dos seus funcionários.
As características fundamentais do conceito de Funcionário Internacional fixaram‑
‑se na revisão do Art. 1 do Estatuto do Pessoal da Sociedade das Nações5, após a firme
recusa das posições defendidas nos anos 30 pela Itália e Alemanha nazi que afectaram
a desejável independência do Secretariado.
O primeiro dos textos que desenvolve o conceito de lealdade internacional ao
abordar a questão da dimensão de um Secretariado Internacional é o Relatório Balfour,
de 1920. Aí sustentava ‑se o propósito de se distribuirem os lugares pelo maior núme‑
ro de Estados a fim de se assegurar “a prática do Internacionalismo”.
Pouco tempo depois, o Relatório Noblemaire veio contemplar não apenas a difícil
questão da lealdade, mas também os salários e as orientações para o recrutamento de
funcionários de elevada competência.
Nesse Relatório reclamava ‑se como indispensável que o pessoal, para defesa da sua
imagem internacional, fosse seleccionado numa ampla base de distribuição geográfica.
Neste processo de definição da figura do funcionário internacional assistimos, em
1927, a um marco especialmente importante:
– A Assembleia da Sociedade das Nações cria, a título provisório, o Tribunal
Administrativo cuja jurisprudência irá contribuir de maneira decisiva para
a formação de um direito próprio do serviço público internacional, em
particular para a protecção jurídica do funcionário international.
Este Tribunal, em 1946, passará a ser o Tribunal Administrativo da Organização
Internacional de Trabalho, tendo o seu Estatuto sido modificado em 1949. É ele que
tem competência para resolver os litígios entre os funcionários e as diversas
Organizações, nomeadamente a UNESCO.
5 Art. 1 das Staff Regulations: Os Funcionários do Secretariado da Sociedade das Nações são exclusivamente
Funcionários Internacionais e os seus deveres não são nacionais mas internacionais. Ao aceitar a sua
nomeação comprometem ‑se a cumprir as suas obrigações e pautar a sua conduta tendo somente em conta
o interesse da Sociedade das Nações. Estão sujeitos à autoridade do Secretário ‑Geral e são responsáveis
perante ele no exercício das suas funções. (…) Não devem solicitar nem receber instruções de nenhum
Governo ou de outra autoridade exterior ao Secretariado.
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63Alain Plantey cita, na sua obra Droit et Pratique de la Fonction Publique Internationale, Paris
1977, na perspectiva de evolução da noção de função pública internacional, os seguin‑
tes três pareceres do Tribunal Internacional de Justiça:
– O parecer de 11 de Abril de 1949 acerca do pagamento de prejuízos sofridos,
reiterando o princípio de que o vínculo de serviço entre a Organização e um
dos seus agentes é superior ao da nacionalidade;
– O parecer de 13 de Julho de 1954 em que se sublinha a responsabilidade da
Organização Internacional em relação ao seu pessoal;
– O parecer de 23 de Outubro de 1956 em que se reconhecem efeitos jurídicos
às práticas constantes da Administração Internacional, em particular para a
interpretação dos contratos de recrutamento.
É no final da Segunda Guerra Mundial e com a criação da Organização das Nações
Unidas que assistimos a uma organização mais complexa de toda a Administração
Internacional que ganha uma dimensão inesperada.
Só no sistema da ONU aponta ‑se a existência de 40.000 pessoas sujeitas ao regime
comum do funcionário. É nesta sede que a figura do funcionário internacional ganha
um novo e superior enquadramento.
Assim, na Carta especifica ‑se no Art. 100 § 1 que “no desempenho dos seus deve‑
res, o Secretário ‑Geral e o pessoal do Secretariado não solicitarão nem receberão ins‑
truções de qualquer Governo ou de qualquer autoridade estranha à Organização e
abster ‑se ‑ão de qualquer acção que seja incompatível com a sua posição de Funcionários
Internacionais, responsáveis somente perante a Organização”.
Mas a obrigação e responsabilidade exigidas ao Funcionários Internacionais são
na Carta também imputadas aos Estados, nos termos do § 2 do mesmo Art. 100: “Cada
um dos membros das Nações Unidas compromete ‑se a respeitar o carácter exclusiva‑
mente internacional das funções do Secretário ‑Geral e do pessoal do Secretariado e a
não procurar influir sobre estes no desempenho das suas funções.”
Pretendeu ‑se ainda que fosse garantida a segurança de emprego através de contra‑
tos permanentes que evitassem aos funcionários internacionais ficar sujeitos a pressões
dos seus respectivos países. Apontava ‑se que o recrutamento e a promoção na carreira
se devia fundar no mérito e não na protecção nacional ou política, sendo desejável que
o nível dos salários fosse superior “ao da Administração nacional mais bem remunera‑
da do Mundo”.
É também na Carta que encontramos, pela primeira vez, um Secretariado elevado
à categoria de órgão da própria Organização (vide o Art. 7.º, onde se lê: “São estabele‑
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64 cidos como órgãos especiais das Nações Unidas uma Assembleia ‑Geral, um Conselho
de Segurança, um Conselho Económico e Social, um Conselho de Tutela, um Tribunal
Internacional de Justiça e um Secretariado”.
Recorde ‑se que a concepção de um Secretariado internacionalizado foi contestada,
em 1961, pela URSS. Moscovo pretendeu, sem o conseguir, que a todos os níveis do
Secretariado existisse uma Troika de funcionários pertencentes a três grupos – Países de
Leste – do Ocidente e dos Não ‑Alinhados.
O caso mais emblemático na Carta, do progresso das suas disposições relativamen‑
te ao estipulado no Pacto da Sociedade das Nações, é o do tratamento dado à figura do
Secretário ‑Geral, a quem se reconhece o poder político de “chamar a atenção do
Conselho de Segurança para qualquer assunto que, em sua opinião, possa pôr em peri‑
go a manutenção da paz e da segurança internacionais” (Art. 99).
É o primeiro reconhecimento de poderes, não estritamente de natureza adminis‑
trativa, ao Secretário ‑Geral da ONU.
A partir dos anos 60, a conjuntura económica leva os países industrializados a
controlar mais rigidamente as despesas de funcionamento das Organizações
Internacionais. Ao mesmo tempo, numerosos governos convergem para procurar uma
maior centralização e coerência nas condições de serviço e gestão do Sistema das
Nações Unidas.
Nesta perspectiva, a Assembleia ‑Geral da ONU, pela Resolução 3042, em 19 de
Dezembro de 1972, decide criar a importante Comissão da Função Pública
Internacional, tentando evitar a multiplicidade de regimes nas Organizações da “famí‑
lia” das Nações Unidas, e tendo em vista harmonizar, entre outros, os problemas de
carreiras, condições de emprego nomeadamente salariais.6
Curiosamente, na Carta da ONU não se definiu um conceito restrito de Funcionário
Internacional. Com efeito, no seu Art. 100, § 1 e 2, lê ‑se apenas que o Secretário ‑Geral
e os membros do Secretariado são Funcionários Internacionais.
Na ONU, o estatuto dos funcionários foi adoptado pela Assembleia ‑Geral. O texto
fundamental é a Resolução 590 (VI), de 2 ‑2 ‑1952.
6 Cfr. O Acordo entre as Nações Unidas e a UNESCO de 1946 onde se lê, sob o título Personal Arrangements no
Art. XII, “They agree to: consult together concerning the establishment of an International Civil Service
Commission to advice on the means by which common standarts of recruitment in the secretariats of
the United Nations and of the specialized agencies may be endured; consult together concerning other
matters relating to the employment of their officers and staff, including conditions of service, duration of
appointments, classification, salary scales and allowances, retirement and pension rights …/…”
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65É a Convenção Geral sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, aprovada
pela Assembleia ‑Geral em 13 de Fevereiro de 1976, que vem reiterar a imunidade
diplomática ao Secretário ‑Geral e aos seus Adjuntos, beneficiando o restante pessoal de
imunidades menos extensas.
De resto, já o Art. 105 § 2 da Carta, que é retomado em quase todos os textos
constitutivos de outras Organizações, atribuía aos funcionários o gozo dos privilégios
e imunidades que são necessários para exercer com independência as suas funções.
Paralelamente, o aparecimento do fenómeno da supranacionalidade através da
experiência das Comunidades Europeias, a partir de 1955, voltou de novo a chamar a
atenção para a figura do Funcionário Internacional. Foram vários os autores a defender
que, dadas as características inéditas das Organizações Supranacionais, o seu pessoal
não se enquadrava nessa figura.
Esta é, de resto, uma questão em aberto para outra sede.
III – Cada Organização ao criar um específico corpo de regras jurídicas que fica na
dependência da sua Carta Constitutiva, suscita uma questão jurídica, ainda não
resolvida, que é a de saber se estas normas pertencem ao Direito Internacional ou
deverão ser tidas como de Direito Interno.
De qualquer forma, a UNESCO é referida geralmente como Organização
Internacional mas o facto é que ela permanece, intrinsecamente, intergovernamental,
pelo que não é surpreendente que se constitua numa plataforma de negociações e de
enfrentamento de natureza política.
Na miríade de funcionários da UNESCO distinguem ‑se aqueles para quem perten‑
cer à Organização é razão de uma militância. Bem mais do que uma profissão, uma
vocação. E mesmo para alguns trata ‑se de uma missão.
É de apontar que face às diversas ideologias e credos, o princípio que alguns defen‑
diam de se encontrar uma filosofia comum, que seria a da UNESCO não vingou.
Os debates entre os defensores de uma concepção ética e filosófica e os partidários
de uma acção eminentemente prática continuam, como no passado, a entrechocar ‑se.
A ambivalência, fonte da contradição entre a sua vocação universalista e a inevitável
parcialidade das pressões nacionais, pesa sobre o funcionário da UNESCO, pondo em
risco o seu estatuto, nomeadamente o princípio da independência que é fundamento
da sua deontologia.
É surpreendente a multiplicidade de formulações jurídicas que os Estados entre si
acordaram para a enumeração das condições de atribuição do Estatuto de Funcionário
ou de Agente Internacional.
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66 No caso da UNESCO, o poder de nomeação dos funcionários do Secretariado não
pertence aos Estados ‑Membros mas à Organização e é exercido pelo seu Director ‑Geral
(solução já prevista no Art. 101 § 1 da Carta da ONU). A situação do funcionário é
determinada pela referência à fórmula contratual ou à fórmula estatutária, prevalecen‑
do, em regra, a primeira nas Instituições especializadas.
Acresce que, o Art. 12 da Constituição da UNESCO estipula: “As disposições dos
Arts. 104 e 105 da Carta da ONU respeitantes ao estatuto legal da Organização, os seus
privilégios e imunidades, aplicam ‑se da mesma forma a esta Organização”.
Conforme se depreende do Art. VI §5, as responsabilidades do Director ‑Geral e
do pessoal do Secretariado são de carácter exclusivamente internacionais. Por seu
lado, os funcionários devem respeitar os princípios da função pública inter‑
nacional:
– a Independência e segurança; imparcialidade; autonomia; responsabilidade; lealdade, tolerância e
integridade.
Da mesma forma que nas Instituições se tem de reconhecer um desfasamento
entre o idealismo dos textos fundadores e o pragmatismo que preside à sua interpre‑
tação e aplicação, também no processo histórico da UNESCO assistimos a desvios
entre os princípios que regem o Estatuto dos seus funcionários e a sua aplicação
concreta.
Como aponta Suzanne Bastid7, são quatro os elementos que caracterizam o
Funcionário Internacional:
1.º O lugar do Funcionário estar previsto no Acordo interestadual;
2.º O Funcionário agir, de modo contínuo e exclusivo, no interesse da
Comunidade dos Estados participantes no Acordo;
3.º O Funcionário não se integrar nos quadros administrativos de qualquer
Estado;
4.º O Funcionário encontrar ‑se submetido a um regime jurídico particular.
Também na UNESCO só se consideram Funcionários Internacionais em sentido
estrito, o pessoal do seu Secretariado – órgão executivo que assegura a realização e a
continuidade do Programa de Acção.
7 Cfr. S.Bastid – La condition juridique des fonctionnaires internationaux, Paris 1953.
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67Para se ter uma ordem de grandeza do Secretariado, bastará mencionar que este
conta com mais do que 2100 funcionários divididos em dois grandes grupos:
Categorias profissionais e Serviços Centrais:
Mapa de evolução dos efectivos do pessoal:
Total Sede Fora da Sede
1950 855 807 48
1960 1593 1005 588
1970 3197 1852 1345
1980 3390 2377 1013
1984 3244 2432 812
1995 2483 1856 627
2005 1946 1365 581
Não estão abrangidos nestes dados os agentes que realizam tarefas sem qualquer
relação directa com a missão própria da UNESCO, como motoristas, jardineiros, con‑
tínuos, etc.
Após a crise de 84 e obedecendo à uma política de descentralização, mais de 700
funcionários deixaram de se basear em Paris, sede da Organização, e foram colocados
em 58 escritórios à volta do mundo.
O Secretariado abrange, para além do Gabinete do Director ‑Geral, que é o respon‑
sável máximo da Organização, eleito pela Conferência ‑Geral sob recomendação do
Conselho Executivo o seguinte organigrama:
– Programas Sectoriais: Educação, Ciências Naturais, Ciências Sociais e Humanas,
Cultura, Comunicação e Informação;
– Sectores de Apoio: Relações Externas e Cooperação e Administração;
– Serviços Centrais: Secretariado da Conferência Geral, Secretariado do Conselho
Executivo, Serviço de Assuntos Legais, Serviço de Inspecção Interna, Serviço
de Ética, Serviço de Planeamento Estratégico, Serviço do Orçamento,
Serviço de Recursos Humanos, Serviço de Coordenação no Terreno, Serviço
de Informação Pública, Serviço do Controlador, Departamento de África,
Secretariado do Prémio da Paz F. H. Boigny, Serviço de Previsão;
– Escritórios no Terreno;
– Institutos e Centros UNESCO.
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68 Recordamos, por seu turno, que o Conselho Executivo é responsável pelo acom‑
panhamento da execução dos programas da Organização e é composto por 58 mem‑
bros, eleitos pela Conferência ‑Geral por um mandato de 4 anos. A escolha destes
representantes tem em conta a diversidade das Culturas e a sua base geográfica,
exigindo ‑se um equilíbrio entre as diferentes regiões do globo, de forma a reflectir a
universalidade da UNESCO, (cfr. Art. V, § 3). Até 1954, os membros do Conselho não
representavam, contudo, os seus Governos. Foi só durante a Conferência ‑Geral de
Montevideu que se alterou o Estatuto, transformando o Conselho Executivo num órgão
intergovernamental, pondo ‑se fim ao figurino de um colégio de personalidades que
tinham ali assento devido às suas próprias qualidades pessoais.
Enquanto a estrutura da Sociedade Internacional continuar a ser marcada pelo
interestatismo que permite um regime jurídico que beneficia as grandes potências e
lhes possibilita desfrutarem de posições de domínio em certas Organizações
Internacionais, a questão da desejável independência dos Funcionários Internacionais
permanece por resolver no seio do Sistema das Nações Unidas.
Registe ‑se porém, que na UNESCO, de resto como em outras Organizações de
carácter técnico ou de âmbito regional, este problema é menos agudo.
Contudo, a história da UNESCO deu ‑nos, em várias épocas, testemunho de
Estados, que ao definirem a sua posição em relação à função pública internacional, se
inspiraram, antes do mais, nas orientações da sua política externa, como aconteceu
com Portugal em 1972, com a saída da Organização até 1974. Esta situação explica,
também, os lentos progressos que os países revelaram para a compreensão do seu
interesse próprio em contribuir para uma administração eficaz.
Por outro lado, também na UNESCO se reflectiram concepções e práticas, por
vezes conflituantes, de diversas funções públicas nacionais. Foi o caso de muitos desen‑
tendimentos na defesa de supostos interesses internacionais.
Paradoxalmente, os Governos dos países mais industrializados mostraram ‑se os
mais reticentes a atribuir aos funcionários internacionais da UNESCO uma mais ade‑
quada protecção jurisdicional, fazendo tábua ‑rasa da independência necessária à fun‑
ção pública internacional.
Para além das características próprias da lenta e difícil carreira de funcionário inter‑
nacional na UNESCO – vg. expatriação, falta de poder de decisão – que explicam, em
parte, os por vezes medíocres resultados da Organização, verificamos, hoje, a existência
de outros factores que contribuem para manter o ambiente de crise que ali se continua
a viver: dificuldades financeiras e orçamentais que implicam uma diminuição dos ren‑
dimentos dos funcionários e uma maior precariedade do emprego.
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69Tudo isto tem, como pano de fundo, a crítica incompreensão de várias opiniões
públicas nacionais relativamente aos funcionários internacionais, tidos como grupo
particularmente privilegiado, material e socialmente.
O mal ‑estar dos funcionários internacionais da UNESCO tem assim levado ao
recurso frequente à greve, situação que não pode deixar de afectar consideravelmente
a qualidade dos seus trabalhos.
Em resumo, verificamos, no tocante à UNESCO, a influência negativa de três
ordens de problemas específicos:
1.º Controlo financeiro nacional que ameaça a autonomia da Organização
– o caso mais flagrante é o do regresso à UNESCO da Grã ‑Bretanha, dos Estados
Unidos da América e de Singapura, após vários anos de ausência, que só foi
viável depois de ter sido aceite um muito mais apertado condicionalismo da sua
programação e dos seus encargos;
2.º Paralisia do Secretariado
– este é o resultado de posições nacionais contrárias, apoiadas na própria
burocracia internacional, vg quanto à contratação;
3.º Hipertrofia e heterogeneidade da Administração
– a proclamada vocação para ‑universal da UNESCO, se acarretou aspectos franca‑
mente meritórios, passou a reflectir, com o passar dos anos, cada vez mais
diversas perspectivas nacionais, ideológicas, culturais, religiosas e raciais nos
processos de decisão.
Esta situação explica alguns desvios que podemos apontar ao paradigma do
Funcionário Internacional, nomeadamente a persistência de situações em que este,
apesar do juramento a que está submetido, continuar a considerar ‑se mais funcionário
do seu próprio país do que da Comunidade Internacional.
Para esse facto, contribuiu também o sistema de quotas nacionais no recrutamen‑
to, permitindo que ganhassem corpo, de forma mais ou menos encapotada, certos
interesses nacionais ou de grupos de países, nomeadamente no Secretariado e no
Conselho Executivo.
Nota final Da mesma forma que nas Instituições se reconhece um desfasamento entre o
idealismo dos textos fundadores e o pragmatismo que preside à sua interpretação e
aplicação, também assistimos ao longo dos anos a desvios entre os princípios que
regem o estatuto dos seus funcionários e a sua aplicação.
Estamos conscientes de que é uma ficção criar ‑se uma função pública internacio‑
nal neutra, mas tal não deve impedir que se prossigam as reformas para contrariar a
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70 perda de objectividade na acção dos funcionários. Estas considerações não devem con‑
tudo fazer esquecer a advertência feita no famoso discurso pronunciado na Universidade
de Oxford, em 1961, do S.G. Dag Hammarskjoeld:
“O Funcionário Internacional deve manter ‑se a si próprio sob atenta observação.
Não se lhe pede para ser neutro no sentido de que não tenha simpatias ou antipatias,
que não existam interesses que lhe sejam próximos na sua capacidade pessoal e que
não tenha ideias ou ideais que preserve. Contudo, exige ‑se ‑lhe que esteja bem cons‑
ciente destas situações humanas e que as controle para que não influam sobre as suas
acções. Isto não é caso único. Não estão profissionalmente os juízes debaixo da mesma
obrigação?”8
A nossa visão sobre a UNESCO poderá parecer de índole sobretudo crítica e nega‑
tivista. Contudo o que se pretendeu apontar foi a necessidade de se empreenderem
novas e mais corajosas medidas estruturais na sua Administração.
Face aos efeitos perversos que se apontam, com mais ou menos ligeireza ao pro‑
cesso em curso de mundialização, vulgo globalização, convém recordar que é a sua
natureza intergovernamental que confere à UNESCO legitimidade.
A UNESCO deve comportar ‑se como uma administração pública internacional
que é responsável pelas contribuições financeiras dos Estados‑membros. Estes têm, por
seu lado a obrigação de viabilizar os objectivos estratégicos da Instituição.
Neste contexto, é de referir os esforços do actual Director ‑Geral K. Matsuura advo‑
gando a necessidade de um aumento significativo de investimentos em prol da univer‑
salização da cidadania, de modo a eliminar, até ao ano 2015, “as vastas zonas de
sombras que marcam no planeta uma geografia da ignorância”.
As virtualidade inerentes ao processo de globalização e os gigantescos passos que,
paralelamente, estão sendo dados na Ciência a na Tecnologia salientam a concepção da
própria universalidade, cerne do sistema das Nações Unidas e, por maioria de razão,
da UNESCO.
A globalização é antes de mais e principalmente, um processo económico e finan‑
ceiro. Mas constitui também, um processo científico e técnico, cujas novas tecnologias
de informação e comunicação formatizam o mundo numa rede mundial de vínculos.
Ao ser, ao mesmo tempo, um processo cultural tal facto coloca a globalização no cen‑
tro das iniciativas e reflexões da UNESCO.
8 Cfr. D. Hammarskjoeld, The Servant of Peace, London, 1962.
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71Com efeito, “a globalização envolve muito mais do que meras questões económi‑
cas. Ela não só afecta estilos de vida e padrões de comportamento, como subverte
hábitos de tomada de decisão e de governação e até formas de expressão artística”.9
Será, pois, preciso actuar com espírito interdisciplinar e intercultural, com novas
estratégias e políticas apoiadas numa reformulada estrutura administrativa de forma a
servir particularmente os que se encontram excluídos da globalização.
Como escreve o sociólogo chinês Ping Huang, na obra colectiva sobre o futuro da
UNESCO: “Créer une plate ‑forme ouverte d’échange et de dialogue entre les civilisa‑
tions, partager équitablement l’information et la connaissance: voilà la vraie valeur
ajoutée de l’UNESCO, dans le passé, dans le présent et – plus important encore – dans
le futur”.10NE
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ments dans l’histoire de l’Organisation accompagnés de références aux sources
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Mayor Zaragoza, Frederico, Mañana siempre es tarde, Madrid, 1987.
9 Cfr. K. Matsuura, UNESCO e os desafios do novo século, Paris 2002.10 Cfr. Quelle UNESCO pour l’avenir, Paris 2006.
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72 Moreira, Adriano, Teoria das Relações Internacionais, Almedina Coimbra, 6.ª edição, 2008.
Reuter (Paul), Droit International Public, PUF, Paris 1993”.
Reuter (Paul) e Gros (André), Traités et Documents Diplomatiques, PUF, Paris 1970.
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73A protecção internacional dos Direitos Humanos e a sua
influência nos ordenamentos jurídicos internos
Paulo Marrecas Ferreira*
n Abstract:
The international human rights approach, namely by international organizations leads
sometimes to differences between national human rights conceptions and those of the
international organs. This is true for Portugal, where some examples happen namely in
the fields of torture, racism, economic, social and cultural rights, etc…
Although these differences ought to be resolved in the sense of the adoption of, name‑
ly, the legal solutions existing at the international level , the Portuguese Constitutional
programme of improvement of the living conditions of the citizens must not be
waived, and the more so as we face a challenging and hard period of the Worlds
History in which what will be waived will probably not be rebuilt.
a evolução receNte dos Direitos Humanos na produção legislativa das organizações
internacionais e na sua interpretação pelos órgãos destes, conduz a que se verifiquem
por vezes discrepâncias entre o modo da sua afirmação e da sua interpretação
nos instrumentos, e pelos intérpretes – aplicadores, internos e os organismos
internacionais.
Em Portugal conhecemos alguns exemplos destas discrepâncias que, sem preten‑
são de exaustividade e sem a presunção de resolver verdadeiramente algum problema
ou de trazer uma solução inovadora, podem ser observadas. Estas notas poderão talvez
servir apenas como pista para um possível trabalho, a empreender se se verificar con‑
senso entre o povo português no sentido de o empreender1.
* Mestre em Direito pela FDUL, Assessor do Gabinete de Documentação e Direito Comparado da Procuradoria‑
‑Geral da República.1 É necessário o consenso das várias camadas da população num trabalho desta natureza, o qual – trabalho –
não pode ser arbitrário e se integra numa tarefa maior do que a simples explanação de regras de Direito:
a melhoria das condições de vida das pessoas que residem em Portugal. Sobre a questão do consenso,
veja ‑se, do Signatário, “Sustentabilidade, integração e independência de Portugal”, trabalho elaborado
no quadro do Curso de Política Externa Nacional, do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, 2005 ‑2006 e publicado na Revista Negócios Estrangeiros, n.º 13 de Outubro de 2008.
NegóciosEstrangeiros . N.º 15 Dezembro de 2009 p. 73-82
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74 Os exemplos que conhecemos colocam ‑se no plano da articulação entre Portugal
e as Nações Unidas, no exame por estas organizações internacionais, da situação rela‑
tiva aos Direitos do Homem no nosso País, a qual é geralmente feita por áreas temáti‑
cas, vg., tortura, racismo, direitos económicos, sociais e culturais, etc…
Podendo guardar ‑se este esquema temático, abordaremos, numa ordem perfei‑
tamente arbitrária, mas orientada para a prática, as questões ligadas à Tortura, ao
combate ao racismo e à discriminação racial e aos direitos económicos, sociais e
culturais.
Tortura
Prisão preventiva
No plano dos instrumentos internacionais contra a tortura, a área melindrosa, em que
tanto as Nações Unidas e o Conselho da Europa, por via do seu Alto Comissário para
os Direitos Humanos insistem, é na noção de prisão preventiva. Em Portugal, mercê do
n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), a prisão preven‑
tiva corre da constituição como arguido e da decisão de colocação deste em detenção
preventiva até ao trânsito em julgado da decisão, por força do princípio da presunção
de inocência2.
Verificam ‑se prazos de prisão preventiva consignados na lei de processo penal3
que vão até à acusação, à decisão em primeira instância, à decisão da Relação, à decisão
do Supremo. A estatística altera ‑se por este facto, e Portugal apresenta números de
preventivos próximos do 30% da população prisional. Isto não se deve apenas ao facto
de que muitos magistrados optam pelo recurso a este instrumento4, mas da derivação
que o legislador ordinário tem feito da regra constitucional da presunção de inocência,
levando a prisão preventiva até ao trânsito da decisão em julgado.
A regra da presunção de inocência é sem dúvida correcta, a integração das conse‑
quências do raciocínio que implica na legislação, o C.P.P., é excessiva. Com efeito, nada
ganha o arguido em ser preventivo até ao fim do seu processo condenatório ou abso‑
2 O qual vem influir nos prazos da prisão preventiva, veja ‑se o artigo 28.º, n.º 4 da C.R.P.3 E é interessante notar, em abono do que se diz no texto que, embora conhecendo os exactos termos do pro‑
cesso, o legislador ordinário que reviu recentemente o Código de Processo Penal (C.P.P.), reduzindo os
prazos nas várias fases do processo não limitou a prisão preventiva ao tempo que vai até à condenação em
primeira instância, mas levou ‑os às várias fases do processo.4 O qual pode ser combatido por formação constante no plano do Centro de Estudos Judiciários e indicação de
medidas alternativas à prisão preventiva.
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75lutório, antes, é gravemente prejudicado nos seus direitos enquanto detido5. No domí‑
nio da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), este
Tribunal, para o efeito da aplicação do artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos
do Homem (CEDH), considera condenado o arguido que mereceu decisão desfavorá‑
vel em 1.ª instância, ainda que esta não seja definitiva6.
O Alto Comissário do Conselho da Europa para os Direitos Humanos, então o Dr.
Álvaro Gil Robles, entendeu, em 2003 e em 2004, nos Relatórios que elaborou sobre
a situação das prisões e a prisão preventiva em Portugal7; que as regras relativas a esta
são prejudiciais aos arguidos e recomendou uma modificação da legislação. Esta modi‑
ficação da legislação será ela uma modificação da C.R.P.? Entendemos que sim por uma
razão muito prática. O legislador do C.P.P. português, nas suas várias intervenções no
Código aplicou sempre a regra constitucional da presunção de inocência no sentido de
a prisão preventiva cessar com o trânsito em julgado da decisão – um juiz nunca dei‑
xará de aplicar o C.P.P. como está. Uma revisão do C.P.P. é, pelo menos, necessária. Mas
o próprio legislador poder ‑se ‑á ver em dificuldades se não possuir um texto constitu‑
cional para justificar e balizar a sua intervenção8.
Racismo e combate à discriminação Verificamos aqui dois pontos de possível dificuldade, de
resolução possível no plano da legislação ordinária. Além destes, deparamos com um
pequeno ponto, de ordem formal, que não é desprovido de importância.
5 Os nossos Deputados, que são hábeis no manuseamento dos textos e das ideias constitucionais, ao ponto
de já termos sete revisões constitucionais para trás, poderiam modificar esta situação, encontrando uma
fórmula que garantisse a presunção de inocência até ao trânsito em julgado da decisão, o que faz pleno
sentido, mas dispondo que a aplicação do regime da prisão preventiva cessa a partir da decisão em pri‑
meira instância.6 Podem consultar ‑se os arrestos do TEDH sobre o artigo 5.º, n.º 1, c, e n.º 3 da CEDH na base de jurisprudência
HUDOC, em www.echr.coe.int. 7 Dois documentos são aqui de grande importância, o Doc. CommDH(2004)8, de 15 de Março de 2004 –
Opinion of the Commissioner for Human Rights, Mr. Alvaro Gil Robles, on the procedural safeguards
surrounding the authorisation of pre ‑trial detention in Portugal e o Doc. CommDH(2003)14, de 19 de
Dezembro de 2003 – Report by Mr. Alvaro Gil Robles , Commissioner for Human Rights, on his visit to
Portugal in the 27th ‑30th May 2003.8 As mesmas insistências na mudança de noção de prisão preventiva foram feitas pelo Comité contra a Tortura
das Nações Unidas (CAT), no exame do IV Relatório de Portugal de aplicação da CAT, cujo debate teve
lugar em 14 e 15 de Novembro de 2007. Diga ‑se que, nem sempre, na área da Justiça é necessária inter‑
venção constitucional para realizar a adaptação do nosso Direito interno ao desenvolvimento do Direito
internacional. É exemplo disto a feliz introdução do recurso de revisão da sentença por decisão de um
órgão internacional de julgamento, agora, na recente reforma do sistema de recursos em Processo Civil e
do C.P.P. Cfr. Artigos 771, f, do Código de Processo Civil e art.º 449 n.º 1, g) do C.P.P.
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76 Estatísticas
O primeiro ponto resume ‑se à questão da proibição de estatísticas relativas à raça ou à
etnia que teve consagração constitucional em termos absolutos até à revisão constitu‑
cional de 20059. Com base nesta proibição, Portugal não apresentou estatísticas relati‑
vas à composição demográfica da sua população, não sabendo, nomeadamente, se os
portugueses de etnia cigana ascendem a 40 mil ou a 60 mil pessoas, ou seja, admitindo‑
‑se uma flutuação de 20 mil pessoas…10
Nos relatórios de aplicação da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial (CERD) o Comité competente, das Nações Unidas, em Genebra,
emite constantes recomendações no sentido de se produzirem dados relativos à com‑
posição demográfica da população, a que as Delegações portuguesas sempre opuseram
a proibição constitucional11. A Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância
(ECRI), do Conselho da Europa produziu ultimamente uma recomendação no sentido
de se produzirem estas estatísticas e de como o fazer12.
Aqui, como se vê, já não é necessária, desde a revisão de 2005, uma modificação
do n.º 3 do artigo 35.º da C.R.P. Mas a lei pode ter de ser mudada13. O que se deve
exigir em qualquer modificação do Direito que se efectue nestes domínios, além do
consenso sobre a necessidade da reforma que se referiu acima, é que, em todos os
casos, se sigam as recomendações internacionais e os critérios que produzem, o modus
faciendi que indicam, de modo a evitar a arbitrariedade que possa resultar do simples
jogo de força dos partidos políticos14.
9 Hoje, reza o n.º 3 do art.º 35 da C.R.P.: “A informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, auto-rização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para o processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis”. Tal como está e para o efeito da ainda necessária adaptação do nosso Direito interno ao desenvolvimento do Direito internacional, não é necessária qualquer alteração deste preceito constitucional.
10 Pode ter importância e grande, ao nível dos direitos económicos e sociais e ao nível orçamental. Na previsão da despesa pública, pode haver, não se sabe, até 20 mil pessoas excluídas dos benefícios públicos. Depois, como exigir o pagamento dos impostos e como combater, nomeadamente a economia paralela, além de, muito mais importante, prever programas mais abrangentes de vacinação, por exemplo?
11 O último Relatório CERD apresentado foi discutido em Agosto de 2004.12 Já o CERD vem dando pistas ao Governo português como a da confidencialidade das pessoas inquiridas e
o carácter voluntário da produção das informações pelos interessados, sentido em que terá ido a revisão constitucional de 2005 quanto ao artigo 35, n.º 3 da C.R.P. Existindo embora sempre uns possíveis não cooperantes nos inquéritos – com toda a legitimidade – o resultado obtido sempre seria mais preciso que um total desconhecimento dos dados.
13 Lei n.º 67/98 de 26 de Outubro, transpondo a Directiva CE n.º 95/46 do PE e do Conselho.14 O modus faciendi e os critérios podem ser encontrados em “Ethnic statistics and data protection in the Council of
Europe countries – study report” de Patrick Simon, do Institut National d’Etudes Démographiques, publicado
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77Um exemplo virtuoso da estatística pode ser dado com o “Registo de menores em
situação irregular” introduzido em 2004 pelo Decreto ‑Lei n.º 67/2004, de 25 de
Março e a Portaria n.º 995/2004 de 9 de Agosto. Com este registo fica a conhecer ‑se
o número de menores irregulares, fica a saber ‑se quem são e equiparam ‑se estes
menores, enquanto durar a sua situação de irregularidade, aos menores regulares com
as vantagens da sua inserção no sistema educativo e todos os direitos económicos,
sociais e culturais que daí derivam15.
Agravante geral pela possível motivação racista nos vários tipos penais
Além deste importante aspecto das relações CERD/ECRI//Portugal, temos ainda um
aspecto de dimensão legislativa, apenas, que é o da introdução da necessária agravante
geral pedida pela ECRI e pelo CERD quanto aos vários tipos de crimes, na sua concre‑
tização, quando à perpetração destes tenha presidido uma motivação racista. Nas reco‑
mendações do CERD e nos Relatórios da ECRI esta agravante geral, como necessidade,
é uma constante. Portugal não a possui mas sublinha o ACIDI (Alto Comissariado para
a Imigração e o Diálogo Intercultural) com acuidade que ela já existe, pelo menos em
potência, no artigo 71.º do Código Penal, na elencação dos critérios para a determina‑
ção da medida da pena que este fornece. Talvez aqui fosse ainda possível introduzir o
motivo racial do crime, embora tal só deva ser feito se a economia do artigo 71.º do
Código Penal não ficar desequilibrada ou de algum modo prejudicada16.
Mecanismo de queixa do artigo 14.º da CERD e emenda ao artigo 8.º da CERD
Outro ponto importante, de natureza formal e que não implica alteração da C.R.P. nem
da Lei ordinária, mas que implica a modificação da Ordem jurídica interna pela sua
introdução, é o formado pelo mecanismo de queixa do artigo 14.º da CERD.
no site da ECRI do Conselho da Europa. Não quer isto dizer que o próprio modus faciendi não possa ser estudado com uma perspectiva crítica – existe uma tradição de grande exigência no sentido da defesa dos Direitos Humanos em Portugal que importa preservar seguindo as traves mestras do Direito Internacional.
15 Em Portugal pode falar ‑se em Direitos Económicos, Sociais e Culturais, na medida em que embora exista uma importante minoria, não existem oposições de cariz cultural entre a maioria e a minoria que sejam de índole a produzir um conflito. Sobre este aspecto, importante para alguns países europeus, dos direitos culturais, foi de grande interesse a intervenção da Senhora Rina Kionka no 9.º Fórum das ONG’s sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais, no Palácio Foz em Lisboa, em 6 e 7 de Dezembro de 2007.
16 É sempre bom proceder à redacção de textos que possam ficar, pelo que a introdução da consideração do elemento racial do crime como agravante geral seria bem vinda. Ponto é que em termos de técnica legis‑lativa e de economia do artigo 71.º do Código Penal a introdução seja bem feita. Uma formação adequada dos Magistrados, inserida na formação permanente do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) pode ajudar para compensar a falta de agravante geral em caso de crime em que um dos elementos da culpa seja uma motivação associada ao racismo e à discriminação.
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78 Em 1999, na sequência de um debate cheio de êxito do Relatório de aplicação da
CERD em Portugal, o Alto Comissário para a Imigração e as Minorias Étnicas de então
resolveu anuir à sugestão então formulada pelo CERD, de se introduzir um mecanismo
de queixa diante dele, CERD, por discriminação racial. O mecanismo de queixa é o
seguinte: depois de esgotados os recursos internos (e também argumentativamente
para se dar ao Estado português uma oportunidade, por via da sua Justiça, de se pro‑
nunciar sobre o problema), o particular lesado que não obteve vencimento, pode
queixar ‑se ao Comité ERD.
Em 1999 foram feitos informações e pareceres e o conjunto de peças foi enviado
ao MNE, o qual apresentou a comunicação de aceitação por parte de Portugal, do
mecanismo de queixa do artigo 14.º17. Portugal está internacionalmente vinculado18.
E internamente? A CERD foi aprovada para adesão pela Assembleia da República (AR)
em 198219. Qualquer modificação à CERD no plano interno português deveria seguir
o mesmo caminho20. Aqui há uma modificação à CERD na vinculação do Estado por‑
tuguês. Mas o procedimento formal ora evocado não foi seguido. A pergunta do obser‑
vador é a seguinte: porque é que ainda não estão presentes queixas contra Portugal
diante do Comité ERD por violação de uma disposição da CERD?21
Verifica ‑se a necessidade de o Governo proceder à entrega do processo à AR para
aprovação para adesão do mecanismo do artigo 14.º CERD22. Seguramente, diante da
importância da questão, pelo número de pareceres e de peças que salientam, mor‑
mente no plano internacional, a utilidade deste mecanismo, e pelo empenho que
Portugal tem verdadeiramente demonstrado em promover uma sociedade multicul‑
tural dentro das suas fronteiras, que a AR aprovaria para adesão o mecanismo de
queixa do artigo 14.º.
17 Ver aviso do MNE n.º 95/2001, do MNE, no Diário da República I.ª Série de 24 de Agosto de 2001.18 Se não o estiver internamente, é internacionalmente responsável. Quais as consequências dessa responsa‑
bilidade? Neste caso, provavelmente nenhumas, apenas uma advertência do Comité no sentido de reparar
a situação. 19 Lei n.º 7/82 de 29 de Abril.20 Ver o Parecer da PGR n.º 37/1990 de 28 de Junho sobre a questão. Pode ser consultado em www.dgsi.pt. 21 Não será certamente apenas porque existem muitos meios em Portugal, que efectivamente existem, ou por‑
que ainda não terá passado o tempo suficiente para existirem queixas… 22 E o mesmo quanto ao financiamento do Comité ERD, relativamente ao qual – emendas ao artigo 8.º – o
Comité vem pedindo que as contribuições dos Estados se façam para o orçamento das Nações Unidas, o
que não parece trazer mais despesa para Portugal. Foi feita a promessa ao Comité pelo ACIME em 1999,
seguiram os pareceres para o MNE. Neste caso, não houve sequer entrega de uma declaração pelo MNE
ao Comité ERD, o que é patente pela falta de publicação de aviso no DR.
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79Direitos económicos, sociais e culturais
Mecanismos de queixa
Neste domínio, a descoberta de possíveis modificações do Direito, quer constitucional
quer ordinário, a existirem, exigiria um escrutínio apurado, resultante do trabalho dos
vários intervenientes no que respeita aos chamados Direitos económicos, sociais e
culturais, como o Ministério do Trabalho e da Solidariedade, com os seus peritos e os
seus técnicos, que têm negociado a ratificação por parte de Portugal, da Carta Social
Europeia Revista, e que, agora, com justiça, propõem, em paralelo ao mecanismo de
reclamações colectivas da Carta Social Europeia Revista, um Protocolo introduzindo
um mecanismo de queixa individual23. O mesmo esforço está a ser envidado no plano
dos direitos económicos, sociais e culturais das Nações Unidas, que já chegaram a
elaborar um projecto de Protocolo ao Pacto Internacional relativo aos Direitos econó‑
micos, sociais e culturais das Nações Unidas.
O mecanismo de queixa é simples e rapidamente perceptível24: para um conjunto
de direitos de dimensão económica, social e cultural, contemplados na CSERevista ou
no PIDESC, e dentro de uma medida de concretização legislativa e prática, efectiva, no
interior do Estado25, passa a poder o cidadão queixar ‑se se a Administração não cum‑
prir o direito daquele que corresponde a um dever desta26. Como sempre, estamos
diante de um mecanismo de queixa, por isso será sempre necessário o prévio esgota‑
mento dos recursos argumentativos e judiciais internos. Neste plano, as modificações
que a Ordem internacional determina não levantam dificuldades. Apenas a Administração
não se poderá mais escusar a cumprir o direito do cidadão, argumentando que este
direito corresponde a um programa que não está ainda consolidado e cuja medida de
concretização está na sua discricionariedade, quando haja concretização legislativa do
direito.
23 Assim a Senhora Dra. Josefina Leitão, no Seminário sobre a Carta Social Europeia organizado pelo Secretariado
da Carta Social Europeia e pela Direcção ‑Geral dos Direitos Humanos – DG II do Conselho da Europa e
pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social; que teve lugar em Lisboa, em 8 de Janeiro de 2008,
no Auditório CITEFORMA.24 Quem tiver um conhecimento mediano do mecanismo de queixa da CEDH ou do Protocolo Facultativo ao
Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos entra rapidamente no funcionamento da proposta
de Protocolo ao PIDESC25 Esta medida corresponde à “margem de apreciação dos Estados” que a estes é reconhecida na medida da
concretização dos direitos pela CEDH e constantemente afirmada pelo TEDH.26 E que resulta da elaboração legislativa do Estado ao reconhecer este ou aquele direito subjectivo, no quadro,
por exemplo da Segurança Social.
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80 Aos defensores do equilíbrio orçamental e da luta contra a despesa se pode opor
com sucesso que, existindo cobertura legislativa, a cobertura financeira foi assumida
previamente pelo legislador, ou este legislou mal, e que, por conseguinte, não se veri‑
fica uma geração anormal ou excessiva da despesa.
Distinção entre direitos programáticos e não programáticos na Constituição e
programa constitucional
Onde a questão dos direitos económicos, sociais e culturais é sintomática, é no fim da
distinção entre direitos programáticos e não programáticos na Constituição. Com isto
não creio estar a escrever uma ousadia ou a fazer política.
A Declaração e o Programa de Acção de Viena de 199327, ao afirmarem como
pressuposto do Direito internacional que os Direitos Humanos são universais, inter‑
dependentes e indivisíveis, vem acabar com a distinção que se vinha fazendo e era
resultante dos tempos da Guerra Fria entre direitos civis e políticos e direitos econó‑
micos, sociais e culturais28.
Isto deve ter as suas consequências nas repartições de direitos programáticos e não
programáticos e nas várias distinções que se vinham fazendo na C.R.P.. O pressuposto
“não programático – programático” da C.R.P. cederá o lugar ao princípio “universali‑
dade, interdependência e indivisibilidade” dos direitos.
Implicará isto uma reforma profunda da C.R.P. em que todos tenhamos que traba‑
lhar, dias e noites durante os anos de uma Revisão Constitucional esperada e liberta‑
dora? Não. Uma Revisão Constitucional que se faça neste sentido não é libertadora,
pois está concretizado em Portugal um elevado grau de liberdade política e económica
e um elevado grau de protecção social que importa não perder. Ao operar uma revisão
da C.R.P. neste domínio, há que manter o nível de liberdade política e económica, bem
como o nível de protecção social que até hoje desde o texto da C.R.P. de 1976, e com
as sete revisões em que já vamos, se logrou alcançar, ou então, não vale a pena rever
nada. A revisão constitucional pode ser esperada, mas não é vital, por outro lado,
Portugal, já vive muito bem como está.
27 Para o texto, cfr. “Relatório português sobre a aplicação da Declaração e Programa de Acção de Viena” –
separata ao Boletim Documentação e Direito Comparado, BDDC 1999, n.º 77/78, pág. 261. A DPAV foi
adoptada por consenso na própria Conferência de Viena de 1993. No domínio das Nações Unidas foi
assumida pela Resolução n.º 48/121 da Assembleia ‑Geral.28 Isto já era evidente quando em Direito Privado, não se conseguia vislumbrar a autonomia dogmática do
Direito Comercial relativamente ao Direito Civil e não se conseguia vislumbrar também, a autonomia
dogmática do Direito do Trabalho, relativamente ao Direito Civil.
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81Que tenhamos que trabalhar dias e noites durante anos para esta Revisão? Também
não, nem nos devemos deitar tarde por ela! Devemos simplesmente pensar todos se
queremos a Revisão e, se não a quisermos, não a devemos fazer: tem de haver consen‑
so nacional para todas estas questões.
E temos de saber o que queremos rever. Falamos em direitos programáticos e não
programáticos e no fim desta distinção por força do verdadeiro pressuposto dos direi‑
tos fundamentais e de todo o Ordenamento, a universalidade, a interdependência e a
indivisibilidade. O que é que isto implica em termos de revisão constitucional?
Os direitos estão bem definidos na C.R.P.. Há mais de trinta anos de C.R.P. e de
trabalho sobre os seus direitos, as suas noções. Houve querelas mortais, intervenções
fortes e silêncios assassinos na discrição dos gabinetes de juristas e de políticos.
Transformaram ‑se divergências doutrinais em dramas políticos… Todos sofreram e
quando se volta a falar nestas questões, em todos vem um enjoo comum acerca delas.
Uma velha náusea que nos é, a todos, familiar.
Quais os direitos, os textos constitucionais a modificar, pois? Os direitos estão
demasiado bem definidos, demasiado finamente trabalhados para serem, sem mais,
modificados. A única coisa que importa fazer não é diminui ‑los. Importa reforçá ‑los.
A lição da universalidade, interdependência, indivisibilidade, ao dar ‑lhes exigibilidade,
não milita no sentido do seu enfraquecimento. Antes, vai no sentido do seu reforço.
Então, não há nada a modificar?
Apesar de tudo, pode haver. O texto do artigo 17.º da C.R.P. relativo ao regime dos
Direitos, Liberdades e Garantias. Há direitos mais direitos que outros? A mim parece‑me
que não. A Declaração e o Programa de Acção de Viena reforçam esta ideia. Um proto‑
colo facultativo à CSE Revista e outro ao PIDESC confirmam ‑me nesta pista.
Se houver consenso, será, quanto a mim, de substituir o actual texto do artigo 17.º
da C.R.P. pelo seguinte, sem comentários adicionais:
“Os direitos fundamentais são universais, indivisíveis e interdependentes”.
Depois seguirá o texto constitucional sem emendas, nem sequer quanto aos capí‑
tulos, apenas com uma ou outra alteração pontual como o sugerimos com os artigos
relativos à prisão preventiva, mas não alterações que possam ir no sentido de diminuir
a protecção constitucional dos direitos hoje alcançada.
Programa Constitucional
Mesmo se se pretender manter o texto constitucional, o que é perfeitamente factível e
admissível, na medida em que, se a distinção “programático ‑não programático”, no
plano dos direitos, é obsoleta, o que é necessário é existir um consenso nacional sobre
o que há para fazer ou não – e até será pouco.
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82 E mesmo se a distinção “programático – não programático” é obsoleta, uma coisa
que não se confunde com ela, não é de todo obsoleta, antes sendo de extrema actua‑
lidade e importância: o programa constitucional assumido formalmente desde 1976,
na C.R.P. e por esta, de melhoria constante das condições de vida dos cidadãos.
E esse programa tem sido relativamente cumprido, com altos e baixos, ao longo
dos nossos mais de trinta anos de C.R.P.. Este programa não está de modo algum desac‑
tualizado: a melhoria significativa das condições de vida dos cidadãos portugueses que
se vem registando desde a adopção da C.R.P. de 1976 está bem documentada, nomea‑
damente nos I, II e III Relatórios de Portugal, de aplicação do PIDESC29 e mede ‑se por
situações de maior conforto dos cidadãos portugueses no interior do país para além
dos cidadãos das faixas litorais e dos grandes aglomerados urbanos, pese embora o
muito que há ainda por fazer.
Este programa, num quadro de imposição de políticas orçamentais excessivamen‑
te rigorosas e de um juro alto para uma moeda que não corresponde à riqueza real do
cidadão português30, enquanto a distinção das normas programáticas ou não pode cair,
deve manter ‑se e procurar cumprir ‑se pois representa a estreita defesa das condições
de vida do cidadão português numa governação económica em que já não existe a
possibilidade de um desvio ou de um aliviar do esforço do cidadão, em que a “mar‑
gem de relevância”31 de Portugal é cada vez mais estreita e em que o nosso país não
dispõe de qualquer possibilidade de decisão, ou até, de negociação.32NE
29 Vejam ‑se os documentos sob as cotas E/1980/6/Add.35/Ver.1; E/1990/6/Add.6 e E/1994/104/Add.20,
nomeadamente na página do GDDC em http://www.gddc.pt/direitos ‑humanos/portugal ‑dh/portugal‑
‑relatorios.html#fa. 30 Ainda que esta moeda para Portugal seja necessária pelas razões que foram expostas no trabalho referido
anteriormente, relativo à “Sustentabilidade, (à) integração e (à) independência de Portugal”.31 Cfr. O título da obra de Raul Lopes Mateus, “A difícil tranquilidade do Euro, a margem estreita da rele‑
vância”.32 O programa constitucional não tem de ser desmontado por razões orçamentais, nomeadamente. Eventual‑
mente uma adaptação orçamental poderia ser mais lenta embora seja indispensável: é que o que for des‑
feito agora não será mais refeito no futuro. Aquilo que existe, mesmo se hoje há a consciência aguda de
que nada está adquirido, precisamente por esta consciência, não tem de ser desfeito. A assunção do novo
destino que o Euro implica não tem de significar a assunção da miséria para quem vive e trabalha em
Portugal. No contexto de sombria crise em que acabámos de entrar, a eficiência económica hoje neces‑
sária para enfrentar as dificuldades, outrora afirmada para gerar riqueza, não afasta estas considerações:
a consciência da necessidade da defesa dos Direitos Humanos é mais premente que nunca desde a sua
formulação hodierna que remonta a 1949 com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
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83La gestión de conflictos en la Comunidad Iberoamericana
Rafael Marcos Aranda*
Introducción la propuesta de impulsar el debate sobre la gestión de conflictos como tema
central de la Comunidad iberoamericana se basa en un análisis cercano de la
situación actual de la Secretaria General Iberoamericana, comprometida con la
mejora de las condiciones de vida en los países Iberoamericanos.
La necesidad ante las crecientes situaciones de tensión, que se han vivido y se
están viviendo en el contexto Iberoamericano, hacen necesaria la creación de un área
especializada de Gestión de Conflictos en el seno de la SEGIB.
La prevención y resolución de conflictos como respuesta en el mundo pos ‑Guerra Fría A partir
de inicios de los años 90, los actores de la sociedad internacional han buscado
formular y definir respuestas innovadoras frente a los cambios en el sistema
político mundial tras la caída del muro de Berlín. Estas propuestas han tomado en
especial consideración los nuevos riesgos de una situación global y específicamente,
de un contexto de los países iberoamericanos, que no ha conseguido el nivel de
estabilidad política, económica y social proclamada por el optimismo de los
primeros años tras la finalización de la Guerra Fría.
Los enormes costes, tanto materiales como en sufrimiento humano, de los
conflictos ‑genocidios en América Latina llevaron a un profundo proceso de orientaci‑
ón hacia la prevención, promovido sobre todo por el entonces Secretario General de
las Naciones Unidas Boutros Boutros ‑Ghali (“Agenda para la Paz – Diplomacia preven‑
tiva”).
En cuanto al nivel iberoamericano, ha ido ganando fuerza la perspectiva de pre-
vención y gestión de conflictos, construcción de la paz y tras los atentados del 11 de
septiembre de 2001 en Nueva York y del 11 de marzo de 2004 en Madrid, la preocu‑
pación por la seguridad.
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* Professor de Gestão de Conflitos e Negociação Diplomática, na Escola Diplomática de Espanha. Professor de negociação do III e IV Curso de Especialização de Jovens Diplomatas Iberoamericanos.
84 Este proceso reflexivo se encuentra estrechamente vinculado con el debate, con
enfoque principal en América Latina, sobre la interrelación entre la democracia y el
desarrollo socioeconómico, fruto de la simultaneidad de las transiciones democráti‑
cas (la “tercera ola de democratizaciones”) y el cambio casi generalizado del modelo
de desarrollo económico aplicado en el último cuarto del siglo XX.
En este sentido, la comunidad iberoamericana ha conocido la creciente introduc-
ción de factores políticos como ejes estratégicos de la lucha contra la pobreza y el
impulso al desarrollo humano sostenible. En la esfera internacional, esto se ha plasma‑
do, por ejemplo, en las cláusulas democráticas y el concepto de “good governance” del
Banco Mundial, pero también, concretamente, en una reasignación de la Ayuda Oficial
al Desarrollo mundial a intervenciones dirigidas al fortalecimiento de la democracia,
la promoción de los Derechos Humanos, las reformas del sistema judicial y de segu-
ridad, el fortalecimiento y la participación de la sociedad civil, la descentralización
regional y municipal, el fomento del desarrollo local, etc.
La gestión de conflictos se debe englobar en esta reorientación estratégica en la
medida en que busca reaccionar de forma proactiva al contexto internacional radical‑
mente cambiado tras el fin de la Guerra Fría. Frente a la persistencia y el aumento de
guerras civiles atroces, “limpiezas étnicas” y en general, conflictos internos violentos
(latentes o activos) en todas las regiones del mundo, y especialmente en América
Latina. La propia Secretaría General Iberoamericana podría consolidar diferentes foros
y formar actores a nivel regional elaborando una serie modelos de interconexión
entre: prevención de conflictos, paz y desarrollo.
Aspectos clave de la interrelación entre paz, conflicto y desarrollo humano La promoción de
una Cultura de Paz, o la construcción de la paz, como aspecto implícito del desarrollo
y objetivo de la cooperación entre los países de la comunidad iberoamericana tiene
su fundamento en la convicción de que la paz es una condición “sine que non” para
el desarrollo sostenible. En otras palabras, los conflictos violentos de cualquier
naturaleza causan un enorme retroceso en los progresos humanos alcanzados
anteriormente que, en muchos casos, no se pueden recuperar. Siendo un conflicto
anterior un enorme obstáculo para el futuro desarrollo. Además, los enfrentamientos
violentos afectan con especial gravedad a los grupos más vulnerables (mujeres,
niños, jóvenes).
Es de destacar que la paz se entiende, en términos del desarrollo humano, como
un entorno de estabilidad estructural, es decir, una paz positiva. Estos conceptos, con
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85profundas raíces en el continente europeo, abarcan las capacidades de las sociedades
de gestionar los conflictos de forma no violenta, es decir, negociada y consensuada
dentro de un sistema de gestión del conflicto establecido y consolidado.
Como condicionantes políticos e institucionales, la gestión de conflictos aspira a
fomentar y consolidar:
– la Democracia como sistema legítimo, dinámico y representativo
– el Estado de Derecho
– las instituciones públicas con suficiente legitimidad y credibilidad
– la sociedad civil como “portavoz de la paz” (“diplomacia ciudadana”)
– los procesos participativos, incluida la descentralización
– la rendición de cuentas (accountability)
– el respeto de los Derechos Humanos
– sistemas de seguridad reformados
– supervisión y control civiles de las fuerzas de seguridad
Componentes e intereses políticos La definición de este nuevo concepto surge en un
doloroso análisis de las lecciones aprendidas, de los esfuerzos de la comunidad
internacional por mitigar los efectos desastrosos de la escalada de conflictos internos,
que se encendieron una vez desparecido el Telón de Acero. Cabe mencionar que
una parte considerable de la fortaleza que ha adquirido la prevención y gestión de
conflictos, se basa en el enlighted selfinterest de algunos Estados.
En un primer momento, las catástrofes humanitarias causadas por conflictos inter‑
nos absorbieron una creciente parte de la AOD global y encadenaron importantes
flujos de refugiados hacia los países con más estabilidad política y económica. Desde
mediados de los años 90, se percibe además con mayor nitidez, la necesidad de desar‑
rollar e implementar nuevos conceptos de seguridad mundial frente a los desafíos de
las atrocidades acometidos en vastas regiones del mundo. Algunos Gobiernos europeos
(Alemania, Francia y los países escandinavos, entre otros) entienden la cooperación
como una herramienta estratégica de la prevención de conflictos, incluidos aquellos
conflictos que podrían afectar directamente la seguridad de sus respectivas sociedades.
Sin duda, esta tesis ha alcanzado aún más fundamento con la creciente irrupción del
terrorismo en el orden mundial actual.
Estos dos aspectos, que aquí se han destacado entre una serie de puntos críticos,
demuestran la enorme necesidad de crear foros y marcos estables de debate e inter-
cambio entre los expertos de diferentes ramas relacionados con la prevención de con‑
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86 flictos. Para la Comunidad Iberoamericana, sin duda representa tanto un enorme
desafío como una oportunidad histórica, ya que podría incidir proactivamente en las
bases fundamentales de progreso humano a largo plazo, superando así también la
perspectiva convencional de las intervenciones temporales. Asimismo, existe un con-
siderable potencial para los actores de la cooperación internacional de gestionar
aspectos de enorme complejidad en los países iberoamericanos, donde sin duda cuen‑
tan con una ventaja comparativa por su cercanía a las estructuras locales. No obstan‑
te, para poder aprovechar este potencial, será imprescindible perder el temor ante unos
cambios supuestamente radicales y entender el debate como una aportación fructífe-
ra a la mejora de los mecanismos existentes actualmente.
Prevención y gestión de conflictos en Iberoamérica Iberoamérica está marcada por una alta
y creciente incidencia de violencia que se puede definir como conflictos internos
de baja intensidad con un potencial apreciable de aumento de las actitudes violentas,
tanto internas como hacia los países vecinos.
Habiendo perdido el valor estratégico para los EE.UU. en la lucha contra el
comunismo (reemplazado en parte por la lucha contra el narcotráfico), representa
una región de riesgo en cuanto al impacto destructivo de conflictos violentos en
su desarrollo humano. Ello se refiere principalmente a la violencia social y criminal
a la que se responde desde las instituciones públicas con medidas represivas y recor‑
tes en las libertades civiles. En resumen, ofrece un cuadro de conflicto potencial,
por lo que se debería optar por una prevención temprana de mayores dimensiones
de conflictividad.
En cuanto a la vulnerabilidad de Iberoamérica frente a los conflictos, se pueden
mencionar las siguientes características principales interrelacionadas entre sí:
– Un legado de violencia tras la finalización de las guerras civiles y sub regionales
como campo de batalla secundario en el enfrentamiento ideológico.
– Considerable crispación ideológica de los partidos políticos con grupos
enfrentados en conflictos internos.
– Sistemas democráticos frágiles (institucionalización, Estado de Derecho,
rendición de cuentas, etc.).
– Cierta limitación de la representatividad y legitimidad del sistema político.
– Retrasos en los procesos participativos de la sociedad civil.
– Escasa preparación y formación de las fuerzas de seguridad oficiales.
– Expansión acelerada y descontrolada del sector privado de seguridad.
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87– Disponibilidad y presencia excesiva de armas ligeras.
– Incidencia considerable del narcotráfico en las relaciones sociales y
económicas.
– Presencia apreciable del crimen organizado alrededor de los secuestros y el
tráfico ilícito de armas, personas, órganos, etc.
– Conflicto de baja intensidad entre jóvenes.
– Enormes disparidades socioeconómicas, en línea de diferencias étnicas.
– Procesos importantes de degradación del medio ambiente y de los recursos
naturales (agua potable, tierras de cultivo, ecosistemas, biodiversidad, etc.).
Por ello y en consonancia con el Programa de Naciones Unidas para el Desarrollo
se considera que Iberoamérica necesita, además de los programas y proyectos conven‑
cionales, un impulso en la creación y la consolidación de una Cultura de Paz, para
poder socavar las raíces de los conflictos potenciales de forma preventiva. De hecho,
existe además una enorme necesidad en mecanismos de gestión y negociación de
conflictos frente al cada vez más patente estallido de la violencia en la sociedad.
No cabe duda de que, para alcanzar un mayor nivel de seguridad humana y redu‑
cir el riesgo colectivo, se tendrán que promover especialmente las capacidades locales
de gestionar las tensiones y conflictos de forma no violenta para lograr el fortaleci‑
miento de unas sociedades pacíficas, aspecto para el que en la mayoría de los países y
representantes de los Gobiernos existe un consenso apreciable.
Conclusión La presente propuesta pretende generar una oportunidad para que los actores
iberoamericanos, especialmente desde la Secretaría General Iberoamericana se
puedan analizar conflictos, debatir opciones, intercambiar opiniones y elaborar
respuestas concretas en torno a la prevención y gestión de conflictos en una región
en la que mantenemos amplios y profundos lazos.
Un enfoque regional sobre la prevención y la gestión de conflictos abrirá un pri-
mer espacio estable para la discusión y la aplicación de los conceptos teóricos,
haciendo así manejable la propia complejidad iberoamericana, que se ha descrito de
forma sucinta en estas páginas.
La consolidación de un Área de Gestión de Conflictos en el seno de la propia
Secretaria General Iberoamericana, la creación de equipos de trabajo, como también
las publicaciones temáticas que recojan los resultados de estos esfuerzos, permitiría un
importante impulso estratégico del debate sobre la vinculación entre conflictos y
desarrollo y su prevención en la Comunidad Iberoamericana de Naciones.NE
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89Contributos para o Estudo da Política Externa Portuguesa
no Contexto do Brasil Pombalino – O Directório
dos Índios do Pará e Maranhão
Duarte Nuno Gonçalves Jorge Pinto da Rocha*
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n Abstract:
Indigenous Brazilians’ legal statute and their freedom was the driver for relevant and
endless political, social and economical clashes in colonial Brazil. Missionaries, mainly
Jesuits, colonists and colonial authorities were the main actors of this confrontation
directly linked to the key role of native Brazilians as manpower to the Portuguese
entrepreneurs and the Portuguese colonization of the south Atlantic new found land.
With the aim of strengthening their action towards indigenous Brazilians and protect
them from colonists’ attacks in search of manpower, Jesuits adopted a strategy consist‑
ing of assembling Christianized “Indios” in settlements where Europeans were not
allowed to enter, therefore conducting them to settle as a way of reshaping their mate‑
rial and spiritual background while also disengaging them from their traditional social
organization and way of life. This main trend and the inevitable clashes with colonists,
colonial authorities and, at times, with metropolitan policy reached a climax during
the eighteenth century. The enlightenment background of the century, as well as the
political centralization, material modernization and secularization of Portugal in those
days, personified by the Marquis of Pombal, led to a final clash between two civic and
spiritual orders, apparently unable to live together. That clash is directly linked with
the overall background of Portuguese foreign relations, mainly with Spain and the
Vatican, while evolving on an integrated framework of international competition and
colonial rule relevant to Portuguese geopolitical affirmation and foreign relations. The
“Directorio dos Índios” is one of the most remarkable legal instruments of the political
authorities in Lisbon in order to reshape society and the indigenous peoples legal stat‑
ute in colonial Brazil, by which we can envisage a larger scope made of tensions and
different approaches and world views as well as different proposals to society buildup
and different, if not conflicting, conceptions of Mankind.
* Secretário de Embaixada. Trabalho final do Curso de Política Externa Nacional 2006 ‑2007, sob a orientação do Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão.
90 Prólogo a questão iNdígeNa foi um dos vectores principais e primordiais em face da presença
portuguesa no Brasil. A questão da liberdade dos Índios foi motivo de intermináveis
embates políticos na colónia e no Reino, envolvendo especialmente três grupos: os
missionários (predominantemente jesuítas), os colonos e as autoridades coloniais. A
causa de tal disputa relacionava ‑se directamente com a importância fundamental da
mão ‑de ‑obra indígena no processo de colonização. Numa fase inicial a angariação
de mão ‑de ‑obra consistia, maioritariamente, nos prisioneiros de guerra capturados
pelos aliados ou de sortidas em embarcações realizadas pelos próprios colonos. No
entanto, em algumas capitanias, como a Baía, em que se verificara o sucesso da
economia da cultura sacarina, estas modalidades iniciais de apropriação do trabalho
indígena deixaram de satisfazer as necessidades do aparelho produtivo. Assim, os
colonos começaram a proceder à escravização dos Índios dando origem a numerosas
revoltas. A tensão em torno da questão da liberdade dos Índios adensa ‑se com a
implantação do Governo ‑Geral, coincidindo com a chegada ao território brasílico
dos primeiros jesuítas. Por acção destes (junto da Coroa, do Governo ‑Geral e demais
autoridades civis e religiosas, no Reino e no Brasil, bem como junto dos colonos)
vai sendo gradualmente limitado o espaço de manobra dos arregimentadores dos
autóctones. Com efeito, a partir de meados do século a utilização compulsiva da
mão ‑de ‑obra indígena vai sendo progressivamente restringida àqueles que tivessem
sido capturados no âmbito de guerra considerada justa.1 Os graves acontecimentos
que marcaram a colónia nos finais da década de cinquenta, inícios de sessenta da
centúria de quinhentos,2 trouxeram para a ordem do dia o problema da política
1 A guerra justa foi o principal caso reconhecido de escravização legal de indígenas. Sendo um conceito jurí‑
dico criado pelo direito romano, a sua aplicação pelos povos peninsulares data da época de luta contra
os muçulmanos, sendo objecto de muita discussão a partir do século XVI, quando é pretendida a sua
aplicabilidade a populações que, não tendo conhecimento prévio de fé, não podiam ser encarados nem
tratados como infiéis. Nesta fase da questão indígena é fundamental para a reflexão teológico ‑jurídica
relativa à empresa colonial ibérica e, nomeadamente, à noção de guerra justa, a reflexão desenvolvida pela
escola jurídica de Salamanca, particularmente a obra de Francisco de Vitória. Eram causas tradicionais de
reconhecimento da justeza de uma guerra a recusa da conversão ou impedimento da propagação da fé,
o desenvolvimento de hostilidades contra colonos (especialmente pregadores), bem como contra aliados
dos Portugueses e ainda a quebra de pactos celebrados. Álvaro Pais definia ainda como causas para a decla‑
ração de guerra justa a preexistência de uma injustiça do adversário, as boas intenções do partido cristão
e a declaração por uma autoridade competente (temporal ou espiritual). Eram ainda invocadas a salvação
das almas e a prática da antropofagia pelas populações ameríndias (essencialmente como agravante).2 A revolta dos Caetés em Pernambuco no ano de 1555, a execução para fins antropofágicos dos náufragos da
nau Nossa Senhora da Ajuda e os dois grandes surtos epidémicos de varíola na Baía em 1562 ‑1563.
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91a adoptar quanto aos indígenas. A Junta reunida para analisar a questão (em que
participavam, nomeadamente, o governador ‑geral, bispo e ouvidor ‑geral) decretou,
em 30 de Julho de 1556, um conjunto de medidas destinadas a assegurar a segurança
dos nativos que viviam nos aldeamentos tutelados por jesuítas, colocar sob a alçada
do ouvidor ‑mor a resolução dos conflitos relativos a fugitivos que buscavam refúgio
nos aldeamentos inacianos, a promoção da libertação dos indígenas ilegalmente
cativados, a instituição do cargo de procurador dos Índios e de um meirinho
indígena por aldeamento. Em contrapartida, era assegurado aos colonos o trabalho
temporário dos índios contra pagamento de um salário. É na sequência deste processo
(e, particularmente, dos decretos produzidos pela Junta a que nos referimos) que
surge v.g. a Lei de 20 de Março de 1570. Com efeito, a Coroa buscava encontrar uma
solução de compromisso que atendesse às diversas correntes e interesses em jogo.
O legislador definia como únicas situações em que era possível a escravização dos
Índios os casos de prisioneiros resultantes de guerra justa decretada pelo soberano ou
pelo governador, em virtude de combaterem ou devorarem Portugueses, bem como
Índios aliados ou escravos.3 Determinava ainda a libertação de todos os cativos cujos
proprietários não possuíssem título regular, interditando, igualmente, a aquisição
dos Índios de corda.4 Por último, estabelecia a obrigatoriedade do registo dos novos
escravos nas Provedorias da Fazenda no prazo de dois meses, sob pena de cessação
do direito de propriedade sobre o nativo. Na prática, a promulgação desta lei
motivou preocupação e viva reacção junto dos colonos que enviaram representações
ao monarca solicitando, especialmente, a revogação da claúsula relativa ao resgate
de índios. Argumento, a escassez de mão ‑de ‑obra que poderia conduzir à ruína a
economia (e com ela todo o processo de colonização brasílica). A lei a que nos
referimos, à semelhança da maioria das disposições da Coroa nesta questão, traduzia
a sua preocupação na procura de uma solução de compromisso, compatibilizadora
das pretensões dos jesuítas à protecção dos seus neófitos, das agudas necessidades
de mão ‑de ‑obra (especialmente por parte dos senhores de engenho), bem como
da necessidade de amenizar a intensidade das razias provocadas pela pressão dos
3 Como compatíveis com a verificação destes critérios são, desde logo, indicados os Aimorés.4 Os índios de corda eram aqueles capturados por tabas inimigas e destinados ao sacrifício cerimonial (também
alimentar...) antropofágico. A justificação para a licitude do resgate destes prisioneiros baseava ‑se na
argumentação de que desse modo se salvava a vida do condenado e, assim, pela sua conversão, a salvação
da alma.
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92 colonos sobre os indígenas para obtenção de mão ‑de ‑obra, na medida em que
poderiam exacerbar a rebeldia e resistência das populações nativas ao ponto de fazer
perigar a segurança da colónia.5
Com o objectivo de conferir eficácia à sua actuação junto das populações indí‑
genas e de as proteger das investidas dos colonos em busca de mão ‑de ‑obra, os
jesuítas optaram por reunir os Índios cristianizados em aldeamentos onde não era
permitida a presença de europeus, forçando ‑os à sedentarização como forma de os
enquadrar material e espiritualmente, desarticulando, também assim, o seu modo de
organização social e de subsistência. Com vista a este último aspecto, requereram à
Coroa a concessão de sesmarias. Este conjunto de mutações económico ‑sociais no
5 Quanto ao objecto é possível distinguir duas categorias fundamentais entre a muita legislação relativa aos
Índios do Brasil. Assim, a relativa ao tratamento a prestar aos Índios aldeados e aliados dos Portugueses
e, por outro, o relativo aos Índios inimigos. Aos inseridos na primeira categoria é desde o início da colo‑
nização garantida a liberdade. Aldeados são legalmente senhores das suas terras, constituindo a reserva
de mão ‑de ‑obra da colónia. Podiam ser legalmente contratados mediante salário pelos moradores ou
requisitados pela Coroa. Assim se estabelecia na lei de 1587, alvará de 1596, lei de 1611, no regimento
do governador do Grão Pará e Maranhão de 1655 e no Directório de 1757 que analisaremos. Os Índios
aldeados constituíam deste modo e, desde o início da colonização,o grosso das tropas de guerra para a
defesa da colónia, bem como das tropas de resgate e descimentos. A administração das aldeias foi um dos
pontos móveis deste ordenamento, já que dela foram inicialmente encarregados, com exclusividade, os
missionários jesuítas, vindo a passar alternadamente para moradores, para os jesuítas conjuntamente com
chefes indígenas, outras ordens de missionários e, de modo definitivo, para as mãos de administradores
leigos, como instituído pelo regimento que nos propomos analisar. Aos Índios que não se quisessem
aldear era facultada permissão para permanecerem nas suas terras, especialmente quando ocupavam regi‑
ões fronteiriças constituindo, assim, uma primeira linha de defesa. A liberdade dos Índios aldeados foi
frequentemente violada pelos moradores que utilizavam toda a espécie de subterfúgios para mantê ‑los
nas suas propriedades como escravos apesar da existência (e pretensa actividade isenta) do procurador dos
Índios, instituído desde o alvará de 1596. Já a escravidão era o destino corrente dos Índios prisioneiros
de guerra, contanto que reconhecida como justa. De igual forma, os Índios cativos de guerra entre as
populações ameríndias, neste caso obtidos por resgate. Uma última hipótese legalmente formulada (mas
menos frequentemente e com restrições variáveis ao longo do tempo), a da venda de si mesmos ou de
seus filhos pressionados pela miséria. As leis eram ainda (e sobretudo) violadas, levando à escravização de
povoações inteiras, com recurso ao pretexto de proteger a colónia dos ataques de povos indígenas inimi‑
gos. As tropas de resgate escravizavam indiscriminadamente. Estes abusos dos colonos (e nas dimensões
em que foram praticados) contrariavam o projecto político da Coroa de vassalagem dos povos indígenas,
atinente a assegurar a segurança territorial da colónia. Neste sentido, foram sendo limitadas as possibili‑
dades de declaração de guerra e chegou a declarar ‑se a liberdade de todos os indígenas brasileiros, sem
excepção, pelas Leis de 1609, 1680 e 1755 (esta última na base do Directório cuja análise constitui a fonte
prioritária desta monografia). No entanto, nos dois primeiros casos, a Coroa, pressionada pelas autorida‑
des coloniais e pelos colonos que reclamavam da escassez de mão ‑de ‑obra e pelas constantes hostilidades
praticadas por povos indígenas inimigos que colocavam em risco a sobrevivência da colónia, restaurou as
possibilidades legais de cativeiro por resgate e guerra justa.
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93modo de vida indígena tinha em vista a aplicação do suave jugo de Cristo tido como
propiciador da evangelização dos ameríndios. No mesmo sentido, o seu empenha‑
mento na fundação de colégios, na catequeze geral, baptismo das crianças e sua
educação cristã, conversão dos principais e baptismo dos moribundos. A defesa dos
Índios cristianizados motivou muitos conflitos com os colonos geralmente arbitra‑
dos pela Coroa a favor da posição da Companhia de Jesus. Os confrontos mais graves
ocorreram em Santos e São Paulo, no ano de 1640, devido à publicação do breve
Comisum Nobis de Urbano VIII referente à obrigatoriedade de devolução dos Índios
capturados às missões dos jesuítas espanhóis.
O grande desenvolvimento da actividade dos jesuítas no Norte conduziu à ele‑
vação da Missão do Maranhão à categoria de vice ‑província, abrangendo a área
daquele Estado. No Estado do Maranhão as posições dos inacianos relativamente à
liberdade e administração dos Índios levaram à expulsão da Companhia de Jesus em
1661 e 1684, sendo posteriormente readmitidos por imposição régia. O debate e
conflito quanto à estratégia de evangelização dos aborígenes e administração dos
índios forros fundamentaram, também, conflitos com autoridades régias, clero secu‑
lar e, muito especialmente, outras ordens religiosas como franciscanos e carmelitas.
Um dos aspectos mais importantes para compreender a posição dos indígenas
no Brasil colonial tem que ver com a imagética e valoração do seu modo de organi‑
zação material, social e espiritual que divide, desde cedo, os próprios jesuítas – his‑
toricamente aqueles que são valorados como os seus principais defensores. Neste
sentido, parece ‑nos particularmente relevante a oposição do optimismo da visão
antropológica do indígena presente e.g. nos escritos do padre Manuel da Nóbrega e
o pessimismo antropológico v.g. presente no retrato dos brasis captado pelo padre
Luís da Grã no que era secundado por outros missivistas da Companhia. Esta duali‑
dade (evidentemente também presente externamente aos membros da Companhia
de Jesus) é de fulcral importância na medida em que se relaciona com, por um lado,
a visão edénica do Novo Mundo e do Índio, por outro, com uma valoração do Índio
como sub ‑humano e bárbaro e do Novo Mundo como terra de caos e incivilização.
Mas esta dualidade de leituras do real ganha novo interesse por se tratar de Luís da
Grã e António Vieira, na medida em que catalizaram simultaneamente dois modos
opostos e conflituais de entender e desenvolver a presença jesuítica (e os modos de
a efectivar) no Brasil, com vista à evangelização e defesa da fé. A questão da escrava‑
tura constituiu um dos problemas mais complicados que se colocaram aos jesuítas
desde os primeiros passos dados no processo da sua fixação na Terra de Vera Cruz.
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94 Para evitar a aquisição de mão ‑de ‑obra escrava para cultivar as terras doadas à
Companhia, Manuel da Nóbrega, enquanto primeiro provincial do Brasil, requereu
ao provincial de Portugal que procurasse a materialização do apoio da Coroa à
Companhia no Brasil, não através da concessão de terras, mas de dízimos. Esta posi‑
ção de Nóbrega resultaria já de pressões exercidas pelo padre Luís da Grã para que
os jesuítas não aceitassem terras nem escravos. Com a Coroa a experimentar dificul‑
dades financeiras, os inacianos tiveram que optar entre expandir o ritmo da activi‑
dade missionária (o que implicava grandes disponibilidades materiais e, portanto, a
aceitação de propriedades e escravos) ou recusar esses meios económicos e, conse‑
quentemente, prescindir do objectivo de expansão do seu âmbito de actuação. A
maioria dos jesuítas defendiam a primeira destas estratégias de actuação. O colégio
da Baía decidiu por isso aceitar todas as doações que lhe fossem feitas e requereu o
envio de escravos da Guiné por considerar inconveniente a posse de escravos da terra.
Existiam, portanto, duas correntes entre os jesuítas da província do Brasil. A encabe‑
çada por Manuel da Nóbrega, pragmática, considerando que a expansão da compa‑
nhia tornava necessário possuir bens e utilizar escravos; outra, representada por Luís
da Grã, privilegiando a pobreza e o ascetismo, recusando a possibilidade de a
Companhia aceitar bens de raíz e recorrer à utilização de escravos só aceitando
mesmo a contratação de trabalhadores em caso de grande necessidade. Sucedendo o
padre Luís da Grã no cargo de provincial, a orientação da Companhia foi bastante
modificada, pelo que Nóbrega expôs ao Geral da Companhia as suas divergências
relativas à posse de bens de raíz e uso de escravos. Nessa carta defende um ideal de
independência/auto ‑suficiência económica, nomeadamente face à Coroa, como base
da liberdade da sua actuação evangelizadora e insinua que “...fosse ... grande invenção do
inimigo vestir -se da santa pobreza para impedir a salvação de muitas almas.”6 A persistência de
diferentes pontos de vista manteve ‑se até 1568, data da reunião da congregação
provincial. Aí, foi deliberado que os colégios podiam (e deviam) adquirir os neces‑
sários escravos para seu sustento na falta de outros meios. Em 1576, o mesmo órgão
revogou mesmo a proibição de os jesuítas terem escravos índios. Temos, pois, que,
primeiro, o ideal de defesa do Índio visava primordialmente a sua evangelização e
não quaisquer valores de defesa étnico ‑cultural de um grupo ameaçado – valor que
6 Cfr. COUTO, Jorge O Colégio dos Jesuítas do Recife e o destino do seu património (1759 -1777), vol. I, Dissertação de
Mestrado em História Moderna de Portugal, apresentada pelo Dr. José Jorge da Costa Couto à Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1990, exemplar policopiado, pp. 221 e 222.
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95seria, no essencial, estranho à cultura e mentalidade coevas – segundo, que os Índios
não eram fundamentalmente considerados como indivíduos plenos (no sentido
jurídico, ético, mesmo afectivo do termo), na medida em que se permite a escravi‑
zação de alguns para custear economicamente a salvação de outros. O objectivo não
é, pois, ao menos prioritariamente, a salvaguarda dos seus direitos e interesses
enquanto indivíduos, ou sequer como grupos, mas sim alcançar a conversão e pos‑
terior manutenção na fé do maior número possível de ameríndios. Também não está
em causa uma defesa intransigente da identidade cultural ou étnica do ameríndio,
na medida em que a redução será o principal agente, numa primeira fase, do estiolar
daquela identidade. Do mesmo modo, o princípio anti ‑esclavagista não está, como
vimos, essencialmente presente enquanto valor ‑chave – o que seria igualmente estra‑
nho aos valores ainda actuantes na generalidade das consciências da época. A funda‑
mentação desta aceitação da escravatura traduziu ‑se na aceitação do parecer da Junta
de Burgos que, em 1511, para facilitar e legitimar a entrada de negros na América
espanhola, adoptara o pressuposto de que todos os africanos traficados já tinham o
estatuto de escravo nos seus países de origem. Opinião contrária professava o jesuíta
Manuel Garcia para quem nenhum escravo de África ou Brasil era justamento cativo,
recusando confessar os seus proprietários, incluindo padres do colégio da Baía.
Idêntica contestação por Gonçalo Leite, originando actos de hostilidade para com a
Companhia e perturbações entre os inacianos. Nos dois casos a solução foi idêntica
– ordem para regressar ao reino por inadaptação. Na resolução desta polémica terá
tido significativo papel a publicação do De Iustitia et iure de Luís de Molina no qual
abordava a problemática da escravatura. A longa convivência da Igreja católica –
desde os seus primeiros momentos – com a escravatura terá contribuído para a sua
legitimação. Mas no plano concreto da situação americana e brasílica, a noção de que
a presença de escravos africanos contribuía para a rarefacção das operações de escra‑
vização dos Índios, a consciência da necessidade vital de importação de mão ‑de ‑obra
escrava para a economia colonial e sobrevivência das actividades de missionação do
Índio (ou da maior parte possível deles) levou a maioria dos jesuítas a aceitar a pre‑
sença de escravos, maioritariamente negros, nos seus estabelecimentos e unidades
produtivas. Ainda neste caso pugnaram por promover a catequização dos negros,
pela criação de normas de conduta dos senhores face aos escravos, suavizantes da sua
situação, e pela defesa dos seus direitos espirituais. Vemos, pois, sempre presente, o
fundamental desígnio espiritual (submetendo ‑se o ideal temporal àquele fim espiri‑
tual). Deste modo, a Companhia de Jesus optou pela sua integração no sistema pro‑
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96 dutivo mediante a aceitação e aquisição de bens de raíz e mão ‑de ‑obra escrava,
produzindo para o mercado ( geralmente com uma gestão, inovação e rendimento
ímpares ) com a finalidade de obter os recursos necessários a financiar as actividades
missionárias, o funcionamento dos estabelecimentos de ensino e obras assistenciais,
construção e embelezamento (tido como estratégia eficaz de evangelização/fideliza‑
ção) de igrejas, colégios e residências. Por este processo a Companhia de Jesus acu‑
mulou no Brasil um enorme património constituído por propriedades rústicas e
urbanas, engenhos, fazendas de gado, olarias, boticas, num valor total, à data da sua
expulsão, que excedia os 1000 contos. A grande questão que se coloca (geralmente
distorcida) é a de que qualquer instituição (inclusivé do foro religioso) necessita
para o exercício que se atribui (e que a sociedade lhe atribui) bem como para a
fidelização de aderentes que implica a sua condição de instituição (logo, que procura
instituir uma ordem no social) necessita, dizíamos, de uma base material que lhe
confira operatividade. Com todas as divergências e debate, interno e externo à
Companhia de Jesus, a escravatura era um dado cultural do século XVIII e a
Companhia fazia parte dele. Pretender algo de diferente ao nível da actuação da
Companhia seria buscar uma imagem viva e actuante dos Puros dos Puros que é parte
da imagética da Cidade de Deus mas não da dos Homens. A actividade educativa e
cultural da Companhia, geralmente elogiada (exceptuando os seus métodos) mesmo
pela maioria dos críticos passou, assim, também, pela base do trabalho escravo. Do
mesmo modo, a evangelização, missionação e resgate de almas – expressão que julga‑
mos exemplarmente expressiva do sistema filosófico e do plano de actuação da
Companhia. Importa ter em mente este enquadramento para compreender o alcance
do Directório dos Índios do Grão Pará e Maranhão, na medida em que o estatuto
daquele grupo étnico foi um dos pontos fulcrais da vida da colónia (e mesmo da
nação independente).
Antecedentes e condicionantes Temos presente, quando realizamos este pequeno estudo,
enquadrado pelo “Directório dos Índios do Pará e Maranhão”, que para procurar
compreender os seus fundamentos, pertinência epocal e conjuntural, alcance
pretendido e consequências, próximas e remotas em sede da política interna e
externa portuguesa, importa, primeiro, analisar a condição do Índio ao longo do
processo colonial brasílico mas, sobretudo, integrá ‑lo na complexa e dinâmica
conjuntura económica, política e social do Brasil, de Portugal e, se quisermos
(e cremos que devemos querê ‑lo) mundial, num quadro de reordenamento
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97dos equilíbrios geo ‑estratégicos mundiais como é o final do século XVIII, pela
concorrência das potências europeias na expansão da sua área de influência em
termos de soberania e do político ‑económico. Neste sentido, afigura ‑se ‑nos
indispensável integrar o Directório em dois processos ‑chave. Primeiro, a evolução
do relacionamento jesuítico com os poderes espirituais e temporais. Segundo, a
inserção e perspectivação do Regimento no vasto plano político que marca o período
pombalino/josefino e a sua pertinência/intencionalidade quando confrontado com
as correntes político ‑ideológicas da época em que se insere.
Convém recordar a evolução de mentalidades que marca o século XVII e que
ficou bem patente na difusão, entre os países católicos, das ideias e ideais jansenistas
que propunham uma reforma da Igreja e do social que, simplificando, implicavam
o reequacionar do papel da Igreja ‑instituição e de Trento (em todo o seu alcance).
Mas o século XVII e a transição para o século XVIII) é também o século de Descartes,
Newton, Locke, da afirmação plena das línguas vernáculas, logo de inovações técni‑
cas e filosóficas que põem em causa o ordenamento mental dos séculos anteriores.
As posições da Companhia em disputas doutrinárias e conflitos de natureza temporal
granjearam ‑lhe a hostilidade de sectores sociais e intelectuais. Grotio e Hobbes redi‑
fundiam aspectos (e consequências práticas) das teses de Marsílio de Pádua, catali‑
zando (mas também expressando) a passagem de uma sociedade holística, hierár‑
quica e hierática, para os quadros de racionalidade e para o acelerar de um processo
de secularização (não de laicização) longo de séculos. A teorização e emergência do
Estado como instância primeira, ordenadora do social, é um dos produtos (mas
também agente) deste processo. Mas o Estado é feito (e faz -se) para agir sobre os
homens e o que de mais essencial ocorre é uma lenta, mas profunda, reconversão de
mentalidades. O combate às crescentes tendências para o fortalecimento do poder
real tornou a Companhia um alvo prioritário dos partidários do reforço do poder
espiritual. No que toca às relações com as instituições do domínio do espiritual
importa reter como conexos com a alteração de mentalidades (mas também com o
equilíbrio de poder entre instituições e formas de poder no campo internacional) a
questão dos ritos chineses e do Malabar. O evoluir da conjuntura internacional con‑
tribuiu para criar uma imagem dos inacianos como ultramontanos (com toda a carga
que tal facto tinha num quadro de afirmação dos nacionalismos e dos Estados),
pedagogicamente conservadores (defensores da metodologia e categorias epistemo‑
lógicas e conceptuais escolásticas, bem como da autoridade dos antigos – e do pró‑
prio princípio de autoridade no campo epistemológico quando se difundia o expe‑
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98 rimentalismo). Igualmente como dissimulados, obstrucionistas e rebeldes às ordens
do Papa, quando julgavam o seu cumprimento atentatório dos interesses da
Companhia. Este último aspecto era particularmente grave numa instituição que
visava inculcar nos seus membros a imagética e a prática do soldado de Cristo obe‑
diente ao trono de Pedro na defesa da fé e da ortodoxia. Diga ‑se que tal imagem
monolítica ficava também comprometida quando na Europa os seus membros se
apresentavam como campeões da ortodoxia e, na Ásia e América, contemporizavam
com os usos e costumes locais como forma de conseguir maior número e mais rápi‑
das conversões. De certa forma (numa determinada leitura política dos factos, à
época com acolhimento no círculo de poder mais restrito, erigido, em Portugal, em
torno de D. José e do Marquês de Pombal, bem como noutras cortes europeias) a
Companhia transformara ‑se numa Igreja dentro da Igreja, dotada de enorme poder
espiritual, político (pelo papel que desempenhava no ensino e junto dos meios
influentes) e económico (como sustentáculo da expansão e manutenção da sua
acção). Algo que tinha que desagradar à Igreja pós ‑tridentina com o seu ideal hie‑
rárquico e uno, centralizado em Roma, às outras instâncias e organizações do reli‑
gioso católico, aos estados em afirmação, mesmo a núcleos e classes sociais.
No caso português, todos estes fenómenos que referenciámos estão presentes
v.g. na crescente aceitação e expansão da Congregação do Oratório como instância
alternativa, educativa e formadora de consciências, traduzindo ‑se em divergências
filosóficas, políticas, pedagógicas e mesmo de articulação com grupos sociais.7
Acabaram por se combater fortemente, ao longo da maior parte do século XVIII,
com base em questões filosóficas, pedagógicas e filológicas.
Mas a crise jesuítica com o Estado em Portugal ganha uma outra dimensão com
a complexa situação introduzida com o Tratado de Limites de 1750. Sem que caiba
a este estudo traçar os acontecimentos que marcaram esta fase da política ibérica, é
forçoso realçar alguns factos na medida em que eles fundamentaram e contribuíram
para concitar forças dos equilíbrios futuros, nomeadamente, do Estado face à
Companhia de Jesus. O Tratado de Madrid reconhecia a soberania portuguesa em
grande parte da Amazónia, no Mato Grosso e zona litoral até Castilhos Grandes.
Portugal cedia definitivamente a Colónia do Sacramento. Tendo ‑se decidido seguir o
7 Os Jesuítas, mais próximos da casa real e das elites dirigentes, os oratorianos das camadas médias da popu‑
lação.
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99princípio de utilizar as barreiras naturais para efectuar as demarcações, ficou estabe‑
lecido que a Espanha cederia a Portugal os territórios compreendidos entre a mar‑
gem do rio Ibicuí e a zona oriental do rio Uruguai. Nessa região situavam ‑se sete
aldeias de Índios dirigidas por jesuítas que deveriam ser evacuadas, entregando ‑se à
Coroa as igrejas, residências, outros edifícios e a propriedade da terra. Os guaranis
que aí estavam aldeados podiam levar todos os seus bens móveis. As sete reduções
pertenciam à Província do Paraguai da Companhia de Jesus. No prazo de um ano os
inacianos deviam retirar ‑se com os cerca de 30 000 Índios das povoações. Seis outras
reduções perderiam as estâncias de gado que possuíam a Este do rio Uruguai. Como
compensação, a Coroa espanhola ofereceu aos guaranis desalojados novas terras,
isenção de impostos por dez anos e uma indemnização de 4000 pesos por redução.
A divulgação das claúsulas do Tratado de Madrid provocou na América espanhola
intensas reacções negativas por parte de autoridades civis, eclesiásticas e, sobretudo,
dos Índios e dos jesuítas. Com efeito, os guaranis e os seus missionários eram inimi‑
gos irredutíveis dos Portugueses devido às numerosas investidas dos bandeirantes
paulistas ao longo do século XVII.8 A aplicação das disposições do Tratado provocaria
uma significativa perda de território pela Província do Paraguai e a perda de sete das
trinta reduções inacianas. Procuraram, por isso, impedir tal facto, enviando repetidas
representações à corte de Madrid, solicitando a inobservância da entrega da margem
oriental do Uruguai a Portugal.
Apesar de discordar da opção geo ‑estratégica portuguesa que presidira à aceita‑
ção das condições do Tratado de 1750, Carvalho e Melo, ao assumir as funções de
Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Gente de Guerra, tinha como
assunto mais importante em mãos a execução daquele Tratado. Para prevenir a even‑
tualidade de surgir resistência à entrega da região dos Sete Povos, fez aprovar um
convénio adicional secreto em que os dois governos ibéricos se comprometiam a,
no caso de resistência dos guaranis, usarem conjuntamente a força para promover a
evacuação da zona.
Enquanto os representantes das duas Coroas ibéricas se aprestavam para executar
o Tratado, os jesuítas desenvolviam intensas diligências no sentido de obstar à entre‑
ga dos territórios que tutelavam. Primeiro, procuraram convencer o governo espa‑
8 Desde 1610 que os jesuítas aí desenvolviam trabalhos de evangelização conseguindo, com grandes esforços,
criar uma extensa rede de missões. Funcionavam em regime comunitário, desempenhando os padres papel
preponderante ao nível da direcção espiritual e temporal dos Índios.
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100 nhol de que a cedência das reduções colocaria em causa a salvação espiritual dos
Índios e os interesses da Coroa. No mesmo passo concitaram os esforços de Francisco
de Rávago, confessor do rei, no mesmo sentido. Face à oposição dos missionários
americanos, o gabinete de Madrid solicitou ao Geral da Companhia de Jesus que
diligenciasse no sentido de convencer os inacianos da Província do Paraguai a pro‑
mover a retirada pacífica das Sete Reduções. Apesar das ordens expressas do Geral da
Companhia e do seu representante na América, os missionários não se conformaram
com as deliberações régias e dos seus superiores. Não conseguindo persuadir Madrid
à renegociação do Tratado com Portugal (o que não desagradaria a Carvalho e Melo)
que lhes permitisse permanecer na região dos Sete Povos, passaram a contestar a
própria validade moral do Tratado de Madrid – salto qualitativo de extraordinária
importância. Discutiam e contestavam agora a legitimidade de um acto de Direito
Público Internacional com base na falta de protecção do rei aos seus deveres para
com os vassalos – os Índios – pelo que lhes assitiria o direito de resistir legitima‑
mente à aplicação de um Tratado com bases jurídicas e morais inválidas, em violação
dos princípios do direito natural.9 O comissário jesuíta enviado para assegurar a
observância do Tratado foi permanentemente coartado de poder e as interferências
nas suas diligências sucederam ‑se. Quando chegou ao território das reduções, o
padre Strobel iniciou uma visita aos Sete Povos aconselhando os párocos a que colo‑
cassem as maiores dificuldades na efectivação das medidas para retardar indefinida‑
mente a sua aplicação. Escreveu mesmo ao Geral da Companhia informando que o
comissário não deveria deslocar ‑se àquelas aldeias porque correria perigo de vida.
Com a sucessão dos acontecimentos o comissário convenceu ‑se de que a resistência
dos Índios se devia à influência dos missionários (comunicou ‑o ao Geral Visconti)
na esperança de que Fernando VI anulasse o Tratado com Portugal. Entretanto
espalhou ‑se o boato de que o comissário era português pelo que queria retirar as
terras aos guaranis e este foi expulso de São Miguel com ameaças de morte. Este
escreveu para Roma a sugerir o envio de 2000 homens de armas para amedrontar os
índios e compeli ‑los a abandonar a região. No início de 1753, um dos grupos luso‑
‑espanhóis que efectuava a delimitação da fronteira na região meridional viu a pas‑
9 Pela ilegitimidade do Tratado, assumiam a ilegitimidade e invalidade de todas as medidas decorrentes – ordens
régias, dos superiores da Companhia e mesmo eventuais excomunhões papais. Na prática, punham em
causa a capacidade da monarquia espanhola dispor dos seus territórios, delimitar fronteiras, estabelecer
acordos internacionais e exercer soberania nas suas colónias.
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101sagem bloqueada em Santa Tecla. Decidiu ‑se o início dos preparativos militares. A
resistência militar de algumas reduções guaranis, apoiada pelos seus missionários
que nunca saíram das missões, contrariamente a todas as ordens recebidas, criou em
Espanha e, de um modo geral, na Europa, a convicção de que os inacianos estavam
a recorrer a todos os meios para conservar o domínio temporal sobre os Índios,
beneficiando das riquezas da região.10 A determinação de Fernando VI e dos seus
novos colaboradores no cumprimento do tratado retirou argumentos a Lisboa para
a sua renegociação, tornou claro que a solução do problema seria de natureza militar
e tornou irreversível o processo de ruptura entre a Coroa espanhola e os jesuítas
americanos. A 10 de Fevereiro de 1756 os exércitos de Freire de Andrada e D.
Joaquim de Viana aniquilaram a resistência guarani na batalha de Caiboaté perto da
redução de S. João. A resistência à evacuação das missões esteve na base das ordens
da Coroa espanhola para reduzir ao mínimo a presença dos inacianos na região pla‑
tina e, assim, o estiolar das florescentes reduções jesuíticas do Paraguai. Note ‑se que
a decisão do novo Geral de renovar o mandato do Provincial do Paraguai foi muito
mal recebida em Madrid, sendo interpretada como prova de reconhecimento e apro‑
vação, pela instância máxima de poder da Companhia em Roma, do comportamen‑
to rebelde dos missionários americanos.11
Na prática, porém, os Sete Povos só foram entregues em 1801. A resistência dos
Índios guaranis, armados pelos jesuítas, causando a guerra guaranítica, provocou a
anulação do Tratado de Madrid e a sua substituição pelo de El Pardo em 1761. Em
Portugal a maior evolução provocada por este embate sul ‑americano foi o recrudes‑
cimento da campanha anti ‑jesuítica. Os inacianos foram acusados de terem impedi‑
do a demarcação na América meridional e Amazónia, não fornecendo os Índios
necessários e adequados à expedição do demarcador naquela área, Francisco Xavier
de Mendonça Furtado, Governador do Pará e irmão de Carvalho e Melo. É significa‑
tivo, face à data de assinatura daquele tratado, que os jesuítas fossem expulsos em
10 As repercursões destes acontecimentos foram extraordinariamente negativas para a Companhia e contribuí‑
ram para o acentuar das críticas ao excessivo poder temporal dos jesuítas.11 O curso dos acontecimentos relativos às sete Missões tornou claro para Madrid a existência de um Estado
quase ‑autónomo nos seus domínios sul ‑americanos, dotado de uma lógica própria e esquivo à admissão
de interferências das esferas de poder diocesano, bem como às ordens das autoridades régias. Associado à
sua capacidade de mobilização das populações contra o Estado, deu azo à efectivação de toda uma estra‑
tégia para eliminar os focos de autonomismo do vice ‑reino do Prata, conduzindo à expulsão geral de 2
de Abril de 1767.
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102 1759. No entanto, o Tratado de San Ildefonso consagrou as linhas de demarcação de
Madrid que, no essencial, são as mesmas que ainda hoje definem o alcance da sobe‑
rania do Estado brasileiro. Note ‑se que neste processo de delimitação de soberania(s)
o governo josefino adoptou uma política sistemática de materialização da presença
nacional, pela sistemática fortificação das zonas estratégicamente mais importantes
das possessões sul ‑americanas.12
As instruções públicas e secretas dirigidas a Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, quando encarregado como governador e capitão ‑general do Estado do
Maranhão como governador e capitão ‑general do Estado do Maranhão e Grão ‑Pará,
podem ser interpretadas como o começo de um programa de governo específico
para o Brasil, com o estabelecimento de metas de fortalecimento da sua economia,
promoção da defesa territorial e um esforço de ocupação das regiões do Norte. O
seu modelo operativo é o de uma tutela exercida pelo Estado, regulando as relações
de trabalho entre Índios e colonos e incorporando um plano de povoamento. É na
sua decorrência que podemos entender o Directório assinado a 3 de Maio de 1757 por
Mendonça Furtado e vendo as suas directrizes aprovadas por força do Alvará de 17
de Agosto de 1758. Aplicado primeiro ao governo das povoações indígenas do Norte
e, depois, recomendado como expressão única do comportamento do colonizador
em relação aos Índios do Brasil, o Directório foi lei geral até à sua extinção pela carta
régia de 12 de Maio de 1798. Começou a ser escrito a partir das primeiras instruções
de Sebastião José de Carvalho e Mello ao seu irmão, governador do Grão ‑Pará,
Mendonça Furtado, representante plenipotenciário dos interesses da monarquia por‑
tuguesa, governador do Estado do Maranhão e Grão ‑Pará e supervisor da execução
do Tratado de 1750. O Directório surgia da necessidade de dar resposta a situações em
que havia falhado o regimento de 1686 (formulado com base nas doutrinas de
António Vieira e nas experiências de missionação no século XVII, centradas em torno
de disputas com os colonos pela administração dos Índios) e outra legislação, res‑
pondendo à procura da força de trabalho indígena em áreas em que se apresentava
como a única disponível. Neste sentido, é articulável com a Bula de 20 de Dezembro
de 1741 (expedida pelo Papa Bento XIV e publicada pela diocese do Pará em 29 de
12 Das Comissões de Demarcação de Limites do Norte e do Sul faziam parte engenheiros, militares e astróno‑
mos realizando o levantamento geográfico e cartográfico das mais reconditas regiões brasílicas. Com base
nesses dados foi concebido o plano de construção de uma malha de fortificações, assegurando a soberania
em regiões estratégicas vitais e/ou potenciadoras de conflitos. No mesmo sentido, as reformas orgânicas,
funcionais e logísticas das forças militares no terreno.
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103Maio de 1757), a lei de 6 de Junho de 1755 (que tem por objecto a liberdade dos
Índios) e a lei de 7 de Junho do mesmo ano (relativa à secularização das aldeias),
tendendo, em conjunto, a reconhecer o Grão ‑Pará como um Estado indígena.
Surgido dois anos após a lei de 6 de Junho de 1755 (que restituía a liberdade dos
Índios) e da lei de 7 de Junho de 1755 (que excluiu os missionários do poder tem‑
poral da sua administração), em ambas objectivando ‑se a emancipação plena do
Índio, o Directório (a que é dado o cunho de lei pelo Alvará de 17 de Agosto de 1758)
pode ser visto como elemento disciplinador dos efeitos emancipadores da aplicação
da lei de 6 de Junho, para que atendesse aos propósitos da colonização.
O contexto O novo grupo dirigente resultante do chegada ao poder de D. José em
Portugal, propunha ‑se três grandes objectivos. A aplicação prudente e ponderada
do Tratado de Madrid, garantindo a salvaguarda dos interesses portugueses; a
reorganização, reforço e alargamento do poder do Estado no sentido da submissão
das autonomias regionais e privilégios de grupo; o reenquadrar da política externa
à luz da crescente confrontação entre a França e a Inglaterra pela hegemonia entre
as potências europeias (com as suas dependências coloniais). Estes objectivos
político ‑programáticos implicavam a assunção de um ideal de alargamento dos
quadros sociais, criação de instituições fiscais, judiciais, administrativas, militares
e económicas. Tal alargamento de funções de Estado constituia ‑se como reacção à
nova realidade de concorrência global inter ‑Estados, dotando ‑o do poder passível de
disciplinar os grupos sociais, submeter instituições autónomas (no caso português
com realce para a Igreja, Inquisição e Companhia de Jesus), assumir novas, mais
vastas (mas, também, mais exigentes, material e organizativamente) funções ao nível
do económico, cultural, educativo e mesmo religioso.13 Sob a égide das reformas
13 É com base neste quadro que encontramos a frequente classificação do período em Portugal como cor‑
respondendo ao despotismo esclarecido, conceito sobre cuja operacionalidade no tempo e espaço em
apreço não nos pronunciaremos, mas que, para além de toda a classificação que evoque similitudes com
fenómenos extra ‑nacionais, se caracterizou por um processo de concentração dos poderes temporal e
espiritual nas mãos do soberano (com restrição dos poderes de certas casas nobres e ordens religiosas),
alicerçado no primado teórico do direito natural e, concomitantemente, da lei como instância sacral
reguladora e instituidora da realidade político ‑social querida pelo monarca, em ordem à crescente con‑
flituosidade internacional e à defesa dos interesses nacionais em tal quadro. Note ‑se, no entanto, que e.g.
o conteúdo regalista do despotismo esclarecido português não era uma novidade em Portugal, apesar de
se desenvolver fortemente neste período, quer por reacção às evoluções externas, quer como factor de
equilíbrio face ao enfraquecimento do poder do Estado e surgimento de instâncias intermédias de poder
que caracterizou o governo joanino.
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104 pombalinas, a política colonial portuguesa para com as colónias (em especial o
Brasil) sofre uma modificação sensível, embora se mantenham as linhas mestras
da política mercantilista. Sob o impacto da crise que atinge o Império português14
a política colonial seguida face ao Brasil, articulando ‑se com a política instaurada
na metrópole, revela a influência da ilustração com todo o seu aparato conceptual,
imagética, valores, mas, sobretudo, vectores ‑chave estruturantes do mental.15
14 Conjuntural e estrutural ao mesmo tempo, mas também síncrona de um importante momento de reconver‑
são civilizacional em que se definem novos rumos globais no seio de algumas das principais potências
europeias. 15 De facto, a crise resultava da própria estrutura e funcionamento colonial instaurado como estava, já que
ao acelerar o processo de acumulação primitiva de capitais, o sistema colonial gerou as condições
(somando ‑se a outros factores como a técnica ou a simples capacidade de inovação) para a passagem
do capitalismo dominado pela acumulação mercantil, para o capitalismo industrial nos núcleos direc‑
tores do sistema colonial internacional. O país paradigmático da execução deste processo de profunda
transformação civilizacional foi a Inglaterra, operando a passagem da manufactura à produção baseada
na máquina ‑ferramenta, encontrando a base económica para tal no mercado mundial e especialmente
colonial. Ao processar ‑se esta evolução, peças essenciais do anterior sistema coloial, como o sistema de
monopólio e a escravatura, tornaram ‑se obstáculos insuportáveis para a assunção plena de um tal sistema
sócio ‑económico – uma produção e a extensão do capital à escala mundial. Colocava ‑se, assim, em causa,
o sistema colonial assente no capital mercantil. Os problemas de Portugal na tentativa de seguir aquele
novo rumo da industrialização, começavam com a (in)disponibilidade de capitais (e logo de procura)
suficientes para a sustentar na metrópole e colónias, mas também, na difícil gestão política das reformas
indispensáveis à concretização daquele objectivo, mas sem que tal implicasse o estilhaçar do edifício
social português. Pretendeu ‑se, assim, conseguir a integração dos mercados no plano interno, colonial e
externo, bem como uma tentativa de harmonização da política mercantil em ordem aos novos objectivos
(operando por meio das Companhias de comércio privilegiadas), a integração do sector produtivo indus‑
trial e agrícola metropolitano no sector agrícola colonial. No entanto, e no que toca ao Brasil, o trabalho
escravo tinha na sua base uma imperiosa necessidade prática – a angustiante carência de mão ‑de ‑obra
desde o início sentida por Portugal (aliás, desde o início da constituição do Império) e particularmente
sensível num domínio de dimensão continental como o Brasil. Desde D. João V que a salvaguarda, defesa
e administração da colónia era um terrível encargo para Lisboa pelas desmedidas proporções territorias
que alcançara. Para tal muito contribuiram as acções paulistas de caça ao Índio e prospecção metalífera,
a expansão da criação de gado no sul da colónia e nordeste, bem como a acção missionária, predomi‑
nantemente jesuítica, na Amazónia. Com efeito, a rica região fluvial paraguaio ‑uruguaia e a maior parte
da Amazónia não despertavam grande interesse nas suas metrópoles, ficando a presença europeia quase
exclusivamente entregue aos esforços maioritariamente jesuíticos de catequização e actividade económi‑
ca em áreas de forte presença indígena. Só em meados do século XVIII esses espaços serão valorizados
com base em considerações de natureza geopolítica e de alternativa/massificação do sistema económico.
Para aquilatar o grau de rarefacção da presença de Brancos em muitas das áreas teórica ou hipoteticamente
senhoriadas pela Coroa portuguesa basta recordar que, em fins do século XVIII, entre as regiões ainda
não penetradas pelos colonizadores, se encontravam toda a margem oriental do rio Tocantins, bem como
as cabeceiras da capitania do Maranhão. Nas capitanias centrais e do sul havia ainda imensos territórios
ocupados por índios bravos. A região intermédia entre a capitania de Minas Gerais e o sul da Baía, bem como
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105Carvalho e Mello atribuía os problemas do País ao estado de dependência semi‑
‑colonial face à Inglaterra. O ouro do Brasil tinha sido quase totalmente absorvido por
aquela potência e Portugal pouco lucrara com isso. Uma das metodologias de actuação
contra a influência inglesa (sem levar ao confronto pleno pela inobservância de claú‑
sulas de tratados) consistia na utilização dos poderes discricionários do governo nas
colónias para desviar as vantagens dos poderosos grupos comerciais estrangeiros para
os operadores económicos nacionais. Neste sentido, os primeiros anos do poder pom‑
balino caracterizam ‑se por uma intensíssima produção legislativa visando instituir
novos modos de operacionalidade à vida nacional, bem como, regulamentar os novos
enquadramentos. Neste sentido, o Brasil com o seu formidável peso na vida económi‑
ca do Império no período histórico em apreço, foi um dos objectivos prioritários do
legislador, até atendendo à ideologia económica subjacente ao processo – o mercanti‑
lismo comercial e industrial. Foram instituídas inspecções nas principais cidades por‑
tuárias para fiscalizar os preços dos principais produtos de exportação – açúcar e
tabaco. Em 1755 ‑56 foi criada uma companhia monopolista para o Grão ‑Pará e
as zonas fronteiriças com as capitanias do Espírito Santo, Rio de Janeiro e S. Paulo, eram ainda pouco
conhecidas e povoadas por numerosos grupos tribais de índios bravos. Dos grandes rios só as margens mais
próximas tinham sido descobertas. Logo, nas áreas onde o colonizador branco não chegara ainda, eram
as tribos índias que senhoreavam a região, autonomamente e segundo os sistemas tradicionais de com‑
posição social e económica (realizando, ocasionalmente, incursões nas terras e povoações coloniais) ou
enquadrados pelas comunidades missionárias em que avultavam os jesuítas. É neste contexto que, aqui
como v.g. no Oriente, se procuram definir as áreas de influência e preencher os vazios geográficos. É,
também, nesta conjuntura internacional e interna ao Império português e à situação na América do Sul,
que podemos perspectivar mais correctamente o objectivo político de combater o domínio espanhol que
ameaçava no Sul e das grandes potências europeias a Norte, com a necessária ocupação demográfica e eco‑
nómica, contando para tal com a população branca e índia para afastar as pretensões alheias. Neste sentido,
surge mais fortemente a noção do domínio temporal da Companhia de Jesus (instituição com âmbito de
acção internacional, supranacional) sobre importantes núcleos indígenas em regiões fronteiriças, como
um risco de alienação de soberania, começando os Jesuítas a ser encarados (até face à guerra Guaranítica)
como culpados das usurpações territoriais e situação de domínio/submissão de que dispunham junto dos
Índios e da condição jurídica, social e económica em que aqueles viviam, qualificada v.g. por Pombal de
escravidão jesuítica. A inexistência da escravatura como solução de recurso para obstar à absoluta carência de
mão ‑de ‑obra era, aliás, uma fórmula de salvaguarda da própria lógica do sistema colonial. A abundância
de terra poderia levar os colonos a produzirem para a própria subsistência, transformando ‑os em peque‑
nos proprietários. O sector exportador teria por isso de assalariar a força de trabalho livre e remunerá ‑la
acima das expectativas económicas de lucro no sector de subsistência. Neste caso a inflação salarial seria
de tal ordem que o próprio sistema colonial ficaria em causa ao não mais permitir a acumulação de capital
pela burguesia mercantil. O trabalho escravo foi, pois, o meio indispensável à eficácia de um processo de
acumulação de capital que, no caso português, era particularmente importante pela natureza triangular
dos fluxos económicos coloniais do Império.
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106 Maranhão e decretada a expulsão do Brasil de todos os comissários volantes, caixeiros
viajantes que tinham invadido a colónia como agentes comissionistas das empresas
comerciais estrangeiras instaladas em Lisboa, na sua maioria inglesas. A instituição da
Companhia privilegiada, baseava ‑se na proposta do governador do Grão Pará e
Maranhão, em Janeiro de 1754, de criação de uma Companhia Geral de Comércio
Nacional que assegurasse o fornecimento de escravos negros destinados ao cultivo das
terras improdutivas e ao trabalho das minas do Mato Grosso.16 A escolha de tal região,
importante núcleo de actividade missionária jesuíta e palco de violentas disputas entre
os Índios (enquadrados por aqueles) e os colonos, amplificou as consequências das
tentativas de Carvalho e Melo para centralizar e integrar o sistema luso ‑brasileiro. A
Companhia estimularia os interesses comerciais nacionais e esperava ‑se que, pela con‑
cessão de privilégios e protecções à produção e comércio, se verificasse suficiente
acumulação de capitais que permitisse a concorrência com os operadores estrangeiros.
16 Com efeito, o principal obstáculo à ampliação das áreas agrícolas na região norte residia na extrema carência
de mão ‑de ‑obra que aí se verificava. Essa sugestão encontrou acolhimento em Carvalho e Melo, na medida
em que permitiria combater o contrabando francês nessas áreas, aumentar e acelerar a velocidade de cir‑
culação monetária na região, promover a integração daquele Estado (pelos condicionalismos de navegação
no Atlântico, desenvolvendo ‑se até tarde quase em circuito fechado face ao Estado do Brasil) nos circuitos
económicos atlânticos, agindo como agente de aquisição dos indispensáveis escravos africanos, exportação
das produções locais para o reino, reexportando ‑as para nações estrangeiras e praticando a importação de
mercadorias metropolitanas e estrangeiras. O esperado ressurgimento económico permitiria um acrésci‑
mo das receitas fiscais (uma das linhas de força programáticas do governo de Carvalho e Melo, dotando
o Estado dos meios necessários à prossecução e intensificação das políticas de povoamento, fortificação e
reconhecimento – geográfico, científico e das potencialidades económicas – da região amazónica). A prática
de concessão de monopólios constituir ‑se ‑ía, ainda, como incentivo à construção naval (a par de outras
medidas legislativas) e à marinha mercante nacionais, facilitando a constituição de grupos económicos
que dispensassem a presença de operadores estrangeiros nos circuitos económicos comerciais portugueses.
Sumariamente, podemos dizer que a Companhia, ao longo dos seus quase 33 anos de existência, contribui
fortemente para aumentar o volume e valor global das exportações do Estado do Grão Pará e Maranhão,
promover a qualidade da produção estadual e diversificar as produções locais agindo como catalizador
do arranque económico da região. Refira ‑se que a sua constituição se integrava no projecto de reforço do
Estado e no conexo desígnio de expulsar as outras potências das redes comerciais nacionais. Neste senti‑
do, o facto de a Companhia só dever obediência ao rei e a constituição da Companhia de Pernambuco e
Paraíba e da Companhia das Vinhas do Alto Douro. Note ‑se que os particulares tinham o direito de vender
por conta própria, embarcando os seus produtos nos navios da Companhia, na prática, um direito utópico,
na medida em que, quem monopolizava o transporte, poderia impor a sua vontade. Os benefícios desta
política assentaram, em grande medida, na alta dos preços (decorrente do afluxo ao mercado europeu do
ouro brasileiro e da prata mexicana, sobretudo de 1736 a 1740 e de 1751 a 1755), mais sensível ao nível
dos bens agrícolas. Com base neste condicionalismo conjuntural favorável (e correcta leitura e pertinência
das medidas adoptadas pelo poder político), se explica o ressurgimento agrícola da região.
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107Face às ocorrências relativas aos Sete Povos, a que aludimos, Lisboa acreditava (ou
parecia acreditar), cada vez mais, na existência de uma coligação de interesses congre‑
gando os jesuítas, os ingleses e os comerciantes desapossados, instituindo ‑se como uma
ameaça a toda a sua política. No entanto, com a nova definição de fronteiras e a maior
consciencialização do valor estratégico e (a prazo) económico do domínio do interior
do Brasil seria inevitável que o grande complexo de missões jesuítas, portuguesas e
espanholas, do Amazonas ao Prata, fossem cada vez mais lidas pelo poder civil como uma
ameaça para ambas as potências ibéricas. As autoridades portuguesas tinham especiais
motivos para não confiar naquelas missões já que, nos últimos anos da década de 40 do
século XVIII, os jesuítas, sitos em territórios portugueses e espanhóis (no plano do
direito internacional que não pela jurisdição efectiva, no terreno, dessa soberania),
tinham colaborado numa tentativa de impedir os Portugueses de assumir o domínio da
importantíssima passagem do Guaporé e do Paraguai. Portugal recearia especialmente a
potencial aliança dos jesuítas portugueses e espanhóis contra os seus interesses.
Vimos já as condições internas e externas (ao Brasil e ao império português) que
colocam em situação as reformas pombalinas relativas ao Brasil. Neste território
importa reter a importância da concessão da licença de constituição da Companhia do
Grão Pará e Maranhão mas, também, as importantes reformas administrativas operadas
no sentido de adequar a divisão administrativa às prioridades definidas. Assim, a inten‑
sificação do povoamento, manutenção da integridade territorial e fomento das activi‑
dades económicas, indissociáveis como eram. Neste sentido, a divisão do estado do
Grão Pará e Maranhão em dois governos, com sede em Belém e em São Luís, este na
dependência daquele.17 No mesmo sentido de assegurar a presença soberana do
Estado, a reforma da justiça, v.g. pela criação de Juntas em todas as cidades ou vilas
17 Saliente ‑se a inversão hierárquica, no plano administrativo, entre os centros do norte brasílico, expressão da
crescente relevância económica e estratégica da região amazónica para a Coroa, particularmente em face
do projecto político josefino. Pela extraordinária vastidão da área do estado do Grão ‑Pará, com entraves à
eficácia governativa e administração de justiça – sede primeira de qualquer pretensão de soberania efec‑
tiva – foi mesmo – em 3 de Março de 1755 – criada a Capitania subalterna de São José do Javarí (mais
tarde do Rio Negro) com sede em Barcelos (transferida mais tarde para Manaus). Note ‑se que em 1772
a administração régia optou pela extinção do Estado do Grão Pará e Maranhão, colocando as capitanias de
Maranhão, Pará, São José do Rio Negro e Piauí directamente sob a alçada de Lisboa. Refira ‑se ainda, um
outro domínio pelo qual o governo josefino operou uma transformação de competências administrativas
tendentes a uma reestruturação de protagonismos, modalidades e esferas de poder jurisdicional no Brasil
– a relativa extinção do poderio dos municípios v.g. na antiga (Baía) e nova capital (Rio de Janeiro) per‑
dendo a Câmara o direito de eleger os administradores da cidade e seu termo, bem como o poder fiscal.
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108 onde residissem ouvidores ‑gerais, para obviar às grandes distâncias (e consequentes
demoras processuais) a que se encontrava a maior parte dos núcleos populacionais
relativamente às sedes das relações (reforma que se operará num período posterior ao
da produção e aplicação do Directório). No plano fiscal, a tentativa de unificação e
centralização do fisco, a introdução do sistema de contabilidade de partidas duplas, a
separação funcional e orgânica da administração das rendas e jurisdição contenciosa
da contabilidade, finalmente, a redução ao mínimo dos contratos de arrecadação dos
réditos da Coroa (conduzindo frequentemente à opressão dos povos e à diluição da
presença soberana material da Coroa) e a transformação dos cargos da Fazenda Real de
vitalícios em amovíveis.
Temos, portanto, o quadro geral, os vectores do projecto político de um reinado,
o desenhar das recomposições e oposições em causa (interna e externamente).
Analisemos agora um momento, uma região e um objecto específicos – o Directório que
se deve observar nas povoaçoens dos indios do Pará e Maranhão de 3 de Maio de 1575 e o seu prin‑
cipal agente executor – Francisco Xavier de Mendonça Furtado.
Após a nomeação do irmão mais velho, Sebastião José de Carvalho e Melo, para a
pasta dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, foi indigitado para o governo do Norte
da América portuguesa,18 sendo nomeado para o cargo de governador e capitão‑
‑general do Estado do Grão ‑Pará e Maranhão.19 Mendonça Furtado viria a deixar uma
18 Como vimos, uma das áreas de acção prioritária para o projecto político josefino.19 Note ‑se que, para além da fidelidade aos princípios e objectivos josefinos, Mendonça Furtado conhecia bem
a situação da América portuguesa. Com efeito, fora oficial da marinha entre 1735 e 1749, participando
em 1736 na expedição destinada a socorrer a Colónia do Sacramento, então sitiada por forças espanholas.
Em carta de 2 de Dezembro de 1751 dirigida ao secretário de Estado dos Negócios do Reino, lamenta‑
va a miséria e confusão do Estado para cuja gestão fora empossado, defendendo a tomada de medidas
governamentais com carácter de urgência. Efectuou no princípio de 1752 uma vasta expedição de reco‑
nhecimento do território amazónico, durante a qual fundou a vila de S. José de Macapá com recurso a
colonos açorianos (desde o seu governo no Pará e Maranhão até às providências tomadas depois da ida
da Corte para o Brasil, registou ‑se uma colonização de origem açoriana que se achava ser a mais adequa‑
da ao desenvolvimento da agricultura), inspeccionou fortalezas e visitou aldeias indígenas ao longo dos
principais rios. Nesse mesmo ano, foi investido como plenipotenciário e primeiro comissário régio para o
Norte da América portuguesa, com a responsabilidade de execução na sua área das disposições do Tratado
de Madrid e do Convénio Adicional Secreto a que já nos referimos. A extensa Comissão portuguesa, que
levou dois anos a organizar, atingiu o seu objectivo – a aldeia carmelita de Mariuá – a 28 de Dezembro de
74, aguardando por dois anos a chegada dos comissários espanhóis, na realidade retidas pelos seus com‑
patriotas inacianos. No decurso dessa longa espera o governador experimentou deserções de indígenas,
escassez de víveres, demora no pagamento às tropas e insubordinação de alguns destacamentos. Por fim
regressou à capital do Estado em finais de 1756.
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109forte marca na região norte da América Portuguesa por força das reformas que patro‑
cinou e instituiu. Como já vimos, Mendonça Furtado encontra ‑se directa (através da
proposta da criação de uma Companhia Geral de Comércio Nacional) e indirectamen‑
te (através do apoio à elaboração, por alguns dos paraenses de maior prestígio, de uma
petição tendo em vista a constituição de um organismo privilegiado que fomentasse a
agricultura, o comércio e o povoamento da região) na origem da constituição da
Companhia Geral do Grão ‑Pará e Maranhão, cuja importância para a dinamização
regional já focámos. Por outro lado, desenvolveu, de acordo com os ditames da gestão
económica patrocinada pelo gabinete josefino, a divulgação e promoção das produções
paraenses num quadro de optimização e especialização da produção.20 Note ‑se que,
segundo a sua opinião, a importação de mão ‑de ‑obra escrava pela Companhia ‑Geral
seria o único expediente passível de impedir o contrabando que se fazia com os Índios
e o cativeiro a que eram injustamente sujeitos. A concessão de liberdade aos Índios
constituiu uma das vertentes prioritárias da sua actuação governativa.21 Na prática, a
fundação da Companhia contribuiu para atenuar as resistências dos colonos. No entan‑
to, e devido à sua ausência nas margens do rio Negro (no âmbito do aplicação do
Tratado de Madrid) por cerca de dois anos, não publicou a legislação régia relativa à
liberdade dos Índios senão em Fevereiro ‑Maio de 1757. Assim, foram publicadas, pri‑
meiro, a Lei da Abolição do Poder Temporal dos Regulares e, dominada a situação e
controladas as reacções dos religiosos, a da Liberdade dos Índios.
Durante o período josefino o Estado procurou promover os casamentos entre
brancos e índias por meio da lei de 4 de Abril de 1755. Por esta, declarava ‑se que os
brancos que realizassem tais casamentos não cometiam qualquer infâmia. Na verdade,
nas terras em que se instalassem seriam preferidos para as atribuições próprias ao seu
estatuto social e profissional, o que se estendia à sua descendência. A lei instituía ainda
proibição do tratamento social injurioso com base na distinção étnica dessas uniões e
sua descendência. Tal política, adoptada pelo governo Josefino, contrariava a política
racial até então seguida pelos jesuítas, tendente a preservar a população indígena da
miscigenação com os brancos, mas apoiando os casamentos mistos com os negros.
Recorde ‑se que pela lei de 1 de Abril de 1680 os Índios haviam sido declarados livres
20 Saliente ‑se quanto a este aspecto a promoção do café paraense.21 Aliás, de acordo com as Instruções régias, públicas e secretas para Francisco Xavier de Mendonça Furtado aprovadas por D. José
a 31 de Maio de 1751 e subscritas por Diogo de Mendonça Corte ‑Real, Secretário de Estado da Marinha
e Domínios Ultramarinos.
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110 mas, na prática, passaram a ser administrados, forma disfarçada de escravidão efectiva. Já
em 1741 o Papa Benedito XIV proibiu que qualquer indivíduo possuísse Índios como
escravos e os reduzisse a cativeiro sob qualquer forma. No entanto, quando se inicia o
governo josefino, a situação não estava clarificada, pese embora o facto de a metrópo‑
le sempre ter tido a preocupação de distinguir entre o tratamento dado aos negros e
aos Índios. O facto é que essas nuances e distinções instituídas pelo legislador não eram
geralmente aplicadas no terreno. Assim, o real estatuto dos Índios era extremamente
complexo, mutável e (muitas vezes) distinto das prescrições legais, civis e eclesiás‑
ticas. Em regiões como o Pará e o Maranhão, em meados do século XVIII, o escravo
africano ainda não fora introduzido e os colonos brancos contavam apenas com a mão‑
‑de ‑obra indígena para o desempenho das actividades económicas. Mendonça Furtado
pretendeu a passagem dos Índios de uma real situação de escravos para a de assalaria‑
dos elaborando uma tabela de remunerações. No entanto, a ideia da liberdade dos
Índios não foi abertamente defendida antes de se apresentar aos colonos brancos da
região a ideia, e consequente constituição, de uma Companhia de Comércio destinada
a trazer pelos preços mais acessíveis a necessária mão ‑de ‑obra escrava, no caso africana.
A este propósito é sintomático que o alvará de 7 de Junho de 1755 que criou a
Companhia do Grão Pará e Maranhão seja (também no plano cronológico) como que
uma medida complementar e propiciadora da implementação da liberdade dos Índios
que a lei de 6 de Junho de 1755 instituía. Por ela se reiterava a sua liberdade, procla‑
mada em 1680 (mas nunca efectivada), extinguia ‑se o estatuto de administrado
(podendo os Índios trabalhar para quem pretendessem) e impunha ‑se a libertação de
todos aqueles que fossem detidos como escravos. Há nesta lei um ponto particular‑
mente importante, pelo que significa de embate de perspectivas sobre a questão. A lei
remete para a prática frequentemente incentivada pelos jesuítas (sobretudo na capita‑
nia de S. Paulo) dos casamentos mistos entre Índios e negros escravos. A lei de 1755
concedia que os mestiços de Índios, nascidos de mãe negra, continuassem a ser con‑
siderados como escravos. Na prática, era uma forma de, no momento em que se dava
a liberdade aos Índios e mestiços de Índios com brancos, acentuar o repúdio por um
modelo de união que (sem ser praticado com intensidade igual por todo o Brasil) era
conotável com a prática jesuítica e implicava uma deterioração da situação jurídica (ao
menos comparativamente) dos indivíduos que se integrassem na categoria de mestiços
de Índios e negros.
Note ‑se que a prática jesuítica de tutelar os Índios reunidos em reduções implica‑
va um processo de desarticulação do seu sistema social e da sua cultura (em sentido
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111lato). Assim, Nóbrega nos seus Apontamentos defendia, já em 1558, a produção de uma
lei que, relativamente aos Índios, os proibisse de comer carne humana e guerrear sem
a licença do governador (se quisermos uma forma de impedir as guerras inter ‑tribais
e contra os colonos, mas também de os colocar sob a direcção da administração por‑
tuguesa e de os utilizar para os objectivos daquela). No mesmo sentido, a aplicação da
justiça régia, tanto no interior das comunidades indígenas como nas relações destas
com os colonos. A autorização para terem apenas uma mulher e obrigatoriedade de
utilização de vestuário (ao menos para os cristianizados), bem como eliminação dos
pagés (fórmulas de rompimento dos modelos de constituição do social e de materia‑
lização da tessitura social segundo significantes produzidos e reconhecíveis pela cultu‑
ra autóctone). Por último, a fixação dos ameríndios em aldeamentos, com a concessão
de terras para o cultivo e sendo ‑lhes vedado o nomadismo. No fundo, fórmulas que
permitiam a inclusão dos Índios na esfera de influência jurisdicional, mas também
cultural, europeia (no caso portuguesa), na óptica jesuítica, ao serviço da sua conver‑
são e cristianização do modo de vida; aos olhos do Estado, pretendendo ‑se uma incor‑
poração e enquadramento face aos princípios de soberania nacionais. Na prática,
também segundo o modelo preconizado por Manuel da Nóbrega, se dotava os agru‑
pamentos indígenas de uma nova organização social, neste caso aplicando ‑lhes o méto-
do de sujeição – o suave jugo de Cristo – sem os quais entendia ser toda a cristianização efé‑
mera. Com efeito, a visão antropológica que Nóbrega tinha do Índio era a de papel
branco no qual se poderia gravar a mensagem cristã (e para o facilitar também o modo
cultural e civilizacional do europeu). É em relação com aquele fim, e segundo a meto‑
dologia que realçámos, que Nóbrega defendia que deveriam ser tratados como próximo,
já que todo o Homem tinha a mesma natureza22, podendo consequentemente, ter
conhecimento de Deus e, assim, salvar a sua alma. Realce ‑se, portanto, o enquadra‑
mento deste posicionamento da Companhia quanto ao comportamento em face do
Índio e do favorecimento da mestiçagem conducente à assunção da sua condição de
escravo. Tal medida integra ‑se num sistema filosófico que privilegia a conversão ao
Cristianismo, incluindo para tal a reconversão dos modos civilizacionais originais e
que não privilegia a noção de liberdade terrena do indivíduo, mas sim a sua salvação
eterna. Assim, uma das linhas de força dos missionários, muitos deles jesuítas, era a
22 A argumentação teológica que servia de base a este estatuto jurídico era a de que possuíam alma porque
todos os Homens haviam sido feitos à imagem e semelhança de Deus sendo, desse modo, susceptíveis de
conversão ao Cristianismo.
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112 prédica da submissão dos contingentes índios e africanos à sua condição de escravo e/
ou tutelado, na medida em que a mensagem de Cristo não visava a liberdade terrena,
mas sim a salvação eterna. Por último, convém não perder de vista a justificação (ao
menos teórica, mas muitas vezes genuína) da utilização da mão ‑de ‑obra escrava e a
constituição da Companhia como muito importante agente económico no Brasil. Esta
inserção na temporalidade visaria sustentar a expansão da acção missionária da
Companhia. Deste modo, a condição jurídica diminuída do Índio, do escravo africano
ou do mestiço destas duas categorias, visaria, primeiro, uma maior tutela destes pelos
seus evangelizadores e um pôr dos olhos na Cidade Celeste e não na dos homens. Por
outro lado, permitia sustentar a continuação da Cristianização junto de outros indiví‑
duos. Uma lógica que, pouco a pouco, se distanciava dos modelos estruturantes mais
correntes. E uma lógica que, aqui e ali, terá assumido contornos de extrita e exclusiva
finalidade temporal. Note ‑se que a assunção da mestiçagem entre negro e Índio per‑
mitia, assim, a detenção de uma mão ‑de ‑obra abundante e altamente renovável, aten‑
dendo ao facto de os jesuítas deterem a tutela (espiritual e temporal) de importantes
contingentes de ameríndios. Todo um sistema que, em conclusão, era antitético das
concepções filosóficas em emergência na sociedade ocidental e que, ao mesmo tempo,
chocava com as necessidades de ordenamento social e económico do novo modelo de
mercantilismo comercial, agrícola e mesmo industrial a que já nos referimos.
O directório Para aplicar convenientemente a Lei de 6 de Junho de 1755 e o Alvará com força
de Lei de 7 do mesmo mês, Mendonça Furtado redigiu o Directorio, que se deve observar nas
povoações dos índios do Pará, e Maranhão de 3 de Maio de 1757. Este tem pois a função de
regulamentar detalhadamente as leis de 1755, atendendo à sua correcta, justa e estrita
aplicação no território do governador. Ao longo dos seus 95 parágrafos enunciam ‑se
os principais objectivos que se pretende atingir, tendo em conta as especificidades,
pormenores e nuances na regulamentação que só alguém que conhecesse in situ as
relações de poder instituídas e especificidades locais poderia observar. Analisemo ‑lo
de mais perto.
O parágrafo primeiro do Directório23 é, desde logo, um enunciado da concepção
política que subjaz às leis que regulamenta e às quais já nos referimos. Refere que pela
23 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 166.
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113lei de 7 de Junho de 1755, decidindo “...abolir a administraçaõ Temporal, que os Regulares exer-
citavaõ nos Indios das Aldeas deste Estado; mandando -as governar pelos seus ... Principáes ... estes pela sua
lastimosa rusticidade, e ignorancia, com que até agora foraõ educados, não tenhaõ a necessaria aptidaõ ... para
o governo, sem que haja quem os possa dirigir, propondo -lhes naõ só os meios da civilidade, mas da convenien-
cia, e persuadindo -lhes os proprios dictames da racionalidade, de que viviaõ privados ... havera em cada huma
das ... Povoaçoens ... hum Director, que nomeará o Governador, e Capitaõ General do Estado ... dotado de ...
sciencia da lingua ... para poder dirigir ... os ... Indios debaixo das ordens, e determinações seguintes ...”24.
Transcrevemos uma tão extensa porção de texto porque nos pareceu significativa, por
si e pelo que nela transparece da valoração do legislador relativamente aos fenómenos
que regulamentava. Este primeiro parágrafo regulamenta a criação do cargo de
Director25, encarregado da execução/vigilância do exercício da justiça, comércio, cate‑
quese, ensino e moralidade. Mas de primordial importância, para percebermos a base
conceptual e a visão do real segunda a qual o legislador compõe a sua actuação, é a
motivação ou causa que apresenta (porque é como causa que surge) para a abolição
da administração temporal do clero regular nas aldeias de ameríndios. Retirada aquela
administração e pretendendo ‑se entregá ‑la aos principais das aldeias, o legislador
entendia ser tal impossível. Motivo – a rusticidade e ignorância em que haviam sido
mantidos pela educação que lhes fora ministrada. Estava assim enunciada a crítica da
política preconizada pelas ordens religiosas – de segregação/isolamento do Índio –
face a um outro modelo que o próprio Directório instauraria – de integração/mesti‑
çagem. No caso do Índio brasileiro a protecção (fruto do isolamento proporcionado
pela acérrima exclusão do universo branco do contacto com o ameríndio patrocinado
pelo clero regular) proporcionara a salvaguarda física de importantes contingentes
humanos (não necessária e integralmente da sua cultura e modo de vida) mas jamais
impediria e muito menos preparara ou apetrechara o Índio para o inevitável (a prazo
variável) contacto com o Branco que sempre tenderia para lhe ser desfavorável. Por
isso, a transitoriedade da função do Director, nomeado até que o novo sistema lhes
incuta a civilidade e racionalidade a que o parágrafo introdutório se refere, o que
24 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 166. 25 Nomeado pelo governador, o que salientamos, atendendo ao facto de traduzir uma filiação do cargo numa
hierarquia e quadro de dependência do poder de Lisboa, logo centralização política, que não apenas
administrativa. Realce ‑se ainda os requisitos de probidade para o desempenho de tal cargo (que compre‑
enderemos melhor ao analisar as suas atribuições), lado a lado com a noção das qualidades e competências
essenciais ao bom desempenho do cargo, no terreno, no que se destaca a sciencia da lingua.
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114 remete para o sistema filosófico das luzes e do racionalismo que impregna o governo
josefino. Mas, com esta argumentação, introduzia ‑se, igualmente, o conceito de meno‑
ridade do Índio e, com ele, a noção da sua necessária tutela. É nesse sentido que se cria
a figura do Director.
O segundo parágrafo26 remete para a atribuição do governo temporal das novas
vilas e aldeias respectivamente aos juízes ordinários, vereadores e oficiais de justiça no
primeiro caso, no segundo aos principais das aldeias. Mas nele se enunciam dois dados
essenciais que marcaram todo o regimento. A contenção da área de jurisdição do
Director que, pela fonte da sua nomeação para o cargo e capacidade de intervenção,
poderia exceder as suas prerrogativas. Por outro, uma função de fiscalização do desem‑
penho das entidades supracitadas a quem se conferia o governo temporal. Uma última
nota para a suavidade que o diploma prescreve nas sanções a aplicar em face do que a
lei comine. Motivação principal – “... para que o horror do castigo os não obrigue a desamparar as
suas Povoaçoens, tornando para os escandalosos erros da Gentilidade.”27 Portanto, e desde logo, a pre‑
ocupação sempre presente de manter tais populações inseridas no enquadramento do
Estado português e, subjacente, a questão do povoamento e senhorio das vastas e escas‑
samente povoadas terras amazónicas. Uma última nota para a “... igualdade do premio, e do
castigo ... equilibrio da Justiça, e bom governo das Republicas”28 que o legislador coloca como fun‑
damento de tal disposição e que aqui importam como testemunho de uma filiação
ideológica conexa com um certo iluminismo de matriz católica ( talvez com leves
influências jansenistas ), fundada no direito natural, na lei positiva e no ideal/valor do
Estado.
Essa matriz, senão católica e em parceria com a Igreja ‑instituição ao menos de
base cristã, parece ‑nos surgir logo no terceiro parágrafo e seguintes. Com efeito, o
legislador adopta uma postura de legitimação das medidas que implementa com base
na defesa da Religião e cristianização do Índio. Mais importante ainda a assimilação do
Cristianismo (não da Igreja...) ao acto civilizador e deste ao Bem do Estado. Assim,
enuncia que as providências de D. José I “...se dirigem unicamente a christianizar, e civilizar estes
ate agora infelices, e miseraveis Póvos, para que sahindo da ignorancia, e rusticidade, a que se achão reduzidos,
26 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 166 e 167. 27 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 167. 28 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 167.
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115possão ser uteis a si, aos moradores, e ao Estado...”29 Note ‑se a crítica aos regulares (e, portanto,
também, ou especialmente, aos inacianos) mas, sobretudo, a assimilação entre o inten‑
to evangelizador, civilizador e o interesse geral e do Estado. Estamos pois no centro da
política centralizadora, classificável (para muitos) de despotismo iluminado, mas tam‑
bém de um intensíssimo regalismo que cria (procura criar) a simbiótica de meios, fins
e objectivos. O Estado josefino não é anti ‑Igreja, não é descristianizador (bem pelo
contrário), é regalista, e intenta, nesse quadro, implementar reformas estruturais. De
alguma forma expressa legalmente as transformações do mental que lentamente se
operam e que processam a transferência de valores do social – de um horizonte de
castidade para o da primazia plena da família, de um horizonte ideal estruturante de
pobreza para o da valorização do trabalho e dos princípios de submissão e hierarquia
para o do protagonismo, intervenção do indivíduo no social, da centralidade da comu‑
nidade para a valorização do protagonismo individual. Estamos, pois num quadro de
secularização, não ainda num de laicização. Secularização que se traduz no intento de
cristianização (pelos párocos das aldeias e os prelados na diocese) e civilização (pelos
Directores) dos Índios, numa perspectiva europocêntrica. E aquela secularização
traduz ‑se no princípio de separação de esferas de competência que o quarto parágrafo
consagra30, ao estabelecer a cristianização dos Índios – matéria dita meramente espiri‑
tual – como tarefa exclusiva dos prelados diocesanos (não dos regulares, frise ‑se). Os
párocos designados pelos prelados só poderiam dedicar ‑se à catequese. Os Directores
deveriam conceder todo o auxílio à função espiritual do clero secular. Já a jurisdição
dos Directores terminaria onde termina o esforço de Civilidade dos Indios como consagra
o parágrafo quinto.31
Um dos aspectos muito interessantes que o diploma consagra é o papel e relevân‑
cia da língua, do idioma, como mecanismo de aculturação e enquadramento no uni‑
verso mental, cultural e conceptual da potência colonial. Logo, como factor de integra‑
ção, objectivo que já reconhecemos aos diplomas que o Directório regulamenta. Neste
sentido, a crítica à utilização da língua geral entre os Índios (crítica aos jesuítas que igual‑
mente reconheceram a língua como peça de construção do seu sistema de separação/
29 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 167 ‑168. 30 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 168. 31 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 168.
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116 distinção). Tanto o Português quanto a “Língua Geral” eram idiomas estranhos ao
Índio não ‑Tupi. O seu uso nas missões permitia estabelecer conexão com missões
espanholas delimitando, desse modo, um universo de acção jesuítica que se afirmava
como domínio (político?) próprio da congregação, independentemente de se exercer
em territórios espanhóis ou portugueses. Tornando, consequentemente, possível a sua
leitura como projecto político independente que ameaçaria as monarquias ibéricas.
O Directório estabelece, pois, no parágrafo seis, a obrigação para os Directores de
promoverem, nas suas circunscrições, a utilização da língua portuguesa, com a cons‑
tituição para tal de escolas (masculinas e femininas) para as crianças índias.32 Tal ensi‑
no seria obrigatório, o que demonstra o valor de tal aspecto para a integração preten‑
dida. Curiosa a separação e distinção dos currículos em função dos sexos, partilhando
o ensino da doutrina cristã, ler e escrever, mas reservando a álgebra para os meninos,
fiar, fazer renda e todos os mais ministério proprios daquelle sexo, para as meninas (como insti‑
tuía o parágrafo sete). Uma vez mais, o propósito é preparar as populações ameríndias
para a vida prática no contacto com a civilização ocidental, logo, segundo os seus cri‑
térios e princípios. A orgânica do novo sistema de ensino visava isso mesmo, mas
revestia ‑se de um aspecto singular. A percepção do papel reprodutor do universo cul‑
tural da mulher (e da mãe) no quadro social, para mais nos ameríndios brasílicos,
marcados pela escravatura e, tradicionalmente, pelo importante papel económico da
mulher indígena, v.g. para a subsistência do grupo. Nesse sentido, a salvaguarda do
parágrafo oito de que, no caso de não haver ninguém com a qualificação para ser mes‑
tra de meninas, estas se integrassem até aos dez anos na Escola dos Meninos.33 Note ‑se,
no entanto, que os mestres seriam pagos pelos pais dos alunos (oitavo parágrafo) aten‑
dendo ao grau da sua pobreza. Este aspecto é importante, na medida em que as Aulas
Régias previstas para a restante população seriam gratuitas. A exigência de um paga‑
mento por parte dos índios foge assim, à gratuitidade que caracterizou, no geral, a
importante reforma pombalina do ensino.
Um outro princípio que o Directório consagra no nono parágrafo34 é o do respei‑
to pela hierarquia como organizador e consolidador das relações sociais. Assim, a
32 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 168 e169. 33 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 169. 34 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 169 e 170.
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117prescrição no sentido de que os Índios dotados de postos fossem tratados com as hon‑
ras devidas às suas funções. Note ‑se que o legislador reforça a crítica ao comportamen‑
to das ordens missionárias pelo incumprimento de tal tipo de preceito, v.g. as Cartas de
1 e 3 de Fevereiro de 1701. Na prática, critica ‑se, também, o comunitarismo da organização
social e modo de produção das reduções jesuíticas. No mesmo sentido, de promoção
e defesa da pretendida visibilidade social da Igualdade e Liberdade (jurídica mas, tam‑
bém, real, concreta, não meramente teorética) dos Índios, a defesa de serem cognomi‑
nados de Negros, patente no parágrafo décimo.35 Dois pormenores interessantes.
Primeiro, a noção de que tal tratamento era igualmente aviltoso para o Estado que os
nobilitava mediante os cargos para os quais eram capacitados. Segundo, ao estabelecer
a proibição de que os próprios Índios se apelidassem de Negros, pela carga simbólica
e de estatuto que tal tinha no plano social, fica patente a compreensão pelo legislador
das dificuldades inerentes à adopção pelas populações autóctones dos quadros mentais
ocidentais, enformadores deste Regimento. Adopção que era condição indispensável à
sua aplicação real. Neste mesmo sentido a estatuição pelo parágrafo 11 de que, dora‑
vante, os Índios passassem a ter sobrenome (o que até aí não acontecia) como o fim
de facilitar a sua identificação, mas também de evitar mais um dado que os separasse
da população branca e livre. Segundo este fim, a ordem para que os Directores lhes
introduzissem os nomes das Familias de Portugal36 Portanto, surge ‑nos já o papel de fisca‑
lização dos Directores (dos párocos e mestres), no exercício das funções, mas também
de distribuição de honrarias e títulos aos Índios e vigilância/castigo dos brancos quan‑
do lhes chamassem negros. Um outro domínio no qual os Directores deviam intervir
era zelar pelos costumes impedindo que as famílias de Índios vivessem em promiscui‑
dade (para o que o 12º parágrafo prescreve a construção de casas à semelhança das dos
brancos)37, a ebriedade entendida como poderoso inimigo do bem comum do Estado (parágrafo
13.º)38. Atendendo ao mesmo fim, o parágrafo 15.º39 estabelece aos Directores a função
35 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 169 e 170. 36 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 171. 37 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 171. 38 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 171 e 172. 39 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 172 e 173.
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118 de introduzir junto dos Índios o desejo de se vestirem, segundo a qualidade de suas Pessoas, e das
graduaçoens de seus postos, combatendo assim a nudez, especialmente entre as mulheres, para
o que se invoca a razão e honestidade. Refira ‑se que a adopção de vestuário pelos Índios (e
vestuário europeu e segundo os ditames do vestuário europeu enquanto visibilidade da
hierarquia e estatuto sociais) era um importantíssimo factor tendencialmente igualitário
do Índio, de inserção no universo cultural do branco, de aculturação.40 Registe ‑se,
ainda, ( no 14º parágrafo )41 a preocupação (que já registámos anteriormente) em que,
da aplicação destas medidas, não resulte que os Índios se retirem do Gremio da Igreja, o que
implicaria, igualmente, a sua subtracção à soberania do Estado e a perda por este do seu
contributo. Note ‑se, pois, o evidente papel de enquadramento que a Religião tem para
o legislador (e, também, a oportunidade de invocar, em face destas medidas, que seriam
gratas a algum clero, a apresentação da sua finalidade, de incentivar a agricultura entre
os Índios, como forma de melhorar a sua condição e do Estado).
Neste sentido, a verdadeira declaração política em que se constitui o 16.º parágra‑
fo42, enquanto crítica aos resultados da entrega aos Padres Missionários da administração
econômica, e Política dos ... Indios, entendida como só realizável pela cultura e comércio.
Acusa o legislador que naõ se omittio meio algum de os separar do Commercio, e da Agricultura. É
sintomático do enquadramento cultural e mentalidade do legislador o 20.º43 parágra‑
fo em que enuncia dois princípios que concorreriam para a miséria dos Índios e do
Estado pela precariedade da agricultura. Assim, a ociosidade que considera congénita
às nações incultas ( cultura, portanto, como sinónimo de trabalho ) a que que faltam
as luzes do natural conhecimento e o errado uso que ... se fez do trabalho dos ... Indios ... applicados à utili-
dade particular de quem os administrava [...] os missionários, em particular os jesuítas [...]
40 Neste mesmo parágrafo note ‑se a crítica de Mendonça Furtado à desproporção entre a nudez dos Índios e,
como refere, a profanidade do luxo... entendido como vicio dos capitães e causa do empobrecimento e ruína dos
Povos. Por este e pelos anteriores parágrafos fica claro o conceito de civilização que o Directório torna presen‑
te: a Europa e os seus referenciais são o seu centro, o Mundo o seu campo de expansão que deverá tornar ‑se
Cristão, mercantil, tributário, agricultado, sedentário e socialmente diferenciado segundo níveis de poder
e obediência diferenciados. A função primeira dos Directores será, pois, educativa, orientando ‑se segundo
um princípio de perfectibilidade humana, segundo moldes europeus. Logo, seria um intermediário. 41 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 172. 42 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 173. 43 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 174 e 175.
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119havião de padecer os habitantes do estado o ... danno de não ter quem os servisse, e ajudasse na colheita dos
frutos. Enuncia ‑se, portanto, a falta de mão ‑de ‑obra para os colonos por força da inclu‑
são de importantes contingentes de Índios nas reduções jesuíticas. Assim, pelo 17.º
parágrafo44 atribui ‑se aos Directores a tarefa de persuadir os Índios à prática da agri‑
cultura para sua subsistência e comercialização dos excedentes da produção. Nesse
sentido, a preferência dada na atribuição dos cargos honoríficos, honras, privilégios e
empregos àqueles que se dedicassem à agricultura, como estabelece o 18.º parágrafo45
estimulando sentimentos estranhos às concepções indígenas como a ideia de lucro. O
empenho na produção pelos Índios é valorado como expressão e manifestação de leal‑
dade política à Coroa.
O Directório atendia à delicada questão da gestão da força de trabalho para todo o
serviço da colonização e qualquer categoria social de origem europeia que o requeresse.
Nesse sentido, actua como um regimento de trabalho e encontra a razão primeira do seu
carácter substantivo face ao Regimento das Missões. A sua inovação reside no facto de ultra‑
passar a intenção missionária da conversão religiosa dentro dos limites de uma missão e,
ao mesmo tempo que regulamenta as relações de trabalho, apresentar um plano de orga‑
nização económica do Pará, Maranhão e novas áreas em início de exploração e ocupação,
colocando, em primeiro lugar, no planeamento económico, a agricultura.
Para a exequibilidade destas disposições importava que as terras dos Índios fossem
suficientes à sua sustentação, pelo que a distribuição das terras devia fazer ‑se segundo
as leis da equidade e da justiça e tendo em atenção se as terras junto às povoações
indígenas não teriam sido concedidas em sesmarias a particulares.46 Assim, o Director
era encarregue de remeter uma listagem destes casos ao Governador do Estado para
que aos prejudicados se distribuissem terras, conforme o parágrafo 19.º.47
Os Directores deviam, portanto, incentivar ao cultivo da mandioca, como susten‑
ta o 22 parágrafo48, para a sustentaçaõ das suas casas, e familias, mas com que se possa prover abundan-
44 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 173 e 174. 45 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 173 e 174. 46 O principal problema, neste caso, seria a sua concessão em sesmaria a brancos, sendo as parcelas sujeitas a
benfeitorias e incorporação de capitais, traduzindo ‑se a sua devolução em prejuízo grave para aqueles.47 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 174. 48 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
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120 temente o Arrayal do Rio Negro; socorrer os moradores desta Cidade; e municiar as Tropas ... a abundancia da
farinha, que neste Paiz serve de paõ, como base fundamental do Commercio, deve ser o primeiro, e principal
objecto dos Directores.Temos pois, uma utilização estratégica da mão ‑de ‑obra índia como
base para assegurar o sustento às vilas centralizadoras das actividades transformadoras,
extrativas e comerciais. Além desta cultura, que traduz, por sua vez, a inserção do bran‑
co na cultura indígena, os Índios seriam “... obrigados a plantar feijão, milho, arrôs, e todos os mais
generos comestiveis ... se augmentaraõ as Povoaço~es; e se fará abundante o Estado; animando -se os habitantes
... a continuar no interessantissimo Commmercio dos Sertoens, que até aqui tinhaõ abandonado, ou porque fal-
tavaõ os mantimentos precisos ... ou ... os excessivos preços ...”, conforme o 23.º artigo.49 Temos, pois,
uma potencial divisão estratégica da vida económica com o essencial do primário entre‑
gue aos Índios, o secundário e terciário aos brancos. A base agrícola do mercantilismo
comercial fica também bem expressa nos parágrafos 24.º e 25.º50 pelos quais se atribui
aos Directores a função de incentivo à cultura do algodão e do tabaco. Aquele como
ponto de partida para a instalação de Fabricas deste panno, este pelo importante consumo na
América, no Reino e também, o que o legislador omite, como moeda de troca para o
tráfico de escravos em África. Aconselhava ‑se, inclusivé, a concessão de cargos públicos
em recompensa aos plantadores mais capazes, como fórmula de incentivo.
Um dos aspectos mais importantes para a administração de Mendonça Furtado e o
governo josefino era a obtenção do sustentáculo económico que permitisse a imple‑
mentação das reformas económicas, sociais e administrativas que se traduzissem num
maior poder do Estado. Neste sentido, o incentivo à produção mas, também, a procura
de um saneamento da política fiscal, assumindo particular relevância a percepção dos
dízimos das aldeias e estabelecimentos indígenas a que sempre se haviam furtado sob a
protecção e direcção jesuítica. É segundo estas duas linhas de força – percepção de dízi‑
mos e incentivo à produção – que nos surgem os parágrafos 26, 27 e seguintes.51 Os
Índios, de acordo com o seu novo estatuto jurídico, equiparados aos brancos como
cristãos e civilizados, participam destas duas linhas de força. Deste modo, o Director do
povoado e os Índios proprietários assistiam à avaliação do rendimento das roças por
dois louvados, um pela Fazenda Real (sendo nomeado pelo seu representante) o outro
49 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 175 e 176. 50 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 176. 51 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 177, 178 e segs.
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121pelos lavradores (parágrafo 28)52. A Câmara ou o chefe indígena (no caso de se tratar
de uma vila ou aldeia) designava um terceiro no caso de se verificar um empate dos
votos (parágrafo 29).53 Note ‑se que neste mesmo passo se insere uma protecção (teó‑
rica) aos Índios, na medida em que se prescreve que se attenda sempre á notoria pobreza dos Indios;
fazendo -se a dita avaliação a favor dos Agricultores. O escrivão municipal redigia uma lista com o
registo de cada fazenda, nome do proprietário e respectivo rendimento, para uso do
governador, director e responsáveis pela cobrança dos dízimos de toda a produção local
(parágrafo 30)54 Os géneros arrecadados deviam ser remetidos para armazéns régios e
daí para a Provedoria, segundo a supervisão do director (parágrafo 31).55 O cabo da
canoa de transporte recebia do provedor uma certidão de entrega das mercadorias no
almoxarifado, apresentando ‑a no regresso ao director, a fim de ter quitação (parágrafos
32 e 33)56 Uma das observações mais nítidas desta sucessão de disposições relativas à
percepção dos dízimos e sua arrecadação consiste na malha de sucessivos controlos e
fiscalizações, recíprocas e sucessivas, do funcionalismo da Coroa. Igualmente, a respon‑
sabilização dos directores pela arrecadação e encaminhamento para os centros adminis‑
trativos dos dízimos, lado a lado com a sua defesa no caso de dano no transporte sem
dolo. Estamos, pois, em presença de todo um aparelho legal que limita em muito as
hipóteses de corrupção e negligência, porque as partes envolvidas na operação de
cobrança, transporte e recepção se obrigam à emissão de documentos, com valor jurí‑
dico, probatórios da legalidade nas operações efectuadas. Os Directores recebiam a sexta
parte da produção agrícola dos Índios sob a sua supervisão, bem como dos géneros não
comestíveis que adquirissem. Dos bens comestíveis produzidos auferiam a sexta parte
dos destinados à comercialização, deduzido previamente o consumo dos produtores
(parágrafo 34).57 Pretendia ‑se, assim, interessar os principais garantes no terreno da
52 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 178. 53 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 178. 54 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 178 e 179. 55 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 178. 56 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 179 e 180. 57 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 179 e 180.
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122 arrecadação dos dízimos, no bom desempenho daquela função. No entanto, é justo
questionar se a forma como está redigido este parágrafo 34 não encerra uma fina ironia
relativamente à eventual corrupção do funcionalismo.
Os parágrafos 35, 36 e 37 inserem ‑se directamente na temática comercial e
enunciam a relação umbilical e directa dependência que Mendonça Furtado, Carvalho
e Melo e o governo josefino encontravam entre o incremento agrícola (em grande
medida agricultura de mercado para exportação) e mercantilismo comercial.
Atendendo a este fim os directores deveriam demonstrar aos Índios “... a grande utilida-
de de venderem pelo seu justo preço as drogas, que extrahirem dos Sertoens, os frutos, que cultivarem, e todos
os mais generos, que adquirirem pelo virtuoso, e louvavel meio da sua industria, e do seu trabalho.”58 Os
produtos da floresta amazónica surgiam assim, na mira do interesse comercial e tri‑
butário do Estado, como mais uma peça do incentivo e promoção à expansão e desen‑
volvimento económico potenciador das forças do Estado. O parágrafo 37 apresenta‑
‑nos, desde logo, o Director como defensor dos interesses económicos dos Índios no
plano comercial, quer na venda dos seus bens, quer no acto de aquisição por aque‑
les.59 Tal restrição à liberdade de comércio era justificada, mais uma vez, pela sua
rusticidade e ignorância.60 No mesmo sentido, o parágrafo 39 61 que procura legiti‑
mar tal restrição, sensível, na medida em que uma das linhas de força do Directório
era terminar com a separação entre Índios e brancos. A justificação estaria no desin‑
teresse e ignorância dos Índios, por um lado, o conhecimento e ambição dos mora‑
dores, por outro, faltando assim no comércio a igualdade. No entanto, tais restrições
alargavam ‑se na medida em que, podendo escolher o pagamento em dinheiro ou
fazenda, seria interdito aos Índios (com fiscalização dos Directores) a aquisição de
aguardente (por ser nociva) e de bens supérfluos, como estabelecia o 40.º parágrafo.62
58 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 181.59 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 181 e 182. 60 Com efeito, a passagem de uma economia de subsistência para a lógica do mercado (mundial) e com base
monetária (logo, operando com valores abstractos) não seria fácil. Por este ponto regressa ‑se ao tema da
menoridade do Índio, sempre com base no argumento da sua rusticidade e ignorância, características
indutoras da protecção estatal. 61 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 182 e 183. 62 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 183.
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123A disposição de consumo do Índio teria, consequentemente, de se moldar à visão
utilitária dos seus designados “educadores ‑protectores”: o Estado, nas pessoas dos
quadros da administração local.
O tráfico de aguardente era considerado suficientemente negativo ( pela dissolu‑
ção dos laços sociais e desarticulação da força de trabalho indígena ) para merecer a
estrita regulamentação que lhe dedicam os parágrafos 41.º e 42.º.63 Note ‑se, no entan‑
to, que pelo 43.º parágrafo o legislador permitia que os Índios vendessem os géneros
que adquirissem ou os produtos do cultivo onde quisessem, exceptuado o necessário
para o sustento do seu agregado familiar.64 Note ‑se, atendendo ao mesmo parágrafo,
que os directores assistiam a todas as transacções comerciais sendo ‑lhes estritamente
proíbida a mercancia por conta própria. Anotavam no livro do comércio, rubricado
pelo provedor, as transacções realizadas, qualidade dos produtos, preços praticados,
nome dos contraentes etc..., para apresentar tais dados ao governador, conforme o
parágrafo 44.º.65 Por último, segundo o 45.º parágrafo66 deveriam persuadir os Índios
a venderem na cidade mais próxima os seus produtos, para o que se invoca o maior
preço dos produtos aí praticado e menor dispendio atendendo aos transportes. No
entanto, estamos de novo em face de uma medida que visa assegurar o encaminha‑
mento da produção para as cidades comerciais, administrativas e manufactureiras,
permitindo, assim, o seu eficaz abastecimento. Quanto ao controlo comercial, as
Câmaras afeririam os pesos e medidas, medida tendente a instalar a boa ‑fé e equidade
nas relações comerciais (parágrafo 38).67 A economia dirigida seria assim um mal
inevitável nas povoações indígenas, perspectiva que era partilhada pelo próprio
Carvalho e Melo. Deste modo, a principal distinção do sistema que se instaurava face
ao das reduções jesuítas era a supressão da posse comunitária dos meios de produção
e a orientação da produção para o mercado, especialmente para o sustentáculo dos
pólos urbanos ocupados pelas populações brancas.
63 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 183 e 184. 64 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 184. 65 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 184 e 185. 66 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 185. 67 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 182.
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124 Entre o comércio do Estado do Grão Pará e Maranhão, o economicamente mais
importante era o dos produtos do sertão, o que é confirmado pelo 46.º parágrafo e pelo
conjunto de disposições que o Directório consagra àquela matéria.68 Assim, a extracção
de produtos, mas também, as feitorias de manteiga de tartaruga, salga de peixe, óleo
de cupaiva, azeite de andiroba, salsa ou cravo... A primeira preocupação dos directores,
no que respeita a esta actividade económica, deveria residir no fomento à indústria
extractiva mais apropriada à região, como estabelece o 47.º parágrafo.69 Atendendo a
este princípio básico, igualmente a escolha da produção que exija um mínimo de mão‑
‑de ‑obra e de tempo, bem como a diversificação de produções dentro de cada comar‑
ca, o que provocaria a deflação nos preços de mercado desse género e a impossibili‑
dade de estabelecer circuitos comerciais regionais. Segundo o 49.º parágrafo70, os
lucros eram repartidos proporcionalmente ao trabalho realizado por cada um na
colheita e no transporte dos bens. No entanto, vemos de novo a primazia dada à agri‑
cultura como forma de assegurar a subsistência dos núcleos populacionais coloniais,
na medida em que só após a conclusão do cultivo das terras se procederá à chamada
dos principais e Índios para que os que o desejem participem nas expedições ao sertão.
Note ‑se a dimensão do interesse que o legislador atribui aos Índios neste trato, já que
no caso de todos desejarem participar, seriam rotativamente escolhidos para que não
se desamparassem as aldeias e vilas (novamente o papel do Índio como agente de
manutenção da soberania portuguesa). Refira ‑se ainda o limite ao engajamento da
população de Índios neste comércio, limite ao manuseamento dessas populações pelas
autoridades no terreno e barreira às extrapolações de competências e potencial confli‑
to entre as autoridades locais. Com efeito, as populações de Índios participantes nas
expedições ao sertão seriam apenas aquelas que pertencessem à distribuição das povo‑
ações. Pelo 50.º parágrafo71 estabelecia ‑se o número de indivíduos que cada habitante
poderia mandar na expedição. Note ‑se que a hierarquização patente na variação desse
número traduz a preocupação em favorecer gradativamente aqueles que mais directa‑
68 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 185 ‑191. 69 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 185 e 186. 70 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 186 e 187. 71 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 187.
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125mente influenciariam o sucesso da empresa. Seria igualmente uma forma de interessar
o poder local, o aparelho burocrático ‑administrativo e militar neste comércio, como
garante do cumprimento da lei. Note ‑se que todos esses trabalhadores ameríndios
receberiam salário e os oficiais seriam responsáveis pela observância desta disposição.
Note ‑se ainda a noção do atrativo desse trato, na medida em que o legislador impõe
que querendo as autoridades locais e representantes da Coroa participar com as suas
pessoas teriam que o fazer alternadamente, ficando sempre metade dos oficiais na
povoação.72 O que o Directório aqui reafirma é a necessidade de atender aos dois vecto‑
res centrais (e complementares) do novo plano de colonização: a organização de
povoações que actuassem como unidades económicas e, simultaneamente, como
núcleos de povoamento.
Câmaras, chefes e Director escolhiam e responsabilizavam ‑se pelo apresto das
canoas e tripulações (51.º parágrafo)73, ficando expressamente proíbido aos Cabos das
embarcações negociar directamente com os Índios. Note ‑se que os Cabos eram
no meados pelas Câmeras e principais ameríndios, mas sempre a contento dos Índios
participantes (53.º parágrafo).74 Para tal, assinavam um termo antes de partir, res‑
ponsabilizando ‑se com sua pessoa e bens por qualquer dano (54.º parágrafo).75 Neste
mesmo sentido, quando a expedição regressava, o Director do povoado sindicava sobre
a conduta do cabo, procedia ao lançamento dos géneros adquiridos no livro do comér‑
cio de que remetia uma guia ao governador do Estado e outra ao tesoureiro ‑geral dos
Índios (55.º parágrafo).76 Era ao tesoureiro ‑geral que cabia a venda dos produtos pelo
melhor preço possível (56.º parágrafo).77 A distribuição dos lucros e obrigações eco‑
nómicas concernentes às expedições traduzem uma hierarquia (essa sim real) das
partes envolvidas face ao Estado, garante e verdadeiro organizador. Assim, deduzia ‑se
do lucro obtido os dízimos, as despesas da expedição (transporte), o lucro do Cabo, a
72 Como salvaguarda da manutenção de uma presença mínima do poder do Estado?73 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 187 e 188. 74 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 188. 75 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 188 e 189. 76 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 188 e 189. 77 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 189 e 190.
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126 sexta parte dos directores e o restante (produto líquido da operação) era repartido
entre os interessados na empresa. Note ‑se a preocupação da Coroa em receber os dízi‑
mos devidos patente na disposição do 57.º parágrafo78 em que se estabelece que quan‑
to ao cacau, cravo e salsa tal obrigação pertencia aos compradores. Os mais produtos
(excluindo os frutos) seriam remetidos para a cidade onde pagariam os direitos.
Quando a venda dos produtos da indústria extractiva do sertão se processava na povo‑
ação, o director desempenhava as funções do tesoureiro. Pelo 58.º parágrafo79 institui‑
‑se também, no tocante ao comércio dos produtos do sertão, a tutela plena dos fun‑
cionários régios face aos Índios. Com efeito, seria o tesoureiro geral a comprar com o
dinheiro auferido por aqueles as fazendas de que necessitassem. No entanto, tal tutela
seria em boa verdade um mal menor face à possibilidade de serem, na prática, expo‑
liados do salário, resultado da sua participação em tais expedições.
Aspecto fundamental para a operatividade do sistema económico que o
Directório implementava em torno do estatuto e função dos Índios era a repartição
dos Índios entre os colonos. Uma das finalidades que presidiam à abolição das mis‑
sões era proporcionar mão ‑de ‑obra aos brancos sem luta e conflitos entre civis e
religiosos, que permitissem a prática da agricultura, a extracção das drogas e a
expansão do comércio. Isso mesmo afirma o legislador no 59.º e 60.º parágrafos.80
Neste sentido, a observação pelo legislador de que a inobservância das disposições
relativas a esta matéria pelos directores os constituiriam como “... Réos do mais abomi-
navel, e escandalozo delicto; qual he embaraçar o estabelecimento, a conservação, o augmento, e toda a feli-
cidade do Estado ...”.81 Neste sentido, o Directório, no seu 61.º parágrafo82, recorda o
Alvará de 6 de Junho de 1755 visando que os “... Moradores ... se naõ vejaõ precizados a
mandar vir obreiros, e trabalhadores de fóra para o trafico das suas lavouras e cultura das suas terras; e os
Indios naturaes do Pays naõ fiquem privados do justo estipendio correspondente ao seu trabalho ...”.
78 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 190. 79 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 190 e 191. 80 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 191. 81 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 191. 82 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 191 e 192.
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127Atendendo a este fim os directores deveriam, como estabelece o 62.º parágrafo83,
procurar não faltar com Índios ao colonos que se apresentassem com portarias do
Governador do Estado. A importância para o Estado deste aspecto da gestão do novo
estatuto dos Índios surge ‑nos pela determinação de que os Directores não deveriam
deixar de executar as referidas Ordens, ainda que seja com detrimento da mayor utilidade dos mesmos
Indios; por ser ... certo, que a necessidade commua, constitue huma Ley superior a todos os incomodos, e
prejuizos particulares.” Vemos aqui surgir claramente a ideologia que preside à raison d’état.
No entanto, o novo ordenamento relativo às ordens regulares dispensava a pretérita
divisão dos habitantes das aldeias e vilas indígenas em três fracções. Dos colonos, dos
missionários e uma terceira destinada a permanecer nas povoações. Era agora sufi‑
ciente que metade fosse distribuída entre os colonos que necesitassem de trabalha‑
dores e a outra metade se mantivesse sempre nas suas povoações para defesa do
Estado e quaisquer necessidades de mão ‑de ‑obra sentidas por este. É precisamente
isto o que estabelece o 63.º parágrafo do Directório.84 Os Directores inscreviam os
Índios dos 13 aos 60 anos em duas listas rubricadas pelo desembargador juiz de fora,
remetendo ‑as anualmente a este magistrado e ao governador do estado, conforme
estabelecido nos parágrafos 64.º,65.ºe 66.º.85 No entanto, os Directores e autorida‑
des indígenas de cada povoado (principais ou juízes) só entregavam os ameríndios
mediante apresentação de ordem por escrito do governador, especificando as licen‑
ças o tempo de serviço a prestar, conforme o 67.º parágrafo.86 De igual modo, deter‑
minava que não consentissem que os colonos retivessem os Índios para além do
tempo pelo qual lhes fora feita a sua concessão. Na prática, um modo de, em teoria,
defender os Índios dos excessos e exorbitações dos limites que a legislação impunha
à prestação destes serviços, face à eventual negligência ou corrupção dos directores
e principais. Note ‑se que os Directores e principais ficavam obrigados a remeter
todos os anos ao Governador do Estado uma lista dos transgressores para que fossem
punidos. Portanto, a intenção do legislador era claramente a de conter tais prestações
83 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 192. 84 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 192. 85 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 192 e 193. 86 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 193 e 194.
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128 de serviços dentro dos limites considerados necessários à manutenção da agricultura
e comércio do Estado. Realce ‑se que o empregador era obrigado a depositar anteci‑
padamente junto do Director dois terços do salário e entregar ao empregado índio
um terço, conforme os 68.º e 69.º parágrafos.87 Note ‑se que esta medida obrigava o
primeiro a pagar ao Índio (a parte mais fraca neste tipo de contrato, e de longe a
mais fraca pelos hábitos culturais arreigados) e o Índio a regressar ao seu povoado a
fim de receber a maior parcela do salário. Povoado em que, como já vimos, o Índio
era tutelado na realização de operações económicas, como compra e venda de bens.
No caso de os Índios desertarem do serviço para o qual tinham sido destacados antes
do estipulado prazo de seis meses os colonos poderiam, sob prova documental,
requerer a devolução dos dois terços do vencimento entregues aos Directores, con‑
forme o 70.º parágrafo.88 Verificar ‑se ‑ia, no entanto, se os colonos tinham dado
motivo a tal deserção o que, verificando ‑se, obrigaria à perda por aqueles de toda a
importância do pagamento acrescido de mais 100%. Note ‑se que com tal medida se
visava, à partida, assegurar condições de trabalho minimamente aceitáveis para os
Índios. No caso de falecer algum Índio ou ficando impossiblitado para o trabalho por
doença no exercício das suas funções, os colonos seriam obrigados a entregar ao
Índio ou aos seus herdeiros o salário merecido. Note ‑se quanto aos salários e seu
pagamento a preocupação do legislador em introduzir um parágrafo (o 71.º) exclu‑
sivamente destinado aos principais e representantes da Coroa (militares ou
administrativos).89 Reiterava ‑se também nesta categoria de pessoas a observação de
todas as determinações relativas aos pagamentos. Com uma nuance. O caso de “... como
Pessoas miseraveis naõ tenhaõ dinheiro, opu fazendas com que possão prefazer a importancia dos
Salários ...”90, o que não era muito abonatório do estado financeiro do funciona‑
lismo e não podia deixar de ser encarado como um grave óbice à sua integridade
no desempenho das importantes funções (para o correcto desempenho do
Directório) em que se encontravam investidos. Neste caso, assumiriam, não obs‑
87 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 194. 88 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 195. 89 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 195. 90 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p.195.
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129tante, um termo de responsabilidade por dívidas e seriam obrigados à satisfação
dos salários assim que recebessem com que obviar a esses passivos.91
O pagamento aos Índios poderia efectuar ‑se em mercadorias, contanto que a sua
avaliação fosse aprovada pelo Director, conforme o conteúdo do 72.º parágrafo.92 O
lucro permitido restringia ‑se, apenas, ao seu valor na cidade, acrescido das despezas
com os transportes.93 Pelo 73.º parágrafo94 ficavam os Directores obrigados a remeter
todos os anos ao Governador do Estado todas as informações relativas à utilização da
mão ‑de ‑obra índia segundo esta legislação.
A celeridade na aplicação das disposições do Directório é imposta aos Directores
no 74.º parágrafo95 como forma de restabelecer o estado das povoações dos Índios que
Mendonça Furtado classifica de ruinoso. Neste sentido, a incumbência de que se cons‑
truam edifícios camarários com a possível grandeza e cadeias públicas seguras. Enfim,
de novo a dupla utilidade do símbolo e sede material e cultural de soberania e o fito
de que as habitações dos Índios se façam à imagem das europeias, contribuindo desse
modo para a valorização das localidades. Um conceito que Carvalho e Melo utilizou na
reedificação de Lisboa.
O Directório estipulava ainda no seu 77.º parágrafo96 a população mínima de cada
povoado em cento e cinquenta habitantes. O legislador aponta como causas para tal
91 A grande questão que se coloca é a de, no caso de tal procedimento ser prática frequente (e excluídas já as cumplicidades socioprofissionais e locais), quem fiscalizaria e garantiria, de facto, a observância de tais disposições. O facto é que neste sistema de governo sobressai a facilidade com que o funcionalismo (especialmente os Directores) poderiam cometer abusos face a populações bastante primitivas e vivendo tão longe do governador da capitania. Poderiam ser prepotentes no desempenho das suas funções, desonestos na percepção da percentagem que lhes cabia ou defraudarem os dízimos da Coroa, apesar das medidas legislativas tomadas por Lisboa e por Mendonça Furtado. O facto é que Carvalho e Melo tinha consciência das deficiências deste modo de administração, mas não fora possível implementar outro melhor. Fiscalizar os Directores, significava deduzir, das já escassas rendas dos povoados do interior, os salários para funcio‑nários que, muito provavelmente, seriam subornados, constituindo mais uma despesa, no caso, inútil.
92 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira “Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 ‑1850)”, Petrópolis, ed. Vozes, 1988, pp. 195 e 196.
93 Ou seja, pretendia ‑se que a margem de lucro fosse idêntica à das cidades, não onerando os produtos para além dos custos de deslocação. Medida cautelar do poder de compra dos Índios, já que a distância enco‑rajaria, muitas vezes, a especulação. Note ‑se que qualquer prejuízo dos Índios, causado pela inobservância desta disposição pelos Directores, seria por eles coberto.
94 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes, 1988, p. 196.
95 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes, 1988, pp. 196 e 197.
96 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes, 1988, pp. 197 e 198.
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130 abandono as condições experimentadas em tais povoações ( numa crítica, prioritaria‑
mente, às ordens missionárias ) e o seu recrutamento forçado pelos habitantes (75.º
parágrafo)97. No entanto, o assunto é encarado com suficiente gravidade para que se
encomende aos Directores o envio ao Governador de “... Hum mappa de todos os Indios
ausentes ... dos que se achaõ nos Mattos, como nas casas dos Moradores, para que examinando -se as causas da
sua deserçaõ, e os motivos porque os ... Moradores os conservaõ em suas casas, se appliquem todos os meios
proporcionados para que sejaõ restituîdos ás suas respectivas Povoaçoens.”98 A solução encontrada de
reunir a população de várias aldeias para perfazer aquele número ou da prática dos
descimentos, patente no 76.º parágrafo99 só contribuía para revelar a decadência das
missões quando Mendonça Furtado assumiu as suas funções. Para que fosse praticável
o reagrupamento dos indígenas era necessário que os Directores estudassem os costu‑
mes das diversas tribos, averiguando se poderiam viver em conjunto, o que traduz a
compreensão pelo legislador dos Índios como representantes de organizações sociais
distintas, ficando patente que as diferenças étnicas e culturais figuravam entre os crité‑
rios a ter em conta no planeamento daquelas acções. É isto o que estabelece o 77.º
parágrafo a que já nos referimos onde, recuperando o estipulado pelo Regimento das
Missões, se estabelece em 150 o número de moradores (limite ideal) para a existência
das povoações. Recomendava ‑se, ainda, fortemente aos Directores que atraíssem os
nativos do interior por intermédio dos chefes indígenas, conforme os parágrafos 78.º
e 79.º.100 No entanto, como os descimentos eram incumbência do clero regular (que
pelo alvará de 7 de Junho de 1755 se encontrava removido de tais funções e de toda a
incumbência temporal) a situação era nova. Deste modo, os Directores deveriam adver‑
tir juízes ordinários, vereadores, oficiais de justiça e principais que a mais importante
obrigaçaõ dos seus postos consiste em fornecer as Povoaçoens de Indios por meio dos decimentos, ainda que seja
á custa das maiores despesas da Real Fazenda.”101 Note ‑se que se procurava favorecer o estabele‑
cimento dos Índios mediante descimento através da isenção de prestação de qualquer
97 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 197. 98 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 197. 99 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 197. 100 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 198 e 199. 101 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 198.
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131serviço durante dois anos, como estabelecido pelo 94.º parágrafo.102 Saliente ‑se a clara
nomeação do fim primeiro (e último com esta legislação) da Coroa: o aumento da
presença demográfica de populações súbditas de Portugal que pudessem surgir como
agentes de manutenção da soberania da Coroa em áreas disputadas e/ou remotas con‑
tribuindo, de um modo geral por todo o Brasil, para o crescimento económico.
Os brancos, apresentando atestado de bom comportamento assinado pelo governa‑
dor, poderiam viver nas aldeias mediante compromisso, registado no livro da Câmara,
de respeitarem as autoridades locais. Neste caso os Directores dar ‑lhes ‑iam todo o auxí‑
lio à instalação, nomeadamente pela distribuição de quantidade de terras que pudessem
cultivar sem prejuízo dos direitos dos Índios, (primeiros e naturais senhores das terras),
mas sendo concedida a posse aos novos moradores (conforme o 80.º parágrafo).103
Temos, pois, a oposição total à política defendida e efectivada nas reduções jesuíticas e
a peça central da legislação pela qual se elege a aculturação como fim. Com efeito, o
legislador afirma pretender com esta medida facilitar a civilização dos Índios e que as
“... Povoaçoens passem a ser naõ só populosas, mas civîs ...”104 No entanto, e atendendo a que os
Índios poderiam entender esta alteração como uma medida prejudicial, as condições de
admissão dos novos colonos deveria ser publicitada. Tais condições são expressas do 82.º
ao 86.º parágrafo.105 De essencial podemos destacar que aqueles nunca poderiam (em
qualquer circunstância) possuir as terras dos Índios. Seriam, igualmente, obrigados a
conservar com aqueles a paz e igualdade própria de vassalos iguais de um mesmo sobe‑
rano. Nos empregos honoríficos não seriam privilegiados, bem pelo contrário,
verificando ‑se discriminação positiva a favor do Índio quando em igualdade de compe‑
tências. Deveriam continuar os novos colonos a trabalhar as suas terras, agindo como
exemplo e factor de civilização para os ameríndios. Por último, que deixando de observar
qualquer uma das condições estabelecidas seriam expulsos, perdendo o direito de pro‑
priedade sobre as terras, lavouras e plantações. Neste sentido encomendavam ‑se os
Directores no sentido de velarem pela extinção da distinção entre Índio e Branco. Fim
102 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 203. 103 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 199. 104 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 199. 105 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp.200 e 201.
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132 enunciado, que tão bem expressa a mentalidade e objectivos do legislador – a paz, união,
concordia publica,e interesses públicos, conforme enunciado no 87.º parágrafo.106 Principal
meio para conseguir essa paz e união (resultantes da extinção da distinção) pelas quais
os Directores deveriam velar, a promoção por estes dos matrimónios entre os Brancos e
os Índios (88.º parágrafo).107 No mesmo sentido, a incumbência de castigar os cônjuges
que desprezassem a outra parte, desprezando o vínculo matrimonial e instalando a dis‑
córdia nessa união. Em tal caso deveriam relatar o facto ao Governador que os castigaria
como fomentadores das antigas discórdias (90.º parágrafo).108 Afinal, um reconheci‑
mento do papel da família como instância de reprodução dos valores sociais e como
unidade básica da vida económica, para mais no quadro de uma sociedade predomi‑
nantemente agrícola. Objectivo destes últimos parágrafos, obrigar os moradores a agi‑
rem de acordo com o novo estatuto jurídico dos Índios enquanto emancipados pela Lei
de 6 de Junho de 1755. É de realçar que o novo quadro jurídico e social que o Directório
vinha implementar e regulamentar demandava profundas alterações no comportamen‑
to e concepções dos próprios Brancos (autoridades e residentes) e.g. no que toca ao
trabalho braçal e ao escravo. A persuasão sobre a mudança de comportamentos exercia‑
‑se primeiro sobre os Brancos, tentando ‑se modificar a escala de valores e tornando o
que era tido por infâmia em factor de privilégio, como estipula o 89.º parágrafo. No
restante, o Directório concretiza teorizações contemporâneas no tocante à liberdade dos
homens e ao trabalho remunerado ou independente, realizado em benefício próprio.
Note ‑se que as medidas implementadas por este Directório foram confirmadas
por alvará de D. José I a 17 de Agosto de 1758109 e que, por seu turno, um alvará de 8
de Maio de 1758 declarava os Índios do Pará, Maranhão e Brasil livres.
Consequências O Directório pode, assim, ser lido como (mais) um instrumento do regalismo
de Lisboa na segunda metade do século XVIII, no sentido de combate à autonomia de
acções e à liberdade económico ‑financeira usufruída pelas ordens religiosas. Não tanto
106 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 201. 107 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 201. 108 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 201 e 202. 109 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 204 e 205.
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133(ao menos primordialmente) um combate às ordens religiosas mas a determinação
política do Estado de incorporar aquelas instituições no projecto colonizador concebido
por Lisboa para a América portuguesa. É no âmbito dessa estratégia que se compreende
a publicação (com larga difusão patrocinada por Lisboa) do opúsculo Relação abreviada
da República que os religiosos jesuítas das Províncias de Portugal e Espanha estabeleceram nos domínios das
duas monarquias e da guerra que nelas têm movido e sustentado contra os exércitos espanhóis e portugueses de
1756. Aliás, todo o processo concernente ao Directório é marcado pelo recurso à difusão
baseada no impresso. Em ofício de 1759 assinado por Mendonça Furtado anuncia ‑se
a distribuição aos Directores de 300 exemplares do Directório. Distribuição, note ‑se, na
Amazónia do século XVIII, entre poucas pessoas com domínio da leitura e da escrita.
Surge, claramente, portanto, a ideia do Directório como instrumento de controlo e
vigilância sobre os administradores de Índios e, também, como referencial para quem
fosse iniciar empreendimentos de carácter económico. Os seus efeitos, esses, chegam
a todos os Índios do continente do Brasil pelo Alvará de 8 de Maio de 1758 que torna o
Directório lei geral.
Os últimos parágrafos do Directório (93.º, 94.º e 95.º)110 são um retomar da deli‑
mitação da recta conduta dos Directores – apresentados como tutores dos Índios – no
respeito pelas Leys do Direito natural, e Civil. A prescrição da observância de prudência,
suavidade e brandura no exercício das ordens, especialmente quanto à reforma dos
abusos, dos vicios, e dos costumes dos Índios. Por último, a recomendação aos Directores de
que “... só empreguem os seus cuidados nos interesses dos Indios ...”, para que a sua felicidade incen‑
tivasse os dos sertões a juntarem ‑se ‑lhes. Fim pretendido com isto, e na prática com o
Directório e a legislação que este regulamenta – “... a dilataçaõ da Fé; a extinçaõ do Gentilismo;
a propagaçaõ do Evangelho; a civilidade dos Indios; o bem commum dos Vassallos; o augmento da Agricultura;
a introducçaõ do Commercio; e finalmente o estabelecimento, a opulencia, e a total felicidade do Estado.”111
A tarefa de converter os Índios em cristãos, tarefa de finalidade religiosa mas, sobretu‑
do, educadora (civilizadora, na perspectiva coeva, europocêntrica) baseada na ideia da
sua transformabilidade, foi transferida no Directório para os Directores.
Por este enunciado expressa ‑se a questão central da legislação em causa – o esta‑
tuto e o papel do Índio na América portuguesa em face da situação conjuntural portu‑
110 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, pp. 202 e 203. 111 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,
1988, p. 203.
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134 guesa, brasileira e mundial, das grandes transformações culturais, mentais, sociais e
económicas que se operavam em meados de setecentos. Assim, a fé e o evangelho, que
traduzem não hipocrisia, mas a assunção de um pleno princípio regalista do estado
josefino, pela sua articulação com a opulência e felicidade do Estado.112 Esta, passaria
pelo favorecimento da Agricultura e do Comércio e, com efeito, a originalidade da
administração da Fazenda no reinado de D. José I residiu em enviar funcionários ple‑
nipotenciários (como Mendonça Furtado) e constituir nas colónias órgãos técnicos
para incentivar a lavoura e contratar especialistas em mineração. Até este reinado o
monarca limitava ‑se, quase em exclusivo, a perceber os impostos que lhe eram devi‑
dos. Agora passava a investir, dirigir (e a controlar, cientificamente) a produção, regulando
o social e mesmo o demográfico em vista dos fins a alcançar – o estabelecimento, a opulencia,
e a total felicidade do Estado, pelo augmento da Agricultura e introducçaõ do Commercio, potencializan‑
do as condições para o bem commum dos Vassallos. Temos, portanto, o Estado interventor,
fundamentado e em acção. No entanto, note ‑se que durante a Restauração Portugal
pouco pôde fazer pelo Brasil, que se constituira como a colónia mais valiosa, contri‑
buindo para a luta na Europa, a recuperação das possessões africanas e a expulsão dos
holandeses do nordeste brasílico. Nesta fase da vida da colónia, a autonomia dos
capitães ‑mores e Municípios atingiu o auge, lutando muitas vezes com o governo
central relativamente à liberdade de comércio e utilização da mão ‑de ‑obra escrava,
com a frequente vitória dos interesses que os primeiros representavam. No Brasil, o
governo central era fraco, a máquina burocrática reduzida, a Igreja detinha uma certa
independência, não existia qualquer código geral de leis e prevalecia uma significativa
autonomia regional e local. As próprias diferenças regionais e dificuldades de comuni‑
cação no espaço brasílico o justificariam, especialmente no isolado Estado do Grão Pará
e Maranhão. Face a isto, o reinado de D. José I marca o apogeu do absolutismo monár‑
quico ou, se quisermos, do Despotismo esclarecido. A estruturação de um Estado fun‑
dado nesses princípios não era compatível com a partilha de parcelas de jurisdição e,
nesse sentido, vemos o governo josefino a prosseguir a política adoptada nos reinados
anteriores de incorporação na Coroa das capitanias ainda na posse de particulares
112 A política de Carvalho e Melo em relação à Igreja, na colónia, reflectia a da metrópole. Reivindicava os
direitos jurisdicionais facultados ao rei pelo patronato. Um dos primeiros factores de conflito, residiu na
indicação dos prelados pelo monarca, o que o Papa relutava em aceitar. Neste sentido, o processo cro‑
nológico da expulsão dos Jesuítas surge como um movimento transformador breve mas que não rompe
integralmente com as estruturas anteriores, antes é um momento específico da lenta transformação das
instituições públicas e civilizacionais da Europa ocidental.
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135mediante a concessão de indemnizações. Do mesmo modo, outro aspecto central do
Directorio, o domínio temporal dos aldeamentos ameríndios por membros do clero
regular em que avultavam os jesuítas, insere ‑se na mesma política de centralização e
soberania do Estado. Conservando as missões, a maior parte das rendas continuaria a
ser remetida para a manutenção de conventos extramuros e para Roma. A produção das
aldeias do sertão autoconsumida ou embarcada e vendida nos mercados europeus não
contribuía para a expansão interna das potencialidades brasílicas. Os missionários per‑
sistiam em não ceder mão ‑de ‑obra ameríndia aos colonos. Logo, as missões prejudi‑
cavam a população branca do norte do Brasil e a expansão e fortalecimento do Estado.
Tal facto, somado às oposições e entraves relativamente às Comissões de demarcação
de fronteiras, ao papel social, económico e cultural detidos no Reino, no Brasil e nas
possessões portuguesas em geral, contrariava o projecto político e o regalismo josefi‑
nos. A questão dos Távoras e o (suposto) atentado ao rei terá sido um epílogo para uma
longa e dura luta em que a parte mais forte venceu levando à expulsão dos jesuítas do
Brasil e do Reino. Com efeito, os seus membros no Grão ‑Pará e Maranhão resistiram
denodadamente à nova orientação política adoptada pelo governo josefino na pessoa
de Mendonça Furtado, de que viria a resultar a proscrição da Companhia de Jesus da
América portuguesa. O confronto decisivo ocorreu, no entanto, entre 1754 e
1759.113
A descoberta do ouro e dos brilhantes favoreceu o processo de unificação do
Brasil, com vastas áreas a assumirem ‑se como fornecedoras do mercado de Minas
Gerais e São Paulo e a consequente abertura e dinamização de vias de comunicação
ligando o nordeste e o periférico sul ao centro aurífero. A orientação e fortalecimento
imprimidos por Carvalho e Melo ao Absolutismo monárquico e à centralização admi‑
113 Uma das consequências desta expulsão foi a reforma dos estudos secundários a partir de 1759, visando a
divulgação da doutrina cristã e da língua portuguesa entre as crianças índias, a secularização dos agentes
de ensino, a actualização da metodologia pedagógica segundo os princípios aplicados pelos estabeleci‑
mentos oratorianos e a actualização dos manuais escolares. A educação e o ensino da língua portuguesa
podem ser considerados, à luz do próprio Directório, como os instrumentos por excelência da desejada
sociabilização dos ameríndios. No campo da educação é de realçar que não foi a expulsão do clero regular
a levar à secularização dos agentes de ensino, mas a obrigação da divulgação da língua portuguesa – parte
integrante da estratégia josefina de fortalecimento do Estado e assunção da soberania – que os regulares
recusavam e era entendida pelo Estado como instrumento essencial de colonização e civilidade. Nesse
sentido a sua singularidade residiria no facto de ter abolido uma ordem e orientado a implantação de
outra, sendo exemplo de secularização e incorporando uma experiência pioneira de formação da ideia de
sociedade civil. O que não obsta a que a expulsão dos Jesuítas se tenha traduzido num inelutável empo‑
brecimento cultural e educativo de Portugal.
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136 nistrativas, só foi possível graças à unificação da colónia, ao nível comunicacional, de
fluxos económicos, administrativo, mas também étnico, cultural, linguístico... As
medidas proteccionistas implementadas permitiram igualmente um aumento do inter‑
câmbio económico com o Reino, conferindo eficácia final geral ao sistema.
Uma centralização ainda assim, nunca levada ao excesso e centrada mais na direc‑
ção política do que na gestão administrativa, confiada aos representantes no terreno,
estritamente vigiados. A conjuntura económica favorável, com inflação dos preços dos
produtos agrícolas permitiu o arranque de um verdadeiro ressurgimento agrícola da
colónia e mesmo de alguma indústria com ele ligado. A companhia do Grão ‑Pará e
Maranhão teve, neste processo de renascimento e recomposição económica do Norte
brasílico, um papel de primeiro plano. Note ‑se que em 1819 o Maranhão concentrava
12% da população escrava do Brasil, cifrando ‑se assim em quarto lugar.114 Desde o
final do século XVIII, com as grandes exportações de algodão e arroz, vivia ‑se a sua
fase áurea, estimulada pelo surto da Revolução Industrial europeia e pela Guerra da
Independência dos Estados Unidos da América.
No que toca à aplicação real do Directorio, importa referir a dúvida quanto ao suces‑
so da política de miscigenação. Com efeito, só depois de uma análise cuidada dos
registos de casamento das paróquias de todas as capitanias será possível avaliar o grau
da sua aplicação. Nas listas nominativas de habitantes os Índios praticamente desapare‑
ceram, restringindo ‑se os dados aos Brancos, pardos e negros. Os Índios só eram con‑
tabilizados como tal no caso de estarem aldeados.
De facto, ainda no fim do período colonial o separatismo dos aldeamentos indígenas
continuava a subsistir. Já quanto à posse da terra, na prática, era muito difícil transformar
as aldeias em vilas e garantir aos Índios a posse das terras adjacentes, permanecendo v.g.
a contradição entre a obrigatoriedade do cultivo das suas terras, quando metade da popu‑
lação deveria estar à disposição do Estado para tudo o que fosse real serviço e a outra
metade trabalhasse para os moradores pelo período de seis meses. Que tempo ocupariam
os Índios no cultivo próprio? E, se se contava com a tradicional divisão sexual do traba‑
lho, seria tal modelo operativo numa agricultura mais diversificada e exigente do que a
tradicional agricultura de coivara? É duvidoso. Quanto aos Índios enquanto povo(s),
cultura(s) e civilização, a secularização operada pela política pombalina, substituindo o
114 Cfr. Nova História da Expansão Portuguesa. O Império Luso Brasileiro. 1750 ‑1822, direcção de Joel Serrão
e A. H. Oliveira Marques, vol. VIII, Lisboa, Editorial Estampa, 1986, p. 35.
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137regime das missões por um esforço de intervenção e de integração das populações indí‑
genas aldeadas ao sistema colonial, catalizou extraordinariamente o processo de desor‑
ganização dessas comunidades iniciado nos assentamentos missionários. Apesar do
esforço da política josefina na Amazónia no sentido de integrar, organizar e engajar os
Índios ao serviço do Estado e dos particulares, os resultados concretos foram pouco sig‑
nificativos atendendo aos grandes contingentes de ameríndios disponíveis nos aldea‑
mentos das antigas missões, agora secularizadas. A sucessão de revoltas na Amazónia, em
que o período é fértil, demonstra que os Índios – tribais mas também, aldeados – muitas
vezes não se integraram na economia e sociedade coloniais.
Por fim, a Carta Régia de 12 de Maio de 1798 aboliu o Directório dos Índios e
determinou que não se lhes fizesse guerra alguma, mesmo a defensiva, e essa só em casos
extremos. Propósito explícito, o de integrar os Índios na sociedade colonial e eliminar os
efeitos abusivos propiciados pelo controlo, pelos Directores de aldeia, dos rendimentos
auferidos com o trabalho dos Índios. Note ‑se que não apresentava fórmulas novas, face
às conhecidas e já praticadas, de partilha de um mesmo espaço social entre Índios e
Brancos. Papel relevante na extinção do Directório teve D. Francisco de Sousa Coutinho
com a sua Infirmação sobre a civilização dos índios do Pará de 2 de Agosto de 1797, onde se defen‑
dia a extinção do cargo de Director, fonte de todos os abusos e distorções pelo larguíssi‑
mo poder administrativo de que se achava investido e pela rarefacção das instâncias de
controlo do seu exercício no imenso espaço brasílico. Objectivo, prosseguir com a trans‑
formação do Índio, num quadro da sua eterna menoridade e à figura da tutela. O
Director terá sido, de facto, o ponto fraco do Directório, mas a precocidade da ideia de
fracasso do projecto do Directório surgiu, desde logo, pela verificação de muitas baixas
populacionais por doenças endémicas, só compensadas pelos descimentos. No entanto,
logo que chegou ao Brasil, o regente determinou – pela carta régia de 13 de Maio de
1808 – que se fizesse guerra ofensiva contra os Botocudos em Minas Gerais e, do mesmo
modo, contra os Bugres, recomeçando, sob o pretexto da guerra, o verdadeiro regime de
cativeiro e escravidão. As providências que se seguiram acabaram por se constituir em
política de substituição dos Índios por colonos brancos. No reinado de D. João VI, a polí‑
tica indígena transformara ‑se em política anti ‑indígena, sunstituindo ‑se, assim, por uma
política de rejeição radical do Índio que deveria ser eliminado fisicamente e substituído
por populações mais condicentes com as exigências do “Progresso”.
Como vimos, o Brasil conheceu durante o governo de Carvalho e Melo impor‑
tantes transformações. A preocupação primeira da Coroa consistiu na manutenção da
integridade das fronteiras saídas do Tratado de Madrid, base da adopção de políticas
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138 de fomento da imigração, intensificação do povoamento, reconhecimento geográfi‑
co e cartográfico, edificação de estruturas defensivas e, mediante a legislação que o
Directório regulamenta, a concessão de liberdade aos Índios. Este documento legis‑
lativo é, pois, uma das múltiplas peças pelas quais se procura assegurar uma sobera‑
nia, mediante o desenvolvimento e integração de territórios e de gentes. Talvez o
Brasil busque aí a origem (para o melhor e para o pior), não tão romântica mas
profundamente fundante, da sua existência como a Nação e como o Povo que conhe‑
cemos no contexto internacional, surgindo o Directório como instrumento jurídico
muito relevante no plano interno, português, e enquanto instrumento enquadrável
no âmbito dos projectos e equilíbrios de Portugal no concerto internacional, em
sede da afirmação de uma política externa nacional na qual o Brasil avultava como
pólo da maior relevância.NE
FONTES
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Grão Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 1751 -1759, organização de Marcos
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Brasileiro, [s.d.].
DIRECTORIO, / QUE SE DEVE OBSERVAR / NAS POVOAÇOENS DOS INDIOS / DO
/ PARÁ, E MARANHAÕ / Em quanto Sua Magestade naõ mandar o con / trario.
/ LISBOA / NA Officina de MIGUEL RODRIGUES, / Impressor do Eminentissimo
Senhor Cardial Patriarca. / M. DCC. LVIII.
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140 MONTEIRO, Miguel Maria Santos Corrêa, O Padre Inácio Monteiro (1724 -1812), um jesuíta
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época das “Luzes”, tese de doutoramento em História Moderna, Universidade de Lisboa,
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141África, perspectivas para el futuro
Gisela Guevara*
n Abstract:
Después del impacto profundo del colonialismo y de la Guerra Fría en África, el con‑
tinente busca actualmente nuevos caminos para su desarrollo. El artículo tiene como
objetivo principal llevarnos, a través de los caminos de la historia que marcaron tan
duramente este continente, a un presente que, a pesar de estar todavía dominado
por conflictos étnicos, pugnas por ricos recursos naturales, entre otras problemáticas,
apunta a un África más consciente de sus potencialidades.
n Key words:
Africa´s colonial past, Africa´s instability, Great powers competition for Africa.
1. Una pesada herencia colonial William easterly llamó la atención para el hecho de que
la visión que el mundo tiene del continente africano es demasiado negativa y nunca
muestra mejoras de lo que realmente está pasando. Easterly dice que no se puede sólo
pensar en términos de medidas ‑limosna, concluyendo: “Could it be that we don´t
know as much as we think?” (EASTERLY, Los Angeles, 2007).
El norteamericano subraya el hecho que nuestra percepción de África esta cargada
de estereotipos que no corresponden a la realidad. La África sub ‑sahariana tuvo un
crecimiento de 6% en 2006 y Burkina Faso, tan frecuentemente atacado por el Banco
Mundial, esta teniendo buenos logros en la escolarización, de hacer envidia a los logros
obtenidos por otros países en vía de desarrollo en las ultimas décadas. Por otro lado,
Easterly coloca el “dedo en la herida” cuando menciona que la supuesta “ayuda” occi‑
dental a África no se hace sentir respecto a asuntos fundamentales como el de los
productores africanos de algodón, a quienes no se les permite competir en igualdad
de circunstancias en los mercados occidentales.
* Docente universitária em Política Comparada de África e do Médio Oriente e Política Comparada da União Europeia, na Universidad del Norte, Colômbia.
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142 Un pasado cargado de paternalismo colonial tiene, hasta nuestros días, efectos
dañinos en la forma como se enfoca los problemas en varios territorios en el mundo,
en especial en África. Para el premio Nobel de Economía 2001, Stiglitz, es imcompren‑
sible el hecho que el FMI no escuche los analistas locales cuando se trata de definir el
mejor futuro para los países. Esto fue el caso, a juicio del profesor de la Universidad
de Columbia, cuando a finales de los noventa el FMI no tuvo en cuenta las opiniones
del primer ministro de Etiopía, que conoce mucho mejor el país que los funcionarios
de dicha institución (VV AA, 2007, pp. 288 ‑289).
Según menciona Maria Emilia Madeira Santos, la coordinadora del Instituto de
Investigación Científica Tropical de Lisboa, el ayer pre ‑colonial esta de nuevo emer‑
giendo en África. A partir de mediados del siglo XIX el continente asistió a una violen‑
ta ocupación de las potencias coloniales europeas que, por vía de una “pacificación”,
es decir, una ocupación militar, se encargaron de destruir culturas y estructuras políti‑
cas africanas en nombre del “progreso”. Se siguen acciones militares muy duras. Para
Madeira Santos es poco importante si fueron los portugueses, británicos, franceses o
belgas los que llevaron a cabo estas acciones. El resultado fue el mismo: “Hay ejércitos
a avanzar, hay tratados firmados sin que el jefe africano sepa exactamente lo que esta
ocurriendo” MADEIRA SANTOS, Lisboa, 2007, p. 18). Pero la investigadora menciona
que gracias a un arduo trabajo de investigación cartográfico la matriz pre ‑colonial esta
emergiendo. No se trata de provocar conflictos sino devolver a los PALOP (Países
Africanos de Lengua Oficial Portuguesa) su verdadera historia y cultura. El lema es
ahora regresar al pasado a través de los mapas para redescubrir los antiguos caminos
que definían el poder político africano. Madeira Santos subraya: “Los africanos deben
conocer su ayer inmediato a la instalación del sistema colonial por que era ahí que ellos
estaban”(Ibid., p.19).
El colonialismo tuvo un impacto profundo en todas las dimensiones y esferas de
las sociedades africanas. Al analizar las implicaciones del derecho europeo sobre las
sociedades africanas, John Powelson afirma que este ha sido, a largo plazo, doblemen‑
te negativo: en primer lugar se negó a los africanos la posibilidad de negociar ellos
mismos la forma cómo desearían configurar sus sociedades y resolver sus problemas.
En segundo lugar “las prerrogativas de los jueces locales y tribales, fueron mutiladas
bajo el colonialismo y la concentración de poder en la ciudad central continuó hasta
la independencia” (POWELSON, John, 2006).
Estas consideraciones nos llevan a cuestionar si nuestra mirada hacia los problemas
de África no debería dejar para tras los modelos occidentales. Recordemos que ya
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143Lumumba había afirmado en los años sesenta que los arquetipos europeos no podrían
ser aplicables al continente negro y que se tendría que buscar un camino propio.
Patrice Lumumba (1925 ‑1961) era partidario de un Estado centralizado respetador de
las diferentes etnias. Roger Louis, un experto francés en temas africanos afirmó, que
éste “era el único hombre posible para África. El líder africano pensaba que ninguna
ideología europea podría ser aplicable a África y que esta tendría que buscar la suya”
(“C´était le seul homme possible pour l´Afrique, il pensait qu´aucune idéologie euro‑
péenne n´était aplicable a l´Afrique et qu´elle devrait trouvait la sienne propre”)
(LOUIS, Roger, 1979). Estaríamos así hablando de una vía africana.
A partir de mediados del siglo XIX África asistió a la gradual abolición de la
trata de esclavos; por los menos en el papel, ya que a pesar de que los buques bri‑
tánicos y franceses pratullaban las costas africanas para evitar la trata, esta seguía
floreciente. La penetración europea en el continente se haría entonces de forma más
contundente.
Cuando los europeos no lograron dominar los poderes locales por las armas
hicieron uso de otras estrategias. Así siendo, en algunos territorios como en Ruanda,
las relaciones étnicas se deterioran bajo la administración colonial belga (que se
sucede a la de los alemanes, en 1919). Bajo el lema divide et impera, los belgas difun‑
dieron la idea que la minoría tutsi era racialmente superior a la mayoría hutu. Se
difunde la idea que los tutsi eran “caucasianos negros” que habían llegado de
Etiopía. Se impulsa así, por parte de los poderes coloniales, el racismo entre los mis‑
mos africanos.
A todo estos factores se juntarán también aspectos sociales y económicos que
vuelven agrias las relaciones entre las dos etnias, pues los tutsi son los que poseen el
ganado y la tierra. Según Coquery ‑Vidrovitch, tanto en Ruanda como en Burundi tene‑
mos una sociedad de castas donde una población campesina se encontraba al servicio
de clanes que controlaban la tierra y el ganado. Sin embargo, para la investigadora, los
dos grupos étnicos eran permeables a través del matrimonio o de la alternancia de
funciones. Antes de la llegada de los belgas no había una estricta rigidez social. Esta
autora subraya: “hay que ser prudentes, pues la distinción no siempre está resuelta en
la práctica (...) tanto desde el punto de vista étnico como desde el punto de vista de la
repartición de áreas” (COQUERY ‑VIDROVITCH, 1985, p. 39).
En inicios del siglo XX el jefe hutu, Kilima, que dominaba el noroeste rwandés,
ya había ordenado las primeras matanzas de los tutsi. Cuando en los años sesenta del
siglo XX, la independencia es proclamada, se hace de forma muy conturbada. La mayo‑
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144 ría hutu (90%) tiene muchos resentimientos contra los tutsi (9%), pues estos habían
sido favorecidos por los belgas en los cargos administrativos entre otros (CORTES
LOPEZ, 2001, p. 501).
Desde la independencia en 1963, se hacen frecuentes las masacres a los tutsi, lle‑
vando muchos integrantes de esta etnia a tener que buscar refugio en países vecinos.
En los años noventa se forman “escuadrones de la muerte” para asesinar a los tutsi y a
los hutu moderados. Empezó el genocidio que llevará a las muertes de miles en la
África Centro ‑Oriental, con importantes implicaciones para la política de países como
el Zaire (después Republica Democrática de Congo).
Burundi conoce una descolonización más armoniosa, pero cuando la monarquía
termina en 1966, el nuevo régimen procede a la eliminación sistemática de las élites
tutsi, que responden con matanzas sistemáticas de los hutu, por temor a que se le quite
su poder, pues desde la independencia los tutsi se aseguraron los puestos en el Ejército
y Administración. La tensión entre las dos etnias radica, entre otros, en el hecho que
los tutsi, la minoría de la población (14%), no quiere compartir su poder con la mayo‑
ría hutu (85%). La Conferencia de los Grandes Lagos, celebrada en finales de 1995, no
solucionará los conflictos étnicos en los Estados Interlacustres y en 1996 el primer
ministro burundés, un tutsi, declara: “La ideología de la exclusión y del genocidio va
ganando terreno”. (Declaración de Antoine Naduwayo, tutsi, Primer Ministro burun‑
dés, en inicios de 1996 apud CORTEZ, p. 497).
En el siglo XIX habían surgido planes megalómanos por parte de los europeos
entre los cuales estaba el de unir Angola a Mozambique, el llamado “Mapa Color de
Rosa”, de los portugueses, o el Cabo al Cairo, alimentado por el británico Rhodes, el
Dakar ‑Djibouti, soñado por los franceses, o la Mittelafrika, tan acariñada por los alema‑
nes (GUEVARA, Gisela, 2006, p. 77 y ss).
Se da entonces un progresivo desarrollo de las actividades misioneras y comercia‑
les y, paralelamente, se difunden ideas peyorativas de que los pueblos africanos no
habían hecho nada notable ni duradero antes de la llegada de los blancos.
Desafortunadamente, estas ideas han inhibido por décadas la curiosidad histórica sobre
la época pre ‑colonial y han dado base justificativa para los atropellos a los derechos de
los africanos.
En inicios del siglo XIX habían emergido algunas potencias africanas; es el caso de
Egipto, que, partiendo de una situación de subordinación a la voluntad del Imperio
Otomano, es conducido por Mehmed Ali a fundar un Estado moderno. El gran jefe
inicia una firme política exterior con dos ejes principales: 1) Lograr mayor autonomía
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145frente al Imperio Otomano; 2) Afirmar un espacio de decisión mayor frente a las gran‑
des potencias europeas. Egipto se expande entonces hacia la región de Arabia para
controlar la zona estratégica de las rutas comerciales y dominar los márgenes del mar
Rojo. Pero los designios geoestratégicos de Mehmed Ali se chocan con las ambiciones
de los europeos.
Así los planes del egipcio (de origen turco) para ocupar Siria encuentran oposici‑
ón por parte de los británicos que temen que la decadencia del Imperio Otomano lleve
a un vacío de poder ocupado por un Egipto poderoso. Cuando Mehmed Ali rechaza un
ultimátum de los europeos, las principales ciudades costeñas sirias son ocupadas por
buques europeos.
Egipto perdió el estatus de potencia en la segunda mitad del siglo XIX. Este terri‑
torio pasó gradualmente a ser administrado por los británicos. Ante serios problemas
financieros, los gobernantes egipcios terminan por vender las acciones del Canal de
Suez, lo que genera un contencioso que estallará en los años cincuenta del siglo XX,
cuando Nasser decide nacionalizar el Canal.
Ocupado por Gran Bretaña en 1882, Egipto se hunde y da paso a la liberación de
otros pueblos; es el caso de Sudán, que había resistido ferozmente a los ocupantes
egipcios se libera. Pero, la aparición de los Mahdi, fanáticos religiosos, preparan tiem‑
pos marcados por la Gihad (Guerra Santa). La abolición de la trata de esclavos, que
había afectado los intereses de los comerciantes islamizados, llevó a una gran inestabi‑
lidad que seria entonces aprovechada por los Mahdi. Estos se habían organizado alre‑
dedor de Mohammed Ahmad, que predicaba el “islam puro”. En 1881 la revuelta
organizada por el Mahdi (el mesías) lleva a la tomada de Jartum. El nuevo Estado islá‑
mico duraría hasta 1894.
Un siglo después se asiste de nuevo al fundamentalismo religioso en la vida polí‑
tica del país. Con la toma del poder en 1989, a través de un golpe de Estado, los extre‑
mistas musulmanes intentaron crear un Estado islámico con la Sharía como referencia.
Esto nos conduce a una de las problemáticas futuras de África: En qué medida extre‑
mismo religioso, problemas étnicos y la pugna de varios grupos alrededor de los
recursos natural puede llevar a un coktail explosivo en algunas regiones africanas y
desestabilizar regiones como el Oriente Medio?
El conflicto Sur ‑Norte fustiga desde hace décadas el Sudán. Aspectos históricos,
problemas étnicos y religiosos producieron, entre otros, un escenario inestable. A fina‑
les del siglo XIX los británicos habían decidido compartir el dominio sobre Sudán con
Egipto. Se formara entonces un condomínio angoegípcio. Posteriormente, en el siglo
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146 XX, el rey Faruk ambiciona unificar a los dos países, lo que lleva a Gran Bretaña a con‑
ducir una política de autonomía de las regiones sureñas del Sudán, de mayoría cristia‑
na, donde predominan campesinos y ganaderos africanos contra el norte, de mayoría
musulmana.
Durante la transición a la independencia, en los años cincuenta del siglo XX estal‑
ló una guerra civil en Sudán. Había surgido la conciencia en el sur que había que
oponerse a los atropellos del todo poderoso norte. Se formo en ese entonces un movi‑
miento clandestino, el Anya Nya. En los sesenta el gobierno estuvo dirigido por Sadiq
al ‑Mahdi, el nieto del Mahdi. Este personaje dominaría durante décadas la escena polí‑
tica sudanesa.
En los años ochenta la guerra secesionista se mezcla con la pugna por las riquezas
naturales del sur sudanés, pues la agricultura intensiva en el norte del país había tenido
nefastas implicaciones medioambientales. Jartum procede a deportaciones masivas de
poblaciones africanas, condenadas al hambre. Los niños están sujetos a ser capturados
y adoctrinados por los “islamistas puros”.
A finales de los noventa Asan el ‑Tourabi, arquitecto de la islamización pierde algu‑
na fuerza, pues se empieza a hacer sentir el aislamiento de Sudán en el escenario
internacional. Las relaciones con Etiopía empeoran, pues Jartum es acusada de infiltrar
extremistas en el territorio de su vecino. Por su parte, Uganda apoya a la guerrilla
antiislamista de John Garang. Estados Unidos hará entonces todos los esfuerzos para
aislar Jartum apoyando Etiopía, Egipto y Uganda contra el Sudán que protege Osama
Bin Laden. El país tiene un valor geoestratégico relevante, pues hace el puente entre el
África Central y el Mar Rojo. Sus yacimientos en petróleo no son de despreciar, lo que
añadirá otros actores al juego complejo sudanés. China apoyará la China National petroleum
para firmar un acuerdo con Jartum para explotación petrolífera. Mismo Israel no pare‑
ce ignorar la importancia del país y esta atenta a todo lo que en este se pasa, pues ahí
se albergarían militantes del Hamas.
Con una dinámica política e histórica especial, el poderoso vecino del Sudán al
norte, Egipto sufrió un desarrollo que tenemos que mencionar, como ejemplo de
alguna contraposición a los hechos sudaneses. En los veinte y treinta del siglo XX, los
británicos habían prometido la independencia a Egipto. Sin embargo, se rehusaban a
liberar el canal de Suez. En los años cincuenta Gamal Nasser (1918 ‑1970), de orígenes
humildes (su padre era funcionario de los correos), toma el poder y promete a su
pueblo liberar el país de los ocupantes. Nasser ya había estado en 1929 encarcelado
por luchar por la completa independencia del país frente a los británicos. En 1948
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147había participado en la guerra israelí ‑árabe. Su decepción fuera grande cuando se pro‑
clamaba la creación del Estado de Israel en mayo del mismo año.
El nasserismo tendrá gran influencia en la política de los países árabes en los cin‑
cuenta y sesenta. Nasser es el gran defensor de la unidad árabe. Defiende que los recur‑
sos naturales del mundo árabe deben estar al servicio de los intereses de sus pueblos y
no de los países occidentales, considerados imperialistas. Nasser apela en varias ocasio‑
nes a la unidad pero redefine el concepto de panarabismo al fundamentar la identidad
árabe en la historia común de lucha por conseguir la completa independencia frente
al colonialismo occidental. Su rol será fundamental al apoyar la independencia de paí‑
ses como Argelia, Libia y Yemen.
Para Nasser el panarabismo era el medio estratégico para lograr el desarrollo y la
modernización de los pueblos árabes. Sin embargo, los enemigos de Nasser no se
encuentran solamente en el campo de las potencias occidentales que no desean dejar
el Canal de Suez. El gobernante también lucha contra el fanatismo religioso. Cuando,
en 1955, Nasser apoya la conclusión de un tratado con los británicos que comprome‑
ta estos últimos a abandonar el Canal de Suez dentro del plazo de veinte meses, los
Hermanos Musulmanes atentan contra su vida. Nasser se salva pero sus relaciones con
los extremistas religiosos quedarán rotas. Como afirmó Bertrand Badie “La desconfian‑
za de un Nasser frente a los hermanos musulmanes o de un Nehru frente a las agita‑
ciones panhinduistas se ha revelado fundamentada con la perspectiva del tiempo.”
(BADIE, Bertrand, 2000, p. 106).
En política exterior, Nasser aprovecha el creciente peso en el escenario internacio‑
nal de los países afro ‑asiáticos para lograr más margen de maniobra entre la URSS y
Estados Unidos. Estamos en plena Guerra Fría y el gobernante egipcio desarrolla la
estrategia de lograr más autonomía frente a los dos titanes de la política mundial, cre‑
ando el movimiento de los No alineados. El dirigente egípcio tiene una meta: construir
una fuerte conciencia nacional (DORAN, Michael, 1999, p.35 y ss.; OWEN, Roger,
2006, p. 52 y ss)frente a los intereses de las potencias que deseaban imiscuirse en los
asuntos del país. Pero su política interna es controvertida. El “Faraón rojo” decidirá
disolver los partidos. Hasta nuestros días Egipto esta lejos de ser una democracia pero
hay indudable consenso en la comunidad internacional que su papel es fundamental
como moderador de conflictos en el Oriente Medio y en la contención del fundamen‑
talismo islámico. Véase, más últimamente, el papel importante de mediador que Egipto
jugó en el conflicto Israel ‑Palestina en finales de 2008 e inicios de 2009 respecto a la
Franja de Gaza.
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148 2. Recursos naturales, rivalidades étnicas y religiosas: seguirá la maldición? Desde los
atentados del 11 de septiembre 2001, el cuerno de África, caracterizado por ser una
región de tradicional choque entre el mundo africano y el mundo árabe, ha sido
sujeto a especial atención por parte del mundo occidental. Estados Unidos y muchos
países europeos temen que este vasto territorio en el África oriental, que se extiende
desde el Mar Rojo por países como Somalia y Etiopía, y que abarca, saliendo de
las definiciones estrictamente geográficas, el Sudán, se convierta en el refugio de
terroristas internacionales.
Estados Fallidos como Somalia presentan un riesgo muy grande para la estabili‑
dad de una región que ya se debate con serios problemas étnicos, religiosos, políti‑
cos y económicos. Los collapsed states tienen algunos rasgos en común: la implosión de
estructuras de autoridad y legitimidad que, al mismo tiempo, aniquilan la soberanía
del Estado. Para Santiago Tazón, del Grupo de Estudios Estratégicos, el sistema polí‑
tico somalí se redució al “pago de tributos y peajes constantes” a los señores de la
guerra, es decir, las milicias armadas que dividen ese territorio. Por eso el autor
compara la actual Somalia a la Europa medieval, dividida entre señores feudales que
constantemente provocaban guerra y donde la autoridad de un monarca era muy
débil.
Otro aspecto que merece ser referido en los procesos de descentralización de la
guerra, que afectan especialmente el continente africano, es el hecho que en los collap-
sed states la población civil ha tomado las armas para defenderse de grupos criminales,
por lo que, como afirma Eric Lair, los civiles terminan por convertirse en actores de la
guerra, aunque intermitentes. Además, como afirma el mismo autor, la población civil
pasa a estar sujeta a un “terror intimidante y desmoralizante”, pues el ataque pasa a ser
“una señal enviada al entorno” (LAIR, Eric, 2003, p. 98 ss.)
Frente a la anarquía reinante en Somalia, los islámicos extremistas ganaron terreno
imponiendo la sharia en muchas partes del territorio. Ya desde inicios de los años
noventa se había instalado el sistema de los tribunales islámicos que asumieron las
funciones policiales de un Estado en vía del colapso. El problema es que estos Tribunales
tienen una interpretación muy estricta del Islam, lo que se enfrenta a una Somalia que,
por tradición, había sido islámica pero tolerante. Así, en la realidad, los integristas no
tienen una base de apoyo muy amplia en el país. Sólo se aprovecharon de circunstan‑
cias especiales de inestabilidad política para imponer la ley islámica. Si el integrismo
somalí se une a un norte del Sudán árabe, la región puede sufrir gran inestabilidad; y
eso preocupa las potencias occidentales.
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149Después de la guerra de Irak, el Oriente Medio volvió a entrar en una etapa de
gran inestabilidad. África, que ya era un importante proveedor de petróleo, sobre todo
a Estados Unidos y a algunos países europeos, adquirió importancia crucial. El conti‑
nente negro pasó a ser palco de una lucha tenaz por recursos naturales, donde nuevos
actores, como China o Brasil, potencias emergentes, adquieren importancia creciente.
Entre las potencias emergentes interesadas en África, queremos destacar China y
Brasil. En los años cincuenta y sesenta, en el contexto de la Guerra Fría, la relación de
China con África era más ideológica. Desde los noventa los motivos de los intereses de
la gran nación asiática por el continente se volvieron más comerciales. Mientras tanto,
el país se convirtió en el tercer socio comercial de África, detrás de Estados Unidos y
la Unión Europea (S.A., “China y África: Amores sin interés”, 2007). En el primer
semestre de 2007, el comercio de China con África registró el valor de 39 billones de
dólares, lo que corresponde a un aumento de 30% respecto a año anterior (S.A.,“China
set to beef up ties with Africa”, 2007). Algunos analistas consideran mismo que si los
precios del petróleo y de otros recursos se dispararon en África es a raíz de la gran
demanda de las industrias chinas.
Brasil también pasó a dar mucha importancia a sus relaciones con África. El
gobierno brasileño amplió el crédito a Angola para permitir la conclusión de la central
hidroeléctrica de Capanda (la central hidroeléctrica de Capanda se ubica en la provin‑
cia de Malanje, en el norte angoleño) y la contratación de nuevos proyectos para infra‑
‑estructuras en el país. Además crecen las inversiones de Petrobrás en África. Para
Claudio Oliveira Ribeiro, África pasó a tener un rol privilegiado en la política exterior
de Brasil (RIBEIRO, Claudio Oliveira, 2007).
El país tiene mismo un proyecto ambicioso de integración con África. Se trata de
integrar la Comunidad de Países de Lengua Portuguesa (FPLP), con la Zona de Paz y
Cooperación del Atlántico Sur (ZPCAS) en un trasfondo de cooperación entre
MERCOSUR, la Comunidad para el Desarrollo de África Austral (SADC) y la Comunidad
Económica de los Estados de África Occidental (ECOWAS). Por su parte, los Estados
africanos se esfuerzan para aplicar reformas macroeconómicas y políticas con el apoyo
de la Unión Africana (UA), la SADC, la ECOWAS y la Nueva alianza para el Desarrollo
de África (NEPAD), que ya mostraron claras señales que tienen interés en impulsar
dichas reformas.
Otro actor importante en África es Estados Unidos. Olvidadas las antiguas pugnas
con la URSS alrededor del continente negro, que llevó al sacrificio de tantas vidas, la
potencia ambiciona liberarse de su extrema dependencia del petróleo del Oriente
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150 Medio. Actualmente, 15% de las importaciones de petróleo estadounidenses provienen
de África. Además, hay que tener en cuenta que, potencialmente, el continente podría
proveer los EE UU con 25% de sus necesidades de importaciones petrolíferas (Artículo
de PRINCETON/DORFF, 2007). En 2003, sólo Nigeria se había convertido en el sép‑
timo productor mundial de crudo y el cuarto en exportaciones para Estados Unidos
(DELGADO CAICEDO, Jaime, Jerónimo, 2005).
La cuestión que se coloca a respecto del “oro negro” y otras riquezas es ¿ si en los
países africanos la abundancia de tan abundantes y ricos recursos naturales podrá bene‑
ficiar en el futuro la población?. Petróleo y gobernabilidad son temas que están siendo
intensamente debatidos con el objetivo de proporcionar más beneficios a los pueblos
de África. Durante décadas solamente unas pocas minorías acumularon fortunas colo‑
sales con los recursos naturales africanos. Es de mencionar que el debate sobre el
desarrollo de los países no puede solamente concentrarse alrededor de los recursos
naturales. Países como Holanda crearon riqueza luchando contra la naturaleza.
Para Jerónimo Delgado “el petróleo podría fácilmente ser la salvación para un
continente que, desde su independencia, ha estado marginado de las dinámicas mun‑
diales, pero para esto, es necesario la creación de mecanismos que garanticen una
óptima utilización de los recursos.” (DELGADO CAICEDO, 2005). Así siendo, para este
académico los niveles de gobernabilidad, democracia y transparencia deben ser mejo‑
rados para garantizar una distribución más equitativa de los beneficios de los recursos
naturales. A este respecto, el presidente del Banco de Desarrollo Africano, Donald
Kaberuka, afirmó: “África está ahora mejor dispuesta para la prosperidad económica y
a un mejor gobierno que lo que ha estado en décadas.” (S.A.,“China y África: Amores
sin interés?”, 2007).
Uno de los países africanos que actualmente preocupa la comunidad internacional
por su abundancia en recursos naturales y problemas étnicos y religiosos, conforman‑
do una de las combinaciones más peligrosas para la estabilidad regional del noreste
africano, es Sudán. Ya habíamos mencionado en 1. que en el siglo XIX este territorio
había sido palco de un movimiento integrista islámico, el de los mahdi. Pasado más de
un siglo, en 1995, el ministro adjunto de Asuntos Exteriores de Sudán afirmaba que el
papel del país en el mundo árabe era ser “el modelo de renacimiento islámico.”
(HUBAND, 2004, p. 343). A partir de entonces el país ha conducido una política exte‑
rior con el objetivo de extender la influencia del país en el cuerno de África.
Sudán consideró a Somalia, que estaba colapsando como Estado desde inicios de
los noventa, como un territorio propenso a su expansión ideológica. Esto se chocó con
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151los intereses de Estados Unidos, cuya presencia era mal vista por los africanos integris‑
tas. Sudán habría también apoyado ideológicamente y con armas los rebeldes de Eritrea
que deseaban establecer un Estado islámico. El fracaso de Estados Unidos y de la ONU
en pacificar Somalia sigue proporcionando un terreno fértil para los integristas. A todo
esto hay que añadir una pesada herencia de la Guerra Fría.
En Sudán, después de una larga guerra civil entre el sur y el norte, se logró llegar
a un acuerdo entre las dos partes. Se trataba de establecer un equilibrio político entre
el norte árabe ‑musulmán y el sur negro ‑cristiano ‑animista. La guerra prolongada entre
Jartum y los grupos rebeldes cristianos tuvo un trasfondo en el cual jugaron un rol
importante los recursos naturales. Así, el norte ambiciona expandir sus intereses
comerciales hacia el sur, pues allí esta por explotar petróleo y yacimientos de níquel y
uranio.
Jartum acordó dar mayor autonomía a los rebeldes. Sin embargo, cuando el sur
decidió que seria deseable trasladar los acuerdos firmados a la región del Darfur (que
había tenido autonomía hasta 1916), el norte reaccionó negativamente, pues esto
implicaría el replanteamiento del poder en el país: el occidente sudanés se juntaría al
sur contra el norte. A raíz de esta pugna política y también étnico ‑religiosa (aunque en
el sur y en occidente también tenemos árabes y africanos musulmanes) surgió en 2003
el conflicto del Darfur.
Las potencias occidentales y las potencias emergentes tienen los ojos puestos en el
Sudán por su posición geoestratégica, su papel en el tema del terrorismo internacional
y sus recursos naturales. China que tiene una enorme carencia en reservas energéticas
ha tenido intensas relaciones con Jartum en los últimos años. El país ha invertido en
oleoductos dirigidos a Port Sudán, para exportar el petróleo de que tanto necesita. Sin
embargo, si se concreta la posibilidad de transportar petróleo por el sur sudanés, con
oleoductos que serían conectados a través del Chad y a Camerún, ‑ un plan que sería
alimentado por Estados Unidos ‑, el Sur adquiriría mucho más poder económico y
político. Será este uno de los motivos que habría llevado el presidente sudanés al Bashir
a realizar en 2007 un viaje para entrevistarse con el papa Benedicto XVI? Oficialmente,
el ministro de Asuntos Exteriores de Sudán afirmaba que la odisea italiana tenía como
objetivo “el diálogo de civilizaciones y el diálogo entre Cristiandad y el Islam.”
Será el futuro del continente africano dominado por una pugna entre los intereses
de Estados Unidos y los de China? O podrán los africanos, después del trauma de la
Guerra Fría que asoló países como Angola, Somalia, Etiopía, entre otros, contener la
ambición de las potencias occidentales y emergentes?
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152 3. El largo camino hacia la democracia Las décadas que se siguieron a las independencias
de los países africanos, con la oleada más importante de descolonización en los años
cincuenta y sesenta del siglo XX, fueron marcadas, en la mayoría de los países del
continente, por golpes de Estado y dictaduras. En el cuadro de la Guerra fría, las
grandes potencias “cerraron los ojos” a las arbitrariedades practicadas por parte de
muchos líderes contra políticos de oposición o minorías étnicas. Lo que interesaba a
las potencias era ganar apoyantes contra el otro bando. ¿ Podría haber entonces una
esperanza para la democratización del continente tras el final de la Guerra Fría?
En junio de 2006 la Unión Africana rechazó una Carta sobre la democracia que
podría dificultar la manutención indebida en el poder de más de un jefe de Estado
africano. Dicha Carta tenía el objetivo, entre otros, de fortalecer el proceso electoral en
los países africanos, retirar legitimidad a los golpes de estado y restringir las manipu‑
laciones de las constituciones con el objetivo de permitir una permanencia indefinida
en el poder de algunos presidentes actuales. Esta última cláusula terminó por ser deter‑
minante en el rechazo de dicho documento. Según afirmó una observadora de los
debates que se dieron alrededor de la Carta Africana para la democracia, “the main
contention was around the clause that talks about people not being allowed to mani‑
pulate the constitution to extend their terms of office” (S.A.,“AU turns down demo‑
cracy charter”, 2006).
Uno de los casos más flagrantes de aferramiento al poder en un país africano es
el de Robert Mugabe. Cuando, en 1980, la minoría blanca fue obligada a dejar el poder
a la mayoría negra, Mugabe surgió entonces como el hombre fuerte de Zimbabwe
(antes Rhodesia), finalmente reconocido como país por la comunidad internacional.
Desde los años noventa, la Unión Europea y Estados Unidos hacen frecuentes acusa‑
ciones contra los métodos fraudulentos que Mugabe utilizaria para ser reelegido. El
proceso político de acaparamiento del poder por parte de este líder político ha sido
acompañado por un deterioro de la situación económica del país hasta nuestros días;
al cual se juntó en finales de 2008 una epidemia de cólera que la OMS computa en
miles de muertos.
Para asegurarse la manutención en el poder, el gobernante lanzó una campaña
demagógica contra los terratenientes blancos, que estigmatizó como “enemigos de
Zimbabwe”. Todo esto tenía supuestamente el objetivo de redistribuir las tierras de una
minoría, que, de forma “legitima”, debían estar en manos de la población negra. En la
realidad, muchas acciones “pagaban” los favores de algunos grupos de milicianos que
apoyaban Mugabe en el poder por medio de acciones menos ortodoxas. Los resultados
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153fueron catastróficos, pues justamente los granjeros blancos permitían una importante
entrada de divisas en el país por el tabaco exportado. Así, la reforma agraria llevó, entre
otros factores, al colapso económico del país.
Sin embargo, la grave crisis alimentícia que azota la población zimbabweña llevó
a la comunidad internacional a mostrar sus intenciones de ayudar al país. Así, Mugabe
tendrá, en cambio, que cumplir requisitos de transparencia democrática y aceptar la
mediación del presidente sudafricano en el proceso de democratización del país si
desea la ayuda de los demás países. La Comunidad de Desarrollo del África Austral
(SADC) juega un importante rol en toda esta dinámica. Pero contrariamente a todas a
las expectativas de la comunidad internacional, Mugabe no permite un cambio demo‑
crático en su país.
De Mozambique llegan señales positivas en esta dirección. Recordemos que en
1975 la antigua colonia portuguesa se convertió en un Estado independiente bajo la
dirección de Samora Machel, que estableció un régimen unipartidista. Hasta 1975 la
historia del país había sido marcada por resistencias a la colonización portuguesa
(PELISSIER, 1988, p. 32 ss). Después de la independencia la Asamblea popular solo
tuvo representantes de la FRELIMO, cuya doctrina era el marxismo ‑leninismo. En el
cuadro de la Guerra fría, Mozambique sufrió una sangrienta guerra civil. Sudáfrica,
potencia regional, armó y asesoró la RENAMO en su lucha contra la ideología del
Estado marxista. La guerra sólo terminó en los años noventa.
Tras la muerte de Machel en 1988, Joaquim Chissano intentó liberarse de la estric‑
ta la ortodoxia comunista. Finalmente, en 1990, en el contexto del final de la Guerra
Fría, fue votada una nueva Constitución que reconoce el pluripartidismo y la economía
de mercado. En 1992 el gobierno y el jefe de la guerrilla de la RENAMO lograron
llegar a un acuerdo de paz. El presidente Chissano terminó por anunciar su intención
de no candidatarse a un tercer mandato. El país, que se contaba entre uno de los más
pobres en el mundo cuando salió en los años noventa de la larga guerra civil, muestra
actualmente una buena recuperación económica. En 2006 la economía creció en un
10% y en los primeros meses de 2007, el gobierno aprobó un paquete de inversiones
por el valor de 1300 millones de euros.
La comunidad internacional deposita también esperanza en el proceso de demo‑
cratización de Angola, que, tal como Mozambique, sufrió las trágicas consecuencias de
una guerra civil alentada por los dos bandos de la Guerra Fría (HUBAND, 2004, p. 63
y ss). El país muestra un crecimiento económico que se acerca del 19%, valor que
sobrepasa, en larga medida, el promedio de la mayoría de los países africanos. Además
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154 la economía pasó a estar menos dependiente del petróleo, pues los sectores no depen‑
dientes de éste recurso natural crecieron en 2006 un 25, 7 %, comparado con el 14,7%
en 2005 (S.A., Angola Wirtschaft, 2006).
Sin embargo, Amnistía Internacional sigue denunciando las violaciones de dere‑
chos humanos en Angola por parte de las fuerzas del orden. Son frecuentes las arbitra‑
riedades ejecutadas por la policía. Las raíces de este fenómeno remontarían a los
tiempos de la Guerra fría, cuando muchos agentes policiales procedían de las fuerzas
armadas. Recordemos que el proceso de democratización en Angola se deparó con
serios obstáculos desde el inicio de la independencia, en 1975. Finalmente, cuando, en
1994, los dos bandos rivales, el MPLA y la UNITA firmaron el protocolo de Lusaka, las
segunda de estas facciones, liderada por Savimbi, no respetó dicho acuerdo. Este rea‑
nudó en 1998 la guerra. Solamente en 2002, con la muerte del jefe de la UNITA, se
abrieron reales perspectivas de democracia para Angola.
Como menciona Mohamed El ‑Khawas, el éxito de este proceso político en el
país depende de la voluntad de las dos facciones de encontrar un camino que per‑
mita la completa transición democrática. El autor menciona igualmente que entre
otros obstáculos a dicho proceso se encuentran problemas étnicos y regionalismos
que “sabotean la democratización y la integración nacional” (EL ‑KHAWAS, 2005,
pp. 58 ‑ 59).
África del Sur es indudablemente un buen ejemplo de una democratización
realizada a partir de circunstancias muy adversas. Tras décadas de apartheid, el país
entró, en los años ochenta, en una seria crisis económica. Estos años fueron tambi‑
én marcados por una dura represión a los opositores del régimen de Botha. A fina‑
les de los ochenta la minoría blanca de la República Sudafricana se había aferrado
al poder. Esta minoría correspondería a un 25% de la población total, constituida
sobre todo por descendientes de británicos y holandeses. Nada parecía hacer prever
un cambio.
Sin embargo, en 1990 empezaron las primeras negociaciones entre el ANC
(Organización política que había estado en la ilegalidad durante el apartheid) y el
gobierno de De Klerk, el hombre que finalmente había tenido la conciencia de que
todos los sudafricanos debían tener los mismos derechos: “Nuestro objetivo es que
todos los sudafricanos, de una forma justa y equitativa, formen parte del proceso polí‑
tico y tomen decisiones en Sudáfrica.” De Klerk cumplió sus promesas. Liberó a
Mandela, que había estado durante décadas encarcelado por sus convicciones y, final‑
mente, se inició el proceso de democratización del país.
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155Fue entonces promulgada una nueva constitución, que terminaba con años de
discriminación racial y, en referéndum, se aprobó el cambio político. Muchos de los
soldados del MK (brazo armado del ANC) fueron integrados en el nuevo ejército
nacional sudafricano. En abril de 1994 las elecciones multirraciales permitieron la
victoria del Congreso nacional de Mandela, que pasó a ser el primer presidente negro
de la república surafricana. El ANC dejó su orientación marxista ‑leninista y hoy el país
es un buen ejemplo, incluso para Colombia, de una reconciliación entre varios sectores
de la sociedad.
La Comisión para África (creada en 2004 por Tony Blair, entonces primer ministro
británico, para generar ideas y nuevas acciones para volver África más próspera) que
trabaja en estrecha cooperación con la Unión Africana y la Unión Europea, identificó
dos aspectos fundamentales a ser mejorados en lo que respecta a asuntos de goberna‑
bilidad en África. Por un lado, la capacidad de desarrollar y aplicar políticas. Por otro,
la imputabilidad, o sea, la respuesta que los gobiernos deben dar a la población de sus
países para los problemas fundamentales existentes. Se trata de asegurar, entre otros, el
refuerzo de los poderes de los parlamentos; aumentar la transparencia de los ingresos
y gastos en los presupuestos elaborados, sobre todo, en países con abundancia de
recursos naturales; luchar contra la corrupción; reforzar los derechos de la mujer; inte‑
grar la diversidad de grupos étnicos y religiosos; mejorar la gestión de los recursos
naturales y asegurar la crucial inversión en infraestructuras hidráulicas y energéticas,
lo que por su vez, integraría los sectores más desprotegidos de las sociedades africanas
en las dinámicas de desarrollo.
Hoy en día África descubre que la vía democrática parece ser el único camino
para la estabilidad de las sociedades. Para la Vice ‑presidente del Banco mundial para
África, Obiagili Ezekwesili, se trata de algo esencial el hecho de involucrar los
ciudadanos africanos en proyectos del Banco Mundial, para así impulsar “una vía
africana”:
“The things we do as an institution will be very important, because if they (the
citizens) are involved then they know we are doing things with their governments and
they are able to hold us and their government to accountability.” (Entrevista a la Vice‑
‑presidente del Banco mundial para África, 14.06.2007).
Para el analista brasileño Claudio Oliveira, la estrategia de prevención de conflictos
por parte de la UA (Unión Africana) deberá también tener en cuenta el asegurar de la
construcción y el refuerzo de la democracia en un continente donde la integración
sigue siendo un sueño.
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156 4. Quo Vadis Africa? El 1,7 millón de emigrantes del la región subsahariana que vive
en Europa podría pasar a tener un papel fundamental en la recuperación de
sus respectivos países. El Banco Mundial esta invitando a muchos de ellos para
incorporarse a proyectos de empresas que tengan un espíritu social. Sin embargo,
el continente se debate con algunos obstáculos a su recuperación. El fenómeno del
“Brain drain” es uno de los más serios.
Para desarrollarse, los países africanos necesitan de mano de obra calificada.
Lamentablemente, los egresados universitarios prefieren Europa o Estados Unidos
para su futuro laboral. Ya en 2000 se había debatido muy en serio la marcha hacia
los países desarrollados de universitarios africanos. Según estimaciones, entre 1991
y 2000, 383 000 africanos habían dejado su país por Estados Unidos. África del Sur
ha perdido 1/3 de sus doctores para países como Australia, Canadá y Reino Unido
(EL ‑KHAWAS, 2005, p. 94 ‑95).
El problema reside, entre otros, en el hecho que los gobiernos africanos no están
desarrollando estrategias suficientemente firmes para retener dicha mano de obra cali‑
ficada. Esto es tanto más dramático si consideramos que el continente gasta anualmen‑
te unos 4000 millones de dólares en reclutar expertos occidentales. En febrero de
2002, un funcionario de la Comisión Económica para África de la ONU mencionaba
la gran paradoja que afecta el continente:
“(...) every African country has been faced by the paradox of higher rates of
unemployment and underemployment, including university graduates (…) this has
often resulted in a wave of migration of the highly educated and highly skilled to
Europe and North America.” (Apud EL_KHAWAS p. 95).
Los gobernantes africanos parecen estar cada vez más sensibilizados para la
problemática del “brain drain”. Esta sensibilización se alargó a temas como “más
democracia” y “más equidad”. A pesar de todos los escollos, se esta dando en el
continente negro la estabilización del orden político y económico. En muchos paí‑
ses la inflación disminuye, se da la mejora de las infraestructuras y del impulso
turístico. Sin duda sigue habiendo serios problemas como la difusión del AIDS, las
secuelas de los conflictos interétnicos y el desempleo abrumador. Sin embargo,
tenemos la convicción de que podremos ver finalmente a África en las próximas
décadas como el continente que se liberó de sus tragedias, dispuesto a caminar con
coraje hacia el futuro.
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159História e Diplomacia
João Sabido Costa*
muitas vezes Nos perguntamos sobre qual a importância da História nos nossos conhecimentos.
Para que interessará uma aparente fixação no passado, quando o que interessa é
assentarmos os nossos pés no presente, e partirmos para o futuro?
A História pode aparecer, assim, a muitos, como uma matéria mais aborrecida ou
mais lúdica, mas nunca nada que saia do âmbito da obrigação tediosa (sucessão de
datas ou factos), ou do entretenimento (possibilidade de viagens imaginárias por tem‑
pos idos e exóticos).
Para o diplomata, para o qual o dia a dia é vivido intensamente e as perspectivas
de actuação parecem alterar ‑se em ritmo acelerado, não é anormal que venha a existir,
também, um sentimento quando à inutilidade de “passado”, da cultura histórica, por
pensarmos que nada haverá a recuperar do que já foi, quando o importante, afinal, é
o futuro.
Teremos, no entanto, de ver que a História, como ciência e como área do conhe‑
cimento humano, não se reduz nem a uma sucessão de datas, nem, mesmo, de factos.
Estes factos e datas, importantes que sejam, só ganham relevo se conseguirmos vislum‑
brar um nexo sequencial entre eles, em que os mais recentes se tornariam impossíveis
sem aqueles que os antecederam.
Afinal, o conhecimento histórico é uma percepção – em vários níveis e dimen‑
sões – da corrente da presença humana no tempo: o que é que nos trouxe até “aqui”?
Essa sequência é, naturalmente, importante para compreensão de qualquer processo,
seja físico, psíquico, ou de qualquer outra área do saber. Mas o processo histórico será,
dentre todos, o mais abrangente, pois debruça ‑se sobre o conjunto de todos os pro‑
cessos descritivos e narrativos que digam respeito ao Homem. A História influencia e
marca a visão que o homem tem de si mesmo.
Tal deriva do facto de “todo ser humano necessitar reflectir sobre seu ambiente, sua
situação concreta, seu meio, sobre o seu contexto social e comunitário e sobre seu
* Cônsul‑Geral em Salvador da Bahía.
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160 compromisso social”1. E isso implica, naturalmente, também, a necessidade de recupe‑
ração de um sentimento de equilíbrio entre o sujeito e o seu contexto, que passa pela
reflexão sobre a própria identidade, seja ela a própria, seja comunitária e nacional.
Não se pode perder, assim, uma perspectiva realista, em que a imposição incon‑
tornável do presente não aceita hipóteses romantizadas do passado que a ele conduzam
causalmente (e irrealistamente).
Ninguém vive bem com um sentimento de incompreensão face a si mesmo, ou
face à coerência e consistência das suas origens que, vindas do passado, têm que ser
suficientemente racionalizadas para funcionarem como um esclarecimento do presen‑
te, em todas as suas dimensões: psicológicas, sociais, económicas e comportamentais.
Urge, pois, um entendimento do passado que para nós faça sentido.
Como diz o historiador José Mattoso2: “(…) a ignorância ou o desprezo do pas‑
sado correspondem à tentativa absurda ou perigosa de anular a posição anterior ou de
querer negar o real”. “Para mim, portanto, a História não é a comemoração do passa‑
do, mas uma forma de interpretar o presente. Ao descobrir a relação entre o ontem e
o hoje, creio poder decifrar a ordem possível do mundo, imaginária, porventura, mas
indispensável à minha própria sobrevivência, para não me diluir a mim mesmo no
caos de um mundo fenomenal, sem referências nem sentido”3.
Torna ‑se, assim, fundamental, que cada indivíduo, ou povo, tenha, pelo menos,
uma noção da sua própria “história”. Isso, a um nível puramente cultural, no da pre‑
paração que cada pessoa deve ter como cidadão do mundo e da sua pátria. Para ganhar
consciência das opções tomadas ontem e que, hoje, nos tornam o presente não forço‑
samente determinado, à “(…) História cabe a análise da sociedade humana em termos
de tensão e de evolução.”4
Com isto, não se pretende, naturalmente, que cada indivíduo se torne um histo‑
riador, um cientista da História de “per si”. Releva, sim, que cada um passe a ter inte‑
resse sobre a obra dos historiadores, reflicta sobre ela e, até, a critique ou admire,
passando a fazer parte duma espécie de entidade como aquela idealizada por Teilhard
de Chardin como uma consciência colectiva criada através do aprofundamento da
interacção de mentes humanas5, respondendo ao desafio de descobrir como reagimos
1 Matta, pág. 68.2 Pág. 15.3 Pág. 16.4 Cunha, pág. 49.5 Cascio, pág. 96.
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161e nos adaptamos ao imenso manancial de conhecimento (ou informação) por nós
criado6. “Não se trata de saber mais factos ou de tornar a História mais pesada, mas
sim de fornecer mais recursos para que se possa proceder a um renovado trabalho de
espírito crítico, estabelecendo novos ajustamentos e relações”7.
E, como diz Nietzsche, citado por José Mattoso8: “O verdadeiro historiador deve
ter a força de transformar numa verdade completamente nova o que é conhecido de
todos, e exprimi ‑lo com tanta simplicidade e profundidade que a profundidade faça
esquecer a simplicidade e a simplicidade a profundidade”. É sobre esse processo que
é preciso reflectir.
A importância da História para Portugal Para um país como Portugal, essa percepção da
linha temporal que foi a sua existência tem ainda mais importância, “(…) num
momento em que por tantas vias e de tantas maneiras se tenta definir e renovar
o sentimento de identidade nacional, face às profundas mutações que a sociedade
portuguesa actualmente atravessa”9.
País com uma existência antiga, com fronteiras fixas desde há muitos séculos e
uma história de expansão pelo Mundo que não corresponde à sua dimensão continen‑
tal, Portugal é muitas vezes historicamente ignorado na mentalidade contemporânea.
Não raro nos cruzamos – profissionalmente ou não ‑ com pessoas que por completo
desconhecem a nossa História, e nos fazem afirmações e suposições de todo irreais,
mas baseadas no facto de sermos um país territorialmente menor, com todas as con‑
sequências que julgam daí se dever tirar.
Para além disso, é um facto que as grandes perspectivas históricas criadas por
autores de grandes países – que são as que geralmente circulam, inclusive em edições
portuguesas – dão uma visão histórica baseada na perspectiva desses mesmos países,
nos quais eles vêm o foco principal e irradiador de todos os relevantes acontecimentos
mundiais.
Não existe, aliás, segundo creio, a possibilidade de uma História universal comple‑
tamente objectiva, pois cada país, cada nação, cada povo, Estado ou cultura, projectará
sempre no seu passado – mesmo que com autenticidade – a sua própria subjectividade.
6 Cascio, pág. 96.7 Faria, pág. 108.8 Pág. 54.9 Mattoso, pág. 107.
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162 Importância da reflexão histórica para o trabalho do diplomata Essa necessidade de
aprofundar, de saber reflectir, existe também, para os diplomatas.
Naturalmente, é fundamental, principalmente para o jovem diplomata, uma actu‑
alização constante de conhecimentos sobre a actualidade que lhe proporcione uma
visão abrangente e clara dos rumos das relações internacionais em cada dia que corre,
‑ para já não falar, naturalmente, daqueles assuntos de que ele, profissionalmente, tem
de tratar. Mas tal não inibe que o mesmo diplomata não possa encontrar utilidade, até
para a melhor compreensão dos assuntos presentes, num entendimento do que foi a
via cronológica e diacrónica conduzindo ao presente estado de coisas, como eles se
apresentam.
Pois também os “(…) sociólogos, os economistas e até os etnólogos deixaram de
tratar dos fenómenos sociais como se eles fossem rigorosamente contemporâneos; há
anos que passaram a considerar imprescindível ter em conta a sua dimensão diacróni‑
ca e em situá ‑los em contextos históricos determinados”10.
Como escreveu o antigo Presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso “(…)
das várias disciplinas úteis para um político, e onde as leituras certamente vão ajudá ‑lo,
acredito que o mais importante é ter uma noção de história”11. Para “(…) alguém
poder saber o que vem pela frente, tem de saber o que veio antes, tem de ter uma certa
ideia do processo, senão a pessoa acaba não construindo nada duradouro e novo. Sua
acção pode dar certo ou não na política, mas não conseguirá construir um caminho
para a nação se seus actos não forem embasados na história e nos sentimentos e valo‑
res da sociedade”12.
“O historiador está sempre a descobrir no passado longínquo e recente o e o , a
identidade e a variância, a repetição e a inovação. A prática na verificação destes dois
aspectos da realidade, quando se desenvolve como um talento que outras formações
não dão facilmente, dota ‑o de uma capacidade especial para atribuir aos acontecimen‑
tos do presente a sua verdadeira importância”13.
Assim, para quem tem quotidianamente de lidar com questões políticas internacio‑
nais, torna ‑se bastante útil – mesmo que tal seja apenas empiricamente constatado – um
entendimento da sequência de ocorrências que fez essas questões surgirem como tal.
10 Mattoso, pág. 63.11 Cardoso, pág. 78.12 Cardoso, pág. 79.13 Mattoso, pág. 68.
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163Pois como já visto, da mesma experiência desse lidar com processos negociais, ou
da análise de situações, ou da necessidade de propor linhas de acção (num espectro
que abrange toda a amplitude da profissão diplomática, desde o do relacionamento
entre países, ao multilateral, ao da própria acção consular) decorre a utilidade de se
acolher uma perspectiva diacrónica e sequencial (histórica) das matérias abordadas. Só
uma percepção, e compreensão racional e articulada da sequência de factos conduzin‑
do ao presente será realmente possível perspectivar, em termos válidos, uma possibili‑
dade de desenvolvimento das situações actuais.
Enganos sobre o que entendemos por História Algumas características da nossa forma de
pensar conseguem contudo, distorcer aquela necessidade de reflexão sobre a nossa
forma de ser, partindo, precisamente, da colocação de importantes questões sobre o
nosso passado.
A primeira delas, aliás, já referida, é a de se reduzir aleitura da História a uma
actividade lúdica, geralmente a partir de livros romanceados ou de filmes.
Da leitura histórica como actividade de recreio poderá, certamente, resultar uma
sensação de prazer, mesmo intelectual e, admitamo ‑lo, alguma cultura geral; mas sem
dúvida que daí também poderá provir uma aceitação “a priori” de “verdades (históri‑
cas) inquestionáveis” que, mesmo que inconscientemente, rejeitam a reflexão.
A História da Literatura, inclusive através de algumas das suas obras ‑primas, como
os romances de Alexandre Dumas, está repleta desses exemplos, em que a mestria da
criação literária prima em criar uma distorcida impressão de um período.
“A mera curiosidade pelo passado, o prazer de o reconstituir sem nenhuma espé‑
cie de objectivo, para além desse mesmo prazer, redu ‑lo a um simples jogo; torna ‑se,
portanto, um passatempo pueril e inútil”14.
Na realidade “(…) ao contrário do que acontecia outrora nas bibliografias ou nas
monografias, não interessa tanto o caso, a pessoa ou o facto em si mesmos, mas a sua
representatividade e a maneira como nele se repercutem as estruturas e os movimentos
globais”15.
Outro risco, também bem actual, é o de tentar “fechar” a interpretação histórica
num “(…) tempo curto, sujeito às constantes modificações que a alteração das ideias
14 Mattoso, pág. 53.15 Mattoso, págs. 42/43.
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164 e da acção política provoca, sejam elas reais ou aparentes”16. Enfim, trata ‑se de não
saber separar, numa sequência histórica, os factores determinantes dos aspectos cir‑
cunstanciais ou emotivos que marcaram episodicamente aqueles.
Dentro desta classificação poderemos também colocar a “História ideológica”, ten‑
dencialmente repleta de adjectivos, ou substantivos derrotistas ou negativos com que se
pretende, amiúde, atribuir a uma única causa, abstracta, todos os malefícios da
Humanidade ou de uma sua parcela, que sem aquela viveria plenamente feliz e perfeita.
Do mesmo modo, também o que nos parece como estável e perene pode, afinal,
não o ser. Por exemplo, fenómenos físicos e geográficos que presenciamos, e que mui‑
tas vezes vemos como fruto de uma alteração radical do passado, correspondem, afinal,
apenas, a ciclos que, analisados, nos ajudam a relativizar (ou mesmo não dramatizar
excessivamente) a sua importância, Como diz José Mattoso17: “(…) o cenário espacial
que tantas vezes se pressupõe invariável e estático (no passado), está bem longe de o
ser, apesar das mutações de grande amplitude serem relativamente lentas”. A visão dos
tempos ajuda a desdramatizar o presente.
Outro dos principais erros em que caímos ao pretendermos interpretar os acon‑
tecimentos passados consiste na sua “distorção subjectiva”, isto é na incompreensão
ou ignorância da mentalidade e mesmo objectivos) que marcaram os homens que
viveram esse passado. Como refere George Duby18: “Interesso ‑me mais por objectos
(…) mais impalpáveis, pelas ideias, por aquilo que as pessoas têm no espírito e que
determina o seu comportamento”.
Diz José Mattoso, que é imprescindível, por exemplo, que uma fonte histórica seja
considerada no conjunto das suas condições de produção, o que “(…) pressupõe que
se considere a fonte como uma peça de um conjunto histórico. Se a isolo desse con‑
junto arrisco ‑me a atribuir ‑lhe um sentido que o autor não lhe quis dar, nem cons‑
ciente, nem inconscientemente”19. Deve ‑se procurar, assim, “(…) situar o texto (his‑
tórico) num espaço e tempo determinados e identificar o autor e o momento em que
escreveu com o maior rigor possível, o que constitui um ponto de partida para a des‑
coberta das suas intenções e a relação destas com o público ao qual ele se dirigia”20.
16 Mattoso, pág. 164.17 Pág. 193.18 Pág. 919 Pág. 135.20 Mattoso, pág. 135.
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165A compreensão dos fenómenos históricos deve assim interpelar o passado, os seus
códigos e a verdadeira finalidade das suas aparentes inutilidades. Como o que parecia
ocorrer, na mitologia grega, com Ares, o Sanguinário, a quem a finalidade do comba‑
te deixaria indiferente, limitado este ao “sangue e tumulto da batalha”21. Ou no
Diálogo de Luciano, onde “(…) um Cita pergunta a Sólon para que servem as compe‑
tições desportivas dos gregos: “Rolam como porcos na areia”, diz o Cita, “Batem ‑se
como bodes. Isto torna ‑se por vezes terrivelmente brutal e, contudo, não são separados
por esse homem de manto de púrpura que, a julgar pelo seu vestuário, deve ser um
representante da autoridade. Gostaria de saber para que serve isso: parece ‑me uma
simples loucura”22.
No entanto, contrapõe ‑nos a nossa própria experiência que raramente um com‑
portamento humano é desprovido de finalidade, certa ou errada.
Nesse sentido, é também um facto que um “(…) comportamento possível numa
dada cultura não o é numa outra. Uma cultura distingue ‑se, pois, por um sistema
próprio e homogéneo de comportamentos, que se modificam quando passamos para
a cultura precedente, ou para a seguinte”23.
É fácil, pois, enganarmo ‑nos com “aparências” quando não as apreciamos de um
ponto de vista “histórico”, sendo essa possibilidade de engano ainda muito maior
quando a análise é feita – como muitas vezes acontece relativamente à já referida ima‑
gem de Portugal no Mundo – por alguém estrangeiro, com outra formação cultural.
A compreensão da própria participação (e interesse) do país no contexto internacional –
História da Europa De salientar que o conhecimento da “História ‑Pátria” não se deve
limitar ao estudo da própria Historia do país. Esta terá, para ser compreendida, de
ser integrada num conjunto mais amplo de eventos, desde logo, no caso português,
na História da Europa, por exemplo. Como diz José Mattoso24: “(…) os fenómenos
verdadeiramente significativos, como se tornou evidente na nossa época de grandes
contactos intercontinentais, são, a maior parte das vezes, num certo plano, os que
resultam da relação de influência ou de oposição de grandes civilizações; e noutro,
os que se podem observar em todas elas ou pelo menos na sua maioria”.
21 Grimberg. pág. 87.22 Grimberg, pág. 99.23 Ariés, pág. 22.24 Pág. 33.
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166 Nenhum país é uma ilha deserta, assim como que nenhum país é neutro em rela‑
ção a outros. Referindo ‑se a um papel europeu de um Portugal geograficamente loca‑
lizado na periferia da Europa, descreve José Mattoso que, afinal, é “(…) através da
periferia que o centro e todo o conjunto incorpora novas contribuições para as cons‑
tantes manifestações temporais e no desenvolvimento das virtualidades da ideia ‑tipo,
que todavia permanece como sistema de referências fundamentalmente idêntico a si
mesmo”25.
“(…) Portugal e a Espanha (e o mesmo acontece também nos países de Leste, em
relação às civilizações orientais), sempre foram lugares onde a identidade europeia é
porventura mais vivamente sentida, do ponto de vista cultural, e como resultante da
presença do . E, ao mesmo tempo, o lugar onde as contradições e as lacunas da civili‑
zação ocidental se apercebem mais agudamente”26.
Portugal “(…) pode e deve manter, e certamente desenvolver, um papel de inter‑
mediário com os outros continentes, no sentido mais amplo e mais dinâmico que este
conceito possa conter”27.
Por outro lado, uma visão transnacional ou mundial ajuda a “(…) relativizar as
situações de crise, mesmo as de crise profunda” (…), através da “(…) evidência da
disparidade de situações existentes actualmente num mundo em que a informação
acerca do que se passa em qualquer parte do globo é muito abundante (…)28”. Como
diz António Borges Coelho29: “A compreensão da História de Portugal não pode
fechar ‑se dentro das fronteiras nacionais (…)”.
A História portuguesa só se pode entender, assim, realmente quando inserida no
contexto dos movimentos e fluxos que influenciaram a comunidade internacional.
Urge, assim, também, como diz Armando Marques Guedes30, para situar Portugal
no Mundo, “(…) consolidar uma história político ‑diplomática portuguesa em bases
científicas adequadas a uma modernidade e um rigor que durante muito tempo nos
iludiram”.
Nesta área, não se pode deixar de citar o papel que, no século XX português, foi
o de Jorge Borges de Macedo, autor de uma verdadeira História da nossa Diplomacia
25 Pág. 157.26 Mattoso, págs. 61/62.27 Mattoso, pág. 162.28 Mattoso, pág. 238.29 Pág. 91.30 Pág. 5.
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167em termos modernos, através de uma “(…) vasta e importante obra, impulsionadora
da renovação que a historiografia portuguesa conheceu a partir da década de 50 e 60
(…)”31, utilizando (…) os “factores concretizáveis” para expor as insuficiências das
explicações ideológicas, que teimavam em ocupar o vazio de uma investigação histo‑
riográfica pouco consolidada”32. Do mesmo modo, “(…) ligava a política externa à
história da sociedade como um todo, aos seus mecanismos de selecção e verificação,
abrindo, assim, novas direcções de pesquisa (…)”33.
Na sua explicação histórica, Borges de Macedo não nos conta, na realidade, nada
que não saibamos já. Muda, é, toda a perspectiva e ponto de vista, tornando ‑se a nossa
História muito mais compreensível e lógica.
O risco do nacionalismo O interesse por temas históricos não significa, por outro lado,
adoptar aquela posição “ufanista” face à História, segundo descreve Ernest Lavisse
quanto ao que nalguns casos pareceu ser a missão do professor primário: “(…) se
o aluno não tiver sempre presente a viva recordação das nossas glórias nacionais; se
não souber que os seus antepassados lutaram, em mil campos de batalha, por causas
nobres; se não aprendeu quanto sangue e quanto esforço foram necessários para
construir a unidade da nossa pátria e retirar, em seguida, do caos das nossas velhas
instituições as leis que nos fizeram livres; se não se tornar um cidadão consciente
dos seus deveres e um soldado que ama a sua arma, então, o professor terá perdido
o seu tempo”.
No entanto, a “(…) memória mítica não nos confere nenhuma efectiva capacida‑
de de resistência às alterações do nosso século”34. Trata ‑se de uma “(…) velha história
(…) que (…) escolhia apenas como dignos de atenção os acontecimentos mais vene‑
ráveis e gloriosos”35.
Pelo contrário, como dizia Lucien Febvre36: “A História não se aprende, a História
compreende ‑se”. E acrescenta José Mattoso37: “Mesmo que (um) (…) acidente tenha
desencadeado graves questões, o que o torna objecto da História não é o facto em si
31 Macedo, pág. 12.32 Santos, pág. 24.33 Faria, pág. 105.34 Mattoso, pág. 116.35 Mattoso, pág. 170.36 Cit. por Pierre, pág. 60.37 Pág. 13.
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168 mesmo, mas o que ele eventualmente possa representar para o destino da humanidade.
Este destino é, por isso mesmo, o único fio condutor na busca de significado da infi‑
nitude de moléculas factuais que engrossa o oceano da História”.
Serão, assim, de repelir “(…) textos com objectivos políticos ou ideológicos que
só aproveitam da História os factos e dados que favorecem uma determinada tese e
ocultam os de sentido contrário”38
Mesmo a historiografia portuguesa – e já sem falar de todo o aproveitamento
puramente político que por vezes dela terá sido feito ‑ padeceu, em certa medida,
certas deficiências que a alienaram do próprio propósito histórico. Como diz
Mattoso39: “(…) o historicismo puro não teve entre nós uma voga muito conside‑
rável. A nossa historiografia foi demasiado marcada por preocupações dominantes
de outra natureza, que lhe imprimiram sempre um pendor demonstrativo ou ideo‑
lógico”.
Claro que ao longo da nossa História nem sempre isso se passou assim. Refere
também José Mattoso que já a partir do final do século XVII se tende a pôr “(…) em
causa a interpretação feita por autores a quem interessava mais o aproveitamento retó‑
rico das narrativas ou a exaltação da autoridade monárquica do que a reconstituição
de um passado neutro e ambivalente”40.
A necessidade de (re)pensar a História de Portugal O pensar, o elaborar sobre qualquer
tema é uma qualidade que se desenvolve e treina como um desporto. E nós
portugueses muitas vezes enfrentamos a actividade do raciocínio – não na perspectiva
puramente prática, do efectivar do dia a dia, mas como acto de aprofundamento da
compreensão da vida – como algo “errado”, susceptível de colocar em causa uma
qualquer autoridade implícita mantenedora daquilo que podemos e devemos ser.
Talvez por isso, muitas vezes, para nós, o pensar torna ‑se uma acção puramente
elogiosa ou crítica, assimilada que por nós é como algo moralmente falso. Louvar ou
destruir torna ‑se, então, mais relevante do que perspectivar o futuro, não obstante
ser uma realidade evidente que as nossas críticas ou louvores não anulam o facto de
termos de continuar a viver no mesmo mundo que com grande potência recusamos
e mentalmente destruímos, ou pelo menos recusamos analisar.
38 Mattoso, pág. 94.39 Pág. 36.40 Pág. 127.
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169Diversos aspectos – importantes – da História de Portugal tendem a ser, assim,
normalmente tidos como verdadeiros, bem como aceites sem discussão das suas teo‑
rias explicativas. Tal aconteceu, por exemplo, com um dos principais acontecimentos
que marcaram o nosso passado, o percurso dos Descobrimentos, felizmente já de uma
forma ultrapassada.
“O que é que torna os Portugueses diferentes dos outros povos? As Descobertas,
a colonização da África ou do Brasil, a capacidade para conviverem com civilizações
não europeias e assimilarem os seus conteúdos, a saudade, a nostalgia, o lirismo, a
incapacidade de programação, o irrealismo, a não violência? Talvez tudo isto. Mas estas
características, detectadas por alguns literatos e pensadores que tentaram reflectir sobre
a nossa História ou o nosso comportamento colectivo na actualidade, não se basearão
em dados mal interpretados e sobretudo numa inventariação de dados falseada à par‑
tida por uma selecção unilateral? Serão características da maioria dos Portugueses, ou
apenas de alguns que estiveram no centro das decisões ou próximos daqueles que têm
de as tomar? De resto, não acontecerá que o facto de nos imaginarmos assim influen‑
cie as nossas próprias limitações e tendências?”41.
Tudo isso carece de uma reflexão a que muitas vezes nos furtamos, por indolência
mental, ou por aquela “vergonha de pensar” que atrás se refere.
Uma questão tão fundamental, raras vezes colocada – mas com repercussões,
mesmo que inconscientes, nos nossos dias – é a da importância real que teve para
todos portugueses a gesta que os levou às Descobertas. Foi um povo inteiro que se
lançou ao mar, ou foi obra de alguns, ignorados ou recusados por outros? Somos,
realmente, um povo inteiro de Vascos da Gama, ou o Velho do Restelo faz parte da nossa
estrutura moral? Seremos uma nação disposta a partir – em tantas e diversas questões,
com reflexos internacionais ou não ‑, ou estaremos cindidos entre os que olham para
longe e os que miram o perto?
Para além de considerações de valor sobre os vários tipos de opções ou compor‑
tamentos, não terá sido por acaso que Vitorino Nemésio colocou a questão ao analisar
a obra de Gil Vicente, um dos nossos principais escritores mas, paradoxalmente, um
aparente desinteressado das grandes Descobertas nacionais, quando elas estavam no
seu auge. “(…) Gil Vicente andava já perto dos quarenta quando Vasco da Gama foi à
Índia por mar e Pedro Álvares Cabral aproou ao Brasil. Se pertencente à geração que
41 Mattoso, pág. 115.
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170 empreendeu as grandes navegações, não tomou parte nelas nem teve, como escritor, a
exaltação da vida marítima (…) Gil Vicente parece representar aquela parte da popu‑
lação portuguesa do começo do século XVI que vivia recolhida aos campos e que,
identificada com a tradição agrária, caseira, dificilmente se adaptava ao ritmo febril da
nova vida”42.
Outra contradição cultural não esclarecida e que constantemente, afinal, nos surge e
se assinala é aquela entre a ânsia por uns cultivada de conquistar e descobrir o que não
temos, sem que, no entender de outros, a própria casa, afinal, fique arrumada e desen‑
volvida. O apego a grandes riquezas almejadas, quando, afinal, no próprio país somos
pobres, como na subtil ironia de Manuel Alegre: “(…) eu que fui pelo mundo e nunca
saí daqui”, ou “Procuras pelo Mundo o Portugal / que em Portugal perdeste”43.
Importa, assim, “(…) desmontar (…) ideias feitas e lugares comuns, não só sobre
problemas fulcrais da História de Portugal, mas também sobre muitos dos debates
contemporâneos que atravessaram a sociedade portuguesa”44. Temos, assim, um dever
perante nós próprios que não se permite limitar a um aceitar de opiniões. Se “(…) a
terra dá o pão à gente, também nós lhe damos pão. E o pão mais rico que lhe damos
não é tanto a semente que a fecunda: é a alma que lhe confiamos”45.
Diversos podem ser, aliás, os exemplos de casos mais obscuros na nossa História,
carecendo de análise que efectivamente comprove a veracidade do que se julga saber,
clarificando o que muitas vezes foi, num passado mais recente, normalmente origina‑
do por um nacionalismo pujante ou por uma agressividade ideológica, destruidora dos
nossos valores e, muitas vezes, da nossa própria identidade.
Por exemplo, relativamente à “(…) celebérrima questão das origens da expansão
portuguesa no princípio do século XV; (só não há muito tempo) deixou de se consi‑
derar inconciliáveis as principais teses em confronto – a que privilegia os factores
económicos e a que prefere dar mais relevo aos factores ideológicos”46.
Também a figura de D. Sebastião é vista normalmente numa perspectiva meramen‑
te romântica ou dramática, retirada do seu real contexto histórico da política interna‑
cional sua contemporânea.
42 Nemésio, págs. 23 e 24.43 Silva, Alberto da Costa e, Bueno, Alexei., p.3844 Macedo, pág. 12.45 Ruas, obra cit.46 Mattoso, pág. 95.
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171Surgem, também, as “(…) leituras sobre a figura de Sebastião José de Carvalho e
Melo, prejudicadas pela projecção no passado de preconceitos presentes e pela super‑
ficialidade da investigação”47.
Preconceito recorrente da nossa mentalidade pública é, também, o relativo a uma
“dependência externa” (económica) constante que enlutaria a nossa História e que,
sem dúvida, careceria de ser examinada “(…) com a devida ponderação da natureza
recíproca das relações comerciais”48.
Outro aspecto com este relacionado – “ressuscitado”, até, recentemente no que
respeita ao Brasil, pelas comemorações dos 200 anos da chegada da Corte Portuguesa,
em 1808 – é a do (alegado) abafamento da indústria nacional (ou colonial) em prol da
importação de produtos estrangeiros. Aparentemente, tratar ‑se ‑ia de um imenso erro
político, ou de mais uma imposição externa. Na realidade, contudo, trata ‑se um proble‑
ma ainda mal esclarecido. Como diz Luís Aguiar Santos49: A “(…) natureza do problema
– a redução de custos de produção que permitisse baixar preços ao consumidor – era
eminentemente económica e de difícil resolução política. A problemática tecnológica,
ligada sobremaneira à problemática dos preços, relativiza a eficácia da substituição de
importações, desiderato da crença desenvolvimentista das políticas industrialistas”.
Na área cultural, muitos mitos se formaram, também, nomeadamente, aqueles
mais recentes, indicando uma suposta aceitação “ipsis verbis” de influências estrangei‑
ras como base de um possível progresso da sociedade em Portugal.
Na verdade, como diz Raul Rasga50 sobre a Cultura portuguesa, Portugal revela um
“(…) núcleo peninsular dotado de mecanismos de construção cultural próprios e que o
distinguiam (e distinguem) do resto da Península”. Quanto às influências decisivas
estrangeiras, nomeadamente aquelas advindas com o Pombalismo, as “(…) elites exis‑
tiam já antes de Pombal, conheciam os textos e as obras que se produziam na Europa
culta do tempo e aproveitavam desse conjunto o que interessava à cultura portuguesa”51.
A “(…) capacidade de seleccionar a partir dos debates contém (…) o que se podia com‑
binar com a tradição cultural existente no país. A esta capacidade de resistência à unifor‑
mização reside a faceta mais importante e mais responsável da cultura portuguesa”52.
47 Santos, pág. 21.48 Santos, Pág. 24.49 Pág. 25.50 Pág. 31.51 Rasga, pág. 32.52 Rasga, pág. 32.
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172 Mais exemplos se poderiam dar de preconceitos e ideias pré ‑concebidas que tan‑
tas vezes alimentamos sobre o nosso próprio passado e, afinal, sobre a nossa própria
existência no Mundo.
A História como realidade dinâmica e auto ‑actualizante Tal não significa, por outro lado,
que seja possível reduzir o “pensar histórico” a um carácter puramente objectivo
e fixo. Lá diz, assim, George Duby53 sobre o uso que sempre fazemos do material
histórico interpretado: “(…) continuamos (afinal) a utilizar esse material (…)
da mesma forma que os nossos antecessores, ao serviço das nossas paixões e da
ideologia que nos domina (…)”. Como diria Valéry54: “…a História serve para
justificar tudo o que se quiser”. E refere ainda José Mattoso: “(…) há, portanto,
uma positividade a instaurar e a quantificar, um método rigoroso a cumprir, mas a
descontinuidade própria dos elementos que fazem o objecto da (…) pesquisa não
(…) permite ultrapassar os domínios da representação das relações”55.
Mas acrescenta Duby56: “Quando digo que sou céptico em relação à objectividade,
é, também, porque penso estar a prestar um serviço às pessoas, persuadindo ‑as de que
toda a informação é subjectiva, que é necessário recebê ‑la como tal e, por conseguinte,
criticá ‑la”. “É absolutamente necessário que o historiador colabore na tarefa essencial
que consiste em manter vivo na nossa sociedade o espírito crítico”57. Pois (…) a História
não é de modo nenhum arbitrária. Tem de se construir segundo regras extremamente
exigentes. Uma vez adoptado um determinado esquema interpretativo, as soluções têm
de ser coerentes”58. Como diz Raymond Bellour59: “Como se o espírito crítico fosse a
dose de sonho necessária a cada indivíduo, na sociedade em que se encontra”.
Numa “(…) sociedade cada vez mais dominada pela informação maciçamente
mediatizada, é indispensável o espírito crítico para avaliar, na medida do possível o seu
efectivo valor”60
“Não há História definitiva, pela simples razão de que a palavra pronunciada, por
mais fundadora e fecunda que seja, está ela própria sujeita ao tempo, torna ‑se ela pró‑
53 Pág. 8.54 Cit. por Pierre, pág. 62.55 Pág. 24.56 Pág. 19.57 Duby, pág. 19..58 Mattoso, pág. 21.59 In Duby, pág. 19.60 Mattoso, pág. 96.
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173prio passado, objecto de outras experiências, o que quer dizer que tem de ser constan‑
temente renovada, constantemente pronunciada para se manter viva”61. “Não é o facto
de ter de reconhecer a irredutibilidade dos dados susceptíveis de fundamentar o dis‑
curso histórico no encadeamento próprio das ciências dedutivas, ou a impossibilidade
de proceder à verificação experimental peculiar das ciências empíricas, que pode dis‑
pensar o historiador actual de usar sistematicamente a crítica para a selecção dos seus
dados e as categorias das ciências humanas para descobrir os nexos susceptíveis de
exprimir a relação que os une ou opõe”62.
Conclusão E essa necessidade de reflexão não se restringe apenas aos problemas do passado.
“Cada vez mais as instituições e organizações têm necessidade de agentes detentores
de conhecimento teórico, mas aplicado aos problemas emergentes e práticos capazes
de se adaptar com rapidez na busca de novas soluções e de sua integração a contextos
plurais e diversos”63.
Nesse sentido, o que interessa é que os problemas (neste caso, históricos), sejam
sentidos pelos que os analisam “como concretamente vividos”64, sendo assim efecti‑
vamente vistos como “historicamente constituídos”65, impedindo o bloqueio da capa‑
cidade de reflexão e assim contribuindo para uma verdadeira capacidade crítica nesse
âmbito, com reflexos na capacidade de análise, estruturação e percepção de situações
do presente. Enfim, a “leitura do presente, a partir do questionamento do passado”66,
Curiosamente, pode ‑se até afirmar, a adopção desse “pensar histórico” (que não é,
como se viu, uma sobrevalorização da História na preparação cultural ou profissional,
ou uma redução dessa preparação e formação a meros estudos históricos) dinamizará,
paradoxalmente, uma maior motivação para a abordagem das questões mais importan‑
tes que se nos colocam ao longo da vida na sua essência constitutiva e tornando ‑se,
portanto, muito mais compreensíveis para nós67.
61 Mattoso, pág. 22.62 Mattoso, pág. 24.63 Matta, pág. 26.64 Matta, pág. 48.65 Matta, pág. 48.66 Mata, pág. 51.67 Já que o formando pode encarar a aprendizagem da História “(…) como sendo do seu interesse particular, a
autenticidade do problema dado provoca auto ‑iniciativa (…) e possibilita auto ‑aprendizagem, autocrítica
e auto ‑avaliação” (Mata, pág. 67).
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174 Podemos, assim, concluir com José Mattoso que “(…) o recurso à história será
(…) um dos mais procurados pontos de apoio para a aquisição de uma nova consci‑
ência nacional, agora formulada em termos diferentes dos tradicionais entre nós”68.
E essa consciência reflectir ‑se ‑á também, sem qualquer dúvida, na nossa própria
consciência pessoal.NE
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177Notas de Leitura
179
retrovisorum álBum de famíliade Vera Futscher Pereira Editora: Rui Costa Pinto Edições
Lisboa, 2009
o que seNti quando acabei de ler e ver
“Retrovisor” chegou‑me numa paráfrase do
primeiro verso do Endymion de Keats1, de que
me sirvo agora para dar nome a esta resenha
do livro. Da capa à contracapa é amor de
filha, de irmã, de neta, de tia, de sobrinha,
A thing of love is a joy forever
José Cutileiro*
de viajante em vários mundos, que dá cora‑
ção à aventura em que a autora se meteu,
ajudada por legados de Pai e Mãe, escravos
desde pequenos do tão certo secretário com
quem a pena desafogavam e meticulosos na
guarda de escritos assim feitos e de mais
papelada.
Sobre esse espólio muito variado – de
poesia lírica intimista a telegramas diplomá‑
ticos, passando por ‘O livro do bébé’ –, um
acervo de fotografias e mais documentos
coevos, o livro acompanha por algumas gera‑
ções uma família burguesa de Lisboa –, ou
melhor, porque o nosso sistema de parentes‑
co é cognático, várias famílias vindas do
século XIX que em duas gerações afunilam
até ao casal Margarida‑Vasco e alargam depois
noutras duas chegando às novas famílias dos
seus filhos e netos. Margarida e Vasco são por
assim dizer o epicentro, os heróis principais
do livro, mas este demora‑se também em
mais gente que com eles teve a ver, da família
chegada a amigos de passagem, em Portugal,
no Brasil e noutras partidas do mundo. A
autora entremeia na narrativa informações
* Embaixador.1 A thing of beauty is a joy forever.
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180 sintéticas datadas que nos recordam o que se
ia entretanto passando, em paz ou em guerra,
na história de Portugal e do mundo.
O livro está muito bem escrito, é grá‑
ficamente bem‑sucedido, folheia‑se com
gosto e como acontece com fotobiografias,
a cujo género pertence, presta‑se a ser lido
de várias maneiras, desde ir olhando para
os bonecos como se de um ‘coffee table book’
se tratasse – assim comecei eu – a escrutínio
atento de fio a pavio, que me entreteve um
serão em seus enredos romanescos. Embora
me pareça que, para quem goste de História
e de histórias bem contadas, o livro possa
interessar mesmo quem não tenha conhecido
qualquer dos seus personagens, enriquece
com certeza a leitura ter privado com alguns
deles, sobretudo com os principais. Por mim,
não conheci Margarida, pessoa quasi inteira‑
mente privada, de quem Ruy Cinatti me falou
às vezes com grande ternura e cujos versos só
agora li mas conheci um pouco Vasco, de
quem fui colega, que em 1982 e 1983 foi
meu ministro e que é de longe a figura públi‑
ca mais importante entre as capas do volume
(outra é o pai de Margarida, colaborador
chegado de António Ferro quando este diri‑
gia o Secretariado de Propaganda Nacional).
Encontramo‑nos pela primeira vez num
almoço al fresco na Gôndola, organizado para
o efeito pelo Vasco Valente e o Fernando
Andresen, estava eu em posto em Estrasburgo
e Futscher em Nova Iorque. Chegou atrasado,
como era seu costume, e contou‑nos que na
véspera à noite não conseguira falar ao tele‑
fone com a Malu, que ficara em Manhattan,
devido a impossibilidade da Marconi estabe‑
lecer a ligação. Nas conversas que pela noite
fora, em sucessivas tentativas, tivera com a
operadora – de quem fora fazendo amiga e
aliada – julgara identificar problemas de pes‑
soal e de organização que levavam à insufi‑
ciência de serviço de que fora vítima. A
seguir ao último ensaio vão de atingir Nova
Iorque, metera pena ao tinteiro (era assim
que gostava de escrever) e passara o resto da
madrugada e a manhã a compor uma carta
sugerindo soluções ao director da Marconi,
que acabara de ir entregar na sede da compa‑
nhia, já não me lembro em que rua da Baixa
pombalina. Era um português transitivo.
A esse primeiro encontro seguiram‑se
outros, ao acaso de circunstâncias. Vindo do
Conselho de Segurança, ficou em minha casa
em Estrasburgo numa visita ao Conselho da
Europa. E, ministro dos estrangeiros quando
Francisco Balsemão era Primeiro‑Ministro
veio com ele numa viagem oficial a Maputo
ao fim da qual negociou com Chissano, seu
homólogo moçambicano, o comunicado de
imprensa. Eu participara antes na negociação
de outro comunicado de visita oficial a
Moçambique, dessa vez do Presidente da
República, sempre com Chissano do lado de
lá, mas com outro ministro dos estrangeiros
do nosso lado. Ambas as sessões foram cor‑
rectas e eficazes mas na segunda, mal se sen‑
tara à mesa e haviam sido trocadas as corte‑
sias de circunstância, Chissano tinha já, por
assim dizer, absorvido dois valiums que o
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181charme de Vasco infiltrara nele e passamos
todos a seguir uma hora feliz.
Esse charme legendário, ao serviço de
considerável intelecto e de uma curiosidade
voraz, ajudou muitas vezes Vasco Futscher a
levar a água ao seu moinho mas havia quem
lhe fosse insensível. Nessas ocasiões o meu
amigo ficava, como o desertor do poema de
Desnos, a parlamentar com sentinelas que
não compreendiam o que ele lhes queria
dizer. Mas, do começo ao fim da vida, tal
aconteceu‑lhe muito raramente. Quando ele
morreu dei por mim, que sou ateu tal como
ele era, a imaginar a conversa com S. Pedro
em que o Santo, seduzido, lhe abria as portas
do céu.
Comunicações diplomáticas suas em
momentos complexos da história portugue‑
sa, páginas do seu diário, testemunhos de
colegas e amigos nutrem a narrativa, recor‑
dando o diplomata excepcional que ele foi (e
pondo muito justamente em relevo ter sido
ele quem, em ocasião crítica, mantivera viva
a causa de Timor‑Leste nas Nações Unidas,
tornando assim possível a independência
negociada do país anos depois). Toda a gente
que com ele – ou contra ele – trabalhou sen‑
tiu o cunho da sua personalidade invulgar na
aplicação das regras intemporais da arte
diplomática. O poder de uma pequena potên‑
cia pode ser aumentado pelo talento eficaz de
quem a represente e o exemplo de Vasco
Futscher afinou a minha capacidade de ava‑
liar o desempenho dos diplomatas. Desde
então tenho para mim que um embaixador
mau não representa o seu país, que um
embaixador razoável representa o seu país – e
que um embaixador bom disfarça o seu
país.
O encanto e interesse de “Retrovisor”
não se esgotam no que nos diz ou sugere
sobre os dois personagens principais. Amor
filial não impede a autora de contar feitos e
mostrar caras de muitas outras pessoas, situ‑
ando nos seus lugares e no seu tempo os
múltiplos actores e actrizes desta saga, desde
os que já morreram há muito tempo aos que
agora começam as suas vidas. E aprendem‑se
coisas. Eu, por exemplo, não sabia que o
Bernardo, meu antigo chefe de gabinete na
União da Europa Ocidental, tinha sido cam‑
peão nacional de florete dos menos de 20
anos – e descobri que o primeiro Futscher
chegado a Portugal, no século XIX, fora um
austero suíço alemão protestante – e não,
como eu imaginara do convívio com Vasco,
um judeu céptico e bon vivant do Império
Austro‑Húngaro.NE
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arquitectos da paza diplomacia portuguesa de
1640 a 1815de Ana Leal de Faria
Editora: Tribuna da HistóriaLisboa, 2008
teNho muito prazer em apresentar este livro
de Ana Leal de Faria, sobre um tema que me
é especialmente grato por lhe ter consagrado,
na actualidade e a tempo inteiro, um pouco
mais de 40 anos da minha vida.
E assim esse mundo dos diplomatas e
das sociedades em que estão inseridos, tanto
Leonardo Mathias*
nacional como internacionalmente, que a
autora com autoridade e conhecimento nos
descreve, entre 1640 e 1815, não me é total‑
mente alheio, embora o meu mundo se situ‑
asse entre 1960 e 2001.
As linhas de força do que devia ser a
diplomacia portuguesa estavam lançadas,
depois da Restauração, quando os diplomatas
de Portugal agiram, no processo de consoli‑
dação de um Estado moderno, num dos mais
duros e difíceis períodos da nossa História,
de forma essencialmente positiva, não desa‑
nimando perante as contrariedades e revelan‑
do qualidades de determinação e de coragem,
tantas vezes exemplares. Eles que, nas palavras
do Visconde de Santarém, bem dominavam
“a importante sciencia de negociar” no que
ela tem de capacidade de sedução, de persua‑
são e de influência.
Ana Leal de Faria traça‑nos um quadro
do que foram esses quase dois séculos em
que a diplomacia esteve presente num mundo
em constante transformação, com os seus
permanentes conflitos europeus e as suas
repercussões além mar, com as suas vitórias e
também as suas derrotas, diplomáticas ou
* Embaixador. Texto apresentado na cerimónia de lançamento do livro.
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183militares, com os seus Tratados, concluídos e,
tantas vezes, logo anulados. E nesse contexto
permanece o espírito e a vontade da diplo‑
macia portuguesa de salvar a soberania e a
independência de Portugal.
Quando se alteravam as posições no
xadrez dos confrontos e se mudavam as alian‑
ças, – falava‑se em “inversão de alianças” – se
passava da neutralidade para o conflito e
deste, de novo, para a neutralidade. E se fazia
frequente uso do ultimato.
Quando se dá inicio a relações diplomá‑
ticas que, em breve período de tempo, serão
interrompidas para voltarem, poucos anos
depois a existir.
Quando o fenómeno religioso interfere,
e se vê católicos e cristãos novos, protestantes
e agnósticos e até monárquicos e republica‑
nos, nos combates entre velhas dinastias
europeias e novas concepções da organização
das sociedades.
Quando a diplomacia é casamenteira e
os casamentos procuram ir ao encontro de
interesses nacionais de convívio e de paz, ou
quando serve para apresentar pêsames ou
parabéns. É uma diplomacia hábil e compe‑
tente e empenhada na defesa do país e dos
seus territórios ultramarinos.
Estamos perante uma vasta e muito
completa investigação em que se juntam,
para esclarecimento do leitor atlas, redes da
diplomacia, que a autora desenha num con‑
junto de curiosos quadros que dão a medida
das ambições do Estado e da dificuldade e
dureza da tarefa, sobretudo nos primeiros
anos que se seguiram à Restauração, biogra‑
fias de diplomatas do período tratado, indica‑
ções de numerosas fontes e até de um léxico
de diplomacia num trabalho que é, só por si,
excepcional, e que perdurará porque servirá
de útil e necessária consulta para futuros tra‑
balhos deste tipo, tão abundante e minuciosa
é a documentação citada.
Mas a autora vai mais longe, na vontade
de compreender, absorver e transmitir‑nos o
que era a diplomacia da época – não muito
diferente da actual – e quais os meios de que
dispunha e como os aplicava para o desempe‑
nho da sua missão.
Fala‑nos no perfil do Embaixador, em
condições com as quais me atreveria a criti‑
car, porque me parece que não lhe cumprem,
no exercício de funções diplomáticas, inicia‑
tivas políticas e sobretudo porque é alheia à
espionagem ou que esta é apenas um subpro‑
duto ocasional, mas é a própria autora que
esclarece com razão que “o ofício do diplo‑
mata não se aprende nos livros. Requer um
conhecimento aprofundado dos homens e
uma particular sensibilidade às relações
humanas”.
Demora‑se a mencionar os saberes do
Embaixador, e da forma como, com o tempo
e com os dados da realidade local onde esta
acreditado, com o seu entendimento das pes‑
soas e das instituições, e com as instruções
que vai recebendo, apura a sua maneira de
agir num mundo complexo, onde os inimi‑
gos de Portugal também agem com a sua
própria politica externa.
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184 Procura exemplificar com casos concre‑
tos, a que faço breve alusão pelo alcance de
que se revestiram. E assim leva‑nos depois da
paz de Vestefália à diplomacia a que chama,
poderá dizer‑se que contraditoriamente, de
guerra. Portugal, reconhecido apenas pelo
Reino Unido, a França a Holanda e a Suécia,
e enfrentando a hostilidade de Espanha apoia‑
da no Vaticano, tem de usar de imaginação
criadora. E a diplomacia multiplica a sua
acção e consegue armas e munições em
França e obtém o casamento, em Londres, da
Infanta Dona Catarina com o Rei D. Carlos II.
1668 marca o restabelecimento das rela‑
ções diplomáticas com Madrid, o que não
acontece sem os sobressaltos de que a autora
nos dá conhecimento. E, continuando a resu‑
mir, vemos a análise que depois Ana Leal de
Faria faz da Guerra de Sucessão de Espanha e
do papel de Portugal nessa guerra, designada‑
mente depois da entrada em Madrid das for‑
ças coligadas, comandadas por um portu‑
guês, o Marquês de Minas, em 28 de Junho
de 1706
Mas vão seguir‑se as derrotas que conhe‑
cemos.
Os conflitos multiplicam e atingem toda
a Europa no final do século XVIII, a que a
Revolução Francesa dá cunho especial.
Portugal vê‑se envolvido nas guerras que a
França desencadeia. A autora descreve‑nos,
com a sua habitual qualidade intelectual, os
dilemas da diplomacia portuguesa que são
sérios e aos quais depressa se dá conta de não
poder escapar. O Tratado de Fontainebleau
entre Carlos IV de Espanha e Napoleão I é o
mais duro atentado à existência de Portugal,
dividido em três” bocados”, como diz a
autora, e ameaçada a língua. O país sofre três
tentativas de invasões francesas e tempo de
ocupação estrangeira. Mas salva‑se com a
inteligente e brilhante, nas suas consequên‑
cias, decisão da partida da Corte para o Brasil,
que preserva a identidade da Pátria, a autora
recorda‑nos que a elevação do Brasil a Reino
Unido de Portugal e dos Algarves foi aprova‑
da no Congresso de Viena, decisão que salva
a monarquia e permite depois o regresso de
D. João VI a Lisboa deixando o seu filho
Imperador no Rio de Janeiro.
Pela riqueza e densidade da sua investi‑
gação e pela forma elevada como aborda o
papel da diplomacia em fases cruciais da
nossa vida colectiva, permito‑me aconselhar
vivamente a leitura deste belo livro da
Professora Doutora Ana Leal de Faria.NE.
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haNdBook of iNtelligeNce studies
de Loch K. JohnsonEditora: Routledge
Londres, 2009
Loch K. Johnson1 traz‑nos o que prova‑
velmente será um dos mais estimulantes
volumes introdutórios/gerais ao mundo das
Informações até à data publicados. Embora o
Do estudo ao escrutínio parlamentar: uma introdução às
Informações
Filipe Ortigão Neves*
título sugira uma abordagem académica, o
livro tem um alcance abrangente que poderá
interessar um vasto leque de leitores: desde
políticos (tanto no executivo como na
Assembleia da República) a juízes e magistra‑
dos; de diplomatas, a militares e oficiais de
informações; de académicos e estudantes que
se debrucem sobre a matéria, até ao leigo
interessado.
O grande trunfo deste livro em relação
a outros do mesmo género reside no facto de
contar com a colaboração de 27 especialistas.
Cobre assim, através dos seus 26 capítulos,
um lato espectro de questões com uma pro‑
fundidade e diversidade que dificilmente
poderia ser alcançada por um só autor. Este
volume é enformado não apenas pela pes‑
quisa e análise académica, como também
pela experiência profissional de alguns dos
autores.
Tratando ‑se, na sua maioria, de norte‑
‑americanos, o livro é naturalmente marcado
* Investigador. Mestre em Intelligence and International Security, pelo King’s College London.1 Regents Professor de Ciência Política na Universidade de Geórgia, EUA, e editor da revista Intelligence and
National Security. Serviu nas comissões de informações e de negócios estrangeiros do Senado e da Câmara
de Representantes e foi consultor do Conselho Nacional de Segurança, do Departamento de Estado e da
Subcomissão do Senado de Separação de Poderes. É autor de vários livros e artigos sobre Informações e
segurança nacional dos EUA.
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ão à
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form
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s
186 pela experiência dos EUA. Apesar deste inevi‑
tável enfoque, os temas cobertos e as refle‑
xões deles decorrentes são pertinentes e
muito úteis. Convém sublinhar que o estudo
e análise dos serviços de informações e das
suas actividades se encontra, por agora, mais
desenvolvido entre os anglo‑saxónicos – fruto
da sua inegável importância para o desempe‑
nho do Reino Unido e dos EUA durante a
Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. Não
alheio a isto, regista‑se também uma maior
abertura para discutir esta temática e a exis‑
tência de ligações próximas e um diálogo
entre a academia e as instituições e órgãos
governamentais.
O livro encontra‑se dividido em seis
partes, que examinam os tópicos centrais do
estudo das Informações, das quais gostaría‑
mos de chamar especial atenção para duas,
nomeadamente a primeira e a sexta parte. A
primeira interessará, em especial, aos que se
interessem pelo estudo das Informações. A
sexta parte será de particular interesse para
políticos, em especial, ao legislador com
assento no parlamento e comissões relevan‑
tes, e para juízes e magistrados que por ine‑
rência de funções lidem com questões ligadas
às Informações.
A primeira parte é dedicada à temática
do estudo das Informações. Dos seus quatro
capítulos, o primeiro discute diferentes abor‑
dagens aos desafios do estudo das Informações,
sobretudo no que respeita a casos concretos,
tanto para o investigador institucional como
para o pesquisador externo. O segundo capí‑
tulo analisa a abordagem americana ao estu‑
do das Informações. Identifica factores que
moldam o interesse americano no assunto e
a abordagem dele decorrente; uma sociedade
aberta e relativamente bem informada, a exis‑
tência de uma academia que procura com‑
preender os serviços de informações, o seu
funcionamento, os seus sucessos e fracassos
através da aplicação de métodos de estudo e
análise provenientes das ciências sociais.
Também conta a preocupação em manter os
serviços de informações e as suas actividades
sob escrutínio democrático sem contudo as
desprover do sigilo necessário à sua eficácia.
O capítulo seguinte discute os desafios e
meandros inerentes à elaboração de uma his‑
toriografia de um serviço de informações,
neste caso o FBI, sugerindo possíveis instru‑
mentos e perspectivas de inquérito e análise.
O capítulo final foge ao sentido geral desta
primeira parte e oferece uma estimulante
discussão sobre a ética nas actividades dos
serviços de informações.
Destacamos esta primeira parte, em par‑
ticular os primeiros três capítulos, por dar ao
leitor, sobretudo ao pesquisador, uma con‑
textualização epistemológica ao estudo das
informações e por oferecer ideias para pensar
avenidas de pesquisa e análise enriquecedo‑
ras. Neste veio, sublinhamos também o
segundo capítulo da segunda parte, que, a
nosso ver, deveria ter sido o capítulo final da
primeira. Este aborda o estudo e a análise
comparativa de diferentes serviços de infor‑
mações. Aponta para necessidade de desen‑
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187volver métodos que facilitem uma análise
comparada estruturada, advertindo, contudo,
para as limitações inerentes neste tipo de
estudo.
A segunda parte trata a evolução das
informações modernas. Numa perspectiva
estrutural, será a parte que deixa mais a
desejar. Não pela qualidade dos seus três
capítulos, mas sim, por no seu conjunto,
não preencherem as expectativas que o títu‑
lo dado a esta parte sugere. Como já foi
apontado, um dos seus capítulos, o segundo,
teria tido maior pertinência na primeira
parte.
O primeiro capítulo desta segunda parte
trata do escrutínio, controlo e dos respectivos
mecanismos internos e externos (estes últi‑
mos, o político, parlamentar e judicial) dos
serviços de informações e das suas activida‑
des. Este tem sido um aspecto que tem evolu‑
ído ao longo das últimas décadas, e que faz
com que seja o capítulo com mais clara rele‑
vância para esta segunda parte. O terceiro
capítulo explora um caso concreto, o papel
dos EUA na criação dos serviços de informa‑
ções alemães no pós‑guerra a partir dos ves‑
tígios do aparelho securitário do Terceiro
Reich. Pelas questões da problemática histo‑
riográfica que aborda, teria maior pertinência
na primeira parte do livro, embora também
não destoe inteiramente da temática desta
segunda parte. Um capítulo adicional, ou
talvez dois, de natureza mais geral e abran‑
gente, teriam composto esta segunda parte de
forma mais satisfatória.
A terceira e quarta parte do livro tra‑
tam do ciclo (de produção) de informações.
A primeira, das duas, cobre os métodos e
disciplinas de recolha de informações, a
segunda trata as questões de análise, disse‑
minação e impacto das informações produ‑
zidas. Destacaremos aqui apenas dois capí‑
tulos.
O primeiro, sobre a pesquisa de infor‑
mações por fontes abertas, aponta para a sua
utilidade no trabalho de informações desen‑
volvido por forças multinacionais na ausên‑
cia de protocolos oficiais que permitam a
partilha de informações entre forças de dife‑
rentes países. Também adverte quanto ao
fraco aproveitamento deste meio de pesquisa
que, a relativamente baixo custo, permite
obter num curto espaço de tempo, um
manancial de informação considerável e que
continua a ser negligenciado ou pouco apro‑
veitado por órgãos de decisão públicos e
privados. O segundo trata das informações
de cariz económico (industrial, tecnológico
e cientifico) com uma abordagem e disserta‑
ção interessante sobre o assunto, não muito
usual neste tipo de livros de carácter intro‑
dutório/geral. Diferencia entre a pesquisa de
informações no sector económico, activida‑
de legítima e importante, e a espionagem
económica, actividade clandestina e que em
termos latos afecta negativamente a produti‑
vidade e inovação económica.
A quinta parte deste livro aborda as acti‑
vidades de contra‑espionagem e as acções
encobertas – actividades de subversão e exer‑
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188 cício de influência que não possam ser direc‑
tamente associadas ou imputáveis ao manda‑
tário.
Destacada no início, a sexta e última
parte deste livro trata do escrutínio democrá‑
tico e judicial dos serviços de informações e
das suas actividades. Com quatro capítulos
dedicados ao tema e um quinto adicional, se
considerarmos o primeiro capítulo da segun‑
da parte, este volume aborda esta questão
com uma riqueza e diversidade de pesquisa e
análise fora do comum num livro de carácter
introdutório/geral.
O primeiro capítulo analisa o escrutínio
parlamentar no Reino Unido, tendo por
objecto de análise os inquéritos feitos às
informações sobre as armas de destruição
maciça do Iraque. Disserta sobre as limitações
das comissões de inquérito, em particular,
[quanto] no que diz respeito a mandatos e ao
acesso a material classificado. Sublinha tam‑
bém a necessidade de conduzir tais inquéri‑
tos com sobriedade e as devidas medidas para
salvaguardar os inquiridos de indesejáveis
pressões públicas e mediáticas – que neste
caso resultaram no suicídio do Dr. David
Kelly.
O segundo capítulo investiga a legisla‑
ção de escrutínio e de controlo dos serviços
de informações em diferentes democracias
liberais, analisando três aspectos: o grau de
independência e a eficácia parlamentar no
escrutínio dos serviços de informações e
assuntos relacionados; a incorporação da sal‑
vaguarda dos direitos humanos no interior
dos serviços; e a neutralidade política dos
mesmos. Para cada um, apresenta uma com‑
pilação de bons exemplos de legislação pro‑
veniente de diferentes países. Pelo tópico que
analisa, possivelmente será dos mais interes‑
santes capítulos deste volume
Os dois últimos capítulos focam os
EUA. O primeiro examina a evolução do
escrutínio judicial dos serviços de informa‑
ções e da sua utilização por parte do execu‑
tivo. Este escrutínio evoluiu a partir de duas
necessidades. Primeiro, a de conter a actua‑
ção e utilização dos serviços de informações
– por inerência secreta – dentro dos limites
do quadro legislativo, prevenindo e punindo
abusos. A segunda, a necessidade de salva‑
guardar direitos fundamentais individuais,
como o direito a um julgamento transparen‑
te ou o direito à privacidade. Embora com‑
parativamente mais restrito em relação ao
escrutínio exercido pelo Congresso, não
deixa de ser um instrumento importante no
controlo e regulamentação da actuação do
executivo e dos serviços de informações.
Como constata lapidarmente o autor deste
capítulo “Nothing concentrates the mind
and dampens excess so wonderfully as the
imminent prospect of explaining one’s
actions to a federal judge”.2
2 JOHNSON, Loch K. ed. Handbook of Intelligence Studies, Routledge, Londres, 2009, p. 340.
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189O segundo e último capítulo discute as
insuficiências do escrutínio exercido pelo
Congresso. A análise feita aponta a falta de
interesse pela temática e ausência de um
processo de escrutínio regular, por ser elei‑
toralmente pouco lucrativo, revelando a
acção do Congresso ser sobretudo reactiva
face a escândalos e fracassos dos serviços de
informações. Ao alhearem‑se assim da sua
responsabilidade de escrutínio, sublinha o
artigo pertinentemente, os representantes
eleitos deixam de estar em posição de asse‑
gurar a eficácia dos serviços de informações,
falhando, portanto, na sua responsabilidade
de velar pela segurança e interesses da socie‑
dade que os elegeu.
Fica assim, uma sinopse deste livro.
Enquanto volume introdutório/geral, é extre‑
mamente rico e variado no que respeita à
pesquisa e análise que apresenta. Tal como
pretende o seu editor, oferece sugestões e
estímulos à reflexão e pesquisa neste campo.
Não sendo uma monografia, ao contrário da
maioria das publicações deste género, o
Handbook of Intelligence Studies não usufrui de uma
coerência estrutural equilibrada patente
naquelas, e que por elas é mais facilmente
alcançada. Como já indicámos, a distribuição
e organização dos capítulos da primeira e da
segunda parte não será a mais feliz.3 Os 26
ensaios que constituem os capítulos deste
livro, apesar de tratarem os principais temas
no estudo das informações, fazem‑no conso‑
ante a lógica do tema e a abordagem escolhi‑
da pelos seus autores. Resulta assim, um tra‑
tamento menos equilibrado dos tópicos e
acaba por haver uma identificação, categori‑
zação e esquematização menos clara e explí‑
cita neste volume do que a encontrada nas
monografias, aspecto que interessará ao leitor
estreante. Mas esta é uma crítica menor face
ao interesse e valor que este volume encerra,
e que o leitor facilmente ultrapassará através
de monografias como as de Michael Herman,
Walter Laqueur ou de Abram N. Shulsky e
Gary J. Schmitt, entre outros.NE
3 Reconhecemos que este reparo não teria razão de ser, caso o volume fosse apresentado na sua estruturação
como uma colecção de ensaios, tal como Johnson perfila na sua introdução ao volume. Mas isto, de facto,
não acontece. Essa opção provavelmente implicaria uma organização dos ensaios (note‑se que já não os
referimos como capítulos) diferente, mas que julgamos não seria tão satisfatória para o editor. Haveria,
vejamos por exemplo, um ensaio solitário sobre ética face a um bloco substancial de ensaios sobre ques‑
tões de pesquisa de informações.
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190
seeds of terror. hoW heroiN is BaNkrolliNg the
taliBaN aNd al qaedade Gretchen Peters
Editora: Thomas Dunne BooksNova Iorque, 2009
semeNtes do terrorismo (Seeds of Terror) trans‑
porta‑nos para uma viagem ao mundo das
relações promíscuas entre os movimentos
subversivos e o narcotráfico no Afeganistão.
Segundo a autora, Gretchen Peters, o movi‑
mento talibã e os traficantes de droga con‑
Carlos Martins Branco*
fundem‑se e misturam‑se de tal modo que se
torna impossível tratá‑los como assuntos
separados. Peters chama a esta união de nar‑
cotraficantes, grupos terroristas e submundo
do crime internacional o novo eixo do mal.
Peters explica ao longo de 300 páginas
de leitura envolvente, por vezes excitante,
que se lêem quase como um romance, como
é que o comércio da droga se tornou vital
para a sobrevivência dos talibãs, defendendo
como remédio santo para essa enfermidade
a necessidade de secar a sua fonte de finan‑
ciamento, ou seja, a desarticulação do nar‑
cotráfico como a forma última de os derro‑
tar. Aí se deveria concentrar a acção dos
Estados Unidos, sublinha a autora.
O facto de a investigação estar bem
documentada – grande parte das referên‑
cias a que se socorreu tem origem nos
relatórios da DEA (Drug Enforcement Admi-
nistration) – e resultar de um profundo
conhecimento da região – calcorreada pela
autora durante mais de uma década como
jornalista ao serviço da Associated Press e
da ABC News – tornam o livro um docu‑
mento incontornável.
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* Major‑General. Director de Doutrina do Exército.
191Ela explica com mestria como o comér‑
cio da heroína se misturou ao longo dos
tempos com os desenvolvimentos políticos
do país, muito em particular desde a Jihad
levada a cabo pelos Mojahedines contra o
Exército soviético nos anos 80 até aos dias
de hoje, dando especial ênfase ao papel cru‑
cial desempenhado pelos traficantes de
droga e pelos chefes tribais na ascensão dos
talibãs ao poder, assim como na consolida‑
ção e manutenção do regime, fazendo com
que o Afeganistão se tivesse transformado
durante o governo talibã num narco‑esta‑
do.1 Essa análise estende‑se ao período que
se segue à intervenção militar americana,
em Outubro de 2001, no rescaldo dos acon‑
tecimentos de 11 de Setembro desse mesmo
ano contra as torres gémeas, precisando
com detalhe o modo como o dinheiro da
heroína salvou os talibãs de soçobrar e lhes
permitiu reincarnar numa versão ainda mais
brutal daquela que governou o Afeganistão
nos anos 90.
Peters faz um retrato exemplar das via‑
gens espúrias do dinheiro da droga, salien‑
tando as dificuldades em lhe seguir o rasto,
assim como detectar a lavagem do dinheiro
que lhe está associada, numa região do
globo onde impera a ilegalidade e a corrup‑
ção e que na prática é um autêntico wild west
financeiro. Para esta situação, concorre deci‑
sivamente o hawala, um sistema informal de
transferências e envio de dinheiro alternati‑
vo e paralelo ao sistema bancário tradicional
predominante naquela região do mundo, o
qual é constituído por uma rede de interme‑
diários (hawaladars) que operam sem instru‑
mentos promissórios e sem registos das
transacções, e a que, curiosamente, acorrem
também algumas organizações internacio‑
nais que operam na zona.
Centrada nas políticas americanas para
a região, Peters faz uma incursão na política
americana contra a droga e às complexida‑
des que lhe estão associadas, nomeadamente
no que respeita às vicissitudes da aplicação
do Direito Internacional. A autora procura
explicar porque é que aquelas políticas
falharam no Afeganistão e propõe uma nova
abordagem. Peters desfaz o tão propalado
mito da proibição do cultivo da droga
durante o período talibã. Inicialmente, os
talibãs manifestaram‑se contra o negócio do
ópio, mas só actuaram contra ele num
número muito reduzido de casos. O narco‑
tráfico foi sempre a principal fonte de finan‑
ciamento dos grupos insurrectos. Mas a
queda do regime em 2001 veio acentuar
essa dependência, que se tornou vital para a
sua sobrevivência. Também encontramos no
livro uma descrição pormenorizada do papel
desempenhado pelos paquistaneses no nar‑
cotráfico e das relações que estes mantive‑
ram e mantém com os grupos afegãos.
1 O relato refere como o Afeganistão se tornou um destino cool do roteiro hippie dos anos 60, devido ao haxixe
barato e à paisagem arrebatadora.
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192 O livro põe ainda a nu as contradições
da política americana na região desde a Jihad
contra a União Soviética, nomeadamente as
relações com os serviços secretos paquista‑
neses (ISI), os quais introduziam no
Afeganistão armas e materiais destinados
aos combatentes afegãos e no regresso ao
Paquistão traziam heroína. Peters descreve
com rigor os dilemas levantados pelo envol‑
vimento de figuras gradas do regime e do
governo afegão no narcotráfico, com quem
Washington se vê na inevitável contingência
de ter trabalhar e de contar como aliados
incontornáveis no combate à Al‑Qaeda.
O livro é muito crítico da complacên‑
cia posta no combate à droga pelas sucessi‑
vas administrações americanas, acusando‑as
de centrarem a sua actuação na perseguição
dos dirigentes talibãs e da Al‑Qaeda, em vez
combaterem o sistema que os apoia. Segundo
Peters, é necessário encontrar um modo de
fundir a operação contra‑subversiva com a
operação da DEA contra os narcóticos. Se é a
droga que alimenta a violência e a subver‑
são, então a prioridade das políticas devia
ser colocada no combate à droga e ao narco‑
tráfico que as sustenta. Na embaixada ame‑
ricana em Cabul lutar contra o narcotráfico
era menos importante do que combater os
terroristas, exactamente como tinha aconte‑
cido no tempo dos soviéticos, acrescenta a
autora.
Peters critica de uma forma velada a
resistência do Pentágono e dos militares
americanos em se envolverem no combate à
droga, nomeadamente na desarticulação dos
mercados do ópio, no desmantelamento dos
laboratórios de processamento de droga e
na interdição dos carregamentos, rejeitando
sistematicamente os pedidos de apoio da
DEA. Não obstante, expõe de uma forma
neutral os motivos por detrás dos receios do
Pentágono em participar nestas actividades.
Atacar os cultivadores de ópio significa um
rude golpe na campanha pelas almas e cora‑
ções, tão decisiva no combate contra‑sub‑
versivo. Mas, para além disso, os aliados da
CIA e dos militares americanos no combate
à Al‑Qaeda e aos talibãs estão igualmente
envolvidos no narcotráfico.
Estas duas estratégias de actuação dis‑
tintas chocam e são responsáveis pelas ten‑
sões e rivalidades existentes entre o Pen‑
tágono e a DEA. O livro faz igualmente eco
das divisões entre americanos, ingleses e a
Administração Karzai sobre as estratégias a
seguir. Enquanto os americanos acusavam a
estratégia britânica de ser desajustada, tanto
conceptual como operacionalmente, britâ‑
nicos e Governo afegão opunham‑se vee‑
mentemente às propostas americanas da
erradicação das plantações de ópio através
de pulverização aérea. A tudo isto juntam‑se
ainda as reticências do Presidente Karzai em
perseguir os seus aliados tribais envolvidos
no tráfico de drogas, nomeadamente os da
etnia Pasthun, por necessitar do seu apoio
para competir com os rivais talibãs que se
apoiam igualmente na etnia Pasthun. São
ainda referidos com pormenor os proble‑
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193mas de natureza legal que se levantam ao
Reino Unido com a extradição de indivídu‑
os ligados ao narcotráfico, detidos fora das
suas fronteiras.
Para além de um excelente ponto da
situação sobre o desenvolvimento do narco‑
tráfico no Afeganistão e de uma notável
caracterização das envolventes políticas, o
trabalho de Peters tem o mérito de arriscar
soluções. Critica a pulverização aérea, e
sugere uma acção militar da coligação em
larga escala (leia‑se das forças americanas
que actuam no âmbito da operação Enduring
Freedom, e não das forças da OTAN) contra os
cabecilhas dos traficantes, de modo a secar o
fluxo do dinheiro da droga que alimenta os
grupos de insurrectos e terroristas. Sugere
também que a Coligação aniquile o peque‑
no número de especialistas que é capaz de
transformar o ópio em heroína. A materiali‑
zação desta estratégia colocaria de imediato
um enorme obstáculo à produção de heroí‑
na. A Força Aérea deveria bombardear os
laboratórios e atacar as colunas que trans‑
portam a droga, no caminho para as frontei‑
ras iraniana e paquistanesa. A campanha
deveria ser dirigida apenas contra os maus
rapazes, sem atingir os agricultores afegãos.
Peters defende a implementação de
uma estratégia assente em nove pilares: ini‑
ciativas diplomáticas para estabelecer a paz
regional e o comércio livre; estratégia de
contra‑subversão devidamente equipada e
implementada; esforços para combinar
intelligence com imposição da lei; recurso aos
militares contra os senhores da droga e os
laboratórios de processamento, e na interdi‑
ção do transporte da droga; criação de uma
rede de apoio aos agricultores; campanha de
relações públicas; isolamento e desarticula‑
ção do tráfico da droga e do financiamento
do terrorismo; e promoção de um programa
alternativo de vida. O esforço deveria ser
holístico, sem se encontrar subordinado a
prioridades; e deveria ser de region building em
vez de nation building.
As propostas de Peters merecem‑nos
algumas reflexões. Estão bem articuladas e
soam maravilhosamente, mas levantam‑nos
dúvidas quanto à viabilidade da sua imple‑
mentação. É mais fácil falar de interdição do
que fazê‑la, especialmente num país onde
nem a polícia nem o sistema judicial funcio‑
nam. A ideia de juntar a luta contra‑subver‑
siva com o combate ao narcotráfico parece
excelente e faz aparentemente sentido, par‑
tindo do pressuposto que é fácil conjugar
ambas as coisas, o que não é verdade. A
autora poderia, por exemplo, ter explicado
melhor as reticências dos militares em par‑
ticiparem no combate à droga.
Nem a ISAF nem as forças americanas
que operam sob o chapéu da operação
Enduring Freedom foram concebidas, treinadas
ou equipadas para combater o narcotráfico.
Atribuir‑lhes novas missões quando o prato
já está cheio, esticando ao máximo as suas
capacidades não parece avisado e arrisca‑se a
mission creep. Parece esquecer‑se que toda a
gente no Afeganistão se encontra, de um ou
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194 de outro modo, envolvida no comércio da
droga, começando por aqueles com que se
conta como aliados. Uma política assertiva
neste domínio poderia ser fatal para a
manobra militar contra‑subversiva.
O argumento central do livro, forte‑
mente alinhado com as teses da DEA e a
cujos relatórios a autora recorre frequente‑
mente, é aparentemente razoável e sedutor –
os grupos de insurrectos só deixarão de
constituir uma ameaça quando se conseguir
desarticular a sua fonte de financiamento,
isto é, o narcotráfico – mas é tremendamen‑
te simplista.
Não se pode negar a importância da
droga no financiamento dos talibãs, mas daí
a atribuir‑lhe um papel determinístico na
solução do conflito, ou reduzir a acção
contra‑subversiva ao primado da droga vai
uma grande distância. Com base numa meia
verdade – a droga é o garante da sobrevivên‑
cia dos talibãs –, Peters constrói um argu‑
mento em que reduz a resolução de todos os
problemas à eliminação da droga e do nar‑
cotráfico. Ao centrar o debate na droga, a
mãe de todos os problemas, Peters escamo‑
teia a questão central do problema e passa
ao lado de temas cruciais como sejam, por
exemplo, a necessidade de encontrar uma
solução política viável e suficientemente
mobilizadora dos pasthuns, susceptível de se
contrapor à solução centralista e presiden‑
cialista consagrada na Constituição afegã,
que é rejeitada pela maioria dos grupos afe‑
gãos.
Ao considerar o comércio da droga a
causa de todos os males e o problema cen‑
tral do conflito que urge resolver em pri‑
meiro lugar, Peters inquina o debate des‑
viando‑o da questão política essencial. Não
é verdade que os comandantes insurrectos
tenham perdido os referenciais ideológicos
e as aspirações políticas por causa da droga,
e se assemelhem agora mais a membros de
grupos criminosos do que a uma força polí‑
tica – “Estes já não são talibãs. Já não sabe‑
mos quem são”2 –, diz um oficial dos servi‑
ços de segurança afegãos, citado por Peters.
Não é verdade que os insurrectos tenham
abdicado de mudar o regime em Cabul, e
sua táctica se tenha desviado para a protec‑
ção das plantações de ópio e das colunas que
transportam a droga.
Na realidade têm sido interpretações
desta natureza, menosprezando as questões
ideológicas subjacentes ao conflito, que têm
impedido a compreensão do processo sub‑
versivo afegão. O movimento insurrecto
afegão tem uma ideologia típica de um
movimento de guerrilha, com a qual tem
mobilizado as tribos para resistir aos estran‑
geiros: a luta contra o invasor. Ao contrário
do que se afirma recorrentemente, a subver‑
são afegã não é motivada principalmente
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195pela religião mas sim pelo ódio ao estran‑
geiro. A verdade é que os chefes insurrectos
procuram legitimar‑se internamente como
movimentos de resistência nacional. O argu‑
mento de Peters insere‑se numa corrente de
pensamento que nega a existência de uma
ideologia autóctone afegã, a qual recorre à
repetição ad nauseam de estereótipos e slogans
inúteis que não ajudam à compreensão do
fenómeno, nem à identificação de uma
estratégia contra‑subversiva ganhadora que
possa anular o desejo endémico dos afegãos
de repelirem os forasteiros.
Por outro lado, Peters não faz qualquer
distinção entre o movimento talibã e a
Al‑Qaeda, nem reconhece as diferenças ide‑
ológicas que os separam, assim como as
tensões existentes entre os dois grupos
desde os anos 90. Não faz qualquer referên‑
cia a este facto. A tradição pashtun da Jihad
diferencia‑se claramente do projecto
Jihadista global da Al‑Qaeda; foi desenvolvi‑
da localmente há muitos séculos. A subver‑
são afegã é de natureza tribal e local, não
tendo nada a ver com o projecto do califato
global da Al‑Qaeda.
A proposta de uma abordagem holística
ao problema da droga é interessante, mas
não passa de um lugar‑comum. Fica por
perceber como implementá‑la. Não pode‑
mos deixar de ficar surpreendidos com a
proposta de uma solução com base no region
building,3 numa região onde nem sequer o
state building tem sucesso. Fica‑nos um pro‑
fundo cepticismo sobre o realismo das pro‑
postas avançadas. Não obstante os comentá‑
rios efectuados, o livro proporciona
informação importante e constitui, sem
dúvida, uma referência no estudo do narco‑
tráfico no Afeganistão e das suas envolven‑
tes.NE
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the future of freedomilliBeral democracy at home
aNd aBroadde Fareed Zakaria
Editora: W. W. Norton and CompanyNova Iorque, 2007
Não possuiNdo um teor revolucionário, “The
Future of Freedom”1 é um livro onde alguns
elementos que têm andado escondidos do
Jorge Azevedo Correia*
debate político actual são relembrados e
onde alguns equívocos do nosso tempo são
recolocados no seu lugar. A Zakaria, mais
conhecido pelas suas reflexões sobre maté‑
rias internacionais2 do que propriamente
pela destreza de análise teórica e conceptual,
acaba por ter de ser creditada a audácia de
aclarar alguns pontos essenciais sobre a pre‑
sente matriz democrática e liberal. Numa
sociedade em que o termo democracia‑
liberal surge como elemento descritivo de
uma realidade presente, Zakaria demonstra
de que forma a construção e a expansão de
um sistema de liberdade individual foi rea‑
lizada contra ou apesar da ideia democrática.
Algo que se encontra muito próximo de
descrever o termo democracia‑liberal como
um oximoro.
Segundo Zakaria, Liberalismo e Demo‑
cracia são duas forças autónomas que cami‑
nham lado a lado, correspondendo a pri‑
meira ao impulso de formulação de um
sistema de preservação de esferas indivi‑
* Assessor Diplomático no Instituto Diplomático do MNE.1 Fareed Zakaria, The Future of Freedom: Illiberal Democracy at Home and Abroad, Norton & Company, New York, 2007.2 Fareed Zakaria distinguiu‑se essencialmente como director da revista Foreign Affairs e pela sua famosa coluna
na Newsweek sobre assuntos de política externa americana e de relações internacionais. Actualmente apre‑
senta o programa “GPS” na CNN, que se dedica sobretudo à actualidade política internacional.
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197duais que são invioláveis por outrem3 e a
segunda a um impulso genérico de titulari‑
dade e propriedade da comunidade polí‑
tica4. De acordo com a concepção liberal, o
objectivo da comunidade política corres‑
ponde a um reforço das barreiras que nos
separam do outro (para que desta forma se
delimite com precisão a propriedade e a
esfera de autonomia), algo que a tentação
democrática tenta derrubar através do
aumento do valor normativo da comunida‑
de política. Num sistema democrático onde
não sejam tomados como essenciais e estan‑
do acima do debate político os valores do
individualismo e do respeito pela proprie‑
dade, segurança e dignidade dos outros, ou
onde estes se encontrem em erosão, a comu‑
nidade política transformar‑se‑á inevitavel‑
mente numa arma de arremesso das maio‑
rias ou dos poderosos, contra as minorias.
Este é um ponto em que Fareed Zakaria se
apoia fortemente na observação tocque‑
villiana de que um sistema de liberdade na
“era democrática” depende da força das suas
instituições, em particular das que articulam
os princípios estruturantes da comunidade
(responsabilidade individual, respeito pelos
contratos e propriedade, receio da retribui‑
ção divina…)5, para que se mantenha livre.
Neste contexto, o grande desafio colocado a
esta formulação do jusnaturalismo liberal
clássico6 é a Democracia, quando entendida
no sentido de comunidade onde os fins
colectivos são detidos pelos indivíduos em
virtude do carácter livre dos mesmos7.
Segundo esta ideia, o direito de propriedade
dos cidadãos sobre a comunidade organiza‑
‑se de forma a que, ao contrário das pers‑
pectivas jusnaturalistas, a própria identidade
e estrutura comunitárias nada mais sejam
que não um reflexo dos actos voluntários
dos seus cidadãos, em clara oposição com as
3 Uma concepção muito próxima da “liberdade negativa” descrita por Isiah Berlin em “Two Concepts of Liberty”
e que radica na afirmação da transcendência da individualidade, no “individualismo possessivo” descrito por
McPherson e na perspectiva descrita por Charles Taylor em Sources of the Self como “atomista”.4 Esta é uma perspectiva antiga na história do pensamento político. Já Aristóteles (Política, III, 1279b‑1280a10
e VI,1318a‑1319b ) havia definido a Democracia como um regime onde a titularidade da comunidade
política por parte dos cidadãos permitiria que estes se organizassem segundo a sua própria vontade, em
virtude da sua liberdade individual, e não segundo princípios transcendentes. Esta formulação é, não ape‑
nas uma forma de convencionalismo jurídico‑político, mas uma oposição (um desvio, em termos aristoté‑
licos) a princípios constitucionais ou republicanos que tornariam inamovíveis os preceitos constitucionais
essenciais quer fundados na estrutura da comunidade, quer em princípios de Direito Natural.5 Ver Alexis de Tocqueville “Da Democracia na América”, vol.1, cap. XV.6 Nos autores do liberalismo clássico, seja Hobbes,Locke, ou mesmo em Kant, os direitos individuais encon‑
tram‑se limitados a uma esfera privada e a possibilidade política de remover os princípios constitucionais
de uma sociedade através do voto ou de actos plebiscitários é algo que se encontra ausente nas suas bas‑
tante diversas perspectivas.7 Ver Nota 3.
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198 perspectivas jusnaturalistas clássicas e
modernas, onde o fulcro essencial da comu‑
nidade se encontraria além das capacidades
dos cidadãos enquanto legisladores. Nesse
sentido a constituição da comunidade, os
seus elementos valorativos e princípios
estruturantes, perdem a validade enquanto
autónomos e adquirem um valor dependen‑
te da efectivação por parte dos cidadãos. Os
princípios da comunidade política deixam
de ser normas independentes que regulam
os conflitos sociais, segundo a perspectiva
jusnaturalista, para adquirirem um carácter
convencional, onde as próprias normas que
regulam a ordenação política são palco do
conflito social e fruto do mesmo. Os proble‑
mas fundamentais da Democracia residem
precisamente aí. A Demagogia, a exploração
para fins privados das paixões e desejos dos
indivíduos titulares da soberania, torna‑se
um problema no momento em que estes
adquirem um papel primacial na definição
das regras políticas.
A emergência da ideia democrática
como princípio normativo absoluto, é algo
que, para Zakaria, ameaça a própria
Liberdade. A constituição de uma sociedade
de massas, onde o soberano corresponde o
conjunto dos cidadãos, mas estes se encon‑
tram dependentes do poder político para
satisfação das necessidades individuais,
gerou sociedades onde o desprezo pela
autonomia individual se corporizou na
emergência de regimes totalitários8. Por
outro lado, onde a experiência política e
social incorporou a existência de elementos
independentes do poder político na cons‑
trução dos governos populares, consagrando
o direito a distinções sociais ou aceitando a
primazia das elites no plano político e não
permitindo o acesso livre às premissas da
liberdade (ao elemento constitutivo essen‑
cial), as liberdades individuais adquiriram
um maior estatuto na comunidade e estas
floresceram enquanto sociedades livres9.
Numa sociedade onde a política é reduzida
ao critério democrático, à obtenção de
maiorias para efectivar normas e ao jogo de
criação de consensos e recursos que possibi‑
litam a referida obtenção, as consequências
serão, no dizer de Zakaria, claramente nega‑
tivas, quer no que respeita à política através
de partidos10 e homens públicos que nada
são para além de veículos de pressões sociais
8 O autor não aborda a forma como a liberdade individual e as concepções individualistas, conduziram, como
postulou Gassett (A Rebelião das Massas,1930) a uma desumanização do Homem e ao surgimento de
uma nova servidão, face ao Estado Omnipotente. Em suma, a forma como uma concepção individualista
resultou no desprezo da própria individualidade.9 Ver Zakaria, p. 63. O autor questiona a diferença entre a sociedade alemã e a sociedade britânica e a forma
como uma sociedade de massas e outra com uma aristocracia de razoável independência, divergiram. Uma
para um estado totalitário, outra para um liberal.10 Zakaria, p. 180.
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199e onde nada que se assemelhe a uma crítica
pode ser ouvido contra o que é, ou é aper‑
cebido como, a opinião maioritária ou o
consenso social. Também os representantes
eleitos vêem a sua capacidade de actuação
limitada por uma concepção cada vez mais
directa e personalizada da política11. Numa
comunidade onde os mandatos dos repre‑
sentantes têm carácter de imperatividade,
estando totalmente dependentes da vontade
do eleitor, muitas vezes mesmo com possi‑
bilidade de “recesso” ou recall12, é pratica‑
mente certa a inexistência de uma represen‑
tação independente, propícia à liberdade a
que Zakaria alude. Mesmo fora da esfera
política as consequências desta forma de
legitimidade política, que se consubstancia
numa mercantilização de elementos que se
consideravam estar acima das finalidades
comerciais, são profundas e têm gravíssimas
implicações políticas. Na esfera religiosa, a
transformação das várias denominações reli‑
giosas em meras máquinas de adesão, onde
a doutrina e a severidade moral foram subs‑
tituídas por amplos critérios de aceitação e
tolerância13. Na esfera jurídica, a advocacia,
tida na fundação dos EUA como a “aristo‑
cracia americana”14, misturou‑se com as
actividades comerciais dos clientes, perden‑
do a sua independência e respeitabilidade. A
advocacia americana passou, na feliz expres‑
são de Zakaria, de “cão‑de‑guarda” dos
valores americanos a “animal de colo” dos
interesses sociais15, sendo actualmente
indistinta das outras forças sociais e econó‑
micas. O mesmo sucede com a cultura e arte
americanas, transformadas em elementos
onde o elemento comercial é o essencial16.
Todas estas alterações representam uma sig‑
nificativa mudança no ordenamento social
americano, uma transformação severa que
conduz o “excepcionalismo americano”,
simbolizado pelos conjuntos de obstáculos à
vontade popular ou à democracia directa
eregidos pelos founding fathers17, a uma con‑
vergência com as demais perspectivas apoia‑
11 De relembrar a importância que os Federalist Papers atribuem ao carácter impuro (indirecto e representativo) da
democracia americana, contra as concepções revolucionárias da democracia directa rousseauniana. Sobre
este assunto veja‑se Leo Strauss et al.,“A History of Political Philosophy”, University of Chicago Press, 1987,
Chicago., pp. 659‑678.12 Zakaria, p. 168.13 Zakaria, pp. 206‑213.14 Ver Zakaria, p. 224. Encontra‑se aqui um enorme paralelismo com o Capítulo XIV da “Democracia na
América”, onde os juristas são vistos como a elite que impede a sociedade de destruir os seus preceitos
sociais e legais.15 Como o autor descreve na p. 227, os juristas americanos transmutaram‑se de “watchdogs” para “lapdogs”.16 Zakaria, p. 216‑220.17 É de realçar nos Federalist o papel de James Madison como grande proponente da limitação constitucional da
soberania popular.
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200 das meramente na legitimação democrática.
As consequências estão à vista e o descon‑
tentamento do povo americano com as ins‑
tituições políticas não se faz sentir quanto
aos cargos independentes da aprovação
popular18, por estes serem naturalmente
imunes ao descontentamento que as suas
decisões impopulares, mas necessárias, ins‑
tilam. Existe um poder de representação que
escapa a uma lógica de imperatividade19 do
representado face ao representante e que, de
acordo com Zakaria, pode constituir uma
fórmula mais perfeita e mais capaz de gerar
os objectivos pretendidos através de uma
acção mais independente.
É precisamente nesse ponto em que
Zakaria se apoia para elaborar a sua proposta
de restruturação das instituições americanas,
baseando‑a em alguns pressupostos conser‑
vadores e em tonalidades burkianas. A fun‑
ção política de representação deve adquirir
um peso que possibilite que o representante
tenha a possibilidade de ir contra a vontade
do representado, quando tal for no sentido
dos melhores interesses deste último. Desta
forma um representante não veria como seu
horizonte máximo a obediência aos ditames
dos eleitores e poderia, dessa forma, agir de
forma a resolver ou a contornar os proble‑
mas com uma liberdade superior e resguar‑
dado das pressões populistas que a demo‑
cracia pressupõe. Na realidade esta proposta
existe desde que Burke fez o seu “Discurso
aos Eleitores de Bristol”20, onde defendeu
essa mesma perspectiva de que o lugar da
representação se encontra no melhor inte‑
resse da comunidade e não na vontade par‑
ticular dos cidadãos. Talvez seja mais impor‑
tante compreender as razões pelas quais tal
perspectiva não frutificou, e que foram des‑
critas por Burke nas “Reflexões sobre a
Revolução em França”, nomeadamente a
falta de uma estrutura valorativa que possi‑
bilitasse a aceitação por parte dos represen‑
tados de decisões que iriam contra o seu
julgamento. Num tempo em que as concep‑
ções rousseaunianas de soberania popular e
voluntarismo triunfaram sobre quaisquer
perspectivas orgânicas, a possibilidade de
uma limitação a esse poder, emanado unica‑
mente dos cidadãos, será operada a que
título, com que autoridade e com que pro‑
pósitos? Podemos crer na representação
independente como medida avulsa e inde‑
pendente das grandes “mundividências”,
ou, como Burke defendeu, precisaremos de
18 Zakaria, p. 168 e 171.19 No caso do mandato imperativo o representado mantém os poderes de supervisão sobre o representado
durante o mandato, sendo a sua vontade imperativa sobre os desejos e acções do representante. Sobre a
matéria veja‑se Luís Sá, “Eleições e Igualdade de Oportunidades”, Caminho, Lisboa, 1997.20 No discurso de 3 Nov. 1774, in The Works of the Right Honourable Edmund Burke. 6 vols. London: Henry G. Bohn,
1854‑56. Vol. 1, pp. 446‑48, Burke demonstra‑se contra o carácter imperativo da representação, afirman‑
do que não será escravo das suas vontades, mas zelador dos interesses nacionais.
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201uma mudança de paradigma político e de
uma subversão dos princípios de legitimida‑
de democrática e do voluntarismo rousseau‑
nianos, para que qualquer mudança possa
caminhar no sentido desejado por Zakaria.
O critério definido, patentemente burkia‑
no21, para a limitação do poder popular, é a
necessidade de prover pelo futuro da comu‑
nidade política, através de um “contrato
intergeracional”, onde se evita o predomí‑
nio da presente geração sobre as futuras.
Este é algo que dificilmente será aplicável
avulsamente e sem a revolução de paradig‑
ma atrás mencionada. Ao contrário de
Burke22, Zakaria afirma‑se enquanto defen‑
sor do sistema democrático e mero correc‑
tor do lugar estrutural da democracia no
nosso tempo23, sendo que o seu contrato
intergeracional parece esquecer o facto de
que, sem o ponto retrospectivo do contrato,
uma constituição prescritiva dificilmente
pode ser remetida às gerações presentes a
limitação do seu próprio poder. Sem um
passado imperativo e prescritivo, é dificil
perceber de que forma o nosso presente
pode ser aceite como tal pelas gerações futu‑
ras e de que forma não será a presente gera‑
ção a decidir de forma irrestrita toda a
organização e forma de actuar.
A edição de “The Future of Freedom” adqui‑
rida pelo Instituto Diplomático24 possui
como novidade um posfácio do autor, onde
o argumento do livro é reforçado e proble‑
matizado através dos acontecimentos recen‑
tes da história dos EUA e à situação no
Iraque, assim como pela incapacidade ameri‑
cana de agir segundo os ideias que professa.
Para além do válido contributo para a refle‑
xão sobre o lugar da Democracia no mundo
contemporâneo, bem como da sua génese e
problemas essenciais, este é um livro que
pode colocar o leigo em contacto com as
mais recentes ferramentas do pensamento
político contemporâneo, sendo para esse
efeito um interessante ponto de partida.NE
21 Como Burke defendeu nas “Reflexões sobre a Revolução em França” (EDMUND BURKE, SELECT WORKS OF
EDMUND BURKE, 3 VOLS. (PAYNE ED.) (1874‑1878), VOLUME II: REFLECTIONS ON THE REVOLUTION IN
FRANCE (1790), p. 147. reed. Liberty Fund): “society is indeed a contract. It is a partnership in all science;
a partnership in all art; a partnership in every virtue, and in all perfection. As the ends of such a partnership
cannot be obtained in many generations, it becomes a partnership not only between those who are living,
but between those who are living, those who are dead, and those who are to be born.”22 Burke defendia que o contrato intergeracional não seria mera defesa da sustentabilidade do futuro, mas a
aceitação do carácter involuntário da constituição presente como elemento prescritivo. Sobre o assunto ver
Francis Canavan, Edmund Burke, Prescription and Providence, Carolina Academic Press, 1987.23 Zakaria, pp. 25‑27.24 E que pode ser consultada e requisitada na Biblioteca do MNE.
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202
a 11 de setemBro de 2001, os ataques terro‑
ristas aos EUA trouxeram as questões do
Médio Oriente para o centro das atenções e
da política internacional, coarctando decisi‑
vamente a margem de acção do recém‑
‑eleito Presidente George W. Bush que, para
a História, ficará associado às Guerras do
Afeganistão e do Iraque. A 1 de Dezembro
de 2009, o Presidente Barack Obama anun‑
ciou o envio de mais 30.000 soldados para
o Afeganistão, elevando o número de tropas
norte‑americanas ali estacionadas acima de
100 mil militares, a juntar a cerca de 40 mil
dos restantes 42 países que integram a coli‑
gação presente no teatro afegão.
A decisão e o discurso marcam uma
nova etapa das guerras da Ásia Central e do
Sul, assinalando a determinação política dos
EUA de continuar o combate pela conten‑
ção das ameaças declaradas do radicalismo
e terrorismo islamico, de armas nucleares
localizadas no Paquistão ou no Irão, de con‑
flitos regionais e infiltrações armadas, da
possível desintegração e fragmentação de
estados. Neste momento está em causa a
localização da linha da frente. Do ponto de
O Novo Médio Oriente ou De novo, o Médio Oriente?
Manuela Franco*
vista ocidental, essa linha está avançada. O
Médio Oriente definiu as Presidências Bush
e vai definir a Presidência Obama.
Os EUA defrontam uma mudança geo‑
política que ameaça a sua preponderância
no sistema internacional e força uma reava‑
liação estratégica. A ascensão da China
como grande potência asiática, continental
e marítima, combinada com o fim da
URSS, a crise da Rússia e a vulnerabilidade
do arco que vai do Mar Negro à Ásia
Central, o desgaste da Aliança Atlântica,
uma Europa ainda não adversa mas distan‑
ciada, marcam o aparecimento de uma
situação geopolítica muito diferente da que
caracterizou o século XX, sobretudo após a
II Guerra Mundial. O principal teatro de
acção deslocou ‑se da Europa e do Atlântico
para a Ásia e para o Pacífico, exigindo aos
EUA que desenvolvam novas tecnologias e
novas alianças. Pairam dúvidas sobre se a
América vai conseguir flexibilidade estraté‑
gica e capacidade de adaptação necessárias
para acompanhar a mudança e manter a
liderança na ordem internacional no século
XXI. Por agora, o Médio Oriente é a região
* Conselheira de Embaixada.
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203onde é mais imediatamente nítida a adap‑
tação estratégica exigida aos EUA.
A dissensão estratégica começa por inci‑
dir sobre o próprio significado de “Médio
Oriente”. Será que existe um grande Médio
Oriente, este conceito que se sobrepõe e se
estende para além das fronteiras geográficas
tradicionais da região? E, na afirmativa, quais
seriam os traços comuns partilhados pelos
diferentes países agora identificados como
partes de um todo, uma faixa que se estende
de Marrocos ao Paquistão? Quais as conse‑
quências políticas concretas? Se todos os
países fazem parte de uma mesma entidade,
deveria haver soluções idênticas para proble‑
mas idênticos? Por exemplo, a criação de um
estado árabe na Palestina significa que se
deveria formular idêntica desiderata para um
estado independente na Caxemira? Ou um
estado curdo independente?
É hoje comum dizer ‑se que o conceito
de Grande Médio Oriente foi um conceito
político inventado pela Administração Bush
para confundir aliados e adversários, ocultar
inconfessáveis objectivos e escamotear as
deficiências da sua mal gizada política médio
oriental. Quando em 2004, os EUA levaram a
iniciativa do Grande Médio Oriente ao G8
(Sea Island, Geórgia), a guerra do Iraque esta‑
va no pleno do correr mal; e um relatório do
PNUD sobre o Desenvolvimento Humano no
mundo árabe acabava de apresentar, com uma
terrível clareza, a respectiva situação de sub‑
desenvolvimento quanto a todos os indicado‑
res como liberdade, conhecimento, democra‑
cia, economia, emancipação da mulher. A
proposta americana dizia que encorajar a
disseminação da democracia era a política
certa, quer no interesse desses povos sujeitos,
quer no interesse ocidental: ajudar os povos
do Grande Médio Oriente a ultrapassar o
défice de liberdade e desenvolvimento era a
chave para ganhar as questões mais vastas da
guerra contra o terror. As reacções contrárias
não se fizeram esperar. Bush foi logo acusado,
primeiro de não saber geografia e, segundo,
de recorrer à expansão das fronteiras geográ‑
ficas da região para diluir a importância do
problema palestiniano, despromovê ‑lo da
centralidade no palco do Médio Oriente para,
apenas, mais um dos pontos quentes numa
região demasiado vasta.
De facto, a ideia de Médio Oriente,
sendo um conceito eminentemente geopolí‑
tico, é produto dos tempos e tende a não ter
um conteúdo determinado. Se no início do
século XX designava, do ponto de vista britâ‑
nico, as regiões da Ásia que comandavam a
aproximação à Índia, já do ponto de vista
naval americano se aplicava mais ao Golfo
Pérsico. Até à II Guerra Mundial usava ‑se
“Próximo Oriente” para referir as áreas em
torno da Turquia e zona oriental do
Mediterrâneo, reservando “Extremo Oriente”
para a China e “Médio Oriente” para o que
não era nem uma nem outra, designadamen‑
te a região da Mesopotâmia, reflectindo assim
a organização da burocracia britânica em que
a governação do Iraque dependia do India
Office.
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204 Já do ponto de vista regional, a forma‑
ção do Médio Oriente contemporâneo tem
sido marcada – desde a I Guerra Mundial –
pela doutrina do nacionalismo árabe que,
sem questionar a unidade das populações
que habitam tão diversos territórios, postu‑
la a existência de uma só Nação Árabe unida
pelos laços comuns da língua, religião e
história, organizada territorialmente numa
multiplicidade de estados soberanos. A
extensão territorial desta “nação” varia
segundo os paladinos da ideologia, poden‑
do abranger “apenas” o Crescente Fértil ou
todo o território que vai da cordilheira de
Zagros a Leste, até ao Oceano Atlântico a
Oeste, e, do outro lado, desde as margens
do Mediterrâneo e das montanhas da
Anatólia, a Norte, até ao Oceano Indico, às
nascentes do Nilo e ao grande deserto, a
Sul.
Com a criação do estado de Israel, o
conflito com a ideia e com a concretização
de uma soberania judaica tomou preponde‑
rância sobre todos os outros conflitos da
região, e Médio Oriente passou a ser mais
uma maneira de designar o conflito israelo‑
‑árabe. Porém a partir da Guerra do Yom
Kippur de Outubro de 1973, o rol de acon‑
tecimentos – a visita de Sadat a Jerusalém,
os Acordos de Camp David e a formalização
da paz entre o Egipto e Israel, a revolução
iraniana, a invasão soviética do Afeganistão,
o fim da Guerra Fria, a Guerra Irão ‑Iraque,
a invasão do Kuwait por Saddam Hussein, a
I Guerra do Golfo, os Acordos de Oslo –
alterou de tal modo o panorama que se
passou a falar de um “novo” Médio Oriente.
Este “novo” talvez quisesse descrever uma
região que podia passar da guerra para a
paz. Desde então, o 11/9 e sucessivos ata‑
ques da Al ‑Qaeda, as guerras no Afeganistão
e no Iraque, a afirmação do projecto de
nuclearização do Irão e sua projecção de
força crescente na região por intermédio de
movimentos como o Hamas e Hezbollah, as
dificuldades entre palestinianos e israelitas,
alteraram ainda mais fundamentalmente as
perspectivas sobre a região. Procuram ‑se
novas políticas e novas designações.
A atenção dos EUA desloca ‑se para
Oriente, localizando ‑se agora mais clara‑
mente no Golfo Pérsico e alargando ‑se aos
montes e vales do Paquistão e do Afeganistão.
E a experiência de falhanço em transformar
o Médio Oriente vem entroncar directa‑
mente no regresso das políticas de equilí‑
brio de poder. O primeiro exemplo do
regresso em força do “realismo” é o recuo
da Administração Obama na afirmação da
defesa dos direitos humanos e da impor‑
tância da autodeterminação interna dos
povos. O Presidente Bush tinha colocado os
valores democráticos e os direitos humanos
no plano principal, consagrando como
objectivo externo dos EUA a procura de
liberdade e democracia. Mas, entre o caos
da guerrilhas no Iraque e a insistência de
realização de eleições nos territórios pales‑
tinianos a redundar na eleição do Hamas
em Gaza, quedou ‑se uma prioridade con‑
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205testada. Já em Abril de 2009, diante do
Senado, a Secretária de Estado Clinton
declarou que “a política externa dos EUA
assenta em três D: defesa, diplomacia e
desenvolvimento”. O quarto D, o de Demo‑
cracia, não foi referido.
NegotiatiNg chaNge: the NeW politics
of the middle eastde Jeremy Jones
Editora: Palgrave MacmillanFeb 1 2007, 224 p.
Sobre este tema, actualmente conheci‑
do como “democratização e mudança polí‑
tica” debruça ‑se “Negotiating Change: The New
Politics of the Middle East”. Jeremy Jones,
Investigador Associado da Kennedy School
of Government e do Centro de Estudos
Islâmicos de Oxford, com uma carreira de
25 anos como consultor privado na região,
apresenta um conjunto de crónicas de repor‑
tagem, a raiar o antropológico, sobre o b -a-
-ba da política quotidiana em onze países do
“grande” Médio Oriente: Egipto, Irão,
Turquia, Iraque, Territórios Pales tinianos,
Jordânia, Marrocos, Dubai, Líbano, Omã e
Síria. De leitura fácil, Negotiating Change é um
livro de episódios, de instâncias de política
participativa em cada um destes países,
muito ao jeito do modelo popularizado pelo
famoso Tom Friedman do New York Times: o
repórter calejado e empático observa a rea‑
lidade local e formula as suas opi niões,
oportunamente apoiadas por entrevistas e
encontros com cidadãos, activistas políticos,
académicos e líderes políticos. Também aqui
não faltam entrevistas com funcionários de
governos e de organizações não‑governa‑
mentais ao serviço do apoio à democracia
no Médio Oriente.
As conclusões surgem, quase natural‑
mente, a apontar as tradições e culturas
indígenas como factores‑chave na definição
das perspectivas de mudança. Os movimen‑
tos islamistas são vistos como agentes cru‑
ciais de democratização, e seus principais
beneficiários. Jones argumenta por exemplo
que o sucesso da Irmandade Muçulmana no
Egipto não resulta da popularidade do movi‑
mento ou dos seus méritos próprios, mas
sim da capacidade repressiva do aparelho do
estado egípcio e da repressão severa que
impõe à sociedade civil. Na prática, a relu‑
tância do estado em invadir a Mesquita con‑
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206 fere aos grupos islamistas uma liberdade de
organização, reunião e expressão, muito
superior a quaisquer outros grupos. Assim, a
opressão política produz um movimento
que pode ser mais perigoso para a sobrevi‑
vência do actual sistema egípcio do que as
forças que este se empenha em reprimir. No
mais, Jones prevê que, na região, será a tra‑
dição shia que produzirá as mudanças mais
promissoras nas relações entre política e
religião.
O autor lamenta a frequência com que
responsáveis políticos americanos pura e
simplesmente não percebem os códigos de
conduta e de comunicação local, nem dos
partidos políticos, nem da sociedade civil,
revelando incapacidade de apreender o que
realmente se está a passar. Jones certifica as
declarações políticas norte‑americanas sobre
o Médio Oriente como quase universalmente
obtusas e mal informadas, susceptíveis
mesmo de sufocar a democratização.
É possível – sem dificuldade de maior –
conceder que o contexto é importante e que
os “enlatados” de democratização já tiveram
os seus dias. No que não se consegue concor‑
dar é com a perspectiva base de toda a análise
política deste autor que vê a democracia no
Médio Oriente a partir de um conceito fun‑
cionalista e formalista, em que a afluência às
urnas, o depositar do voto, constituem um
fim em si próprio, quando de facto são meios
de controle dos governantes, da respectiva
obrigação de cumprir um pacto constitucio‑
nal prévio, de respeitar a separação dos pode‑
res e sobretudo, de organizar o acto eleitoral
seguinte, aquele que os pode apear da cadeira
do poder.
Quanto aos valores democráticos, e à
laia de comentário final, ocorre citar o já
referido Tom Friedman, a propósito do recen‑
te incidente terrorista no Texas, em que um
capelão muçulmano provocou uma matança
indiscriminada de pessoas na base de Fort
Hood. Friedman comenta que “após duas décadas
em que a política externa americana se tem dedicado a
salvar muçulmanos ou a tentar ajudá -los a libertarem -se
de tiranias – na Bósnia, Darfur, Koweit, Somália, Líbano,
Curdistão, Paquistão pos -sismo, Indonésia pos -tsunami,
Iraque e Afeganistão – os EUA vêem -se confrontados com
uma “narrativa” pujante que sustenta que a América vive
para destruir os muçulmanos. Embora actualmente a
maior parte dos muçulmanos mortos em situação de vio-
lência sejam vítimas de bombistas suicidas, a narrativa
dominante é que o 11/9 foi uma fraude, inventada por
americanos e/ou israelitas, para viabilizar um ataque
americano ao Islão, e que os muçulmanos são as verdadei-
ras vítimas da perfídia americana”1. Assinale ‑se que
a larga maioria dos media que difundem tais
mensagens via satélite são propriedade de
governos, sobretudo de países do Golfo, em
“processo de democratização”.
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1 America vs. The Narrative, By THOMAS L. FRIEDMAN, 28 Novembro, 2009, http://www.nytimes.
com/2009/11/29/opinion/29friedman.html.
207the greater middle east aNd the cold War:
u.s. foreigN policy uNder eiseNhoWer aNd keNNedy
de Roby C BarrettEditora: I.B. Tauris
Londres 2007, 494 p.
Pegar em The Greater Middle East and the
Cold War é recuar cinquenta anos para encon‑
trar um “déjà vu”: uma crise prolongada no
Médio Oriente, incluindo a queda violenta
do governo do Iraque, abalam severamente
o sistema político internacional.
Com mais uma Administração ameri‑
cana em dificuldades no Grande Médio
Oriente, este livro de Roby C. Barrett pro‑
porciona uma leitura interessante, ilumi‑
nando um período difícil das relações
in ternacionais, apresentando muitíssima
informação, que ajuda a avaliar as paradas e
apoia a compreensão dos sucessos e falhan‑
ços dos anteriores protagonistas. Em 150
páginas de notas substantivas, produz um
trabalho considerável de rastreio de fontes
primárias, trazendo ao leitor matérias de
arquivos dos EUA, Egipto, Reino Unido,
Austrália e Nova Zelândia, entrevistas e
recursos de História Oral e extensa revisão
crítica de literatura secundária. Doutorado
em História do Médio Oriente e da Ásia do
Sul pela Universidade do Texas, especialista
em questões de defesa e segurança e com
uma longa e profícua carreira em cargos de
governo, empresas e academia no Médio
Oriente, Roby C. Barrett apresenta uma des‑
crição do que foram as preocupações cen‑
trais da Administração Eisenhower, que
retrata como especialmente competente a
lidar com uma realidade crua e difícil e
com as limitações externas impostas ao
poder americano. Entre estas ressaltam, com
enorme destaque, a complexidade das rela‑
ções entre a Grã‑Bretanha e a burocracia
política americana; a ignorância das realida‑
des locais; e a preponderância das opiniões
e persuasões ideológicas dos intervenientes
nos vários níveis da formação da vontade
política.
Os tempos eram de facto outros: John
Foster Dulles, o Secretário de Estado de
Eisenhower não viu problemas em conside‑
rar que o Médio Oriente era grande e ia de
Marrocos à Índia. E Roby Barrett usa agora
este critério para estabelecer um campo de
análise que lhe permita demonstrar que as
presidências de Eisenhower e de Kennedy
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208 não foram assim tão divergentes nas políti‑
cas desenvolvidas para a região.
O autor encontra a semelhança no
facto de ambos precisarem de conter o
comunismo e para tanto recorrerem ao
desenvolvimento económico como instru‑
mento de eleição. Ao confundir a impor‑
tância de defender os interesses nacionais
americanos com a praxis de duas adminis‑
trações tão diversas quanto foram as de
Eisenhower e Kennedy, o autor cria desde o
início uma grande dificuldade conceptual,
dificuldade esta agravada pela arbitrarieda‑
de com que decide não tratar a Crise do
Suez e estabelece o golpe de estado de
1958 no Iraque como marco temporal fun‑
damental. Embora a opção de não tratar o
Suez seja compreensível – visto o grau de
pormenor da pesquisa de arquivo implica‑
do –, o facto é que a ausência de uma aná‑
lise da crise de 1956 torna difícil compre‑
ender vários aspectos, desde logo um que o
autor reputa principal: a passagem de teste‑
munho da Grã‑Bretanha, império marítimo
cessante, para os EUA, superpotência rei‑
nante. Interessaria por exemplo aprofundar
o que pensava realmente um Eisenhower
que, na sabedoria da reforma, considerava
o não ter apoiado a Grã‑Bretanha nessa
ocasião como o maior erro da sua política
externa.2 Um outro tema de interesse seria
recordar, neste contexto, os meandros da
preparação da Doutrina Eisenhower, bem
como os caminhos que levaram ao envio de
14 mil soldados para o Líbano no Verão de
1958, logo após o golpe de estado no
Iraque. Ao aniquilar as presunções tradicio‑
nais sobre a hegemonia britânica e francesa
no Médio Oriente, ao contribuir para trazer
a Guerra Fria para o Médio Oriente e para
ancorar o envolvimento dos EUA de forma
significativa substancial e duradoura, a
Crise do Suez foi um acontecimento crítico
na história da política externa americana.
Não há como escapar.
A política de containment da URSS, China
e demais movimentos comunistas dominou a
política externa americana durante mais de
40 anos. Os modelos para a política america‑
na da Guerra Fria foram criados pela
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2 Passados dez anos, num encontro com Richard Nixon, Eisenhower teria dito que a gestão da Crise do Suez
havia prejudicado as possibilidades de o Reino Unido e a França desempenharem um papel construtivo
no Médio Oriente. Segundo Nixon, “Eisenhower cerrou os dentes e comentou “porque é que os ingleses e os franceses não se
conseguiram despachar mais depressa”. “Eisenhower acrescentou que a intervenção dos EUA em favor de Nasser “não ajudou nada no
respeitante ao Médio Oriente. Nasser tornou-se mais antiocidental e mais antiamericano.” Concordámos que o pior resultado do Suez
foi ter enfraquecido a vontade dos nossos aliados, Reino Unido e França, quanto a desempenharem um papel principal no Médio Oriente
e noutras áreas fora da Europa” vd. n.38., in Myths, Illusions, and Peace: Finding a New Direction for America in the Middle East,
Dennis Ross e David Makovsky, Ed. Viking, 2009.
209iriam acabar por sucumbir a revoluções
nacionalistas, “the wave of the future” tão bem
personificada em Nasser, que neste livro é,
por assim dizer, o herói intuído. R. Barrett
procura demonstrar que, apesar do estatuto
não alinhado da Índia, Washington apoiava
fortemente a prestação de ajuda económica à
aposta de Nehru no desenvolvimento; e que
Eisenhower “empurrava” o Paquistão para a
democracia, desenvolvimento económico e
reforma social. Barrett insiste que, no caso do
Paquistão, a adesão às duas organizações de
defesa ocidental – SEATO e Pacto de Bagdade,
depois CENTO – era vista muito mais como
um empenho político que militar; e que a
ajuda militar era mais uma forma de pacificar
as patentes superiores das forças armadas
locais e de manter a respectiva identificação
política com o Ocidente.
O golpe de Bagdade de Julho de 1958
foi um choque. Um regime crucial pró‑
‑ocidental, em pleno processo de concreti‑
zação de reformas, colapsava numa revolu‑
ção. Pior: o que se tomava por uma
revolução nasserista, revelava ‑se como
revolta fortemente influenciada pelo parti‑
do comunista do Iraque e pela URSS. Logo
mudou o paradigma: subitamente, a estabi‑
lidade a curto prazo e uma postura pró‑
‑ocidental tomaram prioridade sobre as
incertezas das reformas e os benefícios
futuros do desenvolvimento económico.
Esta reformulação das prioridades trouxe
uma modificação brutal ao pensamento de
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Administração Truman, a partir do compro‑
misso com a defesa da Europa Ocidental e do
Japão, com a disponibilidade para o confron‑
to militar, no caso da Coreia, ou com a polí‑
tica de dissuasão por intermédio de alianças
defensivas como a NATO e com programas
de desenvolvimento económico e reconstru‑
ção como o Plano Marshall. Em 1953, o
General Eisenhower chegou a Washington
com a ideia que, a prazo, a estabilidade e um
sólido anticomunismo no Terceiro Mundo
dependiam do desenvolvimento económico e
de reformas políticas. Reinava a convicção
que os novos nacionalismos tinham de ser
encorajados ou tolerados, consoante os casos,
mas sempre apoiados por programas de assis‑
tência económica; e que a assistência militar,
a ser necessária, deveria limitar ‑se estrita‑
mente aos requisitos de ordem e segurança
interna.
Entre 1953 e 1955, a Administração
tentou aprofundar esta versão do containment.
Foi a época dos esforços para tentar atrair o
Egipto à projectada “Organização de Defesa
do Médio Oriente”; pensar numa solução
para o problema israelo ‑árabe; pressionar o
Xá do Irão para que reorientasse os seus
desígnios do esforço militar para o desenvol‑
vimento da economia, reformas sociais e
liberalização política; pôr fim à querela da
Caxemira; e travar as tentativas soviéticas de
penetrar na região.
Eisenhower e a sua equipa acreditavam
que os regimes tradicionais do Médio Oriente
210 Washington, iniciando um processo em
que os EUA se foram achando cada vez
mais identificados com regimes autoritá‑
rios ou militares. Em termos de ajuda mili‑
tar e económica, o Irão e o Paquistão foram
os que mais benefícios recolheram, mas a
Jordânia, Arábia Saudita, Kuwait e outros
também beneficiaram. O receio de réplicas
do golpe de Bagdade trouxe novas e gran‑
des cautelas aos ímpetos reformistas. Em
1959 e 1960, Eisenhower flexibilizou a
abordagem aos estados do Terceiro Mundo,
alinhados e não alinhados, melhorando as
relações com a República Árabe Unida de
Nasser e com a Índia. A ajuda militar cons‑
tituía uma reacção pragmática aos aconte‑
cimentos de 1958, passando a ser vista
como um meio para abrir espaço para as
políticas reformistas e desenvolvimentistas
que Washington continuava a ter como
mais eficazes para sustentar regimes favorá‑
veis ao Ocidente.
Roby Barrett tem pouca paciência
para a Administração Kennedy, que “teve o
luxo de herdar um conjunto de políticas estáveis e
funcionais, coisas que Eisenhower só tinha adquirido
com muito esforço e por “trial and error”. Kennedy
é fulminado por não ter aprendido com os
desaires do seu antecessor, por precipita‑
ção e erro na apreciação da magnitude das
dificuldades encontradas, por culpar
Eisenhower e, especialmente Dulles, por
doutrinários e por erros políticos. “Kennedy
e o seu grupo acreditavam ser capazes de uma melhor
gestão e que uma política desenvolvimentista, poderia
obter resultados muito superiores. O resultado desta
atitude foi que a nova Administração adoptou muitos
dos objectivos e abordagens políticas que já haviam
sido experimentadas, sem sucesso e abandonadas.”
Barrett não se acanha de verberar o excesso
de confiança e a falta de apreciação ponde‑
rada das mudanças ocorridas no Médio
Oriente desde os anos 50, que teriam leva‑
do Kennedy e a sua Administração a repe‑
tirem muitos dos erros anteriores. Kennedy
centrou na República Árabe Unida o
melhor dos esforços para alcançar uma paz
entre os árabes e Israel, procurando miti‑
gar o radicalismo nacionalista do Cairo por
via da promoção do desenvolvimento eco‑
nómico? “Era vintage Eisenhower circa 1953”!
Procurar convencer o Xá do Irão a pôr de
lado a sua fixação com assistência militar
em prol do desenvolvimento económico?
“Era em tudo paralelo aos esforços de Eisenhower”.
Também com a Índia, Kennedy tentou pro‑
mover uma melhoria de relações e obter
uma orientação mais pró ‑ocidental por
intermédio da ajuda económica e promes‑
sa de ajuda militar, com vista a uma reso‑
lução da questão do Caxemira, “acabando
surpreendido” com a invasão de Goa. Com
o Paquistão, Kennedy, como o seu anteces‑
sor, achou ‑se enleado com o regime de
Carachi, tanto pela posição ‑chave que este
detinha na estrutura de alianças ocidentais,
como pelo acesso a locais de observação e
recolha de informação directa da URSS que
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211continuava a facultar à defesa estratégica
americana.
Dadas as semelhanças, quais eram as
verdadeiras diferenças? O lado activista da
política de Kennedy é o que mais contraria
Barrett, para quem o Médio Oriente exige
uma atitude de ”esperar para ver”, “deixar
acontecer”. A atitude voluntarista de
Kennedy criou um imperativo de aborda‑
gem proactiva, com o resultado de diversas
posturas e políticas agressivas da Adminis‑
tração muitas vezes provocarem resultados
opostos ao pretendido. Pressionar Nasser
para um acordo com Israel tornou o líder
vulnerável à crítica dos seus rivais árabes,
inclusive de estados árabes favoráveis ao
Ocidente; apesar dos avisos do Embaixador
em Teerão, uma política de apoio ao gover‑
no iraniano levou à excessiva identificação
dos EUA com o regime do Xá; a retórica
eleitoral advogando o apoio à Índia forçou
Kennedy a demonstrar a importância do
Paquistão para os EUA, o que por seu turno
desacreditou Washington aos olhos de
Nehru. A credibilidade da Administração
foi ainda mais ferida pelas “tentativas descara-
das” de procurar utilizar a guerra de fron‑
teiras com a China para levar a Índia a um
compromisso na Caxemira: “Um desejo desme-
dido de acção, de obter resultados concretos, no terreno,
causou uma série de erros de avaliação que na verdade
diminuíram a estatura dos EUA e a sua influência
quando comparado com os ganhos de Eisenhower entre
1958 e 1960. Pode dizer -se que nos finais de 1963,
a posição dos EUA no Grande Médio Oriente tinha
recuado de forma clara sobre a que detinha no final da
era Eisenhower”.
Para Barrett, o erro máximo da políti‑
ca de Kennedy esteve no apoio concedido a
Israel. Eisenhower e Dulles basicamente
concordavam com o Secretário de Estado
George Marshall, que o reconhecimento de
Israel fora um grave erro político de
Truman, e que tal erro estava confirmado
como uma dificuldade nas relações dos
EUA com os Árabes. Daí que a política fosse
neutralizar Israel como obstáculo à melho‑
ria desses relacionamentos. Eisenhower
acreditava que uma paz dos árabes com
Israel era possível se os EUA adoptassem
uma postura neutral e levassem árabes e
israelitas a focar a atenção no desenvolvi‑
mento económico; e, em 1953, Dulles
dizia ter “a convicção de que o Egipto era a melhor
esperança de liderança árabe para melhoria de relações
com Israel e com o Ocidente”.
Ao longo de todo o livro, o teor das
referências a Israel leva a entender que
Roby Barrett partilha claramente da opi‑
nião que considera o reconhecimento de
Israel e a aliança dos EUA como uma des‑
vantagem estratégica. Esta corrente alega
que Truman só reconheceu Israel porque a
sua eleição dependia do voto dos judeus.
Porém, este argumento foi sempre desmen‑
tido por Clark Clifford, o conselheiro de
Truman mais directamente responsável pela
sua reeleição como Presidente e pelo reco‑
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212 nhecimento americano do Estado de Israel:
“Como, na altura, um número muito significativo de
judeus americanos se opunha ao sionismo, nem o
Presidente nem eu acreditávamos que o reconhecimento
do novo estado por parte dos EUA tivesse um impacto
significativo no voto judaico. Em 1948, a chave para
o voto judaico estava no empenho continuado nas polí-
ticas de esquerda, sobretudo económicas e de continua-
ção do New Deal. Na verdade a escolha do Presidente
[a favor do reconhecimento] vinha de ele sentir que a
Declaração Balfour representava um compromisso há
muito assumido, que ele aceitava como bom, e que
tinha chegado a hora de cumprir a promessa, que
aquele povo estava habilitado a ter o seu estado e que
merecia o apoio das potências. Porém a abordagem dos
militares que, creio, era reflectida pelo General
Marshall, era exactamente a oposta. O petróleo no
Médio Oriente era um factor militar de crucial impor-
tância. Era possível que a URSS andasse à procura de
vantagens nesse sector e os nossos militares estavam
preocupados com a possibilidade de os soviéticos fica-
rem com todas as nações árabes como aliados e nós
ficarmos com aquele pobre daquele país minúsculo.”3
Se, em lugar de uma hagiografia de
Eisenhower e da apologia de um alegado
realismo político, Roby Barrett estivesse
interessado em analisar os constrangimentos
da política americana para o Médio Oriente,
poderia ter evocado material de arquivo e
literatura de referência que demonstram
como entre 1945 e 1948 a Administração
Truman conheceu tensões dramáticas entre
o anti ‑sionismo do Depar tamento de Estado,
e um grupo de conselheiros pró ‑sionistas na
Casa Branca, e como essas tensões produzi‑
ram políticas ambíguas, inconsistentes e
reactivas aos acontecimentos no território
sob mandato britânico. Se, como argumenta
Peter L. Hahn, colocarmos a batalha pelo
reconhecimento do estado judaico no con‑
texto das crises da Guerra Fria – a par, p. ex.
da ponte aérea para Berlim – então já é mais
possível seguir a interpretação que Truman
colocou o containment anticomunista acima de
uma resolução do caso israelo ‑árabe per se,
tornando ‑se assim mais compreensíveis os
moldes da abordagem americana ao Médio
Oriente, e respectiva durabilidade e consis‑
tência4.
Se Truman deu o passo inicial do reco‑
nhecimento do Estado de Israel, foi Kennedy
que transformou essa relação numa aliança.
Daí talvez a displicência que Barrett reserva
à política médio oriental de Kennedy. Na
historiografia da política dos EUA para o
Médio Oriente e conflito israelo ‑árabe, a
Administração Kennedy nem sempre tem
recebido uma atenção cuidada. Regra geral,
a tendência é resumir o assunto ao facto de
ter aprovado a primeira venda de armas
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3 Truman Library – Clark Clifford Oral History http://www.trumanlibrary.org/oralhist/cliford.htm#subjects.4 Peter L. Hahn. Caught in the Middle East: U.S. Policy toward the Arab-Israeli Conflict, 1945–1961. Chapel Hill: University
of North Carolina Press. 2004
213importante dos EUA a Israel. É pena que em
tão vasta pesquisa, neste ponto em que as
duas Administrações divergiram, Barrett não
tenha alcançado maior recolha de arquivos e
que aflore o assunto apenas levemente.
Haveria que falar de três grandes linhas na
política de Kennedy: primeiro, das tentativas
falhadas de melhorar a relação com o Egipto,
contrariadas pelo envolvimento deste na
guerra do Iémen, o Vietname de Nasser; um
segundo aspecto seria a decisão de Kennedy
de passar mísseis Hawk a Israel, venda de
magnitude superior a qualquer outra, ante‑
rior, dos EUA, e que arrastou mudanças
políticas importantes; e por fim, explorar as
dificuldades da Admi nistração em assegurar
informação correcta sobre o programa
nuclear de Israel. Convém mais uma vez
lembrar o limite que os cálculos de política
interna desempenharam na Administração
Kennedy e na sua política para o Médio
Oriente e evitar remeter as complexidades
da gestão de interesses de uma superpotên‑
cia com responsabilidades globais a inter‑
pretações valetudinárias de opacidade expli‑
cativa, como seja o fabuloso poder do
“lobby israelita” nos anos 50 e 60.
Para além da mística, Kennedy terá
sido um político realista e calculista, mais
um Presidente americano que, uma vez
eleito, se achou “prisioneiro do contexto”,
e encontrou grandes dificuldades em equi‑
librar os interesses contraditórios que a
América tem na região.
churchill's promised laNd: zioNism aNd statecraft
de Michael MakovskyEditora: New Haven: Yale University Press
2007, 342 p.
Churchill’s Promised Land: Zionism and
Statecraft não pretende analisar as complexi‑
dades da Palestina, Israel, ou Médio Oriente,
nem questões de segurança nacional ou
desígnios imperiais britânicos. Doutorado
em História Diplomática por Harvard, espe‑
cialista em questões de recursos energéti‑
cos, actualmente director de Política Externa
do Bipartisan Policy Center, em Washington
DC, Michael Makovsky pretende apenas
examinar a relação de Churchill com o
movimento sionista: o homem e o movi‑
mento, duas carreiras praticamente simultâ‑
neas e ambas com características lendárias
na política britânica.
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214 O conjunto, vasto, de estudos sobre a
atitude de Winston Churchill quanto à
“Questão Judaica” tende a retratá ‑lo como
um sionista impenitente, cuja posição no
assunto – substancialmente diferente da
maior parte dos seus contemporâneos –
adviria do foro sentimental: admiração e
afecto pelo povo judaico. Michael Makovsky
não contraria esta leitura, mas chega a uma
avaliação mais matizada, retratando o sio‑
nismo de Churchill como secundário dian‑
te das suas prioridades políticas e da per‑
manente avaliação da grande estratégia
imperial britânica. Assim o quadro traçado
é que o apoio de Churchill à causa sionista
não foi consistente, sendo claramente uma
prioridade menor quando contradizia os
seus interesses políticos após a I Guerra
Mundial, ou quando o associava ao bolshe‑
vismo que desprezava, assumindo relevân‑
cia na sua agenda quando não estava em
funções nos anos 30, ou depois de 1948,
quando via Israel como potencial parceiro
estratégico para o Ocidente.
Afinal, Churchill era um político bri‑
tânico, um político cuja posição pessoal era
por vezes ténue, frágil, frequentemente ao
sabor das pressões e das oportunidades,
especialmente no princípio da carreira, ou
quando, após o desastre de Gallipoli, a sua
vida política parecia liquidada. Mas, mesmo
como Primeiro‑Ministro, foi obrigado a
enfrentar os limites das realidades políticas
e ceder às resistências que encontrava den‑
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tro do seu próprio governo durante a II
GM, ou na Guerra Fria, quando chamado a
reconciliar ‑se com a diminuição dos pode‑
res do Império Britânico e a necessidade
crescente de trabalhar com os EUA.
Como qualquer livro sobre Churchill,
sempre se descobrem novas perspectivas
sobre as questões mais coriáceas. “Com‑
parada com a Alemanha, a Russia é menor;
comparando com a Rússia, a Turquia é
insignificante” declarava Churchill ao
Primeiro‑Ministro Lloyd George em 1920.
O que seria a Palestina? Decerto muito
abaixo do trivial, para desgosto de Churchill
que, em 1921, apenas conseguira alcançar
o lugar de Secretário das Colónias. Um
lugar onde não teria autoridade sobre os
assuntos que considerava de relevo.... mas
onde as questões de segunda que o espera‑
vam acarretavam riscos políticos conside‑
ráveis, num momento de grande vulnera‑
bilidade política. Do cargo anterior,
Secretário da Guerra, já trazia uma profun‑
da antipatia pelas “novas províncias”: “Fiz
os possíveis para cumprir o compromisso
assumido por Lorde Balfour com os
Sionistas, em nome do Gabinete de Guerra
e pelo PM na Conferência de San Remo”;
“Não procurei este odioso enleio da
Mesopotâmia; e só o assumi pela vontade
de ajudar onde é preciso”. Na preocupação
fundamental de reduzir as despesas com os
Mandatos e na ideia de que, no pós‑guerra,
uma federação de estados árabes e sionista
215poderia ser o interlocutor privilegiado,
Churchill gabava ‑se de ter oferecido a
Transjordânia ao Emir Abdullah “numa
bela tarde, em Jeru salém”.
A política externa de um país nunca é
matéria científica. Concebida no turbilhão
dos factos e sob a pressão das urgências
quotidianas, comporta sempre uma boa
quota de ignorância, irrelevância ou
mesmo incompreensão. Uma vez alcança‑
das as vantagens e garantidos os interesses
para que foi concebida, a política externa
tende a mover ‑se para o objectivo seguin‑
te. Regra geral é uma política que tende a
não sofrer excessivamente dos males da
reflexão. Todavia, quando uma política se
mantém através dos tempos, praticada, tra‑
balhada e modificada pelos governos e
pelos homens de estado, provocando deba‑
tes apaixonados e tremendos, alcança, a
pouco e pouco, vida própria: torna ‑se
dogma e passa a governar os espíritos e o
pensamento. A ideia de que os homens são
aperfeiçoáveis, que pouco a pouco a sua
condição pode e deve melhorar, que o pro‑
gresso é uma lei que rege todas as socieda‑
des são algumas das partes do dogma. E o
princípio de que a “reforma”, isto é, um
refundar da sociedade e do estado em mol‑
des europeus é desejável, produtivo e
necessário no Oriente, permanece, até
hoje, como princípio orientador na políti‑
ca internacional.
Assim é o legado de 200 anos de polí‑
tica inglesa e americana para o Médio
Oriente, tema dos três livros que aqui se
recenseiam e que em comum têm porven‑
tura o único ponto consensual em toda esta
questão: é um debate apaixonado que não
ameaça esmorecer.NE
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217217Novas aquisições para a Biblioteca do Ministério dos Negócios Estrangeiros
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219Novas aquisições para a Biblioteca do Ministério dos
Negócios Estrangeiros
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irosAbecassis, Fernando
Um diplomata da regeneração: o 1º conde de Vila Franca do CampoLisboa: Tribuna da História, 2007, 277 [1] p.
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223Diálogo
225Comentário ao artigo de Anton Bebler publicado na
Revista Negócios Estrangeiros n.º 14
Duško Lopandic*
Dear Sir,
i read With interest the article of Mr. A. Bebler, published in the last volume of your
review, under the title “What to do about the Western Balkans?” (Negócios Estrangeiros,
Abril 2009, Number 14, pp. 40‑53). While the author has some interesting conclu‑
sions with regard to the future process of integration of Western Balkans into the
European Union, the section of the article dealing with The Kosovo problem and its interna-
tional implications needs some particular comments.
I would like, first, to point out that the author has omitted some of the major
aspects of Kosovo problem, such as the precarious situation of the Serbian Community
in the Province of Kosovo, which is (legally) still administered by the provisions of UN
Security Council Resolution 1244/99. Indeed, it is more than strange that in his pre‑
sentation of historical and contemporary aspects of Kosovo question Mr. Bebler does
not even mention at all the existence of Serbian people in Kosovo. However, the issue
of interethnic relations between Christian Serbs and Muslim Albanians has been for
centuries at the heart of problems in the region of Kosovo (this province, by the way,
never existed as particular entity until its recent creation as an Autonomous Province
of Serbia in the communist Yugoslavia, in 1945).
The presentation by Mr. Bebler of the history of Kosovo in particular, is utterly
biased, reproducing mainly the new revisionist history mostly produced by present day
Kosovo Albanian representatives. It contains some very gross deformation of establish‑
ed historical facts. As it has been often said, one of the major victims in every conflict
has been the truth, including the historical truth.
It is well known that, since the Middle Ages until the last part of the XIX century,
Christian Serbs were the majority people in the Kosovo area. During the XIX Century –
the period of liberation in the Balkans from the Ottoman rule – Moslem Albanians were
* Embaixador da Sérvia em Lisboa.
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226 used by sultans (and later by imperialist powers, such as Austro‑Hungary and Italy) as
chief instrument of policy in crushing the liberation movements of Serbs and other
peoples in the Balkans. Repression against Serbs has been especially ruthless in the
period after the Berlin congress (1878) until the Balkan wars (1912‑1913). It is esti‑
mated that more then 400.000 people have fled the oppression from then Ottoman
territories (which included Kosovo vilayet) into (then) the Kingdom of Serbia. But even
then, before the 1st world war, the Christian population in Kosovo was almost equal
to the Albanian one. After liberation of this area by Serbia in 1913, a feudal system was
abolished, as well as discrimination of people based on religion. It is therefore a non‑
sense to call the liberation of Kosovo area by Serbia in 1912‑1913 a “colonial” con‑
quest, as it is done by Mr. Bebler’ s article.
The author is very critical against the behaviour of successive Serbian regimes in
Kosovo and we can agree with him in condemning outright the irresponsible Milosevic
regime. However, Mr. Bebler omits mention to the role of Albanian repression against
Serbs during various periods of the XX Century, including especially during the
Second World war, when the Kosovo region has been incorporated into “Greater
Albania”, under fascist supervision. It has been estimated that about 100.000 Serbs
have been expelled from Kosovo, while around 75.000 Albanians migrated from
Albania into the Kosovo area in the period 1941‑1945. In fact, the constant process of
Serbian emigration in the XIX and XX centuries under physical, social and demogra‑
phic pressures, combined with constant immigrant inflows from Albania and the high
birth – rate of Albanian Muslims have contributed to the present demographic situa‑
tion in Kosovo. The proportion of population between Serbian and Albanian ethnic
groups in Kosovo was constantly changing in favour of Albanians: in 1871: 64% Serbs,
32% Albanians; in 1899: 44% Serbs, 48% Albanians; in 1921; 26% Serbs, 66%
Albanians; in 1991: 11% Serbs and 82% Albanians. Therefore, the ethnically‑based
secession in the Serbian province of Kosovo has been the end result of a long history
of violence and persecution against the Serbian autochthonous population, coupled
with wars.
Mr. Bebler has also completely omitted to mention even the most recent acts of
repression and of ethnic cleansing of Serbian population by Albanian extremists since
the NATO intervention in Kosovo. I would like to recall that more than half of Serb and
non‑Albanian population (i.e. Gipsies) have been obliged to leave Kosovo under phy‑
sical threats since 1999. More than 2000 persons are still missing today. There are also
around 250.000 internally displaced persons from Kosovo living today in Serbia. In
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227the city of Pristina alone, where 30.000 Serbs used to live, there are today less than a
hundred persons of Serbian origin. A similar situation exists in other cities of the
Kosovo Province historically inhabited by Serbs, such as Pec, Prizren, Djakovica, etc. If
this is not the perfect example of a successful ethnic cleansing, which one is? A so
called “humanitarian intervention” of NATO forces brought also a huge destruction of
Christian heritage in Kosovo. Since 1999, and especially during violence in March
2004, more than a hundred Christian Orthodox churches have been burned or des‑
troyed by Albanian extremists. It is curious that those facts have not been given any
attention by Mr. Bebler.
I also completely disagree with Mr Bebler stating that “The problem of Kosovo status was
formally resolved by a unilateral declaration of independence…” In fact, not only Serbia, but the
overwhelming number of UN member States considers (despite the political pressures
coming from some important Western countries) that the issue of Kosovo status is still
open. The debate on the legality of the unilateral act of independence by Pristina is
before the international Court of Justice by now. We can expect the outcome of the
debate by 2010. Far from concerning only Serbia, the debate concerns some crucial
issues of international legality and possible future European and World order. The fun‑
damental question is this one: can an ethnically‑based secession, including the change
of an internationally recognised border, be unilaterally imposed on a small country
against its will and without any agreement?
It is important to mention that Serbia has reacted peacefully to the fact that Kosovo
Albanians have left the negotiation table in 2006 and unilaterally declared the so‑called
“independence”. The case of Kosovo is only one in a number of similar cases, as Mr. Bebler
has rightly pointed out in his article. I can agree with him on the statement that “…
most EU and NATO member states acted inconsequently when they honoured the principle of self-determin-
ation by one case and disregarded in others”. It is in particular difficult to understand why
Albanians in the Balkans would be entitled with two States, while such a principle is
not applied to any other population in the same region.
Serbia will keep the principle of international law and ask that the same principle,
including the respect for sovereign rights, the right to self‑determination and respect
of borders, should be applied to all in the same manner.NE
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229Comments on Ambassador Duško Lopandic’s letter
concerning the Kosovo issue
Anton Bebler*
amBassador duško lopaNdic of Serbia (D.L.) reacted to my article in Journal Negócios
Estrangeiros with a rather long letter. It contained numerous unfounded assertions
about Kosovo’s past and omitted crucial historical facts which contradict Serbian
official propaganda.
Contrary to often repeated Serbian claims the Serbs are not the oldest population
in Kosovo and Kosovo was not ‘the cradle’ of the medieval Serbian state. The first two
Serbian Kingdoms were established in Zeta (today’s Montenegro) and in Raška (today’s
Sandzhak). Serbian rulers conquered Kosovo more than a century later, possessed it in
XIII‑XV centuries, in total for less than 250 years. After about 450 years of the subse‑
quent Ottoman rule the Serbian control over Kosovo in XX century lasted, with two
interruptions in total less than 80 years. Contrary to D.L.’s claim the Serbs “lost” Kosovo
demographically already by the beginning of the XIX century, due to their mass exodus
led by the Serbian Orthodox Church and to much higher fertility among the Albanians.
In 1912 Serbia attacked the Ottoman Empire, conquered and occupied Northern
Albania, including Kosovo. The chief objective was not national liberation but a colo‑
nial conquest of predominantly Albanian‑inhabited lands in order to assure Serbia’s
territorial access to the Mediterranean through the sea port Durres. Kosovo served then
only as a collateral objective and propaganda cover. The official Serbian justification for
the occupation of Kosovo was based on the following claims: the moral right of a more
civilized people; the historic right derived from the medieval Serbian kingdoms; the
former Serb majority in the population of Kosovo. The Serbian conquest of Kosovo
against the will of its majority Albanian population was accompanied by massacres and
grave mass violations of the International Humanitarian Law. These atrocities were
vividly described by Leon Trotsky (then a Russian correspondent in the Balkans) and
were thoroughly documented by the Carnegie Foundation. Kosovo was not even prop‑
erly legally annexed to Serbia, according to the valid Serbian constitution of 1903. At
* Professor na Universidade de Ljubljana, Eslovénia.
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230 the time of the Serbian occupation in 1913 the local ethnic Serbs constituted a distinct
minority in Kosovo’s population. All subsequent attempts by violence and pressure to
redress the ethnic balance in Kosovo in favor of the Serbs failed.
The third Serbian conquest of Kosovo in 1944 was again accompanied by armed
violence and followed by its annexation to “federal Serbia”. The act of annexation was
passed in April 1945 under the conditions of martial law, by an unelected “Kosmet
Regional People’s Assembly”, by acclamation, without a vote and a single speech (let
alone a debate). The composition of the Assembly was utterly unrepresentative (142
members, among them only 33 Kosovar Albanians). All appointed deputies were
Communists and mostly Serbs, representing then only about 20% of Kosovo’s popula‑
tion. There was no preceding election or a referendum. This communist act of annexa‑
tion thus totally lacked democratic legitimacy.
Serbia lost her political right to rule Kosovo in 1989 when it violated the Yugoslav
constitution of 1974 and fundamental freedoms, abolished Kosovo’s autonomy, subju‑
gated its majority population to a regime of arbitrary and harsh police oppression and
excluded the Kosovar Albanians from all state and public institutions. In 1991‑99 the
Federal Republic of Yugoslavia (Serbia and Montenegro) had thus grossly violated the
key principles contained in the CSCE/OSCE “Paris Charter for New Europe” and
UNSCR 1199. In 1999 Serbia lost its moral right to rule Kosovo when Serbian autho‑
rities attempted to uproot and expel from Kosovo province’s entire Albanian popula‑
tion, which was tantamount to a crime of genocide. Between 1989 and 1999 the
Serbian military and police forces committed numerous crimes against the Kosovar
Albanians. In 1998‑1999 these included causing death of several thousand Kosovars.
According to UNCHR about 350.000 Kosovars and Turks were forced by the Serbian
authorities to leave Kosovo in 1998 and about 770.000 in 1999. Serbia never apolo‑
gized and no high Serbian official was brought so far to trial in Serbia for these crimes.
The change of the regime does not absolve the Republic of Serbia of its responsibility
for grave violations in 1989‑1999 of its obligations as member of the Council of
Europe and of the United Nations.
At the time of NATO’s 1999 intervention there were no more than 200.000 Serbs
in Kosovo. This figure tallies with D.L.’s figure of 11% of the total population of Kosovo
in 1991. As there are today still around 100.000 Serbs in Kosovo(less than 5% of the total
population) there could be no 250.000 displaced persons from Kosovo living today in
Serbia, as D.L. claims. Many of these Serbs and Roma fled to Serbia out of fear for
reprisals for their active participation in crimes against the Kosovars in 1998‑1999.
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231When conducting in December 2006 a referendum on a new Serbian constitution
and subsequently a general parliamentary election in January 2007 the Serbian autho‑
rities did not even try to carry them on most of Kosovo’s territory. Only a relatively
small number of Kosovo Serbs took part in these two events. Serbia thus de facto gave up
her claim to exercise administrative authority over most of Kosovo. Since summer
1999 Serbia has lacked three key elements of sovereignty over Kosovo: control over its
territory, control over its population, control over its borders, Serbia has also had a
separate constitutional, legal and economic system and a different currency.
Serbian representatives still publicly maintain that the proclamation of Kosovo’s
independence in 2008, without Serbia’s consent and without a UN SC approval con‑
stituted an act of violence and a “grave violation of International Law.’’ These claims are
contestable for the reasons stated above and also because:
– The proclamation was carried out in a peaceful, orderly and civilized manner.
The only acts of violence were committed then by the Serbs and mostly in
Serbia
– Kosovo’s proclamation was fully in line with the UN GA Declaration on granting
independence to colonial peoples;
– It was consistent with the VIII principle contained in the Helsinki Final Act
which allows for peaceful change of state borders on the basis of democratically
expressed self‑determination.
– Annex II of the UNSCR 1244 envisaged the settling of the future status of
Kosovo on the basis of the will of its people. R. 1244 did not mention Serbia
and did not contain a commitment to return to the now non‑existing FRY
sovereignty over Kosovo
– Serbia and Russian Federation have recognized many changes of state borders in
Europe and on the territory of ex‑SFRY, also those which occurred without a UN
SC authorization and without Serbia’s and Montenegro’s consent. This applies
i.a. to Serbia’s present borders with Croatia and Bosnia and Herzegovina.
– Deeper in the historical past the Serbs liberated themselves by unilaterally
proclaiming their independence of the Ottomans. The same applies to the
Swiss, Portuguese, Dutch, Russians, Americans, Greeks, Belgians, Norwegians,
Albanians, Finns, Czechs, Slovaks, Slovenians, Croats and many other nations.
Since 1216 the Serbian rulers have conquered Kosovo five times and five times
their troops and officials vacated the country under foreign military pressure (Ottoman,
Austro‑Hungarian, Bulgarian, German, Italian, again Bulgarian and NATO). In July
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232 1999 they left Kosovo for good. Serbian rule in Kosovo in whatever form can never be
peacefully reestablished. Even if it were possible it would in several decades endanger
the Serbs’ majority on the territory of Serbia in its pre‑1999 borders. The comprom ise
solution for the Kosovo status that existed under the 1974 Yugoslav constitution was
annulled by Serbia in 1989.
Kosovo’s independence has been recognized to‑day by more than 60 states, includ‑
ing Portugal, twenty‑one EU members, three permanent members of the UN Security
Council and by all Serbia’s neighbors, except Bosnia & Herzegovina and Romania. It is
in Serbia’s, Serbia people’s and the Serbian minority’s in Kosovo objective interest to
acknowledge the reality of the loss of the former colony and to establish with the
neighboring youngest European state (not counting Abkhazia and Southern Ossetia)
normal diplomatic, economic and cultural relations. Serbia would thus tangibly con‑
tribute to the stability, security and prosperity in the Balkans and to friendly relations
among all nations in the region.NE
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233Cadernos de Arquivo
Transcrição de documentos efectuados por investigadores em arquivos nacionais e estrangeiros.
235235
Bibliothèque Nationale de Paris, Cote: MS FR. 22787 Fol 22 et suivants.
le roi me fit l’honneur au mois d’avril de l’année de 1697 de me nommer son ambassadeur
auprès du Roi de Portugal à la place de l’Abbé d’Estrées fils du Maréchal de ce nom
qui en avait fait la fonc tion pendant cinq ans. S.M. m’ordonna en même temps de me
ren dre à la Rochelle au commencement du mois d’août pour m’embarquer sur le
vaisseau qui me serait destiné. Après avoir reçu mes instructions par Mons. le Marquis
de Torcy pour les Affaires Etrangères, et par Mons. de Pontchartrain pour les Affaires de
la Marine et du Commerce j’eus l’honneur de prendre congé du Roi à la fin du mois
de juillet. Je partis aussi tôt de Paris étant arrivé à la Rochelle je fut obligé d’y séjourné
pendant trois semaines pour atten dre un vent favorable. Enfin le 24 du mois d’août je
m’embarquait sur la frégate du Roi La Thétis de 46 pièces de canon commandée par Mr.
le Marquis de Contré Blenac capitaine de vaisseau. Je fus salué en arrivant à bord de 11
coups de canons. Les vaisseaux qui se trouvè rent pour lors en rade me saluèrent aussi,
les uns de neuf, les autres de sept coups de canons. Il leur en fut rendu autant. Pendant
le voyage Mr. le Marquis de Contré me défraya et toute ma Maison sur le compte que
j’en rendis depuis à la Cour. Il obtint une gratification de 4.000 lt. Après 28 jours de
navigation très fâcheuse j’arrivai le 22 septembre à Lisbonne fort incommodé, étant
tombé malade 8 jours après être embarqué. En passant devant le fort de Cascais le
vaisseau le salua de 7 coups de canons. Le fort en rendit cinq. C’est le salut établit entre
les vaisseaux du Roi et les forts du Roi de Portugal. Tous les vaisseaux français qui se
trouvèrent dans la baye de Cascais sa luèrent aussi et on leur rendit à tous le salut à deux
coups près. Il vint à bord un pilote du Roi de Portugal en voyé pour me faire entrer dans
la rivière de Lisbonne. Ensuite le fort de St. Julien fut salué de sept coups de canons,
il en rendit cinq, depuis le commandant ayant été avertit que j’étais dans le vaisseau il
fit saluer de nouveau de 13 coups de canons et le bâ timent lui rendit coup pour coup.
Journal des cérémonies de mon Ambassade au Portugal.
Par le Président Rouillé (copie de l'epoque)
José ‑Sigismundo de Saldanha*
NegóciosEstrangeiros . N.º 15 Dezembro de 2009 pp. 235-256
* Investigador. Doutor em História pela Universidade de Paris I, Pantheón ‑Sorbonne.
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236 Le fort du Bois avertit par les coups qu’avait tiré le fort de St. Julien salua aussi de 13
coups qu’on ne lui rendit point n’étant pas l’usage. Je mouillé sous le fort de Belém. Le
vaisseau le salua à l’ordinaire de sept coups de canons et le fort en rendit cinq. Ensuite
ce même fort salua pour moi de 13 coups de canons qui lui furent rendus coup pour
coup. Les bâtiments français qui se trouvèrent mouillés en cet endroit saluè rent tous
et furent salués à l’ordinaire. Aussitôt je reçus des com pliments de la part de plusieurs
personnes attachées à la Cour de France, le consul et beaucoup de marchands français
me vinrent voir. Mr l’Abbé d’Estreés qui avait eu ordre d’attendre mon arrivée vint à
bord. Il fut salué en entrant et en sortant de 11 coups de ca nons. Le lendemain 23 au
matin Manuel d’Azevedo commissaire gé néral de la Cavalerie me vint compli menter
de la part du Roi et fut salué en entrant dans le vaisseau de 13 coups de canons. Je
l’allais recevoir sous le gaillard. Je l’ai traité de seigneurie et je lui donnai la main. Je
le reconduisis jusqu’à l’endroi où je l’avais été le recevoir. Deux heures après vint le
Comte d’Aile (?) pour me prendre dans les brigantins du Roi. Il y en avait trois. Je
l’allai recevoir à l’échelle après être en tré dans le vaisseau il fut salué de 13 coups de
canons. En suite l’ayant ramené à l’échelle il commença à me donner la main que je
lui avait donné jusqu’alors. Je le traitait d’excellence, chose établie en Portugal entre
les Ambassadeurs et les personnes ti trées. Je montai avec lui dans le premier brigantin
où les gen tilshommes qui étaient avec moi prirent place. Mes domestiques se mirent
dans le second et dans le troisième. J’arrivai dans le port de Lisbonne à l’endroit où
j’abordai étaient trois carrosses du Roi. Je montais dans le premier avec le Comte
d’Ayle (?), mes gentilshom mes dans le second et mes officiers dans le troi sième. Je fut
conduit dans la Maison de Mr. l’Abbé d’Estrées qui devait être la mienne. Dès que j’y
fut, j’envoyai chez le Secrétaire d’Etat pour lui communiquer ma lettre de créance dont
il prit copie. J’envoyai aussi chez le Nonce du Pape et chez les plus considérables des
dames françaises. Je re çus par la suite beau coup de compliments et de visites. Le duc de
Cadaval me vint voir quoiqu’il fut Conseiller d’Etat et que les autres qui ont la même
qualité ne veuillent pas rendre la première visite aux Ambassadeurs. Mon incomodité
ayant continué quelques temps, le Roi m’envoya l’un des maîtres de sa chambre, qui
répond à la charge de Maître des Cérémonies en France, pour savoir de mes nouvelles.
La Reine m’envoya un de ses Ecuyers et la Reine d’Angleterre son premier écuyer pour
savoir des nouvelles de ma santé.
Il m’était ordonné par mon instruction de demander le plutôt que je pourrais une
audience par ordre du Roi. Je fus hors d’état de le faire qu’un mois après mon arrivée.
Le 29 octobre le Secrétaire d’Etat m’ayant écrit que le Roi me la donnerait, le lende‑
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237main je me rendit sur les onze heures du matin au Palais. J’y trouvai les gardes sous les
armes et l’on batit aux champs quand j’arrivais. Je fut reçu à la descente de ma litière
par un capitaine des Gardes et un maître des cérémonies. Je marchai entre eux deux et
je fus conduit dans la chambre d’audience. Le Roi était debout sous son dais ayant
auprès de lui son chancellier. A sa droite étaient rangées en assez grand nombre les
marquis et les comtes qui avaient été mandés. A sa gau che étaient les prin cipaux offi‑
ciers de sa Maison. Je fis une première révérence en entrant dans la chambre, une
seconde au milieu et une troisième en approchant du Roi. Il avança deux pas il se
découvrit et je me couvris ensuite en même temps que lui. Je lui remis la lettre de la
main du Roi que j’avais à lui rendre. Je lui parlai en français qu’il entend fort bien et
il me répondit en portugais. J’eus en suite au dience de la Reine à qui je parlai et qui
me répondit en français et le même jour, l’après midi, de la Reine douairière
d’Angleterre. Je lui parlai en français, elle me répondit en es pagnol.
Le dix novembre j’eus une seconde audience par ordre du Roi avec les mêmes
cérémonies. Je lui fis part selon l’ordre que j’en avais reçu du traité de paix conclu
entre la France, l’Espagne, l’Angleterre et la Hollande à Riswick.
La paix me mettant en état d’entrer en commerce avec les Ministres des Couronnes
avec qui elle était signée, j’envoyais faire part de mon arrivée à l’Ambassadeur
d’Espagne, à l’Envoyé d’Angleterre et au Résident de Hollande. Ils me vinrent voir
quelques jours après. Je donnai la main et la chaise à l’Ambassadeur d’Espagne et je les
pris sur l’Envoyé et sur le Résident.
Le 12 novembre un officier de justice ayant arreté une femme de vant la porte de
ma maison et le juge en ayant été informé, le fit met tre en prison d’où elle ne sortit
que lors que quelques jours après je demande sa liberté.
Le 20 novembre j’eus une autre audience par ordre du Roi dans la quelle je lui fis
part suivant l’ordre que j’en avait reçu du Traité de Paix conclu entre le Roi et
l’Empire.
Le 5 janvier 1698 les Mrs. de la Confrairie de la Chapelle de St. Louis des Français
me vinrent inviter de me trouver le len demain, jour des Rois, au service solonnel qui
se devait faire dans la dite cha pelle. Je m’y rendis avec toute ma Maison. J’y trouvai un
dais pré paré pour moi auprès de l’autel du côté de l’Evangile. Dessous était un tapis,
un fauteuil et un carreau. Je fus encensé à la messe après le sous ‑diacre . Le prédicateur
en commençant son sermon m’adressa la parole. Le 26 du même mois ayant été infor‑
mé que pen dant 24 heures que j’avais été à la campagne il était venu dans mon quar‑
tier un Alcaide et un écrivain pour arrêter et mener en prison la femme d’un de mes
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238 postillons sans m’avoir auparavant demander permission d’exécuter le decret dont ils
étaient chargés, je m’en plaignis à mon retour par une lettre que j’écrivis au Secrétaire
d’Etat, qui le lendemain me fit savoir par ordre du Roi que S.M. avait or donné qu’on
mit en prison l’Ecrivain qui n’avait pas voulu se reti rer comme avait fait l’Alcaide sur
la remontrance que mes do mesti ques leur firent. Deux jours après je fis demander sa
liberté au Roi qui l’accorda à ma prière.
Le 28 du mois j’eus audience du Roi et de la Reine pour leur faire part du maria‑
ge de Mr. le Duc de Bourgogne avec la Princesse de Savoie. Je leur remis les lettres de
la main du Roi qu’il leur envoyait sur ce sujet. Le même jour j’eus aussi audience de
la Reine douai rière d’Angleterre à qui j’avais eu ordre du Roi de faire part de la même
nouvelle. Je lui remis une lettre de Mgr. le Dauphin.
Le 30 je fus averti par une lettre du Secrétaire d’Etat que le Roi à qui j’avais fait
demander jour pour ma première audience publique avait marqué le six février pour
me la donner.Le trois du dit mois de février le Sr. Fernand de Souza l’un des inten dants
de la Maison du Roi, me vint prendre dans un carrosse de S.M., suivi de trois autres
pour ma Maison. Je fus conduit à une maison de campagne à une lieue de Lisbonne
ne s’étant point trouvé dans la ville de maison co mode. Je trouvai en arrivant un déta‑
chement de 14 gardes du Roi sous les armes. Ils se mirent toutes les fois que je sortis
et que je ren tris. La maison était meublée des meubles du Roi et remplie de ces
of ficiers. Il y avait un dais dans la seconde antichambre et un autre dans la salle desti‑
née pour manger. On m’y donna six repas fort magnifiques dans le goût du pays, sur
une table longue de 20 pieds et de deux et demi de large, également servie d’un bout
à l’autre. J’étais seul au bout du côté du dais. Fernand de Souza était à ma droite. Cinq
personnes qui avaient coutume de manger avec moi étaient pla cées à droite et à gau‑
che, il y avait des fauteuils pour tout le monde. Le troisième jour avant le dîner je fis
faire suivant l’usage la distri buition aux officiers du Roi, aux uns des chaînes d’or, aux
autres d’argent en espèce, jusqu’à concurrence d’environ deux milles li vres, suivant
l’état qui m’avait été donné de ce que cha cun d’eux avait coutume de recevoir en
pareille occasion. Le même jour après souper, on me rammena chez ‑moi et tous mes
officiers dans les car rosses du roi. Le lendemain six du même mois, le Marquis
d’Alegrette, conseiller d’Etat, me vint prendre sur les deux heures de l’après midi pour
me conduire au Palais. J’allai au devant de lui, dès qu’il m’aperçu descendant le degré
il descendit de carrosse, il s’avança vers moi et nous montâmes ensemble, moi lui
donnant la main jusqu’à ma chambre d’audience où je lui fis donner un fauteuil au
dessus du mien. En sortant de cette chambre il commença à me donner la main. Je
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239montai dans un des carrosses du Roi seul avec lui, et toutes les personnes de ma
Maison dans les trois autres car rosses de S.M. Après le carrosse dans lequel j’étais, sui‑
vait à cheval mon écuyer à droite et à sa gauche celui du Marquis d’Alegrette. Après
ve naient à pied mes estafiers au nombre de 16, suivis de 4 pa ges à cheval. Venait ensui‑
te ma litière et deux carrosses attelés cha cun de six mules, suivant l’usage du pays.
Après étaient les carros ses du Marquis d’Alegrette, le carrosse de l’Ambassadeur
d’Espagne et ceux d’un grand nombre de titrés, que le Roi avait fait avertir de les
envoyer précédaient ceux du Roi et celui de l’Ambassadeur d’Espagne étaient immé‑
diatement devant, qui est la place la plus ho norable. Il n’y avait point pour lors de
Nonce du Pape à Lisbonne. J’arrivai ainsi au Palais aux environs duquel était un régi‑
ment d’infanterie et un de cavalerie sous les armes. Je fut reçu à la des cente du carros‑
se par un des capitaines des Gardes du Roi et par Fernand de Souza intendant de sa
Maison. Je marchai entre le Marquis d’Alegrette et le Capitaine des Gardes. Fernand de
Souza al lait devant précédé de toute ma Maison et de quantité de français éta blis à
Lisbonne. Le Roi me reçut dans la salle destinée pour les au diences publiques. A sa
droite étaient sur une même ligne tous les ti trés qui se couvrent et se découvrent
comme les Ambassadeurs. A sa gauche étaient les officiers de sa Maison. Dans le reste
de la salle était un grand nombre de personnes. Le Roi était assis sous son dais dans un
fauteuil, derrière était son Chambellan, et son Chancellier à sa main droite. Dès que
j’entrai dans la salle le Roi s’éleva. J’approchai de lui en faisant les trois révérences
ordinaires d’espace en espace, quand je commençai à monter sur l’estrade où il était,
il avança deux pas. Je me couvris en même temps que lui, et je lui fis mon compliment
en français en ces termes:
Sire, j’approche de V.M. plein de respect et de confiance. Je sais avec quelle bonté
Elle reçoit les ministres qui lui sont en voyés par le princes ses alliés. L’accueuil oblige‑
ant qu’Elle a pour eux et les bons traitements qu’en toute occasion ils reçoivent d’Elle.
Si en cela V.M. satisfait au devoir établi entre les souve rains Elle suit aussi les sen timents
d’humanité, de justice et de générosité qui lui sont naturels. Ce sont Sire, ces qualités
dont V.M. donne des marques continuelles qui la font jouir d’un rêgne si tranquille et
si heureux. Le Roi mon maître a la satisfaction d’avoir contribué à le rendre tel. V.M.
sait avec quelle grandeur d’âme il a employé ses troupes, ses finances et tout ce qui
dé pendait de lui pour conserver à la Maison de Bragance une cou ronne qui lui appar‑
tient si légitimement et qu’on voulait lui enle ver avec tant d’injustice. Il est si persuadé
de la reconnaissance de V.M. que je puis l’assurer que ces mêmes secours lui seraient
en core acquit s’il lui devenait necéssaire.
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240 Le Roi mon maître après avoir terminé si sagement une guerre qu’il avait soutenue
avec tant d’avantage ne peut plus en visager de gloire que celle de soutenir ses alliés en
jouissant d’un repos que per sonne à l’avenir n’osera troubler.
Les marques d’amitié qu’il a jusqu’ici donnée à V.M. et la bonne correspondance
que je suis chargé d’entretenir avec Elle lui répon dent de ses dispositions. Elles me
mettent aussi en état d’espérer pendant que j’aurai l’honneur d’être auprès d’Elle tout
ce que les in térêts du Roi mon maître m’obligeront à demander pour lui.
Le Roi répondit en portugais. Après lui avoir remis ma lettre de créance, je me
retirai en faisant les mêmes révérences qu’en en trant. Après lui avoir fait ma seconde
révérence au milieu de la salle je saluai d’abord les personnes titrés et ensuite les offi‑
ciers de sa Maison. Le Roi était vêtu de noir. Il avait un juste au corps, un man teau et
un rabat. J’étais habillé de même.
Je fus ensuite conduit à l’audience de la reine. J’entrai dans la salle où elle était en
faisant les mêmes révérences que chez le Roi. Il y avait à sa droite plusieurs titrés et à
sa gauche étaient les dames du Palais et les filles d’honneur. Je me couvris quand com‑
mençais à lui parler et je me découvris aussitôt. Je la com plimentai en français et elle
me répondit en la même langue. Je lui remis la Lettre de créance que j’avais pour elle
. En me reti rant je saluai du milieu de la salle premièrement les dames et ensuite les
titrés. Je remontai en car rosse avec le Marquis d’Alegrette qui me ramena chez ‑moi. Il
me donna la main jusqu’à ma chambre d’audience et la reprit quand il en sortit. Je le
re conduisis jusqu’au carrosse.
Le lendemain la Reine douairière d’Angleterre, à qui j’avais fait demander audien‑
ce, m’envoya prendre dans son carrosse par M. de Sandis son premier écuyer qui me
conduisit chez elle. J’entrai dans la salle où elle me reçu faisant les mêmes révéren ces
que chez la Reine et je me retirai de même. Je lui parlais en français et elle me répon‑
dit en espagnol. Je n’avais point de let tre à lui rendre. Je fus ramené chez moi dans son
carrosse.
Quand le dit M. Sandis arriva chez moi, mes gens l’allèrent re ce voir à la descente
du carrosse et je l’attendis au haut du degré lui donnant toujours la main. Je le con‑
duisis ainsi dans la cham bre d’audience où nous fûmes assis. Quelque temps après
quoi nous des cendîmes et montâmes en carrosse. Au retour nous montâmes en semble
jusque dans la même chambre où nous prîmes encore séance après quoi je le recon‑
duisi jusqu’au haut du degré et mes gens jusqu’au carrosse.
Les jours suivants je rendis visite, ayant tous mes équipages et ma Maison, à Dona
Luiza, fille naturelle du Roi, mariée au fils du Duc de Cadaval, au cardinal de Souza, à
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241l’Ambassadeur d’Espagne, au Duc et à la Duchesse de Cadaval, au Marquis d’Alegrette,
qui m’avait conduit à l’audience, au grand Inquisiteur et à Fernand de Souza qui
m’avait accompagné les trois jours avant mon en trée. Je leur avais envoyé demander
audience. Suivant l’usage tous ceux que j’avais été voir ainsi me rendirent la visite avec
la même cérémonie et le Cardinal de Souza en Rochet et en Camail.
Le 24 février, jour de la naissance de l’Infante, j’allai au Palais faire mes compli‑
ments au Roi et à la Reine à l’heure qui m’avait été indiquée par la lettre du Secrétaire
d’Etat, en réponse de celle que je lui avais écrite le jour précédent pour demander
audience. L’on est admis à ces sortes de compliments qu’après avoir fait son entrée
pu blique. Jusque ‑là, dans les occasions qui se présentent on écrit une lettre au Secrétaire
d’Etat pour le prier de faire à leurs Magestés les excuses de ce que n’ayant point encore
fait d’entrée on ne peut s’acquitter en personne de ce devoir. On ne va jamais au Palais
pour pareille chose ni pour aucune autre fonction sans avoir demander et reçu le jour
et l’heure précise par la voie du Secrétaire d’Etat, à qui l’on écrit et qui répond de même.
Toutes les fois qu’on y va, la même céré monie s’observe. Un capitaine des Gardes et un
Maître de Cérémonies ou un intendant de la Maison viennent prendre l’Ambassadeur
qui ne sort point de sa litière qu’ils ne soient au près de lui. Ils le reconduisent de même
et ne se retirent point que quand la litière se met en marche.
Le 13 mars j’allai saluer le Roi et la Reine sur le jour de la nais sance de Don
António, second prince qui entrait ce jour là dans sa 4ème année.
Le 22 mars, Dimanche des Rammeaux j’assistais à la chapelle du Roi pour la pre‑
mière fois étant en fonctions, à laquelle l’on est admis qu’après l’entrée publique. Je
fus invité la veille, sui vant l’usage, par une lettre du Secrétaire d’Etat qui me marquait
l’heure. Je fus reçu à la manière ordinaire à la descente de ma litière par un capitaine
des Gardes et un maître des cérémonies. Ils me conduisirent dans un lieu destiné pour
attendre que le Roi passe pour aller à l’église. Dès que S.M. paraît on vient aver tir.
L’Ambassadeur sort pour se trouver à son passage. Le Roi lui fait un salut et l’invite en
même temps de se couvrir. Le Roi continue de marcher couvert, l’Ambassadeur le suit
de même immédiatement, n’ayant personne à sa droite, et à sa gau che le Grand
Chambellan. S’il y a plusieurs Ambassadeurs, ils mar chent ensemble sur la même ligne.
Quand on est arrivé à la chapelle, le Roi se met à sa place au bas des degrès de l’autel,
son prie Dieu et de côté son fauteuil (sic). De l’autre côté et vis ‑à ‑vis est la place des
Ambassadeurs. Ils ont des sièges pliants avec des car reaux dessus, en bas un tapis et
devant un banc couvert d’un au tre tapis. On se lève et on s’asseoit dans les mêmes
temps que le Roi. Après qu’on a en censé le Roi on encense les Ambassadeurs et on leur
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242 porte la paix de même. Quand il y a un cardinal, il a sur la même ligne et au dessus
des ambassadeurs un fauteuil et un prie Dieu. Le duc de Cadaval et son fils ont chacun
un tabouret du même côté que le Roi. Le fils est avant le père, depuis qu’il a épousé
une fille naturelle du Roi, les Marquis et les Comtes ont place au delà du balustre, qui
fait le cein tre de l’autel. Les pre miers sont assis sur des sièges pliants, les au tres sur des
bancs couverts de tapis. La chapelle finie on sort en même temps que le Roi, on monte
après lui le degré et on le suit jus que dans un lieu où il se retourne pour donner un
salut après lequel on se retire. Le jeudi suivant j’assistai encore à la Chapelle. L’après
dî ner j’allai à pied suivant ce qui se pratique à pareil jour et suivi de toute ma Maison
faire des stations en plusieurs églises. Elles sont pendant 24 heures d’une magnificen‑
ce extraordinaire. Je fus invité de me trouver encore à la chapelle le lendemain ven‑
dredi saint, mais je m’en dispensai parce que ce jour là toutes sortes de voitures sont
interdites et que ma maison était loin du Palais.
Le lendemain de Pâques 31 mars j’allai souhaiter les bonnes fêtes au Roi de
Portugal, à la Reine et à la Reine Douairière d’Angleterre qui m’avaient fait marquer
l’heure de l’audience.
Le 26 avril jour de la naissance de S.M. Portugaise, je fis de man der audience au
Roi et à la Reine pour leur faire mes com pliments. Le Secrétaire d’Etat m’écrivit que le
Roi irait à la chasse selon sa cou tume, la Reine me donna audience. Le Roi en tra ce
jour ‑là dans sa cinquante unième année.
Le 25 mai, jour de la naissance de l’Infant Don Francisco se cond prince, je deman‑
dai et j’eus audience pour faire les com pliments or dinaires au Roi et à la Reine. Il entra
ce jour ‑là dans sa huitième année.
Le 5 juin pour l’octave de la fête de Dieu, j’assistai à la cha pelle que le Roi tint
l’après ‑dîner et à la procession qui se fit dans la cour du Palais. J’avais été invité par
une lettre du Secrétaire d’Etat. Le 27 j’eus du Roi l’audience que j’avais de mandé pour
lui présenter M. le Chevalier d’Hautefort, Capitaine et les autres officiers d’une frégate
du Roi qui était entrée dans cette rivière. Je fis dans la suite la même fonction toutes
les fois qu’il entrait des vaisseaux du Roi dans la ri vière de Lisbonne. Dans la même
audience je demandais à S.M. Portugaise de bien vouloir me nommer un conférant
avec qui je pusse traiter doré navant les affaires qui se présenteraient. On en donne aux
Ambassadeurs quand ils en demandent, et tant qu’ils n’en ont point ils traitent avec le
Secrétaire d’Etat, qui équivaut à un mi nistre d’Etat en France,et il est établi qu’en ce cas
l’Ambassadeur lui rend la première visite. Quelques jours après le Secrétaire d’Etat me
donna avis par une lettre que le Roi m’avait donné le Duc de Cadaval pour conférant.
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243Le 2 juillet M. l’Ambassadeur d’Espagne ayant pris son au dience de congé du Roi,
de la Reine et de la Reine douairière d’Angleterre, vint chez moi pour le même sujet
après m’avoir demandé le jour et l’heure. Il était en habit de cérémonie et avec tous ses
équipages. Trois jours après je le retournai voir avec les mêmes cérémonies.
Le 4, jour de la fête de Sainte Isabelle Reine de Portugal, je fus in vité à la chapelle
que le Roi tint et j’y assistai.
Le premier du mois d’août, jour de la naissance de l’Infant Don Manuel, quatriè‑
me fils du Roi, je n’allai point au Palais faire les compliments ordinaires. Je m’en
excusai comme il est permis de faire par une lettre au Secrétaire d’Etat, qui répondit le
len demain, suivant la coutume à mon compliment par une lettre de remercie ments au
nom du Roi. Ce prince entra ce jour ‑là en sa deuxième an née.
Le 6 du même mois, jour de la naissance de la Reine, qui en trait en sa trente
unième année j’eus audience du Roi et de la Reine à qui je fis les compliments accou‑
tumés. Les 10, 12 et 15 de septembre il y eut des fêtes de taureaux. Quand elles sont
Royales comme dans les occasions de réjouissance, le Roi de Portugal invite les minis‑
tres étrangers et leur donne des fenê tres au même rang que celles où il est. Celles ‑ci se
faisaient par les soins de la Ville. Cependant S.M. Portugaise me fit dire qu’il y aurait
une chambre préparée pour moi dans son Palais. J’y allai pendant les trois jours.
Comme ce n’était pas fonction de céré monie je ne fus point reçu au bas du degré, je
trouvai seulement dans la salle des Gardes un officier subalterne pour me conduire
dans l’appartement du roi. Il y avait deux croisés à l’une des quels était un siège pliant
couvert de velours avec un car reau de même dessus pour m’asseoir. Il y avait plusieurs
officiers de S.M. Portugaise pour me servir de temps en temps des rafraîchisse ments.
Quatre d’entre eux me reconduisirent un soir que le spectacle finit plus tard, qu’à
l’ordinaire portant chacun un flam beau de cire blanche. Je les fis couvrir en chemin et
ils ne se retirèrent que quand je fus dans ma litière.
Le 22 octobre, j’eus l’audience du Roi et de la Reine à qui je fis les compliments
ordinaires sur la naissance du Prince qui en trait ce jour ‑là dans sa dixième année. C’est
ainsi qu’on nomme le fils aîné du Roi, à la distinction des puisnés, à qui l’on donne
le nom d’Infants et pour les distinguer l’on ajoute à ce nom celui de leur bapthême.
Par la lettre que j’avais écrite au Secrétaire d’Etat, j’avais demandé audience de leurs
Magestés et du Prince, mais comme le Prince n’en donnait point encore de son chef,
la Reine le fit venir à la sienne où je le saluai.
Le 5 novembre Mr de Conti, Archevêque de Tharse arriva à Lisbonne en qualité de
Nonce du Pape. Il m’avait écrit avant de partir de Rome pour me donner part de sa
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244 nomination. Dès qu’il fut des cendu chez lui il m’envoya faire un compliment par son
écuyer pour me donner part de sa venue. Une heure après je l’allai voir incognito. Il
me vint rendre ma visite aussi incognito. Quelques jours après j’allai lui rendre visite
en cérémonie, après lui avoir envoyé deman der audience, il me reçut en rochet et en
camail. Deux jours après il m’envoya demander audience et me vint voir dans le même
habit mais sans équipage parce qu’il n’avait point encore fait son entrée publique.
Le 9 novembre se fit la cérémonie d’un Auto de Fé ordonné par l’Inquisition.
L’Inquisiteur Général envoya un gentilhomme pour m’inviter d’y assister et me dire
qu’il y aurait une loge appe lée en portugais camarote, disposée pour moi et ceux de
ma suite. Je me rendis à l’heure que la cérémonie devait commen cer et je demeurai
pendant tout le temps qu’elle dura. Ma loge était joignante et au des sous de celle de
Mr. le Nonce.
Le 25 novembre, jour de la naisance de la Reine douairière d’Angleterre je lui
envoyai demander audience et je lui allai faire mes compliments. Elle entrait dans sa
cinquante sixième année.
Le 8 décembre, fête de la Conception et jour ordinaire de la cha pelle pour les
Ambassadeurs, je n’y fus point invité parce que le Roi ne pouvait y assister à cause
d’une incomodité qui lui était survenue.
Par la même raison S.M. Portugaise ne me donna point le len de main de Noèl
l’audience pour lui souhaiter les Bonnes Fêtes. La Reine ne me la donna pas non plus
parce qu’étant proche du terme pour accoucher, elle n’était pas en état de s’habiller
pour paraître en public. Le Secrétaire d’Etat m’écrivit au nom de LL.MM. une lettre de
compliments en réponse de celle que je lui avais écrite pour de mander l’audience des
bonnes fêtes. Je les allai souhaiter à la Reine douairière d’Angleterre qui me donna
audience en la manière ordi naire.
Le 6 Janvier 1699, jour des Rois auquel la Reine accoucha d’une princesse, j’en
fus averti aussitôt par un homme du Palais. J’allai dans le moment sans avoir demandé
audience. Cela se pratique ainsi en pareil occasion. Je montai sans avoir été reçu en bas
par les offi ciers, qui ont coutume d’y attendre les Ambassadeurs, parce qu’ils n’étaient
pas avertis. Le Roi me donna audience en la manière ordi naire. En sortant de son
ap partement j’allai à celui de la Reine m’informer de sa santé. J’entrai dans sa chambre
du dai, la dame d’honneur fut avertie que j’y étais. Elle vint recevoir mon compli ment,
en alla rendre compte à la Reine et me vint faire un remer ciement de la part de S.M..
Je fus reconduit à ma litière par un capi taine des Gardes et un Maître de Salle qui
m’était venu joindre au Palais dès qu’ils avaient su que j’y étais. Ils me conduisirent à
l’audience du Roi et ensuite chez la Reine.
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245Le 24 février, jour des années de l’Infante Dona Theresa qui en trait dans sa qua‑
trième année, j’écrivis au Secrétaire d’Etat pour demander audience au Roi et à la
Reine, et leur faire les compli ments ordinaires. Il me fit réponse par un compliment
de LL.MM. qui s’excusaient de me donner audience sur la cérémo nie du bap tême de
la princesse nouvellement née, qui devait être baptisée ce jour là. Le même jour le
Duc de Cadaval, mon conférant, m’écrivit que quoi qu’il n’y eu point de place pour
les Ministres étrangers à la cérémonie de baptême si je le voulais voir il y aurait une
place pour moi dans un endroit particulier. Cela me détermina à aller au Palais mais
sans cérémonie. L’on me conduisit à une tribune de la chapelle qui m’était desti‑
née.
Le 4 mars premier jour de Carême, j’assistai à la chapelle où j’avais été invité par
une lettre du Secrétaire d’Etat. Tout se passa avec les cérémonies ordinaires. Je pris des
cendres im médiatement après le Roi. L’année précédente je n’avais point été convié
parce que le Roi ne tint point chapelle.
Le 15 j’eus audience du Roi pour le complimenter sur les an nées de l’Infant Don
António. La Reine s’excusa de me la donner par la raison de quelque occupation
qu’elle avait ce jour là. Ce prince en trait dans sa cinquième année.
Le premier avril, Mr. Conti, Nonce fit son entrée publique. J’envoyai au cortège un
de mes carrosses avec deux de mes écuyers dedans. Il marcha immédiatement devant
ceux du Roi. Mr. le Nonce avait été pendant trois jours avant son entrée dans une mai‑
son de campagne à une lieue de la ville, défrayé par le Roi. Je l’avais été voir un de ces
trois jours. Le lendemain de son entrée il me vint rendre la visite de cérémonie avec
tout son Etat, c’est ‑à ‑dire avec tous ses équi pages et domestiques. Je la lui rendis de
même deux jours après.
Le 12, jour du dimanche des Rameaux et le 16, jour du Jeudi Saint, j’assistai aux
chapelles que le roi tint, y ayant été invité par let tre du Secrétaire d’Etat en la manière
ordinaire. Je ne le fus point à la chapelle du Vendredi Saint comme l’année précé dente.
Le 19, jour de Pâques, j’assistai le matin à tout l’office à Sainte Catherine, pa roisse de
ma maison, comme j’avais fait l’année précédente. Le curé vint me recevoir à la porte
de l’église et me donner de l’eau bénite. Il me reconduisit de même, et pendant la
messe me fit rendre le mê mes honneurs que reçoivent les Ambassadeurs dans la cha‑
pelle du Roi, choses auxquelles il avait manqué l’année précédente, faute d’être ins‑
truit.
Le 21 j’eus audience du Roi et de la Reine à l’occasion des bonnes fêtes. Les jours
suivants je reçu et je rendis les visites ordinaires en cette occasion.
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246 Le 26, jour des années du Roi je demandai audience de LL.MM. pour leur faire
compliments accoutumés. Le Roi s’en dispensa comme il fait ordinairement en pareil
jour et la Reine me la donna. Le Roi entra ce jour là dans sa 52 année.
Le 25 mai j’eus audience de LL.MM. au sujet des années de l’Infant Don Francisco
qui entra dans sa neuvième année.
Le 25 juin, jour de l’octave de la fête de Dieu, je fut invité à la cha pelle et à la
procession qui se fait ce jour là dans la cour du Palais et j’y assistai.
Le 4 juillet, fête de St Isabelle Reine de Portugal, je fus invité à la chapelle, où je
n’allai point.
Dans ce mois la Reine étant tombée malade j’envoyai tous les jours un écuyer au
palais savoir de ses nouvelles. La maladie ayant aug mentée, j’y allai moi même trois
fois. En pareille occasion les Ambassadeurs entrant dans la chambre d’audience de la
Reine, la dame d’honneur reçoit là leur compliment. Elle porta à la Reine et vint répon‑
dre de sa part.
Le 3 août, jour de la naissance de l’Infant Don Manuel, qua trième fils du Roi qui
entrait dans sa troisième année, je ne de mandai point audience à cause de l’extrémité
où se trouvait la Reine. Le quatre août la Reine mourut. Le lendemain j’écrivis une
lettre au Secrétaire d’Etat pour le prier de témoigner au Roi mes sentiments sur la mort
de cette princesse. En attendant que par ordre du roi mon maître je puisse lui donner
sur ce sujet des démonstrations publiques. Deux jours après le Secrétaire d’Etat répon‑
dit de la part du Roi à ma lettre en termes très honnêtes.
Le 25 de ce mois, jour de St. Louis j’assistai à la grande messe et au sermon dans
l’église de ce nom y ayant été invité par les officiers de la confrairie. Etant en charge,
il n’y eut point chez moi de feux ni d’illuminations, comme l’année précedente, et je
défendit que l’on ti rait des boîtes, ni des fuzées (sic), comme on a coutume de faire
de vant l’église de St Louis, pour ne pas don ner des signes de joie dans les présents
temps de la mort de la Reine.
Le 28 septembre, je fus invité par le Duc de Cadaval, mon confé rant, de me trou‑
ver le lendemain au Palais avec les Ministres du Roi de Portugal pour traiter d’une
affaire. Je m’y rendis à l’heure conve nue. Je trouvai au bas du degré un officier subal‑
terne de la chambre du Roi qui me conduisit dans le lieu destiné pour les conférences.
Le Duc de Cadaval et le Secrétaire d’Etat qui y étaient venus les pre miers, sortirent pour
venir au devant de moi. Le premier, un peu hors de la porte et le dernier plus avant.
Quand les autres furent ar rivés on prit séance à un bureau long couvert d’un tapis de
velours sur lequel il y avait un écritoire, du papier et une sonnette. Il n’y avait pour
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247chaises que des tabourets. Je pris ma place seul du côté supérieur du bureau. De l’autre,
vis ‑à ‑vis de moi étaient les minis tres de S.M. Portugaise. Au bout d’en bas était le
Secrétaire d’Etat. Quand on fut assis le Duc de Cadaval me présenta la sonnette pour
marquer de distinction et je la reçue. Après la conférence je fus re conduit hors la porte
du cabinet par les Ministres du Roi de Portugal, comme j’avais été reçu et jusqu’à ma
litière par l’officier qui m’avait conduit en arrivant. Il en a été depuis usé de même
dans toutes les autres conférences publiques, que j’ai eu avec les mi nistres de S. M.
Portugaise.
Le 22 octobre, jour de la naissance du Prince qui entrait dans sa 11ème année je
ne demandai point d’audience au Roi parce que je n’avais point encore fait les com‑
pliments de condoléances sur la mort de la Reine. N’en ayant pas reçu ordre de la Cour,
j’écrivis seu lement une lettre au Secrétaire d’Etat pour être montrée au Roi, et il y
répondit par une autre lettre de la part de S.M. Portugaise.
J’en usais de même le 25 novembre, jour de la naissance de la Reine douairière
d’Angleterre, et comme elle n’a point à Lisbonne de Secrétaire d’Etat (sic), j’écrivis à
son premier écuyer. Elle entrait ce jour là dans sa cinquante septième année.
Le 2 décembre, l’ordre m’étant venue de faire les compli ments de condoléances à
S.M. Portugaise, je demandai et j’eus audience à cet effet. Le même jour j’eus audience
de la Reine douairière d’Angleterre sur le même sujet. J’allai à ces deux au diences et
en suite à toutes les autres pendant l’année du deuil de la Reine de Portugal en mante‑
au long trainant que je ne me fis point porter dans le palais, n’étant pas l’usage de cette
Cour. Le Roi de Portugal ne fai sant pas même porter le sien.
Le 8 décembre, fête de la Conception de la Vierge, S.M. Portugaise tint Chapelle.
J’y fus invité et j’y assistai avec les cé rémonies ordi naires.
Le 26 décembre j’eus audience du Roi pour lui souhaiter les bon nes fêtes et ensui‑
te de la Reine douairière d’Angleterre.
Le 6 janvier 1700, jour des Rois, je fus invité à la chapelle et j’y assis tai.
Le 30 du dit mois, jour des années de l’Infante Dona Francisca qui entrait dans sa
deuxième année, S.M. Portugaise ne voulut point re cevoir de compliments à cause du
deuil de la Reine, non plus que dans toutes les autres occasions de réjouissance pen‑
dant l’année du deuil. Je ne laissai pas à chacune d’écrire au Secrétaire d’Etat pour le
prier de faire mes compliments au Roi et il me fit réponse à chaque lettre par d’autre
remerciement au nom de S.M. Portugaise.
Le 24 février j’assistai à la chapelle, étant le premier jour de ca rême. Je pris des
cendres après le Roi.
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248 Le même jour, l’Infante Dona Theresa entra dans sa cinquième année et le Roi n’en
reçus point de compliments. Il n’en reçut point non plus le 15 mars, jour de la nais‑
sance de l’Infant Don António, qui entrait dans sa sixième année.
Le 4 avril, jour des Rameaux et le Jeudi Saint suivant, j’assitai à la chapelle du Roi
ayant été invité.
Le 12 du même mois, je demandai et j’eus audience de S.M. Portugaise pour lui
souhaiter les bonnes fêtes.
Le 26, jour des années du Roi qui entrait dans sa cinquante troi sième année, il ne
donna point d’audience.
Le 25 mai l’Infant Don Francisco entra dans sa dixième année, et j’eus audience
du Roi pour lui faire mes compliments.
Le 14 juin, jour de la cérémonie de la fête de Dieu à la cha pelle du Roi, j’y fus
invité et je n’y pus pas assister.
Le 4 juillet, fête de St. Isabelle Reine de Portugal, j’y fus en core in vité et j’y assistai.
Le 6 juillet la Comtesse de Waldstein, épouse du comte de ce nom, nomé
Ambassadeur de l’Empereur auprès du Roi de Portugal et qui n’était pas encore arrivé,
s’étant rendue la pre mière à Lisbonne, m’envoya donner part de sa venue et le même
jour, je lui allai rendre visite.
Le 11 du même mois, le Comte de Waldstein arriva. Il m’envoya donner part le
lendemain de sa venue et je l’allai visi ter comme fit le Nonce du Pape. Je le trouvai au
milieu du degré venant au devant de moi et il me reconduisit jusqu’à ma litière.
Le 3 août, jour des années de l’Infant Don Manuel, S.M. Portugaise ne reçut point
de compliments. Ce prince entrait dans sa quatrième année.
Le 25, jour de St. Louis, j’assistai au service dans l’église des fran çais avec les céré‑
monies ordinaires.
Le 11 octobre, le Comte Waldstein, Ambassadeur de l’Empereur, me rendit sa pre‑
mière visite, qu’il avait differé de me rendre aussi bien qu’au Nonce du Pape par des
raisons parti culières. Il vint sans cortège n’ayant point encore fait son entrée publique.
Il m’envoya demander l’heure comme j’avais fait à son égard et je le reçus chez moi
comme il m’avait reçut chez lui.
Le 22 du même mois, jour des années du Prince qui entrait dans sa douzième
année, j’eus audience de S.M. Portugaise à qui je fis les compliments accoutumés. J’eus
ensuite des Infants et c’est la pre mière que j’eus d’eux. Ils me reçurent dans
l’appartement de la feue Reine et dans la même chambre où elle donnait audience. Ils
étaient tous trois sous un dais, sous lequel il n’y avait qu’un fauteuil qui était censé
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249pour le Prince, comme étant déjà juré successeur à la Couronne. Derrière le fauteuil
était la gouvernante. Des deux côtés de la chambre, à la droite des princes, étaient
plusieurs seigneurs, à gauche, étaient les principaux officiers de la feue Reine qui
depuis sa mort servent auprès d’eux. Je fus conduit à cette audience et ensuite recon‑
duit à ma litière par les officiers du Roi qui m’avaient conduit à celle de S. M.
Portugaise. Je fis en entrant les mêmes révérences qu’on a coutume de faire quand on
est admis à l’audience du Roi. A chaque révérence les princes ôtèrent leurs chapeaux
et les remirent, quand j’approchai ils se découvrirent tout à fait, et ne se couvrirent
ensuite qu’en même temps que moi. J’adressai la parole au Prince et lui seul me répon‑
dit. Je fis en me retirant les mêmes révérences qu’en entrant et les princes se décou‑
vrirent de la même manière. Ils étaient tous en manteau et en rabats.
Le 28 du dit mois, Mr. le Nonce ayant eu avis par un exprès dépe ché de Rome de
la mort du Pape Innocent XII, il m’envoya son Secrétaire m’en donner part et je l’allai
visiter sur ce sujet.
Le 25 novembre, jour des années de la Reine douairière d’Angleterre, qui entrait
dans sa cinquante huitième année, elle me donna audience et je lui fis mes compli‑
ments.
Le 6 décembre, l’Embassadeur de l’Empereur ayant reçu la nou velle que la Reine
des Romains était accouché d’un prince, m’en donna part aussitôt par son M.... de sa
Chambre et je lui al lai rendre visite.
Le 8, jour de la fête de la Conception de la Vierge, je fus invité à la chapelle où le
Roi de Portugal assistait, mais je ne pus m’y trouver.
Le 20, Mr le Nonce reçut par un exprès la nouvelle de l’élection du Pape Clément
XI. Il envoya son Secrétaire m’en donner part et je lui en allai faire mes compliments.
Le 24, veille du jour de Noèl j’eus audience de S.M. Portugaise et je lui fis le com‑
pliment des Bonnes Fêtes.
Le 28, je fis le même compliment à la Reine douairière d’Angleterre.
Le 6 janvier de 1701, jour des Rois, le Roi n’ayant point tenu cha pelle, j’assistai le
matin à l’office dans l’église de St. Louis.
Le 16 janvier 1701, le Roi de Portugal devant partir le lende main pour aller à
Salvaterra, maison de chasse à dix lieues de Lisbonne, j’eus audience de lui pour lui
souhaiter un heureux voyage. S. M. Portugaise ayant demeuré à la campagne jusq’au 2
mai suivant, il n’y eut pendant ce temps là aucune fonction pu blique. Les ambassa‑
deurs n’ayant pas coutume de suivre ce prince hors de Lisbonne, mais le lendemain de
Pâques j’allai souhaiter les Bonnes Fêtes à la Reine douairière d’Angleterre.
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250 Le 25 mai, jour des années de l’Infant don Francisco qui en trait dans sa onzième
année j’eus audience de S.M. Portugaise, à qui je fis les compliments ordinaires en
pareil cas.
Le 2 juin, jour de l’octave de la fête de Dieu, je fus invité et j’assistai à la procession
qui se fait ordinairement ce jour là dans la cour du Palais.
Le 13 juillet, le Comte de Waldstein, Ambassadeur de l’Empereur, fit son entrée
publique. Il m’envoya donner part au paravant du jour qui lui avait été marqué pour
cela, et me prier d’envoyer un de mes carrosses à son cortège, ce que je fis. J’allai aussi
le voir une fois dans la maison où il fut défrayé pendant trois jours avant son entrée,
aux dépens du Roi de Portugal. Trois jours après avoir fait son en trée, il me vint visiter,
ayant tout son état. Lui, étant en habit de cé rémonie avec manteau et rabats. Il avait
auparavant envoyé me de mander audience. Peu de jours après, je lui rendis la visite et
à la comtesse de Waldstein avec les mêmes cérémonies. Je les reçus chez moi au bas du
de gré et les reconduits jusqu’à sa litière. Il en usa de même chez lui.
Le 24, j’eus audience du Roi de Portugal, étant en grand deuil avec manteau long
trainant. Je lui donnais part de la mort de Monsieur le Duc d’Orleáns et lui remis une
lettre par ordinaire, que S.M. lui avait écrite à cette occasion.
Le 31, j’en donnai aussi part à la Reine douairière d’Angleterre dans une audien‑
ce publique que j’eus d’elle.
Le 3 août j’eus audience de S.M. Portugaise que je complimen tai au sujet des
années de l’Infant Don Manuel, qui entrait dans sa cin quième année. J’ai quité pour
cette fonction le grand deuil.
Le 25 , jour de la fête de St. Louis, j’assistai le matin à l’office dans l’église de ce
nom.
Le 22 octobre, jour des années du Prince, n’ayant pu aller faire les compliments
ordinaires au Roi, je m’en acquitai par une let tre au Secrétaire d’Etat. Ce Prince entrait
ce jour dans sa trei zième année.
Le Roi de Grande Bretagne, Jacques Second, étant mort et la Reine douairière
d’Angleterre, sa belle soeur, en ayant pris le grand deuil, j’eus de cette princesse une
audience publique le 6 novembre dans la quelle je lui fis les compliments de condoléan‑
ces. J’étais en deuil, mais sans manteau long. Le 25 du dit mois, jour des années de
cette princesse, j’eus d’elle une autre au dience dans laquelle je lui fis les compliments
accoutumés. Je quittai ce jour là le deuil que je portais pour la mort de Mr. le Duc
d’Orléans. Elle entrait dans sa cinquante neuvième année.
Le 8 décembre, jour de la Conception, je fus invité à la cha pelle que le Roi tenait
et j’y assistai.
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251Le 24, j’eus audience de S.M. Portugaise, dans laquelle je lui pré sentai plusieurs
officiers français envoyés ici par le Roi pour son ser vice.
Le 27, j’eus une autre audience de ce prince pour lui souhaiter les Bonnes Fêtes.
Le 29, j’allai souhaiter les Bonnes Fêtes à la Reine douairière d’Angleterre.
Le 6 Janvier 1702, fête des Rois je n’assistai point à la Chapelle mais j’y fus invité.
Le 30, jour des années de l’Infante Dona Francisca qui entrait dans sa quatrième
année, le Roi ne reçu point de compliments.
Le 24 février, jour des années de l’Infante Dona Théresa qui en trait dans sa septiè‑
me année, il en reçut, j’allai à l’audience de ce prince. Je fus ensuite conduit à celle des
princes et princes ses qui étaient ensemble dans la même chambre.
Le 25, le Comte de Waldstein, Ambassadeur de l’Empereur eut son audience de
congé du Roi. Il me donna part le jour aupara vant, par un gentilhomme, de l’heure
qui lui avait été marqué pour cette fonc tion et me pria d’envoyer mon carrosse au cor‑
tège, ce que je fis. Plusieurs seigneurs de la Cour y envoyèrent aussi les leurs en ayant
reçu l’ordre du Roi. Il demanda à Mr le Nonce et à moi de le dispen ser de nous venir
rendre la visite de congé jusqu’à ce qu’il soit prêt de partir et nous consentîmes.
Le 1er jour de mars, premier jour de carême, je fus invité de me trouver à la
Chapelle du Roi j’y assistai. Le Maître des Cérémonies qui est un ecclésiastique officier
de la Chapelle manqua de me venir prendre pour aller recevoir des cendres immédia‑
tement après le Roi. Suivant ce qui se pratique ordinai rement, ce prince s’en étant
aperçu lui fit après être sorti de la Chapelle une réprimande et lui ordonna de me venir
faire des excuses de la faute qu’il avait faite, à quoi il sa tisfit sur le champs.
Le 15, jour des années de l’Infant Don António, qui entrait dans sa huitième
année, m’étant trouvé incommodé j’écrivis au Secrétaire d’Etat pour le prier de faire
mes compliments au Roi. Il y répondit le même jour par écrit au nom de S. M.
Portugaise qui envoya D. Fernando de Souza, l’un des intendants de sa Maison savoir
des nou velles de ma santé.
Le 9 avril Dimanche des Rameaux, et le 13, jour du Jeudi Saint, ayant été invité à
la chapelle de S.M. Portugaise j’y assistai.
Le 17, j’eus audience de ce prince au sujet des Bonnes Fêtes et le 20 de la
Douairière d’Angleterre.
Le 26, jour des années du Roi de Portugal qui entrait dans sa cin quante cinquiè‑
me année, je lui fis mes compliments par une lettre que j’écrivis au Secrétaire d’Etat,
qui me répondit par or dre de S.M. qui ne donna point d’audience le jour de ses
années.
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252 Le 5 mai, Domingo Capecelatro nommé par S.M. Catholique pour son envoyé
auprès du Roi de Portugal, arriva à Lisbonne. Il me vint rendre visite aussitôt, sans avoir
envoyé me demander audience. Je pris sur lui la main, la porte et la chaise. Comme il
n’avait ordre de recevoir ce traitement que de moi, il ne visita point le Nonce parce
qu’il fut informé qu’il ne voulait pas le trai ter autrement que j’avais fait.
Le 15 mai, jour des années de l’Infant Don Francisco, j’eus au dience du Roi de
Portugal et des princes à qui je fis les com pliments accoutumés en pareille occasion.
Ce prince entrait ce jour là dans sa douzième année.
Le 22 juin, pour l’octave de la fête de Dieu je fus invité de me trou ver à la proces‑
sion qui se fait au Palais ce jour ‑là après midi et j’y as sistai.
Le 4 juillet, jour de St. Isabelle Reine de Portugal, je fus invité à la chapelle du Roi
à laquelle je n’assitai point.
Le 3 août, jour des années de l’Infant don Manuel qui entrait dans sa sixième
année, j’eus audience du Roi de Portugal et en suite des princes et je leurs fis les com‑
pliments ordinaires.
Le 22 octobre, jour des années du Prince qui entrait dans sa qua torzième année,
j’eus audience du Roi et des princes à qui je fis des compliments.
Le 25 novembre, jour des années de la Reine douairière d’Angleterre, qui entrait dans
sa soixantième année elle me donna aussi audience avec les cérémonies accoutumées.
Le 8 décembre, jour de la Conception de la Vierge, je fus in vité à la chapelle du
Roi et j’y assistai.
Le 27, j’allai au Palais pour souhaiter les Bonnes Fêtes à S.M. Portugaise.
Le 28, j’eus audience de la Reine douairière d’Angleterre pour le même sujet.
Le 26 (sic) Janvier 1703, fête des Rois, j’assistai à la Chapelle du Roi.
Le 30 du même mois, j’eus audience du Roi, des princes et prin cesses, à qui je fis
les compliments accoutumés au sujet des années de l’Infante Dona Francisca qui
entrait ce jour là dans sa cinquième année.
Le 2 février, jour de la Purification de la Vierge, je fus invité et j’assistai à la
Chapelle du Roi.
Le 22, jour des cendres, je fus invité à la chapelle du Roi et j’y as sistai.
Le 24 du même mois, je demandai et j’eus audience du Roi, des princes et des
princesses, à qui je fis les compliments ordi naires au sujet des années de l’Infante Dona
Théresa qui entrait dans sa hui tième année.
Le 15 mars suivant, j’eus audience et fis les mêmes compli ments au sujet des
années de l’Infant Don António qui entrait dans sa neu vième année.
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253Le 31 du dit mois, je pris mon audience publique de congé de S.M. Portugaise et
des princes. Je l’avais demandé quelques jours aupa ravant. M. le Marquis de Torci
m’ayant écrit que le Roi m’avait ac cordé mon congé que je solicitais depuis longtemps
et que S.M. avait nommé pour me succéder Mr. de Châteauneuf, auparavant
Ambassadeur à la porte, qui viendrait incessament me relever. Je fus conduit à cette
audience dans les carrosses du Roi par le Comte d’Alvor, l’un des conseillers d’Etat qui
me vint prendre chez moi où il me ramena. Il y avait trois régiments d’infanterie fai‑
sant 1800 hommes rangés en haie dans la grande place du Palais et dans le rues par où
j’y arrivais. Les officiers étaient à la tête de chaque com pagnie. Les enseignes étaient
déployés et les tambours battaient aux champs. Je fus reçu à la descente du carrosse par
l’un des capitaines des Gardes du corps et par un des Maîtres de cérémonies qui me
re conduisi rent de même. Les gardes bordaient le degré et les premières salles tenant
leurs hallebardes. Quand j’entrai dans la salle d’audiences, le Roi, qui était assis sous
son dais sur un trône élevé de trois marches, s’éleva et se découvrit à toutes les révé‑
rences que je fis avant que d’arriver à lui. Derrière son fauteuil était un des premiers
gentilshommes de sa chambre. En bas étaient les titrés à sa droite, et les officiers de sa
Maison à sa gauche, les uns et les autres placés suivant le rang qu’ils tien nent. Outre le
carrosse du corps du Roi, dans lequel je fus con duit, il y en avait quatre autres de S.M.
remplis d’officiers fran çais qui se trouvaient à Lisbonne et des gens de ma Maison, et
ils étaient précédés de ceux de la plus grande partie des seigneurs de cette Cour qui les
avaient envoyés pour faire cortège. Dans cette audience, j’eus l’honneur de parler à
S.M. Portugaise dans les termes suivants:
“ Sire, la fonction de venir prendre congé de V.M. est aussi triste pour moi qu’avait
été agréable celle de paraître la pre mière fois à son audience. J’avais regardé comme ma
plus grande fortune l’honneur d’être admis auprès d’Elle et je sens autant que je dois la
perte que je fais en me retirant. Aussi est elle involontaire et il ne fallait pas une raison
moins forte pour m’y résoudre que celle de connaître que par ma mauvaise santé je
pouvais devenir inutile en cette Cour au Roi mon maître. Je l’ai très humblement supplié,
plus pour le bien de son service que par rapport à moi de vouloir bien commettre à un
au tre le soin dont j’apprehendais de me mal acquiter, et il a eu la bonté de me l’accorder.
Je vais sire lui rendre compte du ministère dont il m’avait honoré, que n’aurais ‑je pas lui
dire des bons traite ments que j’ai reçus de V.M. pendant le cours de près de six an nées.
Je ne puis les reconnaître qu’en l’informant de l’honneur que V.M. m’a conti nuellement
fait d’autant plus que V.M. m’a continuellement fait, d’autant plus que quelque envie que
j’ai eu de les mériter, je ne dois les attribuer qu’au caractère dont j’étais revêtu. Des gran‑
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254 des qualités de V. M. il me restera sire peu de chose à lui apprendre. Elles lui sont con‑
nues depuis si longtemps et mes dépêches ont continué de les lui rendre si présentes
que le récit n’y ajoutera rien. Ce que je pour rais lui dire de plus agréable est que V.M.
m’a toujours paru plus per suadé de sa sincère amitié pour votre personne et de son
affec tion pour cette couronne, que j’ai reconnu dans toutes les occa sions. Que vous
répondrez parfaitement à ses sentiments et je croit sire que vous voudrez bien m’avouer
si je l’assure que l’amitié constante de V.M. maintiendra toujours une parfaite cor‑
respondance entre les deux Couronnes. Le zèle que je dois avoir pour le bien de ce
royaume où j’ai été comblé d’honneurs me fait souhaiter ardemment qu’elle ne soit
jamais interrompue. Je supplie V.M. d’être persuadée que j’ai profité autant que j’ai pu
des occasions que j’ai eues de travailler à l’augmenter et je compterai toute ma vie pour
ma plus grande gloire d’avoir eu le bonheur d’y contribuer”.
Je fus de l’audience du Roi à celle des princes avec les mêmes cé rémonies. Ils
étaient tous quatre debout sous un dais et j’adressais la parole à l’aîné. Du Palais je fus
reconduit chez moi par le comte de Alvor avec qui j’observai pour le recevoir et pour
le conduire les mê mes cérémonies qui avaient été pratiquées entre le Marquis
d’Alegrette et moi, lorsqu’il me mena à ma première audience publi que.
Le 10 avril, je pris audience publique de congé de la Reine douai rière d’Angleterre
qui m’envoya prendre dans son premier carrosse par le sieur Sandis, son écuyer et tout
se passa dans cette fonction comme dans celle de la première audience publi que que
j’avais eu de cette princesse.
Quelques jours après, j’allai faire à Mr. le Nonce la visite de congé, ayant envoyé
auparavant lui demander heure pour cela. Il vint au devant de moi jusqu’au dernier
degré, étant en camail et en rochet et il me conduisit jusqu’à ma litière qu’il vit mar‑
cher avant que de se retirer.
J’allai aussi visiter le Comte de Alvor qui avait été mon con duc teur de qui je reçu
le même traitement que de Mr. le Nonce, l’un et l’autre me rendirent ensuite la visite
et leur rendis le même traite ment que j’avais reçu d’eux. Après avoir satisfait à ces
visites de cé rémonie j’en rendis de.... aux seigneurs et dames que j’avais cou tume de
visiter pour prendre congé d’eux. La princesse Dona Luisa, fille naturelle du Roi, mari‑
ée depuis peu en secondes noces au se cond fils du Duc de Cadaval étant à la campagne
lorsque je pris mon audience de congé et n’étant re venue que quelque temps après je
ne pus prendre congé d’elle avant que de le prendre de Mr. le Nonce. Comme j’avais
fait sans cela et je remis à la faire à son retour. Depuis mon audience publique de congé
je restai à Lisbonne jusqu’au 5 octobre sui vant, ayant eu ordre d’y attendre celui qui
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255serait nommé pour me succeder. Pendant ce temps j’eus plusieurs audiences de S.M.
avec les cérémonies accoutumées.
Le 3 septembre M. de Châteauneuf qu’avait été nommé pour me relever arriva par
terre à Lisbonne, où il fut reçu avec les honneurs établies en pareil cas. Je le reçus dans
la maison que j’occupais qui devait aussi par la suite être la sienne.
Pendant un mois que nous fûmes ensemble, je lui donnais tou tes les instructions
et lui remis tous les papiers qui concernaient les af faires du Roi en cette cour.
Huit jours avant mon départ, j’eus une dernière audience par or dre du Roi de
Portugal pour prendre congé de lui et une sem blable de la Reine douairière
d’Angleterre. Le lendemain un offi cier de S.M. Portugaise m’apporta de sa part une
attache de dia mants du prix de six mille livres ou environ et me remit la lettre de
récréance de ce prince.
Le 5 je partis de Lisbonne pour me rendre en France par terre.
A une lieue d’Estremoz deux compagnies de cavalerie du Roi de Portugal vinrent
au devant de moi et me conduisirent dans cette place où je fus reçu au bruit du canon.
Dès que j’y fus arrivé le gou verneur et les principaux officiers des troupes qui y
étaient, me vin rent visiter et je leur rendis leurs visites. Le gou verneur m’envoya une
garde composée d’un sergent et de dix soldats que je renvoyai, ne retenant que deux
soldats pour gar der mon bagage. Le lendemain je fus salué en sortant de sept coups de
canon comme je l’avais été en entrant. Deux autres compagnies de cavalerie me recon‑
duirent jusqu’à une lieu de la place. En approchant Elvas je rencontrais cinq compag‑
nies de cavalerie qui venaient pareillement au devant de moi. Je fus re çus dans cette
place comme je l’avais été à Estremoz. Quand j’en sortis les mêmes troupes montèrent
à cheval et le Comte das Galveas, capitaine Général dans la province de Alentejo, me
con dui sit dans son carrosse jusqu’à une demie lieue de la place l’ayant prié de ne pas
aller plus loin. En arrivant à Badajoz je fus rencontré par le gouverneur qui venait au
devant de moi et je montai dans son car rosse. Il me conduisit au couvent des Augustins
où je fus défrayé avec toute ma Maison aux dépens de la ville, pendant un jour que j’y
restai. Quand j’en sortis Don Francisco Fernandes de Cordova Capitaine Général de
l’Estremadure me reconduisit à deux lieues de la place et fit monter à cheval plusieurs
compagnies de cavaliers. Le 17, du dit mois j’arrivai à Madrid. J’allai descendre chez
Mr. l’Abbé d’Estrées, Ambassadeur de France. J’y séjounai pendant 12 jours, pendant
lesquels j’eus l’honneur de voir plusieurs fois le Roi et la Reine d’Espagne. Je leur fus
présenté la première fois par M l’Abbé d’Estrées. Je pris congé de leurs Magestés au
Buen Retiro où elles étaient allées passer l’après dîner et où elles me permi rent d’aller,
quoique personne n’y fut admis.
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256 Je partis de Madrid le 29 et j’arrivai à Pampelune le 5 novem bre. Dès que j’y fus,
j’envoyai faire un compliment au Viceroi, fils du Comte de St. Estevan. Il vint aussitôt
me rendre visite et me mena voir la citadelle où je fus salué en entrant et en sortant de
7 coups de canon. Il me conduisit ensuite chez lui où il m’avait fait préparer un appar‑
tement que je n’acceptai point. Le soir il m’envoya à l’hotellerie où j’étais logé, plu‑
sieurs rafraîchisse ments. Le lendemain quand je sortis de la ville je fus salué de 7 coups
de canon. J’arrivai à Bayonne le 7 Novembre fort tard.
Le lendemain, le commandant de la place me vint visiter. Il me mena à la citadel‑
le où en entrant et en sortant, je fus salué de 9 coups de canon. Le corps de la ville me
vint complimenter en habit de cé rémonie. Quand je partis le lendemain je fus salué de
7 coups de ca non de la ville.
Le 10 j’arrivai à Bordeaux. J’allai le lendemain au château Trompette où je fus
salué en entrant de neuf coups de canon.
Le 14 j’arrivai à Versailles. Je descendis chez M le Marquis de Torcy qui me propo‑
sa de me présenter au roi le lendemain. Je le priai de vouloir bien me différer cet
honneur de deux jours, pour me don ner le temps de venir à Paris pour reprendre mon
habit ordinaire.
Le 21, j’eus l’honneur de saluer le Roi à l’entrée du conseil et deux jours après
S.M. m’honora d’une audience particulière de 5 quarts d’heure.
Dans le cours de mon Ambassade j’avais conclus plusieurs trai tés avec les commis‑
saires nommés par S.M. Portugaise, pour traiter de sa part avec moi, et j’avais observé
de signer dans tous les dits traités et de mettre le seau de mes armes dans l’endroit le
plus honorable, tant dans l’expédition qui devait être pour le Roi, que dans celle qui
devait demeurer pour S.M. Portugaise.
Depuis l’avènement du Roi Philippe V à la Couronne d’Espagne, j’avais été chargé
pendant un an et demi de l’execution de ses ordres à la Cour de Portugal où il n’avait
point de ministre, et j’avais signé pour ce prince, en vertu de ses pleins pouvoirs, deux
traités avec les ministres de S.M. Portugaise. Lorsqu’il m’envoya sa ratification de ces
traités il me fit l’honneur de l’accompagner d’une lettre obli geante et de son portrait
enrichi de diamants de la valeur d’environ 15.000 livres.NE(non signé)
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Publicam‑se aqui os documentos que definem a missão do Principal D. António
Francisco de Saldanha da Gama à Corte de Paris. O primeiro encontra‑se guardado
entre os avulsos da chamada série “do Reino” do Arquivo Histórico Ultramarino; os
restantes, no núcleo do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Arquivo Nacional
da Torre do Tombo. Trata‑se de um conjunto especialmente interessante por dar a
conhecer as alternativas de composição no quadro do sistema europeu, além de
ilustrar um pequeno episódio cerimonial aparentemente desconhecido da historio‑
grafia, mas relevante para a compreensão da actividade desenvolvida pela Secretaria
de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra durante a segunda metade do sécu‑
lo XVIII.
O Principal de Saldanha foi nomeado embaixador à Corte de Paris mais ou
menos no mesmo momento em que também terminava em Lisboa a missão do
Conde de Baschi (1754‑1756)1. Apesar deste último ter incorrido no desagrado d’el
Rei D. José, a instrução que abaixo se transcreve permite perceber o empenho do
governo português em explorar a possibilidade de uma relação política e comercial
com a Coroa de França, que contrapesasse o mal‑estar então existente com a Espanha
e com a Inglaterra.
Os registos da Torre do Tombo permitem saber que D. António de Saldanha da
Gama saiu de Lisboa a 27 de Setembro de 1756, determinado a fazer o caminho por
mar2. No início de Outubro, aportou na Galiza, onde parece ter conhecido dificul‑
dades de navegação e decidiu concluir a viagem por via terrestre. Já em Paris, deu a
entender ao Introdutor de serviço que apenas levava consigo cartas de crença parti‑
culares, na esperança de assim conseguir evitar “a insuportável despesa” de uma
* Centro de História de Além‑Mar da Universidade Nova de Lisboa e Universidade dos Açores (CHAM/FCSH‑
‑UNL).1 Descriptive list of the State Papers Portugal 1661-1780 in the Public Record Office London, Lisboa, Academia das Ciências de
Lisboa, 1979, Vol. II, p. 332.2 A.N.T.T., MNE, Lº 362 (1752‑1779), fl. 21.
A embaixada de D. António de Saldanha da Gama à Corte
de Paris: instrução secreta e cartas de crença (1756)
Tiago C. P. dos Reis Miranda*
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258 entrada formal. As audiências que houve em Versalhes foram, portanto, de cunho
privado. E ambas as cartas de chancelaria que, na verdade, omitira, nunca chegaram
às mãos do governo francês3.
O jogo de forças políticas no mundo da Corte e os constrangimentos da Guerra
dos Sete Anos cedo tiraram sentido à missão planeada. Meses mais tarde, sendo
necessário mandar a Madrid um novo ministro de primeira grandeza, foi outra vez
escolhido o mesmo prelado da Patriarcal. Logo que recebeu a notícia, D. António de
Saldanha da Gama pôs‑se a caminho de Compiègne e teve a sua audiência de despe‑
dida a 13 de Julho de 17574.
Nas transcrições que se seguem, actualizam‑se a ortografia e a pontuação, despre‑
zando‑se os trechos claramente corrigidos ou cancelados. Mantêm‑se, porém, as solu‑
ções construtivas originais, os vocábulos arcaicos ou não consagrados, e as maiúsculas
relacionadas com a dignidade de certos actores. Especificamente no que respeita à
instrução, a autoria de algumas emendas será objecto de estudo noutro local.
* * *
[post. 1756, Junho], [Belém]
iNSTrUÇÃo secreta (minuta) para [o Principal D. António francisco de Saldanha
da gama], nomeado Embaixador de D. José i à Corte de Paris.
A.H.U., Reino, Cx. 107 (1718-1817), doc. s/nº.
Instrução Secretíssima
Nenhum ministro público pode fazer passo regular na Corte a que vai dirigido
sem um completo conhecimento do verdadeiro estado da Corte que o manda. Por
isso os Príncipes escolhem para semelhantes lugares pessoas da sua inteira confiança;
3 A.N.T.T., MNE, Cx. 564 (1754‑1756). Ofícios do Principal de Saldanha para o Secretário de Estado dos
Negócios Estrangeiros e da Guerra, D. Luís da Cunha Manuel, Baía de Vigo, 8.10.1756; Santiago de
Compostela, 13.10.1756, e Paris, 29.11, 6 e 13.12.1765. 4 A.N.T.T., MNE, Cx. 655 (1757‑1758). Ofício do Principal de Saldanha para D. Luís da Cunha Manuel,
Compiègne, 17.07.1757.
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259porque a verdadeira e completa noção do estado interior de uma Corte envolve
matérias tão perigosas para transpirarem fora do Gabinete, que a relaxação do segre‑
do delas traria após de si a última ruína.
E havendo Sua Majestade posto a Sua régia e ilimitada confiança no embaixador
que se acha próximo a partir para a Corte de Paris, lhe manda declarar sem a menor
reserva que o estado em que deixa esta Corte (para pelo conhecimento dele dirigir
com acerto as suas negociações) é o seguinte.
Deve‑se prenotar5 como princípio certo que Sua Majestade não foi destinado
para sucessor deste reino; mas sim para fundador dele; tirando‑o do caos a que o
reduziram os oito anos da sempre deplorável enfermidade do Senhor Rei Dom João
V que Deus chamou à Sua Santa Glória.
A impossibilidade a que foi reduzido aquele grande monarca pela ocorrência do
temível e insuperável mal de que foram oprimidas as suas admiráveis e invejáveis
forças naturais e políticas no dia 10 de Maio de 1742, manifestando‑se a todos os
estados deste reino pelas muitas pessoas que depois daquele funesto dia se introdu‑
ziram no interior do Paço contra o que antes se tinha praticado, animou logo a
ambição dos diferentes partidos, de que se seguiram necessariamente as convulsões
que o corpo político do reino padeceu, por todos aqueles anos, e que depois deles
se procuraram sustentar pelos mesmos partidos, sendo entre eles os mais principais
e dignos de remédio os que abaixo se referem.
Primeiro partido
Abusando a Corte de Madrid da insuficiência do embaixador que nela residia da
parte do dito Monarca, servindo‑se nesta Corte de todos os meios que a malícia do
Ministério espanhol lhe pôde sugerir, e vendo inconsistente e dilacerado o Governo
deste reino, se animou a propor e teve arte para conseguir o tratado de limites das
conquistas, com cujos enganos meditou conquistar a América Portuguesa sem pól‑
vora nem bala, e o outro tratado de comércio com que também tinha conquistado
o continente do reino, sem remédio humano.
Achando pois El‑Rei Nosso Senhor as coisas neste deplorável estado quando se
lhe devolveu o governo do reino, foi necessariamente obrigado a desconcertar todos
aquelas perigosas medidas do Ministério espanhol, desviando a conclusão do tratado
5 Ocorrência que adianta cerca de duas décadas a datação sugerida no Dicionário de Antônio Houaiss.
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260 de comércio e procurando emendar nas instruções dos comissários que deviam exe‑
cutar o outro de limites, que ficara ratificado, os enganos que ele envolvia, tanto que
sem o romper cabia no possível.
Viu‑se o Ministério de Madrid pelas negociações ordenadas por Sua Majestade
a estes santos e necessários fins inibido para sustentar os enganos que tinha maqui‑
nado; viu‑se ao mesmo tempo tão compreendido como o costuma ser o coração de
todos os que enganam quando erram o golpe; viu‑se no máximo perigo de ser des‑
mascarado na presença da Senhora Rainha Católica, e por consequência perdido;
viu‑se, digo, enfim, nestes apertos: e movido pelos dois estímulos de sustentar os
enganos que tinha maquinado em benefício dos interesses de Espanha e de se cobrir
na presença da Senhora Rainha Católica, recorreu do meio de formar um partido
contra o Ministério de Sua Majestade para lhe tirarem na presença do mesmo Senhor
e da dita Senhora o crédito com que embaraçava aqueles perniciosíssimos intentos.
Segundo partido
Para assim o conseguir o Ministério espanhol se valeu ductilmente da mesma
insuficiência do Embaixador de Portugal na Corte de Madrid. Achou‑se o dito
Ministério na certeza de que o referido Embaixador não havia compreendido coisa
alguma das lesões enormíssimas que os referidos tratados envolveram. Tinha um claro
conhecimento da suma vaidade e desmedida arrogância do tal Embaixador. Sabia que
lhe tinha já introduzido a falsa crença de que os tais Tratados são para este reino de
grande utilidade e para a memória dele Embaixador da maior honra. E servindo‑se
com desteridade de todas estas armas capacitou inteiramente o tal Embaixador de que
o Ministério d’el Rei Nosso Senhor era seu inimigo e que como tal impugnava a sua
glória na execução e no efeito dos ditos tratados, movido pela inveja de os não haver
feito. De tudo resultou unir‑se o mesmo Embaixador de Sua Majestade com o
Ministério de Madrid que o tinha enganado e ainda enganava, para ambos em causa
comua cooperarem para a ruína do Ministério d’el Rei Nosso Senhor na presença da
Senhora Rainha Católica e nesta Corte, concitando para este fim o dito Embaixador
todos os seus parentes, amigos e apaniguados, como foi e ainda é manifesto.
Terceiro partido
Ao mesmo tempo em que estas intrigas ferviam em Madrid e em Lisboa, foi Sua
Majestade obrigado a ir reparando moderadamente as ruínas totais em que achou o
comércio do reino inteiramente absorvido pelos Ingleses, que naqueles últimos oito anos
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261calamitosos do reinado próximo pretérito acabaram de exaurir os últimos restos das
faculdades políticas deste reino. Conheceu perfeitamente o hábil inglês Keene, Embaixador
na Corte de Madrid, que as medidas que Sua Majestade ia tomando para regular o comér‑
cio de Portugal haviam de desconcertar precisamente as outras medidas com que
Inglaterra nos havia precipitado na sua sujeição. Havia este hábil negociante ganhado
todo o espírito do referido Embaixador, abusando também da sua insuficiência para o
mover conforme ele servia. E achando a seu favor estas disposições e as que lhe dava o
mesmo Ministério da Corte de Madrid, do qual ele abusava tanto quanto o dito Ministério
abusava do Embaixador de Portugal, lhe foi fácil unir‑se com o Enviado Castres, e arma‑
rem ambos outro partido com negociantes ingleses desta Corte, fomentados pelos paren‑
tes e amigos do mesmo Embaixador de Portugal, para se arruinar o Ministério de Sua
Majestade e com ele os meios de serem executadas as Suas reais ordens.
Quarto partido
Nestas escabrosas circunstâncias foi necessário que Sua Majestade optasse entre
os dois extremos: de um rompimento com Castela, se negasse a execução ao tratado
de limites das conquistas; e de expedir para o Brasil as ordens necessárias para a tal
execução. A necessidade de preferir o segundo extremo fez também indispensável
descobrir‑se o segredo do plano que haviam formado os religiosos da Companhia de
Jesus para abarcarem as duas Américas (Portuguesa e Espanhola) pela república que
nelas tinham estabelecido, e pelas colónias, que tinham plantado e prosseguido
desde o Maranhão até o Uraguai. Trabalharam estes religiosos infatigavelmente para
desfigurarem estas verdades aos olhos dos dois Monarcas, das duas Cortes e do
mundo. Foram porém repelidos e desmacarados com desenganos que tiveram na
Corte de Madrid pela despedida do Padre Ravago do confessionário de Sua Majestade
Católica e pelos outros decisivos desenganos de que as incomparáveis Luzes d’el Rei
Nosso Senhor estão [?] inacessivelmente superiores às pias fraudes das suas suges‑
tões. De tudo resultou formarem estes padres outro declarado partido contra o
governo de Sua Majestade, caluniando‑o em toda a parte, a fim de o enfraquecerem
pelo maquiavélico e detestável meio de lhe arruinarem a reputação, alma de todos
os estados e menina dos olhos de todos os Soberanos.
Quinto partido
Cada um dos partidos assim declarados procurou gerar da sua corrupção os
diferentes insectos que achou mais susceptíveis das suas impressões, assim nas
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262 Cortes estrangeiras como na própria Corte de Sua Majestade, fazendo‑os antever para
precipitá‑los que das ruínas do Governo do mesmo Senhor sairiam Secretários de
Estado de todas as espécies, de sorte que, achando as disposições que antes do suces‑
so se não podiam crer, conseguiram estes heresiarcas da honra e da fidelidade arrui‑
nar o Serviço de Sua Majestade nas Cortes de Roma e Paris. Tentaram Viana de Áustria
sem efeito. E chegaram à suma temeridade de formarem uma conjuração dentro na
própria Corte d’el Rei Nosso Senhor, composta das diferentes figuras que se tem
manifestado e de outras até agora ocultas.
Sendo pois esta a presente situação da Corte d’el Rei Nosso Senhor, já se vê que
o principal objecto de Sua Majestade e o primeiro e mais urgente entre os interesses
do mesmo Senhor é o de debelar todos os referidos partidos, destruindo e aniqui‑
lando a conjuração, que deles resultou, de sorte que não fiquem vestígios de seme‑
lhante peste dos quais possa tornar a renascer tão infame contágio.
A principal cura para o extinguir conhece com superiores Luzes El‑Rei Nosso
Senhor que é a dos remédios caseiros que sempre foram os mais eficazes em seme‑
lhantes casos: por uma parte, porque do castigo de semelhantes delinquentes resulta
excrementarem‑se os vassalos para se não atreverem a empreender semelhantes
insultos, e inibirem‑se os estrangeiros para não acharem quem os sirva a tão custoso
preço; e pela outra parte, porque vendo os ditos estrangeiros um governo unido,
consistente e sólido sem haver nele brecha por onde possam entrar as duas mortais
enfermidades da corrupção e da intriga, e perdendo assim a esperança de atacarem
a seu salvo com estas armas curtas e aleivosas, vêm a ficar na precisa necessidade de
declararem uma guerra para nos ofenderem; guerra que é sempre muito dificultosa
porque para se declarar é preciso combinar os interesses das diferentes Cortes em
quem a mesma guerra sempre tem influência necessária, como sucederia no caso em
que estamos a respeito das Cortes de Paris e de Viana de Áustria, se a de Londres ou
a de Madrid, em particular ou em comum, quisessem atacar‑nos à cara descoberta.
Donde resulta que o juízo mais provável que se pode fazer neste caso é o de que
com o castigo dos que entraram na tal conjuração e com a consolidação do Ministério
de Sua Majestade hão‑de cessar todos os efeitos daquela causa, perdendo os
Ministérios de Londres e Madrid toda a esperança de perturbarem o governo de Sua
Majestade com as intrigas que até agora fomentavam, e não se atrevendo a intentar
a outra via da força descoberta, pelo justo receio de que Sua Majestade recorra às
alianças d’el Rei de França e da Imperatriz Rainha e de que ambas estas duas grandes
potencias absorvam em si o comércio deste reino e dos seus domínios com uma
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263quase total e irreparável ruína do comércio de Inglaterra e do crédito público da
Bolsa de Londres, em que consiste a força principal da Grã‑Bretanha.
Porém, sendo axioma certíssimo e indispensável nas matérias de Estado que
nelas se devem sempre figurar os piores sucessos, para que metendo‑se estes em
linha de conta se tomem as medidas que respeitam ao futuro com uma inteira segu‑
rança; considerando‑se desde agora Espanha e Inglaterra unidas para nos atacarem,
se deve prevenir ou antes desviar este golpe na maneira seguinte.
Primeiramente se faz necessário cultivar muito séria e cuidadosamente a Corte
de Paris unindo a boa inteligência d’el Rei Nosso Senhor com El‑Rei Cristianíssimo
quanto possível for; ouvindo com bom modo as proposições que provavelmente
há‑de fazer a dita Corte na matéria do nosso comércio, porque é o único equivalen‑
te que tem para se compensar do que Inglaterra lhe usurpou no último tratado que
fez com Espanha pela mediação do Visconde de Vila Nova de Cerveira: e declinando
sempre a pretensão deste pretendido tratado até se descobrirem os sucessos que o
tempo futuro pode trazer consigo, para que no caso em que necessitemos da aliança
d’el Rei Cristianíssimo a possamos achar disposta pela negociação que se abrir ao
preço do comércio que connosco estão fazendo os Ingleses, e que em tal caso deve‑
rá ficar exclusivo a favor dos Franceses, ainda que não perpetuamente, mas pelo
termo limitado em que se ajustar. E digo que deve ficar exclusivo este comércio,
porque sendo o único equivalente que Sua Majestade pode dar pela aliança que lhe
for necessária, seria o mesmo dividir o seu comércio do que debilitar com o inte‑
resse do futuro aliado a aliança que com ele fizesse, e habilitar na divisão diferentes
potências para nos fazerem vexações, sem nenhuma delas ter interesse bastante para
nos ajudar a repeli‑las.
Finalmente tudo isto deve verter sobre dois princípios certos e infalíveis no siste‑
ma dos actuais interesses de Sua Majestade. O primeiro é que sendo o aliado mais
natural deste Reino o de Inglaterra não devemos deixar a sua aliança senão no caso de
extrema necessidade, em que há pouco o fez a Casa de Áustria; isto é, quando virmos
que não há na prudência política meio de evitar que este nosso aliado obre contra o
sossego e contra os interesses de Sua Majestade como se fosse um irreconciliável ini‑
migo; porque neste caso além de que as ofensas que vem da parte dos amigos só têm
a diferença de serem mais sensíveis e mais escandalosas, acresce que sendo tão vários
os sucessos dos Estados, é neles máxima inconcursamente6 seguida preferir sempre as
6 Castelhanismo. Inconcussamente.
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264 urgências presentes a todos os receios futuros; em razão de que nas primeiras insta
a necessidade pública que constitui Lei Suprema, e nos segundos favorece o espaço
do tempo para se dar lugar a que se busquem os meios de desviar os mesmos peri‑
gos que se temem, ainda sendo grandes.
O segundo princípio é o de que não havendo nas Cortes coisa que menos persu‑
ada e mais prostitua do que a necessidade, se deve guardar um profundíssimo silêncio
a respeito de todos os motivos que ficam ponderados e que no futuro puderem acres‑
cer para fazerem necessária a El‑Rei Nosso Senhor a aliança d’el Rei Cristianíssimo,
negociando‑se esta sempre de sorte que pareça (enquanto for possível) que condes‑
cendemos fatigados das grosserias de Inglaterra, e não que suplicamos destituídos de
remédio; porque neste segundo caso se costuma abusar da indigência para se gravarem
os socorros com tais e tão duras condições, que não são aceitáveis. Por isto será sempre
o melhor dispor as coisas de sorte que as proposições venham sempre da parte dos
Franceses, como é natural que hão‑de vir: 1.º pela grande inveja que França teve sem‑
pre de Inglaterra a respeito do comércio que faz em Portugal; 2.º pela vingança que
deseja tomar dos Ingleses haverem suplantado os mesmos Franceses do comércio de
Espanha no último tratado que fizeram com a Corte de Madrid; 3.º e enfim porque
com ambos estes dois urgentes motivos propôs já secretissimamente o Duque de Duras
ao Conde de Unhão na Corte de Madrid o tratado de comércio acima indicado, e se
faz verosímil que agora prossiga aquela abertura da Corte de Paris.
1756, Setembro, 13, Belém
Carta de gabinete (registo) de D. José i a luís XV.
A.N.T.T., MNE, lº 265 (M.f. 6401), fl. 52.
Muito Alto, Muito Pedroso e Cristianíssimo Príncipe, meu Bom Irmão e Primo.
Para que seja mais aceito de Vossa Majestade D. António de Saldanha da Gama,
Principal desta Igreja Patriarcal, que envio por meu Embaixador a Vossa Majestade,
lhe ordeno que ponha na Real mão de Vossa Majestade esta carta particular quando
chegar à Sua Presença. Como ele vai instruído da firmeza com que desejo cultivar a
estimação e amizade que professo a Vossa Majestade, espero que saberá expor com‑
pletamente estes meus sentimentos e me será muito agradável que ele saiba merecer
a aceitação de Vossa Majestade, a quem peço que acredite tudo o que ele exprimir
em meu Nome, e especialmente a respeito da constante e sincera vontade que con‑
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265servo de concorrer para tudo o que for da satisfação de Vossa Majestade. Muito Alto,
Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe, meu Bom Irmão e Primo. Nosso Senhor
haja a Real Pessoa, Casa e todos os Estados de Vossa Majestade em sua Santa Guarda.
Escrita em Belém a 13 de Setembro de 1756.
Bom Irmão e Primo de Vossa Majestade
José
Sobrescrito
Ao Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe, El‑Rei de França e
Navarra, meu muito amado e prezado bom Irmão e Primo.
1756, Setembro, 13, Belém
Carta de gabinete (registo) de D. José i para a rainha de frança, Maria
leszczynska.
A.N.T.T., MNE, lº 265 (M.f. 6401), fl. 52v.
Muito Alta, Muito Pedrosa e Cristianíssima Princesa, minha Boa Irmã e Prima. O
Principal desta Igreja de Lisboa Dom António de Saldanha da Gama, que mando
residir nessa Corte com o carácter de meu Embaixador, explicará a Vossa Majestade
os sentimentos da minha propensão e amizade e dos desejos que tenho que elas se
aumentem cada dia mais pelos ofícios do mesmo Embaixador. Ele o testificará assim
amplamente a Vossa Majestade, a quem espero que o façam tão bem aceito as suas
boas qualidades, muito própria do seu distinto nascimento. E que Vossa Majestade
creia tudo o que ele lhe significar da minha parte, principalmente no que respeita à
grande e sincera vontade que tenho de concorrer para tudo o que for do agrado de
Vossa Majestade. Muito Alta e Cristianíssima Princesa, minha Boa Irmã e Prima.
Nosso Senhor haja a Real Pessoa, Casa e todos os Estados de Vossa Majestade em sua
Santa Guarda. Escrita em Belém a 13 de Setembro de 1756.
Bom Irmão e Primo de Vossa Majestade
José
Sobrescrito
À Muito Alta, Muito Poderosa e Cristianíssima Princesa, Rainha de França e
Navarra, minha muito amada e prezada boa Irmã e Prima.
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266 1756, Setembro, 13, Belém
Carta de gabinete (registo) da rainha D. Maria Ana Vitória a luís XV.
A.N.T.T., MNE, lº 265 (M.f. 6401), fl. 53.
Muito Alto, Muito Pedroso e Cristianíssimo Príncipe, meu Bom Irmão e Primo.
Havendo ordenado El‑Rei meu Senhor que parta para essa Corte D. António de
Saldanha da Gama, Principal desta Santa Igreja Patriarcal de Lisboa, com o carácter
de seu Embaixador, e devendo eu aproveitar todas as ocasiões que se oferecem de
reiterar a Vossa Majestade as expressões da estimação que faço da sua Real Pessoa,
encarrego o dito Embaixador de pôr esta carta nas Reais Mãos de Vossa Majestade,
significando‑lhe com ela de viva voz toda a extensão destes meus afectuosos senti‑
mentos, e dos grandes desejos que tenho de comprazer a Vossa Majestade. Muito
Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe, meu Bom Irmão e Primo. Nosso
Senhor haja a Real Pessoa, Casa e todos os Estados de Vossa Majestade em sua Santa
Guarda. Escrita em Belém a 13 de Setembro de 1756.
Boa Irmã e Prima de Vossa Majestade
Maria Ana Vitória
Sobrescrito
Ao Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe, El‑Rei de França e
Navarra, meu muito prezado bom Irmão e Primo.
1756, Setembro, 13, Belém
Carta de Chancelaria (registo) de D. José i a luís XV.
A.N.T.T., MNE, lº 265 (M.f. 6401), fl. 53v.
Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe, meu Bom Irmão e Primo.
Eu Dom José por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves etc. envio muito saudar
a Vossa Majestade como aquele que muito amo e prezo. Mando assistir a Vossa Majestade
com o carácter de meu Embaixador a D. António de Saldanha da Gama, do meu
Conselho, e Principal desta Igreja Patriarcal de Lisboa. Ele exporá a Vossa Majestade os
grandes desejos que cultivo de que entre nós se conserve a constante harmonia que é
correspondente à nossa recíproca amizade. Espero que o mesmo Embaixador saiba
merecer o agrado de Vossa Majestade, pelas boas qualidades de que é ornado; e que
Vossa Majestade lhe dê um inteiro crédito em tudo o que lhe propuser da minha parte,
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267especialmente nas expressões que fizer da firmeza do meu afecto e da sincera vontade
que tenho de comprazer a Vossa Majestade. Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo
Príncipe, meu Bom Irmão e Primo. Nosso Senhor haja a Pessoa de Vossa Majestade em
sua Santa Guarda. Escrita em Belém a 13 de Setembro de 1756.
Bom Irmão e Primo de Vossa Majestade
El Rei com guarda
D. Luís da Cunha
Sobrescrito
Ao Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe Luís XV, Rei de França
e de Navarra, Meu Muito Amado e Prezado Bom Irmão e Primo.
1756, Setembro, 13, Belém
Carta de Chancelaria (registo) da rainha D. Maria Ana Vitória a luís XV.
A.N.T.T., MNE, lº 265 (M.f. 6401), fl. 54.
Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe, meu Bom Irmão e Primo.
Eu Dona Maria Ana Vitória por graça de Deus Rainha de Portugal e dos Algarves etc.
envio muito saudar a Vossa Majestade como aquele que muito prezo. Partindo para
essa corte com o carácter de Embaixador d’el Rei, D. António de Saldanha da Gama,
Principal desta Igreja Patriarcal de Lisboa, lhe encomendo exponha a Vossa Majestade
os verdadeiros sentimentos da grande estimação que faço da sua Real Pessoa. Espero
que a prudência e mais qualidades que concorrem no dito Embaixador, em tudo
conformes ao seu distinto nascimento, contribuam para lhe conciliarem o agrado de
Vossa Majestade, a quem peço acredite todas as expressões que ele lhe fizer da minha
sincera amizade. Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe, meu Bom
Irmão e Primo. Nosso Senhor haja a Pessoa de Vossa Majestade em sua Santa Guarda.
Escrita em Belém a 13 de Setembro de 1756.
Boa Irmã e Prima de Vossa Majestade
A Rainha
D. Luís da Cunha
Sobrescrito
Ao Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe Luís XV, Rei de França
e Navarra, Meu Muito Prezado Bom Irmão e Primo.NE
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LINHAS DE ORIENTAÇÃOOs trabalhos devem ser inéditos e ter entre 10 a 30 páginas e deverão ser entregues no Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, acompanhados dos seguintes elementos:
– versão electrónica em Word para Windows;
– resumo até 10 linhas em inglês, eventualmente com 4 ou 6 palavras‑chave;
– versão final pronta a publicar, devidamente revista.
À parte, deverá ser entregue a identificação do autor, CV resumido, a instituição a que per tence, morada completa e contacto.
Quando os trabalhos incluírem materiais gráficos ou imagens, devem fazer‑se acompanhar pelos originais em bom estado, ou ser elaborados em computador e guardados em formato gráfico.
Em sistema de peer-review, os trabalhos serão apreciados pelo menos por um avaliador externo anónimo. Quando publicados, responsabilizarão apenas os seus autores. O envio de um traba‑lho implica compromisso por parte do autor de publicação exclusiva na revista Negócios Estrangeiros, salvo acordo em contrário. Os trabalhos enviados serão apreciados dentro de um prazo razoável e a sua devolução não fica assegurada.
GUIDELINES TO CONTRIBUTORSThe works to be published shall consist of between 10 and 30 pages and shall be delivered to the Diplomatic Institute of the Ministry of Foreign Affairs accompanied by the following:
– electronic version in Word for Windows;
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Identification, full address, resumé, and professional contacts should be given separately.
If the work includes graphic material or images it should be accompanied by originals in good condition or be prepared on a computer and saved in graphical format.
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