A Educação Pré-Escolar em Portugal

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    Originalmente publicado em:A educao pr-escolar em Portugal Concepes oficiais, investigao e prticas,Maria de Lourdes Dionsio, Iris Pereira, Perspectiva, Florianpolis, v. 24, n. 2, p. 597-622, jul./dez. 2006

    http://www.perspectiva.ufsc.br

    A educao pr-escolar em PortugalConcepes oficiais, investigao e prticas

    Maria de Lourdes Dionsio*Iris Pereira**

    Histria recente da educao Pr-escolar1 em Portugal

    Nos ltimos quinze anos, Portugal viveu mudanas profundas ao nvel da educaopr-escolar, quer no mbito da formao dos educadores quer no mbito da sua posiona organizao do currculo. Simultaneamente, a investigao progrediu, estando agoradisponveis estudos importantes sobre os principais problemas que afectam a educaoem linguagem e em literacia em Portugal.

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    * Professora do Instituto de Educao e Psicologia. Universidade do Minho. Doutora em Educao, Universidade doMinho, Braga.

    **Professora do Instituto de Estudos da Criana, Universidade do Minho. Mestre em Lngustica, Universidade de Lisboa.

    1 Em Portugal, o ensino pr-escolar abrange crianas com idades compreendidas entre os quatro e os seis anos,precedendo imediatamente o incio do ensino formal. Ao espao que alberga este ensino chama-se jardim de infncia eos profissionais responsveis por esta fase escolar so os educadores de infncia.

    RESUMO

    Neste texto, apresentam-se e discutem-se os princpios

    tericos, relativos ao desenvolvimento verbal e

    aproximao expresso escrita, subjacentes s

    Orientaes Curriculares para a educao pr-escolar em

    Portugal. Na medida em que tais orientaes no so mais

    do que declaraes de inteno, no explicitando nem

    entendimentos tericos nem estruturando a aco dos

    educadores, centramo-nos, num primeiro momento, no

    conceito de competncia lingustica para, num segundo

    momento, darmos conta do modo como, nos jardins de

    infncia, se d forma a tais orientaes. Especial ateno

    concedida a investigaes nacionais recentes que, para alm

    do conhecimento produzido, tm sustentado os processos

    de formao inicial e contnua, colmatando, nos contextos

    locais o vazio das Orientaes Curricularesoficiais.

    Palavras-chave: Educao pr-escolar-Portugal. Educao

    pr-escolar-Portugal-Currculos.

    ABSTRACT

    This text presents and discusses the principal theoreticians

    in the field of verbal development and its approximation to

    written expression, subjacent to the Curricular Guidelines

    for pre-school education in Portugal. To the degree in

    which these guidelines are nothing more than declarations

    of intent, which do not clarify theoretical understandings

    or structure the action of educators, we focus at first on the

    concept of linguistic ability and secondly look at how,

    in kindergarten classes, these orientations take shape.

    Special attention is given to recent studies in Brazil, which

    in addition to producing knowledge, have supported the

    process of initial and continued teacher education, filling in

    in local contexts the void found in the official Curricular

    Guidelines.

    Key words: Pre-school education-Portugal. Pre-school

    education-Portugal-Curricula.

    http://www.casadaleitura.org/
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    O ano de 1997, pode-se dizer, foi um momento chave na educao pr-escolarportuguesa: criou-se uma rede nacional de estabelecimentos de educao pr-escolar (ou

    jardins de infncia), passando a educao nesses anos prvios escolaridade bsica a sertambm da responsabilidade do Estado. Visava-se, assim, garantir igualdade de acesso educao a todas as crianas (Decreto-Lei n. 147/97), enfatizando-se a necessidade decada uma usufruir de um desenvolvimento social e pessoal equilibrado. No mesmo ano, foidada orientao oficial acerca das caractersticas fsicas dos jardins de infncia: qualidadeesttica, recursos mltiplos e materiais naturais. A educao pr-escolar foi oficialmentedefinida como o lugar de desenvolvimento de atitudes e de aprendizagem da linguagem,de expresso artstica e de um conhecimento geral do mundo. A partir desse momento,outras medidas importantes para melhorar o ensino pr-escolar foram tomadas. De entreelas destaca-se, em 2001, a exigncia do grau universitrio para todos os educadores de

    infncia, semelhana do que acontecia j com os professores de todos os outros graus deensino. Ao mesmo tempo, o Governo faz publicar o Perfil Geral (Decreto-Lei n. 240/2001)e os Perfis Especficos para os educadores de infncia e professores do 1. ciclo do ensinobsico (6-10 nos de idade) (Decreto-Lei n. 241/2001), estabelecendo as competncias quetodos estes profissionais deveriam possuir.

    Ainda em 1997, a equipa de trabalho ministerial para a educao pr-escolarapresentou as Orientaes Curriculares para a Educao Pr-Escolar, enfatizando anecessidade de medidas que garantam o controlo da qualidade do trabalho nas nossasescolas (KATZ; RUIVO; SILVA; VASCONCELOS, 1998, p. 114) e reconhecendo que aqualidade dos contextos educativos em Portugal era quase exclusivamente dependente

    de aces individuais e no de um sistema educativo coerente.Reforando tal facto, o Ministrio da Educao publica, em 1998, um documento

    intitulado Qualidade e Projecto na Educao Pr-escolar (KATZ; RUIVO; SILVA;VASCONCELOS, 1998), onde se apresentam as principais concluses do Projecto Pr--Primrio da International Association for the Evaluation of Educational Achievement(no qual Portugal participara), cujo principal objectivo foi o de reunir conhecimento sobrea forma de melhorar a qualidade das primeiras experincias educativas das crianas. Deentre as principais concluses relativas ao desenvolvimento curricular e organizao detrabalho nos jardins de infncia em Portugal, relevante notar:

    a dificuldade que os educadores de infncia portugueses mostraram emespecificar o curriculum por eles seguido;

    a apenas suficiente qualidade dos jardins de infncia; o facto de os projectos educativos desenvolvidos por diferentes escolas

    serem Projectos por Decreto, isto , serem mais o resultado de umaexigncia governamental do que uma estratgia-chave definida pelos prpriosprofissionais face s caractersticas dos contextos em que actuavam.

    Neste contexto, as Orientaes Curriculares emanadas do Ministrio da Educaoacabam por se tornar num documento-chave para a educao pr-escolar e tiveram um

    grande impacto nas prticas pedaggicas de educadores de infncia mais jovens, queencontraram a um caminho mais estruturado para a organizao das suas actividades

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    educativas. No entanto, dois anos aps a definio deste curriculum obrigatrio, apenas37% dos educadores de infncia tinham conhecimento da sua existncia (CARDOSO,

    1999). Mais recentemente, Pereira e Viana (2003) afirmam que, por outro lado, muitoseducadores de infncia no sabem como operacionalizar estas orientaes, devido, entreoutros factores, s prprias caractersticas do documento, mas sobretudo devido faltado conhecimento terico que subjaz ao documento oficial, bem assim como falta derecursos de diagnstico e de avaliao.

    AsOrientaes Curriculares para a Educao Pr-escolar: caractersticas globais

    O documento Orientaes Curriculares para a Educao Pr-Escolar (MINISTRIO

    DA EDUCAO, 1997) tem por finalidade constituir-se como um ponto de apoio para umaeducao pr-escolar enquanto primeira etapa de educao bsica, estrutura de suportede uma educao que se desenvolve ao longo da vida (MINISTRIO DA EDUCAO,1997, p. 7). So seus fundamentos, a par da indissociabilidade do desenvolvimento eda aprendizagem, o reconhecimento da criana como sujeito do processo educativo, aarticulao das diferentes reas do saber e a diversidade e a cooperao (MINISTRIO DAEDUCAO, 1997, p. 14). Defende-se, portanto, que o desenvolvimento curricular, cujoprincipal actor o educador, deve ter em considerao os objectivos gerais da educao, aorganizao do ambiente educativo, a continuidade e a intencionalidade educativas, bemassim como as reas de contedo (MINISTRIO DA EDUCAO, 1997, p. 14). Consideradas

    como fundamentais na organizao de contextos e oportunidades de aprendizagem,estas reas de contedo encontram-se organizadas em trs grandes blocos: FormaoPessoal e Social; Conhecimento do Mundo; e Expresso/Comunicao. nesta ltima reaque so contemplados o desenvolvimento da linguagem e as aproximaes linguagemescrita: Cabe ao educador alargar intencionalmente as situaes de comunicao, emdiferentes contextos, com diversos interlocutores, contedos e intenes que permitam scrianas dominar progressivamente a comunicao como emissores e como receptores.(MINISTRIO DA EDUCAO, 1997, p. 68).

    Pese embora a natureza programtica do documento, tais orientaes nopodem ser entendidas como um curriculum, num sentido formal. Na verdade, embora se

    pretenda constituir uma referncia comum para que todos os educadores fundamentemas suas decises pedaggicas, o prprio documento adverte para o facto de no poderser considerado um programa, adoptando, antes, uma perspectiva mais centrada emindicaes para o educador do que na previso de aprendizagens a realizar pelas crianas[] [incluindo] a possibilidade de fundamentar diversas opes educativas e, portanto,vrios currculos. (MINISTRIO DA EDUCAO, 1997, p. 13). Por isto mesmo, no seestabelecem contedos nem objectivos especficos. De facto, o documento oficial maisa afirmao de vrias assunes acerca do desenvolvimento lingustico das crianas, taiscomo:

    A capacidade do educador escutar cada criana, de valorizar a sua contribuiopara o grupo, de comunicar com cada criana e com o grupo, de modo a dar

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    espao a que cada um fale, fomentando o dilogo entre crianas, facilita aexpresso das crianas e o seu desejo de comunicar. (MINISTRIO DA EDUCAO,

    1997, p. 67).

    Muitas destas assunes so seguidas de exemplos de actividades que podemconduzir aos resultados desejados, como em:

    As interaces proporcionadas pela vida do grupo, em grande grupo, empequeno grupo ou no dilogo com outra criana ou com o adulto constituemocasies de comunicao diferentes: narrar acontecimentos, reproduzir ouinventar histrias, debater em comum as regras do grupo, negociar a distribuiode tarefas, planear oralmente o que se pretende fazer e contar oralmente o que

    se realizou [] Para alm destas, haver outras situaes de comunicao comofalar ao telefone [], transmitir mensagens ou recados, fazer perguntas paraobter informao[] (MINISTRIO DA EDUCAO, 1997, p. 67-68).

    Ou ainda em:

    A descodificao de diferentes cdigos simblicos pode tambm ser trabalhadana educao pr-escolar, quer atravs do reconhecimento de smbolosconvencionais [] quer atravs da criao de smbolos prprios, convencionados,para identificao e substituio de palavras. (MINISTRIO DA EDUCAO, 1997,

    p. 68).

    A relevncia e urgncia, oficialmente afirmada, de uma aco intencionalpressuporia algum tipo de organizao e planificao que ajudasse os educadores aconcretizar o que deles se espera. No entanto, nada nestas orientaes proporciona aoseducadores elementos para esse desenvolvimento curricular. Com efeito, as sugestes soapresentadas como meras hipteses: A oportunidade de imitar a escrita e a leiturada vida correntepode fazer parte do material de faz de conta, onde as crianaspoderodispr de folhas, cadernos, agendas ou blocos, de uma lista telefnica, de revistas oujornais [] (MINISTRIO DA EDUCAO, 1997, p. 69).

    Ou como recomendaes: No se pode ainda esquecerque a comunicao noverbal []pode sertrabalhada independentemente: expressar e comunicar sentimentosatravs de gestos ou mmica [] (MINISTRIO DA EDUCAO, 1997, p. 68). No podemosesquecerque o desenho tambm uma forma de escrita e que os dois meios de expressoe comunicao surgem muitas vezes associados [] (MINISTRIO DA EDUCAO, 1997,p. 69)2.

    A falta de hierarquia das assunes ou das actividades sugeridas, bem como aausncia de explicitao de perspectivas tericas os porqus que sustm estashipteses, recomendaes e exemplos explicam as dificuldades que os educadores sentemquando tentam concretizar o discurso pedaggico oficial. Se tivermos em considerao

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    2 Nestas citaes, os itlicos so da nossa responsabilidade.

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    que os princpios podem no significar o mesmo para todos e que as concepes doseducadores no derivam necessariamente da sua familiarizao com perspectivas tericas

    sobre aprendizagem, as prticas geradas por estas orientaes podem no assegurar aintencionalidade e sistematicidade pretendidas, bem assim como os fins ltimos que odocumento tem em vista.

    Um pequeno passo em frente: os principais objectivos da educao pr-escolar

    Todavia, pode dizer-se que o reconhecimento da importncia do acesso linguagem escrita no nvel educativo pr-escolar foi um passo importante, desafiandouma perspectiva convencional e prticas passadas que estabeleciam fronteiras muito

    rgidas na aprendizagem da literacia. Com efeito, o documento oficial estabelece que oacesso linguagem escrita das crianas que frequentam o pr-escolar no deve ser vistocomo uma introduo formal e clssica leitura e escrita (MINISTRIO DA EDUCAO,1997, p. 65), mas como uma forma de facilitar a emergncia de competncias relacionadascom a linguagem escrita (CLAY, 1967, 1972; GOODMAN, 1984), envolvendo as crianas emactividades informais de literacia.

    Subjacente a todo o discurso oficial encontra-se a ideia de que a criana acompetent cognitive and social learner who can develop, on his/her own, knowledgeabout, and abilities with literacy. (HALL, 1987, p. 8). Assumindo-se que as crianas jsabem coisas sobre a leitura e a escrita, espera-se que o jardim de infncia aceite e

    expanda o que elas j sabem. A emergncia vista, aqui, como o desenvolvimentode conhecimentos e habilidades que as crianas j tm; desenvolvimento esse que h--de ocorrer em condies adequadas: contextos que suportem e facilitem a indagao,que respeitem o desempenho e que forneam as oportunidades para a participao emeventos de literacia reais.

    Relativamente ao desenvolvimento da linguagem so estabelecidos doisobjectivos:

    desenvolvimento da linguagem oral; facilitao da emergncia de prticas de leitura e de escrita.

    Para ambos, a nfase colocada na diversidade de situaes que devem ser criadaspara permitir s crianas contextos de dilogo e de interaco assim como para motivaro seu interesse em comunicar as suas prprias experincias, esperando-se, assim, poderpromover a correco e adequao lingustica.

    A partir do tipo de actividades que sugerido tanto para o desenvolvimento dalinguagem oral como para a facilitao da emergncia da literacia, tais como contarhistrias, narrar eventos, debater regras, negociar tarefas, planificar a vida diria, discutirnotcias dos jornais ou da TV, falar ao telefone, falar das suas experincias e da suafamlia, escrever o seu nome ou o nome dos objectos circundantes, escrever sobre coisas

    que se tm em casa ou que conhecem da rua, escutar e escrever histrias, falar sobreos personagens, inventar ttulos e subttulos para as histrias, identificar um produto,

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    descrever imagens, escrever cartas, cartes e quadros, etc., pode inferir-se que a finalidade a de proporcionar s crianas o acesso a diferentes funes que a linguagem desempenha

    recreativa e funcional assim como a de promover a capacidade de adequar o uso dalinguagem a diferentes situaes.

    Supe-se que este clima de comunicao criado pelo educador permitir s crianasno s melhorar aspectos de dico, desenvolver o vocabulrio e produzir frases maiscomplexas e mais adequadas, mas tambm participar na competncia metalingustica,definida aqui como compreenso do funcionamento da lngua. (MINISTRIO DAEDUCAO, 1997, p. 67).

    Porm, se a inteno de promover a conscincia lingustica3 ao nvel da linguagemoral no ultrapassa a conscincia comunicativa (HYMES, 1984), o mesmo acontece aonvel da linguagem escrita.

    indiscutvel a grande importncia atribuda expanso das concepes que ascrianas possuem sobre as funes da linguagem escrita: em que consiste a leitura e aescrita, que tipos de actos constituem actividades de literacia, que finalidades se associam leitura e escrita. A variao, em sala do jardim de infncia, de suportes e de textospermitir, acredita-se, essa expanso. No entanto, como argumento(s) que suporte(m)prticas sistemticas apenas mencionado que importante que as crianas comecem acompreender as normas do cdigo escrito e que tal ser adquirido atravs da criao deambientes que permitam o estabelecimento de comparaes entre letras e diferenciaode slabas.

    Sublinha-se, tambm, a necessidade de contextos em que o uso da linguagem

    escrita seja natural. Por isso, aconselha-se a associao precoce entre coisas que rodeiemas crianas e palavras escritas, o uso sistemtico da leitura e da escrita para realizar tarefas,a criao de exemplos que explicitem oporqu e o como se l e escreve, demonstrando,assim, diferentes contextos de letramento.

    A falta de organizao das orientaes, antes notada, bem como a sua naturezageral no so suficientes para entender se a conscincia lingustica no sentido detornar a linguagem num objecto de ateno e de manipulao uma caractersticaproeminente e assumida pelo discurso ministerial sobre a educao pr-escolar. Atravsdos exemplos que so dados ou atravs das possibilidades de desenvolvimento que certasprticas iro configurar, o que emerge destas orientaes a ideia de que a conscincia

    lingustica algo que se desenvolve por si s e naturalmente nas interaces das crianas.No entanto, actualmente reconhecido que, enquanto algumas habilidades de pensarsobre e de manipular a linguagem, nomeadamente a capacidade de rimar e de trabalharcom slabas, podem ser naturalmente adquiridas pelas crianas, outras so difceis oumesmo impossveis de conseguir espontaneamente, tal como a habilidade de manipularfonemas ou mesmo palavras (MORAIS, 1994). Isto implica, obviamente, que algum trabalhointencional deve ser feito para promover o desenvolvimento destas capacidades.

    Aceitando que a vasta maioria das crianas adquire o domnio da linguagemnaturalmente, seria de esperar a explicitao de algumas dessas situaes intencionais

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    3 Neste texto, preferimos o termo conscincia lingustica (BLEVINS, 1997, entre muitos outros) a conhecimentometalingustico para evitar possveis confuses com o termo competncia metalingustica, que frequentementeassociado aprendizagem formal da linguagem escrita e usado para designar conhecimento gramatical.

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    de forma a promover, pelo menos, a conscincia dos educadores, sobretudo porque aconscincia lingustica em todos os seus nveis fonolgico, lexical, sintctico, discursivo,

    comunicativo, social e estratgico cada vez mais insistentemente referida como umfactor decisivo no desenvolvimento lingustico, especialmente na aprendizagem dosprocessos e destrezas da literacia (ALEGRIA, 1985; MORAIS, 1994, entre outros).

    Se a este nvel, as orientaes oficiais so incipientes e, de certa maneira, ambguas,o mesmo no acontece relativamente competncia emergente da compreensoleitora: nelas explcita e detalhadamente recomendado que os educadores de infnciapartilhem com as crianas (ainda no leitoras) as suas estratgias de leitura; que organizemmomentos de previso dos contedos textuais a partir de ttulos ou de sequncias deeventos; que proponham actividades de identificao de personagens e das suas aces;que solicitem a identificao das ideias principais; que levem as crianas a procurar

    determinada informao, ou que a reconstruam. De igual importncia a sugesto deincluir, nas actividades de leitura, outros materiais para alm de livros de histrias, como,por exemplo, livros de poesia, dicionrios, receitas, enciclopdias, jornais, revistas. Aofaz-lo, diz-se esperar que as crianas sejam introduzidas em amplas prticas de leitura(MINISTRIO DA EDUCAO, 1997, p. 70-71).

    Todavia, se com este documento, os educadores facilmente so levados a perceberque importante que os ambientes de educao de infncia favoream a emergnciade concepes sobre a literacia nas crianas em idade pr-escolar e se muitas das coisasque acontecem hoje em dia nos jardins de infncia portugueses so o resultado destasorientaes oficiais, quando se trata de tornar estas orientaes gerais em aces concretas

    na sala de aula, a investigao que se tem desenvolvido nas universidades que melhoresorientaes oferece a estes profissionais de educao. Na verdade, tem-se verificadoque as prticas mais sustentadas e com capacidade de maior sucesso so as informadaspelos dados da investigao que actualmente conduz a formao superior integrada doseducadores de infncia.

    Oporqu e o como das melhores prticas: a investigao em Portugal

    Neste terreno da investigao que sustenta a formao ao nvel da educao infantil,

    destaca-se o trabalho desenvolvido por duas investigadoras portuguesas (que iniciaramas suas investigaes antes das Orientaes Curriculares terem sido publicadas), o qual,na nossa opinio, tem contribudo com boas e decisivas bases para que os educadores deinfncia concebam e desenvolvam prticas de literacia adequadas.

    Margarida Alves Martins tem conduzido em Portugal vrios estudos experimentaisem que tem investigado os factores cognitivos envolvidos no processo de aprendizagemda leitura e da escrita (MARTINS, 1996). As concluses dos seus trabalhos tm mostradoque o sucesso no processo formal de aprendizagem da linguagem escrita directamenteproporcional quantidade e qualidade do conhecimento informal e das representaesmentais sobre a linguagem escrita desenvolvidas pelas crianas em idade pr-escolar.

    Em geral, o procedimento metodolgico seguido o longitudinal. Estainvestigadora avalia o conhecimento das crianas sobre certos aspectos relacionados com

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    a linguagem escrita antes de essas crianas iniciarem a aprendizagem formal da leiturae da escrita e, atravs de um teste de leitura, avalia o sucesso que as mesmas crianas

    mostram depois do primeiro ano de aprendizagem formal na escola. Consequentemente,estabelece correlaes plausveis entre os dados obtidos, inferindo sobre a importnciade cada aspecto particular no processo de aprender a ler e a escrever.

    Recentemente, esta autora defendeu que no sucesso da aprendizagem sodeterminantes o conhecimento e as representaes das crianas em idade pr-escolarsobre dois aspectos centrais do funcionamento da linguagem escrita.

    Um desses aspectos a funcionalidade da linguagem escrita. Esta autoraconcluiu que, quando iniciam a aprendizagem formal, as crianas pr-escolares deveriamter ideias claras sobre para que serve a linguagem escrita. As experincias que AlvesMartins realizou mostraram que enquanto algumas crianas comeam a escola tendo j

    desenvolvido para si prprias um projecto pessoal de leitor, isto , sabem para que alinguagem escrita e afirmam querer aprender para ler livros de histrias, para aprendersobre animais ou escrever cartas (MARTINS; NIZA, 1998), outras h para quem a mesmaaprendizagem sentida como uma obrigao externa. Estas no reconhecem nenhumautilidade aprendizagem da leitura e da escrita e no a associam com actividades quepossam ser agradveis. Estas crianas tenderam a mostrar maus resultados nas tarefas deleitura em que foram envolvidas pela investigadora no final do 1. ano de escolaridade.Estas diferentes atitudes para com a aprendizagem da leitura e da escrita devem-se,argumenta Alves Martins, qualidade, frequncia e utilidade das actividades de leitura ede escrita testemunhadas por estas crianas nos seus contextos familiares e sociais antes

    da sua participao na escolarizao formal. Assim, para Alves Martins importanteiniciar as crianas em idade pr-escolar em diferentes usos da linguagem escrita paraque, atravs desse contacto, essas crianas possam, por si ss, aprender sobre a suafuncionalidade e adquirir razes vlidas para querer aprender. Isto significa, segundoesta autora, que os educadores de infncia deveriam fazer das suas aulas contextos decomunicao autnticos, fazendo uso de materiais funcionais variados com diferentesobjectivos de comunicao.

    Para alm da funcionalidade, Martins (1996) defende ainda que ao iniciar aescolarizao formal, as crianas deveriam ter j concepes claras sobre a naturezada linguagem escrita, nomeadamente sobre os seus aspectos formais como se l e seescreve e aspectos conceptuais o que a linguagem escrita representa. Uma vez mais,estas propostas esto ancoradas nos resultados do seu trabalho experimental.

    A sua investigao permitiu verificar que quanto melhores (ou, dvida nossa, maisprximas das perspectivas escolares?) so as concepes ou conhecimentos das crianasem idade pr-escolar sobre as formas como as pessoas lem e escrevem, melhores soos resultados que essas crianas revelam no processo de aprendizagem da linguagemescrita. Margarida Alves Martins defende por isso que, antes da entrada para a escola, ascrianas deveriam ser ajudadas a compreender todas as propriedades convencionais quecaracterizam a leitura e a escrita, como, por exemplo: que as pessoas lem e escrevempgina a pgina, de cima para baixo, da esquerda para a direita, linha a linha, palavra apalavra, em silncio ou em voz alta. Para alm disso, defende que estas crianas deveriamainda conhecer os termos tcnicos usados, tais como, texto, imagem, ttulo, autor, linha,frase, palavra, letra, letra inicial ou final, nmero, pontuao, etc..

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    A este propsito, levantam-se, naturalmente, alguns problemas que no podemdeixar de ser referidos, apesar da reconhecida relevncia da compreenso dos usos,

    finalidades e aspectos formais da escrita por parte das crianas pr-escolares. Na verdade,tais propriedades convencionais apontadas por esta autora so-no apenas de algumasculturas, sendo a escolar e ocidental a que aqui est mais representada. Neste sentido,parece que a adopo do princpio deveria passar igualmente pela abertura e peloconfronto das crianas a outras convenes e prticas relacionadas com a leitura e aescrita, designadamente aquelas que comeam tambm a fazer parte do seu universode leitores e de que o hipertexto exemplo. Neste caso, no se l nem da esquerda paraa direita, nem linha a linha. Nesta ordem de ideias , obviamente, discutvel a crena deque se l palavra a palavra ou, pelo menos, que se l SEMPRE palavra a palavra. Sabe-secomo esta concepo pode estar na base de alguns problemas com o desenvolvimento do

    processo de compreenso leitora (veja-se, entre muitos outros, IRWIN, 1986; GEE, 1990;GOODMAN, 1994).

    Desde o trabalho pioneiro de Ferreiro e Teberosky (1980), tem sido amplamentereconhecido que as crianas no compreendem espontaneamente que escrevemos o quedizemos. Dito de outro modo, nesta perspectiva assume-se que as crianas no desenvolvemnaturalmente a ideia de que a linguagem escrita uma forma de representao dalinguagem. Na verdade, Martins (1996; 2003) verificou, atravs das suas experincias, queuma das hipteses que muitas das crianas em idade pr-escolar tinham desenvolvidopara si a de que a linguagem escrita representa a coisa e no a prpria palavra. Aseguinte situao, descrita em Martins e Niza (1998), ilustra essas concepes ingnuas

    sobre a natureza da linguagem escrita em crianas pr-escolares:Depois de esconder a primeira slaba ga da palavra galinha, um adulto perguntou

    a uma criana:

    Escondi a primeira parte da palavra galinha. O que podes ler agora?Obviamente, a resposta deveria ser linha, mas a criana disse:

    So as pernas, so as pernas da galinha que fica de fora.

    De acordo com esta investigadora, a pesquisa mostra que as crianas que iniciama aprendizagem da leitura e da escrita sem ter compreendido esta propriedade geral do

    nosso sistema de escrita apresentam dificuldades no final do primeiro ano de aprendizagemformal. Por isso, defende que as crianas em idade pr-escolar deveriam ser levadas acompreender que a escrita uma forma de representar a linguagem.

    Mesmo assim, quando as crianas descobrem que a escrita representa a linguagem,no se do conta imediata e espontaneamente de todas as intricadas complexidadessubjacentes ao princpio grfico e alfabtico. Por isso, Martins considera que crucial queestas crianas desenvolvam a capacidade de pensar sobre a linguagem oral e escrita esobre a forma como ambas se relacionam entre si, para que desta forma possam entendermelhor a natureza daquilo que vo aprender. Esta capacidade corresponde quilo a queanteriormente nos referimos como conscincia lingustica4. Em particular, Martins (2003)

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    4 Margarida Alves Martins usa o termo conscincia metalingustica.

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    de opinio que de extrema relevncia que as crianas que comeam a escolarizaoformal tenham:

    conscincia de palavra (BOWEY; TUNMER, 1984), ou seja, conscincia de que asfrases orais so constitudas por unidades discretas, as palavras; que escrevemostodas as palavras que dizemos; que as palavras so escritas seguindo a ordemcom que so pronunciadas; que, na linguagem escrita, essas palavras seseparam atravs de espaos em branco; que a palavra escrita no mantmnenhum vnculo fsico com o referente que representa, isto , que (em geral) arbitrria;

    conscincia fonolgica (GOMBERT, 1990; TUNMER, 1991; WAGNER; TORGESEN,1987), isto , conscincia de que as palavras so constitudas por unidades mais

    pequenas, os sons. A este respeito, a investigadora refere que importanteque as crianas adquiram a capacidade de pensar sobre e de manipular slabas,unidades intra-silbicas e fonemas;

    conscincia fnica (BLEVINS, 1997), que tenham conscincia das bases doprincpio alfabtico ou, dito de outro modo, conscincia de que as letras naspalavras escritas representam sons.

    Martins (1996) tambm sustenta que as crianas devem saber os nomes das letrasdo alfabeto antes de entrarem para a escola, na medida em que tem verificado que odesenvolvimento da capacidade de pensar sobre e de analisar a linguagem oral e escrita

    desta forma antes de comear a aprendizagem formal da leitura e da escrita cria condiesfavorveis para um melhor relacionamento com os respectivos cdigos e tcnicas. Nassuas experincias, aps o primeiro ano na escola, as crianas que revelam um melhordesempenho na leitura so as que tinham mostrado melhores nveis de conscincialingustica no teste inicial.

    Resumidamente, segundo o trabalho desta autora, que oferece uma visocompreensiva de factores cognitivos com alguma capacidade explicativa dos processos deaprendizagem da leitura e da escrita, conhecer as finalidades que a linguagem escrita servee a forma como funciona ajuda as crianas pr-escolares no processo de aprendizagem daliteracia.

    A contribuio desta autora vai, todavia, para alm deste quadro terico, uma vezque tem tambm prestado ateno especial caracterizao de prticas educativas quepossam concretizar as inmeras concluses a que tem chegado na sua pesquisa. Assim,juntamente com Ivone Niza, sugere conjuntos de princpios e de actividades para melhorpromover, em contexto pr-escolar, o desenvolvimento de cada uma das habilidadescognitivas atrs referidas. Na seco seguinte, ilustramos brevemente alguns dessesprincpios e prticas, na medida em que caracterizam algum trabalho hoje levado a cabonos jardins de infncia portugueses e que, em muito, sugerido por ou inspirado notrabalho destas autoras.

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    Algumas prticas para o desenvolvimento da linguagem escrita na EducaoPr-escolar

    De entre as prticas apresentadas como significativas na iniciao linguagemescrita no jardim de infncia, destacam-se as que envolvem o nome da criana, o qual, peloseu enorme valor afectivo, pode facilmente tornar-se num valioso recurso de inmerasdescobertas.

    Permitindo a etiquetao dos materiais das crianas (lpis, canetas, cadernos, copos,pratos, escovas de dentes, etc.), assim como o controlo de presenas na aula (controlo esseque as prprias crianas podem ser convidadas a fazer cada dia) e o controlo das tarefasatribudas a cada uma delas na rotina diria (a distribuio das tarefas feita por meiode tabelas expostas na sala), o nome da criana rapidamente se torna num motivo de

    comparao, de reflexo e de indagao, dosporqus.O nome prprio , portanto, um instrumento poderoso de que os educadores

    se podem servir para levar a criana a prestar ateno natureza da linguagem escrita,particularmente relao entre palavras orais e escritas e entre letras e sons. Os educadorespodem organizar os nomes das crianas em cartes (guardados em ficheiros) e us-losposteriormente em jogos de comparao tais como identificar o maior e menor nome docolega na sala. O educador usar esta tarefa para levar as crianas a tomar conscincia,por exemplo, de que o colega mais alto (o maior de todos) no tem o maior nome (omais comprido ou com mais letras); encontrar outros nomes que comeam com o mesmosom; identificar outros nomes que comecem e/ou acabem com a mesma letra; procurar

    nomes que rimem; procurar outros nomes que rimem com o nome de um/a determinado/a menino/a; dizer em voz alta nomes com slabas ou sons extra; dizer os nomes semuma das partes (isto , sem uma slaba inicial, medial ou final ou mesmo sem algumsom); procurar nomes (entre os colegas ou em revistas ou livros) que comecem ou acabemcomo um determinado nome. Para que este processo faa sentido, todas as descobertasdas crianas devem ser escritas e expostas na parede da sala, a fim de serem por todasvisualizadas. E, naturalmente, quanto mais etiquetagem houver na sala (com os nomesdos objectos a identificveis, como, por exemplo, janela, porta, livros, armrio, lpis,casacos, etc.) mais amplo o jogo se tornar

    Todo o esforo pedaggico vai, assim, no sentido de levar as crianas a contactar

    com a linguagem escrita durante todo o dia, quer dentro quer fora da sala de jardim deinfncia. A organizao do tempo criar condies para que possa haver tanto momentosde escrita quanto de leitura; momentos de trabalho individual e actividades de pequenoou de grande grupo. As actividades escritas emergem das experincias, conhecimentos esentimentos das prprias crianas, quer dizer, so usadas para registar o que elas dizemna sala de aula, de modo a que o processo de aprendizagem da linguagem escrita sejaestimulante e reconhecido como significativo.

    Na rea da escrita e durante o tempo de escrita individual, cada criana escreveno seu caderno de notas individual o que quiser ou o que o educador lhe pea ou sugira.Esses momentos tornam-se especialmente enriquecedores quando o educador interagecom cada criana a propsito das suas produes. Tais produes devem ser valorizadase encorajadas e podem ser usadas pelo educador para criar conflitos que obriguem ascrianas a pensar e a, progressivamente, clarificar as suas ideias, como, por exemplo,

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    quando o educador leva a criana a tomar conscincia que a palavra casa, que a crianaafirma ter escrito, comea como a palavra carro, que est j escrita e exposta na parede;

    ou quando o educador simplesmente escreve da forma correcta aquilo que a crianadiz ter escrito; ou mesmo quando a criana desafiada a pensar primeiro e a escreverdepois as crianas so conduzidas a pensar sobre a linguagem escrita de formas queno as deixaro indiferentes.

    Pressupe-se, tambm, um tempo para a escrita em pequenos grupos, que oeducador usa para estimular as interaces entre as prprias crianas acerca dos seus escritos.Para alm do valor tcnico que tal actividade possa assumir, acresce-lhe, naturalmente, ovalor social decorrente das interaces que permitem crescer com os outros. Igualmenteimportante o tempo de escrita do educador em frente das crianas. O educador omodelo e, ao escrever (e simultaneamente pronunciar) qualquer palavra, qualquer frase

    ou texto, mostra de facto como se faz; ao escrever notcias, histrias, poemas ou palavrasque rimam ditas pelas crianas, estas so pessoalmente envolvidas no processo de escrita;ao escrever anncios ou convites para mandar para casa, ao escrever cartas para outros jardins de infncia e ao usar diferentes materiais de escrita, as crianas testemunhamactos de verdadeira comunicao. Do mesmo modo, as crianas podem ser ajudadas acompreender a funo de conservao que a linguagem escrita tambm assume na vidasocial, arrumando-se as produes escritas nos arquivos pessoais ou dispondo-as nasparedes.

    Ao nvel da leitura individual no jardim de infncia, so vrios os momentos quese apresentam aos educadores para a sua promoo, por exemplo, quando necessrio

    consultar grficos ou tabelas para distribuir os materiais cada manh, ou quando ascrianas vo rea da biblioteca e lem livros ao seu gosto. As bibliotecas da sala de aulaso, neste contexto, um recurso fundamental, podendo incluir livros feitos pelas prpriascrianas, tais como coleces de histrias, de rimas ditas por elas ou dicionrios ilustrados.Tambm aqui, a leitura em pequenos grupos um recurso a valorizar, sobretudo setivermos em considerao que a actividade mental socialmente construda e que aorganizao social, de que este trabalho pedaggico com a leitura faz igualmente parte,que estrutura pensamento (BARTON, 1994).

    Por isto mesmo, tambm, estas actividades de desenvolvimento da literacia aonvel pr-escolar no podem ficar fechadas no espao da escolinha. A possibilidadede elas serem reconhecidas como significativas e de as crianas perceberem que tipo deactividade social a literacia passa pela necessidade de articular a actividade escolarcom o contexto familiar e social. Trazendo material escrito para a sala (que as crianaspodem usar como modelo de escrita) ou levando as crianas para fora da escola para queobservem a presena da linguagem escrita no meio ambiente so prticas determinantesno desenvolvimento de uma conscincia da literacia, na medida em que as crianaspodem verificar que a linguagem escrita est profundamente vinculada ao mundo queexiste para alm dos muros dos ambientes escolares.

    Por ltimo (mas no por isso o menos importante), a leitura do educador paraas crianas um momento extraordinariamente importante que oferece ao educadoruma oportunidade de trabalhar todas as capacidades referidas at aqui, nelas incluindoa compreenso leitora e a oracia. Na verdade, o trabalho da investigadora portuguesaque a seguir descrevemos baseia-se nesta possibilidade, que explora amplamente.

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    Um programa de desenvolvimento da linguagem no nvel pr-escolar

    Viana (2001) prope um programa, testado experimentalmente, para a promoode competncias verbais em contexto de jardim de infncia designado Melhor Falar paraMelhor Ler. Este programa baseia-se na assuno de que a aprendizagem bem sucedidada leitura e da escrita depende da competncia comunicativa oral das crianas. Vianarefere os resultados de investigao experimental levada a cabo por Vellutino (1977,1987) e por Morais (1994), entre outros, que tm defendido que a facilidade de ler e deescrever depende, essencialmente, da competncia lingustica oral.

    Consequentemente, a principal finalidade deste programa a de estimular acomunicao oral das crianas. prestada ateno especial estimulao do conhecimentoe conscincia lexical, sintctica e semntica, sendo igualmente integradas actividades mais

    amplas destinadas a promover a emergncia da literacia, equilibrando assim o contextoeducativo criado com a implementao do programa. Alm disso, o desenvolvimentodeste programa tambm pretende funcionar como um contributo para que os educadoresde infncia possam aperfeioar a planificao das actividades e avaliar o desempenholingustico das crianas de uma forma mais abrangente, integrada e, por isso mesmo,menos intuitiva.

    A actividade-chave de todo o programa a leitura de histrias em voz alta paraas crianas, na considerao de que esta actividade um excelente modo de cativar osafectos das crianas pelo processo de leitura. Nesta perspectiva, a leitura de livros permiteque as crianas saibam mais sobre o mundo e aprendam tanto a interpretar factos e

    aces, a organizar e reter informao e a elaborar cenrios mentais e esquemas, como ainteragir sobre tudo isto. Para alm destas aquisies de tipo afectivo e cognitivo, a leiturade livros tambm vista como um excelente inputpara o processo de desenvolvimentoda linguagem oral (devido, essencialmente, correco e complexidade das estruturassintcticas usadas, diversidade do vocabulrio e s relaes semnticas estabelecidasentre as unidades textuais) e para o entendimento claro da relao entre os domnios orale escrito da linguagem.

    Cada sesso do programa de Viana (2001) comea com actividades de compreensoleitora. Num primeiro momento, o educador pode comear por introduzir o autor dolivro que vai ser lido nesse dia, assim como o ttulo da histria, apontando para a capa. Ao

    referir-se s imagens tambm presentes na capa do livro, o educador pede s crianas quetentem adivinhar o assunto e os personagens da histria. A partir desta discusso inicial,as crianas tambm podem ser convidadas a inventar a histria.

    Durante a leitura, o educador mostra s crianas o que est a ler, parando emmomentos crticos para pedir s crianas que faam previses sobre o que vai acontecer.Depois da leitura, o educador relembra e discute com as crianas as ideias iniciais, fazperguntas (literais ou no) sobre a histria, discute com as crianas vivncias de situaessemelhantes, levando-as a relacionar as suas prprias experincias com a histria. Outrofinal pode tambm ser solicitado.

    De acordo com a estrutura geral do programa, as crianas so sempre conduzidas

    a identificar na histria palavras desconhecidas, difceis ou divertidas, cujosignificado, podem procurar no dicionrio, juntamente com o educador. A partir daqui

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    so construdas frases com estas novas palavras. Todo este trabalho registado porescrito pelo educador com as crianas, usando diferentes tipos de letra (manuscrita ou

    mecnica).As actividades de conscincia lingustica seguem, geralmente, as actividades de

    compreenso leitora. O programa sugere muitas actividades. O educador pode escolheruma frase relevante e, de um modo ldico, conduz as crianas diviso das palavras quea constituem; tambm pode escolher uma palavra da histria e sugerir que joguem comessa palavra, dividindo-a em peas, por exemplo, batendo palmas ou batendo comas mos nas suas pernas. Tambm se pode pedir s crianas que identifiquem palavrasque comecem da mesma forma ou que rimem entre si; que pensem na forma como diztal palavra no plural ou na sua forma antnima Novamente, o educador escreve asdescobertas das crianas.

    Neste programa, h sempre um momento em que as crianas recontam a histria,podendo isto ser feito atravs do desenho ou da dramatizao (representando elasprprias os personagens ou usando marionetas ou outros bonecos).

    Semana a semana, as crianas escolhem a histria de que mais gostaram. Usandoum pedao de papel grande, o educador escreve essa histria em frente das crianas,pronunciando em voz alta cada palavra, usando e tornando explcitos os sinais de pontuaonecessrios. sugerido que cada um destes pedaos de papel se torne numa pgina deum grande livro que deve ser guardado na rea da biblioteca. Tambm semanalmente, ascrianas trazem pginas de jornal com notcias que queiram que o educador leia para oscolegas.

    Mensalmente, um membro de uma das famlias das crianas visita a sala de aula econta s crianas uma histria, tanto fictcia como real e colhida nas suas prprias vidas!O programa Melhor Falar para Melhor Lerfoi aplicado em simultneo durante dois anos emvrios jardins de infncia. Os educadores que se envolveram nesta experincia receberamum esquema do programa e foram eles prprios que o desenvolveram e aplicaram. Emconsequncia, esta implementao foi flexvel e criativa, por isso diferente nos diferentesgrupos de crianas implicados.

    Antes de se ter iniciado o programa, as capacidades lingusticas das crianas foramavaliadas usando um teste concebido pela prpria investigadora para ser usado peloseducadores (VIANA, 2002). No final dos dois anos escolares, as crianas foram de novo

    avaliadas, tendo-se identificado diferenas significativas relativamente ao momentoinicial nas reas que foram testadas: conhecimento lexical e morfolgico, memriaauditiva, conscincia lingustica e reconhecimento global de palavras escritas. Foi notadoum desenvolvimento especial nos resultados das crianas provenientes de ambientessociais menos favorecidos. Finalmente, outras crianas da mesma escola e da mesmaidade, que no foram submetidas ao programa, foram tambm testadas. Os resultadosobtidos por estas crianas foram comparados com os das crianas do programa eViana refere que so estatisticamente significativos e a favor destas ltimas. No entanto,a autora admite, sensatamente, que no inteiramente claro que estes resultadospositivos se devam apenas implementao deste programa concreto. Outros factores,

    tais como o desenvolvimento natural, so indicados como podendo ter influenciado odesenvolvimento lingustico encontrado nas crianas.

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    Para alm desta anlise quantitativa, tambm foram realizadas avaliaesinformais e qualitativas das produes das crianas, onde se reflecte, segundo Viana

    (2001), o desenvolvimento lingustico das crianas. Tambm ao nvel dos registos dosprofessores envolvidos na implementao do programa possvel captar os sintomas detal desenvolvimento. Com efeito, os educadores fazem referncia ao aumento do interessedas crianas sobre as mensagens escritas em geral, ao aumento na capacidade de ler osmateriais expostos na sala de aula e a uma crescente capacidade de os analisar. Ao mesmotempo, o seu interesse por conhecer novas palavras e a capacidade de as usar passoua ser maior, de acordo com os educadores que tambm registaram bons resultados nacapacidade de recontar histrias, de encontrar e criar rimas e na qualidade da linguagemdas crianas. Em geral, as crianas tornaram-se mais pontuais e a sua assiduidade eenvolvimento nas actividades aumentou. Os educadores referiram ainda que, em casa, as

    crianas passaram a pedir que os pais lhes lessem mais e que as ajudassem na compreensodas histrias e das palavras novas. Bons resultados tambm foram evidentes junto dospais, cujo interesse pelo que estava a passar-se na sala de aula dos seus filhos, segundo orelato dos educadores, mudou consideravelmente.

    Concluso

    No deve surpreender o facto de o trabalho das investigadoras portuguesas ataqui descrito apresentar semelhanas ou pontos em comum. Na verdade, ambas focam

    a sua ateno na emergncia da literacia nos contextos pr-escolares. Definitivamente, agora incontestvel que, como j referido, os resultados de ambas investigaes fornecemboas bases para que os educadores de infncia concebam e desenvolvam prticas deliteracia adequadas em Portugal. Em nossa opinio, tambm no surpreendente queambas investigadoras advoguem a necessidade de promover essas prticas de uma formasistemtica e intencional. Estas autoras acreditam que este o caminho que deve serseguido para que as crianas que frequentam o jardim de infncia desenvolvam umalinguagem oral adequada e perspectivas claras sobre a linguagem escrita, antes de iniciaro ensino formal da leitura e da escrita. Nenhuma indicao desse gnero dada nasorientaes oficiais.

    hoje em dia consensual a ideia de que a literacia emergente deve ser promovidano jardim de infncia: reconhece-se ao nvel oficial; tem sido desenvolvida investigaorelevante; e as prticas tm efectivamente mudado, basicamente devido ao esforo deactualizao que tem sido levado a cabo ao nvel da formao de educadores de infnciadesde que as Orientaes Curriculares foram publicadas, quer nas universidades onde oseducadores de infncia so licenciados quer nos congressos e encontros especializados.Neste processo de renovao, a investigao realizada em Portugal tem sido determinante,pelo menos no que diz respeito a novas formas de conceber a educao de infncia e aopapel crucial que as prticas de literacia devem assumir.

    Contudo, temos conscincia de que necessrio mais tempo para que as inovaes

    possam ser amplamente compreendidas e as boas prticas possam chegar a todas as salasde jardim de infncia. Estamos convictas de que os educadores de infncia em geral

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    beneficiariam de mais e melhor informao sobre as orientaes oficiais, especialmentesobre o que ficou implcito nesse documento. Muitos argumentam a favor da introduo

    de um verdadeiro curriculum para o nvel de educao pr-escolar, estruturado sobrefundamentao terica, objectivos especficos e gerais, contedos, estratgias especficas,actividades e procedimentos de avaliao, como um instrumento de efectividade possvel.Mas isso no melhoraria as prticas. Com toda a certeza. Se h alguma soluo paramelhorar as prticas, essa soluo parece residir na forma como entendemos o porqu eo como de ser um ser letrado:

    Se uma sala de aula fornece um ambiente em que o estatuto de literacia sejaelevado, em que haja poderosas demonstraes de literacia e em que as crianasse possam envolver livremente na literacia, ento as crianas aproveitaro cada

    oportunidade para usar o seu conhecimento e capacidades para agir de umaforma litercita []. As crianas tm uma capacidade extraordinria para fazersentido com a experincia. No devemos apresentar-lhes um mundo de literaciaestreito e distorcido, no qual fazer sentido praticamente impossvel. (HALL,1988, p. 91, traduo nossa).

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