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5/24/2018 Anselm Jappe - As Aventuras Da Mercadoria
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LTIMOS TTULOS
O COMBATE COM O DEMNIO
Stefan Zweigtrad, dejos Miranda Justo
DESOBEDINCIA CIVIL/DEFESA DE JOHN BROWN (2 aed.)
Henry David Thoreautrad, de Manuel Joo Gomes
A TRAFICANTE DE CRIANAS
Gabrielle Wittkoptrad, de Lus Leito
OS AMERICANOS
Henry Louis Menckentrad, de Fernando Gonalves
IN VINO VERITAS
S0 ren Kierkegaardtrad, dejos Miranda Justo
SETE LIVROS ILUMINADOS
William Blaketrad, de Manuel Portela
A ANESTTICA DA ARQUITECTURA
Neil Leachtrad, de Carla Oliveira
A MINHA VIDA UMA ARMA
Christoph Reutertrad, de Manuela Gomes
A INVASO DO MAR
Jlio Verne
trad. Lus Leito
A LTIMA SADA PARA BROOKLYN
Hubert Selby Jr.trad. Paulo Faria
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O u v r a g e p u b l i a v e c l e c o n c o u r s d u m in i st r e f r a n a i s c h a r g
d e l a C u l t u r e - C e n t r e N a t io n a l d u L iv r e .
[O br a pu b l i c a d a COM 0 APO IO DO m in is t r io d a C u l t u r a f r a n c s
- C en t r o N a c i o n a l d o L iv r o ]
Ttulo original
Autor
Traduo
Reviso
Capa
Paginao
Impresso
Copyright
I a edio portuguesa
Antgona
Depsito legal
ISBN
L es A v e n t u r e s d e l a m a r c h a n d is e
- P o u r u n e n o u v e l l e c r it iq u e d e l a v a l e u r
flnselm Jappe
Jos Miranda Justo
Carla da Silva Pereira
Ricardo Tadeu Barros / TTdesign
Leonel Matasd Carla da Silva Pereira
Guide - Artes Grficas
2003. ditions Denol2006. Antgona para Portugale pases africanos de expresso portuguesa
Maro de 2006
editores refractarios
Rua da Trindade, n. 5 -2. fte.1200-467 Lisboa | Portugaltel. 213244170 | fax. [email protected]
n. 239029/06
972-608-176-9
mailto:[email protected]:[email protected]5/24/2018 Anselm Jappe - As Aventuras Da Mercadoria
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SER O MUNDO UMA MERCADORIA?
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H a l guns anos muita gente estava disposta a acreditar no fim da
histria e na vitria definitiva da economia de mercado e da democracia liberal. Considerava-se que a dissoluo do imprio sovitico
era uma prova da inexistncia de alternativa para o capitalismo oci
dental. Partidrios e inimigos jurados do capitalismo estavam igual
mente convencidos desse facto. E, segundo essa opinio dominante,
a partir da a discusso deveria girar apenas em torno de questes de
pormenor acerca da gesto da realidade existente.
De facto desapareceu completamente da poltica oficial toda e
qualquer luta entre concepes divergentes e, salvo algumas excep
es, passou tambm a estar ausente a prpria ideia da possibilidade
de imaginar uma maneira de viver e de produzir que fosse diferente
da que se imps. Esta ltima parece ter-se convertido por toda a parte
no nico desejo dos homens. Porm, a realidade verga-se s ordens
com menos facilidade do que os pensadores contemporneos. Nosanos que se seguiram vitria definitiva da economia de mercado,
esta mostrou mais fragilidade do que durante as cinco dcadas pre
cedentes, como se na verdade a derrocada dos pases de Leste no
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tivesse sido mais do que o primeiro acto de uma crise de propor
es mundiais. O desemprego real cresce por toda a parte, e urna vez
que a causa reside no enorme salto de produtividade decorrente da
revoluo informtica, nada poder inverter essa tendncia nem a dedesmantelamento do Estado social. Estas duas tendncias, em con
junto, geram a marginalizao de uma parte crescente da populao,
mesmo nos pases mais ricos, que entram em regresso relativamente
aos padres vigentes durante um sculo de evoluo social.
Quanto ao resto do mundo, encontram-se umas quantas ilhas
de bem-estar e de democracia new look no meio de um oceano de
guerras, de misria e de trficos abominveis. E no se trata de uma
ordem que, sendo injusta, fosse pelo menos estvel: a prpria riqueza
encontra-se constantemente sob ameaa de desmoronamento.
As Bolsas financeiras, com movimentaes cada vez mais irracionais
e sujeitas a colapsos cada vez mais frequentes em pases-modelo
como a Coreia do Sul, a Indonsia ou a Argentina, anunciam aos
olhos de qualquer observador, mesmo do mais leviano, um cataclismo a breve prazo. Enquanto se vai esperando, h uma espada de
Dmocles suspensa sobre a cabea de todos, ricos ou pobres: a des
truio do ambiente. Neste domnio, cada pequeno melhoramento
da situao que se consegue levar a cabo num determinado stio
acompanhado por uma dezena de novas loucuras praticadas em
outros locais do mundo.
No necessrio prolongar este rol de constataes que todos os
dias est disposio de qualquer telespectador minimamente atento.
Afinal, o fim da histria durou muito pouco tempo. A desordem
reinante volta a ser contestada por todo o lado, e por vezes em luga
res onde no seria previsvel, por parte de pessoas com que no se
contaria e por motivos razoavelmente inesperados. Poder-se-iam citar
as lutas camponesas em pases do Sul, como a ndia ou o Brasil, osmovimentos de resistncia em pases europeus contra o desmantela
mento do Estado social e a precariedade laboral, a rapidez com que
se difundiu em pases to diferentes como a Tailndia ou a Frana a
recusa de novas biotecnologas de efeitos incalculveis, a formao de
ser o mundo uma mercadoria?
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uma nova sensibilidade moral em relao a questes como a explora
o do trabalho de menores nos pases pobres ou o endividamento do
chamado terceiro mundo. Assiste-se ao surgimento de exigncias
como a de comer alimentos dignos desse nome, crescente desconfiana em relao aos media, criao em Itlia de uma rede de espa
os ocupados e consagrados a actividades antagonistas - os Centri
sociali ao mesmo tempo que se v tambm uma recuperao da
ideia de voluntariado e de outras actividades no orientadas para o
lucro. Mesmo os sucessos eleitorais dos partidos ditos de extrema
esquerda em Frana podem ser interpretados neste sentido. As con
testaes que, desde Seattle, acompanham quase todas as cimeirasdos pases ricos ou das respectivas instituies econmicas, represen
tam - embora de uma maneira sobretudo espectacular e meditica
- a convergncia desses diferentes movimentos de protesto no plano
mundial. O denominador comum dos protestos, para j, a luta con
tra o neoliberalismo. E, se os activistas so por enquanto pouco
numerosos, a verdade que por vezes criam-se vastos movimentos
de opinio pblica em torno de um ou outro desses temas.
Seria portanto muito pouco sria a pretenso de ver o estado
actual do mundo como algo que desfrutasse universalmente das
boas graas dos que so constrangidos a ser seus contemporneos.
Mas seria tambm difcil afirmar que esse descontentamento sabe
sempre o que efectivamente quer. No a revoluo ou a ideia de
uma sociedade radicalmente diferente que anima os que protestam.E tambm no se trata de reivindicaes de uma classe social bem
definida. Tirando a vaga oposio universal ao neoliberalismo, cada
movimento permanece limitado ao seu sector especfico e prope
remdios fragmentrios sem se dar ao trabalho de procurar compre
ender as razes profundas dos fenmenos que combate. E contudo
o sucesso que obteve um livro intitulado 0 mundo no uma mer-
cadoria parece testemunhar uma preocupao menos superficial.No entanto, todos aqueles que repetem este sloganparecem interpre
t-lo sobretudo no sentido de que certas coisas como a cultura, o
corpo humano, os recursos naturais ou as capacidades profissionais
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no so coisas que possam simplesmente ser reduzidas a objecto de
compra e venda, no devendo portanto estar submetidas ao poder
nico do dinheiro. Uma tal interpretao releva da esfera dos bons
sentimentos e no pode substituir-se a uma efectiva anlise da sociedade que produz os monstros que se pretende exorcizar. Gritar que o
que se passa um escndalo porque tudo se tornou vendvel no
propriamente uma atitude nova e, na melhor das hipteses, o resul
tado expulsar os vendilhes do Templo para v-los instalarem-se
no passeio do outro lado da rua. Uma crtica puramente moral, que
recomenda que no se submeta tudo ao dinheiro e que se pense
tambm no resto, no pode ir muito longe: acaba por assemelhar-se
aos discursos solenes do presidente da Repblica e das comisses
de tica.
A desorientao terica dos novos contestatrios o espelho
do completo desmoronamento da crtica social nas duas ltimas
dcadas. A ausncia de uma verdadeira crtica, coerente e de vasto
alcance, quando no mesmo a recusa explcita de toda e qualquerteoria totalizante, impede que os indivduos que pretendem assu
mir uma posio crtica tenham um conhecimento real das causas
e das consequncias daquilo que criticam. Correm assim o risco de
ver a sua crtica, muitas vezes ao arrepio das suas melhores inten
es, degenerar no exacto contrrio de toda e qualquer perspectiva de
emancipao social. De facto vemos por vezes a oposio ao impe
rialismo americano converter-se num nacionalismo vulgar, a crtica da
especulao financeira adoptar coloraes de anti-semitismo, a luta
contra a reestruturao neoliberal transformar-se em simples corpo
rativismo, a crtica do eurocentrismo desembocar na aceitao dos
piores aspectos daquilo a que se chama alteridade cultural, ou a
m-f levar alguns dos que lutam contra a mundializao a defender
que o combate contra a imigrao. Quase toda esta gente pareceacreditar que seria possvel extirpar as ervas daninhas, sejam elas o
milho geneticamente manipulado ou o desemprego, sem modificar
profundamente a prpria sociedade.
No h dvida, porm, de que se faz sentir a necessidade de
ser o mundo uma mercadoria?
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explicaes mais aprofundadas. Afinal, o que uma mercadoria?
Que significado tem o facto de uma sociedade se basear na merca
doria? Basta colocar este gnero de perguntas para se perceber muito
rapidamente que inevitvel voltar a pegar nas obras de Karl Marx.
Precisamente a propsito da mercadoria podem ler-se nos textos de
Marx consideraes que no se encontram em mais lado nenhum.
Aprende-se em Marx que a mercadoria a clula germinal de todas
as sociedades modernas, mas que no representa contudo nada de
natural. Que a mercadoria, em virtude da sua estrutura bsica, torna
impossvel a existncia de sociedades conscientes. Que a mercadoria
conduz necessariamente os indivduos a trabalharem cada vez mais,ao mesmo tempo que priva quase toda a gente de trabalho. Que a
mercadoria contm uma dinmica interna que s pode levar a uma
crise final. Que ela d lugar a um fetichismo da mercadoria que
cria um mundo invertido em que tudo o contrrio de si mesmo.
De facto a crtica da economia poltica de Marx toda ela uma
anlise da mercadoria e das suas consequncias. Quem fizer o esforo
de seguir os raciocnios do autor, que por vezes so efectivamentedifceis, encontrar uma quantidade de surpreendentes ideias capazes
de iluminar a compreenso do trabalho, do dinheiro, do Estado, da
comunidade humana ou da crise do capitalismo.
Trata-se, pois, de encarar a necessidade de uma crtica das cate-
gorias de baseda modernizao capitalista, e no apenas de uma cri
tica da respectiva distribuio ou aplicao. Porm, durante mais de
um sculo, o pensamento de Marx serviu sobretudo como teoria da
modernizao,no intuito de fazer avanar essa mesma moderniza
o. Guiando-se por essa teoria, os partidos e os sindicatos operrios
contriburam para integrao da classe operria na sociedade capita
lista, libertando assim a prpria sociedade capitalista de muitos dos
seus anacronismos e deficincias estruturais. Na periferia capitalista,
desde a Rssia Etipia, o pensamento de Marx serviu para justificar
a modernizao tardia ensaiada por esses pases. Os marxistas
tradicionais - fossem eles leninistas ou sociais-democratas, acad
micos ou revolucionrios, terceiro-mundistas ou socialistas ditos ti
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cos - colocaram no centro dos seus raciocnios a noo de conflito
de classe, entendendo-o como luta pela repartio do dinheiro, da
mercadoria e do valor, sem pr em causa estas trs realidades em si
mesmas. Retrospectivamente pode dizer-se que todo o marxismo
tradicional e as suas aplicaes prticas mais no foram do que um
factor do desenvolvimento da sociedade mercantil. A crise global do
capitalismo - e diga-se desde j que a globalizao apenas a fuga
para a frente que o capitalismo efectua depois de a revoluo infor
mtica ter levado ao paroxismo a sua contradio de base - constitui
tambm a crise do marxismo tradicional, que foi afinal uma sua parte
integrante, tal como a derrocada dos pases do socialismo real foiuma etapa da decomposio do capitalismo global.
Marx, contudo, para alm desse tipo de consideraes, deixou
tambm outras de natureza muito diferente: as que dizem respeito
crtica dos prprios fundamentos da modernidade capitalista. Durante
muito tempo esta crtica foi completamente negligenciada tanto pelos
partidrios de Marx como pelos seus adversrios. Porm, com o declnio do capitalismo, vem luz do dia precisamente a crise desses
fundamentos. A partir daqui a crtica marxista da mercadoria, do tra
balho abstracto e do dinheiro deixa de ser uma espcie de premissa
filosfica alcanando plena actualidade. E precisamente isso que
se passa bem frente dos nossos olhos. Sendo assim, podemos dis
tinguir duas tendncias na obra de Marx, ou eventualmente falar de
um duplo Marx:por um lado, o Marx exotrico, que toda a genteconhece, o teorizador da modernizao, o dissidente do liberalismo
poltico (Kurz), um representante das Luzes que queria aperfeioar
a sociedade industrial do trabalho sob a direco do proletariado: por
outro lado, um Marx esotrico cuja crtica das categorias de base
- difcil de compreender - visa mais alm do que a civilizao capi
talista1. preciso contextuallzar historicamentea teoria de Marx e omarxismo tradicional, em vez de ver simplesmente erros tanto numa
coisa como na outra. No pode dizer-se que o Marx esotrico tem
razo e que o Marx exotrico est errado. preciso p-los em
correlao com duas etapas histricas distintas: a modernizao, por
ser o mundo uma merc ado r ia?
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um lado, e a respectiva superao, por outro. Marx no se limitou a
analisar a sua poca, antes previu tambm certas tendncias que s
viriam a realizar-se um sculo mais tarde. Mas, justamente porque
Marx foi capaz de reconhecer com tanto rigor os traos mais salien
tes do capitalismo numa altura em que este se encontrava ainda em
gestao, tomou os primeiros estdios de desenvolvimento do capi
talismo pela respectiva maturidade e acreditou que estava iminente
o seu fim.
Hoje em dia s o Marx esotrico pode constituir a base de um
pensamento capaz de captar os desafios actuais e de compreender
simultaneamente as origens mais recuadas desses mesmos desafios.Neste alvorecer do sculo XXI, toda a contestao que no assente
num tal pensamento corre o risco de ver nas transformaes actu
ais uma mera repetio de estdios anteriores do desenvolvimento
capitalista. Este risco bem visvel na convico muito vulgarizada
de que possvel regressar a uma etapa precedente desse desenvolvi
mento, em particular ao welfare Statekeynesiano e ao proteccionismo
nacional. Mas este desejo piedoso ignora tudo o que diz respeito dinmica do capitalismo. No possvel explicar o triunfo do neoli-
beralismo por intermdio de uma espcie de conspirao dos maus
sequazes do capitalismo internacional que o bom povo poder sem
pre destituir. E estes desejos piedosos andam de mo dada com uma
desoladora moderao dos contedos, pese embora a militncia por
vezes demonstrada no plano dos mtodos. Restabelecer o Estado-
-providncia como reaco barbrie neoliberal, regressar agricultura
industrial de h vinte anos como alternativa manipulao gentica
dos alimentos, reduzir a poluio em I % por ano, limitar a explorao
aos maiores de dezasseis anos, abolir a tortura e a pena de morte:
eis um belo programa que parece querer evitar o pior e que pode at
revelar-se justo em certos casos concretos. Mas uma coisa certa,
um programa destes no pode em caso algum ser tido por uma crtica anticapitalista e emancipatria. Quem se contenta em querer um
capitalismo de rosto humano ou um capitalismo ecolgico perde
o que de melhor havia nas revoltas iniciadas em Maio de 68, ou seja,
l i
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o desejo de tudo transformar em objecto de crtica, a comear pela
vida quotidiana e pela loucura quotidiana da sociedade capitalista
que coloca os indivduos perante a absurda alternativa entre sacrificar
a vida ao trabalho (perder a vida a ganh-la) e sofrer as consequncias de no ter trabalho. Os horrores que escandalizam os actores da
nova contestao - desde a pobreza s mars negras - so simples-
mente as consequncias mais visveis do funcionamento quotidiano
da sociedade de mercado. Tais horrores existiro enquanto existir a
sociedade que os produz, pela simples razo de que decorrem da
prpria lgica dessa sociedade.
portanto necessrio desocultar essa lgica; e o Marx esot
rico, com a sua crtica da lgica basilar da sociedade moderna, o
nico ponto de partida que se nos oferece para uma tal investigao.
Por exemplo, sem o conceito de trabalho abstracto corre-se a todo
o momento o risco de voltar a cair na oposio entre a m espe
culao financeira e o trabalho honesto, oposio que se presta
a ser explorada por todos os populismos, desde a extrema direitaaos marxistas tradicionais e aos nostlgicos do keynesianismo. Se
no se retomar essa crtica dos fundamentos, a necessidade de uma
completa oposio sociedade actual - que a nica opo realista
facilmente se ver atolada ou num existencialismo subjectivo, em
geral recupervel no plano cultural, ou numa pseudo-radicalizao
de velhos esteretipos marxistas (o imperialismo) que apenas con
duzem a um militantismo vazio e ao sectarismo.Assim, retomar a crtica marxiana esotrica da mercadoria um
pressuposto de qualquer anlise sria que, por seu turno, condio
prvia de toda a prxis. Todavia, ningum fala da crtica da mercado
ria, nem os rgos oficiais da reflexo poltica, nem os supostamente
marxistas. certo que na ideologia eclctica at agora prevalecente
no seio da nova contestao se encontra uma quantidade de restosfragmentrios do marxismo tradicional, frequentemente transfigura
dos e dificilmente reconhecveis. Mas precisamente o marxismo
tradicional que impede o recurso ao conjunto da riqueza contida no
pensamento do prprio Marx. Desembaraarmo-nos de mais de um
ser o mundo uma merca dor ia?
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sculo de Interpretaes marxistas uma primeira condio para reler
a obra marxiana 2.Outra condio libertarmo-nos da concepo
segundo a qual h que aceitar ou recusar em bloco a obra de Marx,
mas rejeitando igualmente a ideia de que cada um possa retirar dela
os fragmentos que mais lhe agradem para depois os misturar com
migalhas diversas oriundas de outras teorias e cincias.
Numa parte central - embora menor quanto ao nmero de pgi
nas - da sua obra da maturidade, Marx esboou os traos gerais de
uma crtica das categorias de base da sociedade capitalista: o valor, o
dinheiro, a mercadoria, o trabalho abstracto, o fetichismo da merca
doria. Uma tal crtica do ncleo central da modernidade hoje maisactual do que na poca em que Marx a concebeu, uma vez que esse
ncleo existia ento apenas em estado embrionrio. Para fazer res
saltar este aspecto da crtica marxiana - a crtica do valor - no
necessrio forar os textos por meio de interpretaes rebuscadas:
basta l-los com ateno, coisa que quase ningum fez durante um
sculo.
Ao mesmo tempo necessrio admitir que uma boa parte da obrade Marx est hoje amplamente ultrapassada: designadamente a des
crio muito rigorosa do aspecto emprico da sociedade do seu tempo
e de toda a fase ascendente do capitalismo, quando este se encontrava
ainda em grande medida entrelaado com factores pr-capitalistas.
O marxismo tradicional, alis com razo, podia reclamar-se com fre
quncia dessa parte, mesmo sem necessidade de desfigurar os textos.
O Marx exotrico, que pregava a transformao dos operrios em
cidados de pleno direito, no era de facto uma inveno dos sociais-
-democratas. No se tratar aqui, pois, de regressar a uma qualquer
ortodoxia marxista restabelecendo a pureza da doutrina originria,
como tambm no se trata de rever a teoria marxiana para a adaptar
ao mundo contemporneo. O que pretendemos em primeiro lugar
reconstruir de maneira bastante precisa a crtica marxiana do valor.No porque acreditemos que ao estabelecer o que Marx verdadeira
mente disse se prove ipso factoalguma coisa acerca da realidade de
que ele fala. Mas para se poder julgar a pertinncia da crtica marxiana
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preciso comear por conhec-la. E provavelmente haver mesmo
entre os leitores declaradamente marxistas desta nossa reconstruo
quem possa encontrar nela factores que lhe haviam escapado.
A obra de Marx no um texto sagrado, e uma citao de
Marx no constitui uma prova. Mas preciso sublinhar que a sua obra
continua a ser a anlise social mais importante dos ltimos cento e
cinquenta anos. Trata-se, quanto a este ponto, de uma deliberada
inclinao nossa cuja validade procuraremos demonstrar. Marx foi
exorcizado e declarado morto inmeras vezes, a ltima das quais em
1989. Mas como pode ento acontecer que passados alguns anos
Marx tenha voltado, e sobretudo num estado de sade capaz de fazerinveja aos seus coveiros da vspera? Infelizmente tal sucede porque
- preciso que se diga - h quem preferisse viver num mundo em
que as obras de Marx estivessem efectivamente ultrapassadas e j
no constitussem seno uma recordao de um mundo totalmente
passado!
Apesar de todos os nossos esforos, a apresentao que fazemosda teoria marxiana do valor no de leitura fcil; contm muitas cita
es e pode por vezes dar a impresso de perder-se na filologia. Mas
preciso atravessar um tal deserto, porque todos os desenvolvimentos
posteriores regressaro sempre a essas pginas de Marx que so a
respectiva fonte. Sem uma explicao prvia das categorias de base
- trabalho abstracto, valor, mercadoria, dinheiro - os raciocnios ulte
riores no teriam sentido. Este no de facto um livro ps-moderno:no se pode l-lo de modo fragmentrio ou invertendo a ordem dos
captulos. Pretende seguir um desenvolvimento coerente que vai do
abstracto ao concreto e do simples ao composto; antes de o julgar
seria bom que o leitor tivesse a certeza de ter captado a lgica sub
jacente.
Depois dessa explicao inicial tentaremos extrair as consequncias das categorias de base assim estabelecidas, consequncias que
muitas vezes vo ao arrepio de tudo o que habitual no marxismo
tradicional e por vezes mesmo da teoria do prprio Marx, designada
mente no que diz respeito ao trabalho. Para o fazer apoiar-nos-emos
ser o mundo uma merca dor ia ?
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nos raros autores que, a partir dos anos vinte, mas sobretudo nas
ltimas dcadas, contriburam para o desenvolvimento da crtica
do valor. De incio lmitamo-nos a fazer uma parfrase do texto de
Marx. As crticas que se podem fazer a propsito do texto, tanto
quanto a exposio de eventuais contradies internas, so depois
enunciadas no decurso do livro. Por outro lado, quando procedemos
ao resumo do texto de Marx, utilizamos certos conceitos, por exem
plo, valor de uso e trabalho concreto, tal como Marx os utiliza,
mesmo se posteriormente exprimimos reservas acerca do emprego
desses conceitos.
De seguida, o que tivermos estabelecido como ncleo vlido
da anlise marxiana no ser combinado de maneira eclctica com
outras anlises no intuito de colmatar pretensas lacunas. Tentaremos
antes mostrar que as leis que regulam a sociedade fetichista foram
igualmente objecto de outras investigaes, nomeadamente no
mbito da antropologia. Utilizando uma abordagem distante da de
Marx, autores como mile Durkheim, Mareei Mauss ou Karl Polanyi
contriburam com anlises muito importantes em domnios que escaparam aos marxistas tradicionais: a crtica do fetichismo e a crtica da
economia. No atingem, porm, o nvel de compreenso das formas
de base que distingue a obra de Marx.
Por outro lado, trataremos de colocar a crtica marxiana do valor
em oposio no apenas com o marxismo tradicional, mas tambm
com muitas teorias dos nossos dias que pretendem dizer verdades
crticas sobre o mundo moderno desprezando as categorias de Marx.
Esperamos, sobretudo, demonstrar que a teoria de Marx no uma
teoria puramente econmica que reduza a vida social aos seus
aspectos materiais sem levar em conta a complexidade da sociedade
moderna. Quem lana a acusao de economismo, tantas vezes
levantada contra Marx, inclusivamente esquerda, admite a con
tragosto que Marx pode ter razo na sua anlise do funcionamento da
produo capitalista. Mas ao mesmo tempo, quem assim fala afirma
que a produo material no seno um aspecto da vida social na
sua totalidade, enquanto Marx nada teria dito de vlido no que toca
15
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aos restantes aspectos. Para defrontar este subterfgio, caro a autores
como Bourdieu e Habermas, demonstraremos que Marx desenvol
veu uma teoria das categorias fundamentais que regulam a sociedade
capitalista em todosos seus aspectos. No se trata da distino bem
conhecida entre base e superestrutura, mas sim do facto de o
valor ser uma forma social total - para empregar uma formulao
antropolgica - que d ela mesma luz as diferentes esferas da socie
dade burguesa. No h, pois, necessidade de completar as ideias
econmicas de Marx sobre as classes com consideraes relativas
aos temas supostamente por ele negligenciados: a raa, o gender,
a democracia, a linguagem, o simblico, etc. Importa antes por emrelevo o facto de a crtica da economia poltica levada a cabo por
Marx, centrada na crtica da mercadoria e do respectivo fetichismo,
descrever a forma de base da sociedade moderna que existe antes
de toda e qualquer distino entre a economia, a poltica, a socie
dade e a cultura. Marx muitas vezes acusado de tudo reduzir
vida econmica e de negligenciar o sujeito, o indivduo, a imaginao
ou os sentimentos. Na verdade, porm, o que Marx fez foi simples-mente fornecer uma descrio implacvel da realidade capitalista. a
sociedade mercantil que constitui ela mesma o maior reducionismo
alguma vez visto. Para sair deste reducionismo preciso sair do
capitalismo, no da crtica do capitalismo. No a teoria do valor
concebida por Marx que se encontra ultrapassada, mas sim o prprio
valor.
No faz parte das nossas intenes propor uma releitura integral de
Marx. No obstante, esperamos contribuir para eliminar certos mal-
-entendidos muito difundidos, em parte responsveis pela pouca
atraco que o pensamento de Marx actualmente exerce sobre muita
gente que, pelo contrrio, deveria muito naturalmente procurar a a
sua inspirao. Refutar-se- a afirmao segundo a qual a teoria deMarx, sendo materialista e economista, seria incapaz de ler um mundo
dominado pela comunicao e pelo virtual. igualmente necessrio
escapar s limitaes impostas pela convico amplamente difundida
ser o mundo uma me rcado r ia?
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de que existe urna fractura entre o Marx cientfico e o Marx revo
lucionrio. Houve quem prodigalizasse elogios a Marx, enquanto
sbio, e ao mesmo tempo aplicasse todo o seu zelo na tentativa de
demonstrar que tal facto no implica que se haja de saltar para cima
das barricadas, e que cada qual pode tirar das investigaes dele as
concluses que entender. Quem assim procede procurou em geral
adaptar a teoria de Marx aos critrios supostamente objectivos da
economia poltica e da teoria da cincia burguesas. Por seu turno a
opo revolucionria cr igualmente na existncia dessa fractura, mas
para criticar uma suposta contradio entre a descrio cientfica e a
luta prtica. Na verdade, porm, precisamente o Marx do Capitalque pode ser entendido como o mais radical. Enquanto o Manifesto
Comunista, reputadamente muito radical, desemboca em reivin
dicaes frequentemente reformistas, a crtica da economia pol
tica do Marx tardio (mas tambm a Crtica do Programa de Qotha)
demonstra que toda a transformao social v se no chega a abolir
a troca mercantil.
Este livro pode ser lido em dois nveis: o texto principal esboa os pon
tos essenciais da teoria da mercadoria e do seu fetichismo resumindo
os escritos de Marx sobre essa matria e desenvolvendo a respec
tiva lgica at anlise do mundo contemporneo. Prope-se ser um
ensaio completo e pode ser lido por si s, sem as notas. As citaes,
excepo feita s do prprio Marx, e as referncias a outros autoresno so, no texto principal, muito numerosas. As notas no final de
cada captulo procuram ento aprofundar os desenvolvimentos con
tidos no texto: ou citando as passagens de Marx parafraseadas com
brevidade no texto principal, no intuito de demonstrar aos marxistas
tradicionais que no violentamos os textos sagrados: ou dando a
palavra aos autores que contriburam para estabelecer a crtica do
valor, para o que utilizamos sobretudo textos no publicados em
lngua francesa mas que merecem ser conhecidos: ou colocando em
contraste diferentes opinies sobre um qualquer assunto, para assim
melhor fundamentar a nossa: ou desenvolvendo, maneira de peque
17
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nos excursos, pontos no abordados no texto principal. Esperamos
que tais notas carreiem material novo para os leitores que desejem um
aprofundamento terico; contudo, a leitura das notas no indispen
svel para a apreenso do contedo essencial do texto.
O presente livro no pretende apresentar descobertas inditas.
A crtica do valor tem os seus antecedentes nos anos vinte com dois
trabalhos: Histria e conscincia de classe,de Gyrgy Lukcs, e os
Estudos sobre a teoria do valor, de Isaak Rubin. Continua depois
por entre as linhas dos escritos de Theodor Adorno, para encontrar
o seu verdadeiro nascimento por volta de 1968, quando em dife
rentes pases (Alemanha, Itlia, EUA) autores como Hans-JrgenKrahl, Hans-Georg Backhaus, Lucio Colletti, Roman Rosdolsky ou
Fredy Perlman trabalham em torno do mesmo assunto. Desenvolve-
-se posteriormente, a partir da segunda metade dos anos oitenta,
com autores como Robert Kurz, na Alemanha, Moishe Postone,
nos Estados Unidos, e Jean-Marie Vincent, em Frana, os quais,
sem contacto entre si, chegaram, por vezes literalmente, s mes
mas concluses. Como evidente, este facto no se explica por
um crescimento da inteligncia dos tericos, mas sim pelo fim do
capitalismo clssico: esse fim significou ao mesmo tempo o fim do
marxismo tradicional, desbloqueando assim a possibilidade de uma
perspectiva sobre um outro terreno da crtica social. Deste modo,
sucede que na sua maior parte as teses do presente livro j foram
sendo expostas aqui e ali ao longo das ltimas dcadas por diferentes autores, sobretudo na Alemanha, mas tambm em Itlia, nos
Estados Unidos e noutros locais. Se, apesar disso, este livro houver
de suscitar um certo interesse, ser pelo facto de tentar resumir de
um modo acessvel a um pblico no especializado um conjunto
de pesquisas que at aqui permaneciam dispersas em obras eru
ditas ou em revistas de circulao limitada. Cada um dos autores
que se ocuparam da crtica do valor examinou um aspecto parti
cular da questo, e quase sempre dirigindo-se a um pblico que se
pressupunha conhecer j a teoria marxiana do valor. Alguns deles
aplicaram-se em dissecar algumas pginas de Marx para delas extra
ser o mundo uma mercadoria?
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rem todos os frutos possveis; outros analisaram as actuais con
vulses econmicas ou a histria do sculo XX utilizando a crtica
do valor como uma espcie de pressuposto mudo que explica
vam em meia dzia de frases. No existe nenhum texto que pro
cure apresentar a crtica do valor na sua integralidade, comeando
pela anlise mais simples, a da relao entre duas mercadorias, para
progredir depois gradualmente do abstracto ao concreto e chegar
actualidade e s temticas histricas, literrias ou antropolgicas.
A teoria do fetichismo apresentada neste livro deve muito
revista Krisis e a alguns dos seus colaboradores. O autor participou
pessoalmente no desenvolvimento dessa teoria, e nas pginas queaqui se oferecem ao leitor ela encontra-se presente com maior fre
quncia do que possa julgar-se com base meramente nas citaes
explcitas. Contudo, o presente livro no representa de modo algum
uma condensao oficial das posies do grupo Krisis, que alis
entretanto se cindiu em dois grupos e duas revistas. Nenhum dos
autores que constituram o grupo Krisis responsvel pelo uso que
aqui feito das respectivas teses.
garantidamente mais fcil escrever sobre as multinacionais do
que sobre o valor, e mais fcil sair rua para protestar contra a
Organizao Mundial do Comrcio ou contra o desemprego do que
faz-lo para contestar o trabalho abstracto. No preciso grande
esforo mental para exigir uma distribuio diferente do dinheiro ou
um maior nmero de empregos. infinitamente mais difcil algumlevar a cabo uma crtica que recai sobre si prprio, enquanto sujeito
que trabalha e ganha dinheiro. A crtica do valor uma crtica do
mundo, mas uma crtica que no permite que se acusem de todos
os males do mundo as multinacionais ou os economistas neoli-
berais, continuando-se ao mesmo tempo a viver a prpria existncia
pessoal no seio das categorias do dinheiro e do trabalho, sem ter
a ousadia de as pr em causa por receio de se perder a aparncia
de razoabilidade. Tornou-se, porm, um absurdo acusar o sistema
capitalista de no fornecer trabalho e dinheiro suficientes. O tempo
das solues fceis passou. Este livro no se furta questo Que
19
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fazer?, mas simultaneamente no renega a sua condio de texto
terico que no constitui um guia para a aco.
Este livro ter alcanado o seu objectivo se conseguir transmitir
ao leitor a paixoque o seu autor sente pela temtica, aparentementeto abstracta, do valor. a paixo que nasce no instante em que se
tem a impresso de ter entrado na cmara onde esto guardados os
segredos mais importantes da vida social, os segredos de que depen
dem todos os outros.
Nas notas, cada citao identificada por uma sigla ou abreviatura que se encon
tra explicada na bibliografia final. No caso de todas as obras de Marx contidas nos
MarxEngelsWerke,das edies Dietz, indicamos tambm o nmero do volume
e o nmero da pgina dessa edio alem (por exemplo, M EW 23/49). O mesmo
acontece no caso de algumas citaes extradas da MarxEngelsQesamtausgabe
(por exemplo, MEGA, 11.5, pg. 643).
ser o mundo uma mercad or ia?
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NOTAS
1 Foi o prprio Marx quem aplicou os termos esotrico e exotrico a Adam
Smith (M EW 26.2/163, 166; Thories II, 185, 188 - trata-se da questo de
saber se Adam Smith penetra at essncia do processo global, ou se se
coloca do ponto de vista do capitalista individual), j antes Heinrich Heine e
os jovens hegelianos tinham aplicado estes termos a Hegel, e outros autores
aplic-los-iam mais tarde a Plato.2 Ser necessrio integrar tambm no conjunto dessas interpretaes marxistas
uma grande parte daquilo que ficou conhecido com o nome de marxismo
crtico. Os respectivos representantes limitaram-se em geral crtica e refu
tao - sem dvida, meritrias - da interpretao ortodoxa ou estalinista
da obra de Marx, por exemplo, nos livros de M. Rubel (Marx critique du
marxisme,Paris, Payot, 1974) e K. Papaioannou (Marx et les marxistes.Paris,
J'ailu, 1965, posteriormente Paris, Flammarion, 1972, 1984, L'ldologie froide.
Essai sur te dprissement du marxisme, Paris, Jean-jacques Pauvert, 1967).
Esses autores interessaram-se sobretudo pelo aspecto poltico da teoria de
Marx e pela sua crtica da ideologia, ao passo que concebiam a sua crtica
da economia poltica exactamente como o fazia a interpretao ortodoxa, ou
seja, acreditando que o respectivo fulcro se identificava com os conceitos de
classe, propriedade privada e trabalho vivo. Por vezes os tericos mais radi
cais acentuavam ainda mais estas noes, designadamente a luta de clas
ses, acusando os ortodoxos de as haverem adoado. A partir do momento
em que rejeitavam essas prprias noes (como a ontologia do trabalho
que julgavam poder reconhecer em Marx), tais intrpretes - por exemplo C.
Castoriadis ou Cl. Lefort - rejeitavam tambma crtica marxiana da economia
poltica, sem fazerem qualquer tentativa para criticar Marx por intermdio de
Marx, e sem sequer imaginarem que a chave para ultrapassar os conceitos
marxistas poderia encontrar-se no prprio Marx. Outros queriam conservar
a economia de Marx na sua interpretao tradicional, combinando-a porm
com os resultados de outras disciplinas particulares, como a lingustica, aantropologia ou a sociologia emprica. Dentro deste quadro, existe tambm
uma forte tendncia para rever a teoria de Marx luz da concepo burguesa
da democracia. O resultado ltimo de tais eclectismos foi em geral o aban
dono puro e simples das prprias categorias marxianas. Todas estas teorias
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tm em comum o facto de nunca encontrarem a sua referncia na crtica
marxiana quer do valor, quer da mercadoria, sendo incapazes de lhes atribuir
qualquer papel central. E por muito frequente que fosse em certa poca o
emprego dos termos fetichismo e alienao, a verdade que estes fen
menos nunca eram postos na dependncia da estrutura da mercadoria.
ser o mundo uma merca dor ia?
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2
A MERCADORIA, ESSA DESCONHECIDA
A dupla natureza da mercadoria
Que uma mercadoria? A questo parece estpida uma vez que
qualquer um sabe como responder. Uma mercadoria um objecto
vendido ou comprado que muda de mos mediante um pagamento.
Quanto se paga por ela coisa que depende do seu valor, e o valor
determinado pela oferta e pela procura. Paga-se a mercadoria com
dinheiro porque a troca directa s possvel nas sociedades muitoprimitivas. Se algum pergunta: quanto valem vinte metros de
tecido? A resposta ser: 20 Euros. A mercadoria, o dinheiro e o valor
so coisas bvias que se encontram em quase todas as formas
conhecidas de vida social a partir da pr-histria. P-las em discus
so pode parecer to insensato como contestar a fora da gravidade.
A discusso s possvel no que respeita ao capital e mais-valia, aos
investimentos e aos salrios, aos preos e s classes, ou seja, quando
se trata de determinar a distribuiodessas categorias universais que
regulam as trocas entre os homens. esse o terreno em que podem
manifestar-se as diferentes concepes tericas e sociais.
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Tais afirmaes so partilhadas por toda a gente, tanto por aque
les que consideram o sistema econmico contemporneo como
sendo algo de natural e a melhor soluo possvel, quanto pelos
que contestam a distribuio actual das mercadorias e do dinheiro.
Os que se reclamam de Marx no constituem excepo. E, contudo,
o prprio Marx tinha uma opinio diferente. O Capitalcomea com
uma anlise pormenorizada da estrutura da mercadoria, do valor e
do dinheiro. Claro est que se pode defender a ideia de que Marx
no faz mais do que resumir a coisas banais, j estabelecidas pelos
seus predecessores burgueses, como Adam Smith e David Ricardo,
e de que a sua prpria contribuio s comea com a anlise datransformao do dinheiro em capital. Contudo, o prprio Marx
sublinhou explicitamente que a sua anlise da mercadoria era a parte
mais fundamental e a mais revolucionria das suas investigaes.
precisamente com essa parte da sua teoria que Marx entende ter
feito uma das grandes descobertas da histria humana e ter resolvido
um enigma milenar: A forma valor, cuja configurao acabada a
forma moeda, muito simples e desprovida de contedo. Contudo,
h mais de dois mil anos que o esprito humano se esfora por pene
trar o respectivo segredo.1Seja como for, negligenciar as anlises
que Marx havia colocado no incio da sua principal obra foi uma
caracterstica constante de todas as variantes do marxismo tradicio
nal; as runas dessa tendncia constituem hoje mais uma razo que
deve incitar-nos a interessarmo-nos por aquilo que ela negligenciou.Poder-se-ia igualmente contra-argumentar que, de entre os milha
res de pginas que Marx escreveu dando corpo crtica da econo
mia poltica, a anlise da mercadoria e da forma valor ocupa apenas
uma parte relativamente pequena. Mas Marx chamou forma valor a
clula germinal de toda a sociedade burguesa, e toda a sua crtica da
economia poltica mais no do que uma explicao, uma demons
trao, um desenvolvimento daquilo que j est contido nessa anliseaparentemente anodina. Sem ela, Marx no teria escrito uma crtica
da economia poltica, mas simplesmente mais uma doutrina da eco
nomia poltica.
a mercador ia , essa de sconhec ida
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Poder-se-ia, enfim, afirmar que a anlise marxiana do valor no
clara e que obscurecida pela sua linguagem hegeliana, que a sua
gnese foi difcil, que existe em diferentes verses e que Marx, ao
longo de vinte e cinco anos, nunca conseguiu dar-lhe uma formadefinitiva2. Efectivamente, dentro da anlise a que Marx submete o
capital, a teoria do valor a parte cuja elaborao lhe custou maio
res esforos. Os textos, neste particular, apresentam obscuridades
e contradies que mesmo as melhores tentativas de interpretao
filolgica no puderam resolver completamente. Mas isso demons
tra precisamente que Marx se encontrava aqui na presena de um
terreno completamente novo, frente a um aspecto da vida social,um mistrio (como ele prprio lhe chama) to fundamental e to
pouco explorado que mesmo um esprito to subtil como o seu tinha
dificuldade em capt-lo e explic-lo. Mais uma razo para que tente
mos finalmente fazer com que essas intuies frutifiquem, sobretudo
porque esse mistrio , de algum modo, mais fcil de compreender
hoje do que na poca de Marx.
Na verso definitiva do captulo sobre a mercadoria, a que consta
da segunda edio do Capital (1873), Marx analisa a estrutura da
mercadoria da maneira mais simples possvel. Examina somente a
relao entre cinco ou seis mercadorias, abstraindo aparentemente
de tudo o resto, sobretudo dos respectivos proprietrios e de tudo o
que diga respeito ao contexto histrico ou social. Quase se fica com
a impresso de estarmos perante uma operao matemtica ou uma
exemplificao lgica. Contudo, no se trata nem da descrio de um
estado arcaico ou embrionrio que tivesse realmente existido, nem de
uma simples hiptese ou de um modelo que devesse ser posterior
mente verificado. Marx pretende ter identificado a forma celular3
da sociedade burguesa (ou capitalista, ou moderna). Esta forma no
existe em estado puro, in vitro,e s dificilmente se pode dissoci-ladas suas manifestaes empricas e concretas. Mas ela configura o
prprio tecido de todos os actos que, repetidos milhes de vezes por
dia em todo o mundo, constituem a vida social que conhecemos.
Na primeira frase do Capital, Marx chama mercadoria a forma
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elementar da riqueza das sociedades nas quais reina o modo de
produo capitalista4. A mercadoria elementar, no no sentido
de um pressuposto neutro, mas porque encerra j os traos essen
ciais do modo de produo capitalista. Essa clula germinal, como
Marx lhe chama tambm, contm contradies de base difceis de
reconhecer primeira vista, mas que depois se encontram em todas
as formas da vida econmica e social da sociedade moderna. Marx
tinha plena conscincia de que a sua anlise da forma valor era uma
novidade quase incompreensvel, tanto na forma como no contedo,
mesmo por parte de leitores bem intencionados e avisados. No pre
fcio primeira edio do Capital,escreve: portanto a compreenso do primeiro captulo, sobretudo na seco que contm a anlise
da mercadoria, que causar maior dificuldade [...]. Assim, portanto,
excepo feita seco sobre a forma valor, no se poder acusar este
livro de ser de difcil compreenso.5
A mercadoria no idntica ao bem ou ao objecto trocado.
antes a forma particular que uma parte, maior ou menor, dos bensassume em certas sociedades humanas. A mercadoria antes de mais
um objecto que no tem apenas um valor de uso, mas tambm um
valor de troca. Cada objecto que satisfaz uma qualquer necessidade
humana tem um valor de uso, o qual, contudo, enquanto tal, no
uma categoria econmica. Mas, na medida em que um objecto tro
cado em quantidades determinadas por outros objectos, possui tam
bm um valor de troca. Enquanto valores de troca, as mercadorias sconhecem determinaes quantitativas. Se algum troca uma camisa
por 30 quilos de batatas - no sentido de que as duas coisas tm o
mesmo preo estas mercadorias so tratadas como quantidades
diferentes de algo idntico que devem ter em comum. Enquanto valor
de uso, as mercadorias so totalmente incomensurveis: a camisa e
as batatas nada tm em comum. As relaes no interior das quais
as mercadorias so trocadas esto sujeitas a variaes contnuas e
portanto os respectivos valores de troca tambm. Mas num momento
dado, o mesmo produto trocado contra diferentes valores de troca
que so iguais entre si: uma camisa pode trocar-se por um grama
a mercador ia , essa desconhec ida
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de ouro, ou por dez quilos de trigo ou por um par de sapatos, etc.
portanto necessrio que estes diferentes valores de troca tenham,
em ltima anlise, algo em comum: o seu valor.
Esta substncia comum das mercadorias no pode ser seno o
trabalho que as criou: ele a nica coisa que h de idntico em mer
cadorias que de resto so incomensurveis6. O trabalho tem a sua
medida na respectiva durao, portanto na respectiva quantidade: o
valor de cada mercadoria depende da quantidade de trabalho que foi
necessria para a produzir. Nesta perspectiva pouco importa qual o
valor de uso em que esse trabalho se realiza. Uma hora utilizada para
fazer um vestido ou uma hora utilizada para fabricar uma bomba sempre um hora de trabalho. Se para fabricar a bomba foram neces
srias duas horas, o respectivo valor7 o dobro do valor do vestido,
sem levar em conta o valor de uso de cada um. A diferena quantita
tiva a nica que pode existir entre valores: se os diferentes valores
de uso que as mercadorias possam ter no contam para determinar
o respectivo valor, os diferentes trabalhos concretos que as criaram
tambm no contam. O trabalho que compe o valor no conta por
tanto seno como puro dispndio de tempo de trabalho, sem consi
derao pela forma especfica em que o tempo foi despendido. A esta
forma do trabalho, na qual se abstrai de todas as formas concretas
que lhe digam respeito, Marx chamou trabalho abstracto. Os valo
res das mercadorias no so ento outra coisa seno cristalizaes
dessa geleia que o trabalho humano indiferenciado8. O valor- que no dever confundir-se com o valor de troca - uma quanti
dade determinada de trabalho abstracto contido numa mercadoria.
A mercadoria assim a unidade do valor de uso e do valor, bem como
do trabalho concreto e do trabalho abstracto que a criaram.
Neste contexto, no se fala do trabalho que o indivduo concreto
empregou efectivamente para produzir a sua mercadoria. O valor
antes determinado pelo tempo que, numa certa sociedade e num
certo grau de desenvolvimento das foras produtivas, em mdia
necessrio para produzir a mercadoria em causa. Se uma hora sufi
ciente para fazer um vestido em condies mdias, ento o respectivo
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valor de uma hora, e o produtor que empregue uma hora e meia ser
remunerado somente por uma hora de trabalho. Marx chama a este
tempo o tempo de trabalho socialmente necessrio. Assim sendo,
qualquer alterao da produtividade do trabalho afecta o valor das
mercadorias. Se um novo invento permite que numa hora se produ
zam dez camisas em vez de uma, depois da difuso desse invento
cada camisa j s contm seis minutos de trabalho social, mesmo se
os indivduos que no podem recorrer ao dito invento continuam a
empregar uma hora para fazer uma camisa.
Como evidente, no se trabalha duas vezes para produzir uma
mercadoria, executando-se uma vez um trabalho concreto para produzir um valor de uso, e depois uma outra vez para produzir um valor
de troca. antes o mesmo trabalho que tem um duplo carcter:por
um lado trabalho abstracto e por outro lado trabalho concreto.
Enquanto trabalho concreto a infindvel diversidade de todos os tra
balhos que, em qualquer sociedade onde reine a diviso do trabalho,
produzem os diversos objectos. Este trabalho tem as suas diferenas
qualitativas: umas vezes trata-se de tecer, outras de conduzir um veculo, outras de cavar a terra, e assim por diante. Enquanto trabalho
abstracto, todos os trabalhos contam somente como dispndio pro
dutivo de matria cerebral, de msculo, de fora anmica, de fora
manual, etc., que consequentemente so em qualquer dos casos
trabalho humano9. O trabalho abstracto, o trabalho enquanto tal,
s conhece diferenas quantitativas: umas vezes trata-se de trabalhar
uma hora, outras vezes trata-se de trabalhar dez horas. Os trabalhos
mais complexos contam como uma forma multiplicada do trabalho
simples: uma hora de trabalho de um trabalhador muito especiali
zado pode valer dez horas de trabalho de um servente ou ajudante.
Esta contabilidade produz-se automaticamente dentro da vida econ
mica.
O trabalho abstracto e o valor que ele cria nada tm, portanto,de material e de concreto, antes so estritamente abstraces sociais.
O tecido fabricado pelo trabalho concreto do tecelo visvel, mas o
trabalho abstracto que o mesmo tecido contm no pode exprimir-se
a mercador ia, essa d esconhe c ida
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directamente. O valor que cria no tem existncia emprica, antes
existe apenas na cabea dos homens que vivem numa sociedade em
que os bens tomam habitualmente a forma mercadoria10. somente
o valor enquanto substncia comum das mercadorias que as torna
susceptveis de serem trocadas, precisamente porque as torna comen
surveis. Porm, esta substncia comum, ou seja, o tempo de traba
lho abstracto, uma abstraco que no pode manifestar-se, adquirir
uma forma sensvel, seno de modo indirecto: nas relaes de uma
dada mercadoria com outras mercadorias. Nada se diz quando se
afirma que vinte metros de tecido valem vinte metros cie tecido.
Mas pode exprimir-se o respectivo valor no valor de uma outra mercadoria, por exemplo se dissermos: vinte metros de tecido tm o valor
de um fato. Nesta equao, a primeira mercadoria, que exprime o seu
prprio valor, desempenha um papel activo e apresentada como
valor relativo; a segunda mercadoria, na qual a primeira exprime o
seu valor, funciona como equivalente".A mercadoria que est na
forma de valor relativo no pode ser ao mesmo tempo o equivalente
e vice-versa: a mercadoria que exprime o seu prprio valor no pode
ser a matria para a expresso da outra mercadoria. Mas nesta forma
simples ou acidental do valor, em que s esto presentes duas mer
cadorias, a relao ainda susceptvel de ser invertida. A equao
exprime o facto de as duas mercadorias terem a mesma substncia.
O ser-valor de uma mercadoria encontra portanto a sua forma na
forma natural, no valor de uso, de uma outra mercadoria. O valordo tecido, que enquanto tal uma abstraco, toma a forma do fato.
O trabalho abstracto, indistinto, que criou o valor do tecido, exprime-
-se no trabalho concreto que criou o fato. portanto na sua forma
concreta de valor de uso que o fato exprime o valor do tecido: para o
tecido, o valor, essa abstraco, toma a forma de um fato. No se trata
de uma qualidade que coubesse naturalmente ao fato, ao contrrio do
que se passa, por exemplo, com a respectiva capacidade de manter a
temperatura do corpo; o fato s possui essa outra qualidade na rela
o de valor com o tecido. Enquanto valor, o tecido perdeu as suas
caractersticas prprias e igual ao fato. O respectivo valor exprime-
29
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-se como sendo diferente do seu prprio valor de uso. preciso ter
sempre em mente a diferena entre valor e valor de troca: o valor, que
permanece abstracto, no perceptvel, exprime-se num valor de troca
perceptvel, designadamente a mercadoria com a qual a primeira mer
cadoria trocada. Em termos filosficos, ser-se-ia tentado a encarar
o valor enquanto substncia e o valor de troca enquanto a respectiva
forma fenomnica, apesar de, como veremos, a identificao do valor
com uma substncia colocar problemas.
Entretanto a verdade que no existem apenas duas mercadorias.
Os mesmos vinte metros de tecido podem igualmente trocar-se por
quantidades determinadas de todas as outras mercadorias. Chegamos
assim forma valor total ou desenvolvida: 20 metros de tecido = I
fato, ou = 10 libras de ch, ou = 40 libras de caf, ou = 2 onas de
ouro, ou Zitonelada de ferro, etc. Chegados aqui, o tecido exprime o
seu valor em todas as outras mercadorias, e torna-se evidente que o
respectivo valor indiferente forma particular de valor de uso sob a
qual surge12. E assim torna-se tambm mais fcil verificar que todos
os trabalhos representados nas diferentes mercadorias so iguais, sotrabalho abstracto, sem considerao da forma concreta na qual se
objectivam.
A forma valor total ou desenvolvida funciona de maneira difcil:
a sequncia de comparaes de valor sempre incompleta, uma vez
que aparecem constantemente novas mercadorias. Mais ainda: dessa
maneira, cada mercadoria tem uma forma de valor relativo diferente
da de qualquer outra mercadoria, e existe um nmero igual de formas
de equivalncia das quais nenhuma completa e vlida para todas as
mercadorias. Contudo, possvel inverter simplesmente a frmula: se
o tecido exprime o seu valor no ch, no caf, no ouro, etc., tambm
verdade que um fato, 10 libras de ch, 40 libras de caf, 2 onas de
ouro, etc., tm o mesmo equivalente em 20 metros de tecido. Obtm-
-se assim a forma de valor geral.As mercadorias exprimem agora o
seu valor: de maneira I ) simples, pois que o fazem numa s e nica
mercadoria e 2) unitria, pois que o fazem na mesma mercadoria.
A respectiva forma valor ao mesmo tempo simples e colectiva; em
a mercador ia, essa desconhec ida
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consequncia, geral.13Cada mercadoria exprime agora o seu valor
por intermdio da respectiva igualdade com o tecido, e dessa maneira
manifesta-se tambm a igualdade quantitativa de todas as mercado
rias que se trocam por 20 metros de tecido. O tecido, agora tornado
equivalente geral, tornou-se imediatamente trocvel contra todas
as outras mercadorias: A sua forma corprea passa por incarnao
visvel, por crislida social universal de todo o trabalho humano.14
A forma de valor geral pressupe que todas as mercadorias agem da
mesma maneira: as mercadorias tm que excluir uma de entre si da
forma valor relativa e fazer dela a forma equivalente geral, ou seja,
a matria da sua forma valor geral e unitria. Teoricamente toda equalquer mercadoria pode desempenhar este papel, mas necess
rio que uma tal excluso se fixe de maneira permanente sobre uma
dada mercadoria especfica. Em termos histricos foi o ouro que con
quistou esse lugar. Basta que substituamos o tecido pelo ouro para
obtermos a quarta forma, a forma dinheiro:20 metros de tecido, um
fato, 10 libras de ch, 4 0 libras de caf, etc., valem 2 onas de ouro.
Diferentemente do que se passava na transio da forma simples para
a forma desenvolvida e na transio da forma desenvolvida para a
forma geral, pode dizer-se que quase nada distingue a forma dinheiro
da forma geral. A possibilidade de troca, imediata e universal, toma
agora a forma do ouro. Se agora pusermos em vez de 2 onas de
ouro a respectiva forma preo, 20 Euros, obtm-se uma frmula
que toda a gente conhece: 20 metros de tecido = 20 Euros. A formadinheiro portanto uma simples consequncia do desenvolvimento
da forma mercadoria e encontra a sua razo de ser ltima na frmula:
20 metros de tecido = I fato, ou: x mercadoria A = y mercadoria B.
Desta maneira Marx entende ter resolvido ao mesmo tempo o enigma
da forma dinheiro que os seus predecessores (mas tambm os suces
sores) burgueses nunca haviam compreendido.
Esta anlise da mercadoria pode aparentar ser enfadonha e insig
nificante. Nela nada parece existir que se preste a contestaes, e,
por outro lado, nada parece decorrer dela que diga respeito especifi-
31
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camente sociedade capitalista ou que permita critic-la. De facto,
os marxistas no viram nada de explosivo nessas pginas em que
primeira vista Marx se limita a resumir o fundamento que a sua teoria
tem em comum com a economia poltica clssica que a antecede.
Mas, se a teoria do valor em Marx mais no fosse do que a doutrina
do valor trabalho da economia poltica burguesa clssica, sobre
tudo de David Ricardo, no se poderia compreender por que motivo
o prprio Marx considera precisamente a sua teoria do valor como a
mais importante das suas descobertas15.
De facto, o captulo sobre a mercadoria contm uma parte final
que, de modo algo enigmtico, se intitula: O carcter fetiche damercadoria e o seu segredo. Marx retira a algumas consequncias
daquilo que foi estabelecendo ao longo das pginas precedentes.
Nas quatro primeiras pginas deste subcaptulo utiliza as seguintes
expresses: segredo, subtilezas metafsicas, argcias teolgi
cas, misterioso, caprichos, forma bizarra, carcter mstico,
carcter enigmtico, quiproquo,forma fantstica, regio nebu
losa, enigma, hierglifos, misticismo. Torna-se evidente que
para Marx a mercadoria no algo de propriamente banal, mas bem
pelo contrrio um objecto que desafia a compreenso em termos
comuns. Chama-lhe uma coisa sensvel supra-sensvel, na qual as
relaes entre os homens se apresentam como coisas, e as coisas
como seres dotados de uma vontade prpria: O que h de misterioso
na forma mercadoria consiste, pois, simplesmente no facto de eladevolver aos homens a imagem dos caracteres sociais do seu pr
prio trabalho como caracteres objectivos dos prprios produtos do
trabalho, como qualidades sociais que essas coisas possuiriam por
natureza.16Na produo mercantil o processo de produo que
governa os homens, e ainda no o inverso17, e o seu movimento
social prprio tem para os indivduos que procedem a trocas a forma
de um movimento de coisas que eles no controlam, mas das quais,pelo contrrio, sofrem o respectivo controlo18. O fetichismo reside
desde logo no prprio facto de a actividade social tomar uma apa
rncia de objecto19na mercadoria, no valor e no dinheiro. E contudo
a mercador ia , essa desconhec ida
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os homens no tm conscincia dessa aparncia; produzem-na, sem
o saber, com os seus actos de troca, nos quais se impe constante
mente, como se fora uma lei natural, o tempo de trabalho socialmente
necessrio, enquanto elemento regulador. a forma dinheiro que faz
desaparecer a verdadeira relao das mercadorias por trs de uma apa
rncia de coisa: o facto, aceite por toda a gente, de que uma camisa
vale 20 Euros mais no do que um desenvolvimento da forma
valor simples, segundo a qual uma camisa vale 3 quilos de ch,
porque o ch representa nessa equao o trabalho humano abstracto.
Dito de outra maneira, um primeiro significado do termo fetichismo
o seguinte: os homens pem em relao os seus trabalhos privados, no directamente, mas somente numa forma objectiva, sob uma
aparncia de coisa, a saber, como trabalho humano igual, exprimido
num valor de uso. Contudo, no o sabem e atribuem os movimentos
dos seus produtos a qualidades naturais dos mesmos.
Marx compara explicitamente o fetichismo da mercadoria ao feti
chismo religioso, no qual os homens adoram os fetiches que eles pr
prios criaram e atribuem poderes sobrenaturais a objectos materiais.
Os marxistas tradicionais, tanto quanto os no-marxistas, quando
no preferiram simplesmente ignorar esta temtica marxiana ou
liquid-la como se de galimatas filosfico se tratasse, quase sem
pre interpretaram o fetichismo como uma mistificao,no sentido de
que a estrutura real da produo capitalista produz necessariamente
representaes falsas que lhe escondem o verdadeiro aspecto. Essamistificao existe, sem dvida, e por vezes (em particular no final
do terceiro volume do Capital)Marx utiliza a expresso fetichismo
sobretudo nesse sentido. Mas o breve captulo sobre o fetichismo que
citvamos h pouco, bem como outras observaes espalhadas ao
longo da sua obra, permitem chegar a uma concluso inteiramente
diversa: para Marx, o fetichismo no apenas uma representao
invertida da realidade, mas uma inverso da prpria realidade20.
E, neste sentido, a teoria do fetichismo o centro de toda a crtica
que Marx dirige aos fundamentos do capitalismo. Muito para l do
uso explcito da palavra fetichismo, o conceito de fetichismo como
33
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inverso atravessa toda a crtica da economia de Marx e encontra os
seus antecedentes nas obras filosficas de juventude. O carcter
fetichista da sociedade capitalista no um aspecto secundrio,
antes reside na sua prpria clula germinal. O fetichismo, o facto,
portanto, de para os homens as suas prprias relaes de produo
tomarem uma figura de coisa material, escapando ao seu controlo,
independente da sua actividade individual consciente, manifesta-se
em primeiro lugar no facto de os produtos do trabalho dos homens
tomarem universalmente a forma de mercadoria21. Longe de ser uma
superestrutura pertencente esfera mental ou simblica da vida
social, o fetichismo reside nas prprias bases da sociedade capitalista
e impregna todos os seus aspectos. Pode-se de pleno direito falar de
uma identidade entre a teoria do valor e a teoria do fetichismo em
Marx.O valor e a mercadoria, longe de serem esses pressupostos
neutros de que falvamos inicialmente, so categorias fetichistas que
do fundamento a uma sociedade fetichista. Para Marx, o homem
moderno, cuja actividade reveste a forma de uma mercadoria ou serepresenta num valor, corresponde ao selvagem que adora um dolo
de madeira, e um quilo de batatas comprado num supermercado
no mais racional do que um totem. A categoria do fetichismo,
originariamente tomada de emprstimo histria da religio, surge
- esperamos demonstr-lo - como muito mais capaz do que todas as
doutrinas econmicas acadmicas de explicar, por exemplo, as crises
financeiras contemporneas. Convm, pois, regressar anlise mar-
xiana da mercadoria e pr em relevo o carcter fetichista da mercado
ria enquanto tal22.
7\ abstraco real
A dupla natureza da mercadoria no coisa muito difcil de
compreender. J Aristteles a havia analisado: Assim, uma sandlia
pode servir de calado, mas tambm de objecto de troca.23Mesmo a
dupla natureza do trabalho incorporado numa mercadoria foi reco-
a mercador ia, essa desconhec ida
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nhecida, embora de maneira imperfeita, pela economia poltica cls
sica. Uma mercadoria singular relativamente fcil de compreender.
O fetichismo s comea na relao entre duas mercadorias24.
Segundo Marx, todos os aspectos essenciais esto j contidos na
forma valor simples: 20 metros de tecido = I fato. Continua depois
dizendo que o segredo de toda a forma valor reside nessa forma
valor simples. portanto a anlise dessa forma simples que apre
senta a verdadeira dificuldade.25 a essa anlise que Marx consagra
maior nmero de pginas; a forma valor total, a forma geral e a forma
dinheiro decorrem depois rapidamente como meras consequncias.
O facto de se colocar em equivalncia duas mercadorias, que apa
rentemente a coisa mais evidente deste mundo, contm j todo o
modo de socializao que distingue o capitalismo. Na primeira edi
o do Capital,Marx diz que a forma primeira ou simples do valor
relativo um pouco difcil de analisar porque simples, acrescen
tando em nota de rodap: Ela , por assim dizer, a forma celular ou,
como diria Hegel, o emsi do dinheiro.26
A mercadoria contm em si mesma uma contradioque vem luz do dia na respectiva relao de troca com uma outra mercadoria:
o seu valor de uso e o seu valor - consequentemente a existncia da
mercadoria enquanto representao de uma quantidade de trabalho
abstracto - no existem pacificamente um ao lado do outro, antes
entram numa relao de conflito. A oposio interior a cada merca
doria no se pode exprimir seno constituindo dois plos: torna-se
uma oposio exterior, uma relao entre duas mercadorias, das quais
uma conta apenas como valor de uso, a outra (o equivalente) apenas
como valor de troca. A forma valor simples tambm a forma mais
simples e menos desenvolvida em que esta oposio aparece. por
isso que difcil de compreender, e por isso tambm que nela se
encontra j encerrado todo o segredo do modo de produo capita
lista. O desenvolvimento dessa forma tambm o desenvolvimento
dessa oposio interna.
Na forma valor, o trabalho abstracto contido numa mercado
ria manifesta-se no corpo de uma outra mercadoria, no valor de uso
35
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desta outra mercadoria. Mas a igualizao do produto do trabalho
com uma outra mercadoria na qual se exprime imediatamente o tra
balho social no de maneira alguma um processo inocente ou um
procedimento puramente tcnico. Trata-se antes de uma inverso,da
qual Marx enumera as trs manifestaes mais importantes, logo na
anlise da forma valor simples. O valor de uso torna-se a forma feno
mnica do seu contrrio, o valor27: uma coisa sensvel, o corpo de
uma mercadoria, representa uma coisa sobrenatural, supra-sensvel,
puramente social: o valor. O trabalho concreto torna-se a a forma
fenomnica do seu contrrio, do trabalho humano abstracto28: o tra
balho abstracto, que no criou o tecido, mas sim o valor do tecido,utiliza para exprimir esse valor o trabalho concreto do alfaiate que fez
o fato. Neste exemplo, o trabalho do alfaiate o equivalente imedia
tamente trocvel com todas as outras mercadorias. Por fim, escreve
Marx, o trabalho privado torna-se a a forma do seu contrrio, torna-
-se trabalho sob forma imediatamente social29: o trabalho privado,
no momento em que entra na troca, torna-se o mesmo trabalhoqueo de todos os participantes na troca.
A mercadoria portanto a unidade de duas determinaes da
mesma coisa, determinaes estas que no so simplesmente dife
rentes, mas das quais uma exclui a outra: o valor de uso o contrrio
do valor, o trabalho concreto o contrrio do trabalho abstracto, o
trabalho privado o contrrio do trabalho social. Assim, a mercadoria
contm um conflito perptuo e dinmico; ela tem portanto de procurar formas que permitam a essas contradies existir sem a fazerem
explodir imediatamente. Na forma valor, uma mercadoria serve para
exprimir de modo sensvel o valor de uma outra mercadoria. Isto
significa que a forma concreta de uma mercadoria, o seu valor de uso,
o seu corpo sensvel, incarnam a qualidade supra-sensvel de uma
outra mercadoria. Contudo, os sujeitos atribuem mercadoria comose fosse uma qualidade natural o facto de ela ter um certo valor ou
um outro valor30. Os sujeitos no executam conscientemente um
tal processo; por trs das costas dos sujeitos que se passa a inverso
na qual o objecto concreto e sensvel no conta seno como incarna-
a mercador ia, essa desconhec ida
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o do valor abstracto e supra-sensvel. Na inverso que caracteriza
logo a mercadoria singular, o concreto tornase um simples portador
do abstracto. Oconcreto s tem existncia social na medida em que
serve ao abstracto para que este d a si mesmo uma expresso sen
svel31. E se a mercadoria a clula germinal de todo o capitalismo,
isso significa que a contradio entre o abstracto e o concreto nela
contida regressa em cada estdio da anlise, constituindo de algum
modo a contradio fundamentalda formao social capitalista.
Se a mercadoria uma categoria fetichista, porque o trabalho
que constitui o respectivo valor trabalho abstracto: Este carcter
fetiche do mundo das mercadorias, como a nossa precedente anlise j demonstrou, provm do carcter social prprio do trabalho
que produz mercadorias.32 Mas - poder-se-ia objectar -, por que
motivo a abstraco ter de ser entendida como coisa negativa?
O pensamento, dir-se-ia, no pode existir sem resumir os elementos
que vrias coisas tm em comum, ou seja, sem abstrair da respectiva
diversidade. Nada h de mal em colocar os ces, os gatos, as lebres
e os cavalos na mesma categoria, a do animal, mesmo se o animal
enquanto tal no existe. De igual modo, poder-se-ia ainda continuar,
impossvel que os homens troquem os seus produtos sem que redu
zam, no plano do pensamento, os seus diversos trabalhos concretos
ao facto de haver sido empregue trabalho; esta abstraco um sim
ples meio auxiliar, tcnico.
De facto neste ltimo sentido que o conceito de trabalho abs
tracto foi empregue pela economia poltica clssica. Esta, depois de
ter ultrapassado as teorias que atribuam a qualidade de criar valor
apenas a um certo tipo de trabalho - os mercantilistas atribuam-na
exclusivamente ao trabalho de extraco de metais preciosos, a dou
trina dos fisiocratas ao trabalho na agricultura -, reconheceu no tra
balho, sem qualquer qualificativo, a fonte do valor. Mas ao faz-lo
a economia poltica clssica seguiu um procedimento analtico noqual se retiram gradualmente a um objecto todas as suas determina
es para o reduzir ao seu elemento mais simples, como quando se
reduzem todos os homens, na sua diversidade, a uma certa estrutura
37
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qumica que comum a todos, tanto ao bosqumano como ao impe
rador do Japo. No propriamente um erro, mas seria impossvel
explicar a diferena (cultural, histrica, social) entre o bosqumano
e o imperador do Japo com base na estrutura qumica que lhes
comum. De igual maneira, por intermdio de um processo puramente
mental possvel chegar concluso de que todas as mercadorias
so constitudas por alguma forma de trabalho. Esta digresso do
complexo ao simples, resume-a Marx nos dois primeiros subcaptulos
da anlise a que submete a mercadoria. Mas seria um enorme erro
- embora frequente - pensar que Marx partilha desse ponto de vista
e que o seu conceito de trabalho abstracto o mesmo que Smith eRicardo haviam obtido mediante a sua reductio ad unum.De facto o
trabalho sem mais que se obtm pela via desta reduo indepen
dente de toda a determinao social e existe em todas as sociedades.
Trata-se de um puro facto fisiolgico: o dispndio de trabalho fsico
ou mental.
Com a sua anlise da forma valor no terceiro subcaptulo do
primeiro captulo do Capital, Marx toma o caminho inverso, que
muito mais difcil, um caminho em que se mostra totalmente hege-
liano e em que abandona completamente o mtodo da economia
poltica. Marx quer agora explicar agneselgica - no a gnese his
trica - das categorias encontradas na realidade emprica, em vez de
as aceitar como meros dados. Trata-se, para Marx, de explicar como
e por que razo as formas de base abstractas se tornam os fenmenos visveis superfcie. Desta maneira desvela a respectiva relao
de pertena a uma certa formao social, em vez de ver nelas dados
naturais presentes em toda a parte, como sucede com a economia
poltica burguesa.
O trabalho abstracto analisado por Marx no um pressuposto
indeclinvel sem consequncias especficas, como porventura o factode ser preciso respirar para viver. Pelo contrrio, o trabalho abstracto,
no sentido marxiano, existe somente no capitalismo e a sua carac
terstica principal. Marx refere-se a ele como sendo todo o segredo
e o ponto axial: Fui o primeiro a por o dedo, de maneira crtica,
a mercador ia, essa desconhec ida
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sobre essa natureza bfida do trabalho contido na mercadoria. Como
em torno deste ponto axial que gira a compreenso da economia
poltica, convm esclarec-lo um pouco mais neste contexto.33
O trabalho abstracto, cujo conceito Marx estabelece, no a gene
ralizao mental de que falvamos h pouco, mas sim uma realidade
social, uma abstraco que se torna realidade. Vimos acima que, se
todas as mercadorias devem ser trocveis entre si, o trabalho contido
nas mercadorias deve igualmente ser imediatamente trocvel. S o
pode ser se for igual em todas as mercadorias, ou seja, se se tratar
sempre do mesmo trabalho. O trabalho contido numa mercadoria
dever ser igual ao trabalho contido em todas as outras mercadorias. Na medida em que se representam no valor, todos os trabalhos
valem somente enquanto dispndios da fora humana de trabalho.
O respectivo contedo concreto apagado; os trabalhos equivalem-
-se todos entre si. No se trata aqui de uma operao puramente
mental: de facto, o valor dos diferentes trabalhos representa-se numa
forma material, o valor de troca, que nas condies mais evoludas
toma a forma de uma quantidade determinada de dinheiro. O dinheiro
representa algo de abstracto - o valor -, e representa-o enquanto
algo de abstracto. Uma soma de dinheiro pode representar qualquer
valor de uso, qualquer trabalho concreto. Onde a circulao de bens
for mediada pelo dinheiro, a abstraco tornou-se algo de bastante
real. Podemos ento falar de uma abstraco real34. A abstraco de
toda e qualquer qualidade sensvel, de todos os valores de uso, no uma espcie de resumo mental, como sucede quando se abstrai
dos diferentes gneros de animais para falar de o animal, que con
tudo no existe enquanto tal. A melhor expresso da essncia desta
abstraco real encontra-se numa passagem da primeira edio que
Marx, infelizmente, no reproduziu nas edies seguintes: como
se a par e margem dos lees, dos tigres, das lebres e de todos os
outros animais reais que em grupo constituem os diferentes gneros,espcies, subespcies, famlias, etc., do reino animal, existisse ainda
o animal, a incarnao individual de todo o reino animal. Uma tal
singularidade, que compreende em si mesma todas as espcies real-
39
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mente existentes da mesma coisa, um universal,como por exemplo
animal, Deus,etc.35
A mistificao contida na abstraco mercantil bem real; ela
constitui a verdadeira natureza deste modo de produo: O facto
de uma relao de produo social se apresentar sob a forma de um
objecto existente fora dos indivduos e de as relaes determinadas
nas quais estes entram no processo de produo da sua vida social se
apresentarem como propriedades especficas de um objecto constitui
essa inverso, essa mistificao no imaginria, mas de uma prosaica
realidade,que caracteriza todas as formas sociais do trabalho criador
de valor de troca. No dinheiro ela limita-se a aparecer de maneiramais notria do que na mercadoria.36O dinheiro no representa os
valores de uso na sua multiplicidade, antes a forma visvel de uma
abstraco social, o valor. Na sociedade mercantil, cada coisa tem
uma dupla existncia, enquanto realidade concreta e enquanto quan
tidade de trabalho abstracto. este segundo modo de existncia que
se exprime no dinheiro, que merece portanto ser chamado abstraco
real principal. Uma coisa uma camisa ou uma ida ao cinema e ao mesmo tempo 10 ou 20 Euros. Esta qualidade do dinheiro no
pode ser comparada com nenhuma outra coisa; ela situa-se para l
da dicotomia tradicional entre o ser e o pensamento, dicotomia para
a qual uma coisa ou existe somente na cabea, sendo pois imaginria
- esse o sentido habitual do termo abstraco -, ou, pelo contrrio,
efectivamente real, material, emprica37. Trata-se de uma forma de
realidade para cuja anlise a dialctica hegeliana constitui o melhor
instrumento, como teremos ainda ocasio de sublinhar.
Enquanto o trabalho concreto se realiza sempre em alguma coisa
- material ou imaterial, num bem ou num servio38 -, o trabalho
abstracto no pode exprimir-se de modo directo porque produz uni
camente uma forma social. Tem pois necessidade de se exprimir deuma maneira indirecta no valor de troca: em termos prticos, no
dinheiro. Nas trocas sociais, os actores no tm conscincia do facto
de que os valores das coisas mais no so do que representantes de
a mercador ia, essa desconhec ida
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unidades de trabalho. O valor de troca esconde o facto de que so
as quantidades de trabalho incorporadas que determinam os valores
das mercadorias, e no as respectivas qualidades naturais. Aqui pode
falar-se efectivamente de uma dissimulao. Mas Marx coloca tam
bm uma outra questo, uma questo mais radical: por que razo o
trabalho, a actividade produtiva, toma a forma do valor? O valor j
uma forma de abstraco, por confronto com a actividade real. No
apenas a representao do valor na forma valor - o valor de troca
- que fetichista, mas tambm, a montante, a representao do tra
balho vivo no valor. Se todo o valor se dissolve em trabalho, ento
parece lgico concluir-se, como faz a economia poltica burguesa,que todo o trabalho se representa em um valor. Estes dois termos
seriam equivalentes, e ento a nica questo seria a de saber quanto
valor contm uma mercadoria, e no sob que forma o trabalho se
tornou valor. Mas Marx censurava a economia poltica clssica por
ter chegado a esta concluso interessando-se exclusivamente pelo
aspecto quantitativo do valor: A economia poltica analisou de facto,
ainda que de maneira imperfeita, o valor e a dimenso do valor, e des
cobriu o contedo escondido sob estas formas. Mas nunca colocou
ao menos a simples questo de saber por que motivo este contedo
toma aquela forma, e portanto por que razo o trabalho se exprime
no valor e a medida do trabalho pela respectiva durao se exprime
na dimenso do valor do produto do trabalho.39Os marxistas, por
seu turno, tambm prestaram muito pouca ateno a esta questo.Acharam normal que o trabalho se tornasse valor e concentraram a
sua crtica na representao infiel do trabalho no dinheiro. Porm, h
que admitir que o prprio Marx nem sempre separou rigorosamente
estes dois nveis: a passagem do trabalho ao valor e a passagem do
valor ao valor de troca.
A diferena entre o Marx exotrico e o Marx esotrico existe
mesmo no interior da anlise que faz do valor e visvel nas suas
flutuaes no que respeita determinao do valor40. Para refutar a
concepo segundo a qual um facto natural, comum a todas as
sociedades, a criao do valor por parte do trabalho, preciso criticar
41
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tambm a concepo segundo a qual o trabalho est contido no
valor, valor, cria o valor. Mas Marx, ele prprio, utiliza frequen
temente estas expresses tpicas de Smith e de Ricardo, para quem
o trabalho cria o valor como o padeiro faz o po (Kurz). Noutros
contextos Marx diz antes que o trabalho se representa no valor,
o que coisa bastante diferente. Mas no presta ateno suficiente
necessidade de se demarcar da concepo naturalista dos seus
predecessores. At aqui temos vindo a reproduzir essas hesitaes
na nossa parfrase do discurso de Marx, simplesmente porque fazem
parte desse discurso. Daqui em diante passaremos a levar em linha
de conta a diferena entre o valor contido e o valor representado,diferena a que havemos de regressar.
absolutamente necessrio eliminar um outro mal-entendido muito
divulgado nestes ltimos anos, segundo o qual o trabalho abstracto
e o trabalho concreto de que Marx fala seriam dois tipos diferentes
de trabalho. Em Marx, estas categorias nada tm a ver com o con-
tedo do trabalho, e nem sequer com a organizao do trabalho.
E menos ainda se trata de dois estdios diferentes do processo de
trabalho. O trabalho no comea por ser concreto, para depois se
tornar abstracto. O trabalho abstracto, no sentido de Marx, nada
tem a ver com a parcelarizao do trabalho, com a sua fragmentao
em unidades destitudas de sentido, ou com a respectiva desmate
rializao - recentemente tem havido quem com frequncia tenhaposto a noo de trabalho abstracto em relao com a importncia
crescente do trabalho imaterial. O trabalho abstracto no nem o
trabalho fragmentado na linha de produo, nem o trabalho do infor
mtico. Consequentemente falso dizer-se que o trabalho abstracto
substitui cada vez mais o trabalho concreto, ou que o trabalho se
torna cada vez mais abstracto. Logo no primeiro texto que retomou
o conceito marxiano de trabalho abstracto, ou seja, em Histria e
conscincia de classe, de Gyrgy Lukcs (1923), esta interpretao
do conceito de trabalho abstracto desempenha um papel importante.
A tnica que Lukcs coloca sobre a abstraco produzida pela
a mercador ia, essa desconhec ida
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parcelarizao do trabalho decorre do facto de, nesse livro, o autor
atribuir diviso do trabalho uma importncia muito maior do que
aquela que o prprio Marx, na sua obra tardia, lhe conferiu. Marx
escreveu, por exemplo, o seguinte: Ora, tanto quanto exacto dizer
que a troca privada supe a diviso do trabalho, inexacto dizer que
a diviso do trabalho supe a troca privada.41A diviso do trabalho
seria portanto uma categoria mais vasta do que a da troca privada, a
base do capitalismo, e em consequncia a diviso do trabalho no
conduz necessariamente ao capitalismo.
Segundo a teoria marxiana da duplicao, na produo de mer
cadorias todo o trabalho ao mesmo tempo abstracto e concreto:
Do que precede resulta que, se no existem dois tipos de trabalho
na mercadoria, o mesmotrabalho recebe nela contudo determinaes
diferentes e opostas entre si, segundo se reporte o trabalho ao valor
de uso dessa mercadoria enquanto respectivo produto, ou ele seja
reportado ao v