3
01

Bicicleta (Ebbios - Lese Pierre)

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Texto por Ebbios e Ilustração por Lese Pierre."Nunca dei pra isso de ser escritora, por isso penso em compor a autobiografia do que não vivi. Parece que na minha existência há mais um não viver do que fatos."

Citation preview

Page 1: Bicicleta (Ebbios - Lese Pierre)

01

Page 2: Bicicleta (Ebbios - Lese Pierre)

Nunca dei pra isso de ser escritora, por isso penso em com-por a autobiografia do que não vivi. Parece que na minha existência há mais um não viver do que fatos. Nunca, por exemplo, tive um cachorro.  Nem nunca morri ainda. Parece óbvio dito assim: viver é não ter morrido nunca. Tive certa vez, caminhando na rua, um pensamento que me deixara atônita, quando numa esquina me vi indecisa sobre pegar a minha direita ou continuar, com espanto percebi que es-tava ali, e estar ali significava ter evitado a morte antes e tanto... — Escrever é salgado como o suor que sai da pele. Às vezes sinto uma dorzinha da saudade de não me ter sido outra. É como dor de cólica, que é como uma fisgada na nossa existência tranquila, que é como uma gota fria numa ducha quente, que é como vírgula no lugar errado, que é como... Para entender uma coisa a gente precisa entender outra coisa que lhe valha em peso. Nisso de não ser escritora eu caibo certinho — as palavras me confundem. Quisera eu ter existido flor. Dói saber que nunca serei flor na vida. Flor ou fruta. Melhor até, esta ultima. Nenhum inventor no mundo será capaz em sua invenção de superar a natureza espontânea de uma fruta. Veja: a mexerica, essa perfeição do acaso. Em pequena eu detestava, hoje sei tanto do seu

Gravura do artista afogadence (PE - 1982) Lese Pierre. Produzida em São Paulo no dia 02 de janeiro de 2013. [lesepierre.com.br]

B i c i c l e t a EBBIOS LIMA

POESIA S e em cer ta a ltura t ivesse voltado para a es-

querda em vez de para a dire ita , se em cer to momento

t ivesse dito s im em vez de não, ou não em vez de s im,

se em cer ta conversa t ivesse dito as f rases que só agora ,

no meio-sono, e laboro. S e tudo isso t ivesse s ido ass im,

ser ia outro hoje , e ta lvez o universo inte iro ser ia insen-

s ivelmente levado a ser outro também.

Álvaro de Campos

03

Page 3: Bicicleta (Ebbios - Lese Pierre)

sabor, de sua ácida doçura, de como já nasce em pedaços de mordida. Nós, a gente toda, tínhamos tudo para sermos espontâneos qual o crescimento das frutas. Eu soube outro dia de um rapaz que criara uma língua tão simples que po-deria ser dita por todos os povos. Todos se ouviriam atentos e se compreenderiam. Sugiro, pois, que se reinvente nosso silêncio. Que nos ouçamos com os olhos.

Escrever dói. É isso! Faço-o agora com a respiração presa, de um fôlego só.  Percebo tanto o que não vivi, é tão clara essa minha ignorân-cia em não ter sido o rapaz que limpou as janelas daquele edifício, os pés que pisou as uvas do vinho que bebo, Klimt ao conhecer as obras de Lautrec, Lautrec ao conhecer as pernas das dançarinas de cancan, uma criança chinesa — é espantoso! nunca saberei como é ter sido criança na china.Minha autobiografia será um grito no vácuo sem atmos-fera. Começará comigo andando de bicicleta. Digo por não ter aprendido nunca a andar de bicicleta. Quando mocin-ha, minha irmã me carregava sentada sobre o quadro en-quanto pedalava. Lembro-me de sentir o som de seu arfar em minha nuca, provavelmente por conta daquele peso a mais que eu era. Eu, tão miúda, não pensava no peso que eu era. Nunca vivi essa felicidade simples de pedalar por conta própria. É preciso perder o medo de cair para se equilibrar direito sobre duas rodas. Eu, de tanto medo de cair, caía; até que desisti.  No fim da tarde de hoje vi o brilho do sol na poeira das coisas, e vi uma moça, uma bela jovem — lembrava-me as atrizes dos filmes de Godard — andando de bicicleta no silêncio das calçadas. Era como ver alguém lograr o tempo, esse silêncio dela que ia. O vestido todo florido e uma nu-dez nos olhos (Minha Senhora Padroeira dos Olhos Nus, proteja sempre aqueles olhos, amém!). Quis perguntar-lhe o que sentia quando andava em sua bicicleta. Passou e con-tinuou indo até depois de ficar pequena na distância, lá no final de mim. 

2. Gustav Klimt (Baumgarten, Viena, 14 de julho de 1862 — Viena, 6 de fevereiro de 1918) foi um pintor simbolista austríaco.Em 1876 estudou desenho ornamental na Escola de Artes Decorativas. Associado ao simbolismo, destacou-se dentro do movi-mento Art nouveau austríaco e foi um dos fundadores do movimento da Secessão de Viena, que recusava a tradição académica nas artes, e do seu jornal, Ver Sacrum. Klimt foi também membro honorário das universidades de Munique e Viena. Os seus maiores trabalhos incluem pinturas, murais, esboços e outros objetos de arte, muitos dos quais estão em exposição na Galeria da Secessão de Viena.

3. Henri Marie Raymond de Toulouse-Lautrec Monfa (Albi, 24 de Novembro de 1864 — Saint-André-du-Bois, 9 de Setem-bro de 1901) foi um pintor pós-impres-sionista e litógrafo francês, conhecido por pintar a vida boêmia de Paris do final do século XIX. Sendo ele mesmo um boêmio, faleceu precocemente aos 36 anos de sífi-lis e alcoolismo. Trabalhou por menos de vinte anos mas deixou um legado artístico importantíssimo, tanto no que se refere à qualidade e quantidade de suas obras, como também no que se refere à populari-zação e comercialização da arte. Toulouse-Lautrec revolucionou o design gráfico dos cartazes publicitários, ajudando a definir o estilo que seria posteriormente conhecido como Art Nouveau. Filho mais velho do Conde Toulouse-Lautrec-Monfa, de quem deveria herdar o título, falecendo antes do pai.

04