Corporativismo, Pluralismo e Conflito Distributivo no Brasil

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Artigo escrito no início de 1993, saiu na Dados em meados de 1995 (vol. 38, n. 3, pp. 417-457). Tenho sentimentos meio ambivalentes em relação a ele, mas bem que ele rendeu algum feedback favorável, e volta e meia alguém me pede ele - antigo demais para estar acessível no Scielo...

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Corporativismo, Pluralismo e Conflito Distributivo no Brasil*

Bruno P. W. Reis

For where Rousseau seemed to hold that because factions and leadership must be avoided in the perfect state, it was therefore unnecessary to provide institutions for dealing with them, Madison evidently believed that precisely because it could not be avoided in an optimal state, it was necessary to provide institutions for dealing with them. (Robert A. Dahl, After the Revolution? Authority in a Good Society, New Haven, Yale University Press, 1970, p. 83.)

1. EM TORNO DO CONCEITO DE CORPORATIVISMO 1.1. Pluralismo e Corporativismo o debate que se vem produzindo contemporaneamente no Brasil em torno do tema da modernizao das relaes entre capital e trabalho no Pas (e de ambos com o Estado), o uso depreciativo da palavra corporativismo talvez seja uma das poucas quase-unanimidades estabelecidas. No h unanimidade, porm, quanto ao que se quer dizer com o termo. H dois sentidos mais ou menos estabelecidos na literatura nacional para o conceito, ambos pejorativos, assim descritos por Fbio Wanderley Reis, que tem insistentemente discordado da postura dominante:A primeira verso do presente trabalho intitulada Inflao, Conflito Distributivo e Corporativismo: Elementos para uma Reforma Institucional das Relaes entre Capital e Trabalho no Brasil foi elaborada nos primeiros meses de 1993, quando eu ainda no era membro da UFMG, graas a uma bolsa fornecida pelo Programa de Extenso e Pesquisa sobre a Reforma Institucional Brasileira, iniciativa da Universidade financiada pela Fundao de Desenvolvimento da Pesquisa Fundep/UFMG. Quero agradecer aos responsveis pelo programa, profs. Olavo Brasil de Lima Jr., Celson Jos da Silva e William Ricardo de S, tanto pelo apoio recebido quanto pela autorizao para publicar o trabalho independentemente. Elaborado em circunstncias um tanto desfavorveis, que me impediam de dedicar ao trabalho o tempo devido, o texto encontra-se consideravelmente modificado na presente verso, embora as concluses e as linhas gerais da argumentao tenham sido mantidas. Devo ainda agradecer ao prof. Luiz Werneck Vianna, do Iuperj, pela generosidade e o incentivo de sempre, bem como ao prof. Fbio Wanderley Reis, do DCP/UFMG, e a dois pareceristas annimos de Dados, pelas crticas que ajudaram a melhorar sensivelmente o texto. A responsabilidade, porm, pelo contedo do trabalho , naturalmente, exclusivamente minha.*

N

2A idia de corporativismo acha-se estreitamente ligada, entre ns, com os traos ditatoriais do Estado Novo e com o fascismo, e a expresso corporativismo significa antes de mais nada controle autoritrio por parte do estado apesar de que seja tambm usual um outro sentido (no menos negativo) da palavra, que se refere defesa egosta de interesses estreitos, particularmente de categorias ocupacionais. (F. Reis, 1989b, pp. 512.)

Reis aponta o notvel contraste dessa condenao unnime do corporativismo observada no Brasil com a atitude adotada alhures, mencionando particularmente o nimo positivo com que presentemente se fala da necessidade de concertacin corporativa em alguns pases hispano-americanos (F. Reis, 1989a, p. 92). Independentemente do que se passa no Brasil, todavia, o tema do corporativismo efetivamente problemtico, a comear pelo fato de que assim como quase todos os ismos apresentado ora como um fenmeno (um tipo especfico de articulao e representao de interesses privados junto ao estado), ora e, a meu ver, um tanto indevidamente como uma corrente terica especfica, crtica da chamada teoria poltica pluralista, rtulo tradicionalmente associado ao mainstream da Cincia Poltica produzida nos Estados Unidos. A prpria expresso pluralismo, a propsito, tambm objeto de confuso semelhante, e um problema relativamente grave que essa dupla confuso acarreta que em parte como conseqncia de divergncias existentes entre autores das duas correntes comeou-se a conceber pluralismo e corporativismo como fenmenos no simplesmente diferentes, mas antes opostos, muitas vezes concebidos em grandes linhas como as duas formas polares e opostas de mediao poltica entre o estado e as classes sociais confrontadas no mbito do mercado. Veremos que essa oposio no to bvia como se poderia supor, e que, submetidos os conceitos a um escrutnio mais rigoroso de seus significados e origens, as diferenas entre ambos tornam-se bastante mais sutis do que usualmente se concebe a ponto de se poder observar que, conforme o autor que se consulte, pluralismo e corporativismo muitas vezes parecem quase sinnimos. Antes, porm, de prosseguir nesse inventrio semntico, talvez caiba uma rpida meno forma como tem sido posta usualmente a distino entre pluralismo e corporativismo. Pois, em razo das ambigidades acima referidas associadas prpria significao do termo, h diferenas relevantes entre os diversos autores que lidam com o corporativismo, que vo desde a afirmao de que pluralismo e corporativismo constituem paradigmas analticos alternativos, at a afirmao de que so apenas os extremos ideais de um continuum dentro do qual se movem e se enquadram os diversos tipos empiricamente observveis de relaes entre o estado e o mercado. Para os que consideram existir uma ruptura terica entre o pluralismo e o corporativismo, o papel terico desempenhado pelo

3 estado em cada esquema conceitual costuma ser o ponto crucial que distingue o arcabouo pluralista do corporativista: afirma-se uma passagem do estado passivo pluralista ao estado ativo dos tericos do corporativismo (entre estes o estado passaria a ser o ncleo da anlise).1 Um outro ponto, talvez mais importante do que tentar precisar o lugar do estado nesta ou naquela abordagem, era levantado j em 1964 ou seja, uma dcada antes de Philippe Schmitter (1974) ressuscitar o tema do corporativismo , quando Theodore Lowi afirmava que os autores comumente identificados com o paradigma pluralista no costumavam levar devidamente em conta a estratificao social. Para Lowi, a fragilidade bsica da abordagem pluralista estava em no reconhecer que nem todas as coalizes eram equivalentes (Lowi, 1964, pp. 679-80). Mais recentemente, tambm Suzanne Berger fez um breve histrico da evoluo do enfoque pluralista na Cincia Poltica da segunda metade do sculo. Segundo o seu relato, na viso pluralista dos anos 50 os grupos de interesse se formavam como emanaes espontneas da sociedade, atravs de uma natural aglutinao de interesses convergentes (Berger, 1981, p. 5). No se problematizava a questo da produo de uma convergncia entre os propsitos dos membros e propsitos organizacionais, presente na literatura moderna pelo menos desde 1911, quando Robert Michels (1966, esp. parte 6, pp. 333-71) enunciou a sua famosa lei de ferro da oligarquia, mas que s viria a retomar impulso a partir da segunda metade da dcada de 60, quando Mancur Olson (1965) deu expresso formal quele problema ao trazer para a Cincia Poltica o individualismo metodolgico tpico da economia, num trabalho pioneiro cujos reflexos hoje ocupam um dos ramos mais frutuosos da produo terica da cincia social contempornea. Mas, alm do problema da formao de um grupo e da racionalidade da adeso a ele cerne das preocupaes de Olson , Berger (1981, p. 7) insiste tambm na relevncia do problema da autenticidade da representao, pelo grupo, do interesse de seus membros formulado por Michels com toda a clareza no incio do sculo, mas infelizmente ignorado por boa parte da literatura pluralista. Todas essas crticas, dirigidas sobretudo a partir de meados da dcada de 70, contra as formulaes tericas tpicas dos autores chamados pluralistas por outros autores que lidavam de alguma forma com o tema do corporativismo fizeram com que a disputa fosse muitas vezes referida como um debate entre pluralistas e corporativistas. Some-se a isto a carga ideolgica pondervel que ambas as expresses carregam, e a confuso est1

Para um detalhamento das diversas abordagens do tema, um levantamento recente encontra-se em Arajo e Tapia (1991).

4 armada. O pluralismo, associado ao regime democrtico, e, sobretudo, democracia americana, visto por autores, digamos, crticos como propaganda ideolgica do sistema americano. Do outro lado, porm, o corporativismo est tradicionalmente associado a nada menos que o fascismo, o que faz os chamados corporativistas contorcerem-se em neocorporativismos, corporativismo social oposto a estatal etc. Algumas das razes das grandes dificuldades envolvidas na tentativa de se estabelecer uma polarizao tout court entre pluralismo e corporativismo ficam evidentes se nos damos ao trabalho de uma consulta ao Dicionrio de Poltica, editado por Bobbio, Matteucci e Pasquino (1986). Pois ali os verbetes sobre pluralismo (Bobbio, 1986a) e corporativismo (Incisa, 1986) so surpreendentemente convergentes.2 Em sua origem, ambos os conceitos esto apoiados na defesa dos corpos intermdios na poltica, e opem-se reduo da poltica relao direta entre o estado e o indivduo. De maneira prxima quela que comumente se encontra nos textos sobre o tema, assim Ludovico Incisa, autor do verbete sobre o corporativismo, define o seu objeto:O corporativismo uma doutrina que propugna a organizao da coletividade baseada na associao representativa dos interesses e das atividades profissionais (corporaes). Prope, graas solidariedade orgnica dos interesses concretos e s frmulas de colaborao que da podem derivar, a remoo ou neutralizao dos elementos de conflito: a concorrncia no plano econmico, a luta de classes no plano social, as diferenas ideolgicas no plano poltico. (Idem, p. 287.)

Incisa indica-nos tambm aquela que pode ser a raiz da avaliao negativa que hoje se faz da idia de corporativismo. Nos primrdios da Revoluo Industrial, com o desmantelamento do aparelho corporativo remanescente da Idade Mdia, tem-se em vista remover todo o interesse intermedirio entre o interesse particular do indivduo e o interesse geral do estado e considera-se o esprito de corporao incompatvel com o processo de modernizao do sistema poltico e com a industrializao. No plano poltico, o modelo corporativo passa a se apresentar, portanto, como alternativa do modelo representativo democrtico (idem, 1986, p. 287). Podemos, sem dvida, detectar nessas rpidas amostras do verbete sobre corporativismo muito dos traos organicistas comumente apontados como tpicos do princpio corporativista e, apressadamente, opostos ao pluralismo, freqentemente identificado com2

David Nicholls (1974, pp. 54-5) tambm mostra como a doutrina pluralista levou, muitas vezes, defesa de variadas formas de corporativismo e mesmo de formas corporativas de gesto da indstria, tendo alguns desses pluralistas inclusive vindo a se tornarem simpatizantes do fascismo.

5 princpios individualistas e/ou liberais. Norberto Bobbio, porm, autor do verbete sobre o pluralismo, no se esquece de apontar na doutrina dos corpos intermdios, de Montesquieu, uma das fontes histricas do pluralismo moderno, que , segundo Bobbio, ao mesmo tempo antiestatal e antiindividualista. Rejeita, simultaneamente, a centralizao de todo o poder nas mos do estado e a atomizao individual da sociedade. Busca uma sociedade articulada em torno de ncleos de poder que se situem abaixo do estado e acima dos indivduos (Bobbio, 1986a, pp. 928-9). (Nunca podemos esquecer que mesmo o pluralismo democrtico americano usualmente referido como teoria dos grupos.) Atacando ainda os crticos da doutrina dos corpos intermdios os ardorosos modernizadores vitorianos que ajudaram a opor o corporativismo ao modelo representativo democrtico , Bobbio prossegue:A supresso dos corpos intermdios como proteo do interesse geral contra o predomnio dos interesses particulares baseava-se em duas hipteses destinadas a no se concretizarem: a fuso de todos os indivduos que constituam o corpo da nao na vontade geral e da vontade geral na expresso genuna do interesse comum, e a lenta mas inexorvel limitao dos poderes do estado, medida que fosse ocorrendo a transio (segundo as falazes previses do evolucionismo positivista) das sociedades militares do passado irreprimvel sociedade industrial. (Idem, p. 929.)

Creio ser quase dispensvel chamar a ateno do leitor para a gritante afinidade entre o princpio corporativista e o pluralismo tal como compreendido por Bobbio. Ambos tm em comum a preocupao bsica de fugir contraposio exclusiva entre o indivduo, de um lado, e o estado, do outro, evitando, simultaneamente, tanto o estatismo quanto o individualismo. Um caso particularmente notvel o da doutrina social catlica, que, ao mesmo tempo, tem destaque como propagadora do corporativismo e apresentada como uma das principais variantes do pluralismo (Incisa, 1986, p. 288; Bobbio, 1986a, p. 932). parte as pretenses de neutralizao total de conflitos embutidas em alguns enunciados do princpio corporativista, de fato uma tarefa rdua traar uma linha que distinga claramente a prtica dos sistemas corporativistas tal como existem nas democracias europias contemporneas, de um lado, do ideal pluralista tal como definido por Bobbio, do outro. Um exemplo eloqente dessas afinidades encontra-se em Alan Cawson, quando este, dedicando-se a tentar mostrar o que o corporativismo no excluindo assim, curiosamente, algumas das principais mazelas comumente associadas ao corporativismo brasileiro , termina por apresentar uma caracterizao do corporativismo de bvio e profundo parentesco com a noo de pluralismo aqui exposta por Bobbio:

6Clearly the argument that policy is determined and implemented in negotiation between the state and interest organisations presupposes that state agencies exercise power in their own right, which means that the state system must be to a greater or lesser extent autonomous. If it lacks autonomy and is colonised by private interests, then there is no corporatism. Conversely, if the state is completely autonomous and independent, and interest organisations in society are subordinate to state agencies in each sphere of public policy-making, then there is no corporatism. (Cawson, 1986, p. 19, grifos meus.)

Portanto, ainda que se admita alguma diferena de nfases, as convergncias apresentadas entre o modelo pluralista e o modelo corporativista so notveis. Estaria a distino em que o primeiro um associativismo livre e o segundo um associativismo controlado pelo estado? Mas, neste caso, seremos forados a admitir que no existem nas democracias contemporneas os casos extremos que nos permitiriam o estabelecimento de uma distino polar entre os dois tipos, apenas variaes de grau relativamente sutis ao longo de um continuum. Ou ser que decisivo o princpio definidor de cada um? Uma concepo competitiva versus uma concepo organicista da sociedade. Ora, ambos so, em certa medida, organicistas, na medida em que rejeitam a oposio pura e simples entre o estado e o indivduo, e ressaltam o papel dos grupos contraposto pulverizao social eventualmente derivada de concepes extremadamente individualistas da sociedade. Uma pista importante para se detectar precisamente o que, afinal, est em jogo nesta discusso pode ser encontrada na distino que Incisa traa entre um corporativismo tradicionalista (catlico) e um outro corporativismo dirigista (fascista). Para Incisa,[...] enquanto o corporativismo tradicional essencialmente pluralista e tende difuso do poder, o corporativismo fascista monstico (no por acaso que est filosoficamente ligado ao idealismo), tenta reduzir unidade, quela unidade dinmica que ambio do sistema, todo o complexo produtivo. No corporativismo tradicional, as corporaes se contrapem ao estado; no corporativismo fascista, as corporaes esto subordinadas ao estado, so rgos do estado. (Incisa, 1986, p. 289, grifos meus.)

Conclui ainda Incisa que o corporativismo dirigista (fascista) constitui, em relao ao corporativismo tradicional (catlico), uma ruptura radical, embora no seja difcil construir sua genealogia fazendo-o derivar, por meio do nacionalismo, do corporativismo tradicional (idem, p. 291). Ora, se Incisa pode afirmar que o corporativismo tradicional essencialmente pluralista e tende difuso do poder, e que nele as corporaes se contrapem ao estado, ento a distino que resta forte entre regimes autocrticos e regimes democrticos, entre a possibilidade ou no do indivduo optar livremente por sua filiao associativa, entre a maior ou menor presena de critrios adscritivos de insero

7 na sociedade e no mais entre o corporativismo e o pluralismo simplesmente. Resta tambm a contaminao da palavra corporativismo pelo fantasma do fascismo, o que acabou por engendrar uma contraposio diametral indevida com o pluralismo, fonte de inmeras confuses e disputas mal colocadas. Transportando esta discusso para a anlise do caso brasileiro, talvez possamos constatar que temos em nosso sistema poltico mais resqucios de traos fascistas ou, mais genericamente, autocrticos do que propriamente corporativistas, e aqui as palavras so importantes, pois a condenao unnime do corporativismo, a persistir, certamente poder criar srios obstculos construo de um adequado mecanismo institucional de intermediao de interesses no Pas. Em certa medida, como lembra Fbio W. Reis em diversos trabalhos (cf., por exemplo, F. Reis, 1991b, pp. 147-50), a tarefa mesma de construir a democracia parece envolver necessariamente o problema de se construir o corporativismo adequado, isto , formas de aglutinao de interesses privados e sua legtima representao junto ao estado, como condio mesma da adeso desses atores privados s regras que do vida ao estado democrtico. Impe-se reconhecer, portanto, que h, sim, uma ruptura radical e uma enorme diferena de princpios entre os regimes democrticos contemporneos e regimes autocrticos de corte fascista. Mas extremamente problemtica a sua transposio tout court para uma polaridade pluralismo-corporativismo. Para enfrentarmos de maneira rigorosa esta questo preciso reconhecer que o pluralismo e o corporativismo tm origem comum, e pelo menos em uma de suas verses a catlica so rigorosamente idnticos; so, simplesmente, a mesma coisa, combatendo os mesmos inimigos: o arbtrio estatal, de um lado, e o temor de uma eventual pulverizao social decorrente de uma leitura extremada do princpio individualista, de outro. Talvez a polarizao se tenha instalado no debate contemporneo, afinal, em virtude do reconhecimento tcito, unnime, da universalidade e da inevitabilidade da presena de corpos intermdios entre os indivduos e o estado em qualquer sistema poltico moderno, exceo (possvel) dos sistemas totalitrios, o que afasta o debate do problema da justificao da presena desses corpos e o leva para o tema do papel a ser por eles desempenhado. Constatada, para o bem ou para o mal, sua irremedivel existncia em um regime democrtico, ao estudioso realista somente restaria discutir a natureza jurdica dessa existncia, se entidade de direito pblico ou privado, se rgo do estado ou associao livremente constituda. Da que eventualmente se acabe reduzindo a dicotomia a duas palavras que j significaram a mesma coisa (a defesa da presena dos corpos intermdios na poltica), atribuindo-lhes contedo positivo ou

8 negativo conforme associaes de idias eventualmente mesmo esprias que estas palavras nos inspirem. Mas convm ainda ressaltar que mesmo a as distines no so fceis, e inmeras ambigidades permeiam toda a histria da constituio dos sistemas de intermediao de interesses atualmente existentes mesmo em muitas das melhores democracias contemporneas. Por exemplo, os sistemas de intermediao de interesses existentes hoje na Europa Ocidental so pluralistas ou corporativistas? Creio que muitos de ns estaramos prontos a afirmar que so pluralistas, tendo em vista seu carter evidentemente democrtico, para qualquer parmetro de comparao histrica. Mas Schmitter fez questo de neg-lo expressamente, e o nome que se vem consagrando na literatura para designar o sistema de intermediao de interesses vigente nas democracias europias neocorporativismo.3 Mais: o papel inevitavelmente central do estado na constituio de todos os sistemas de intermediao de interesses hoje vigentes na Europa foi enfaticamente destacado por Claus Offe em artigo sugestivamente intitulado A Atribuio de Status Pblico aos Grupos de Interesse atribuio esta inevitvel para a eficcia e, acima de tudo, para a legitimao da participao desses grupos na formulao de polticas. Ao fim e ao cabo, todas as distines entre corporativismo e neocorporativismo, corporativismo estatal e corporativismo social etc. referem-se, como veremos, no aos sistemas em si mesmos, mas sim ao contexto em que operam, se democrtico ou fascista, se sob regimes de maior liberdade de organizao ou sob regimes ditatoriais ou autoritrios.4 Em uma palavra, resta como varivel crucial o grau de adscrio social presente no sistema, isto , a medida da liberdade de escolha de sua

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Se levamos em considerao as razes da expresso pluralismo tal como explicitadas por Bobbio, a negativa de Schmitter parece assentar-se em bases um tanto problemticas. possvel, todavia, que ele estivesse reservando o termo pluralismo apenas para processos de barganha de interesses americana, nos quais inexistem sistemas estruturados que atribuam status pblico a grupos promotores de interesses privados (como se d tipicamente na Europa) e a barganha concentra-se sobretudo em lobbies informais que se do nos gabinetes da administrao pblica, longe dos olhos do pblico. Se for esse o caso, porm, no me parece justificvel, em princpio, a presuno desfavorvel a priori em relao ao corporativismo, quando contrastado com esse pluralismo. A formulao original deste argumento encontra-se na crtica da distino schmitteriana entre corporativismo social (societal) e corporativismo estatal, levada a cabo por Fbio W. Reis (1988, p. 39). A crtica de F.W. Reis encontra-se detalhada um pouco mais abaixo (nota 5), quando me refiro rapidamente contribuio de Schmitter. Uma ilustrao exemplar desse argumento pode ser encontrada em Domenico Settembrini (1986, p. 1191), que afirma que a prxis reformista da socialdemocracia supe uma poltica de colaborao institucionalizada e permanente entre o estado, as empresas e os trabalhadores, de inevitvel teor corporativista. E prossegue: a Sozialpartnerschaft [...] possui na ustria um precedente no modelo do fascismo de Dollfuss (1933-1934), a que se assemelha externamente, dele se distinguindo claramente apenas pela democraticidade. (Grifo meu.)

9 prpria filiao associativa de que desfruta o indivduo nascido nesta ou naquela sociedade. Podem, claro, sob o ponto de vista estritamente legal, restar traos autoritrios em um sistema engendrado sob regime ditatorial que depois atravessa um perodo de democratizao. Pode-se certamente afirmar que este , em larga medida, o caso do Brasil, onde a liberdade de organizao hoje plena, mas remanescem na legislao dispositivos de inspirao autoritria que, formalmente, ainda subordinam os sindicatos tutela governamental. Mais importante que isso, porm, talvez seja constatar que, de maneira largamente independente da legislao especfica em vigor, as extremas desigualdades e as profundas clivagens socioeconmicas que historicamente compem o cenrio brasileiro introduzem por si mesmas fortes elementos de adscrio na estrutura social do Pas, que vm a se constituir em graves obstculos democratizao efetiva das relaes sociais no Brasil.

1.2. Algumas das Vrias Acepes de Corporativismo: Um Breve Levantamento Assinaladas, portanto, algumas das limitaes mais evidentes relacionadas discusso do tema do corporativismo, quando posta nos termos pr-pluralismo/antipluralismo, cabe prosseguir num breve apanhado das principais contribuies ao estudo do corporativismo nas ltimas duas dcadas. Poderemos constatar que muitas vezes autores diversos se reportam a fenmenos bastante variados quando falam de corporativismo. Alguns, como Howard Wiarda (1974), chegam ao ponto de consider-lo uma terceira via de desenvolvimento, alternativa tanto ao capitalismo quanto ao socialismo. Tomando o estado como a varivel independente em sua anlise, Wiarda define o corporativismo ibero-americano como um fenmeno principalmente cultural. ngela Arajo e Jorge Tapia (1991, pp. 6-7) destacam algumas das limitaes mais imediatamente evidentes desse enfoque: em primeiro lugar, ele no explica a existncia de estruturas corporativistas em outros contextos culturais; em segundo lugar, no explica a inexistncia delas em pases latino-americanos como Colmbia e Equador. Arajo e Tapia (idem, p. 8) mencionam tambm os que pensam em sociedades corporativistas, como o caso, por exemplo, de Rogowski e Wasserspring (1971), que concebem corporativismo como um tipo de comportamento e no de estruturas polticas que busca prioritariamente o bem-estar dos grupos sobre o bem-estar dos indivduos. uma acepo freqentemente encontrada na imprensa brasileira, que denuncia o

10 corporativismo dos sindicatos ou de determinados estamentos burocrticos do Pas. Independentemente da duvidosa propriedade de se usar o termo com esse sentido, creio que a esta altura do texto j ficou suficientemente claro que no disso que estou tratando no presente trabalho. Aqui procuro tratar do fenmeno que Arajo e Tapia designam como corporativismo estrutural, concebido como uma srie de instituies polticas destinadas a processar, dentro do aparelho estatal, os conflitos de interesses que tm lugar no mbito da sociedade civil ou melhor, do mercado e que termina por atribuir status pblico a grupos representantes de interesses privados especficos. O ponto de partida da literatura recente ligada a esse assunto o j mencionado artigo de Philippe Schmitter (1974), que assim define corporativismo:[...] um sistema de representao de interesses cujas unidades constituintes so organizadas em um nmero limitado de unidades singulares, compulsrias, no competitivas, hierarquicamente ordenadas e funcionalmente diferenciadas, reconhecidas ou licenciadas (quando no criadas) pelo estado, s quais concedido monoplio de representao dentro de sua respectiva categoria em troca da observncia de certos controles na seleo de seus lderes e na articulao de demandas e suporte (Schmitter, 1974, apud Arajo e Tapia, 1991, p. 9).

Central no trabalho de Schmitter tambm a distino, por ele introduzida, entre corporativismo estatal e corporativismo social. O primeiro se refere a instituies corporativas criadas pelo estado geralmente um estado autoritrio e, por isto mesmo, controladas por ele. Tpico de sociedades hierarquizadas e desmobilizadas, o corporativismo estatal submeteria a legitimidade dos mltiplos interesses privados a um suposto interesse nacional. muito comumente utilizado para caracterizar as instituies corporativistas brasileiras, bem como as dos demais pases latino-americanos onde existam. O corporativismo social, por outro lado, supostamente aquele que emerge mais espontaneamente da mobilizao e organizao da sociedade (de baixo para cima), ficando preservada a autonomia dos atores envolvidos perante o estado. Seria tpico dos pases de capitalismo avanado e das economias de bem-estar, e seu fundamento jurdico repousaria no mbito do direito privado. Embora largamente utilizada em trabalhos sobre o assunto, a distino acima absolutamente no est isenta de aspectos problemticos, e tem ensejado freqentes simplificaes que conduzem a uma caricatura pobre dos eventos que tiveram lugar tanto aqui como nas democracias mais avanadas na histria da construo dos sistemas

11 de intermediao de interesses existentes.5 Preliminarmente, cabe o alerta de que o termo corporativismo social no se refere a um tipo qualquer de corporativismo que seja inerente a uma determinada sociedade. importante lembrar que no h nenhum componente cultural nesse conceito, uma vez que Schmitter pretende lidar com o que Arajo e Tapia chamaram de corporativismo estrutural, que se debrua sobre as diferentes instituies que processam, em diferentes sociedades, os interesses divergentes dos diversos grupos (ou classes) sociais. Feita esta advertncia conceitual preliminar, podemos ir mais ao cerne da questo e lembrar que muitos autores contestam a suposta espontaneidade da gnese das instituies do chamado corporativismo social dos pases avanados. Claus Offe, por exemplo, como j foi mencionado, um dos que ressalta fortemente o papel do estado na conformao dos grupos de interesse. Ele aborda, tambm, a complexa questo do carter5

De fato, e a despeito de sua generalizada utilizao na literatura contempornea, a distino entre corporativismo social e estatal parece assentada em bases um tanto precrias, e uma slida crtica construo de Schmitter pode ser encontrada em Fbio W. Reis: Dada a ressonncia alcanada pela distino de Schmitter, curioso observar que ele no estabelece uma diferena real entre os dois casos de corporativismo enquanto tal, isto , enquanto casos de corporativismo. Se se toma a passagem em que a distino diretamente confrontada e elaborada [Pike e Strich, eds., 1974, pp. 102-6], v-se que Schmitter se refere insistentemente seja: 1) ao processo pelo qual se atinge um ou outro tipo, chegando formulao sinttica de que as origens do corporativismo social (societal) se encontram na decadncia lenta e quase imperceptvel do pluralismo avanado [pases de maior tradio liberal-democrtica], enquanto as origens do corporativismo estatal se encontram na morte rpida e altamente visvel do pluralismo nascente [casos como Portugal, Brasil, Grcia, Itlia fascista] (idem, p. 106); seja 2) s caractersticas mais ou menos autoritrias do sistema poltico como um todo em que cada tipo estaria embebido ou ao qual estaria associado (idem, p. 105) apesar de que o prprio Schmitter denuncie na literatura a tendncia de fazer submergir o corporativismo em alguma configurao poltica mais ampla tal como o estado orgnico ou o regime autoritrio (idem, p. 91). Estruturalmente, ou seja, enquanto sistema de representao de interesses em que o estado se articula com unidades de representao que so limitadas em nmero, compulsrias, nocompetitivas, hierarquicamente ordenadas, funcionalmente diferenciadas e monopolizadoras (de acordo com a definio geral de corporativismo, idem, p. 93), no se indicam diferenas entre os dois tipos, de sorte que os rtulos correspondentes se mostram, ao cabo, apenas designaes alternativas para algo como um corporativismo que anda em boas companhias e outro que anda em ms companhias, o que afeta a respeitabilidade de cada um. (F. Reis, 1988, p. 39.) Outra crtica tipologia de Schmitter pode ser encontrada em Cohen e Pavoncello (1987), que mostram como a noo de corporativismo social contradiz a prpria definio geral de corporativismo apresentada por Schmitter, pois, se o corporativismo definido como um sistema em que o estado controla os grupos de interesse [...], como pode o corporativismo social ser um subtipo do corporativismo? (idem, p. 119, traduo minha). Para Cohen e Pavoncello, o fator crucial que determinar o controle ou no dos grupos pelo estado ser o controle, por este ltimo, dos recursos necessrios manuteno daqueles - o que ajuda a explicar o maior controle comumente exercido sobre organizaes de trabalhadores quando comparado quele exercido sobre associaes patronais. Sendo assim, eles procuram manter descries institucionais de sistemas de intermediao de interesses analiticamente separadas de questes de poder (idem, p. 118, traduo minha).

12 pblico ou privado dos grupos de interesse, demonstrando ser esta uma questo muito mais rdua do que nos faz crer a absoro apressada da tipologia de Schmitter. No obstante, ele salienta a pobreza da anlise que concebe o corporativismo basicamente como forma de controle, uma vez que no apenas classes sociais (tal como concebidas em grandes clivagens fundamentais, como burguesia e proletariado, por exemplo), mas tambm os mltiplos receptores de polticas (policy takers) potenciais, tais como contribuintes, aposentados, estudantes etc., so clientes potenciais de estruturas corporativas. Offe no chega, porm, a aceitar inteiramente as premissas da escola pluralista norte-americana e a atribuir idntico peso analtico atuao de todo e qualquer grupo de interesse, j que ele no deixa de reconhecer que o corporativismo, inegavelmente, produz fortes impactos sobre a dinmica do conflito de classes (Offe, 1989b, p. 247), que permanece como o conflito central na obra de Claus Offe apesar de algumas hesitaes recentes (Offe, 1989a). Alm disso, Alan Cawson (1986, p. 45) nos lembra que necessrio distinguir o relacionamento lobbstico entre grupos de presso e governos a que basicamente se reportava a teoria pluralista americana do relacionamento institucional entre estado e grupos corporativos. As diferenas de enfoque, porm, no vo muito alm disso. No se deve exagerar a dimenso da ruptura terica eventualmente existente entre os estudiosos que hoje se dedicam ao fenmeno do corporativismo e o ncleo das reflexes dos autores chamados pluralistas dos anos 50 e 60, pois mediante uma anlise um pouco mais detida das contribuies de alguns autores ao tema especfico do corporativismo podemos ilustrar facilmente os vnculos e a continuidade existentes no aparato terico utilizado. Alfred Stepan (1980, p. 74, apud Arajo e Tapia, 1991, p. 12), por exemplo, que utiliza a distino de Schmitter entre corporativismo estatal e social, introduz dois subtipos na categoria do corporativismo estatal: o inclusivo e o excludente. interessante observar que Stepan faz questo de se referir a polticas inclusivas ou excludentes, e no mais a regimes. Isto porque ambas as caractersticas podem se aplicar a um mesmo sistema em diferentes momentos histricos, o que nos faz perceber que j no se trata mais de caractersticas de um determinado modelo institucional de corporativismo, mas sim de implicaes distintas que um mesmo sistema pode produzir conforme mudem as circunstncias polticas em que opera. Kenneth Paul Erickson, em seu captulo dedicado gesto de Almino Afonso frente do Ministrio do Trabalho em 1963, traa uma excelente ilustrao da possibilidade de se utilizarem instituies corporativas

13 supostamente controladoras e autoritrias contra a prpria finalidade para a qual elas haviam sido, presumivelmente, criadas (Erickson, 1979, cap. V, pp. 117-37).6 Mas outro o aspecto decisivo sob o qual a contribuio de Stepan pode se mostrar interessante aqui. Trata-se do fato de que a descrio por ele feita da lgica de funcionamento do corporativismo estatal (inclusivo/excludente) pode claramente apoiar-se na clssica descrio do processo poltico elaborada por E.E. Schattschneider em seu The Semi-Sovereign People. Com um esquema interpretativo bastante semelhante ao dos estudos identificados como pluralistas, Schattschneider concebe a poltica como um jogo de presses e contrapresses exercidas por representantes de interesses em conflito, jogo este que tem os seus parmetros e mesmo o resultado fundamentalmente determinados por dois fatores: a clivagem e a abrangncia (scope) do conflito. A clivagem diz respeito, basicamente, definio da agenda poltica, que ir determinar os termos da polarizao poltica bsica (quem est de um lado e quem est do outro lado). Para Schattschneider, o desenvolvimento de um conflito inibe o desenvolvimento de outros, o que faz com que a definio de alternativas, ao delimitar o leque das escolhas possveis, seja freqentemente mais importante que a prpria escolha entre elas (Schattschneider, 1975, pp. 63-6). J a abrangncia do conflito relevante porque, dada a clivagem prevalecente, o resultado do conflito poder pender para um lado ou para o outro, dependendo da medida em que o sistema poltico trouxer para dentro da arena uma maior ou menor parcela da populao, ou seja, dependendo do mbito ou da abrangncia social do conflito poltico. O interesse da elaborao de Schattschneider para os propsitos do presente trabalho reside em que a alternncia de momentos inclusivos e excludentes na dinmica do corporativismo estatal, tal como descrita por Stepan, pode perfeitamente ser interpretada luz das categorias introduzidas por ele, de maneira objetiva, generalizvel e parcimoniosa. Momentos inclusivos e excludentes alternam-se ao sabor das convenincias e da capacidade dos diferentes grupos polticos em diferentes momentos histricos. E no h necessidade de se entrar no terreno um tanto pantanoso das peculiaridades culturais de cada povo e outras variveis dessa natureza, de difcil especificao e duvidosa fecundidade no estabelecimento de nexos causais. Ressalte-se, portanto, que esta visvel afinidade entre o estudo de Stepan e o arcabouo terico de Schattschneider pode se

6

Fbio Wanderley Reis (1977) tambm constri um argumento semelhante, em crtica dirigida antinomia entre representao e cooptao tal como elaborada por Simon Schwartzman (1975).

14 constituir em uma breve porm fundada contestao caracterizao dos estudos corporativistas como um paradigma analtico alternativo escola pluralista. Registre-se ainda que Stepan no parece ser um caso isolado. Para ficar em apenas um trabalho, mencione-se a contribuio de Ruth e David Collier ao tema, em que os autores concebem essas tenses (incluso/excluso) do corporativismo como resultado da preponderncia de incentivos ou de constrangimentos participao poltica em diferentes momentos do processo poltico de cada pas, diluindo, como Stepan, a distino a priori entre corporativismos inclusivos e excludentes, e interpretando a dinmica do corporativismo em termos muito prximos aos da anlise de autores chamados pluralistas (Collier e Collier, 1979, apud Arajo e Tapia, 1991, pp. 12-3). Antes mesmo de Stepan ou de Collier e Collier, porm, Guillermo ODonnell (1976) j havia chegado a concluses interessantes sobre o tema, corroborando decisivamente as implicaes aqui extradas das contribuies de Stepan e de Collier e Collier. Por trabalhar especificamente com o corporativismo presente nos estados burocrtico-autoritrios latino-americanos, ODonnell evita a tentao de elaborar tipologias complexas do conceito de corporativismo. Ao faz-lo, porm, ele termina por ressaltar de forma bastante iluminadora para os propsitos do presente trabalho uma ambigidade bsica que inerente ao conceito, independentemente da construo de tipos ideais polares. Mesmo reportando-se especificamente ao caso do corporativismo burocrticoautoritrio latino-americano (habitualmente qualificado, e com boas razes, de controlador e retrgrado), ODonnell constata o que chamaria de natureza bifronte desse corporativismo:[O corporativismo que corresponde ao estado burocrtico-autoritrio] um corporativismo bifronte, porquanto contm simultaneamente dois componentes que necessrio distinguir com cuidado. Um deles estatizante, no sentido de que consiste na conquista por parte do estado, e conseqente subordinao a este, de organizaes da sociedade civil. O outro privatista, na medida em que consiste, pelo contrrio, na abertura de reas institucionais do prprio estado representao de interesses organizados da sociedade civil. (ODonnell, 1976, p. 3.)

ODonnell prossegue com a afirmao de que esse carter bifronte do corporativismo no estado burocrtico-autoritrio, aliado ao impacto diferenciado dessas estruturas corporativas sobre as diversas classes sociais (seu carter segmentrio, segundo a terminologia de ODonnell), termina por fazer com que o resultado bsico dessas estruturas, em um estado burocrtico-autoritrio, seja o controle sobre o setor popular.

15 Nas democracias polticas dos pases centrais, segundo ODonnell, o corporativismo seria quase exclusivamente privatista, e desapareceria o seu carter bifronte, anulando-se, com isto, o efeito basicamente controlador exibido nos estados burocrtico-autoritrios. Um dos principais mritos da formulao de ODonnell reside em que ela, ao afirmar o carter bifronte do corporativismo nos estados burocrtico-autoritrios, chama a ateno do leitor para a existncia de uma dimenso privatista nesse processo tambm entre ns, no se restringindo a detectar exclusivamente a dimenso controladora das estruturas corporativistas de intermediao de interesses, mesmo sob a vigncia dos regimes burocrtico-autoritrios latino-americanos. ODonnell, contudo, parece idealizar o corporativismo das democracias centrais quando lhe nega o carter bifronte. Pois no pacfico, absolutamente, que os arranjos corporativistas existentes na Europa Ocidental, por exemplo, estejam isentos do componente estatista do corporativismo bifronte aqui delineado por ODonnell. Talvez seja este um tributo que o trabalho de ODonnell paga influncia do corte abrupto estabelecido por Schmitter entre o corporativismo estatal e o social. Como vimos anteriormente, porm, h autores, como Claus Offe, que tm contestado fortemente a crena em um corporativismo de baixo para cima, mesmo para o caso do corporativismo social. Para Offe segundo afirma Suzanne Berger (1981, p. 16, traduo minha) , a iniciativa e o incentivo para o estabelecimento de arranjos corporativos repousa sobre o estado, mesmo no caso do corporativismo europeu, o que implica necessariamente a presena do componente estatista do corporativismo tal como o descreve ODonnell. Segue-se que o corporativismo, em qualquer caso, necessariamente bifronte, e segmentrio onde quer que se trate de uma sociedade dividida em classes sociais. Como nos lembra Offe, h uma assimetria bsica nos arranjos corporativos, quaisquer que sejam eles, pois as restries ao trabalho so sempre maiores que ao capital. O que no quer dizer que a existncia de arranjos corporativistas seja necessariamente prejudicial s classes sociais menos favorecidas antes pelo contrrio, e o prprio ODonnell (1979, pp. 310-1) chama ateno para a ligao direta com o estado usualmente desfrutada pelo grande empresariado na ausncia de formas institucionais eficazes de controle.7 Pois os detentores do capital possuem bvias vantagens comparativas em relao s organizaes trabalhistas no que diz respeito capacidade de influenciar a formulao de polticas pblicas, disparidade esta que pode eventualmente ser atenuada na presena de instituies corporativistas formais.7

Antes dele, Fernando Henrique Cardoso (1972, esp. pp. 98-100) tambm j assinalava a existncia dos anis burocrticos que uniam o estado burguesia no Brasil.

16 No pode ser esta caracterstica bifronte, portanto, a responsvel decisiva por um eventual carter especialmente autoritrio e controlador de que se revistam as estruturas de intermediao de interesses existentes entre ns, no Brasil. Na realidade, se despida de algumas idealizaes, a forma de abordagem do problema proposta por ODonnell termina por associar fortemente os efeitos de uma estrutura corporativa natureza do regime poltico sob o qual ela opera. E isto, uma vez aceito, produzir efeitos cruciais sobre o diagnstico da situao brasileira atual, com implicaes relevantes para os propsitos do presente trabalho. Inevitavelmente, porm, a incorporao dos sindicatos impe tambm os limites de sua atuao. Conforme a descrio de Adam Przeworski (1989), a essncia do chamado acordo social-democrata que tem caracterizado as economias europias pelo menos desde a metade do sculo exclui, naturalmente, qualquer ameaa ordem burguesa ou prevalncia do regime de propriedade privada. Resumindo, a continuidade do sistema capitalista est fora de discusso. Em troca, garante-se um certo nvel mnimo de qualidade de vida e de conforto material. Claus Offe sintetizou bem o ponto:Qualquer atribuio de status significa que, por um lado, os grupos auferem vantagens e privilgios, mas, por outro, tm de aceitar certas limitaes e obrigaes restritivas. Em um caso tpico, o acesso a posies decisrias no governo facilitado por meio do reconhecimento poltico de um grupo de interesse, mas a organizao em questo torna-se sujeita a obrigaes mais ou menos formalizadas, como por exemplo o comportamento responsvel e previsvel e a absteno de demandas no-negociveis ou tticas inaceitveis. (Offe, 1989b, pp. 240-1.)

De qualquer maneira, importante lembrar que a deteco de traos autoritrios em procedimentos que aparentemente so inerentes ao corporativismo incluindo as melhores democracias contemporneas est intimamente associada a pelo menos duas idealizaes bastante recorrentes entre tericos da poltica. Uma delas a que Bobbio (1986b, p. 11) aponta ao afirmar que a generalizao de prticas corporativistas no significa exatamente uma crise da democracia, mas sim daquela tradicional imagem do estado soberano colocado acima das partes, tpica da doutrina democrtica que no estava disposta a reconhecer qualquer ente intermedirio entre os indivduos singulares e a nao no seu todo, e a que j me referi acima. Nas sociedades contemporneas, afirma Bobbio (idem, p. 127), o contrato social no mais uma hiptese racional, mas um instrumento de governo continuamente praticado. A segunda idealizao esta apontada por Alessandro Pizzorno (1981) a suposio usual de uma rgida distino entre as funes do governo, dos partidos e dos grupos de interesse (principalmente destes dois ltimos). Esta distino esteve muito presente na literatura dos anos 50 e 60, mas,

17 segundo Suzanne Berger, no se pode sustentar completamente. Pelo contrrio, Berger (1981, pp. 8-11) afirma que a politizao dos grupos exerce um poder estabilizador no sistema poltico, em face das crescentes tarefas governamentais de regulao social.8 Corroborando esta tese, os autores que lidam com o neocorporativismo europeu do psguerra parecem ser unnimes em afirmar que a estabilidade do sistema poltico nos trinta anos gloriosos que se seguiram guerra na Europa Ocidental se deveu, sobretudo, intermediao de interesses pelo estado e a seu papel de regulador do mercado. Um deles, Manfred Schmidt (1982), testa estatisticamente diversas hipteses explicativas das taxas de desemprego relativamente elevadas observadas na dcada de 1970, e somente para duas variveis ele encontra correlao significativa com as taxas mdias de desemprego observadas entre 1974 e 1978: (1) uma correlao positiva de 0,63 com a taxa mdia de desemprego observada no perodo imediatamente anterior (1960-1973); e (2) uma correlao negativa de 0,67 com a presena de estruturas corporativas. O que redunda em associar o desemprego, basicamente, a dois componentes: um estrutural relativamente constante (que explicaria a correlao positiva elevada com o desemprego passado) e outro que a ausncia de estruturas corporativas de intermediao de interesses. A concluso de Schmidt que o corporativismo, efetivamente, resulta em uma suavizao do impacto dos ciclos econmicos o que, naturalmente, no significa afirmar que ele possa evitar sistematicamente os efeitos de crises econmicas e as conseqncias no-intencionais de intervenes governamentais em uma economia de mercado.9

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A propsito da questo da diviso de papis entre partidos e grupos de interesse, Pizzorno (1981, pp. 249-63) mostra como o problema da identificao dos interesses, que se coloca a partir da diluio dos estamentos, inicialmente se afirma mediante a diviso geogrfica da representao de interesses (tpica da arena parlamentar), para logo em seguida ter de se desdobrar com base em novos critrios, por meio das organizaes de interesse muito embora considere que os partidos polticos continuem sendo sempre a soluo para o problema da identidade poltica em sociedades ps-estamentais. As outras variveis testadas por Schmidt so renda per capita, ndice de aumentos salariais, taxa de crescimento econmico, taxa de inflao, participao percentual da PEA na populao total, presena ou no de mo-de-obra estrangeira, integrao ou no com o mercado internacional, presena ou no de um forte welfare state, grau de participao da esquerda nos governos (ministrios) ao longo do perodo (1974-1978), tempo de governo da esquerda no perodo, existncia ou no de um partido relativamente dominante no perodo, coeso ou no da direita e, finalmente, votao da esquerda entre 1970 e 1978. Nenhuma dessas variveis apresentou correlao significativa com o desemprego observado entre 1974 e 1978 nos 21 pases pesquisados (Alemanha Ocidental, Austrlia, ustria, Blgica, Canad, Dinamarca, Estados Unidos, Finlndia, Frana, Holanda, Irlanda, Islndia, Israel, Itlia, Japo, Luxemburgo, Noruega, Nova Zelndia, Reino Unido, Sucia e Sua).

18 Esse efeito estabilizador acabou, certamente, por desempenhar um importante papel no compromisso democrtico que se instalou na Europa Ocidental aps a guerra diagnstico que se corrobora pela revivescncia neofascista ao cabo de apenas uma dcada de hegemonia ideolgica neoliberal no Velho Mundo. A propsito, pode ser ilustrativo lembrar a tese de John Logue (1979, apud Draibe e Henrique, 1988, p. 64), segundo a qual o welfare state vtima de seu sucesso, muito mais do que de eventuais fracassos. Para Logue, a satisfao quase generalizada dos interesses materiais bsicos das populaes da Europa Ocidental diminui o incentivo obteno de novos benefcios, e torna o eleitorado cada vez menos propenso a arcar com novos impostos destinados a financiar esses benefcios. Este argumento certamente til para se compreenderem os problemas eleitorais da esquerda europia hoje, alm de dar bem a medida dos limites da onda neoliberal dos dias que correm. Pois, fundamentalmente, o que vem acontecendo a implementao de polticas de restrio da atuao econmica do estado dentro de estruturas estatais que mesmo no caso da Gr-Bretanha, que atravessou mais de uma dcada sob Margaret Thatcher ainda podem ser chamadas de estados de bem-estar social, para qualquer parmetro abrangente de comparao histrica. Se a existncia de estruturas corporativistas de intermediao de interesses pode, portanto, ser vista como algo geralmente benfico para a administrao dos conflitos distributivos no interior da sociedade, por outro lado no se podem, absolutamente, minimizar os delicados problemas institucionais envolvidos na criao dessas estruturas. Claus Offe, novamente, talvez seja o autor que tenha ido mais precisamente ao cerne da questo:10Organizaes de massa mopes, tacanhas, irresponsveis ou ilegtimas devem ser reprimidas. E o que mais importante, demandas distributivas e de polticas sociais devem ser conciliadas com os imperativos do crescimento, da modernizao econmica e da competitividade. Esse diagnstico leva ao seguinte dilema: em uma economia industrial avanada, as organizaes de interesse tm o poder de interferir na execuo da poltica pblica de forma altamente antifuncional; da a necessidade de impedir a sua entrada. No entanto, ao mesmo tempo, essas organizaes representativas so absolutamente indispensveis poltica pblica, porque detm um monoplio de informao relevante para a poltica pblica e, o que fundamental, uma grande capacidade de controlar seus membros. Portanto, elas devem ser transformadas em componentes integrantes dos mecanismos atravs dos quais a poltica pblica formulada. Sua funo positiva potencial to significativa quanto seu potencial de obstruo. A partir dessa perspectiva, o segredo consiste em utilizar a primeira e ao mesmo tempo evitar que a poltica pblica seja exposta ao segundo. (Offe, 1989b, pp. 234-5, com pequenas alteraes na traduo.)10

Tambm em Fritz W. Scharpf (1988), a configurao do aparato institucional o elemento decisivo para a soluo do problema de coordenao entre governo e sindicatos.

19 Baseada na constatao da ocorrncia de uma srie de mudanas desde a dcada de 1970 (no apenas na conjuntura poltica, mas principalmente no prprio processo de produo), hoje ganha flego entre os analistas a hiptese de um processo de decadncia do macrocorporativismo e afirmao do mesocorporativismo (Schmitter, 1989, apud Arajo e Tapia, 1991, pp. 23-4).11 Se esse processo, contudo, gerar fortes desequilbrios em favor de determinados setores ou regies, podero se criar novamente condies polticas favorveis reafirmao de estruturas macrocorporativas. Caso contrrio, ser grande o risco de uma rpida eroso da legitimidade das estruturas polticas vigentes, abrindo as portas para uma contestao eventualmente violenta do status quo. Independentemente dessa eventualidade, Offe (1989b) e Schmitter (1989, apud Arajo e Tapia, 1991, p. 24) j advertem para o risco que a fragmentao de demandas, por si s, pode oferecer para a coeso social. Para que um corporativismo estvel seja alcanado, porm, Offe v uma srie de obstculos que podem nos ajudar a avaliar as dificuldades que se apresentariam tarefa de edificao de um sistema corporativo adequado no Brasil:No mnimo, para ser estvel, o corporativismo no [apenas] deve gerar consenso continuamente; antes de mais nada, precisa pressupor o consenso, ou seja, uma slida e incontestada aceitao de determinado modo de representao e acomodao de interesses. Isso requer, primeiramente, uma certa tradio e organizao dos sindicatos que resulte em sua disposio de aceitar as regras da parceria social (Sozialpartnerschaft); [assim] pases com um movimento trabalhista voltado para o conflito no so to adequados para o corporativismo liberal [Lehmbruch, 1977, p. 115]. Alm das tradies polticas da classe trabalhadora do pas, a atitude de parceria social parece ser reforada pela doutrina organizacional do sindicato unitrio (Einheitsgewerkschaft), em contraste com a organizao segundo filiao partidria ou segundo o ramo de atividade [...]. Em segundo lugar, essa condio de aceitao inconteste pode ser mantida se as foras opositoras que no esto dispostas a seguir as regras das estruturas polticas corporativistas forem11

Macro, meso, e microcorporativismo so conceitos que nos ltimos anos vm obtendo aceitao crescente entre os estudiosos do corporativismo, principalmente depois da publicao de Alan Cawson, ed. (1985). Em linhas gerais, esta conceituao se origina da preocupao em dar vazo terica constatao de que o corporativismo mais disseminado do que permitiria supor a ateno exclusiva existncia de padres de intermediao de interesses em escala nacional, abrangendo a economia como um todo (arranjos macrocorporativos). H situaes em que essa intermediao no existe em escala nacional, mas sim em escala regional ou, principalmente, setorial (mesocorporativismo). Na formulao e implementao de uma poltica industrial, por exemplo, bastante provvel o recurso a arranjos mesocorporativos, nos quais se fariam representar os diversos setores envolvidos. J microcorporativismo se reportaria interao de agncias governamentais e grandes empresas monopolistas, com capacidade para determinarem sozinhas o destino de um setor. Distinguir-se-ia do clientelismo tout court pelo fato de que aqui o estado manteria sua autonomia na relao, no havendo aprisionamento da agncia pela empresa. Uma rpida distino entre os trs conceitos pode ser encontrada em Arajo e Tapia (1991, pp. 19-21).

20privadas de alguns de seus direitos polticos e civis. Finalmente, as disposies corporativistas poderiam obter uma aceitao de facto se os objetivos de prosperidade e crescimento fossem alcanados em um grau que tornasse irrelevante a busca de princpios legitimadores e o conflito acerca dos mesmos. (Offe, 1989b, pp. 263-4.)

2. IMPRESSES SOBRE O CASO BRASILEIRO Seguindo o que foi exposto, portanto e principalmente se se leva em considerao o trecho de Alan Cawson (1986, p. 19) supracitado , a concluso surpreendente a que se chega a de que a histria sindical brasileira, a rigor, nunca foi corporativista no sentido em que o termo utilizado aqui. Ao contrrio, o que temos a impresso de observar, no Brasil, uma contnua oscilao: o Estado ora parece estar aprisionado por alguns poucos interesses privados particularmente poderosos, ora parece desfrutar de uma autonomia quase irrestrita para fazer o que bem lhe aprouver. Todavia, mais do que uma oscilao real, o que verificamos so os sintomas das tenses experimentadas por um sistema poltico precariamente institucionalizado em uma sociedade que se moderniza aceleradamente, conforme a clssica descrio do pretorianismo de massas feita por Samuel Huntington (1975). Com o objetivo de fazer uma exposio bastante breve desse tema to complexo e multifacetado, pode-se comear por dizer que o processo de modernizao, tal como costuma compreend-lo a teoria sociolgica, deflagrado basicamente por um processo de racionalizao de diversas esferas da vida social que encontra um de seus sintomas mais visveis na disseminao quase que total do uso da moeda como um meio universal de troca, e pela conseqente introduo do princpio mercantil de regulao das relaes sociais, que deflagra uma progressiva eroso de ordenamentos sociais tradicionais de natureza estamental. Descrito de maneiras bastante variadas, esse processo tem lugar de destaque em todas as principais matrizes do pensamento sociolgico do ltimo sculo, quer recorramos a Weber ou a Durkheim, a Parsons ou a Marx ou a Comte. Esse fenmeno histrico de limites desconhecidos que moldou drasticamente o destino do Ocidente e que hoje alcana praticamente todo o globo , ao incorporar um princpio de igualdade fundamental entre os homens, liberou uma fora ideolgica de carter emancipador capaz de subverter padres milenares de submisso hierrquica ao cabo de apenas umas poucas geraes. Naturalmente, o preo dessa efervescncia social no que diz respeito s possibilidades de manuteno da ordem e da paz social extremamente elevado. O impulso de incorporao poltica inerente modernizao invariavelmente se

21 choca com os interesses daqueles habituados a exercer a dominao e isso sem contar o sempre delicado problema da construo de canais adequados para a expresso dessa participao popular, descartado o exerccio direto e cotidiano do poder pela massa reunida em praa pblica (ou em redes de computadores). E se esse processo deflagrado exogenamente, como foi o caso dos pases coloniais do Terceiro Mundo, ento ele ser certamente ainda mais traumtico. Apenas para ilustrar com extremos, basta lembrar que o mesmo processo de modernizao sociopoltica que a Inglaterra vinha atravessando ao longo de quase mil anos (e no sem muito sofrimento), os jovens pases africanos nascidos aps 1945 foram chamados a consumar a golpes de caneta ou melhor, de baionetas da noite para o dia. Ora, num cenrio como este, a radicalizao da disputa poltica e agora com seu alcance exponenciado pela ampliao da arena poltica uma decorrncia natural e inevitvel. E a aparentemente infindvel alternncia, ou mesmo a mescla, entre regimes autocrticos e populismo demaggico apenas um sintoma da incapacidade dos governos de atender simultaneamente aos dois imperativos cruciais do sistema poltico democrtico: o de produo de poder e o de distribuio de poder. Assim, ou o governo concentra todo o poder (como durante a vigncia de regimes autoritrios), resolvendo o problema de produo de poder a expensas do objetivo de distribuio do mesmo, ou ento, alternativamente (durante os interldios populistas), ele se v paralisado por mltiplas e contraditrias demandas no varejo da barganha poltica, tornando-se incapaz de produzir poder (F. Reis, 1989c, pp. 161-7). Nesse contexto, instituies corporativas de intermediao de interesses podem vir a cumprir a dupla funo de incorporar ao processo decisrio setores sociais anteriormente excludos, ao mesmo tempo que canalizam institucionalmente essa incorporao. Naturalmente, isto significar o estabelecimento de controles e limites atuao das organizaes, como ressalta Offe, mas na medida em que se trata de buscar precisamente a edificao de mecanismos de articulao de interesses entre o estado e a sociedade, inevitvel que essa articulao ao envolver compromissos e concesses de parte a parte produza, simultaneamente maior sensibilidade do estado em face dos grupos de interesses, algum constrangimento liberdade de ao destes ltimos (F. Reis, 1991a, p. 52). Nem por isso, todavia, se deve concluir que o formato especfico assumido pelas instituies corporativas no Brasil no tenha incorporado traos autoritrios prprios. Instalada como foi a maior parte de nossa legislao trabalhista na dcada de 1930, sob

22 uma atmosfera intelectual antiliberal de alcance mundial, e ainda sob um governo com notrias afinidades com o fascismo, as instituies sindicais brasileiras foram criadas embebidas em uma concepo fortemente organicista da sociedade, que deslegitimava interesses privados e individuais em prol de um suposto bem coletivo, salvaguardado, evidentemente, pelo Estado. Isto, naturalmente, no deixou de produzir efeitos sobre a legislao ento produzida, que imps uma disciplina particularmente rgida sobre o comportamento dos grupos de interesse, com enormes prerrogativas reservadas ao Estado. Porm, em vez de me deter sobre a discusso das instituies especficas que porventura tenham sido criadas no Brasil dos anos 30 e 40 (ou sobre o que efetivamente resta delas nos dias de hoje), gostaria de abordar uma ramificao frutfera do tema aqui abordado o processo de institucionalizao poltica da representao de interesses privados conflitantes que se encontra no estudo da dinmica poltica do conflito distributivo no Brasil e suas implicaes sobre o desempenho econmico do Pas, particularmente no que toca anlise da inflao crnica com que recorrentemente nos defrontamos, cujo combate ganhou especial relevo na agenda de poltica econmica do governo brasileiro nos ltimos 15 anos (e cujo espectro est longe de ter sido exorcizado no transcorrer deste primeiro ano do Real). Em outro trabalho (B. Reis, 1994), abordo esse problema a partir do diagnstico da existncia de uma afinidade lgica entre, de um lado, um processo inflacionrio crnico como o vivido no Brasil de hoje e, de outro, o problema da consolidao institucional de uma ordem racional-legal em sociedades de instituies frgeis (as sociedades em processo de modernizao, pretorianas, segundo Huntington, tal como foi sucintamente descrito acima).12 Em seu nvel mais abstrato, o argumento daquele trabalho para diz-lo em poucas palavras se baseia em duas premissas fundamentais: (1) a estrutura de preferncias dos atores envolvidos no conflito distributivo pode ser adequadamente descrita pela configurao que na teoria dos jogos recebe o nome de dilema do prisioneiro; (2) na ausncia de instituies slidas (ou seja, nas sociedades pretorianas de Huntington, com baixo grau de governo), o poder pblico fracassa na tarefa primria12

Segundo a caracterizao de Huntington (1975, p. 208), sociedades pretorianas so, grosso modo, aquelas em que no existem instituies polticas efetivas, capazes de mediar, refinar e moderar a ao poltica dos grupos; nas quais o processo de modernizao incorporou arena poltica estamentos anteriormente excludos, mas sem que se consolidassem instituies aptas a processar consensualmente as disputas decorrentes dessa incorporao.

23 que lhe foi atribuda por Hobbes, isto , torna-se incapaz de constranger eficazmente os diversos atores envolvidos a adotarem estratgias cooperativas.13 Resumindo bastante o argumento, pode-se afirmar que, se forem verdadeiras estas premissas, ser alta a probabilidade da generalizao de uma estratgia egosta, maximizadora no curto prazo, pelos agentes envolvidos no conflito distributivo em sociedades pretorianas, criando condies propcias produo de um resultado subtimo, embora racional, a inflao. Naturalmente, deve-se admitir que pretorianismo por si s no implica inflao, isto , no condio suficiente para a instalao de um processo inflacionrio crnico. Mas, excetuado o caso muito particular do surto inflacionrio observado em Israel nos anos 80 (que certamente mereceria uma anlise mais cuidadosa do que seria possvel nestas pginas), a fragilidade poltico-institucional parece ser, praticamente, condio necessria emergncia de um processo inflacionrio crnico e relativamente acelerado digamos, uma inflao de taxas mensais persistentemente acima dos 10% ao ms. Nesses casos, a estabilizao monetria torna-se uma tarefa particularmente difcil, pois trata-se de convencer os agentes a abrir mo de ganhos imediatos em favor de ganhos (talvez at maiores) no futuro s que, por definio, se h instabilidade poltica ou fragilidade institucional no h horizonte seguro no mdio e longo prazos, e todos os agentes optam por estratgias que privilegiem ao mximo os ganhos imediatos. Por isso necessrio tratar com extremo cuidado as expectativas dos agentes econmicos cruciais, que em contextos como esses se comportam de maneira excepcionalmente nervosa.14

13

Talvez valha a pena observar que Robert Dahl (1971, pp. 5-9) tambm contempla a situao de incorporao precipitada de novos atores sem a prvia institucionalizao das regras do jogo como um possvel caminho hipottico rumo poliarquia, porm o pior caminho, provavelmente malfadado. Se se puder justapor a teoria de Huntington sobre o diagrama de Dahl, pode-se dizer que este caminho fracassa porque, ao incorporar novos atores e no lograr estabelecer regras estveis, o processo de modernizao reinstaura o dilema do prisioneiro tpico do estado de natureza hobbesiano, que provavelmente j havia sido contornado anteriormente com a ordenao estamental da sociedade que ora entra em crise. 14 Esse um aspecto relevante do Plano Real que talvez no tenha sido suficientemente destacado: o governo foi extremamente cauteloso com as expectativas dos agentes. Renegou abertamente os choques (congelamentos, confiscos ou quaisquer outras medidas desta natureza, que tivessem de ser tomadas na calada da noite) e anunciou previamente todos os seus passos na fase de transio do cruzeiro para o real incluindo o perodo em que a URV foi usada como indexador oficial. De fato, fez o que pde para oferecer um horizonte claro para os agentes no mercado. Todavia, se, por um lado, a estratgia da moeda indexada parece ter se mostrado um instrumento bastante mais eficaz que o congelamento de preos para uma reduo duradoura do patamar inflacionrio (que, no Brasil, em virtude da indexao generalizada, extremamente rgido para baixo), por outro lado nada impede que a inflao volte a subir lentamente a partir de diversos choques externos, uma vez que as reformas estruturais no setor pblico, que poderiam imprimir um carter mais duradouro estabilizao,

24 Com base na caracterizao do Brasil como um caso de sociedade pretoriana, pode-se utilizar a teoria delineada acima para estudar a experincia inflacionria brasileira, especialmente na ltima dcada, quando a inflao ultrapassou a marca dos 100% anuais.15 A experincia dos anos 80 particularmente interessante porque foi uma poca em que, em um prazo relativamente curto, praticamente se tentou de tudo em matria de poltica econmica antiinflacionria, sem que, no entanto, nenhuma das tentativas lograsse reduzir a inflao de maneira duradoura. Minha aposta que uma das variveis cruciais que impediram o governo no s de derrotar a inflao, mas praticamente de governar nesse perodo foi o vcuo institucional que se abriu a partir da acelerao da abertura no governo do general Figueiredo. De l para c, nenhuma fora poltica conseguiu construir uma hegemonia que possibilitasse a formao de um consenso mnimo em torno de um novo formato institucional internamente consistente para o Pas. A Constituio de 1988, elaborada no interior dessa fragmentao poltica, uma colcha de retalhos excessivamente detalhista e carente de articulao interna, fruto dos inmeros lobbies, em torno de pequenos problemas, que se formaram durante o trabalho constituinte, ocupando o vazio deixado pela ausncia de uma conduo poltica hegemnica.16 E, finalmente, as intervenes crescentemente violentas do governo na economia com vistas a controlar a inflao principalmente os sucessivos congelamentos de preos efetuados a partir de 1986 , ao aumentarem enormemente a incerteza na economia, colaboraram decisivamente para a exploso inflacionria que se

parecem por motivos estreitamente relacionados aos problemas polticos nacionais expostos no presente trabalho cada vez mais incertas; e a desindexao geral de preos e salrios na economia, crucial para o fim da rigidez para baixo do patamar inflacionrio, no se pde ainda completar. 15 No trecho que segue, utilizo algumas passagens do meu trabalho anteriormente referido (B. Reis, 1994). 16 Naturalmente, nada disso quer dizer que durante o regime militar o problema institucional estivesse resolvido; apenas chamo ateno para o vcuo poltico que se foi instalando no Brasil a partir do fenecimento da ditadura, e do aumento do grau de incerteza inclusive institucional da economia a partir desse fenmeno. Se a teoria aqui esboada estiver correta, isto ter trazido efeitos danosos sobre a dinmica do conflito distributivo, com conseqente crescimento da inflao. Acerca deste ponto, a propsito, Albert Hirschman (1985, p. 73) lembra que, alm do conflito, tambm o grau de permeabilidade do governo a demandas colabora diretamente com a inflao, e nada assegura que regimes militares sejam mais intransigentes nesse ponto. Pelo contrrio, a experincia mostra que nos regimes militares os favores se multiplicam e a inflao se mantm a despeito da represso ao movimento sindical. Talvez por servir tambm para a acomodao de interesses, a inflao brasileira, mesmo durante o regime militar, nunca esteve abaixo de 15% anuais. Como vimos acima, esta anlise de Hirschman encontra clara corroborao nos bastante conhecidos trabalhos que Fernando Henrique Cardoso produziu nos anos 70 sobre os anis burocrticos j referidos (ver, por exemplo, Cardoso, 1972).

25 observou desde ento.17 (O paradoxo fatal aos choques heterodoxos consiste em que eles intervm brutalmente no mercado e esperam que as pessoas ignorem esta possibilidade ao formarem suas expectativas.) O ponto a que pretendo chegar, portanto, a afirmao de que o processo inflacionrio crnico comumente observado em sociedades pretorianas pode corresponder precisamente a um equilbrio subtimo resultante do dilema do prisioneiro com que se defrontam os grupos participantes do conflito distributivo.18 E que a inflao mais violenta e perversa em sociedades pretorianas simplesmente porque estas, por definio, possuem reduzido grau de governo, isto , a precariedade de suas instituies polticas no permite que o poder pblico seja bem-sucedido em sua tarefa de forar os atores cooperao. Se isto for correto, pode-se afirmar que, uma vez instalado um processo inflacionrio crnico em uma sociedade pretoriana, ele se mostrar particularmente resistente a terapias antiinflacionrias convencionais, e sua soluo duradoura estar necessariamente vinculada ao processo de institucionalizao da vida poltica do pas.19 Antes de prosseguir, todavia, necessrio caracterizar o Brasil como um caso de sociedade pretoriana, pois, escudados no fato de que no h, no momento, tanques na rua, e tampouco, aparentemente, disposio para quarteladas no interior das Foras Armadas, alguns talvez queiram negar acuidade caracterizao da sociedade brasileira como pretoriana. Entendo, todavia, que tal negao seria prematura em um contexto como o brasileiro, independentemente da atual disposio dos militares para intervirem17

Uma exposio mais fundamentada e formal deste argumento acerca da influncia dos sucessivos choques econmicos sobre as expectativas dos empresrios e seus efeitos nefastos sobre a inflao pode ser encontrada em Jos Mrcio Camargo (1990, esp. pp. 19-21). 18 Talvez seja oportuno esclarecer que quando me refiro a conflito distributivo no penso exclusivamente no conflito entre capital e trabalho em torno da determinao de lucros e salrios. Conflito distributivo, aqui, qualquer disputa entre grupos ou setores da economia em torno da apropriao da maior parcela possvel da renda nacional. Entre estes setores deve-se incluir tambm o governo, de forma que, quando relaciono a inflao ao conflito distributivo, no excluo de sada as teorias mais ortodoxas da inflao, baseadas no dficit pblico e nas diversas formas de seu financiamento. 19 O programa de investigao sociolgica da inflao que John Goldthorpe (1978) prope serve como uma descrio surpreendentemente boa do argumento acima. Segundo Goldthorpe, a Sociologia compreende a inflao como a expresso monetria do conflito distributivo. Ele aponta a ignorncia da tradio weberiana por parte dos economistas que invectivam contra explicaes sociolgicas e afirma que o argumento sociolgico acerca da inflao acaba sendo mais econmico que muitas teses monetaristas (que imputam ao governo um comportamento irracional, no otimizador), pois atribui o fenmeno ao acirramento do conflito distributivo decorrente de atitudes perfeitamente racionais dos agentes em um mundo, de certo modo, ps-estamental, no qual se afirmam e se universalizam os direitos da cidadania.

26 violentamente no processo poltico. Afinal, temos em vigor uma Constituio que mal completou meia dcada, e absolutamente no temos clareza sobre o que restar dela em um futuro prximo. Praticamente no existem no Brasil instituies decisrias ou administrativas cujos procedimentos ou atribuies no sejam objeto de disputa. Assim, pode-se afirmar com segurana que nossa famosa crise de governabilidade to freqentemente propalada na imprensa e lamentada pelos sucessivos governos federais reside muito menos no teor da legislao em vigor do que em sua instabilidade intrnseca, que faz com que o sistema legal seja, em boa medida, incuo, incapaz de afetar, para o bem ou para o mal, a dinmica viciosa da vida poltica brasileira. E este o trao fundamental do pretorianismo tal como definido por Huntington. este o principal sintoma daquilo que ele chama de baixo grau de governo (que, diga-se de passagem, nada tem a ver com o tamanho do estado). Uma objeo mais forte, contudo, pode ser formulada: a caracterizao do Brasil como pretoriano tem de se aplicar a pocas em que a inflao, embora existisse, esteve sempre abaixo dos ndices apresentados na dcada de 1980. Por que teria ela escapado ao controle naquele momento e no antes? Diante desse problema, o primeiro esclarecimento a fazer consiste em lembrar que o desenvolvimento institucional no um caminho de mo nica, mas comporta idas e vindas. Alguns anos de estabilidade institucional significam um avano no processo de institucionalizao que, todavia, pode ser praticamente zerado por um eventual rompimento das regras do jogo. O principal fermento da institucionalizao o tempo. Por isto, quanto mais tempo durar um determinado arranjo institucional, mais difcil se tornar sua remoo (o que talvez ajude a explicar a particular violncia com que foi efetuado o golpe militar no Chile em 1973). Isto posto, torna-se perfeitamente possvel reconhecer sem ter de abandonar em nenhum momento a caracterizao da sociedade brasileira como pretoriana que o Brasil j viveu momentos de maior institucionalizao de sua vida poltica, o que, conseqentemente, propiciava ao Pas um maior grau de governo, nos termos de Huntington. Mas isto ao preo da excluso (ou da represso) poltica de amplos setores da sociedade, que a mera continuidade dos processos de incorporao e mobilizao poltica trazidos no bojo da paulatina modernizao das relaes sociais vem desafiar. Para mencionar apenas um trao que diz respeito mais diretamente ao conflito distributivo, o sistema de intermediao de interesses implantado nas dcadas de 1930 e 1940 seguramente permitia aos governos do perodo que vai de 1946 a 1964 maior controle sobre querelas

27 distributivas do que ele dispe hoje, ao mesmo tempo em que era, inicialmente, objeto de razovel consenso na populao em torno de sua legitimidade.20 Embora continuasse legalmente em vigor, a partir de 1964 ele foi virtualmente substitudo pela represso aos sindicatos e a arbitragem dos salrios pelo governo federal. Com a abertura, a contestao aberta ao sistema vigente ganhou fora a partir dos ltimos 15 anos especialmente nas plataformas do novo sindicalismo, que engendrou o Partido dos Trabalhadores PT e a Central nica dos Trabalhadores CUT. O resultado que, de dez anos para c, temos vivido um estado de perfeita anomia no que diz respeito ao conflito distributivo, com uma legislao trabalhista e uma lei de greve anacrnicas e que caram em desuso, sem que se tenha obtido consenso algum em torno de um novo arranjo institucional para a administrao das relaes entre capital e trabalho no Brasil. Isto nos coloca, imediatamente, diante da necessidade bvia de um reordenamento institucional das relaes entre capital e trabalho no Brasil, de modo a nos proporcionar um novo arcabouo jurdico para a administrao do conflito distributivo que venha a substituir com xito o contestado modelo atual ou, pelo menos, operar nele as mudanas que se julgarem necessrias. Devemos, portanto, passar considerao das condies de possibilidade da adoo das polticas necessrias a uma administrao adequada do conflito distributivo, e a referncia clssica no estudo de polticas pblicas , ainda, o trabalho de Theodore Lowi (1964). Partindo da anlise da experincia histrica dos Estados Unidos, Lowi elabora uma tipologia que divide as polticas pblicas em trs grandes tipos bsicos (polticas distributivas, regulatrias e redistributivas). Estas trs grandes reas de polticas, segundo Lowi, configuram diferentes arenas de poder, cada uma com sua prpria estrutura poltica caracterstica, seus processos e sua elite peculiar (idem, p. 689). Wanderley Guilherme dos Santos (1982, p. 168) nos oferece, de cada uma dessas arenas, uma definio bastante sinttica e precisa, suficiente para os propsitos do presente trabalho:Simplificando a apresentao e a discusso de Lowi, podemos entender como distributiva aquele tipo de poltica que distribui bens e servios quase que individualmente, sem conflito, porque a curto prazo a quantidade disponvel dos ditos bens e servios parece infinita. A poltica regulatria lida com conflitos entre dois ou mais segmentos da sociedade como dois ramos industriais, por exemplo e implica ganhos e perdas20

A respeito da concordncia dos trabalhadores brasileiros com o esprito organicista da legislao trabalhista em vigor durante o perodo que vai de 1946 a 1964, ver Kenneth Paul Erickson (1979, pp. 57-8).

28relativos. Finalmente, a poltica redistributiva tipicamente uma deciso de soma zero, e 21 lida com os principais conflitos sociais, isto , conflitos entre classes.

Buscando interpretar, luz da contribuio de Lowi, o impasse jurdico-poltico que se observa nas relaes entre capital e trabalho no Brasil desde o incio da dcada de 1980, o que se pode constatar que o Pas, tendo excludo da agenda poltica durante tantos anos a pauta redistributiva, exacerbou o hbito tradicional em seu sistema poltico de tratar principalmente de questes distributivas e tem adiado sistematicamente o enfrentamento de questes redistributivas colocadas pela inexorvel obsolescncia da legislao trabalhista concebida na dcada de 1930. De fato, em virtude do ritmo vertiginoso de urbanizao e industrializao registrado no Brasil em meados deste sculo, j em 1964 esse problema se manifestou de forma dramtica, pela emergncia de formas associativas e movimentos reivindicatrios que no encontraram na legislao em vigor os canais institucionais adequados para se expressarem.22 A inevitvel radicalizao que se seguiu acabou desaguando na interrupo violenta do processo democrtico e na instalao no poder de um regime autoritrio que, por quase duas dcadas, controlou com mo de ferro os conflitos trabalhistas no Brasil. Naquele contexto, foi menos oneroso para as elites arcar com a soluo autoritria do que deflagrar, pela segunda vez em 30 anos (e agora sob um regime constitucional democrtico), um processo de reordenamento institucional das relaes entre capital e trabalho no Pas, processo este que dificilmente deixaria de ter importantes conseqncias redistributivas. Com a exausto do regime militar e a reintroduo das principais franquias democrticas ainda sob o governo do general Figueiredo, a questo trabalhista foi retomada praticamente nos mesmos termos em que fora deixada em 1964 (inclusive com a reentrada em cena quase que imediata das centrais sindicais), tornando evidente que a soluo autoritria nada havia feito, ou podido fazer, seno empurrar para um futuro indefinido a agenda redistributiva com que se defrontava o Brasil no incio dos anos 60. Menos de 20 anos depois, a mesma elite que patrocinara o golpe de estado em 1964 se deparava novamente com alguns dos mesmos desafios de ento. Assim, tendo congelado por tanto tempo a pauta redistributiva, vemo-nos em dificuldades quando um problema crnico, porm dramtico, como a inflao exige que a encaremos de frente.

21 22

Para as definies originais, ver Lowi (1964, pp. 690-1). A polmica que ento se travou em torno do estatuto legal do Comando Geral dos Trabalhadores CGT bastante ilustrativa a esse respeito: ilegal para o marechal Castelo Branco, o CGT era apenas extralegal para o ministro Almino Afonso.

29 Conforme foi ressaltado anteriormente, aps a reinstalao do regime democrtico, a ausncia de um grupo hegemnico e coeso que pudesse definir uma agenda e liderar um processo de reconstruo institucional que removesse tanto o chamado entulho autoritrio quanto os eventuais dispositivos indesejveis remanescentes da poca anterior a 1964 impediu que se encaminhasse com sucesso um novo formato institucional para as relaes entre capital e trabalho no Brasil. E ainda conforme vimos acima, segundo Lowi as disputas na arena redistributiva aproximam-se das condies de um jogo de soma zero com dois atores, no qual h um ganhador e um perdedor, envolvendo, portanto, coalizes estveis e ensejando a formao de estruturas polticas dificilmente removveis, pois refletem o impasse ou o equilbrio das relaes interclasses na sociedade como um todo. Assim, o mximo que foi possvel obter durante o trabalho constituinte em 1987/88 foram polticas regulatrias, frutos de variadas coalizes ocasionais (que muitas vezes se formaram em torno de um nico ponto para se desfazer em outro), o que acabou emprestando Constituio de 1988 aquele carter fragmentrio freqentemente aludido. Enquanto isso, persiste a vigncia de uma legislao trabalhista que , em grande medida, letra morta, e convivemos com uma preocupante incapacidade do governo de intervir eficazmente nas relaes econmicas e, logo, na dinmica persistentemente concentradora do conflito distributivo no Brasil.23 Portanto, embora seja verdade que se podem encontrar algumas das razes mais visveis da inflao brasileira em determinadas polticas distributivas e regulatrias tradicionais entre ns (respectivamente o empreguismo e o protecionismo, por exemplo), parece-me que uma soluo do problema da inflao est a requerer a implementao de polticas de carter efetivamente redistributivo, uma vez que o governo, com ou sem negociao, ter necessariamente de arbitrar perdas a largos setores da economia em favor de outros, e de maneira duradoura. Assim, o resultado daquele vcuo de poder que se observou no Brasil aps o fim do regime autoritrio a expresso mais crua do dilema do prisioneiro que descreve as preferncias e as estratgias racionais de atores imersos em um conflito distributivo no regulado (pois no h mais qualquer legislao trabalhista que tenha sua23

A dinmica concentradora do conflito distributivo no Brasil nos ltimos anos descrita em Amadeo e Camargo (1990, pp. 86-9). As sees 4 e 5 desse trabalho (pp. 77-108) onde se descreve o mecanismo que os autores chamam de filosofia do repasse, que permite uma espcie de pacto inflacionista entre trabalhadores e empresrios dos setores oligopolizados da economia, capazes de repassar via preos seus aumentos de salrios para os demais setores foram posteriormente transformadas em um artigo publicado duas vezes (Amadeo e Camargo, 1991a e 1991b). A base emprica dos resultados obtidos pelos autores, bem como sua tese do pacto inflacionista, foram posteriormente contestadas por Macedo e Piva (1992), mas ambos os trabalhos confirmam o processo de concentrao de renda em curso no Pas, ainda que por meio de mecanismos diversos.

30 autoridade consensualmente reconhecida pelos atores), ou seja, a generalizao de estratgias egostas e a obteno de um estado de equilbrio subtimo, embora racional: a inflao crnica. O problema mais grave, porm, que a adoo de polticas redistributivas no se reduz a uma mera questo de vontade poltica para usar o consagrado chavo de todo discurso oposicionista. Pois, segundo Lowi, cada tipo de poltica tem sua prpria arena e requer uma estrutura decisria caracterstica. E a estrutura poltica da arena redistributiva , como sabemos, extremamente rgida, refletindo e cristalizando os impasses entre classes sociais que derivam diretamente dos conflitos observados na sociedade como um todo. Acerca desse tema das condies de possibilidade da adoo dos diferentes tipos de polticas tal como definidos por Lowi , uma contribuio importante o trabalho de Robert Salisbury (1968, pp. 166-8), que afirma que o tipo de poltica que tende a ser adotado varia em funo do grau de integrao ou de fragmentao tanto do padro de demandas quanto do sistema decisrio. Introduzindo, alm dos trs delineados por Lowi, um quarto tipo de poltica a arena auto-regulatria24 Salisbury (idem, p. 171) monta um diagrama 2x2 no qual cada um dos seus quatro tipos de polticas relacionado a um cruzamento especfico entre o grau de integrao do sistema decisrio e o do padro de demandas. Assim, uma poltica redistributiva requer que ambos exibam elevado grau de integrao, enquanto polticas distributivas, ao contrrio, so tpicas de situaes em que tanto o sistema decisrio quanto o padro de demandas so bastante fragmentados. Nas situaes hbridas, encontraramos polticas regulatrias (sistema decisrio integrado e padro de demanda fragmentado) e auto-regulatrias (sistema decisrio fragmentado e padro de demanda integrado). Figura 1 Sistema Decisrio Fragmentado distribuio auto-regulao Sistema Decisrio Integrado regulao redistribuio

Padro de Demandas Fragmentado Padro de Demandas Integrado Fonte: Salisbury (1968).

24

Novamente segundo Santos (1982, p. 169), poltica auto-regulatria significa que o grupo que demanda ter direito de legislar sobre seus prprios assuntos o direito de certos grupos profissionais de conceder licena para o exerccio daquela profisso, por exemplo.

31 Apenas dois anos depois de publicado esse trabalho, todavia, Salisbury publicou, em coautoria com John Heinz, um novo artigo em que ele reformula de maneira importante sua contribuio inicial. Uma tese bsica desse segundo artigo que[...] h uma distino fundamental a ser feita entre decises que alocam benefcios tangveis diretamente a pessoas ou grupos, como as polticas de gastos geralmente fazem [caso das polticas distributivas ou redistributivas], e decises que estabelecem regras ou estruturas de autoridade que guiaro futuras alocaes [caso das polticas regulatrias ou auto-regulatrias]. (Salisbury e Heinz, 1970, p. 40, traduo minha.)

Em seguida Salisbury e Heinz reconhecem que o significado emprico do conceito de integrao/fragmentao do sistema decisrio no claro, o que tenderia a provocar associaes arbitrrias de determinadas caractersticas do sistema decisrio com arenas especficas. Uma das mais presumveis, segundo ilustrao dos prprios autores, seria, por exemplo, a afirmao genrica de que o Poder Legislativo um sistema decisrio fragmentado, ou ento, inversamente, que o Executivo, por ter um chefe nico, integrado. Contudo, a experincia nos mostra que podemos perfeitamente, conforme a natureza da deciso, ou mesmo em razo de contextos polticos especficos, ter no Legislativo um rgo coeso ou dominado por slidas maiorias, que decidem com rapidez e facilidade; bem como, inversamente, governos heterogneos, constitudos por coalizes nem sempre estveis, que se vem paralisados pela permanente necessidade de barganhas internas, sejam estes governos parlamentares ou no.25 Salisbury e Heinz (idem, p. 41) afirmam, ento, que a questo no o grau de integrao alcanado pelo sistema decisrio, mas antes quo difcil ou custoso o processo de se alcanar a coalizo requerida para a tomada de deciso. Com base nesse ponto reformulam o argumento anterior de Salisbury, substituindo o grau de integrao/fragmentao do sistema decisrio pelo custo de se alcanar uma deciso. E com isto mudam os resultados. Invertem-se no diagrama 2x2 de Salisbury as posies originalmente esperadas das polticas distributivas e regulatrias. Assim, quando o padro de demanda fragmentado, teremos decises distributivas se o custo da deciso for baixo; e regulao se o custo da deciso for elevado. Complementarmente, com padro de demanda integrado, teremos polticas redistributivas se o custo da deciso for baixo, e auto-regulatrias se o custo da deciso for elevado. O argumento subjacente simples, e intuitivamente mais persuasivo sob um certo prisma que o esquema anterior: pois simplesmente alega-se que com custos25

Segundo conhecido trabalho de Srgio Abranches (1988), o caso brasileiro constitui precisamente um exemplo sui generis da possibilidade de regimes presidenciais apoiarem-se habitualmente em governos de coalizo, o que faz com que a hiptese apresentada por Salisbury e Heinz (1970) adquira para ns especial interesse.

32 reduzidos se toma a deciso alocativa (distributiva ou redistributiva) e, com custos elevados, decises estruturais, isto , delegaes de autoridade, com resultados regulatrios ou auto-regulatrios (idem, p. 49).26 Por outro lado, no deixa de parecer estranho que polticas distributivas requeiram baixo custo de tomada de deciso. Posto assim, o argumento d a entender que seria mais fcil adotar polticas regulatrias que distributivas o que, convenhamos, bastante contra-intuitivo. Figura 2 Alto Custo da Tomada de Deciso regulao auto-regulao Baixo Custo da Tomada de Deciso distribuio redistribuio

Padro de Demandas Fragmentado Padro de Demandas Integrado

Fonte: Salisbury e Heinz (1970). De qualquer maneira, dadas as enormes dificuldades com que se ir deparar qualquer tentativa de se elaborar uma tipologia generalizvel de polticas pblicas, as contri