36
De Quilombos a quilombolas: notas sobre um processo histórico-etnográfico 1 Carlos Eduardo Marques 2 Faculdade de Ciências Jurídicas da FEVALE/UEMG RESUMO: Busca-se neste artigo, através de uma breve revisão, demonstrar que apesar da necessidade de se conhecer a definição histórica de quilombo, a mesma não se aplica de forma adequada à categoria de remanescentes de quilombo ou quilombolas, pois esta se refere a um processo de auto-reco- nhecimento feito por grupos com características étnicas que se mobilizam ou são mobilizados em torno de conquistas, entre as quais, a posse definitiva de seu território social. A categoria remanescente de quilombos é, portanto, um construto que só atinge sua plenitude na interface entre os discursos antropológico, jurídico, dos quilombolas (nativo) e dos movimentos envol- vidos com a temática. E para sua correta compreensão, é necessário que se pratique a etnografia, entendida como o momento privilegiado em que se pode compreender o quilombo não apenas como um lugar definido exter- namente – ou seja, geograficamente determinado, historicamente construído e (talvez) documentado, ou um achado arqueológico –, mas também como um ente vivo. PALAVRA-CHAVE: Quilombo, remanescentes de quilombo, etnografia. Introdução A palavra quilombo, no Dicionário Aurélio (1988), é definida da seguinte maneira: “s.m. bras. Valhacouto de escravos fugidos”. Dito de outra ma-

De Quilombos a Quilombolas

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Texto Sobre Quilombolas

Citation preview

  • De Quilombos a quilombolas:notas sobre um processo histrico-etnogrfico1

    Carlos Eduardo Marques 2

    Faculdade de Cincias Jurdicas da FEVALE/UEMG

    RESUMO: Busca-se neste artigo, atravs de uma breve reviso, demonstrarque apesar da necessidade de se conhecer a definio histrica de quilombo,a mesma no se aplica de forma adequada categoria de remanescentes dequilombo ou quilombolas, pois esta se refere a um processo de auto-reco-nhecimento feito por grupos com caractersticas tnicas que se mobilizamou so mobilizados em torno de conquistas, entre as quais, a posse definitivade seu territrio social. A categoria remanescente de quilombos , portanto,um construto que s atinge sua plenitude na interface entre os discursosantropolgico, jurdico, dos quilombolas (nativo) e dos movimentos envol-vidos com a temtica. E para sua correta compreenso, necessrio que sepratique a etnografia, entendida como o momento privilegiado em que sepode compreender o quilombo no apenas como um lugar definido exter-namente ou seja, geograficamente determinado, historicamente construdoe (talvez) documentado, ou um achado arqueolgico , mas tambm comoum ente vivo.

    PALAVRA-CHAVE: Quilombo, remanescentes de quilombo, etnografia.

    Introduo

    A palavra quilombo, no Dicionrio Aurlio (1988), definida da seguintemaneira: s.m. bras. Valhacouto de escravos fugidos. Dito de outra ma-

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41339

  • - 340 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    neira, quilombo designa os redutos constitudos pelos negros fugidosda escravido no Brasil Colonial e Imperial. Segundo Blanco e Blanco:

    O dicionrio do Brasil Colonial nos informa que a palavra quilombo

    originria banto (lngua africana) kilombo e significa acampamento ou for-

    taleza e foi usada pelos portugueses para denominar as povoaes cons-

    trudas por escravos fugido. (http://www.filologia.org.br/ivjnf/15.html)

    A idia de quilombo percorre h longo tempo o imaginrio da naoe uma questo relevante desde o Brasil Colnia, passando pelo Imp-rio e chegando Repblica. Concorda-se com Leite (2003) quando estaafirma que tratar do tema quilombos e dos quilombolas , ainda na atu-alidade, tratar tanto de uma luta poltica quanto de uma reflexo cient-fica em processo de construo.

    O Quilombo enquanto definio cientfica

    O que se pretende em uma seo com tal denominao? Um inventrioda definio cientfica de Quilombo? Tudo indica que sim, embora noseja esta a pretenso, pois, como bem definido por Mata:

    (...) a realizao de um inventrio prvio de tudo o que se publicou a res-

    peito? Ora, tal pressuposto no apenas irrealizvel. Ele , em si mesmo,

    irrelevante do ponto de vista epistemolgico. Somente aqueles ainda pre-

    sos a uma concepo de cincia marcada pelo que os pensadores acima

    [Mata se refere Simmel, Webber e Schtz] chamaram de realismo ing-

    nuo (noo sem dvida menos dada a equvocos que a de positivismo) se

    oporiam a tal esforo sob o argumento de que uma base emprica insufi-

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41340

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 341 -

    ciente inviabiliza toda e qualquer forma de compreenso (Verstehen) do

    passado. (Mata, 2005, pp. 73-74, grifo nosso)

    Pretende-se apenas explorar alguns conceitos que ajudam a definir aidia de Quilombo. As definies so amplas e variveis, alternando deacordo com a perspectiva de quem as elabora e com qual finalidade ofaz. Sendo assim, esse exerccio consiste em uma pequena reviso bi-bliogrfica com a inteno de apresentar as diferentes concepes naelaborao da categoria quilombo e que, posteriormente, influencia-ram direta ou indiretamente na construo da categoria remanescentesde quilombos.

    Segundo Guimares (1983), para se identificar um quilombo impor-ta menos seu tamanho e o nmero de negros fugidos que o compemdo que seu trao marcante, que a negao do sistema escravista. Oautor adere s correntes de pensamento do sculo XVIII, segundo asquais existiria quilombo onde houvesse negros fugidos, e s teorias decarter marxista em que o quilombo a negao do poder constitudo.

    A noo de quilombo adotada por Guimares (1983) baseia-se numapremissa filosfica e poltica: a busca pela liberdade por meio da nega-o de um sistema opressivo. Sua definio pode constituir uma anlisemarxista-leninista, pois os quilombos passam a ocupar o locus de resis-tncia das classes oprimidas, a primeira gesta de um movimento revolu-cionrio na acepo marxista do termo.

    Assim, o autor em estudo tributrio das anlises de Dcio Freitas eClvis Moura,3 para quem o quilombo representaria um microcosmodas lutas sociais brasileiras, embries revolucionrios em busca de umatransformao social que, por essa caracterstica, poderiam ser associa-dos inclusive luta armada em um contexto como o de combate Dita-dura Militar, perodo no qual tais autores elaboraram suas idias.

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41341

  • - 342 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    Embora esse movimento intelectual tenha representado um avanonas discusses referentes s questes dos conflitos sociais e tnico-raciaise um aprofundamento no que concerne investigao histrica e factual,pouco se estudou do fenmeno em si.

    Em contraposio corrente poltico-marxista4 de anlise do fenme-no quilombo, poder-se-ia falar de uma corrente tecnicista, em que a me-lhor maneira de definir quilombo passa pela busca de certos traos emcomum, por uma tipologia na qual o acento so as dimenses espaciais,o nmero de membros e as atividades econmicas desenvolvidas.

    Para Schwartz (1994), um quilombo com at cem membros deveriaser considerado pequeno. Por sua vez, Gomes (1996) se refere a umadiviso entre mocambos e quilombos, os primeiros dividindo-se em doistipos: os pequenos mocambos (entre dez e trinta integrantes), os mdiosmocambos (com duas ou trs centenas de integrantes) e, finalmente, oquilombo. Rhring-Assuno (1996) elabora uma classificao com basena localizao geogrfica e nas atividades econmicas e, do cruzamentodas duas variveis, conclui pela existncia de trs formas bsicas dequilombos, diferenciadas em razo de sua independncia econmica emrelao aos ncleos de povoamento rural ou urbano: os pequenos qui-lombos (prximos das fazendas), os quilombos de economia de subsis-tncia relativamente desenvolvida (com eventual comercializao de ex-cedentes) afastados dos ncleos de povoamento rural ou urbano, e ogrande quilombo de base agrcola e minerador, tambm afastado dosncleos de povoamento rural ou urbano. Em contraposio aos autoresacima, Mata (2005) cria uma classificao dos quilombos marcada pelocritrio morfolgico e no aritmtico.5

    As definies acima pouco conceituam o quilombo como unidadeviva e, de certa forma, se aproximam das definies arqueolgicas de qui-lombo. Veja a definio arqueolgica de quilombo encontrada em Arruti:

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41342

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 343 -

    quilombos so os stios historicamente ocupados por negros que tenham

    resduos arqueolgicos de sua presena, inclusive as reas ocupadas ainda

    hoje por seus descendentes, com contedos etnogrficos e culturais. (Re-

    vista Isto , 20/06/1990, p. 34 apud Arruti, 2003, p. 14)

    Apesar de se diferenciarem nas opes tericas, as correntes poltico-marxista e tecnicista, bem como a arqueologia, adotam uma definiohistrica e passadista de quilombo, entendendo-o como um lugar queencerra uma tradio, um patrimnio histrico. Para Almeida (2002),as definies arqueolgicas, as quais acrescento a que classifiquei de tec-nicistas, tm como caractersticas a presena de cinco elementos mar-cantes: 1) a fuga; 2) uma quantidade mnima de fugidos; 3) o isolamen-to geogrfico, em locais de difcil acesso e mais prximos de uma naturezaselvagem do que da chamada civilizao; 4) moradia habitual, referidano termo rancho; 5) consumo e capacidade de reproduo, simboliza-dos na imagem do pilo de arroz.

    Para Almeida (2002), essa viso insatisfatria por dois motivos: pri-meiro, possvel encontrar vrias exemplificaes que contrariam taiscaractersticas, como o caso das comunidades estudadas por ele noMaranho; e segundo, principalmente porque nesta viso:

    (...) o quilombo j surge como sobrevivncia, como remanescente. Reco-

    nhece-se o que sobrou, o que visto como residual, aquilo que restou, ou

    seja, aceita-se o que j foi. Julgo que, ao contrrio, se deveria trabalhar com

    o conceito de quilombo considerando o que ele no presente. Em outras

    palavras, tem que haver um deslocamento. No discutir o que foi, e sim

    discutir o que e como essa autonomia foi sendo construda historicamen-

    te. Aqui haveria um corte nos instrumentos conceituais necessrios para se

    pensar a questo do quilombo, porquanto no se pode continuar a traba-

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41343

  • - 344 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    lhar com uma categoria histrica acrtica nem com a definio de 1740.

    (Almeida, 2002, pp. 53-54)

    Em seu lugar, o autor defende a adoo da observao etnogrfica,mtodo atravs do qual seria possvel romper com a viso que ele deno-mina frigorificada de quilombo, isto , composta dos mesmos elemen-tos descritivos contidos na resposta do Conselho Ultramarino ao Rei dePortugal, em 1740.6 Ainda conforme o autor:

    (...) necessrio que nos libertemos da definio arqueolgica, da defini-

    o histrica strictu sensu e das outras definies que esto frigorificadas e

    funcionam como uma camisa-de-fora, ou seja, da definio jurdica dos

    perodos colonial e imperial e at daquela que a legislao republicana no

    produziu, por achar que tinha encerrado o problema com a abolio da

    escravatura, e que ficou no desvo das entrelinhas dos textos jurdicos.

    (Almeida, 2002, pp. 62-63)

    Como se verifica na passagem acima, o que caracterizaria um qui-lombo a produo autnoma, livre da ingerncia de um senhor e noo seu isolamento, consumo, capacidade de reproduo, moradia etc.7

    Price (1973), por sua vez, se refere a rebel slave communities, o quepermite uma sada da viso sem sujeitos e paradoxalmente supra-hist-rica.8 Quilombo, a partir dessa nova ressignificao, no apenas umatipologia de dimenses, atividades econmicas, localizao geogrfica,quantidade de membros e stio de artefatos de importncia histrica.Ele uma comunidade e, enquanto tal, passa a ser uma unidade viva,um locus de produo material e simblica. Institui-se como um siste-ma poltico, econmico, de parentesco e religioso que margeia ou podeser alternativo sociedade abrangente. No mesmo sentido, Carvalho

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41344

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 345 -

    (2006) afirma que no possvel reduzir a idia de quilombo s defini-es histricas, s idias de isolamento, fuga ou mesmo a uma supostaunicidade entre os quilombos, mas que eles devem ser considerados emsuas especificidades, cada grupo com suas caractersticas prprias:

    preciso considerar a diversidade histrica e a especificidade de cada gru-

    po e, ao mesmo tempo, o papel poltico desempenhado pelos grupos que

    reivindicam o reconhecimento como remanescente de quilombo. (Car-

    valho, 2006, p. 1)

    A ressignificao da idia de quilombo

    Como j mencionado, a categoria remanescentes de comunidades de qui-lombos confunde-se no senso comum com a definio histrica epassadista de Quilombo to bem definida por Almeida (2002) comofrigorificada, e por isso mesmo, trata-se de uma concepo a ser supera-da, ou melhor, ressemantizada.

    Tal ressemantizao nos interessa, pois permite aos grupos que seauto-identificam como remanescentes de quilombo ou quilombola umaefetiva participao na vida poltica e pblica, como sujeitos de direito.Alm disso, a referida ressignificao afirma a diversidade histrica e aespecificidade de cada grupo. A ressemantizao deste termo percorreuum longo caminho, tanto temporal quanto discursivo. Explicaremos aseguir, de forma resumida, esse processo.

    Como eixo para desenvolvimento do tema, prope-se o seguintequestionamento: de que se trata, portanto, os chamados remanescentesde quilombo, ou Quilombolas? Pode-se responder que se trata de umfenmeno sociolgico caracterizado, segundo Almeida (2002) pelos se-

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41345

  • - 346 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    guintes pontos: (1) indissociabilidade entre identidade e territrio; (2)processos sociais e polticos especficos, que permitiram aos grupos umaautonomia; (3) territorialidade especfica, cortada pelo vetor tnico noqual grupos sociais especficos buscam uma afirmao tnica e polticaem face de sua trajetria.

    Tais grupos no precisam apresentar (e muitas vezes no apresentam)nenhuma relao com o que a historiografia convencional trata comoquilombos. Os remanescentes de quilombos so grupos sociais que semobilizam ou so mobilizados por organizaes sociais, polticas, reli-giosas, sindicais etc., em torno do auto-reconhecimento como um ou-tro especfico. Por conseguinte, ocorrem buscas pela manuteno ou re-conquista da posse definitiva de sua territorialidade. Tais grupos podemapresentar todas ou algumas das seguintes caractersticas: definio deum etnnimo, rituais ou religiosidades compartilhadas, origem ou an-cestrais em comum, vnculo territorial longo, relaes de parentesco ge-neralizado, laos de simpatia, relaes com a escravido, e, principal-mente, uma ligao umbilical com seu territrio etc.

    A idia de quilombo, como afirmado, constitui-se em um campo con-ceitual com uma longa histria. No entanto, o significado histrico deveser colocado em dvida e classificado como arbitrrio para que possaalcanar as novas dimenses do significado atual de Quilombo (Almeida,1996, p. 11). O significado atual fruto das redefinies de seus instru-mentos interpretativos. O quilombo ressemantizado um rompimentocom as idias passadistas (frigorificadas) e com definies jurdico-for-mal historicamente cristalizada, tendo como ponto de partida situaessociais e seus agentes que, por intermdio de instrumentos poltico-organizativos (tais como os prprios grupos interessados, associaesquilombolas, ONGs, movimentos negros organizados, movimentos so-ciais e acadmicos), buscam assegurar os seus direitos constitucionais.

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41346

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 347 -

    Ocorre que, para tanto, os agentes quilombolas e seus parceiros pre-cisam viabilizar o reconhecimento de suas formas prprias de apro-priao dos recursos naturais e de sua territorialidade (ibid., p. 12).Em outras palavras, precisam se impor enquanto um coletivo tnico e,para tanto, no mais importa o arcabouo jurdico-formal historica-mente cristalizado a despeito dos quilombos, que existira na estruturajurdica colonial e imperial (sempre com caractersticas restritivas e pu-nitivas) e que se encontrava ausente do campo jurdico republicano ata promulgao da Constituio da Repblica Federativa do Brasil em1988.9 Importa aqui o direito adquirido no art. 68 dos Atos Dispositi-vos Constitucionais Transitrios (ADCT).

    O conceito anteriormente utilizado pela Fundao Cultural Palmares(FCP),10 que compreendia o quilombo por qualidades culturais subs-tantivas e por sua histria de lutas pretritas, bem como uma unidadeguerreira e auto-suficiente, no era mais suficiente para responder aosanseios criados pelo dispositivo constitucional.

    Com a redefinio do termo quilombo, a nova sematologia retira oacento da atribuio formal e das pr-concepes e passa a considerar acategoria remanescentes de quilombo, como um auto-reconhecimento porparte dos atores sociais envolvidos.

    Aqui comea o exerccio de redefinir a sematologia, de repor o significado,

    frigorificado no senso comum. O estigma do pensamento jurdico (desor-

    dem, indisciplina no trabalho, autoconsumo, cultura marginal, perifrica)

    tem que ser reinterpretado e assimilado pela mobilizao poltica para ser

    positivado. A reivindicao pblica do estigma somos quilombolas fun-

    ciona como alavanca para institucionalizar o grupo produzido pelos efei-

    tos de uma legislao colonialista e escravocrata. A identidade se funda-

    menta a. No inverso, no que desdiz o que foi assentado em bases violentas.

    Neste sentido, pode-se dizer que: o art. 68 resulta por abolir realmente o

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41347

  • - 348 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    estigma (e no magicamente); trata-se de uma inverso simblica dos si-

    nais que conduz a uma redefinio do significado, a uma reconceituao,

    que tem como ponto de partida a autodefinio e as prticas dos prprios

    interessados ou daqueles que potencialmente podem ser contemplados pela

    aplicao da lei reparadora de danos histricos. (Almeida, 1996, p. 17)

    A lei exige a auto-proclamao como remanescente, entretanto oprocesso de afirmao tnica historicamente no passa pelo resduo, pelasobra ou pelo que foi e no mais, seno pelo que de fato , pelo queefetivamente e vivido como tal. A antiga sematologia (mais preocu-pada com o que foi) era a balizadora da definio da FCP, que poderiaser resumida na expresso pedra e plstico.

    De fato, as primeiras iniciativas da FCP em responder s demandasque surgiam pela aplicao do artigo constitucional se deram por meioda constituio de uma Subcomisso de Estudos e Pesquisas (formadapor tcnicos da FCP e do Instituto Brasileiro de Patrimnio Cultural IBPC) e por uma Comisso Interministerial, que tinha a tarefa de

    identificar, inventariar e propor o tombamento daqueles stios e popula-

    es que descendem da cultura Afro-brasileira, que devero, aps o laudo

    antropolgico, ser reconhecidos como remanescentes de quilombos atra-

    vs da FCP, to logo se regularize o Art. 68.11

    Assim para os rgos governamentais o que prevalecia era a noohistoricista, arqueolgica e objetificadora de preservao cultural, parti-cularmente no tocante ao patrimnio de caracterstica material (um lu-gar definido externamente, geograficamente determinado, historica-mente construdo e talvez documentado, ou um achado arqueolgico).Ocorre que essa viso no poderia ser aplicada aos quilombolas, eles pr-prios exemplo de patrimnio tangvel e intangvel.12

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41348

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 349 -

    As prticas de preservao histrica so vistas como uma forma de sepreservar qualquer objeto cultural que se encontre em um processo ine-xorvel de destruio no qual valores, instituies e objetos associados auma cultura, tradio, identidade ou memria de um grupo, de um localou nacional, tendem a se perder. O fato que, como sugere Handler(1984; 1988 apud Gonalves, 1996), os processos de inveno de cultu-ras e tradies so fruto de uma objetificao cultural. O que para Whorf(1978 apud Gonalves, 1996) refere-se tendncia da lgica culturalocidental a imaginar fenmenos no materiais (como o tempo) comose fosse algo concreto, objetos fsicos existentes. A este respeito, Wagner(1975, p. 8) lembra que

    (...) a antropologia nos ensina a objetificar aquilo a que estamos tentando

    nos ajustar (durante o trabalho de campo) como cultura, assim como o

    psicanalista ou o xam exorciza as ansiedades do paciente objetificando

    suas fontes.

    Assim, com os instrumentos e as concepes reinantes no chamadomundo ocidental moderno, no possvel, sem um rompimento acad-mico com as teorias dicotomizadoras que separam o material e o espiri-tual, avanar na realizao de trabalhos a respeito da promoo da cul-tura, no sentido adotado por Geertz (1978, p. 58): A cultura acumuladade padres no apenas um ornamento da existncia humana, mas umacondio essencial para ela a principal base de sua especificidade.Portanto, a prpria concepo de diviso material/imaterial deveria serrevista, na busca por fazer reconhecer a voz da cidadania autnoma eautoconsciente dos bens culturais, e no transform-los em objetos dodesejo, que, conforme Stewart (1984, p. 25), passam a ser consideradosapenas em termos de uma presena/ausncia:

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41349

  • - 350 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    enquanto significantes, esses objetos so usados para significar uma reali-

    dade que jamais poder ser trazida por eles, uma realidade que ser, como

    todo objeto de desejo, para sempre ausente. As prticas de apropriao,

    restaurao e preservao desses objetos so estruturalmente articuladas por

    um desejo permanente e insacivel pela autenticidade, uma autenticidade

    que efeito da sua prpria perda.

    Em resumo, ao se essencializar esses patrimnios, perde-se a sua prin-cipal caracterstica, a vivacidade, um bem em movimento constante,dinmico e vivo, o que ele , e o transforma em um objeto de desejoinsacivel, a ser rememorado a partir de uma definio externa a despei-to de suas especificidades. Na verso ressignificada, o termo remanescen-tes de quilombo exprime um direito a ser reconhecido em suas especi-ficidades e no apenas um passado a ser rememorado. Ele a voz dacidadania autnoma destas comunidades.

    A este respeito, Sahlins (1990), em Ilhas de histria, j orientava ocaminho a seguir: o abandono do essencialismo atravs da estrutura deconjuntura, que funciona como um terceiro termo entre a estrutura e oevento, uma sntese situacional dos dois. A cultura, enquanto uma sn-tese entre estabilidade e mudana, passado e presente, diacronia esincronia, permite perceber a mudana como uma reproduo cultural,como um dilogo simblico da histria.

    Dilogo entre as categorias recebidas e os contextos percebidos, en-tre o sentido cultural e a referncia prtica. Cada esquema cultural par-ticular cria as possibilidades de referncias materiais para as pessoas deuma sociedade e, enquanto esquema, ele constitudo sobre distinesde princpios, que, em relao aos objetos, nunca so as nicas distin-es possveis.

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41350

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 351 -

    Chega-se ao salto terico que permitiu a Sahlins (1990, p. 190) pro-por a exploso do conceito de histria pelo conceito de antropologia, eeste pelo conceito de histria. A estrutura de conjuntura uma ao sim-blica comunicativa e conceitual

    uma prtica antropolgica total, contrastando com qualquer reduo feno-

    menolgica, no pode omitir que a sntese exata do passado e do presente

    relativa ordem cultural, do modo como se manifesta em uma estrutura

    da conjuntura especfica.

    Pensar a ressemantizao como uma definio pragmtica das cate-gorias e das transformaes entre elas, como pensou Sahlins ao analisara estrutura social havaiana e as mudanas provocadas pela chegada es-trangeira, significa perceber que o alcance lgico (a prxis) precede astransformaes funcionais. Da a reproduo da estrutura implicar suaprpria modificao. Esse mesmo pensamento pode ser aplicado cate-goria remanescentes de quilombo, que fruto de uma histria na qualtanto seu significado semntico quanto sua operacionalidade poltica soigualmente importantes.

    Dito de outra forma, remanescentes de quilombo pode ser entendi-do como aquilo que os antroplogos chamam de estrutura, ou seja, as relaes simblicas de ordem cultural. Nessa ressemantizaofuncional da categoria e dos processos histricos que a mesma passade uma conveno prescritiva, ou frigorificada, que se refere ao passado,para uma inveno performativa, que se refere ao presente. justamen-te essa reproduo da estrutura que implica em sua transformao.13

    O que no bem aceito pelo senso comum e por setores dogmticos,seja no campo acadmico, seja no campo no acadmico.

    Em forma esquemtica:

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41351

  • - 352 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    prxis teoria estrutura eventoestabilidade mudana

    estrutura de conjuntura

    (terceiro termo mediador)

    permite superar os contrastes binrios /possui um valor para as determinaes simblicas

    e um valor para os poderes estabelecidos

    De quilombos a quilombolas

    dessa forma estrutural-histrica que deve ser entendida a categoria re-manescentes de quilombos, como um ente vivo, para que possa cumprir ofim a que se props e sua ordem constitucional: o reconhecimento dapropriedade territorial definitiva e a emisso de seus respectivos ttulos.Torna-se necessria a ruptura com o modelo de pedra e cal e a elabo-rao de um novo conceito socioantropolgico e jurdico para os rema-nescentes das comunidades de quilombo, uma vez que o art. 68 do ADCT14

    no apenas reconheceu o direito que as comunidades remanescentes dequilombos possuem sobre as terras que ocupam, como tambm criou talcategoria poltica e sociolgica: embora os grupos tnicos beneficiadospela legislao j existissem, no se denominavam com base na catego-ria remanescentes de quilombos.

    Na expresso de uma profissional do direito que trabalha na rea, oart. 68 percorreu um caminho da realidade para o artigo, e no o maiscomumente encontrado, do artigo para a realidade.15 Isso quer dizer que,por presso dos atores envolvidos, o Estado Nacional teve que reconhe-cer juridicamente a idia antropolgica de etnicidade. A afirmao da

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41352

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 353 -

    pluralidade, portanto, no um atributo estatal, e sim o reconhecimen-to da existncia de grupos de indivduos que coletivamente assumem,por diferentes motivos e razes (negativos ou positivos), uma identida-de tnica.

    Mas o que se entende por etnia ou por identidade tnica? Seria umaetnia essencialista, marcada por critrios biolgicos, raciais, culturais elingsticos? A resposta no. Quando se refere etnia, reporta-se denominada nova etnicidade, tributria a estudiosos como Barth(1998) para quem esta consiste em um tipo de organizao que conferepertencimento atravs da afiliao e da excluso, em uma relao de fron-teiras contrastivas.

    Na medida em que os atores usam identidades tnicas para categorizar a si

    mesmos e outros, com objetivos de interao, eles formam grupos tnicos

    neste sentido organizacional. (Ou ento) o ponto central da pesquisa tor-

    na-se a fronteira tnica que define o grupo e no a matria cultural que ela

    abrange. As fronteiras s quais devemos consagrar nossa ateno so, cla-

    ro, as fronteiras sociais, se bem que elas possam ter contrapartidas

    territoriais. (Barth, 1998, p. 195)

    Por sua vez, a ABA (1994) se refere identidade coletiva definidapela referncia histrica comum, construda a partir de vivncias e va-lores partilhados. Fala-se, portanto, de uma identidade em termos t-nicos, de uma existncia coletiva em consolidao, que se fundamentaem uma autoconscincia identitria, cujas demandas por direitos se re-velam mediante organizao social e poltica, possuindo no territriouma de suas formas mais expressivas de afirmao.

    Falar em etnia como existncia coletiva, como uma rea de fronteiras ou, no sentido adotado por Weber (2004), em que etnicidade uminstrumento poltico (de organizao sociopoltica) , reforar a im-

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41353

  • - 354 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    portncia da etnografia e do estar l, visto que no se trata mais de dizero que o outro , de forma arbitrria e com base em critrios pretensa-mente objetivos, e sim de permitir que a subjetividade, o contexto e amobilizao dos sujeitos de direitos, formadores de uma identidade co-letiva, se expressem. No se est diante de um a priori histrico, jurdi-co, arqueolgico ou sociolgico, e sim de uma afirmao identitria pelacontraposio, atravs da auto-atribuio.

    Desta breve discusso revisria, conclui-se que o conhecimento daidia no ressignificada de quilombo necessria para a atual compre-enso do termo em seus diferentes matizes, concepes, metodologias eideologias.16 No entanto, no se aplica de forma totalmente adequada categoria de remanescentes de quilombo ou quilombolas, pois esta se referea um processo de auto-reconhecimento feito por grupos com caracte-rsticas tnicas, que se mobilizam ou so mobilizados em torno de con-quistas, dentre as quais, a posse definitiva de seu territrio ou locus tnico.

    A categoria remanescentes de quilombos um construto que s atingesua plenitude na interface entre os discursos antropolgico, jurdico, dosquilombolas e dos movimentos envolvidos com a temtica. Como se da interface entre os diferentes discursos e conhecimentos e, de formamais especfica, a relao entre o antroplogo e as comunidades estuda-das; a relao entre a antropologia e o direito, quer na construo e nadefinio das caractersticas dessa categoria quer em sua aplicabilidadeprtica na elaborao de um trabalho pericial laudo antropolgico ouum Relatrio Tcnico de Identificao e Delimitao; a relao neces-sariamente tensa e construtiva entre o antroplogo enquanto um estu-dioso e o antroplogo enquanto um cidado so questes que necessitamde maiores esclarecimentos. Aqui far-se-o apenas breves comentriosexploratrios a respeito dessas interfaces.

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41354

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 355 -

    O trabalho do antroplogoem um contexto de percia antropolgica

    O trabalho antropolgico defronta-se com o que Anjos (2005, p. 91)to bem definiu a respeito do territrio:

    Algo humano e no-humano, jurdico e cientfico, poltico institucional e

    insurgente, o territrio delimitado pelo laudo seria um hbrido, nem ape-

    nas fato, nem to-somente fico ou fetiche: seria um fe(i)tiche, se se pu-

    desse aqui empregar o termos de Latour (1994).

    A passagem expe o cerne do trabalho etnogrfico: os limites entre ofato e o dado. Entre um fazer, a antropologia que se quer e se imaginacomo uma interpretao (e, nesse sentido, um arbitrrio de um momen-to especfico) e certas reas do direito, que, com certo senso comum,em sua positividade, buscam a objetividade, entendida como a verdadenica dos fatos, (ODwyer, 2005, p. 215-216) esclarece que, no traba-lho antropolgico, em laudos, relatrios e percias, existe um lugar co-mum na prtica antropolgica e no papel do antroplogo, a explora-o das diferenas entre populaes. No entanto, a pergunta acerca domodo como essa prtica deveria acontecer continua em aberto: poss-vel ao antroplogo a dita neutralidade cientfica na elaborao de umlaudo, parecer ou relatrio? Quando se designa um antroplogo peritoem uma questo, o que se espera da percia?

    Caso se pergunte a um antroplogo o que ele faz, diversas sero asrespostas, e nelas somente ser comum o fato de que fazem etnografias.17

    Esta a nossa tradio, e o campo o nosso rito de passagem. Antrop-logo aquele que est l, na feliz expresso de Geertz (1989), ainda queescreva, reflita e raciocine estando aqui. O estar l significa permanecer

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41355

  • - 356 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    entre os nativos, observ-los, ouvi-los, interagir com eles, registrar o quese observou, e, principalmente, apreender seus modos de vida. Portan-to, quando se l um laudo, uma percia ou um relatrio antropolgico,est-se diante de uma escrita baseada na estada no campo.

    Nesse contexto, o trabalho pericial antropolgico consiste na aplica-o de um conhecimento especfico e interessado e na sua interlocuo aum no-especialista, portanto, um no-perito na situao social pes-quisada. Segundo Oliveira (2005, p. 151), o laudo pericial antropol-gico tornar-se-ia, assim, uma tentativa de dar voz a esses agrupamentosnas instncias jurdicas e polticas mais elevadas, onde seus membrosno tm a chance de falar.

    O trabalho pericial18 baseado na autoridade, nas aptides e nos co-nhecimentos especiais. Neste caso particular, na autoridade etnogrfica.Segundo Carreira (2005), o papel da antropologia oferecer subsdioscom base nas dinmicas socioculturais prprias do grupo estudado, demodo a fornecer informaes qualificadas para a deciso a ser tomada.Ocorre que, para tanto, a episteme antropolgica precisa estranhar asdefinies de neutralidade definidas pelo senso comum. Tal estranha-mento advm de pelo menos dois fatores, que se encontram intima-mente associados: (1) o fazer antropolgico (etnografia); e (2) a relaoentre o pesquisador e o sujeito estudado, conseqentemente, a relaoentre pesquisador e organizaes contratadoras ou financiadoras do es-tudo, tais como as associaes cientficas e de classe, organizaes no-governamentais, governamentais, estatais, jurdicas, do setor produtivoetc. Assim, tal estranhamento advm da metodologia, do mtodo e doponto de vista adotado pelo antroplogo.

    Quanto ao fazer antropolgico, como bem lembrou Crapanzano(2004), a etnografia, enquanto uma forma de traduo, um modo maisou menos provisrio de fazer um acordo, quer entre a estranheza daslnguas quer da cultura e das sociedades. A etnografia, enquanto uma

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41356

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 357 -

    forma de escrita pretende ser a-histrica, ou melhor, sincrnica. Defato, ela no consegue escapar da histria, ela determinada historica-mente pelo momento do encontro do etngrafo e quem quer que eleesteja estudando.

    O antroplogo, tal como Hermes, um mensageiro. No um sim-ples mensageiro, pois este decodifica a mensagem, interpreta-a, clareiao opaco, torna familiar o estranho; e, como Hermes, o antroplogo aquele que promete no mentir, no entanto, como se trata de uma tra-duo, neste processo ele no pode garantir toda a verdade.

    Se entender-se a antropologia tal como os hermeneutas, o antroplo-go deve estar ciente de que produz uma interpretao e, como tal, ela provisria. No entanto, em um trabalho pericial, exige-se dele uma lei-tura definitiva para a sua escritura. Eis um paradoxo: suas interpretaesso provisrias, no entanto elas devem apoiar apresentaes definitivas.

    O antroplogo, alm de ser mensageiro, aquele que consegue inter-pretar, deve ser tambm, como Hermes, um smbolo de fertilidade, eseu texto etnogrfico dever ser grvido de significaes. Eis o segundoparadoxo: o etngrafo deve dar sentido ao estranho, deve tornar famili-ar o estranho e, ao mesmo tempo, preservar a prpria estraneidade, queso as caractersticas que tornam o outro um outro. O etngrafo faz essajuno, o casamento entre a apresentao que afirma o estranho e a in-terpretao que o torna familiar, atravs da traduo.

    Tais estratgias, chamadas de alegorias etnogrficas (Clifford, 1998),so as formas encontradas pelos etngrafos para construir a autoridadeetnogrfica. Para isso, o etngrafo deve demonstrar, no texto, que esta-va presente nos eventos descritos, o estar l, sua capacidade perceptiva,sua perspectiva, sua objetividade e sua sinceridade tal como desejadopor Geertz.19 Este autor, no captulo Uma descrio densa: por umateoria interpretativa da cultura, da obra A interpretao das culturas(1978), traz alguns dos dilemas enfrentados pelo antroplogo ao elabo-

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41357

  • - 358 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    rar uma etnografia. A antropologia, como cincia do homem e destecom as teias que ele mesmo teceu (ou seja, sua cultura), no umacincia experimental em busca de leis, e sim uma cincia interpretativaem busca de significados. Na antropologia, o que seus praticantes fa-zem a etnografia; e esta se apresenta como o meio de transformar aanlise antropolgica em uma forma de conhecimento, atravs de umadescrio densa, estabelecendo relaes, selecionando informantes, trans-crevendo textos, levantando genealogias, mapeando campos, manten-do um dirio etc.

    A etnografia, por ser uma descrio densa, a hierarquizao estrati-ficada de estruturas significantes. Em outras palavras, a anlise da pro-duo, da percepo e da interpretao dos fatos. Somente a descriodensa, que o objeto da etnografia e a forma antropolgica de produodo conhecimento, permite ao etngrafo se desvencilhar das armadilhasda descrio superficial ou operacional. O etngrafo aquele que estu-da as estruturas superpostas de influncias e implicaes:

    O que o etngrafo enfrenta, de fato, uma multiplicidade de estruturas

    conceituais complexas (...) que so simultaneamente estranhas, irregulares

    e inexplcitas, e que ele tem que, primeiro apreender, e depois apresentar.

    (Geertz, 1978, p. 20)

    Para o autor, a pesquisa etnogrfica e o texto antropolgico tm comofinalidade a conversa com o objeto de estudo. No se trata de tornar-senativo e ou copi-lo, mas sim de perceber o alargamento do universo dodiscurso humano. O trabalho do antroplogo consiste em compreen-der a cultura de um povo, a sua normalidade, sem reduzir sua particula-ridade. Os textos antropolgicos so eles mesmos interpretaes e, naverdade, de segunda e terceira mo, ou seja, para o antroplogo seu tex-to algo construdo, uma fabricao do objeto de estudo, portanto, cabe

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41358

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 359 -

    a ele recolher os fatos e analis-los de acordo com a forma de pensamen-to do nativo, tornando os atos nativos no-familiares em familiares.

    As formas culturais encontram sua articulao na ao social, no flu-xo do comportamento, tornando-se, portanto, necessrio ao etngrafoatentar para o comportamento e interpret-lo de acordo com os aconte-cimentos (suas aplicaes e implicaes), pois a interpretao antropo-lgica busca a construo da leitura do que acontece: trata-se de traar acurva do discurso social e fix-lo em uma forma inspecional.

    Na alegoria tradicional da escrita antropolgica, a perspectiva antro-polgica deve(ria) ser desinteressada, e o lugar do etngrafo no texto puramente retrico. Ele no tem um lugar fixo de observao, sua pers-pectiva itinerante tal como exige sua apresentao totalista dos even-tos. Ele supe que sua posio de invisibilidade. Neste tipo ideal dealegoria etnogrfica, o antroplogo deve estar l por um tempo razo-vel, no mnimo um ano.

    No entanto, em um trabalho pericial, as estratgias devero ser ou-tras: a perspectiva no desinteressada, mas guiada por uma demandaespecfica; o papel do antroplogo no retrico, e sim a de um espe-cialista; sua presena no deve passar por uma invisibilidade, ao contr-rio, dever ser visvel e guiada por uma srie de questes delimitadas.As incurses etnogrficas seguem um cdigo, uma tica formal (no caso,elaborada pela associao acadmica da rea, a Associao Brasileira deAntropologia ABA) e uma tica informal, delimitada pelo prpriocampo. O cdigo reflete as especificidades da prtica antropolgica, e oacento primordial recai na relao entre pesquisador e pesquisado, an-troplogo e populaes pesquisadas. Dentre outras, so obrigaes queum antroplogo deve cumprir: a privacidade, a garantia ao sigilo dasinformaes, o relato aos sujeitos de pesquisa dos destinos e usos dosdados coletados, etc. A essas obrigaes formais somam-se outros com-portamentos informais, imprescindveis para um trabalho de campo: a

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41359

  • - 360 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    empatia, a simpatia, o envolvimento e mesmo o engajamento nas cau-sas e lutas dos grupos estudados.

    Diante das obrigaes formais e informais estaria o profissional sen-do neutro em sua deciso? Segundo Oliveira (2005, p. 151), o trabalhoantropolgico deve ser pautado pelo envolvimento:

    Neste sentido, o antroplogo deve se comprometer com a luta dos grupos

    que reivindicam direitos a terra e cidadania, como tem sido o caso das

    comunidades indgenas e quilombolas no Brasil. Ele deve disponibilizar os

    conhecimentos sobre esses grupos e sobre a sociedade que os oprime. Seu

    trabalho se caracteriza por uma leitura crtica e independente, centrada na

    convivncia com o grupo estudado. Neste sentido, os antroplogos tm

    contribudo para a reduo de preconceitos e esteretipos de ordem racial

    e tnica, de gnero, de classe e cultura.

    Da afirmao do autor, podemos inferir que, para a realizao dotrabalho antropolgico, necessria uma prtica implicada, de ao.Mas em que consiste ela? Significa reconhecer que, em situaes de con-tato, a pesquisa antropolgica, de acordo com o presente etnogrfico,dever apreender e compreender as demandas das populaes e o con-texto de sua relao com o outro, sempre a partir do ponto de vista dapopulao estudada.

    Tal postura pode ser percebida tambm em outros pesquisadores datemtica, tais como: Eliane Cantarino ODwyer, Jos Maurcio Arrutti,Jos Augusto Laranjeiras. Em um interessante e revelador artigo, Car-doso de Oliveira (2000, p. 42) discorre sobre a especificidade do pontode vista do antroplogo nascido nas naes latino-americanas:

    No mais um estrangeiro. Algum que observe de um ponto de vista ou

    horizonte constitudo no exterior, porm, agora, um membro de uma

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41360

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 361 -

    sociedade colonizada em sua origem depois transformada em nova nao

    , um observador eticamente contrafeito de um processo de colonizao

    dos povos aborgenes situados no interior dessa mesma nao. Portanto,

    do ponto de vista desse observador interno de uma sociedade que repro-

    duz mecanismos de dominao e de explorao herdados historicamente,

    o que subsiste no poder ser apenas o deslocamento de um conceito me-

    tropolitano e colonial , sem repercusses na prpria constituio desse

    ponto de vista. Tratar-se-ia, antes, de um ponto de vista diferente, signifi-

    cativamente reformulado, no qual a insero do observador isto , do

    antroplogo como cidado de um pas fracionado em diferentes etnias

    acaba por ocupar um lugar como profissional da disciplina na etnia domi-

    nante, cujo desconforto tico s diludo se passar a atuar seja na acade-

    mia, seja fora dela como intrprete e defensor daquelas minorias tnicas.

    Neste mesmo sentido, Peirano (1992, pp. 99-100) afirma que o an-troplogo no Brasil tem um papel duplo:

    Nesta alteridade dupla, o antroplogo ora constitui-se elite vis--vis os gru-

    pos minoritrios ou oprimidos de sua prpria sociedade, ora categoria so-

    cial inferior frente comunidade acadmica internacional, desta situao

    resultando a combinao de dois papis sociais que, em outros contextos,

    aparentemente podem ser distintos: o do cidado e do cientista. (...) ele o

    cidado brasileiro, responsvel, como parte da elite do pas, pelo preenchi-

    mento dos vazios de representao poltica, especialmente em relao aos

    grupos que estuda. (...) neste nvel que detectamos a avaliao intelectual

    e acadmica que tende a valorizar o trabalho que potencialmente se preste

    como contribuio para a mudana social.

    Portanto, a resposta pergunta muitas vezes ouvida pelos antroplo-gos, sobre se possvel uma prtica profissional imparcial, a princpio

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41361

  • - 362 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    no deve ser dada por locues simplistas do tipo: sim ou no. Aindaque se for para responder deste modo, a resposta clara; nossa prtica imparcial. A prtica pericial de um antroplogo e seus produtos (lau-dos, relatrios ou informes) so instrumentos de conhecimento e, en-quanto tal, dirigida por um profissional controlado por sua comuni-dade acadmica e que realiza um servio especializado. O antroplogo,enquanto perito, aquele que busca aplicar o preceito bsico de suaepisteme,20 qual seja, o abandono de idias preconcebidas, os pr-con-ceitos. Ele busca orientar seu trabalho pelo modo de vida e pelas con-cepes do grupo estudado, baseando-se numa metodologia que negaas concepes etnocntricas e universalistas. Assim, ao negar o universale eleger o particular, sua prtica rompe com os ditames convencionais e,portanto, pode ser confundida com parcialidade. Ao eleger como pri-mordial a relao com o seu pesquisado, o antroplogo est na verdades reafirmando seu ethos de pesquisa e sua episteme cientfica, porm estaacaba por ser entendida como uma parcialidade.

    Dito de outra forma, a percia antropolgica, quando centra suasenergias no trabalho de campo, rompe com o senso comum, que se ba-seia na confortvel crena em uma cientificidade neutra. Na questoparticular, em que se estudam os remanescentes de quilombo, cabe ao an-troplogo, por exemplo, no desconhecer os textos jurdicos ou as con-cepes arqueolgicas que norteiam a idia de reminiscncia; mas, combase em seu contato com o grupo, readequar ambas, uma vez que estasso externas ao ponto de vista e a realidade do grupo estudado. Assim,embora as reminiscncias tragam consigo idias de passado, do que jfoi, do que no mais, de sobrevivncias, a realidade etnogrfica, o con-tato direto entre pesquisador e pesquisado, permitem perceber a situa-o real e presente do grupo: sua organizao, sua coletividade, suas lu-tas polticas, sua identidade e, da somatria de todas estas, sua etnicidade.

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41362

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 363 -

    O antroplogo, ao privilegiar o sujeito de estudo, imparcial em seulaudo pericial, pois, ao contrrio da falcia positivista, ele sabe que arealidade relativa e contextual e, como tal, compreende que serquilombola nos dias atuais significa ressemantizar no presente uma lutahistrica de conquista, de permanncia ou de retorno a uma territoria-lidade, e uma luta futura, para a permanncia e vivncia dos grupos.No entanto, o antroplogo no deixa e nem pode deixar de ser um entepoltico e, enquanto tal, durante a percia ele acaba por se transformarem um instrumento poltico. Sua presena consiste em uma observaoparticipante e ele prprio ocupa um lugar especfico dentro do exerc-cio de busca pela cidadania, que a delimitao territorial para um gru-po tnico que se auto-reconhece como remanescentes de quilombo.Com isso, quer-se afirmar que parte do desconforto advindo de um lau-do pericial antropolgico fruto do desencontro das diferentes prticase fazeres entre o meio jurdico e o antropolgico. Essas diferenas seexpressam no mtodo, na prtica e na linguagem entre os diferentes sa-beres. Em antropologia, por exemplo, a verdade relativa, ou melhor, relacional (a nossa identidade relacional, diverge em relao aos con-textos, lugares ou pocas: filho, pai, aluno, professor etc.) como fica cla-ro na citao de Bourdieu reproduzida em ODwyer (2005, p. 230):

    a procura dos critrios ditos objetivos da identidade (...) no deve fazer

    esquecer que, na prtica social, estes critrios (por exemplo, a lngua) (...)

    so objetos de representaes mentais, que dizer, de atos de percepo e de

    apreciao, de conhecimento e reconhecimento em que os agentes inves-

    tem os seus interesses e os seus pressupostos, e de representaes objetais, em

    coisas (emblemas, bandeiras, insgnias etc.) ou em atos, estratgias interes-

    sadas de manipulao simblica que tm em vista determinar a represen-

    tao mental que os outros podem ter destas propriedades e dos seus por-

    tadores. (Bourdieu, 1989, pp. 112-113 apud ODwyer, 2005, p. 230)

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41363

  • - 364 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    Segundo Pacheco de Oliveira (1998, p. 270), o que os profissionaisdo meio jurdico chamariam de percia o que os antroplogos chama-riam de pesquisa:

    A Antropologia, lidando com smbolos e prticas de uma sociedade, opera

    necessariamente em uma escala de abstrao muito diferente, onde o obje-

    to do conhecimento no independente do sujeito cognoscente, nem pe-

    ritos e juzes so totalmente estranhos ou indiferentes aos sentimentos e

    opinies suscitadas pelos fatos por eles considerados. Ademais as Cincias

    Naturais tratam com sistemas fechados, enquanto as direes de um pro-

    cesso social podem ser mudadas pelos atores que o integram, at mesmo

    em virtude do conhecimento ou das expectativas em face dessas tendncias.

    Nesse quadro as inferncias no podem ser unvocas nem ser construdas

    de forma simplista. O que no significa que inexista rigor em suas anlises,

    mas sim que as suas generalizaes so de outra ordem, e tambm que

    imprescindvel um alto grau de controle sobre os instrumentos e a situao

    da pesquisa de modo a vir a ser possvel atingir o desejado rigor.

    Perceber e traduzir o ponto de vista do observado e o seu contexto,a partir de suas categorias e valores, permitem a realizao de uma pes-quisa que responda lgica e coerncia interna dos grupos, ao mesmotempo em que respeita a idia de processo e rompe com a de objetifica-o contida nos essencialismos. Desse modo, possvel perceber mais cla-ramente que os grupos so unidades sociais, e enquanto tais modificam-se rapidamente. Como afirma Pacheco de Oliveira (1998), eles somutveis e instveis. S desta maneira pode-se manter o rigor sem comisso engessar os sujeitos/parceiros de estudo. Ainda segundo o autor, aidentificao tnica um ato classificatrio e, assim, produzido emum contexto situacional; portanto, no se pode exigir que as autoclas-sificaes e as classificaes pelo outro sejam sempre coincidentes. Por

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41364

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 365 -

    esse motivo, o trabalho do antroplogo deve se revestir de cuidados e,em vez de trabalhar com classificaes tnicas de tipo genrico, deveinvestigar as incongruncias entre o grupo estudado e a sociedade regio-nal, pois nesta torna-se possvel perceber o campo de luta e as suas repre-sentaes e prticas, que se expressam em forma de preconceitos, estigmase censuras.

    Entender os grupos como unidades sociais mutveis e instveis sig-nifica consider-los um grupo identitrio tnico e, para tanto, deve-seromper com as idias essencialistas do senso comum e entender que osgrupos tnicos so coletivos relacionais (em um contexto contrastivo) eunidades polticas.

    Enfim, ao antroplogo, na condio de perito, no cabe convalidarou negar o direito ao auto-reconhecimento, que inviolvel por umterceiro ainda que detentor de uma expertise na rea dos estudos deetnicidade. A atividade do antroplogo descrever o funcionamento deuma fora social tendo por base seu contato com ela, atravs do traba-lho de campo, meio pelo qual possvel a descrio da sua organizaosocial, fsica, econmica e cultural.

    Notas

    1 Parte significativa deste artigo foi extrada dos captulos 1 e 2 da dissertao demestrado do autor.

    2 O autor Professor na Faculdade de Cincias Jurdicas da FEVALE/UEMG. Ba-charel em Cincias Sociais com Mestrado em Antropologia, ambos pela UFMG.Desenvolve pesquisa na temtica Quilombola e na interface Direito e Antropolo-gia. Membro-fundador do Ncleo de Estudos em Populaes Quilombolas e Tra-dicionais da UFMG (NuQ/UFMG). E-mail: [email protected] a minha orientadora Profa. Dra. Ana Lcia Modesto e as Profas. Dras.Ilka Leite, Nilma Lino Gomes e Deborah Lima, examinadoras da dissertao e

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41365

  • - 366 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    incentivadoras da publicao da mesma. Agradeo tambm a Daniel Martins porsua leitura atenta, aps o artigo ter sido aceito para publicao.

    3 Para uma melhor compreenso da figura de Clvis Moura e de sua sociologia, su-gere-se a leitura do artigo Clvis Moura e a sociologia da prxis, de rika Mes-quita (2003). Segundo a autora, Moura pode ser classificado como um intelectualrevolucionrio, com uma postura crtica e uma proposta radical de mudana dasociedade. Por esse motivo, ainda segundo rika Mesquita, ele no se preocupouem fazer carreira acadmica, mas sim em contribuir com uma interpretao, nomnimo, autntica da realidade brasileira.

    4 Aqui se faz necessrio explicar ao leitor que a opo por classificar esses movimen-tos tericos em correntes e distingui-los em corrente poltico-marxista e correntetecnicista foi uma opo metodolgica deste autor. A opo por adotar esta tipologiacontribuiu para o melhor desenvolvimento da dissertao da qual este artigo tam-bm produto.

    5 Nas palavras do prprio autor: O que est em questo no simplesmente o n-mero de quilombolas, mas as ordens de grandeza a partir das quais se podem iden-tificar tipos sociais distintos. Uma classificao adequada dessas formas de resistn-cia coletiva deve obedecer a um critrio morfolgico, e no puramente aritmtico.(Mata, 2005, p. 83). Mata desenvolve um interessante trabalho em que a questoquilombola referenciada, como ele prprio denomina, com base na chamada so-ciologia compreensiva (ibid., p. 73). Entende-se que, a despeito de uma sofistica-o no trato com a tipificao, Mata, assim como os demais autores que analisa-mos, tambm pertence corrente tecnicista, uma vez que o acento principal seencontra ainda em uma tipologia e no no direito soberano a autoclassificao eno conceito de etnicidade.

    6 O Conselho Ultramarino assim definiu Quilombo: toda habitao de negros fugi-dos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que no tenham ranchos levanta-dos nem se achem piles neles. Definio contida em Almeida (1996, p. 12).

    7 A este respeito ver os estudos de Lcia M. M de Andrade (1995) Os Quilombosda Bacia do Rio Trombetas: Breve Histrico; Siglia Z. Dria (1995) O Quilombodo Rio das Rs; Rosa Elizabeth A. Marin (1995) Terras e Afirmao Poltica deGrupos Rurais Negros na Amaznia e o prprio Alfredo Wagner Almeida (2002)Os quilombos e as novas etnias, entre outros. Em comum, esses estudos mos-tram que, ao contrrio do que se pensa sobre a temtica, os quilombos mantiveram

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41366

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 367 -

    grandes redes de informaes e comrcio agrcola, minerador e extrativista com asociedade envolvente, mas de maneira independente, funcionando paralelamentea outras redes de perseguio. As populaes negras que viviam nos quilombos es-tudados estiveram inseridas tanto na economia regional quanto no mercado maisamplo, com produo agrcola destinada a outras provncias.

    8 Aqui se faz necessrio esclarecer que discordamos da viso de Price (2000) a respei-to da pouca contrastividade cultural e continuidade no tempo dos quilombos noBrasil em contraposio a outros pases da Amrica Latina. Parece-nos que o pen-samento de Price, em termos de uma contrastividade forte, continua preso ao ve-lho esquema um povo (grupo, comunidade) = raa ou linhagem = uma cultura emcomum, j superado com autores como Barth, como mostraremos a seguir. Ouseja, Price no percebe a etnicidade como processo social (tipos organizativos) efronteiras contrastivas (os de fora e os de dentro) baseados nos sinais diacrticos,isto , as diferenas que os prprios atores sociais consideram significativas. Toma-se aqui de Price somente a idia de rebel slave comunities no que ela permitiu sair daviso sem sujeitos e paradoxalmente supra-histrica.

    9 Faz-se necessrio reconhecer que, para alm dos citados Jos Maurcio Arruti eAlfredo Wagner Almeida, foram e so figuras importantes nestes debates: JosAugusto Laranjeiras, Ilka Leite, Eliana Cantarino ODwyer, Cntia Beatriz Miller,Ricardo Cid Fernandes, Maristela Andrade, Joo Pacheco de Oliveira, dentre tan-to outros. O autor conhece e dialoga com a obra desses autores atravs dos diversosencontros em que essa temtica se faz presente, bem como atravs do GTQuilombos da Associao Brasileira de Antropologia. O autor reconhece que suaopo por privilegiar dois autores pode ter esvaziado a diversidade do debate; aescolha se deu por uma questo de espao.

    10 A Fundao Cultural Palmares FCP uma fundao do governo federal, cujacriao foi autorizada pela Lei n 7.668/88 e materializada pelo Decreto n 148/92, com a finalidade de promover a cultura negra e suas vrias expresses no seioda sociedade brasileira.

    11 Essa passagem se encontram no texto de Arruti (2003) com a seguinte refernciabibliogrfica: Ofcio do Diretor de Estudos, Pesquisas e Projetos ao SubprocuradorGeral da Repblica.

    12 Na nova realidade legal brasileira, aps a Constituio Federal de 1988, o patrim-nio cultural passa a ser formado tanto por seus bens, tanto os de natureza material

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41367

  • - 368 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    quanto os de natureza imaterial. Na nova legislao, a diversidade se consolidacomo fora central no discurso atravs das metodologias e nas prticas. Como umaestratgia de ao em oposio a um conceito de cultura como civilizao, erudio.

    13 Agradeo aqui de forma especial a Profa. Dra. Deborah Lima, por sua crtica ecomentrio a respeito dessa passagem quando do exame da dissertao. Tais crti-cas me permitiram re-elaborar essa passagem de formar a tornar mais claro a cons-truo, dito de outro modo me permitiu explicitar do que se trata a convenoprescritiva e a inveno performativa.

    14 A este respeito, pode-se dizer que esta categoria ainda se encontra em constanteelaborao, sendo um conceito aberto e em disputa, do qual no somente os an-troplogos, mas os cientistas sociais em geral, os militantes de diversos movimen-tos sociais, os militantes negros em particular, juristas, quilombolas e partidos po-lticos tm diferentes concepes do que venha a ser remanescentes de quilombo,e quais so de fato os seus direitos. Atualmente existe no Supremo Tribunal Fede-ral (STF), a mais alta instncia jurdica do Pas, uma ao promovida pelo PartidoDemocrata, antigo Partido da Frente Liberal (PFL), argindo a constitucionalidadeda aplicao do Decreto n 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamentao art. 68.

    15 Tal locuo foi apresentada pela advogada e professora Mariza Rios, especializadaem regulamentao fundiria para grupos remanescentes de quilombo, e que baseiaseu trabalho em um contato direto com as comunidades. Trata-se, portanto, deuma advocacia com caractersticas etnogrficas.

    16 Como visto, a idia de quilombo j assumiu diversas caractersticas no imaginriobrasileiro. A produo e atribuio de sentido a este tema normalmente est atre-lada postura que a sociedade brasileira adota em relao s questes socioraciaismais amplas.

    17 Para dirimir quaisquer dvidas que possam surgir, esclarecemos que neste artigo ofazer antropolgico no se ope ao fazer etnogrfico e vice-versa, e nem mesmo seencontram classificados hierarquicamente. A etnografia tomada aqui como aprtica antropolgica. Dessa forma, a anlise de um filme atravs de conhecimen-tos antropolgicos uma etnografia da mesma forma que a estada junto a umgrupo geogrfica e culturalmente distante.

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41368

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 369 -

    18 Segundo a antroploga do Ministrio Pblico, Elaine de Amorim Carreira (2005,p. 240), Tendo em vista a especificidade dos termos jurdicos, vale informar quepercia o trabalho cientfico propriamente dito, ou seja, o exame feito por umespecialista. J o laudo o resultado da percia, a pea escrita onde o perito expeas observaes, os estudos e as concluses do seu trabalho de investigao e anlise.

    19 No nos desconhecida crtica feita, por diversos autores, inclusive pelo prprioCrapanzano, em relao obra de Geertz. Para Crapanzano o autor no conse-guiu cumprir na prtica o seu iderio terico

    20 Do ponto de vista da episteme, o problema mais profundo: pois para o positi-vismo que, de forma geral, ainda bastante significativo na cincia jurdica e nosenso comum deve-se tomar um conjunto de fatos de forma imparcial e objetivoe se averiguar suas proposies fticas. A utopia positivista no permite a explica-o para alm do fato, ou seja, por meio desse mtodo no possvel indagar osentido dos fatos e suas significaes no aparentes. Como na maioria das vezesem cincias humanas no possvel a observao do todo, para esse positivismodeveramos partir para as analogias. O problema que, por um lado, estas tam-bm no so objetivas e imparciais (livres de contaminao), a no ser que acredi-temos na possibilidade de o cientista se despir de toda a sua vivncia anterior. Poroutro lado, a analogia j o rompimento de um pilar bsico do empirismo: o deobservar os fatos e depois fazer teoria. A limitao para esse tipo de episteme sosuas limitaes reais, quer no campo da prxis quer no campo da teoria, pois todaidia tem uma pr-histria, todo fazer cientfico tem seus dogmas e todo cientistatem, para alm do fazer cientifico, uma viso de mundo da qual impossvel quese dispa completamente. No mximo, possvel e necessrio que ele exera umcontrole de sua viso de mundo. Dessa forma, para o fazer antropolgico, o fatotambm um dado e, portanto, passvel de ser interpretado, o que na epistemepositivista poderia ser considerado uma contaminao.

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41369

  • - 370 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    Bibliografia

    ALMEIDA, Alfredo W. B de1996 Quilombos: sematologia face a novas identidades, in SMDDH, C. C. N.

    (org.), Frechal Terra de Preto: Quilombo reconhecido como reserva extrativista, SoLus, pp. 11-19.

    2002 Os Quilombos e as Novas Etnias, in ODWYER, Eliana C. (org.), Quilombos:identidade tnica e territorialidade, Rio de Janeiro, Ed. FGV, pp. 83-108.

    2006 Terras de preto, terras de santo, terras de ndio: uso comum e conflito, inALMEIDA, A. W. B., Terras de Quilombo, terras indgenas, babauais livres,castanhais do povo, faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas,Manaus, Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia, PPGSCA-UFAM/Fun-dao Ford, pp. 101-132 (Col. Tradio & Ordenamento Jurdico, vol. 2).

    ANDRADE, Lcia M. M.1995 Os Quilombos da Bacia do Rio Trombetas: Breve Histrico, in ODWYER,

    Eliana (org.), Terra de Quilombos, Rio de Janeiro, ABA Associao Brasileirade Antropologia, pp. 47-60.

    ANJOS, Jos Carlos G. dos2005 Remanescentes de quilombos: reflexes epistemolgicas, in LEITE, Ilka B.

    (org.), Laudos periciais antropolgicos em debate, Florianpolis, ABA/NUER,pp. 89-112.

    ARRUTI, Jos Maurcio A. P.2003 O quilombo conceitual: para uma sociologia do artigo 68 do ADCT, in Tex-

    to para discusso: Projeto Egb Territrios negros (KOINONIA), Rio de Janeiro,Koinonia Ecumnica.

    2006 Mocambo: Antropologia e histria do processo de formao quilombola, Bauru/SoPaulo, Edusc.

    BARTH, Fredrik1998 Os grupos tnicos e suas fronteiras, in POUTIGNAT, P.; STREIFF-

    FENART, J. (orgs.), Teorias da identidade, So Paulo, Ed. Unesp, pp. 185-227.

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41370

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 371 -

    BLANCO, Yedda A. O. C.; BLANCO, Ramiro C. H. C.s.d. Um Quilombo, disponvel em ,

    consultado em nov. 2006.

    CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto2000 O movimento dos conceitos na antropologia, in CARDOSO DE OLIVEI-

    RA, R., O trabalho do antroplogo, So Paulo/Braslia, Ed. Unesp/Paralelo 15.

    CARREIRA, Elaine de A.2005 O lugar da Antropologia no campo multidisciplinar do laudo, in LEITE, Ilka

    B. (org.), Laudos periciais antropolgicos em debate, Florianpolis, ABA/NUER,pp. 239-248.

    CARVALHO, Maria Celina2006 Bairros Negros do Vale do Ribeira: do Escravo ao Quilombo, Tese (Doutora-

    do), Campinas, Unicamp.

    CLIFFORD, James1998 A experincia etnogrfica: antropologia e literatura no sculo XX, Rio de Janeiro,

    Ed. UFRJ.

    CRAPANZANO, Vincent2004 O dilema de Hermes: o mascaramento da subverso na descrio etnogrfica,

    Revista Teoria & Sociedade, Belo Horizonte, vol. 12(2).

    DRIA, Siglia Z.1995 O Quilombo do Rio das Rs, in ODWYER, Eliana C. (org), Terra de Qui-

    lombos, Rio de Janeiro, ABA Associao Brasileira de Antropologia, pp. 3-34.

    HOLANDA, Aurlio Buarque de1991[1988] Dicionrio Aurlio Bsico da Lngua Portuguesa, 6.ed., edio reduzida do M-

    dio Dicionrio Aurlio, Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

    GEERTZ, Clifford1978 A interpretao das culturas, Rio de Janeiro, Zahar.1989 Estar l, escrever aqui, Dilogo, So Paulo, vol. 22(3): 58-63.

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41371

  • - 372 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    GOMES, Flvio dos Santos1996 Seguindo o mapa das minas: plantas e quilombos mineiros seiticentistas, Es-

    tudos Afro-Asiticos, Rio de Janeiro, vol. 29: 113-142.

    GONALVES, Jos Reginaldo S.1996 A retrica da perda: os discursos do patrimnio cultural no Brasil, Rio de Janeiro,

    Ed. UFRJ.

    GUIMARES, Carlos Magno1983 Uma negao da ordem escravista: Quilombos em Minas Gerais no sculo XVIII,

    Dissertao (Mestrado), Belo Horizonte, UFMG.

    LEITE, Ilka B.2003 Os Quilombos no Brasil: questes conceituais e normativas, disponvel em

    , consultado em 07/11/2003.

    MATA, Sgio da2005 Georg Simmel em Palmares, CRONOS: Revista de Histria, Pedro Leopoldo/

    MG, vol. 8: 73-103.

    MARIN, Rosa Elizabeth A.1995 Terras e Afirmao Poltica de Grupos Rurais Negros na Amaznia in

    ODWYER, Eliana (org.), Terra de Quilombos, Rio de Janeiro, ABA Associa-o Brasileira de Antropologia, pp. 79-95.

    MESQUITA, rika2003 Clvis Moura e a sociologia da prxis, Estudos afro-asiticos, Rio de Janeiro,

    vol. 25(3).

    ODWYER, Eliane C.2005 Laudos antropolgicos: pesquisa aplicada ou exerccio profissional da discipli-

    na, in LEITE, Ilka B. (org.), Laudos periciais antropolgicos em debate, Floria-npolis, ABA/NUER, pp. 215-238.

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41372

  • REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2009, V. 52 N 1.

    - 373 -

    OLIVEIRA, Osvaldo M de2005 O trabalho e o papel do antroplogo nos processos de identificao tnica e

    territorial, in LEITE, Ilka B. (org.), Laudos periciais antropolgicos em debate,Florianpolis, ABA/NUER, pp. 147-156.

    PACHECO DE OLIVEIRA, Joo1998 Os instrumentos de bordo: expectativas e possibilidades de trabalho do antroplogo

    em laudos periciais, Rio de Janeiro, Contracapa, pp. 269-295.

    PEIRANO, Mariza G. S.1992 O antroplogo como cidado, in PEIRANO, M. G. S., Uma antropologia no

    plural: trs experincias contemporneas, Braslia, Ed. UnB, pp. 85-160.

    PRICE, Richard1973 Maroon Societies: Rebel Slave Communities in the Americas, New York, Double-

    day/Anchor.

    PRICE, Richard2000 Reinventando a histria dos quilombos: rasuras e confabulaes, Afro-sia,

    Londres, pp. 241-265, vol. 23.

    RHRIG-ASSUNO, Matthias1996 Quilombos Maranhenses, in REIS, J. J.; GOMES, F. S. (orgs.), Liberdade

    por um fio: histria dos quilombos no Brasil, So Paulo, Companhia das Letras,pp. 433-466.

    SAHLINS, Marshall1979 Cultura e Razo Prtica, in Cultura e razo prtica, Rio de Janeiro, Zahar, pp.

    68-142.1990 Ilhas de histria, Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

    SCHWARTZ, Stuart B.1994 Quilombos ou Mocambos, in SILVA, M. B. N. da (org.), Dicionrio da his-

    tria da colonizao portuguesa no Brasil, Lisboa, Verbo.

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41373

  • - 374 -

    CARLOS EDUARDO MARQUES . DE QUILOMBOS A QUILOMBOLAS...

    STEWART, S1984 O longing: narratives of the miniature, the gigantic, the souvenir, the collection,

    Baltimore, The John Hopkins University Press.

    WAGNER, Roy1975 The Invention of Culture, Englewood Cliffs, Prentice Hall.

    WEBER, Max2004 Economia e sociedade, vol. 1, So Paulo, Imprensa Oficial/Ed. UnB.

    Documentos e LegislaoABA1994 Documentos do Grupo de Trabalho sobre as comunidades Negras Rurais, Bo-

    letim Informativo NUER, n. 1.BRASIL1988 Constituio da Repblica Federativa do Brasil, Braslia, Senado.

    ABSTRACT: This paper seeks to demonstrate, through a brief bibliogra-phical discussion, that despite the need to acknowledge the historical defi-nition of quilombo, this category does not define adequately remanescentesde quilombo or quilombolas, because these concepts refer to a self-recogni-tion process involving ethnic groups that mobilize this ethnicity towardsachievements, such as the final possession of their social territory. The cat-egory remanescente de quilombos is, therefore, a construction that only reachesits fullness in the interface of anthropological, legal and native discourses,including also social and political movements expressions. The ethnographicpractice is needed for the correct comprehension of this category, and thispractice should be taken as the privileged moment in which the quilombocan be understood not only as an externally defined place in other words,geographically determined, historically built and (maybe) documented oran archaeological finding but also as a living entity.

    KEY-WORDS: Maroons communities, remaining quilombo, ethnography.

    Recebido em setembro de 2008. Aceito em maio de 2009.

    09_RA_Art_Marques.pmd 24/03/2010, 16:41374